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Práticas do Juizado de Paz: o caso de Manuel Alves da Silva1

Gabriela Fazolato Guedes2

RESUMO: Para muito além de compreender a atuação e a função que o juizado de paz
realizava, o presente trabalho tem como objetivo perceber como esse cargo funcionava
cotidianamente, quais suas práticas e como os poderes se configuravam na esfera local.
A partir da leitura de periódicos da corte no século XIX, procurou-se seguir o rastro
deixado por correspondências a respeito do cônego e juiz de paz Manuel Alves da Silva
do 3º distrito da freguesia do Sacramento, no ano de 1840. As ocorrências se
concentram sobretudo no jornal Diario do Rio de Janeiro no período de janeiro até
novembro.

Palavras-chave:
Império – justiça – juiz de paz – século xix

INTRODUÇÃO

Muitos pesquisadores se dedicaram a pesquisar sobre a figura do Juiz de Paz no


Brasil Império, ainda que seja um tema em crescimento no campo da História. O que
muito se tem encontrado são trabalhos a respeito da configuração política no Império e
como o sistema judiciário se insere em seu interior.
Para citar temos Ivan de Andrade Vellasco que se propõe a analisar as mudanças
da organização judiciária nos anos 20 e 30 e a atuação dos governos locais, mais
especificamente a comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais. Neste trabalho o autor
aponta que logo após a Independência, a organização do judiciário nos moldes coloniais
foi alvo das reformas dos liberais para romper com a herança de Portugal. De acordo
com o autor a criação do juizado de paz marcou uma importante mudança na
configuração do Poder Judiciário e estava centrada em dois campos:

O primeiro, centrado nas criticas aos reiterados problemas e queixas da


estrutura jurídica, em grande parte herdada do período colonial, com
predomínio abusivo dos magistrados seus sistemas de emolumentos. O

1
Artigo requisitado pela disciplina Tópicos Especiais em História Política e das Instituições II, proferida
pela professora doutora Silvana Mota Barbosa.
2
Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, 7º período.
segundo situava-se no campo da percepção de que era necessário introduzir
mecanismos de implementação da justiça, capazes de levar seus benefícios a
toda, ou quase toda, extensão do território do Império (...)3

Outro trabalho também situado em Minas Gerais é o da historiadora Joelma


Aparecida do Nascimento que buscou compreender as modificações ocorridas na
implantação de um novo sistema judicial-administrativo que envolve a figura do juiz de
paz em Mariana. Neste trabalho a autora aponta para o fato de que mesmo sendo uma
magistratura leiga, esses homens eram reconhecidos em suas localidades e ainda que
esse novo sistema buscasse romper com a magistratura antiga, muitas das práticas dos
juízes de paz tem semelhanças com as práticas realizadas no período colonial.
Ambos os trabalhos tem em comum o fato de analisar a nova configuração do
judiciário em um momento de formação do Estado, no entanto na pesquisa não foi
encontrado algum trabalho que utilizasse como fonte os periódicos do século XIX. Para
estes trabalhos mencionados utilizaram-se processos crimes, livros de rol de culpados
ou correspondências.
Para muito além de compreender a atuação e a função que o juizado de paz
realizava, o presente trabalho tem como objetivo perceber como esse cargo funcionava
cotidianamente, quais suas práticas e como os poderes se configuravam na esfera local.
A partir da leitura de periódicos da corte no século XIX, procurou-se seguir o rastro
deixado por correspondências a respeito do cônego e juiz de paz Manuel Alves da Silva
do 3º distrito da freguesia do Sacramento, no ano de 1840. As ocorrências se
concentram sobretudo no jornal Diario do Rio de Janeiro no período de janeiro até
novembro.

MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

Logo após a independência do Brasil, muitas mudanças ocorreram na


organização do judiciário a fim de romper com as estruturas vigentes no período
colonial. De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho as principais mudanças
do sistema judiciário são a criação dos juízes de paz em 1828, a criação do Código de

3
VELLASCO, Ivan de Andrade.O juiz de paz e o código do processo: vicissitudes da justiça imperial
em uma comarca de Minas Gerais no século XIX. Revista Justiça e História, Rio Grande do Sul, v.3,
n.6, p.65-96, 2003, p. 5.
Processo Criminal em 1832, o Ato Adicional de 1834 e a Lei de Interpretação do Ato
que reformulou o Código de Processo Criminal em 1841.
O cargo de Juiz de Paz foi criado na lei de 15 de Outubro de 1827. De acordo
com Lenine Nequete, os juízes de paz eram autoridades eletivas e existiam “em cada
uma das freguesias e capelas filiais curadas”, tinham atribuições judiciais,
administrativas e policiais e podiam se candidatar para o cargo aqueles que
preenchessem os requisitos de eleitores, ou seja, homens com mais de 25 anos que
possuíssem renda superior a 200 mil réis, desta forma os juízes de paz não possuíam
formação. Dentre as principais funções dos juízes de paz temos: “conciliação das partes
antes da demanda”, julgamento de pequenas causas que não excedesse 16$000, fazer
corpo de delito, interrogar testemunhas e o delinqüente, informar ao juiz de órfão sobre
menores abandonados, fazer a manutenção da ordem pública, entre outras4. A Lei de 15
de Outubro de 1827 foi importante na medida em que começou a romper com as
estruturas herdadas do período colonial, e a inserir uma justiça eletiva com maiores
poderes locais.
Em 1832 foi publicado o Código de Processo Criminal de Primeira Instância que
teve entre outras mudanças, o aumento das atribuições dos poderes locais e a extinção
de cargos nomeados pela coroa, como o Juiz de Fora e o Juiz Ordinário. No código
ficou disposto que haveria em cada distrito um Juiz de Paz, um Escrivão, tantos
Inspectores, quantos forem os Quarteirões e os Oficiais de Justiça, que parecerem
necessários5; em cada Termo haveria um conselho de Jurados, um Juiz Municipal, um
Promotor Público, um Escrivão das execuções e os Oficiais de Justiça que os Juízes
julgarem necessários6. Além desses cargos, haveria também, por comarca, o Juiz de
Direito nomeado pelo Imperador, que poderiam exceder até três em localidades muito
populosas, sendo um deles o chefe de polícia.
Os escrivães7 e inspetores8 eram nomeados pela Câmara Municipal sobre
proposta do juiz de paz, podiam se candidatar ao cargo os que tivessem idade acima de
21, no caso dos escrivães era necessário ter prática nos processos ou habilidades para
adquiri-la facilmente. Suas funções eram escrever processos, ofícios e mandados,

4
Sobre as funções do juiz de paz e todo o poder judiciário após a Independência ver: NEQUETE, Lenine.
O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2000.
5
Art. 4
6
Art. 5
7
Art. 14
8
Art. 16
acompanhar os juízes de paz no ofício, entre outras9. Havia um inspetor para cada
quarteirão que executavam prisões de criminosos em flagrante e, no mais, esperava as
ordens dos juízes de paz.
Já os juízes de direito eram nomeados diretamente pelo Imperador e deveriam
ser bacharéis em Direito, além de serem maiores de 22 anos e possuírem no mínimo um
ano de prática no foro10. Eles presidiam a sessão do Tribunal e instruíam os jurados no
que diz respeito às suas obrigações, sobre o processo, isso sem expor suas próprias
opiniões sobre o caso ou sobre as provas; regulava a polícia das sessões e inspecionava
os juízes de paz e os juízes municipais entre outras funções.
O Ato Adicional de 1834 também modificou a organização judiciária, mas
somente com a Lei de Interpretação do Ato, em 1841 que o Código de Processo sofreu a
transformação mais evidente, o aumento dos poderes centrais em detrimento dos
poderes locais. Após 1841, a coroa passa não só nomear os juízes de direito como
também promotores e juízes municipais11. Os juízes de paz perdem algumas atribuições
como as tarefas de âmbito policial e judicial das quais passam a ser exercida pelos
delegados nomeados pelo poder central, assim sendo, o juizado de paz passou a exercer
funções no setor eleitoral. A lista de jurados, antes nomeada pelas autoridades locais
como os juízes de paz e párocos passam a ser delegadas às autoridades nomeadas pelos
poderes centrais, como juízes de direito, delegados e promotores.
De acordo com Augusto César, ao fazer um levantamento historiográfico sobre
as reformas judiciais, muitos autores como Lenine Nequete, Viviane Betzel e Jeffrey
Mosher afirmam que a reforma do Código em 1841 foi defendida por políticos
conservadores sob a justificativa de que a organização judiciária pós a promulgação de
1832 era ineficaz e desordeira. Essa discussão entre liberais e conservadores e
descentralização e centralização do poder se alarga a vários outros autores, no entanto
para o presente artigo deteve-se em um caso ocorrido no ano de 1840, destarte, anterior
às mudanças da Lei de Interpretação. Ainda que esta seja essencial para compreender o
contexto e a trajetória das autoridades locais, não será de suma importância para
discussão sobre as denúncias circuladas no jornal.

9
Art. 15
10
Art. 44
11
De acordo com o Artigo 33, os juízes municipais eram nomeados pelos presidentes de província a partir
de uma lista feita pela Câmara Municipal com três candidatos, sendo eles formados em Direito ou
Advogados hábeis. Essa nomeação era feita de três em três anos.
CORRESPONDÊNCIAS NOS JORNAIS DA CORTE;

Manuel Alves da Silva nasceu em Angra dos Reis em 1793 e faleceu na corte em
31 de Dezembro de 1863. Era presbítero secular, cônego e pregador da capela imperial,
cavaleiro da ordem de Cristo além de professor de latim do seminário de S. Joaquim12.
A partir de janeiro algumas denuncias começaram a circular nos jornais da corte – em
sua maioria no Diario do Rio de Janeiro – na parte de “correspondência” e “noticias
particulares” envolvendo seu nome e de pessoas que trabalhavam a seu serviço.
As denuncias se iniciam quando um anônimo afirma que não deveria-se dar
atenção a boatos de que o cônego tenha aceitado o cargo de juiz de paz para o 3º distrito
da freguesia de Sacramento, uma vez que este cargo seria diametralmente oposto às
funções de “ministro da Igreja” e que, portanto ele não teria competências para julgar
crimes. No entanto, era frequente que membros da Igreja ocupassem cargos públicos
naquele período e, no caso da candidatura para juiz paz era somente necessário
preencher os requisitos de eleitor. Outro correspondente, desta vez de O Despertador,
indaga o primeiro anônimo sobre “se tem sido possivel a outros Srs. Padres occuparem
o lugar de paz a não ser desaffeição que o Sr. Correspondente tem ao Sr. Cônego (...)”13
justamente por não haver motivos que impeçam o cônego de assumir o cargo. Logo
após essas passagens, é comunicado14 no jornal que Manuel Alves assume o cargo de
Juiz de Paz. No entanto, há de se ressaltar que em outra passagem 15 fica claro que o juiz
já atuava como tal pelo menos há quatro meses, e que seu assessor estava causando
muitas desavenças aquela região, por isso o medo que cônego assumir novamente o
cargo, devido às “más companhias”.
O assessor, Joaquim Santa Anna Araujo Mozinho, e também cunhado de
Manuel Alves da Silva, como diz o ex-escrivão na correspondência do dia 11 de janeiro,
estava sendo pronunciado em Itagoahy e veio para o 3º distrito do Sacramento fugido16.
Foi denunciado nos jornais por estar ocupando três funções em uma mesma causa:
procurador da parte, defensor do réu assessor de Manuel Alves. O ex-escrivão José

12
BLAKE, Sacramento. Diccionario bibliographico Brazileiro. Vol.6. Conselho Federal de Cultura,
1970, p.16.
13
O Despertador, 07/01/1840
14
Diario do Rio de Janeiro, 08/01/1840
15
Diario do Rio de Janeiro, 11/01/1840
16
Diario do Rio de Janeiro, 28/03/1840
Francisco Pinto de Macedo afirma que, não se rendendo as arbitrariedades do juiz de
paz e seu assessor preferiu viver pobre a servir pessoas como tais.
No dia 29 de Abril, no Diario do Rio de Janeiro, tomamos conhecimento de que
Joaquim de Santa Anna Araujo Mozinho, está respondendo pelo crime de resistência
“na occasião de ser mandado prender como restaurador em 1833 na Villa de Angra dos
Reis.”17 De acordo com o relator, os autos que teve conhecimento pareciam sem nexo,
sem formula, “um monte de illegalidades” e aparentava que o promotor esforçava-se
para que Mozinho fosse condenado. Apesar disso, o assessor se saiu muito bem em sua
defesa. Nas palavras do relator correspondente “elle mostrou aos jurados que a
deprecada, porque foi mandado prender, era illegal e destituída das solemnidades
externas, necessárias para sua validade, por não ter sido escripta pelo escrivão”18 além
disso, o Juiz de Paz que assinou a deprecada não o era naquela ocasião. De acordo com
o artigo 176, parágrafo segundo do Código de Processo, era necessário que a ordem de
prisão seja escrita por um escrivão e assinada por um Juiz de Paz ou Presidente do
Tribunal para que seja legítima, sendo assim, Mozinho poderia ter se negado a executar
a ordem. Joaquim afirma que processo tinha sido instaurado sem uma causa justa,
apenas com o fato dele ser amigo de D. Pedro I e logo passou a ser perseguido19.
Após um debate acalorado com o promotor, Mozinho consegue ser absolvido do
crime. O relator afirma que havia pessoas muito ilustres, de “primeira classe”, a favor
de Mozinho, como os irmãos Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Martin
Francisco Ribeiro de Andrada.
Já o inspetor do cônego e juiz de paz, Francisco Borges Mendes, tratado pelos
jornais como seu “braço direito”, conhecido como Doutor Pintadinho ou Cosmorama,
também sofreu denuncias no jornal. Ele nasceu na Bahia e não habitava o quarteirão no
qual atuava como inspetor, portanto, de acordo com o artigo 16 do Código de Processo
Criminal de Primeira Instancia, não poderia ocupar o cargo. Além de estar sendo
pronunciado por diversos crimes – não citados pela denuncia – um anônimo afirma que
o inspetor afirmou publicamente ser “MAHOMETHANO”20 na ocasião de prestar um
juramento “nos santos evangelhos”. Em sua defesa, Francisco Borges Mendes afirma21
que nasceu e cresceu sendo católico e que em meio a perseguições políticas no ano de

17
Diario do Rio de Janeiro, 29/04/1840
18
Idem.
19
“Mostrou os transternos que tivera por motivos d’aquelle imaginário crime a perseguição que sofres, e
os incommodos de sua familia e pelo simples facto de ser amigo do Sr. D. Pedro I.”
20
Diario do Rio de Janeiro, 07/04/1840
21
Diario do Rio de Janeiro 08/04/1840
1834, pelo juiz de paz da Praia Grande foi forçado a fazer um juramento e, para que não
perjurasse, pediu um alcorão dizendo professar outra religião.
Após conhecermos os dois braços do cônego e juiz de paz Manuel Alves da
Silva, pelo rastro dos jornais conseguiu-se observar dois casos que, segundo os
correspondentes, foram julgados de forma arbitraria pelo juiz e seu assessor. O primeiro
deles ocorre dia 10 de março de 1840 e envolve Francisco José Tavares, o segundo data
do dia 30 de junho como conta o inspetor João Baptista Borges.
No dia 10 de março, um anônimo afirma que Francisco José Tavares foi acusado
injustamente pelo juiz de paz, um dia depois de ser liberado pelo mesmo, com base
apenas no testemunho de um pedestre que fora desmentido por várias outras
testemunhas “fidedignas”. O narrador questiona o redator do jornal o porquê das
arbitrariedades do juiz de paz, uma vez que não havia provas e Tavares não habitava
aquele distrito para que se ouvisse a formação da culpa22. De acordo com as palavras do
narrador, esses problemas com o juizado de paz eram frequentes:

Ah! Sr. Redactor, a magistratura com factos taes si está lavando em agoas de
rosa, nos está dizendo que assas injustos éramos quando contra ella
dirigíamos accusações, esperando para alivio de nossos mães as autoridades
populares! a judicatura de paz! tantos males nos há feito esta, são tantos os
clamores contra ella dirigidos (...)23

Já o inspetor João Baptista conta, no dia 30 de junho, que havia sido intimado no
dia 15 do mesmo mês pelo chefe de polícia e não sabendo do motivo que se tratava se
dirigiu ao mesmo dia na casa do cônego juiz de paz onde encontrou com seu assessor,
Sr Joaquim de Santa Anna Araujo Mozinho. Ambos também não sabiam o motivo pelo
qual o inspetor havia sido chamado nem em qual condição – se como inspetor ou apenas
cidadão. Logo após esse diálogo, João Baptista afirma que tanto o juiz como o assessor
com “vozes arrogantes” disserão-no que não deveria obedecer a ordem do chefe de
polícia e caso cumprisse seria imediatamente demitido, e prossegue:

Não me admira que da boca do douto accessor sahissem taes palavras, porque
finalmente elle é bem conhecido porém da do Illmº e reverendíssimo Sr.
conego fiquei pasmado!! E não me persuadindo que tanto um como outro me

22
De acordo com artigo 160, parágrafo terceiro do Código do Processo Criminal de Primeira Instância, o
denunciado não seria ouvido para a formação de culpa caso não se soubesse o lugar de sua residência.
23
Diário do Rio de Janeiro, 10/03/1840
aconselhassem a desobedecer ao mandato da competente autoridade, me
achei, como devia, no dia 16 em casa do Sr. chefe, a quem com verdade e
sem desertar da questão, respondi ás perguntas que me fez (...). Não
acreditava porém que um ministro de Christo, empregado na cathedral tivesse
o rancor de praticar actos arbitrários, quando é seu dever praticas somente os
de brandura e justiça; porém me enganei me porque dia 19 do corrente ás 3
horas da tarde recebi demissão (...).24

João Baptista, segundo suas palavras, foi demitido pelo artigo 5225 do código do
processo, o mesmo artigo que lhe dá direito à recorrer ao Exmº ministro da justiça e diz
que o chefe de polícia “não consentirá que suas ordens sejão ludibriadas”.
No dia 14 de julho tomamos conhecimento que foi decretado no dia dez do
mesmo mês que o cônego Manuel Alves foi afastado do cargo de juiz de paz para
responder pelos crimes que foi acusado. Dois dias depois, na Parte Official ficamos
sabendo dos pormenores: as queixas foram documentadas por Francisco José Tavares e
José Francisco Santos, ambos vítimas das arbitrariedades do juiz, relatado no dia 10 de
março. Como dito anteriormente, o caso em questão era ilegal, uma vez que o
denunciado não habitava o distrito no qual houve a ocorrência. Além deste, o juiz
também foi acusado de “excesso e abuso de autoridade”.
Apesar de ter sido suspenso, no jornal O Brasil, um correspondente indaga o
redator para saber se a mesa paroquial da freguesia do Sacramento recebeu missão dos
“homens do cacete e dos conspícuos do Sr. ministro do império, para reformar a
constituição do estado”26, uma vez que expediram diploma de eleitor para o cônego
Manuel Alves da Silva, sendo que este se achava pronunciado e condenado a 5 anos e
seis meses de suspensão. De acordo com o artigo 94 da constituição, podiam ser
eleitores e votar na eleição de deputados, senadores os que podiam votar na assembleia
paroquial, com exceção dos que não tivesse renda liquida anual de 200$000, os libertos
e os criminosos pronunciados em querela ou devassa e, aqueles que se encontrasse
pronunciados não poderiam está em exercício de funções públicas.

24
Diário do Rio de Janeiro, 30/06/1840.
25
Art. 52. Os Juizes de Paz, Juizes Municipais, Promotores, e os mesmo Juizes de Direito, servirão por
todo o tempo, que lhes é marcado neste Codigo, não commettendo crime, por que percam os lugares; e os
seus agentes e officiaes, emquanto forem de sua confiança, aos quaes fica com tudo o direito de queixar-
se na Provincia, onde estiver a Côrte, ao Governo, e nas outras aos Presidentes em Conselho, contra o
Juiz que os tiver lançado fora por motivo torpe ou illegal.
26
O Brasil, 11/11/1840
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período posterior à independência, uma elite preocupada em construir um


Estado e uma “civilização” longe da barbárie das leis portuguesas buscou reformar a
organização judiciária e romper com a magistratura antiga, em busca de uma maior
democratização da justiça através de um sistema eletivo e combater os abusos de ma
antiga ordem. No entanto, como podemos observar esse sistema que dava mais poderes
as autoridades locais se tornou “decepcionante” para a sociedade no século XIX e a
defesa pela antiga magistratura se fez presente.
Apesar de muitas lacunas ainda não preenchidas, o caso relatado acima revela
uma série de irregularidades no exercício do juizado de paz. Desde pareceres arbitrários
por parte do juiz de paz, até o não cumprimento do Código de Processo na nomeação de
inspetores e assessores. No entanto, devemos nos perguntar quais os limites da situação
narrada acima. Podemos tomá-las como uma prática comum do juizado de paz ou uma
questão particular? Martins Pena talvez possa nos ajudar a responder algumas
perguntas.
Na peça O Juiz de Paz na Roça de 1838 é ilustrado o cotidiano de um juiz de paz
e seu escrivão diante de seu oficio. Na trama satírica podemos notar algumas
semelhanças com os fatos narrados sobre Manuel Alves da Silva. Ambos os juízes
deixavam suas relações pessoais interferirem nos pareceres, de forma a se beneficiarem.
Na passagem a seguir vemos o próprio Juiz de Paz dizendo que ninguém sabia muito
bem da atuação dos juízes de paz:

Escrivão: Pois Vossa Senhoria não sabe despachar?


Juiz: Eu? Ora essa é boa! Eu entendo cá disso? Ainda quando é algum caso
de embigada passe; mas casos sério é outra coisa. (...)
Escrivão: Vossa senhoria não se envergonha, sendo juiz de paz?
Juiz: Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para
nós, que ninguém nos ouve, quantos juízes de direito há por estas comarcas
que não sabem aonde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz. E alem
disso, cada um faz o que sabe.27

Ainda que a peça seja uma ficção, ela talvez nos revele como os próprios juízes de paz
eram vistos pela sociedade, e que as denuncias narradas pelos jornais faziam parte do

27
PENA, Martins. Comédias de Martin Pena.Ed. Ouro. Rio de Janeiro, s.d.
cotidiano daquele contexto28, pelo menos até 1841, quando suas atribuições sofrem
mudanças.
Por fim, podemos pensar também no papel do próprio jornal em se publicar
correspondências anônimas. Sabemos que as denuncias eram dos assuntos mais
diversos, mas, no caso dos juízes de paz, qual a intenção em se publicar? Em uma das
correspondências29, Francisco Borges Mendes diz saber quem foram os anônimos que
publicaram três correspondências anteriores, e salienta que nunca ofendeu os dois
primeiros e no caso do segundo nem mesmo o conhecia. Podemos pensar que as
correspondências anônimas tinham um sentido de expor as mazelas da localidade, mas
também caráter difamatório, uma vez que estavam protegidos pelo anonimato.

28
Nas consultas dos jornais foi observado muitas ocorrências envolvendo juízes de paz.
29
Diário do Rio de Janeiro 11/04/1840.
FONTES:
Diario do Rio de Janeiro, 04/01/1840
O Despertador, 07/01/1840
Diario do Rio de Janeiro, 08/01/1840
Diario do Rio de Janeiro, 10/01/1840
Diario do Rio de Janeiro, 11/01/1840
Diario do Rio de Janeiro, 10/03/1840
Diario do Rio de Janeiro,13/03/1840
Diario do Rio de Janeiro, 27/03/1840
Diario do Rio de Janeiro, 28/03/1840
Diario do Rio de Janeiro, 04/04/1840
Diario do Rio de Janeiro, 07/04/1840
Diario do Rio de Janeiro, 09/04/1840
Diario do Rio de Janeiro, 11/04/1840
Diario do Rio de Janeiro, 29/04/1840
Diario do Rio de Janeiro, 30/06/1849
Diario do Rio de Janeiro, 14/07/1840
Diario do Rio de Janeiro, 16/07/1840
O Brasil, 11/11/1840
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia de 1832. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro
das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DA MOTTA, Kátia Sausen. Juiz de paz e cultura política no início do oitocentos:
província do Espírito Santo, 1827-1842. 2003. 210 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória.
FERREIRA, Augusto César Feitosa Pinto. Reformas Judiciais e atuação da justiça
criminal no Brasil Imperial: uma discussão historiográfica
NASCIMENTO, Joelma Aparecida do. A justiça e os poderes locais no século XIX: o
caso dos juízes de paz (Mariana, 1827-1842), ANAIS/II COLÓQUIO DO
LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ECONOMICA E SOCIAL, 2008, Juiz de Fora,
Minas Gerais. Disponível em:
<HTTP://www.lahes.ufjf.br/publicacoes/Coloquio2%20PDF/Joelma%20Aparecida%20
do%20Nascimento.pdf>
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência.
Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2000.
PENA, Martins. Comédias de Martin Pena.Ed. Ouro. Rio de Janeiro, s.d.
RODYCZ, Wilson Carlos. O Juiz de Paz Imperial: uma experiência de magistratura
leiga e eletiva no Brasil. Revista Justiça e História, Rio Grande do Sul, V.3, n.5, 2003.
VELLASCO, Ivan de Andrade.O juiz de paz e o código do processo: vicissitudes da
justiça imperial em uma comarca de Minas Gerais no século XIX. Revista Justiça e
História, Rio Grande do Sul, v.3, n.6, p.65-96, 2003.

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