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Introdução À Obra de Gabriel Tarde PDF
Introdução À Obra de Gabriel Tarde PDF
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supervirtual
www.supervirtual.com.br
Fonte Digital
Documento da Tradutora
As Transformações do Direito
Bibliografia Consultada
Notas
As Transformações do Direito
Estudo Sociológico
G. Tarde
Membro do Instituto
Professor do Collège de France
Obra baseada na 7a edição francesa de 1912, com notas, comentários, estudo biográfico do autor,
resumo histórico da Sociologia e seus principais representantes
O Jurista Sociólogo
Foi num final de tarde que, entre prateleiras abarrotadas de livros, encontrei
um pequeno, gasto, com as páginas amareladas e quebradiças. Chamava-se As
Transformações do Direito e vinha assinado por G. Tarde. Era Gabriel Tarde,
crítico mordaz de Lombroso e opositor ferrenho de O Homem Delinqüente, obra
que eu acabara de traduzir. Lembrava-me bem daquele que dissera de Lombroso
que ele foi como café... excitou a todos, mas não alimentou ninguém.
No prefácio, a primeira surpresa: Os pequenos livros têm a vantagem das
preces curtas: se não vão todos ao céu, vão direto ao coração do leitor
contemporâneo que está sempre apressado. Era bonito. Original. Segundo me
disseram, todavia, não era interessante reeditá-lo. Já sofrera rejeições e não tinha
futuro. Levei o livro para casa mesmo assim e comecei o trabalho, cuja
complexidade não demorou a se mostrar claramente. Pouco mais de duzentas
páginas de pura essência escritas em francês clássico entremeado de expressões
idiomáticas, longas perguntas e longas respostas, tudo articulado e funcional... mas
profundamente filosófico. Não seria uma tarefa fácil nem rápida.
Não havia, à época, quase nenhum material disponível sobre Gabriel Tarde,
e eu contava apenas com duas edições de As Transformações do Direito. À medida
em que a tradução avançava, porém, começaram a aparecer outras obras do mesmo
autor numa sincronização notável. Bastou uma consulta à internet para que se
descobrisse a importância dada a todos os seus livros na Europa, especialmente
pela expectativa dos cem anos de sua morte, agora, em 2004. Dediquei-me, então,
não apenas ao trabalho de tradução propriamente, mas a pesquisas paralelas que
pudessem, de modo razoável, apresentar o autor aos seus leitores brasileiros.
Descobri um Gabriel Tarde surpreendente. Filósofo. Irônico e, ao mesmo
tempo, terno; sutil, sem falar no que mais impressiona: o terreno quase metafísico
que reclama àquilo que seriam as transformações pelas quais o Direito passou ao
longo da História, a coragem de, por vezes, abandonar a linguagem objetiva e fazer
uso de imagens poéticas, apelando ao coração e à subjetividade. Para quem viveu
no tempo em que um determinismo avassalador pretendia explicar e reduzir o
universo à mecânica, a sociologia à uma ciência natural, o homem a uma espécie
animal ainda não muito distanciada do macaco; para quem viveu num século XIX
tão tipicamente pretensioso, Gabriel Tarde surge quase romântico, ao reclamar a
cada um sua originalidade irredutível.
Encontrar, num livro de Direito, num capítulo dedicado às insípidas
Obrigações, um trecho como este: Mas quem de nós não inventa e não inova em
algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que
imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo
mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma
modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos?
Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja
misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível,
escapa à sonda do psicólogo.
Quanta coragem, quanta ousadia! Ousar insinuar, – num livro de direito,
obra supostamente técnica, notem bem, – que cada um de nós possui uma fonte
misteriosa que escapa à sonda do psicólogo...
Foi por isso que não pude fugir ao subjetivismo também, e escrevo na
primeira pessoa do singular, ao arrepio da melhor técnica e das mais
recomendáveis precauções. Seria, para mim, uma tarefa irrealizável a de traduzir
um livro como este sem ao menos tentar conhecer (ou, quem sabe, tentar intuir)
quem foi Gabriel Tarde, de onde partiram observações tão sagazes quanto
originais: sagazes, porque correram contra a corrente de pensamento imposta à
época em que viveu; originais, porque idéias e linguagem aliam-se de maneira
simbólica, quase que esgotando todos os recursos semânticos possíveis, e
causando, no leitor, a impressão concreta de poder ultrapassar o pensamento
formal. Gabriel Tarde, assim, requer de seu público a qualidade do sábio que deve
enxergar pelo avesso a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha pelo
direito.
Divido com o leitor aquilo que a curiosidade me levou a descobrir sobre
Jean-Gabriel de Tarde, do qual outras duas obras já estou traduzindo também, A
Criminalidade Comparada e A Opinião e a Multidão. Vejamos sua biografia e, em
tese, seu pensamento.
Vida e Pensamento
Sarlat, no Périgord, foi sua cidade natal. Nasceu em 12 de março de 1843,
numa antiga família de notáveis. Seu pai era juiz de instrução, e sua mãe pertencia
a uma família de juristas. Diz-se que Tarde fez brilhantes estudos entre os jesuítas
de Sarlat, – ainda que não lhe agradasse o internato, – obtendo, em 1860, o
bacharelado em Letras e depois em Ciências. Preparou sua entrada na Escola
Politécnica, mas, em razão de problemas de saúde, como veremos depois, optou
pelo estudo do Direito em Toulouse, estudos estes que terminou em Paris em 1866.
No ano seguinte tornou-se secretário assistente do juiz de Sarlat e depois juiz
substituto, também em Sarlat, de 1869 a 1875; enfim, juiz de instrução até 1894. Já
em 1877 desposara a filha de um conselheiro da Corte de Apelação de Bordeaux ,
tendo com ela três filhos.
A partir de 1880, publicava regularmente na Revue Philosophique e, em
1887, nos Archives d’Anthropologie Criminelle, mantendo abundante
correspondência com criminólogos italianos. Em 1894, seus amigos, numerosos
entre os penalistas, o fazem nomear diretor do serviço de estatística judiciária do
Ministério da Justiça em Paris, pois, desde 1890, com a obra As Leis da Imitação,
tornara-se um homem famoso. A partir de 1896 dá conferências no Collège Libre
des Sciences Sociales e, após um primeiro fracasso, é eleito professor no Collège
de France em 1900. Ensinou até sua morte, que ocorreu em Paris em 1904.
Estes são seus dados biográficos em ordem cronológica. Mas o que mais
poderemos saber sobre esse filósofo, literato, poeta, psicólogo, criminólogo que
alcançou mesmo a celebridade em seu tempo, mas que foi rapidamente esquecido?
Veja-se que assinou seu nome sempre como Gabriel Tarde, mas sabe-se que
poderia assiná-lo também Gabriel de Tarde. Gabriel Tarde ou Gabriel de Tarde?
Ele jamais fez uso da partícula nobiliárquica, ao contrário de seu pai e de seus
filhos. Como pertencesse a uma das mais antigas famílias da região onde nasceu,
poderia indicar tal origem através do uso da partícula de (indicativa de nobreza),
embora não o tenha feito. Jean Tarde (1561-1636), seu antepassado, capelão
particular de Henrique IV, foi um célebre astrônomo, amigo de Galileu que o
presenteou com uma de sua lunetas.
Com apenas 7 anos, o pequeno Gabriel ficou órfão de pai, e sua formação,
junto aos jesuítas de Sarlat, obrigou-o a suportar anos terríveis de internato, meio
depravador, quase tanto quanto a prisão, escreveria ele mais tarde, onde as
crianças são entregues às sugestões violentas das piores entre elas.
Após seu bacharelado em Letras, como dissemos, pretendia cursar a escola
politécnica, quando enfrentou sérios problemas de saúde. Foram problemas que
afetaram sua visão. Tarde sofreu crises dolorosas de oftalmia, numa cegueira quase
total, que o forçou a ficar num quarto escuro durante meses.
O contato com sua obra vai nos revelar um homem sensível, modesto,
voltado ao bem. Apesar da lógica com que desenvolve a temática proposta, por
vezes o texto revela-nos algo de subjetivo e profundo, quase romântico. Foi
justamente este o aspecto que mais incitou minha curiosidade, e levou-me a
pesquisar e procurar compreender quais teriam sido as influências sofridas pelo
autor, influências estas que deveriam ter sido, afinal, muito marcantes. Dados
disponíveis sobre Tarde podem esclarecer em parte tal peculiaridade. Durante sua
juventude que, como vimos, foi bem difícil, descobriu a obra de Maine de Biran,
um grande sofredor. Trata-se de Maria Francisco Pedro Gonthier de Biran, filósofo
francês (1799-1824), considerado um dos baluartes do espiritualismo europeu.
Espiritualismo aqui, – é bom gizar, – de ordem metafísica especulativa. Maine de
Biran preocupou-se com a substância do eu (que não deve ser confundida com a
alma teológica), como “uma força hiperorgânica que se faz consciente de si mesma
quando move algum grão corpóreo”. Especulações à parte, as obras deste filósofo
chegaram a ser republicadas no século XX. Temos: Oeuvres, Paris, 1920; Maine de
Biran, Antologia, M. T. Antonelli, Bréscia, 1948; Oeuvres Choisies, Paris, 1942;
M. de B. e son Oeuvre Philosophique, Paris, 1931, etc. Considero importante, para
uma melhor compreensão do pensamento de Gabriel Tarde, que nos detenhamos
um pouco mais sobre Biran, porque alguns trechos deste livro dependem de um
razoável domínio dos aspectos filosóficos que orientaram a visão de Gabriel Tarde
no tocante às transformações sofridas pelo Direito.
Trata-se do mais vigoroso pensador francês da primeira metade do século
XIX. Muito mais que o de seus contemporâneos, o pensamento de Biran é operante
ainda hoje e teve profunda influência sobre o Intuicionismo[1] e sobre o
Espiritualismo[2] contemporâneos, especialmente sobre Bergson. O interesse
constante e fundamental de Biran é “a inclinação sobre nós mesmos” como a mais
sólida justificativa da tradição religiosa. A vida íntima seria derivada da
consciência, o “sentido da existência individual”, sem a qual não há conhecimento.
Atividade e passividade seriam elementos sempre presentes no ato de conhecer. O
eu não poderia conhecer-se como força espiritual sem agir sobre algo que lhe
resiste: a consciência da própria espiritualidade é dada ao eu pela resistência do
corpo, fatos indissoluvelmente ligados. O esforço, – dado pela experiência interna,
– identifica-se com a causalidade. O eu que se intui imediatamente como esforço
voluntário é o sujeito singular que se vive, mas não se exprime. Biran chama-o
“homem interior”, em oposição ao “homem exterior” captado da análise da ciência.
Na intuição de si mesmo, o eu deduz os conceitos de causa, substância, força,
unidade, etc., que aplica à realidade externa. Afasta-se aqui das formas a priori de
Kant e das idéias inatas de Descartes e do hábito de Hume. Atrás dos fatos e das
leis que a ciência descobre, haveria um mundo de forças semelhantes à nossa
atividade voluntária: nas coisas haveria um princípio de atividade espontânea que
escaparia ao cientista, mas não ao filósofo.
Além de Biran, ao longo da juventude, fase depressiva de sua vida, Tarde leu
também Teresa de Ávila. Minha grande dor – escreveu ele – é não poder satisfazer
minha necessidade suprema de amor. Quem amar? Quem me ama? É a melancolia
célebre dos jovens ao final do século XIX. Lê os estóicos, Hegel, Cournot, escreve
poemas e dá longos passeios a pé.
Quanto a Antônio Agostinho Cournot (1801-1877), trata-se de alguém que
merece um comentário à parte. Foi economista, matemático e realizou
investigações na área dos cálculos de probalidade e fundamentos do conhecimento,
bem como teorias econômicas sobre a riqueza e o encadeamento de idéias nas
ciências e na História. Sua teoria econômica sobre o monopólio de preços ainda é
adotada, assim como outras referentes às finanças públicas. No exemplar de As
Leis da Imitação que tive em mãos (6a edição, Félix Alcan, Paris, 1911), Gabriel
Tarde escreveu: À memória de Cournot eu dedico este livro.” Tal demonstração
de respeito por parte do autor foi, para mim, um indício seguro, tanto da
consideração de Tarde pela obra de Cournot, quanto das bases filosóficas e lógicas
da teoria da imitação, teoria esta que não pecou pela superficialidade ou
precipitação, mas que requereu do autor profundos embasamentos que não refogem
à Teoria do Conhecimento. Melhor prova disso seja talvez a reedição na França,
não só de As Leis da Imitação, como de praticamente toda a obra de Tarde,
reedições que vêm acompanhadas de comentários, entrevistas e discussões a
respeito do alcance de suas teorias que, apesar dos quase cem anos que nos
separam de sua morte, permanecem atuais sob muitos aspectos.
Chegam as primeiras intuições filosóficas. Tarde sentia grande atração pela
matemática, mas terminou optando pelo Direito. Felizmente, a oftalmia
desaparecera e ele segue sua carreira na magistratura, casando-se e tornando-se pai
de três filhos.
Foi sempre um homem apaixonado por seu trabalho. Intelectual poderoso,
não poderia deixar de se interessar pelos debates, crescentes à época, em torno da
Criminologia, ciência nascente. Inspirado, escreve inúmeros artigos e começa a
corresponder-se com César Lombroso, com o qual empreendeu debates que
passaram da polidez inicial aos mais vivos insultos. A propósito, Criminalidade
Comparada, obra que, em breve, será objeto de edição comentada, foi escrita a
partir de o O Homem Delinqüente, e Tarde demonstra aí toda sua sagacidade de
crítico mordaz e opositor ferrenho à tese do criminoso nato. Eis como ele dá início
ao livro: Estais curioso para conhecer a fundo o criminoso, não o criminoso de
ocasião que a sociedade pode imputar-se na maior parte, mas o criminoso nato e
incorrigível pelo qual a natureza, quase unicamente, – dizem-nos, – é
responsável? Lede a última edição de O Homem Delinqüente de Lombroso [3] que
foi, há dois anos, traduzida para o francês. Quanto é lamentável que uma obra
dessa força e dessa densidade, uma tal concentração de experiências e de
observações tão engenhosas quanto perseverantes, e onde se resume o trabalho
não de todo estéril de uma vida inteira, de toda uma escola inovadora, não pôde,
malgrado a força dos erros, tentar a pluma de um tradutor francês!
Mas foi em 1890 que a notoriedade chegou para Gabriel Tarde com As Leis
da Imitação. A partir daí chegou à celebridade, começando uma nova vida em
Paris. Convites, festas, palestras, enfim, uma vida agitada de pensador reconhecido
e famoso ao seu tempo. Não escreveu, porém, apenas livros que se poderiam
chamar técnicos. Eu não podería deixar de falar sobre o que encontrei
a respeito do livro chamado Fragmento da História Futura (Fragment d’Histoire
Future). Trata-se de um fascinante romance de antecipação, recentemente
reeditado na França, como quase toda a obra de Tarde. Neste interessantíssimo
livro, ele dá uma versão poética de todo seu sistema, imaginando que o Sol teria se
extinguido e a Terra ter-se-ia transformado num globo gelado sob a noite eterna. A
humanidade, então, deveria encontrar o caminho de sua regeneração numa
urbanidade escondida, perto do coração quente da Terra, lugar onde os desejos
circulariam instantaneamente, em tempo real, enquanto o espaço seria reduzido a
uma abstração. Tarde pretenderia com isso propor uma teoria sociológica que
pudesse ser válida a despeito do paradigma espaço-tempo? É difícil imaginar sem
haver lido a obra, mas é permitido supor que não lhe faltavam qualidades
intelectuais para enfrentar tal desafio.
Teve uma vida agitada após a celebridade. Escreveu muito, alcançou a fama
e deixou a todos uma obra marcante, perturbadora, eu diria, para aqueles que
empreenderem uma cuidadosa leitura de seus textos. Foi na noite de 12 de maio de
1904, aos 61 anos, que morreu Gabriel Tarde, que também foi poeta: Como todo
ser, estamos destinados a entrar em breve, pela morte, no infinitesimal de onde
saímos, neste infinitesimal: o que poderia ser, no fundo, quem sabe? Tudo além da
verdade, tudo asilo póstumo, inutilmente procurado nos espaços infinitos [4].
O pensamento de Tarde só pode começar a ser compreendido através de sua
concepção da imitação. O célebre autor via aí o princípio de quase toda explicação
sociológica: a ação de um espírito sobre o outro. É de salientar que, à época em
que Tarde iniciou seus estudos, a influência de Spencer era grande, assim como a
da Evolução, do biologismo. Mas, a Tarde, jamais agradou a idéia de admitir o
animal como ascendente do homem e tampouco aceitou que tudo evolui da
homogeneidade confusa para a heterogeneidade definida. Empreendeu uma
verdadeira luta contra todas as formas de interferência do biologismo, do
transformismo e do organicismo em Sociologia. O que nos importa a Sociologia
aqui? Este não é um livro de Direito? Sim, trata-se de um livro de Direito, mas o
leitor não pode se esquecer nunca de que, para Tarde, o Direito deve ser
compreendido como um ramo da grande árvore da Sociologia.
Além disso, para ele, a Sociologia fundamentava-se na Psicologia, no
fenômeno da imitação principalmente. Mas, quando a imitação não pudesse estar
em causa, a invenção explicaria o fenômeno social. A invenção, um fenômeno
idêntico àquele da ordem natural, seria causa de imitações posteriores. O espírito
inventivo a acompanhar o evoluir do tempo, rumo ao aperfeiçoamento que
desemboca no progresso. A lógica social, por sua vez, concilia crenças e desejos.
Quase toda Psicologia Social originou-se nos trabalhos de Gabriel Tarde, que
tiveram grande desenvolvimento na Itália.
Destacamos: Existir é diferir; nossas semelhanças, que o sábio estuda,
nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença
essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que
pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente,
que não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas
fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra.
Quando Tarde afirma que existir é diferir, coloca a diferenciação como
princípio de sua filosofia, atuando juntamente com a preexistência dos possíveis e
o caráter infinitesimal do real. Os seres reais, como os eventos e as coisas,
poderiam não acontecer, e isto já fora sustentado por Leibniz, mas, uma vez que
ocorram, que existam, que aconteçam, sua existência se torna necessária. Assim, a
realidade compõe-se de possibilidades, é virtual, e cada uma de suas emergências
não é senão uma realização probabilística pontual. As entidades não teriam
atributos, mas propriedades, e a realidade, seja das coisas, seja dos homens ou da
sociedade aparece como um continuum de diferenças, de integrações sucessivas de
elementos infinitesimais heterogêneos. Assim o existir é integrar o infinito no
finito. A sociedade é o plano onde a contingência vem à consciência, mas esta é
sempre individual, porque, – em oposição àquilo em que acredita Durkheim, – a
consciência coletiva não tem sentido. A psicologia tardiana entende assim explicar
como indivíduos diferentes chegam a pensar a mesma coisa, ou influenciar o
pensamento dos outros. (Jean-Baptiste Marangiu)[5]. No prefácio da obra A
Opinião e a Multidão, destaca: A expressão psicologia coletiva ou psicologia
social é freqüentemente compreendida num sentido quimérico que importa, antes
de tudo, descartar. Tal sentido consiste em conceber um espírito coletivo, uma
consciência social, um nós que existiria fora ou acima dos espíritos individuais.
Não temos qualquer necessidade, segundo nosso ponto de vista, desta concepção
misteriosa, para estabelecer, entre a psicologia ordinária e a psicologia social, –
que chamaremos inter-espiritual, – uma distinção bastante nítida. Enquanto a
primeira, com efeito, liga-se às relações do espírito com a universalidade dos
outros seres exteriores, a segunda estuda, ou deve estudar, as relações mútuas dos
espíritos, suas influências unilaterais e recíprocas – unilaterais primeiro,
recíprocas depois. Logo, existe entre ambas, – a psicologia ordinária e a
psicologia social, – a diferença do gênero à espécie. Mas a espécie, aqui, é de uma
natureza tão singular e tão importante que deve ser destacada do gênero e tratada
por métodos que lhe sejam próprios.[6]
Contrariamente a Emile Durkheim, seu principal adversário, que foi um
universitário profissional, Tarde poderia ser chamado de um homem da terra, um
jurista ligado à sua província natal que, notadamante durante os anos em que
exerceu a magistratura em Sarlat, observou de forma atenta o comportamento
social de seus semelhantes, de preferência a elaborar uma doutrina universitária.
Suas experiências como juiz de instrução levaram-no primeiro à Criminologia, a
nova ciência desenvolvida pela escola italiana no fim do século XIX. Foi aí que ele
se opôs a César Lombroso, o célebre professor de Medicina Legal, Psiquiatria e
Antropologia Criminal na Universidade de Turim. Mordaz, não apenas em A
Criminalidade Comparada, – em trecho citado mais acima, – mas ainda em sua
Filosofia Penal, Tarde expressou-se assim: “...o mérito de Lombroso não é nada
diminuído pelas pesquisas de seus predecessores: ele é maior a nossos olhos por
esta ausência de método, por esta insuficiência de crítica, por esta complicação
desordenada de fatos heterogêneos, por esta tendência a tomar como prova de
uma regra um acúmulo de exceções, enfim, por esta precipitação nervosa de
julgamento e esta obsessão de idéias fixas, eu quero dizer, de idéias correntes que
se observam em todos os seus escritos, e que sua impetuosidade arrebatadora, sua
riqueza de percepções, sua engenhosidade original não chegam a fazer esquecer.
Este pesquisador entusiasta não é menos o verdadeiro promotor daquilo que ele
chama, – de maneira assaz imprópria, de resto, – a antropologia criminal, e o
impulso que incita, nas múltiplas vias desse ramo de estudos, mesmo fora da
Itália, tantos espíritos distintos, emana dele [7].”
Depois, no terreno da Sociologia, ele desenvolveu, desta vez contra
Durkheim, uma psicologia social do comportamento dos indivíduos. Os fenômenos
coletivos deveriam ser tratados, segundo ele, como fenômenos psicológicos
ordinários. A evolução não vai do simples ao complexo, mas do complexo ao
simples, e deve-se sempre considerar que o heterogêneo é anterior ao homogêneo.
O fato social deve ser definido a partir de interações, de inter-relações entre as
consciências individuais.
Mas o que pensava Durkheim? Durkheim era considerado discípulo de
Augusto Comte e, para ele, o fato social deveria ser visto como coisa, coisa não
material, mas existindo exteriormente às consciências individuais. O caráter
científico deste fato, necessariamente, exigiria sua sujeição a leis determinadas.
Trata-se do sociologismo positivista, com caráter de independência em relação às
consciências e às ações individuais que Durkheim separa dos fatos sociais, para
ele, peculiares ao organismo social: a sociedade vista como uma realidade sui
generis, com natureza própria e independente das naturezas individuais.
Mas autores como Durkheim não conseguem explicar como é que o coletivo
social pode ser assimilado coercivamente pelos indivíduos sem que existam
relações intermentais. Tarde critica este caráter coercivo, exterior e coletivamente
orientado que empresta ao fato social. Aqueles escritores imaginam que estão
declarando uma verdade com grande peso quando eles afirmam, por exemplo, que
as línguas e as religiões são produções coletivas; que as multidões, sem um líder,
construíram o grego, o sânscrito e o hebreu, tal como o Budismo e a Cristandade,
e que as formações e transformações das sociedades são sempre explicadas pela
ação coerciva do grupo sobre os seus membros individuais. (...) A falha destes
autores está, – segundo Tarde, – em não perceberem que, postulando uma força
coletiva, a qual implica a conformidade de milhões de homens agindo juntos sob
certas relações, eles não prestam atenção a uma grande dificuldade,
nomeadamente, o problema de explicar como é que uma tal assimilação geral
podia alguma vez ter lugar. Tarde aceita e propõe a análise da relação
intercerebral de duas mentes, uma refletindo a outra: Apenas assim podemos
explicar os acordos parciais, o bater dos corações em uníssono e as comunhões de
alma, as quais, uma vez ganhas, perpetuadas pela tradição e imitação dos nossos
antecessores, exercem no indivíduo uma pressão que é freqüentemente tirânica,
mas saudável. Se somos governados por modelos coletivos e interpessoais, a
pressão para a adoção desses modelos não é propriamente exterior, mas resultante
do contágio imitativo entre indivíduos, contágio este que pode vir, por exemplo, da
tradição, da educação, dos costumes, da moda. Neste sentido, a invenção entra
como fonte de iniciativas criativas, individuais e independentes, dependente das
leis da imitação efetivadas na atividade intermental, na medida em que é a partir da
invenção que surgem novos modelos a serem imitados. (Marco António Antunes,
Universidade da Beira Interior[8])
Durkheim e Tarde mantiveram polêmica. Ora, para o primeiro, por exemplo,
a horda seria uma espécie de protoplasma do social, da horda passa-se ao clã.
Estranhamente, o clã deveria preceder à família. Concepção curiosa, mas princípio
essencial e necessário à concepção de Durkheim, princípio este que deve ser aceito
como verdadeiro, embora seja natural e humano que os indivíduos se
congregassem primeiro em famílias... Já para Gabriel Tarde, não se poderia admitir
o determinismo dessa afirmação e, muito menos, conferir-lhe a qualidade
dogmática da premissa em que se baseia.
Na França, a influência póstuma de Tarde foi reduzida, se comparada àquela
de Durkheim, que foi sempre sustentada pela Sorbonne, oficial, vencedora e a
serviço da república laica. Nos Estados Unidos, Tarde, notadamente, influenciou
James Mark Baldwin (1861-1934, fundador do American Journal of Psychology, e
Edward Alsworth Ross, 1866-1951). No livro que foi considerado como um
referencial de autoridade nos Estados Unidos, nos anos 20-40, Introduction to the
Science of Sociology, de Robert Park e Ernest Burgess, Tarde é considerado como
um autor importante, tão importante quanto Durkheim.
A Imitação
“Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o
artista olha pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas
variações geniais e fugidias, mas que o sábio deve
enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas
mensuráveis, únicas enumeráveis, únicas formuláveis em
dados estatísticos ou em leis científicas.” [9]
As Transformações do Direito
Gabriel Tarde, certamente, vai surpreender a todos aqueles que o lerem.
Traduzi-lo foi um desafio, e a tarefa não teria sido possível sem uma pesquisa mais
ampla que a temática proposta neste livro. Especialmente no campo do Direito,
nossos colegas terão muito a descobrir. Antes de mais nada, porém, é importante
notar que a obra foi escrita por um literato. O texto é notável, mas exige do leitor
atenção redobrada, não apenas pelo uso eventual de figuras de linguagem, mas
ainda pelas inversões, pelos enunciados entremeados de apostos e, em especial,
pelas perguntas metodicamente intercaladas, perguntas às vezes longas, tão longas
que optamos por sinalar a chegada de cada uma delas com um ponto de
interrogação invertido, à moda espanhola. Liberalidades desta edição que
esperamos facilite a leitura. Na obra, transparece o estilo socrático empregado pelo
autor, que expõe minuciosamente os dados que quer rebater, demonstra-os
magistralmente, argumenta a favor dos mesmos e, a partir de perguntas engenhosas
e pertinentes, cria-nos a dúvida. Convida-nos então a acompanhá-lo na busca de
outras respostas que não aquelas convencionais e consideradas verdadeiras à
época.
Evolucionistas, antropólogos criminais, romanistas clássicos têm todo o
arcabouço de suas verdades desestruturado a partir dessa metodologia que torna
evidentes falhas tão pressurosamente disfarçadas, e que todavia não eram menos
que baluartes jurídicos, biológicos e sociais. Assim, os conceitos usuais de
evolução, de contrato, da origem das penas, do próprio Direito Natural são objeto
de especulação fecunda e não podem deixar de sofrer sérios abalos.
Está-se diante de um pensador que reclama à imitação um lugar de destaque,
não o mesmo que ocupa o alfabeto em relação à literatura, mas o de fenômeno
social por excelência. E foi a desconsideração deste fenômeno que levou muitos de
seus contemporâneos a exagerarem a importância do atavismo e da
hereditariedade, fenômenos aos quais Tarde não negou a influência, mas tão-só a
exagerada ampliação desta.
Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três
grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação
para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação
para os fenômenos sociais propriamente ditos. (...) É claro que se devem levar em
conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das
analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no
meio físico.
O leitor, todavia, encontrará também um homem que, apesar da ironia e da
desenvoltura com que argumenta e rebate, não consegue esconder sua inclinação
ao bem e ao belo, e à convicção de que a humanidade traz em seu coração um quê
misterioso, visível e palpável em manifestações aparecidas ao longo de toda a
História, através de grandes homens que conduziram os seus na direção de uma
beleza moral que não se confunde com a estética, mas ultrapassa-a. E Tarde
pergunta: Não existe também uma verdade moral que toda sociedade
inevitavelmente formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar
como num golfo, e que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite
Sócrates, Buda, o Cristo, e que o perfeito bravo homem de todos os tempos,
Aristides ou Franklin, Epicteto ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto
árabe ou o santo cristão seja, em toda parte, reconhecível nos mesmos traços
essenciais, não diferindo senão pelo grau de abertura de seu horizonte intelectual
e pelo raio da esfera da humanidade na qual se desenvolve? E não existe uma
beleza, uma moral sublime, una e idêntica, para onde se orienta como a um pólo
toda alma generosa de todos os cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a
simples condensação, num instinto especial, de hábitos hereditários sugeridos por
experiências de utilidade geral acumuladas ao longo do passado da humanidade,
que ora, de preferência, esta orientação traísse também qualquer ação mais sutil e
mais profunda, qualquer revelação do fundo divino das coisas? Muitos
permanecerão indiferentes a isso; muitos, ainda, talvez anseiem pela costumeira
objetividade, muitas vezes estéril, seca, cronológica, de alguns de nossos juristas,
escritores contemporâneos que tudo querem resumir e esquematizar, o quanto baste
para simular uma leve idéia do assunto, tudo em nome da prática; mas outros,
talvez poucos, serão tocados e levados a pensar, a rever idéias e conceitos, a
analisar fatos e circunstâncias a partir de um novo enfoque. Acredito que estes são
os destinatários da mensagem de Gabriel Tarde que escolhi para a abertura deste
livro.
As Transformações do Direito: uma evolução descontínua e multimilenar.
Vê-se aqui Tarde aplicar sua teoria ao processo, ao regime de pessoas, de bens, às
obrigações, ao Direito Natural e ao Direito Criminal.
O processo é historicamente desenvolvido segundo diferentes técnicas
ligadas à invenção de modos de registro. Não há processo sem registro. Na
História, houve mesmo o escrivão iconográfico, que registrava em figuras as etapas
dos julgamentos. O regime de pessoas mostra que a evolução foi extremamente
diversificada. Esse regime varia segundo o tipo de sociedade considerada:
poligâmica, monogâmica, matriarcal, patriarcal. No que concerne ao regime de
bens, Tarde é da opinião que é a invenção pessoal que faz a apropriação. O
inventor proclama-se proprietário para defender seu bem, bem este vital para ele.
Depois, a rede da apropriação desenvolve-se segundo o processo imitativo. A
apropriação privada dos bens é, para ele, a primeira historicamente; a coletiva,
posterior. Quanto às obrigações, os contratos, para Tarde, o princípio segundo o
qual se deve respeitar essas contratações viria do respeito à invenção, respeito que
se impõe àqueles a quem ela aproveita. Esse sentimento, de que se deve respeitar a
invenção no interesse interindividual, torna-se, a seguir, o sentimento que faz
respeitar, no interesse geral, a invenção. Depois, torna-se o sentimento que faz
respeitar as contratações também no interesse geral. É a imitação que permite
generalizar o sentimento de estar obrigado. Mas, em especial, será neste capítulo
dedicado às obrigações que Tarde mais vai surpreender, quando analisa o contrato
e o surgimento das obrigações, tanto quanto a absoluta ineficácia da concepção
ortodoxa, – dita clássica, – dos elementos essenciais à formação do contrato, frente
às novas invenções, v. g., os títulos ao portador. O Direito Natural é, para Tarde,
um direito convencional, contratual, uma construção à qual se dá um alcance
universal. Este dito Direito Natural nada tem a ver com a natureza, da qual a
noção, para ele, permanece muito ambígua, e o estado de natureza” de Jean-
Jacques Rousseau não é, para ele, senão uma utopia, uma construção ideológica
destinada a justificar o poder de um grupo social.
Finalmente, Tarde encerra sua obra trazendo-nos uma interessante análise do
Direito e a Sociologia, onde vai surpreender na parte reservada à analogia do
primeiro com o desenvolvimento da Lingüística.
Obras
As principais obras de Tarde são:
A Sociologia
Em tese, este resumo não é necessário. Bastaria o livro e mais nenhum
comentário. Todavia, como já observei, para Gabriel Tarde o Direito não pode ser
impunemente dissociado da Sociologia que, por sua vez, sofreu, como o Direito,
muita transformações ao longo da História. Por outro lado, é importante saber, com
razoável certeza, onde e como Gabriel Tarde entra nesta ciência e o que reclama.
Ora, o conceito de Sociologia é variável conforme a época, o enfoque e a
concepção. Teríamos diversas correntes de acordo com a escola individualista de
Rousseau, por exemplo, ou de Hegel, Conte com o positivismo, Spencer com o
evolucionismo, etc.
Pode-se defini-la como a ciência que estuda a natureza, as causas e os efeitos
das relações que se estabelecem entre os indivíduos, quando organizados em
sociedade. Seu objeto são as relações sociais, as transformações por que passam
estas relações, assim como as estruturas, as instituições e os costumes que delas se
originam. Distingue-se das demais ciências sociais pela abrangência de seu objeto,
buscando conhecer, através de metodologia científica, a totalidade da realidade
social, sem proposta de transformação, ou seja, trata-se de conhecer a realidade
como tal. Eis seu conceito corrente, poder-se-ia dizer, seu conceito atual.
A abordagem sociológica das relações entre os indivíduos distingue-se hoje
da abordagem biológica, psicológica, econômica e política dessas relações, ainda
que não fosse sempre assim. Para Gabriel Tarde, assim como para Gustave Le Bon
[11], por exemplo, a Psicologia deve integrar a Sociologia, especialmente no que
concerne às multidões.
Vejamos Le Bon: “Afora as coletividades fixas constituídas pelos povos,
existem coletividades móveis e transitórias denominadas multidões. Ora, essas
multidões, com o concurso das quais se efetuam os grandes movimentos históricos,
têm caracteres inteiramente alheios aos dos indivíduos que as compõem. Quais são
esses caracteres, como evoluem? Esse novo problema foi examinado na Psicologia
das Multidões. Só depois desses estudos comecei a entrever certas influências que
me tinham escapado. Mas ainda não era tudo. Entre os mais importantes fatores da
história, havia um, preponderante: as crenças. (...) Enquanto a psicologia
considerou as crenças como voluntárias e racionais, elas permaneceram
inexplicáveis. Depois de haver provado que elas são irracionais na maioria das
vezes e involuntárias sempre, pude dar a solução desse importante problema. [12]”
Embora haja pontos comuns, Tarde dirige uma crítica a Le Bon. Segundo
este último, haveria uma ascensão perigosa das multidões; mas o primeiro entende
que as multidões seriam um reflexo do passado, condenadas a ser substituídas
pelos públicos, na medida em que não promovem a discussão crítica. Vive-se na
era dos públicos e não na era das multidões como defendia Le Bon. Mas Tarde
afirma que o público pode se tornar, embora raramente, numa multidão em
potência, isto é, de um público tumultuoso derivariam multidões fanáticas que se
passeiam pelas ruas gritando viva ou morra não importa o quê. Tarde estabelece
uma relação inversa entre público e multidão, isto é, o público da Universidade,
dos salões, dos cafés, da imprensa, etc. cresce mais rapidamente à medida que a
multidão tumultuosa diminui; esta situação explica-se porque o público, enquanto
espaço de discussão crítica, é gerador de apaziguamento nas relações pouco
racionais da multidão [13].
Independente disso, porém, o interesse da Sociologia focaliza-se,
atualmente, no todo das interações sociais e não apenas em um de seus aspectos,
cada um dos quais constitui o domínio de uma ciência social específica. Vários
obstáculos impediram a constituição da Sociologia como ciência, desde que ela
surgiu, no século XIX. Entre os mais importantes citam-se a inexistência de
terminologia clara e precisa, assim como a tendência para ver os fatos sociais de
maneira subjetiva. Até então, podemos apenas referir homens e idéias que se foram
desenvolvendo ao longo dos séculos. É o que faremos de maneira muito breve,
apenas suficiente para estabelecer uma noção cronológica destas idéias e de seus
autores, e de como as primeiras foram se propagando de século a século.
Aspectos Históricos
O interesse pelos fenômenos sociais já existia na Grécia antiga, onde foram
estudados pelos sofistas. Os filósofos gregos, porém, não elaboraram uma ciência
sociológica autônoma, já que subordinaram os fatos sociais a exigências éticas e
didáticas. Assim, a contribuição grega à sociologia foi apenas indireta.
Os pensadores antigos já haviam notado a existência de certos fenômenos
sociais que se diferenciavam dos demais, à medida em que não podiam ser
enquadrados nas ciências então conhecidas. Eram observados, assim, sob o ponto
da vista moral, com Sócrates (469-399, a. C.); ou da política, com Aristóteles (384-
322, a. C.).
Do primeiro, mais moralista que filósofo, sabemos que nasceu em Atenas,
discutia pelas ruas, sofreu e foi condenado à morte que voluntariamente aceitou.
Via a finalidade da ação humana na realização do bem moral; a virtude, que
permitiria conhecer o bem, estaria na sabedoria. É dele o emprego da ironia
crítica, que usou contra os sofistas, para demonstrar o absurdo de suas concepções.
Trata-se da maiêutica, método em que em que se multiplicam as perguntas, a fim
de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito geral do
objeto em questão. O leitor terá a oportunidade de ver este método em ação com
Gabriel Tarde.
O segundo, Aristóteles, genialmente estabeleceu, com maior nitidez, o
campo das ciências morais e o das ciências políticas. É a Aristóteles que devemos a
idéia da divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, idéia esta mais
tarde retomada por Montesquieu.
Entre ambos, podemos mencionar Platão (429-347, a. C.), aristocrata e
principal discípulo de Sócrates, com quem conviveu durante oito anos. Sua
concepção filosófica tem a justiça como principal virtude, constituindo-se em
fundamento das demais que dela promanam: a temperança, a coragem e a
prudência
Não deixando de fora o Oriente, podemos dizer que, já no século VII a. C., é
permitido afirmar que havia também sistemas filosóficos, em especial, na Índia e
na China. Na Índia, os Vedas, livros onde a religião, o mito e a filosofia formavam
um todo; na China, o vulto lendário de Confúcio (551-478 a. C.), que ensinava a
viver à procura do bem e evitando o mal.
Já na Idade Média constata-se a existência quase efetiva de um pensamento
social, mas, ressalte-se, pensamento não sistemático, porque baseado na
especulação e não na investigação objetiva dos fatos. Além disso, neste período
medieval, anulou-se a distinção entre as leis da natureza e as leis humanas e impôs-
se a concepção da ordem natural e social como decorrência da vontade divina, que
não seria passível de transformação. Assim, eivado de conotações ideológicas,
éticas e religiosas, o pensamento social medieval pouco evoluiu. Dos pensadores
do medievo, porém, deve-se mencionar Santo Agostinho e Tomás de Aquino.
Agostinho (354-430), ou Santo Agostinho de Tagasta, por muito tempo foi
pagão e professor de retórica, mas converteu-se ao cristianismo, tornando-se bispo,
Bispo de Hyponna. Um dos pais da Filosofia da História, numa moral otimista,
exaltou a liberdade humana que deve dirigir-se a Deus, tendo o bem por
fundamento. Tomás de Aquino (1225-1274), construtor da síntese escolástica,
deteve-se em especial nos estudos deixados por Aristóteles. Apresenta a natureza
inteira “como uma grande hierarquia, partindo do menos perfeito e mais informe
para o mais acabado e mais determinado [14]”. Deve-se a ele a proclamação da
autonomia do saber racional e a separação entre filosofia e dogma.
Como grandes nomes do Renascimento, devemos referir, ao menos, Tomas
Morus (1480-1535) e sua Utopia, editada por Erasmo, obra que delineia uma
cidade ideal inspirada pela República de Platão; e João Althusius (1557-1638), que
defendeu a tese da soberania inalienável do povo, tese esta, mais tarde, retomada
por J. J. Rousseau.
O século XVII inicia-se com Descartes (1596-1650), o pai da filosofia
moderna, e o estabelecimento do princípio da dúvida metódica, partindo da célebre
afirmação: penso, logo, existo. O Discurso do Método, livro de poucas páginas
que, sem a menor dúvida, abalou o mundo, foi escrito para servir de prefácio à
Dióptrica, aos Meteoros e à Geometria, três ensaios surgidos em 1637. É tentador
estendermo-nos. Eis os quatro preceitos do método: 1º) Nunca receber como
verdadeira coisa alguma que não se reconheça evidente como tal, isto é, evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não aceitar senão aqueles juízos
que se apresentem clara e distintamente ao espírito, de modo a não ser possível a
dúvida a respeito deles; 2º) Dividir as dificuldades, que devem serem examinadas
em tantas parcelas quantas se fizerem necessárias; 3º) Conduzir com ordem os
pensamentos, partindo dos objetos mais simples e mais fáceis, para subir, pouco a
pouco, como por degraus, até o conhecimento daqueles objetos mais compostos,
supondo mesmo a existência de ordem entre aqueles não se precedem naturalmente
uns aos outros; 4º) Fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais
que se possa estar seguro de nada se haver omitido.
Mas foi apenas nos séculos XVIII e XIX que as ciências naturais e humanas
fizeram rápidos progressos, com a ocorrência de profundas modificações
econômicas, sociais e políticas ocorridas na sociedade européia daquele tempo, em
decorrência da revolução industrial e do surgimento do capitalismo. Pôde-se então
reafirmar, sobre bases mais sólidas, a libertação do pensamento dos dogmas
medievais. Todavia, mesmo esses progressos, que teriam a seu favor uma suposta
cientificidade, não eram sempre objetivos.
Contam-se, entre os antecedentes da sociologia, a filosofia política, a
filosofia da história, as teorias biológicas da evolução e os movimentos pelas
reformas sociais e políticas; em seus primórdios, foram mais influentes a filosofia
da história e os movimentos reformistas. A pré-história da sociologia situa-se,
assim, num período aproximado de cem anos, de 1750 a 1850, entre a publicação
de L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis), de Montesquieu, e a formulação das
teorias de Auguste Comte e Herbert Spencer. Sobre estes três falaremos um pouco.
Note-se bem que, até aqui, praticamente só falamos de filosofia, pois ainda não
nascera nada que pudesse ser chamado “sociologia”, – ainda não inventada, –
embora, inegavelmente, o pensamento sobre os fatos sociais já existisse, fosse
englobado na filosofia, fosse-o em religião.
Montesquieu (1686-1755) empregou mais de vinte anos para escrever
L’Esprit des Lois, livro célebre pela definição de lei como a relação necessária
que deriva da natureza das coisas. Notável historiador, jurista, estudioso das
ciências sociais, Montesquieu é considerado um precursor da Geografia Humana,
graças a seus trabalhos sobre clima e população.
A constituição da Sociologia como ciência, porém, só vai ocorrer na segunda
metade do século XIX e mesmo o termo sociologia só vai aparecer com Comte,
que consagrou-o na obra Cours de Philosophie Positive (1839, Curso de Filosofia
Positiva), na qual batizou a nova “ciência da sociedade” e tentou definir seu objeto.
Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-1857) orientou seu
pensamento a partir de duas idéias básicas: a de que os fenômenos sociais, como os
de caráter físico, também obedecem a leis; e a de que todo conhecimento científico
e filosófico deve ter por finalidade o aperfeiçoamento moral e político do homem.
Mais tarde, dedicou-se integralmente à instituição da religião da humanidade, que
logo se tornou influente em numerosos países, como Brasil, Chile e México. O
filósofo impregnou-se de misticismo, criou um sacerdócio, sacramentos e orações,
além de propor para seus adeptos uma rígida disciplina. O desejo de firmar e
divulgar as bases do positivismo levou Comte a um empenho quase obsessivo e à
dedicação em tempo integral à propaganda de sua nova religião. A
correspondência de Comte com as sociedades positivistas em todo o mundo era
vastíssima.
Herbert Spencer (1820-1903), um dos fundadores da Sociologia, dirigiu suas
especulações rumo ao evolucionismo, transportando para o mundo moral e social
os mesmos princípios do fenômeno da evolução no mundo físico. Spencer pode
ser considerado um dos adeptos da Teoria Organicista que veremos mais tarde, um
pouco mais em detalhes, em razão das sérias conseqüências sociais e políticas que
advieram desta teoria, com forte repercussão no Direito. O evolucionismo
spenceriano não encontra mais apoio científico. Vale lembrar, todavia, que não se
deve considerar totalmente destituído de mérito o trabalho de um homem que
enfrentou, nada mais nada menos, que a monumental tarefa de construir toda uma
filosofia, uma ética, uma moral e uma justiça que teriam como base pressupostos, à
época, considerados científicos, em oposição às intervenções metafísicas. Spencer
enfrentou duras críticas, mesmo ao tempo em que seus trabalhos tiveram aceitação,
v.g., a acusação do Reverendo Davies, publicada no Guardian de 16 de julho de
1890: Spencer parece subentender aquilo que não reconhece. Na sua elaboração
da idéia de Justiça, Spencer subentende a existência de uma lei que rege a razão
humana e a conduta humana, quando sustenta que o bem da espécie é desejável de
per si e que o entendimento humano aceita esta lei e corresponde a ela sem exigir
outra justificação. Ora, enquanto Spencer se contentar unicamente com demarcar
a marcha da evolução, não terá o direito de empregar a palavra: dever. Como
poderia ele modificar o ‘veredictum’ de Kant e como lhe seria possível refutá-lo?
A isto, Spencer respondeu: Pretende Vossa Reverência que a minha teoria da
direção moral não me autoriza a indignar-me com o espetáculo de uma agressão
ou de um malefício qualquer e acrescenta que, indignando-me, peço emprestado a
Deus o fogo celeste. Subentende-se, pois, daqui, que somente os homens que
aceitam as crenças correntes têm direito a indignar-se perante a iniqüidade. Por
minha parte, não lhes confiro o monopólio desta indignação. Se Vossa Reverência
me perguntar o que me impulsiona a censurar o injusto procedimento dos
civilizados ante as raças inferiores, responder-lhe-ei que sou a isso compelido por
um sentimento que acorda em mim sem a mínima intervenção da noção do dever,
sem a influência de qualquer preceito divino, sem consideração de nenhuma
espécie acerca de castigo ou recompensa neste ou noutro mundo. Tal sentimento
resulta em parte de que se deu origem a um sofrimento, tornando-se-me penoso o
conhecimento que dele tive; e resulta também da irritação que, em mim, desperta a
infração de uma lei de conduta, ao serviço da qual estão os meus sentimentos, lei a
que o bem da humanidade exige, no meu entender, a obediência de todos [15].
Spencer por Spencer talvez reserve algumas surpresas àqueles que o leram somente
através de seus críticos e detratores, alguns julgando-o excessivamente inclinado
ao biologismo, outros julgando-o excessivamente inclinado à metafísica.
Ora, tudo começou em 1859, quando Charles Darwin publicou The Origin of
Species (A origem das espécies), livro polêmico, de grande impacto no meio
científico, que pôs em evidência o papel da seleção natural no mecanismo da
evolução. Darwin partiu da observação segundo a qual, dentro de uma espécie, os
indivíduos diferem uns dos outros. Há, portanto, na luta pela existência, uma
competição entre indivíduos de capacidades diversas. Os mais bem adaptados são
os que deixam maior número de descendentes. Se a prole herda os caracteres
vantajosos, os indivíduos bem dotados vão predominando nas gerações sucessivas,
enquanto os tipos inferiores se vão extinguindo. Assim, por efeito da seleção
natural, a espécie aperfeiçoa-se gradualmente. Entretanto, o sentido em que age a
seleção natural é determinado pelo ambiente, pois um caráter que é vantajoso num
ambiente pode ser inconveniente em outro.
O darwinismo estava fundamentalmente correto, mas teve de ser
complementado e, em alguns aspectos, corrigido pelos evolucionistas do século
XX para que se transformasse na sólida doutrina evolucionista de hoje. As idéias
de Darwin e seus contemporâneos sobre a origem das diferenças individuais eram
confusas ou erradas. Predominava o conceito lamarckista de que o ambiente faz
surgir nos indivíduos novos caracteres adaptativos que se tornam hereditários. Isso
não impediu, todavia, a ampliação do paradigma darwiniano ao campo social, com
reflexos intensos no Direito, tanto civil quanto criminal. Exemplos claros desta
ampliação não faltam. Podemos ilustrá-lo desde já, com a citação empreendida por
Garofalo, em sua famosa obra La Criminologie, na terceira parte da qual, –
destinada à repressão do delito, – abre-se o primeiro capítulo com uma citação de
Darwin (A Origem das Espécies, cap. IV), a saber: Dei o nome de seleção natural,
ou de persistência do mais apto, à conservação das diferenças e das variações
individuais favoráveis, e à eliminação das variações nocivas [16]. É claro que,
nisto, Darwin referia-se às espécies animais, mas idéia inspirou a alguns: e se fosse
assim na sociedade dos homens? Bastava desenvolver as idéias já ventiladas por
Darwin [17] e teríamos um novo sistema, de cunho científico, palavra tão em voga
na época.
Ora, era pretensão de Spencer também aplicar ao homem o determinismo
físico da natureza. As Teorias Organicistas assim estruturadas, no entanto,
terminaram por desembocar numa verdadeira cruzada biológica. Como Tarde
reagiu a isso?
A Sociologia, segundo Tarde, deveria identificar-se com a psicologia social,
só podendo ser compreendida a partir de uma “psicologia intermental” que
estudasse a interação das consciências. Contrariamente às teses correntes em seu
tempo, teses estas que encaravam a Sociologia como física social, biologia social
ou ideologia social, Tarde prefere a expressão “psicologia social”, expressão esta
criada por ele. A verdade é que uma coisa social qualquer, uma palavra de uma
língua, um rito de uma religião, um segredo de um ofício, um procedimento de
arte, um artigo de lei, uma máxima moral, transmite-se e passa, não do grupo
social tomado coletivamente ao indivíduo, mas certamente de um indivíduo, –
parente, mãe, amigo, vizinho, camarada, – a um outro indivíduo, e que, na
passagem de um espírito para outro espírito ela [a coisa social] se reflita. [18]
Organicismo Positivista
Primeira construção teórica importante surgida na sociologia, nasceu da
hábil síntese que Comte fez do organicismo e do positivismo, duas tradições
intelectuais contraditórias. O organicismo representa uma tendência do pensamento
que constrói sua visão do mundo sobre um modelo orgânico e tem origem na
filosofia idealista. O positivismo, que fundamenta a interpretação do mundo
exclusivamente na experiência, adota como ponto de partida a ciência natural e
tenta aplicar seus métodos no exame dos fenômenos sociais. Os fundadores da
nova disciplina agora chamada Sociologia adaptaram essa síntese ao ambiente
social e intelectual de seus países: Auguste Comte, na França, Herbert Spencer, no
Reino Unido, e Lester Frank Ward [19], nos Estados Unidos, os pioneiros.
Depois da fase dos pioneiros, surgiu o chamado período clássico do
organicismo positivista, caracterizado por uma primeira etapa, em que a biologia
exerceu influência muito forte, e uma segunda etapa em que predominou a
preocupação com o rigor metodológico e com a objetividade da nova disciplina.
O organicismo biológico, inspirado nas teorias de Charles Darwin,
considerava a sociedade como um organismo biológico em sua natureza, funções,
origem, desenvolvimento e variações. Segundo essa corrente, praticamente extinta,
o que é válido para os organismos é aplicado aos grupos sociais. A segunda etapa
clássica do organicismo positivista, também chamada de sociologia analítica, foi
marcada por grandes preocupações metodológicas e teve em Ferdinand Tönnies
[20], Émile Durkheim e Robert Redfield [21] seus expoentes máximos.
Émile Durkheim (1917-1858), partindo da exterioridade dos fatos sociais,
abordou a sociedade como um fato sui generis e irredutível a outros,
compreendendo-a como um conjunto de ideais constantemente alimentados pelos
indivíduos que fazem parte dela. Dessa forma, conceituou a consciência coletiva
como o “sistema das representações coletivas de uma dada sociedade”. A
linguagem, por exemplo, é uma representação coletiva, assim como os sistemas
jurídicos e as obras de arte.
Para Durkheim, cujo pensamento prevaleceu na França em detrimento do de
Gabriel Tarde, o núcleo organicista encontra-se na afirmação segundo a qual uma
sociedade não é a simples soma das partes que a compõem, e sim uma totalidade
sui generis, que não pode ser diretamente afetada pelas modificações que ocorrem
em partes isoladas. Surge assim o conceito de “consciência coletiva” que se impõe
aos indivíduos, consciência coletiva esta que não existe para Gabriel Tarde. Para
Durkheim, os fatos sociais são “coisas” e como tal devem ser estudados. Seria ele
o sociólogo que mais teria se aproximado de uma teoria sistemática, deixando uma
obra importante também do ponto de vista metodológico, pela ênfase que deu ao
método comparativo, segundo ele o único capaz de explicar a causa dos fenômenos
sociais, e pelo uso do método funcional. Não afirmou, todavia, a grande influência
da imitação nos fatos sociais, coisa que Tarde genialmente destacou, como já se
viu inicialmente. Para Durkheim, não basta encontrar a causa de um fato social; é
preciso também determinar a função que esse fato social vai preencher. Sociólogos
posteriores, como Marcel Mauss [22], Claude Lévi-Strauss [23] e Mikel
Duffrenne, retomaram de forma atenuada o realismo sociológico de Durkheim.
Teorias do Conflito
Segunda grande construção do pensamento sociológico, surgida ainda antes
que o organicismo tivesse alcançado sua maturidade, a teoria do conflito conferiu à
sociologia uma nova dimensão da realidade. O grupo social passou a ser concebido
como um equilíbrio de forças e não mais como uma relação harmônica entre
órgãos, não-suscetíveis de interferência externa.
Antes mesmo de ser adotada pela sociologia, a teoria do conflito já havia
obtido resultados de grande importância em outras áreas que não as
especificamente sociológicas. É o caso, por exemplo, da história, da economia
clássica, em especial sob a influência de Adam Smith [24] e Robert Malthus [25]; e
da biologia nascida das idéias de Darwin sobre a origem das espécies. Dentro
dessas teorias, cabe destacar o socialismo marxista, que representava uma
ideologia do conflito defendida em nome do proletariado, e o darwinismo social,
representação da ideologia elaborada em nome das classes superiores da sociedade
e baseada na defesa de uma política seletiva e eugênica. Ambas enriqueceram a
sociologia com novas perspectivas teóricas. Cumpre detalhar um pouco mais em
que consistia essa representação ideológica elaborada em nome das classes
superioriores da sociedade e sua política seletiva e eugênica. Vejamos Morel e seu
Tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana,
Paris, 1857, para, mais uma vez, ilustrar a aplicação do paradigma biológico à
sociedade. (Vale lembral que Morel é citado por César Lombroso, em seu Homem
Delinqüente, como “o primeiro de todos” [26].)
Foi espantosa a repercussão deste Tratado, apesar de seus erros e de sua
absoluta parcialidade. Não podemos jamais nos esquecer de que todo aquele
período histórico foi marcado por crenças totalmente despidas do que hoje se
considera científico, assim como nosso próprio tempo será também alvo de
análises semelhantes a essas que operamos hoje relativamente ao passado. “Após
Morel, a sociedade humana conheceu o nome de seu inimigo”, Gennil-Perrin
(1913). Saída dos ideais revolucionários de 1789, a idéia da perfectibilidade do
homem é a base da doutrina do progresso que animava o pensamento científico do
século XIX. Vejamos Pierre Larousse: “O mundo marcha em direção ao bem. A fé
na lei do progresso é a verdadeira fé de nossa era. Está aí uma crença que encontra
poucos incrédulos. O progresso não está apenas no indivíduo; ele está ainda, por
conseqüência, no gênero humano. Espelha a mesma lei da espécie. Devemos ter
como verdadeira fé esta fé no progresso que sustenta nossa marcha. Acreditemos
no progresso sem fracioná-lo; num progresso uno, onde todos os progressos se
atenham. Esta é a fé de nossa era.” Ora, ao lado da lógica racional que deveria dar
sustentação ao científico, nenhuma época, nenhum período histórico refoge às
crenças que permeiam a sociedade, a mais das vezes, engendrando a própria razão
e impulsionando nossa maneira de agir. Inoperantes que se fizeram as cruzadas
pela fé, desencadear-se-ia então um verdadeira cruzada biológica, armada de toda
uma sistemática, uma nomenclatura, uma simbologia que se sacraliza através da
ciência.
Morel destacou, em primeiro lugar, que as causas da degenerescência
(definida esta como um desvio doentio do tipo normal da humanidade), sejam elas
de ordem fisiológica ou de ordem moral, são sempre solidárias. Ele observa
sobretudo que essas causas irradiam-se na família e na sociedade, vindo a criar
raças doentes e a constituir, para as nações, um perigo relativo não menos sério
do que aquele que pesa sobre o indivíduo. O ser degenerado, – afirma Morel, –
torna-se não apenas incapaz de constituir, na humanidade, a cadeia de
transmissibilidade de um progresso, mas constitui-se ainda num obstáculo, o
maior obstáculo, a este progresso, através de seu contato mantido com a parte sã
da população”. Como herança, pois, as causas da degenerescência transmitem-se e
são um obstáculo maior à perfectibilidade do homem. Como se vê, Morel apoia-se
também sobre considerações filosóficas e teológicas, e lança a seus colegas um
verdadeiro apelo à mobilização geral. Estas linhas tiradas de seu Tratado são
particularmente instrutivas:
“A solidariedade das causas degeneradoras não é mais, para mim, objeto de
dúvida, e este livro destina-se a demonstrar a origem e a formação de variedades
doentias na espécie humana. É-me impossível doravante separar o estudo da
patogenia das doenças mentais daquela das causas que produzem as
degenerescências fixas e permanentes, das quais a presença, em meio à parte sã da
população, é causa de perigo incessante. Se é assim, o tratamento da alienação
mental não deve ser visto como independente de tudo aquilo que é indispensável
tentar para melhorar o estado intelectual, físico e moral da espécie humana. A
conseqüência é rigorosa dá-se no sentido desse tratamento, compreendido dentro
do ponto de vista médico, mais amplo, mais filosófico e mais social, ao qual se
dirigirá, a partir de agora, toda a atividade de minhas investigações terapêuticas.
(...) Meus objetivos serão alcançados no dia em que se vir aumentar o número de
médicos, dos quais os esforços terão por objetivo a melhora intelectual, física e
moral da espécie humana.”
Destaque-se, entretanto, a perspicácia notável de Gabriel Tarde, no quarto
capítulo da presente obra, ao referir-se à temática do naturalismo jurídico, que
chegou a ter conseqüências no campo do Direito Privado: É sobretudo a propósito
das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou poder ter seqüência.
D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à hereditariedade
fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade, à geração alternante, à pangênese de
Darwin, à perigênese de Hoeckel, e tudo para justificar dessa sorte o direito à
herança. Eis seu raciocínio: se está demonstrado que as virtudes, os vícios, as
doenças, os caracteres quaisquer se transmitem hereditariamente, está provado
que os bens devem se transmitir da mesma maneira. Aliás, por uma razão
biológica que me parece melhor, ele trata de mostrar que direito de sucessão e o
direito de propriedade são, no fundo, idênticos. Mas, com argumentos desse
gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto de que a criança é a continuação
fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do plasma germinativo”, de acordo
com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho responsável por todas as contratações,
engajamentos e todas as faltas do pai. As sociedades primitivas, eu reconheço,
bem antes de toda iluminação antropológica, editaram essa solidariedade
familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em romper esse feixe
natural para permitir a esses elementos disjuntos a formação de associações
verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a necessidade
de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos naturalistas. É
necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim de curvar
servilmente às exigências de seu organismo suas instituições sociais, mas a fim de
empregar este conhecimento na realização de seus fins sociais, dos desígnios
coletivos, mesmo quiméricos às vezes, dos planos de reorganizações nacionais ou
humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único a poder
fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais. Nascidas das funções vitais,
as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e subjugando a
seu turno. O homem social faria bem em conhecer a ciência enciclopédica, seu
querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga medida, numa
medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado sua
onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? – perguntar-
se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo saberia. Eu
digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se satisfazendo,
sua ambição mais elevada, aquela de conhecer. O universo inteiro não apresenta
à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a ela criar seu
objetivo, o que fará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a si própria,
penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única, estendendo-se
socialmente, pela luta e pelo amor, do fundo do coração, de onde eclodem as
inspirações ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas.
Ora, o darwinismo social, como se pôde ver, assumiu conotações claramente
racistas e sectárias. Entre suas premissas estão a de que as atividades de assistência
e bem-estar social não devem ocupar-se dos menos favorecidos socialmente
porque estariam contribuindo para a destruição do potencial biológico da raça.
Nesse sentido, a pobreza seria apenas a manifestação de inferioridade biológica.
Quanta diferença do pensamento sustentado por Tarde!
Felizmente, nem todos os homens que viveram naquele tempo submeteram-
se à miopia da época, e, ao que se pode notar, Gabriel Tarde foi um destes a
respeito de quem pode-se afirmar que fugiu à regra. Em sua obra Criminalidade
Comparada, verdadeira reação empreendida contra o Homem Delinqüente de
Lombroso, Tarde propunha já uma visão mais ampla da questão criminal,
chegando a sugerir políticas de integração social do delinqüente, que não poderia
ser visto simplesmente como a resultante biológica da degeneração.
Formalismo
Para o formalismo, as comparações devem ser feitas entre as relações que
caracterizam qualquer sociedade ou instituição, como, por exemplo, as relações
entre marido e mulher ou entre patrão e empregado, e não entre sociedades globais,
ou entre instituições de diferentes sociedades. O interesse pela comparação entre
relações permitiu à sociologia alcançar um nível mais amplo de generalização e
conferiu maior importância ao indivíduo do que às sociedades globais. Essa
segunda característica abriu caminho para o surgimento da psicologia social.
Behaviorismo Social
Surgida entre 1890 e 1910, o behaviorismo social se dividiu em três grandes
ramos: behaviorismo pluralista, interacionismo simbólico e teoria da ação social,
legando à sociologia preciosas contribuições metodológicas.
O behaviorismo pluralista, formado a partir da escola de imitação-sugestão
representada por Tarde, centralizou-se na análise dos fenômenos de massas e
atribuiu grande importância ao conceito de imitação para explicar os processos e
interações sociais, entendidos como repetição mecânica de atos.
Os americanos Charles Horton Cooley [27], George Herbert Mead[28] e
Charles Wright Mills [29] são alguns dos teóricos do interacionismo simbólico
que, ao contrário do movimento anterior, centralizou-se no estudo do eu e da
personalidade, assim como nas noções de atitude e significado para explicar os
processos sociais.
O alemão Max Weber [30] foi o expoente máximo do terceiro movimento do
behaviorismo, a teoria da ação social. Com seu original método de “construção de
tipos sociais”, instrumento de análise para estudo de situações e acontecimentos
históricos concretos, exerceu poderosa influência sobre numerosos sociólogos
posteriores.
Funcionalismo
A reformulação do conceito de sistema foi o centro de todas as
interpretações que constituem a contribuição do funcionalismo, última grande
corrente do pensamento sociológico e integrada por dois importantes ramos: o
macrofuncionalismo, derivado do organicismo sociológico e da antropologia, e o
microfuncionalismo, inspirado nas teorias da escola psicológica da Gestalt e no
positivismo. Entre os adeptos do funcionalismo estão os antropólogos culturais
Bronislaw Malinowski [31] e A. R. Radcliffe-Brown [32].
Conclusão
Repercussão da Obra de Gabriel Tarde
Assim, a partir de um rápido esboço, espero haver conseguido apresentar, –
resumidamente, – nosso autor, bem como seu pensamento e sua importância,
traçando um brevíssimo histórico da Sociologia, sem maiores pretensões senão
aquelas de melhor situar o leitor de hoje perante uma obra que foi escrita há quase
cem anos.
Independente disso, porém, a obra de Tarde vem sendo objeto de reedições e
comentários, pois sua temática, ao discutir a imitação, a invenção, o público, as
multidões e os meios de comunicação, mostra-se de uma atualidade contundente,
aportando paradigmas plenamente válidos, como ferramentas a serviço daqueles a
quem cabe interpretar a realidade, o Direito e a sociedade.
Finalmente, cabe destacar, a partir do brilhante trabalho “Público,
Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise
Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule”, de Marco António
Antunes, Universidade da Beira Interior, a relação de obras, – algumas bastante
atuais, – que têm em comum o fato de haverem sido escritas a respeito de Gabriel
Tarde. Vejamos algumas:
A Tradutora
AS
TRANSFORMAÇÕES
DO
DIREITO
(Estudo Sociológico)
Gabriel Tarde
G. T.
Maio de 1894.
Introdução
Observações Preliminares
Lenta introdução do fermento evolucionista e
antropológico no estudo do Direito Civil. A evolução
jurídica e a antropologia jurídica. Falsa concepção
ordinária da evolução. Similitudes numerosas entre as
diversas fases atravessadas pelos Direitos independentes –
problemas que elas suscitam.
Capítulo Primeiro
Direito Criminal
A idéia espontânea do Direito nascida da simpatia, fonte
da imitação. Distinção fundamental entre as relações
internas do grupo primitivo e as relações externas com
outros grupos. Antigüidade do sentimento da
culpabilidade – dupla evolução paralela e contrária.
Capítulo Segundo
Processos
Similitudes. Ordem lógica e irreversível na sucessão de
certos ordálios. Diferenças. Dois sentidos da palavra
evolução, propagação de exemplos ou série de iniciativas.
Houve ponto de partida semelhante? Ou caminho
semelhante? Ou semelhante ponto de chegada? Direito
Romano e Direito Ateniense comparados. Justiça chinesa.
O processo do amanhã.
Capítulo Terceiro
Regime de Pessoas
A família primitiva. Preconceitos científicos a esse
respeito. Promiscuidade, matriarcado, patriarcado: quid?
Couvade. Fases curiosas dos direitos da mulher no curso
da evolução jurídica no Egito. Gerontocracia. Diversidade
inicial das constituições familiares. Maioridade, cada vez
menos precoce. Transformações sucessivas da idéia de
nobreza. Lei superior: alargamento contínuo do círculo
social, do círculo jurídico.
Após haver examinado o Direito Criminal e o processo, passemos a esta
extensa parte do Direito Civil que rege as relações entre as pessoas. Aqui
novamente veremos desaparecer a idéia de uma evolução uniforme. Acumulam-se
volumes sobre volumes para resolver a questão de saber qual era a constituição da
família primitiva, e não se pergunta se havia razões suficientes para olhar esta
constituição como sendo a mesma em toda parte. Não existe a menor. Os
resultados contraditórios fornecidos por pesquisas igualmente conscienciosas são a
prova. Temos raramente o prazer de encontrar de acordo Morgan com Mac
Lennan, Bachofen com Starcke, Herbert Spencer com antecessores e com Sumner-
Maine. Muitos escritores têm todavia por demonstradas as hipóteses seguintes,
tornadas lugares comuns científicos: na origem, promiscuidade universal, depois
matriarcado, mais tarde patriarcado, etc. D’Aguanno acredita provar que a família
primitiva não poderia ser monogâmica, ainda que a monogamia exista já entre os
animais superiores; porque, se ela apareceu repentinamente, – e ele o crê, – a
formação da primeira horda devera, forçosamente, tê-la dissolvido. “É necessário,
diz ele, admitir que a sociedade primitiva, por certo tempo, destruiu a família, até
que, após um processus muitas vezes secular, aquela reapareceu em seu seio.” Eis
aí muito de imaginação. Concebe-se que seres humanos, após terem uma fêmea só
para si, teriam consentido na promiscuidade da horda? Dizem-me que a vida de
caverna não permitiria em nada aos trogloditas fazerem uma união à parte. Por
quê? Cada família não poderia ter uma gruta só para si? É mais fácil representar
uma horda promíscua aglomerada numa única gruta? O erro é acreditar que a horda
fosse o único ou o principal início da humanidade, e que exista “entre a família e a
sociedade um antagonismo constante nas fases rudimentares” da segunda. Não é
mais natural supor que o desenvolvimento da família, lá onde ela é mais
fortemente organizada, ou seja, patriarcal [97], – porque, de resto, os ensaios mais
diferentes de organização doméstica apareceram em grande quantidade e
coexistiram longo tempo, – produziu seu fracionamento em colônias múltiplas, e
que a tribo nasceu assim, simples federação de famílias? E como a família fosse
obrigada a expulsar freqüentemente os elementos indisciplinados: Não é de supor
que estes detritos de diversas famílias se reunissem talvez, congregados aqui e ali
em hordas? E estas hordas, inimigas naturais das famílias regulares, não deveram
contudo formar-se à maneira de um tipo de família qualquer, pois que não havia
outro modelo a copiar?
Segundo d’Aguanno, que acredita resumir o último estado da arqueologia
pré-histórica, os homens que, na idade da pedra lascada refugiavam-se em grutas,
“andavam nus, sem propriedade e sem família, sem chefes fixos e sem divisão de
trabalho” (pág. 115). Tantas palavras, tantas suposições desmentidas pelos dados
arqueológicos. Os bastões de comando esculpidos que se encontraram nas grutas e
que indicam mesmo, segundo Lartet [98], uma hierarquia marcada pelo número de
suas covas [99], provam que os habitantes das grutas tinham chefes regulares e
estáveis. Para chefes sem estabilidade seria poupado esse luxo relativo de
ornamentação e de insígnias. Eles ignoravam tão pouco a divisão do trabalho que
seus utensílios de pedra tinham destinações especiais e diversas, e certos
arqueólogos estimam que, entre eles, as relações de troca eram muito
desenvolvidas. A descoberta de instrumentos de pedra lascada fabricados com
rochas exóticas, estranhas a todas as rochas do país onde são descobertos, parece
revelar o estabelecimento de um certo comércio internacional a grandes distâncias,
anterior mesmo à idade da pedra polida. Esses trogloditas não andavam
completamente nus, se os analisarmos de acordo com seus raspadores que deviam
servir, pensa-se, para raspar peles de animais e, de acordo com suas belas agulhas
em osso, apontadas e furadas, sem dúvida, para costurar essas peles. Presume-se
facilmente, de acordo com isso, que eles não eram nem sem propriedade nem sem
família...
Não há dificuldade em concordar que a coexistência de muitas aldeias
lacustres a pouca distância umas das outras permite supor relações pacíficas ou
amigáveis entre eles, e o mútuo respeito a seus direitos. Mas que razão existe para
se pensar que “o sentimento do justo e do injusto” nasceu entre os habitantes dos
lagos? Em épocas anteriores, não vemos também grutas habitadas, muito vizinhas
umas das outras? Esta reunião de grutas presumidas contemporâneas é fato
habitual em todos os vales onde se as descobre, notadamente, nos vales de Vézère
e da Dordonha. Na hipótese em que as pequenas comunidades que os habitavam
estivessem continuamente em guerra entre elas, em que não reconhecessem nem
respeitassem qualquer direito, onde nenhum esboço de direito internacional
existisse desde então: Esta aproximação teria sido possível? Não, segundo
d’Aguanno, ele mesmo. É necessário, eu creio, representar esses grupos de
cavernas como federações pacíficas unidas por trocas comerciais. Se está aí um
início da humanidade, – mas não creio que este seja senão um de seus numerosos
inícios, – não vejo nenhum motivo para que nos descrevam nossos primeiros
ancestrais como tigres bebedores de sangue. Eram tranqüilos caçadores, pescadores
de ocasião, passando o tempo, – quando estava bom, – a cercar sua presa e, nos
dias de chuva, a curtir e raspar as peles dos animais mortos por eles. [100]
Mas examinemos um pouco mais de perto a série pretendida: promiscuidade,
matriarcado, patriarcado. Nada mais imaginário do que esta ordem. Dessa
promiscuidade universal, batizada hetairismo, com que Bachofen [101] sonhou,
onde está a prova, não digo de sua universalidade, mas de sua realidade mesmo nos
tempos mais antigos? O exemplo mais nítido que se pode citar desse comunismo
feminino é aquele da tribo hindu dos naires [102]; mas seu estado social está longe
de ser primitivo. Eles formam uma casta nobre. Starcke [103] está autorizado a
dizer que, longe de ser um ponto de partida, esta prática é, entre eles, o último
termo de uma longa evolução. Uma de suas cerimônias nupciais, – porque, coisa
notável, eles têm comemorações de vinte e quatro horas para seus casamentos, –
prova que, numa época anterior, o casamento fiel e durável lhes era conhecido. A
prostituição sagrada, que era obrigatória na Babilônia para todas as mulheres uma
vez na vida, pode ser interpretada como o vestígio de uma época em que os
babilônios disponibilizavam tal prostituição a todos os babilônios? Mas era aos
estrangeiros, não aos indígenas que elas deviam se prostituir, e como era no
Templo de Afrodite que esse sacrifício de suas pessoas devia ter lugar, parece
natural explicar esta forma de culto pelo desejo de ser agradável à impudica deusa,
em a celebrando através de um rito apropriado ao seu gosto, assim como
celebravam o deus da guerra através de jogos guerreiros. É verdade que se pode
perguntar como esta divinização do impudor pudera introduzir-se num país onde
reinava anteriormente a castidade das mulheres. Mas está aí uma das questões mais
complexas. Uma palavra apenas. Não esqueçamos um fenômeno histórico muito
freqüentemente negligenciado: esses frenesis intermitentes de imitação de povo a
povo, não motivados, sem os quais não se compreende a propagação de nenhum
culto. Não vimos propagar-se, nos meios há pouco os mais cultos da Idade Média,
o favor a uma inovação religiosa, – albigense [104], por exemplo, – com as
práticas de um sensualismo dos mais licenciosos?
Muito se fala da couvade, este curioso costume de, em alguns povos,
sujeitar-se o pai, após o nascimento da criança, a colocar-se no leito, fazer-se
sangrar, purgar, tratar-se como doente e sofrer como tal os efeitos de uma
medicação das mais dolorosas. Vê-se aí uma simulação da maternidade e uma
sobrevivência ativa do matriarcado. O pai fingindo ser mãe para ser investido da
autoridade doméstica. Mas, segundo Starcke e diversos sábios, se, como convém,
aproximarmos este uso de muitos outros bem mais difundidos, e dos quais o
sentido é claro, reconhece-se que a couvade não foi instituída nem para o pai, nem
para a mãe; ela o foi no interesse da criança, à qual se acreditava assegurar a
transmissão da bravura paterna, dando ao pai ocasião de a ostentar, porque “ele
deve ter uma grande coragem para submeter-se a prescrições tão numerosas e tão
duras”. Desejou-se ver também, mas erroneamente, na filiação uterina, no hábito
de designar a criança como filho de sua mãe e não como filho de seu pai, um
vestígio do matriarcado desaparecido. Numa sociedade patriarcal, a poligamia, –
que é precisamente o contrário do matriarcado, – deve necessariamente fazer
predominar o hábito em questão, para permitir distinguir as crianças nascidas da
mesma mãe.
Se fosse verdade que a mãe, numa fase muito antiga das sociedades,
houvesse possuído, geralmente e antes do pai, o cetro da família, que prova mais
brilhante poderia ser dada da bondade original do homem e da intensidade dos
sentimentos afetuosos entre nossos ancestrais? Porque, com toda certeza, a
aceitação dócil da autoridade de uma mulher, – este ser fraco, – por seu marido ou
por seus maridos, por seus irmãos, por seus filhos, pelos guerreiros que lhe são
muito superiores em bravura, em força, em inteligência mesmo, não é suscetível de
uma outra explicação, senão o grande desenvolvimento do amor ou da piedade
filial. Pode-se dizer que, em toda parte, nas populações incultas, é atribuído à
mulher, mais freqüentemente que ao homem, um poder oculto e supersticioso
nascido do medo, não do amor. Respondo que esse prestígio de feiticeira, sempre
excepcional, estaria longe de ser suficiente para motivar sua preponderância social
e não é explicável, ele mesmo, senão por uma grande sensibilidade ao seu encanto
próprio, à sua magia sexual. Todavia, por uma contradição singular, os teóricos do
matriarcado contam-se entre os sábios que fazem dos costumes primitivos um
quadro mais tirante ao negro. Mas, de fato, esse matriarcado tão famoso existiu?
Jamais, diz Starcke, as mulheres tiveram mais direitos ou outros direitos que os
homens. Apenas em certas tribos africanas, os bechuanos [105], por exemplo, e a
maioria das populações bantos [106], a mãe de família assiste ao conselho, o
marido é freqüentemente guiado por sua mulher, tudo como um europeu, e as
crianças adoram sua mãe até o fim de seus dias, o que não é muito excepcional,
mesmo na Europa. Em outros termos, a mulher participa dos direitos do homem;
em certas tribos, ela pode mesmo ser chefe, como a Rainha da Inglaterra, ao
mesmo título que o homem, em nenhum lugar a título exclusivo. Se, todavia,
encontramos aqui e acolá uma pequena população como aquela dos kocchs da
Ásia, onde os homens efeminados são respeitosamente submetidos às vontades de
suas mulheres e de suas sogras, que se arrogam o monopólio da bravura e do
trabalho, será que, por acaso, se quer fazer desta inversão sexual, acidental e
mórbida como tantas outras inversões sexuais, tão curiosamente estudas em nossos
dias, a regra geral da humanidade selvagem? Acrescento que as tribos atualmente
situadas no mais baixo grau da escala social, os bosquímanos [107] e os hotentotes
entre outros, ignoram completamente o matriarcado [108].
D’Aguanno, todavia, descreve-nos, como se houvesse visto, a avó matriarcal
no exercício de suas funções judiciais e conta-nos de que maneira ela transmitiu ao
patriarcado o trono familiar. Estamos, é verdade, um pouco surpreendidos por
aprender que esta substituição maravilhosa do matriarcado pelo patriarcado não
parece haver “operado uma mudança notável no organismo jurídico”. Resta saber o
que poderia bem ser o organismo jurídico nesses tempos imaginários. De acordo
com autores menos imaginativos, o matriarcado, na medida em que existiu
acidentalmente, não apareceu nem podia aparecer senão após o regime patriarcal.
É que esse progresso jurídico, tal como nos é dado observar no curso da
História verdadeira, nos apresenta, ordinariamente, não esse destronamento e essa
escravização da mulher consecutiva ao seu pretenso absolutismo; é, ao contrário,
sua emancipação gradual que a fez passar de um regime de escravidão para uma
era de liberdade e de autoridade relativa. Novamente, devemo-nos guardar de
generalizar este último fato. Com efeito, não é mesmo verdadeiro dizer, – ainda
que se o diga e que se o torne a dizer tão freqüentemente, – que o progresso do
direito se opera sempre no sentido da mais completa libertação da mulher,
gradualmente igualada ao marido. A história do Direito Egípcio, a partir dos
ptolomeus, é suficiente para contradizer essa asserção muito geral. Vê-se, então,
sob a influência do Direito Grego, – que subordinava tão absolutamente a mulher
ao homem, – o Direito Egípcio cessar de conceder à mulher, como havia feito
desde as mais antigas épocas, um papel independente, privilegiado às vezes, no
casamento, e submetê-la ao jugo marital. Todavia a importação do direito helênico
foi, para Direito Egípcio, uma aquisição fecunda, um estimulo e uma fonte de
progresso [109]. Do mesmo modo, é bom dizer que o efeito inevitável da
civilização é o de diminuir sem cessar a autoridade jurídica do pai sobre seus
filhos, ao contrário do que se viu em muitas províncias romanas, quando o édito de
Caracala teve por efeito, segundo Sumner-Maine, ampliar a patria potestas
romana, tão rigorosa e tão extensa ainda sob o Império, sobretudo à vista dos bens
próprios às crianças, a uma multidão de pessoas que não conheciam nada
semelhante. Estes últimos, então, em se civilizando, viram bruscamente crescer seu
poder doméstico e mesmo sua fortuna. O progresso cumpriu-se para eles no
sentido de um estreitamento, e não de um relaxamento dos liames autoritários da
família.
Não são apenas os diversos sexos, são as diferentes idades da vida que
disputam entre si a preeminência. Esta luta incessante não se resolve sempre nem
em toda parte da mesma maneira; suas soluções sucessivas não se seguem sempre
e em todo lugar na mesma ordem. Eu admiro aqueles que pretendem regrar de
antemão a sorte desses combates. Ora, – e este é o caso ordinário, – o sexo
masculino domina; ora, raramente, o sexo feminino; mas a subordinação deste
último é mais ou menos completa e varia muito, num sentido ou noutro, segundo
as idéias e as paixões dominantes no curso da civilização. Do mesmo modo, ora a
idade madura, ora a juventude, ora a velhice têm o governo dos negócios. Pode-se
dizer que a gerontocracia é muito freqüente entre os povos primitivos, sem todavia
ser constante, que a efebocracia é exceção, e que o reino dos homens maduros, no
vigor da idade, – o que se poderia chamar antropocracia, – é o regime normal, o
que não quer dizer habitual. Não houve jamais uma sociedade em que as crianças
comandassem como senhores? Por uns tempos, é possível. Mas se esta
singularidade houvesse existido, seria fundamento para pretender que a pedocracia
é uma fase necessária da evolução social, um dos anéis dessa longa corrente? Eu
não vejo mais razão para atribuir esta mesma importância ao matriarcado, à
ginecocracia.
De todos esses debates sem fim relativos aos sistemas de parentesco e de
casamento, o que me parece resultar de mais claro é que a família primitiva foi
muito diferente dela mesma, aqui monogâmica, lá poligâmica, alhures poliândrica,
ora exogâmica, ora endogâmica [110], freqüentemente mais autoritária, às vezes
mais liberal do que se tornou mais tarde. Mas, se o ponto de partida é múltiplo, os
caminhos percorridos são paralelos ou convergem na direção de um mesmo estado
final, notadamente em direção a uma forma de casamento mais ou menos vizinha
ao casamento cristão? Não. Apenas é verdadeiro dizer que a adoção desta forma
superior foi uma causa de triunfo na luta das sociedades, o que explica sua difusão
progressiva. Pouco não faltou todavia para que a conquista árabe não cobrisse a
Europa e não lhe impusesse a poligamia. A monogamia, aliás, é compreendida de
várias maneiras diferentes. No velho Egito, por longe que se remonte em sua
história, o casamento era um contrato de sociedade entre dois iguais; na Arábia, na
Pérsia, na antigüidade greco-romana, entre os mongóis, na China, era um contrato
de venda: a mulher era comprada pelo marido. Na Polinésia e entre os esquimós é
freqüentemente um contrato de empréstimo ou de aluguel temporário. Algures
floresceu o casamento por servidão do genro ao sogro, de Jacó na casa de Labão.
Entre os peles-vermelhas, entre os hindus, esta variedade está representada. Além
disso, havia o casamento por captura.
O casamento não tem, pois, ponto de partida numa forma única e não tende a
isso. Será que, sobre as interdições ao casamento, ora entre parentes, ora entre
estrangeiros, ora entre castas diferentes, – será que, sobre as obrigações ao
casamento, tais como o levirato [111], – será que, sobre os casos de nulidade de
casamento, sobre a faculdade mais ou menos extensa, unilateral de início,
recíproca a seguir [112], de se divorciar ou separar, sejam bens, sejam corpos, as
diversas legislações civilizadas se assemelham ou parecem ter uma tendência
espontânea a assemelhar-se? Na Pérsia, o incesto, mesmo entre ascendentes e
descendentes, era não apenas autorizado, mas favorecido mesmo pela lei, segundo
Dareste. Exceção única, de resto, na família ariana. Entre nós, os reis tiveram, por
longo tempo, o direito de ordenar casamentos entre seus súditos e, após cessar seu
reconhecimento, continuaram a rogar a seus súditos que se casassem, rogo que era
uma ordem. Submetiam-se, quando havia espírito monárquico, do mesmo modo
que, quando havia espírito familiar, submetiam-se a um comando análogo do pai
de família. Hoje, não há mais dessas coerções matrimoniais por ordem; mas
quanto ainda de casamentos forçados impostos por diversas considerações! –
Quanto às interdições ao casamento, nós não admitimos mais aquelas que, editadas
outrora no interesse da conservação das famílias, não respondem mais aos nossos
costumes individualistas; mas nós suportamos, sem lamentar, aquelas que se
fundam sobre um interesse nacional, por exemplo, aquelas que impedem os
militares de se casar até uma certa idade, ou que subordinam o casamento de
oficiais à aprovação de seus chefes. E achamos isso completamente natural.
É assaz notável que a idade da maioridade, muito precoce entre os bárbaros,
mesmo no Norte, tornou-se mais e mais tardia em geral, no curso da civilização
[113]. Entre os romanos primitivos, a puberdade, a plena capacidade jurídica era
fixada aos quatorze anos; do mesmo modo entre os francos ripuários [114], os
burgúndios [115], os visigodos [116]. Ela era fixada aos doze anos entre os anglo-
saxões. Mas, à medida em que se civilizavam, os romanos chegaram a retardar a
maioridade até os vinte e cinco anos; os visigodos, em se civilizando também, sob
a influência da imitação romana, é verdade, retardaram-na até os vinte anos; os
ingleses, até os vinte e um, como nós. Esse retardamento das maioridades é bem
um efeito da civilização, – da civilização que, todavia, aumenta sem cessar a
precocidade das inteligências, – onde, para os plebeus, para as classes nacionais
que permanecem incultas, nós vemos longo tempo subsistir a antiga maioridade
precoce, enquanto ela é retardada nas classes da nobreza. Na Inglaterra e no Oeste
da França, no século XIII, “a moça nobre, diz Viollet, era maior aos quinze anos; a
moça plebéia, aos doze”. No Leste da França, o gentilhomme era maior aos
quatorze ou quinze anos; o plebeu, pouco mais cedo. No século XVI, já estando
organizada a civilização, todas essas maioridades são abaixadas. Como explicar
isso? Assaz simplesmente, eu creio. Quanto mais nos aproximamos da vida
primitiva, mais as profissões são simples, o aprendizado fácil, e mais cedo é
possível a uma criança “arrumar trabalho”. Desde os doze ou treze anos, um
pequeno camponês pode ganhar sua vida. Ele abandona o teto de seu pai, – muito
pobre para alimentá-lo, – e vai trabalhar para um patrão ou para um senhor; ele
troca uma servidão familiar por uma dominação patronal. Assim, é sempre
reduzido o benefício da maioridade. Mas que jovem rapaz letrado de nossos dias,
a não ser na América, – terra nova e primitiva em certo sentido, – ganha sua vida
antes dos vinte e um anos?
As transformações sucessivas da idéia de nobreza podem dar lugar a uma
generalização de certa solidez. Fustel de Coulanges, em sua Monarchie Franque e
outras, mostrou que, após haverem conhecido, num passado remoto, muito tempo
antes da invasão, a nobreza hereditária e inerente ao sangue, os diversos povos da
Germânia quase não conheciam mais, no momento da invasão, senão a nobreza
transitória, administrativa, ligada à escolha real ou às funções públicas. D’outra
parte, em Roma, a mesma evolução produziu-se: no início da história romana,
sabe-se do papel preponderante que desfrutava o patriciato [117]. Ora, pouco a
pouco, esta nobreza de origem fisiológica declinou e, sob o Império, foi substituída
enfim por privilégios temporários de ordem senatorial, livremente recrutados pelo
soberano entre todas as classes da nação. O patriciato não guardava mais que seu
lustro arcaico e seu valor estético, sempre apreciados aliás. – Seria esta uma lei
geral? Eu seria levado a ver aí ao menos uma tendência habitual, conforme àquela
que nós conhecemos sobre a substituição progressiva das causas sociais às causas
naturais nos fatos humanos. Acrescente-se que, pelo enobrecimento, em todos os
países, imagina-se entrar artificialmente, sem nenhuma consangüinidade, no corpo
inicialmente fechado da nobreza, como, pela adoção, no seio da família. Estas duas
invenções respondem ao mesmo objetivo: liberar o lado social do homem de sua
natureza animal, romper a subordinação primitiva das relações sociais às relações
de parentesco.
A prova, todavia, de que a lei enunciada não tem um alcance universal, e de
que a transformação indicada por ela não é absolutamente irreversível, é que uma
transformação precisamente inversa nos é apresentada, excepcionalmente, por
nossa Idade Média [118]. Persigamos a história dos francos e de outros povos
invasores do Império Romano. No momento em que eles se espalharam, nós o
sabemos, e Glasson nos repete, “eles não contavam com nobres em suas fileiras”; e
foi esta ausência de uma classe nobre, nos tempos merovíngios, que permitiu aos
reis dessa época exercerem um poder absoluto. Mas este autor acrescenta: “Foi
apenas na seqüência, e muito mais tarde, que a classe da nobreza (hereditária),
saída em grande parte dos funcionários do reino, constituiu-se e tomou um lugar
importante no Estado.” Assim, entre esses povos, após transformar-se de
hereditária em transitória, a nobreza retorna de transitória à hereditária. Foi
suficiente, para isso, o enfraquecimento do poder central, que deixou os cargos
públicos se perpetuarem em certas famílias, e o usufruto dessas funções se
transformar em propriedade, santa e sagrada aos olhos de todos. Quem sabe se,
pela ação da mesma causa, no seio de nossas democracias modernas, a elaboração
lenta e despercebida de uma nova casta aristocrática seja, além do mais, tão
impossível quanto se é levado a supor, posto que, verdade seja dita, isso me pareça
pouco provável? Não se vêem despontar, aqui e acolá, alguns germes de
verdadeiras dinastias republicanas? O que quer que seja, o exemplo citado prova
até que ponto é temerário generalizar em ciência social [119].
Uma bela, uma admirável progressão que não nos damos ao trabalho de
observar, e que acompanha, porém, todas as evoluções jurídicas, é a ampliação
contínua das relações de direito. Primeiramente, restritas ao grupo estreito e
fechado dos parentes, que cresce tanto quanto pode pela adoção, pela lenda,
anexando toda sorte de parentes fictícios ou imaginários, ampliam-se a seguir, seja
pelo contrato feudal, seja pelo contrato de associação corporativa, no círculo mais
vasto de vizinhos, confrades, concidadãos locais, mais tarde, pela idéia da pátria, a
milhões de compatriotas e, pela idéia de cristandade, de Islã, de uma comunidade
religiosa qualquer, amplia-se a centenas de milhões de estrangeiros mesmo; enfim,
pela idéia de humanidade, de direito das gentes, de direito natural, amplia-se a
todos os homens [120]. E, ao mesmo tempo em que se amplia desse modo, o
campo jurídico aprofunda-se mais e mais, pela admissão sucessiva de camadas
cada vez mais baixas do grupo social, da mulher, do plebeu, do escravo, na grande
igreja do Direito. Eis um duplo progresso incessante que realiza a História. Eis aí a
obra direta ou indireta da imitação que, nascida da idéia da simpatia, condição
essencial da sociabilidade, aumenta-a, desdobra-a, fortifica-a e consolida-a em
direitos e deveres reconhecidos, à medida em que os homens, melhor assimilados
por ela, sentem-se mais ligados entre eles.
Parece que se percebe uma parte dessa façanha quando, na companhia de
Sumner-Maine, discernimos duas fases sucessivas do Direito: aquela onde o
sentimento de solidariedade jurídica fundamenta-se unicamente sobre o sentimento
correto ou errôneo da consangüinidade, e, a seguir, aquela onde ele se fundamenta,
de preferência, sobre a coabitação num mesmo território. Mas, como vemos esse
fato sem ver sua causa, nós a falseamos, exagerando-a. Porque, enunciado nesses
termos, exprime um erro. Jamais, entre pessoas que permaneceram sem contato
simpático e assimilador umas com as outras, o nexo geográfico de vizinhança foi
suficiente para criar um liame de direito: os chineses, os judeus, que se assimilam
tão raramente ao ambiente estrangeiro, são raramente admitidos na comunhão
jurídica. Mais são vizinhos próximos, mais se colocam violentamente fora da lei.
D’Aguanno, que encontra freqüentemente vistas muito justas, a custo observa que
o sentimento de igualdade de direitos primeiramente nasceu nas relações de um
pequeno grupo de pessoas unidas por laços de sangue; depois, da corporação ou da
casta, quando se fecha até que, com o passar do tempo, venha a se expandir. Mas
cada vez que esta expansão rompe ruidosamente um de seus diques, este autor não
vê, sob a ação intermitente das causas assinadas pelos historiadores, – jus connubii
entre patrícios e plebeus, um dia o voto, outro dia conquistas violentas da plebe
sobre a nobreza, em outro a publicação de tal evangelho revolucionário, etc., – a
ação contínua da qual ela deriva. Deve-se, eu creio, não esquecer nunca dessa
consideração muito simples, se se quer desembaraçar com êxito o fio da história, e
não exagerar, falando de evolução.
Uma observação en passant. Os evolucionistas insistem muito, e nisto eles
têm razão, sobre a solidariedade rigorosa que ligava, entre eles, os membros do
grupo social primitivo. Eles repetem freqüentemente que o sentimento da
personalidade coletiva sobrepujava então absolutamente, como nas colmeias e
formigueiros, àquele da personalidade individual. Muito bem. Mas como se pode
dizer, após isso, que os primitivos se distinguiam por um egoísmo grosseiro,
completamente desprovido desse requintado “altruísmo” com o qual apenas a
civilização, parece, os haveria gratificado?
Capítulo Quarto
Regime de Bens
Formas primitivas da propriedade. Três tipos de provas
invocadas a favor do comunismo primitivo. Pretensa
reprodução desse comunismo nas nascentes colônias
modernas. Exame dessa alegação de Sumner-Maine e de
A. Loria. As sociedades animais segundo Espinas. O mir,
a allmend, a zadruga, o tonw-ship, etc. A comunidade
familiar seguiu-se ou precedeu à comunidade de aldeia? O
verdadeiro significado de ambas. Retomada linear,
retomada vicinal, retomada feudal, direito de retratação,
recompra: quid? As “pleiges”. O carnaval. A “ménage
nivernais” e os monastérios. Explicação geral: duas
grandes causas que fizeram variar o regime e a
propriedade coletiva ou individual. Prescrição: Por que
sua duração se vai prolongando? Sucessões.
Não menos que o regime de pessoas, o regime de bens foi objeto, na escola
transformista, de profundos trabalhos que merecem exame. É suficiente citar, entre
outros, a Propriété et ses Formes Primitives, por Laveleye, onde nos é revelada,
senão a universalidade, ao menos a extraordinária freqüência, num passado muito
distante, da apropriação comunista do solo por um grupo de parentes ou de
vizinhos associados. Segundo este eminente economista e seus adeptos, o
comunismo de aldeia teria precedido historicamente àquele de família, que não
seria senão um fracionamento do primeiro. Esta idéia, – que encontrou em seu
caminho generalizadores em excesso e contraditores apaixonados, porque ela
parece ligar-se às preocupações socialistas do momento presente, – apóia-se sobre
um respeitável acúmulo de fatos e de considerações. É inútil resumir o que já foi
tão freqüentemente vulgarizado. Indiquemos apenas os argumentos principais.
Eles são de dois tipos. De uma parte, aproximam-se instituições comunistas ainda
existentes, – disseminadas aqui e ali no coração das montanhas onde tudo se
conserva indefinidamente (allmend suíça, pastagens comuns dos Pirineus), ou nos
vales da mesma forma conservadores da Ásia e nas estepes quase asiáticas da
Rússia (comunidades de aldeias hindus, mir [121] russo, zadruga [122] sérvia) ou,
enfim, entre as tribos selvagens da África, da América, da Oceania; – e retira-se
desta aproximação uma razão para pensar que esses costumes, hoje excepcionais,
são os restos das instituições gerais de antigamente. De outra parte, indo mais
longe, escava-se o solo ou o subsolo jurídico das nações modernas, – as mais
estranhas a todo espírito comunista, – e descobrem-se particularidades, tais como a
retomada linear ou vicinal, nas quais se vê o vestígio de um comunismo anterior.
Há bem uma terceira espécie de provas e que, se fosse justificada, seria a
mais sólida de todas. Também vou examiná-la por completo inicialmente, ainda
que ela tenha muito menos sucesso que as precedentes – não sei por quê. Foi
indicada pela primeira vez por Sumner-Maine em seus Études sur l’Histoire du
Droit [123], mas não vi seu desenvolvimento senão na obra de Loria, economista
italiano, sobre a Analisi della Proprietà Capitalista [124]. Este novo gênero de
argumentos consiste em mostrar que os primeiros pioneiros anglo-saxões da
América do Norte, fundando as colônias esparsas que se tornaram os Estados
Unidos, começaram por praticar a propriedade indivisa do solo, para formar várias
comunidades de aldeia, mais ou menos análogas ao mir ou à comunidade hindu. Se
o fizeram desse modo, não se deveria ver nesse recomeço espontâneo da evolução
histórica da propriedade, a partir de seu suposto termo inicial, a confirmação
experimental, de qualquer sorte, desta hipótese? E não seria provocante encontrar
nos Estados Unidos, – nesta terra clássica do individualismo exuberante, – a mais
autêntica amostra, a melhor demonstração da necessidade do comunismo primitivo
[125]?
Por infelicidade, examinados de perto e sem preconceito, os fatos sinalados
por Sumner-Maine e desenvolvidos por Loria tomam uma significação
completamente diferente daquela indicada por eles. “É um fato muito marcante”,
diz com razão Sumner-Maine, que os primeiros imigrantes ingleses na América
“organizaram-se primeiro espontaneamente em comunidades de aldeia, para se
dedicarem à agricultura”. Muito marcante efetivamente. Sobretudo se esse modo
de estabelecimento houvesse sido tão espontâneo quanto nos afirmam. Mas o
mesmo autor vem de nos dizer que esses primeiros imigrantes “pertenciam
principalmente à classe dos yomem”, ou seja, fazendeiros vassalos. Ora, uma
página mais além, em nota, ele nos ensina que, de acordo com autoridades
americanas eminentemente competentes sobre as quais ele se apóia, essas
primeiras colônias “tendiam a reproduzir, não a Inglaterra do tempo dos Stuarts
(época dessas colonizações), mas aquela do Rei João e da Grande Carta” e que
“essas instituições essencialmente feudais pareciam completamente naturais aos
colonos, qualquer que fosse sua pátria de origem, anglo-saxões, holandeses ou
franceses exilados pela revogação do Édito de Nantes [126]”. Trata-se, como se vê,
não da maravilhosa ressurreição de um passado pré-histórico, morto e esquecido
após séculos, mas do sonho de um passado recente, apenas adormecido, ainda vivo
nas tradições de colonos inteiramente penetrados pelo espírito feudal. O mesmo
fizeram os refugiados franceses que, aliás, vindos após os outros, não puderam
senão seguir a corrente dos hábitos já estabelecidos antes deles sobre o solo
americano. O fenômeno invocado é, pois, um simples fato de imitação dos avós,
onde o atavismo, até mesmo o pseudo-atavismo, do uso de tantos evolucionistas
contemporâneos, não conta absolutamente nada.
Notai como esse comunismo colonial se estabeleceu. “A Corte Geral
concedia uma certa extensão de terras a uma sociedade de indivíduos, e essas terras
eram possuídas pela sociedade a título de propriedade comum.” Era pois, tão
simplesmente, uma concessão de terras feita a uma companhia. Nada mais
freqüente mesmo em nossos dias. Mas não era sempre desse modo que uma
colônia começava. De resto, a sociedade em questão apressava-se em partilhar
entre seus membros, contanto que pudesse fazê-lo, as terras concedidas. Vejamos
entretanto Loria a esse respeito, pois que, de acordo com ele, as colônias são para o
arqueólogo do Direito o que são as montanhas para o geólogo: uma ocasião única
de ver e de tocar terrenos primários, estratos em toda parte enterrados sob espessas
camadas de solo. Instruamo-nos um pouco sobre o antigo passado de nossa raça,
em as estudando.
O que nos ensinam as colônias? Vemos, primeiramente, que seus fundadores
são muito dessemelhantes, muito diferentes de raça, de classe, de religião, de
hábitos, de costumes. Ao Norte dos Estados Unidos, são puritanos ingleses de
classe média; ao Sul, grandes proprietários. No Canadá, emigrados da nobreza,
brigões ou caçadores. Em São Domingos, aventureiros normandos, piratas e
flibusteiros. Nas Antilhas, um clero industrial, ativo e empreendedor. Na Austrália,
condenados espanhóis, anglo-saxões, holandeses, portugueses. Os colonos vêm de
toda parte. Também todos colonizam de maneira diversa. Não apenas suas colônias
diferem pelo objetivo perseguido, – cultura industrial ou agricultura, colônias de
plantação ou colônias de povoação, – mas aquelas que tinham o mesmo objetivo,
atingiam-no por meios diferentes, trabalho livre ou servil, por exemplo.
Apenas uma coisa é comum a esses imigrantes: eles são todos imitadores.
Todos aplicam e copiam modelos tomados de seu antigo ou de seu novo meio. Do
antigo, quando os puritanos da Escócia reproduziram, na América, os costumes
comunistas ainda subsistentes em seu país natal, a retrovenda [127] vicinal [128]
entre outros, ou quando os franceses importaram do Canadá a retrovenda
simplesmente linear [129]. Pela segunda vez; porque Leroy-Beaulieu nos ensina
que os colonos canadenses, nossos compatriotas, “entranhando-se por toda parte na
imensidão das florestas à procura de peles e de caça, tomavam os hábitos indígenas
e deixavam a natureza civilizada pela selvagem”. Ele nos diz também que os
colonos normandos estabelecidos em São Domingos haviam tomado o nome de
caçadores de búfalos, “porque tinham adquirido o costume de se reunirem, após a
caça, para defumar, ou seja, fazer secar a carne dos búfalos que haviam caçado
com fumaça, segundo o procedimento dos selvagens.” Não vejo por que Loria não
procura aí, entre os caçadores nômades, e não entre os colonizadores ingleses, que
começaram pela agricultura, a reaparição fantástica dos tempos primitivos. Em
todo o caso, esses caçadores tornaram-se tais, não espontaneamente, não por uma
necessidade de situação que nunca se fez sentir em torno deles, mas, bem
verdadeiramente, em virtude de um exemplo de seus ancestrais combinado com
aquele dos peles-vermelhas. Além disso, os caçadores tornaram-se pastores a
seguir, depois agricultores, de maneira conforme a uma norma dita modelo? De
modo algum.
Objetar-me-ão talvez que, se nossos colonos e, por conseguinte, nossas
colonizações modernas foram muito dessemelhantes, não se deve ter dado o
mesmo nos tempos pré-históricos. Mas por quê? Por longe que remontemos na
História, não encontramos sempre raças, línguas, costumes, idéias, hábitos
diferentes? Que ilusão tomar por uniformidade real o impressionismo do passado
pelo próprio efeito de seu distanciamento! Tudo se apaga a distância, tudo se
desfaz, mas nós sabemos bem que é suficiente nos aproximarmos das colinas azuis
para ver pulularem diferenças em sua cor uniforme.
A partir dessas opiniões, deve-se convir: as colônias são uma retrogradação.
Vêem-se renascer processos culturais abandonados depois de muito tempo na
pátria mãe; ou instituições desaparecidas naquela, como a escravatura ou mesmo,
talvez, a composição pecuniária para os crimes. O que se deve conceder sem
dificuldade a Loria é que, recolocado em condições semelhantes, o homem tende a
reproduzir, ao menos em parte, instituições quase iguais. Mas o que resulta
claramente de suas pesquisas sobre as colônias é que as condições destas diferiam
profundamente umas das outras. Primeiro, sob as condições indicadas mais acima,
e, também, conforme a segurança ou a insegurança de sua localização: na
vizinhança de tribos ferozes ou pacíficas ou, ainda, conforme o clima. Ora, todas
estas causas de dessemelhanças deviam existir, afinal, entre as tribos primitivas ou
qualificadas como tais, e, por primitivas que elas nos pareçam de longe, teriam
herdado, de uma longa fileira de ancestrais, uma imensa cadeia de tradições.
Uma primeira questão: Se essas colônias fizeram reviver espontaneamente as
“formas primitivas da propriedade”, como foi que elas não fizeram também reviver
as formas primitivas da família? Todavia não nos falam jamais, a esse respeito,
nem do hetairismo, nem do matriarcado, nem do patriarcado poligâmico ou
monogâmico. Dir-se-á que a não ressurreição ou, para melhor dizer, a não
aparição, nas colônias, desses estados supostos da família antiga não prova nada
contra sua existência num passado remoto? Pois bem. Mas então: Qual o direito de
atribuir maior importância aos fatos do coletivismo apresentados pelas colônias?
No que concerne à ocupação das terras, a história das colônias mostra o
homem em toda parte oscilando entre duas tendências antagônicas: a tendência à
dispersão pela apropriação individual e independente, e a tendência à associação
pela apropriação indivisa. De preferência, vê-se-o sempre tender à dispersão, mais
freqüentemente forçada, malgrado ele recorra à associação, à indivisão comunista,
seja para conformar-se às necessidades da vida pastoral, quando ela ainda existe,
seja, mais tarde, para defender-se contra os perigos que cercavam o ambiente ou
para executar trabalhos de desmatamento e de irrigação superiores à sua força
individual. Também é de observar que, em toda parte onde a indivisão subsiste
ainda, e em toda parte onde ela existiu no passado em face da posse imobiliária,
encontra-se um dos três casos de constrangimento enumerados, ou os três de uma
só vez. Ao percorrer-se toda a obra de Laveleye, não se descobriria um único
exemplo de coletivismo agrário que não entrasse numa dessas categorias.
O que não se vê jamais, por exemplo, é uma colônia começando pela
comunidade de aldeia, para estabelecer a seguir a comunidade de família e fundar
enfim a propriedade individual. Loria não nos diz nada semelhante. Ele nos
mostra (tomo II, página 17 e seguintes) que os primeiros colonos, ocupantes de um
solo virgem e prodigiosamente fértil, lá ao menos onde reina uma segurança
relativa, instalavam-se cada um para si e para sua descendência. O fato dominante,
então, é o isolamento dos colonos (p. 23). Eles estão separados por um deserto. É o
extremo oposto do coletivismo. E isto lembra muito bem, como faz observar Loria,
a famosa passagem de Tácito sobre os germanos: Colunt discreti ac diversi, ut
fons, ut campus, ut nemus placuit. Uma luta se engaja a seguir, pouco a pouco, no
coração desses corajosos pioneiros, entre as duas forças que indico a todo
momento: a necessidade da apropriação individual independente e a necessidade
da associação defensiva. Ora, conforme uma ou outra destas duas forças domina, e
na medida em que predomina, – porque sua vitória não é jamais completa, – o
estado social é mais ou menos fortemente marcado de individualismo ou de
coletivismo. Quando este último domina, tal significa: ou que a fase pastoral não
foi ultrapassada, ou que o agricultor está exposto, como os berberes [130]
sedentários, às razias de tribos rapinantes e ferozes, a perigos diversos, ou que ele
tem necessidade, como em Java, da cooperação de uma cidade inteira para irrigar
seus arrozais, desbravar suas florestas, etc. [131] Nos Estado Unidos, o
individualismo dominou nos primeiros tempos, porque os índios eram
relativamente dóceis e pacíficos, porque a cultura não exigia, em geral, a
colaboração de um grande número de braços e porque os imigrantes
desembarcavam da Europa, não no estado de pastores, ignorando a enxada e o
arado, mas munidos dos segredos da agricultura civilizada. Esses neoprimitivos
traziam com eles dez séculos ao menos de invenções agrícolas, e foi sobretudo este
fato, este “fator” intelectual de primeira ordem que, muito mais que “o fator
econômico”, dito preponderante, determinou seu gênero de vida.
É verdade que, entre os colonos americanos, as comunidades de aldeia de
um certo tipo formaram-se lá e acolá; mas Loria reconhece que elas foram
posteriores ao isolamento primitivo dos colonos, e constituíram uma liga contra os
perigos nascidos do isolamento excessivo. Apenas neste segundo período houve,
em alguns estados, na Virgínia entre outros, divisão de terras por lotes, interdição
de possuir individualmente além de um certo máximo de terras, às vezes cultura
em comum. Tal estado de coisas lembra, em vários sentidos, a marcha alemã da
Idade Média [132]. Como nesta, todas as profissões eram monopolizadas e
submetidas a regras tão tirânicas quanto protecionistas. Mas tudo se explica, se
imaginarmos que, ao isolamento dos indivíduos, ou antes, ao isolamento das
famílias, sucedeu o isolamento das cidades, e trata-se, para cada uma daquelas a
seu turno, na ausência de todo comércio, de bastarem-se a si mesmas. Este é um
caráter importante comum a todas as aglomerações humanas dispersas sobre um
vasto território a grandes distâncias umas das outras: aldeia hindu, mir russo,
marcha germânica, allmend suíça. Poder-se-ia acrescentar a vila galo-romana
[133]. Fustel de Coulanges descreve-nos esta como um organismo independente e
resistente, fortemente hierarquizado e centralizado. Não é menos curioso ver, sobre
essa terra americana, onde o individualismo anglo-saxão deveria desabrochar em
nossos dias, a evolução social começar quase que pela regulamentação despótica e
pelo socialismo de estado.
Após as colônias modernas, consultemos as cidade animais, como certos
sociólogos, a respeito do assunto que nos ocupa. Muito bem. O que vemos? Já
entre os animais sociais encontramos, lado a lado, a propriedade individual e a
propriedade coletiva. Esta, lá onde aparece, reveste-se da forma familiar. Um ninho
pertence a um casal de pássaros que, todos os anos, vem habitá-lo, repará-lo em
comum. “A propriedade de um território é um fato constante, quase universal, nas
famílias dos pássaros [134]”, diz Espinas. As famílias vizinhas praticam o respeito
recíproco a seus territórios de caça e de pesca. A caça reservada é conhecida entre
muitas espécies. Quanto a saber se, entre as abelhas, a propriedade individual da
célula precedeu ou seguiu-se à propriedade coletiva da colmeia, não me
encarregarei de resolver este problema. Mas é bem pouco verossímil que a haja
seguido. O que quer que seja, passemos a considerações mais sérias.
O mérito eminente e incontestável de Laveleye é o de haver descoberto,
relacionado, trazido à luz fatos desconhecidos de comunismo disseminados sobre o
globo e na História. Ele extraiu daí um dos livros mais sedutores que se podem ler.
Mas enganou-se, eu creio, na interpretação geral que se apressou em dar a esses
fatos, e onde não cessa de ser obsidiado por suas longas pesquisas. “Os povos
primitivos, diz ele, obedecem a um sentimento instintivo, reconhecendo a todo
homem um direito natural de ocupar uma porção do solo de onde possa tirar com
quê subsistir, trabalhando.” Eis um erro teórico que o conduz imediatamente a
falsear, senão os próprios fatos, ao menos sua ordem cronológica que ele inverte.
Com efeito, de acordo com ele, os primeiros povos “partilhavam igualmente, entre
todos os chefes de famílias, a terra, propriedade coletiva da tribo”. Muitas vezes
ele repete, – e todos aqueles aos quais arrasta a sedução de seus modos repetem
também, – esta última proposição erigida em lei histórica, uma ordem cronológica
que lhes parece se impor como uma dedução lógica. “Na origem, eram o clã, a
aldeia e os corpos coletivos que possuíam a terra; mais tarde, é a família que tem
todos os caracteres de uma corporação, perpetuando-se através dos tempos.” Mas
onde estão as provas desta pretensa verdade, qual seja a de que a comunidade de
aldeia precedeu e engendrou a comunidade de família? Eu as procuro e não as
encontro. Eis aí todavia o nó do problema. E, contrariamente àqueles que de pronto
se resolvem neste sentido, eu pretendo que, lá onde a comunidade de aldeia existe,
ela é a seqüência de comunidades de famílias anteriores, que se federaram entre
elas, ou onde uma só, mais freqüentemente, em crescendo, englobou as outras.
Em apoio a esta idéia, é de observar-se que, em toda parte onde o
coletivismo rural conservou sua seiva e seu sabor arcaico, na Rússia e na Índia, os
co-proprietários guardaram a tradição de um antigo parentesco que os uniria. Na
Índia, “os habitantes de cada cidade (onde existe a indivisão) têm a idéia de que
descendem de um ancestral comum”, diz um relatório oficial inglês. Os
camponeses russos do mir acreditam do mesmo modo em sua filiação comum.
Sobre este ponto Sumner-Maine e Fustel de Coulanges encontram-se, e aquilo que
este diz da marcha germânica do século XII [135], – onde ele não vê senão o resto
de uma antiga co-propriedade familiar, – o primeiro diz também da comunidade de
aldeia hindu que oferece, de acordo com ele, “o aspecto de um grupo de famílias
unidas pela suposição de uma origem comum [136]”. A interdição de vender ou de
legar o bem familiar, – mais tarde, os entraves aportados à faculdade de alienar, –
parecem vestígios de coletivismo antigo. Seja. Mas tais regras costumeiras não
podem se interpretar senão a favor da co-propriedade da família, e não do clã. Ao
homem que deseja testar, o legislador antigo responde, pela boca de Platão, nas
Leis: “Tu não és o dono nem de teus bens nem de ti mesmo; tu e teus bens, tudo
isso pertence à família, ou seja, a teus ancestrais e a tua posteridade.” Mas para que
é bom multiplicar as provas, na ausência de provas contrárias? Não é natural, à
priori, fazer nascer o complexo do simples e não o simples do complexo? Não é
estranho supor que famílias, até então independentes, pelo fato único de sua
aglomeração em um burgo, tenham adquirido a coesão e a disciplina internas, em
lugar da perdê-las, e, pela primeira vez, saboreado as doçuras da indivisão? Não
sabemos, ao contrário, que, em toda a parte e sempre, as relações de cidadania, em
se multiplicando, relaxam as relações de parentesco? A comunidade de aldeia não
pôde nascer senão sobre o modelo ampliado da comunidade de família, como o
fogo de Vesta da cidade não se pôde acender senão no interior do lar doméstico; o
primeiro efeito da primeira, ao seu nascimento, devera cortar, não engendrar a
segunda.
Eu admito, pois, plenamente, que a comunidade de família foi muito
difundida, seja por conta de sua propagação imitativa, seja em razão de sua
aparição espontânea em muitos focos distintos de irradiação na origem das
sociedades. Quer isso dizer que ela existiu sempre? Não. Lá, por exemplo, onde a
família apareceu sob a forma patriarcal, sorte de cesarismo doméstico, o chefe da
casa é o único proprietário. É o individualismo em todo seu esplendor. Aliás,
quando a indivisão familiar se estabelece, ela afeta a maior diversidade de aspectos
e, segundo o governo do grupo inclinar-se mais à hierarquia monárquica ou à
igualdade democrática, ela afasta-se ou aproxima-se do tipo ideal desta, tal como é
ainda representada aos nossos olhos pela zadruga eslava.
Mas, para bem compreender a verdadeira característica desse comunismo
fraternal e o erro daqueles que querem ver aí uma antecipação do coletivismo
social, deve-se ter presente no espírito a estreita, a íntima solidariedade que
incorporava uns aos outros os homens unidos pelo sangue, em épocas e em regiões
onde a insegurança do meio ambiente habituava-os a unirem-se e a aglutinarem-se
assim. O indivíduo conta infinitamente pouco, de ordinário, aos seus olhos ou aos
olhos de outrem entre os primitivos. Como prova de sua nulidade original, não
temos senão que imaginar o papel ínfimo que ele representa ainda em nossas
sociedades civilizadas já. Na Idade Média, não havia a idéia de contar a população
senão por lares. Entre os incas, a nação era partilhada segundo o sistema decimal,
não como nós aferimos no presente, por grupos de 100, de 1.000... indivíduos, mas
por grupos de 100, de 1.000...famílias. Na aldeia hindu, como na comunidade
teutônica, – comparação freqüente sob a pluma de Sumner-Maine, – a família nos
aparece tão forte, tão fechada em si e concentrada, que parece difícil imaginar um
bloco mais resistente: “um mistério extraordinário a envolve”. Nas montanhas do
Cáucaso, entre os ossetos, alguma coisa desse passado sobrevive ainda.
“Encontram-se, diz Dareste, aldeias plantadas como fortalezas nas alturas de um
acesso difícil, onde cada casa é um torreão habitado por uma mesma família ou, de
preferência, por uma comunidade de quarenta, de cinqüenta e até de cem pessoas
unidas entre elas pelos liames de seu parentesco, e correlacionando-se através de
um ancestral comum, do qual elas trazem o nome. Em volta de cada casa há um
muro serrilhado; em um de seus ângulos, há uma torre em forma de pirâmide com
muitos andares, servindo para defesa... Entre os habitantes de uma mesma casa
tudo é comum. A autoridade pertence a um ancião.” Todavia, só a aproximação
dessas habitações, a federação urbana dessas famílias, devia enfraquecê-las mais
ou menos. Qual devia ser, pois, sua concentração interna antes desse
enfraquecimento inevitável?
Se é assim, e isso não é duvidoso, deve-se olhar a propriedade coletiva dos
tempos primitivos como o equivalente puro e simples de nossa propriedade
individual, do mesmo modo que a responsabilidade coletiva dos parentes, em razão
do crime cometido por um deles, aí corresponde à responsabilidade individual de
hoje. O grupo familiar e, muitas vezes por extensão, o grupo de aldeias daquele
tempo, é a única unidade social, indivisível, não podendo ser decomposta como os
indivíduos o podem ser no presente. Sozinho, ele é capaz de exercer o direito de
propriedade, quando apresenta caracteres de personalidade independente e original.
Esta pessoa moral começou por ser a única pessoa real, seja encarnada
despoticamente no chefe, seja marcada e repartida entre todos os membros, mas
sempre, por ele ou por eles, proprietário absoluto de seus bens, com exclusão de
qualquer outro grupo igual. – E isto é tão verdadeiro, que o traço mais flagrante do
pretenso coletivismo descoberto no mir, na allmend suíça ou italiana, na
comunidade de aldeia hindu e javanesa, na marcha germânica, é o seu
exclusivismo essencial, ferozmente não hospitaleiro [137]. – Na Suíça, para gozar
do domínio comunal, deve-se “descender de uma família que tenha esses direitos
desde tempos imemoriais...” Daí as lutas tão violentas “entre os reformadores
radicais, que reclamam direitos iguais para todos, e os conservadores, que
pretendem manter as antigas exclusões”. A allmend forma também “uma
corporação fechada e privilegiada”. Quando se invoca, em favor da antigüidade
das idéias e dos sentimentos comunistas, a tradição da partilha das terras tão
freqüente entre os gregos antigos, não se deve perder de vista que, de acordo com
Aristóteles, as leis gregas sobre a conservação dessas partilhas primitivas
“ligavam-se a um pensamento aristocrático e tinham muitas vezes o objetivo de
impedir a plebe de tornar-se proprietária”. Resumo as citações. Em suma, nas
associações onde a humanidade teria feito seu noviciado comunista, passa-se
ordinariamente o tempo a repelir o estrangeiro que quer forçar as cercas espinhosas
desse sítio familiar. Vejo lá os convivas, mais ou menos numerosos, mais ou
menos parentes, sentados numa mesma mesa. Mas não se segue nunca que esse
seja um banquete público. É um grande jantar particular servido numa sala
hermeticamente fechada.
Como se pôde perceber o vestígio de um comunismo anterior, de uma fé
antiga na co-propriedade universal, do direito inato de todos sobre cada parcela de
terra, em instituições tais como a retomada linear, a interdição de testar e tantos
outros obstáculos opostos pelo costume à alienação do patrimônio: instituições
onde aparece tão fortemente a crença enraizada de que tal pedaço de terra pertence,
por direito inato e hereditário, a tal família, que ele é o corpo permanente desta
personalidade imortal? Eis todavia uma maneira de ver que teve o maior sucesso.
Ora, seguramente, a retomada linear, esta faculdade deixada aos parentes de
recomprar o bem vendido por um deles, e a retomada vicinal, faculdade análoga
deixada às vezes aos vizinhos, atestam, na maior parte dos casos, a existência de
uma co-propriedade anterior e esquecida, limitada aos parentes e aos vizinhos. Nós
o demonstramos, comparando a retomada feudal com as duas precedentes: se o
senhor feudal tinha o direito de recomprar o feudo alienado por seu vassalo, é
porque se lhe reconhecia uma espécie de co-propriedade superior, o domínio
eminente, que o vassalo não tinha o direito de alienar. Mas essas retomadas
tinham ainda uma outra significação mais geral e mais profunda. Para compreendê-
la, deve-se, eu creio, compará-la a muitos outros costumes curiosos inspirados pelo
mesmo espírito, e que não aparecem na explicação precedente. A retrovenda,
faculdade de resgate deixada ao próprio vendedor, espécie de retomada individual,
– o direito concedido ao mesmo vendedor, em muitas legislações primitivas [138],
de arrepender-se da venda, de retratar-se ao longo de um certo prazo; – o direito
concedido ao doador ancião, segundo Viollet, de retratar sua liberalidade por livre
e espontânea vontade; – enfim, disposições constantes em leis muito antigas,
polonesas, por exemplo, que declaram os imóveis imprescritíveis, indisponíveis,
impenhoráveis por dívidas: tantos direitos notáveis que derivam, não da
propriedade coletiva, – pois que se trata expressamente de propriedade individual,
e o vendedor ou o doador podem perfeitamente alienar seu próprio bem, – mas do
desfavor atrelado às alienações nas sociedades pouco civilizadas. É apenas sob este
último ponto de vista que esses direitos singulares e as retomadas podem ser
compreendidos num mesmo golpe de vista. E esse desfavor, a seu turno, não
exprime senão um sentimento de propriedade de tal modo enérgico e exclusivo,
que fazia olhar o proprietário (coletivo ou individual, não importa) e o seu bem
como a carne e a unha, e a ruptura acidental deste liame sagrado, como uma
anomalia dolorosa, uma ferida a curar o mais rápido e o melhor possível [139].
Sumner-Maine faz uma observação muito sutil em apoio à tese comunista.
Sabe-se da dificuldade insuperável que existe, em todo país atrasado, em fazer com
que o camponês aceite a menor modificação no preço costumeiro e nas condições
tradicionais do arrendamento das terras. Estaria aí puro misoneísmo? Não, dizem-
nos. Porque este mesmo iletrado aceita sem dificuldade as mudanças sobrevindas
no preço dos objetos mobiliários. Mas este contraste se explica, se se admitir que
“o sentimento persistente de uma antiga confraternidade na posse do solo” faria
obstáculo à idéia de obter das terras alugadas o mais alto preço exigível, ou seja, à
idéia da renda livremente discutida. Isto é muito justo? A verdade parece-me ser,
de preferência, que esteja aí a lembrança inconsciente de uma época onde o grupo
de pessoas às quais se podia alugar ou vender sua terra era praticamente restrito
aos membros de um pequeno círculo fraternal, enquanto havia toda comodidade
em alugar ou vender suas mercadorias, suas armas, mesmo seu gado aos
estrangeiros. Era permitido explorar, espoliar à vontade estes últimos, não os
outros. Está aí a reprodução, sob uma nova forma, da distinção capital – vista mais
acima – entre as relações interiores do grupo societário e suas relações exteriores.
Eu negligencio intencionalmente argumentos comunistas cujo alcance foi
exagerado. Lançados na pista do comunismo primitivo, os eruditos acreditaram
descobrir o traço evidente neste fato, por exemplo: de que, entre povos pouco
avançados, o uso de obrigações estritamente solidárias entre muitos co-devedores,
em geral membros da mesma família, ou bem como na Idade Média, o uso de
pleiges (reféns por dívidas) foi extremamente difundido. Mas não nos esqueçamos
de que, antes dos progressos sociais que permitiram a invenção da hipoteca e a
tornaram viável, a única garantia séria oferecida a um credor era a pluralidade e a
solidariedade dos devedores. Era naturalmente mais fácil ao que pedia emprestado
convencer a seus parentes, e não a estranhos, a ligarem-se a ele de modo tão
estreito. Esta explicação é tão verdadeira que, em nossos dias ainda, nos usos
comerciais, – porque a hipoteca, com sua morosidade é impraticável, – uma
promissória revestida de uma só assinatura não é jamais descontada; e a
multiplicidade de endossos, freqüentemente de parentes, numa mesma promissória,
portadores de um mesmo warrant, assim como sua responsabilidade coletiva, são
fatos habituais, análogos às obrigações co-reais do passado [140].
Poder-se-ia bem, – diga-se sem zombaria, – olhar o hábito tão geral na
Europa de “fazer carnaval” com seus parentes, jantando com eles na terça-feira
gorda, como uma sobrevivência da antiga vida comum. Se não nos detivemos
sobre essa idéia, é sem dúvida porque, infelizmente, a origem deste costume
nascido da Quaresma cristã pela via do contraste é, aqui, muito claro e não se
presta a nenhum equívoco. Mas, em revanche, o é que impede, à primeira vista, de
ver um fragmento da antiga existência falansteriana, subsistindo curiosamente em
meio ao nosso individualismo atual, tão egoísta, tão ávido pelo ganho, em nossas
recepções periódicas de polidez, em nossas trocas de visitas, em nossos grandes
jantares sacramentalmente ofertados e retribuídos, onde se disfarçam olhares
recíprocos, onde se finge esquecer de alguém, para entregar todos os seus bens
como pasto a seus convivas? É desagradável, eu confesso, que essa conjectura não
sustente o exame. Nessas práticas do mundo, sem dúvida, exprime-se a
sociabilidade humana, antiga seguramente, contemporânea da sociedade mais
primitiva, anterior mesmo a toda sociedade, como a potência é anterior ao ato. Mas
essa expressão de uma coisa tão velha é relativamente jovem e, quando se
remontam às fontes históricas desses hábitos polidos, desses simulacros recíprocos
e alternativos de devotamento ou de prodigalidade, percebe-se que eles decorrem
[141] dos respeitos feudais devidos pelos vassalos ao senhor, ou da refeição feudal
dada pelo senhor aos vassalos, dever limitado de início e unilateral, depois pouco a
pouco generalizado e mutualizado pela imitação descendente de camada em
camada. É curioso seguir as transformações graduais atrás das quais as genuflexões
dos vassalos, prestando o juramento de fé e de respeito a seu suserano, tornaram-se
nossas saudações recíprocas pela inclinação do alto da cabeça num salão.
Também deve-se precaver o espírito e couraçar a razão contra a tentação
erudita, contra a ilusão arqueológica de antedatar prodigiosamente a origem de
certos fatos que têm bem a cor do tempo, como os velhos muros, mas que, como
eles, podem indiferentemente passar por ter alguns milhares de anos a mais ou a
menos. É o próprio Sumner-Maine quem faz observar, a propósito da Índia:
“Assinalaram-se, diz ele, muitas práticas, às quais os indígenas recorrem em
nossos dias pela primeira vez, sob a simples pressão de circunstâncias exteriores, e
que todavia nos são apresentadas, de ordinário, como existindo desde tempos
imemoriais, e como caracterizando a infância da humanidade.” Entre nós, muito se
fala a propósito da questão que nos ocupa, da ménage nivernais. Era uma sorte de
pequeno falanstério rural não muito excepcional em certas regiões francesas nos
séculos XII e XIII. Vê-se aí, naturalmente, um resto de comunismo pré-histórico.
Mas não seria mais natural imaginar aqui a grande corrente de paixão imitativa que
suscitou, precisamente no século XII, tantas comunas e corporações, tantas
associações sob múltiplas formas [142]? Se se quiser ir mais longe, não é visível
que a idéia destas comunas e destas corporações não foi sugerida pelo tipo, – tão
freqüente então, tão multiplicado depois do fim do Império Romano, – da
comunidade monástica, de nenhum modo da comunidade de aldeia? A existência
desta, após quatro séculos de dominação romana, permanece problemática, ou não
pode ser senão acidental, enterrada em lugares obscuros, impróprios para servir de
modelo imitativo. Talvez as guildas [143], as associações comerciais da Idade
Média relacionem-se antes aos collegia de Roma que aos conventos; mas, com
toda certeza, não à marke. Pode-se procurar muito: não se encontrará nada de mais
típico, de mais nítido, em face da organização comunista, que o monastério, onde a
indivisão de bens tem por causa a fusão das almas numa mesma fé e num mesmo
fim. E, de fato, tudo aquilo que se acredita, na Idade Média, próprio às associações
profissionais tem um falso ar monacal e é, antes de tudo, uma confraria.
Na antigüidade grega, não foi o mesmo, salvo que a instituição monástica aí
floresceu sob formas mescladas de patriotismo e de religião, como em Creta, onde
sabemos que Licurgo procurou o plano de sua reforma socialista? Mas, dizem-nos,
jamais houve essa partilha igual de terras, jamais esses ágapes periódicos e tantas
outras instituições atribuídas a esse lendário legislador teriam podido viver e durar,
se o povo espartano não houvesse sido preparado por um longo hábito, ou a
lembrança ainda viva de um comunismo anterior, sobre o qual a história é,
infelizmente, muda. É como se se dissesse que o universal contágio da febre
monacal nos séculos IV e V de nossa era, quando milhares de conventos jorraram
de toda parte sobre o solo do império, denotasse a existência, em toda parte
difundida, ou em toda parte lamentada, da comunidade de aldeia céltica ou
germânica entre os povos cristãos de então. Sabe-se, todavia, que todos tinham,
desde há séculos, o hábito e o gosto da propriedade quiritária, individual que fosse
[144], dogmatizada pelos jurisconsultos romanos. Não. É a contagiosa
propagação, é a salutar epidemia da nova fé que explica sozinha a maravilha
assinalada no início da alta Idade Média; é suficiente, mas é obrigatório supor uma
epidemia semelhante, infinitamente mais localizada, uma crise de patriotismo
religioso revelada e propagada na Lacedemônia [145], para compreender o
radicalismo revolucionário de Licurgo. A esta hipótese se opõe, eu o sei, o
preconceito relativo ao pretenso misoneísmo dos antigos. Mas onde está o
misoneísmo de tantos primitivos que se convertiam em massa às crenças cristãs?
Os historiadores, em geral, fazem a História sem levar em conta esses grandes
furacões de imitação fervorosa que, de tempos em tempos, se erguem
inevitavelmente e rompem ou deformam todos os costumes à sua passagem. Seria
o mesmo que tentar fazer meteorologia sem falar dos ventos.
Tenhamos ao menos por certo o que segue. A mesma causa que, após um
século, fez desaparecer as comunas deveu e pôde sozinha, em tempos mais ou
menos antigos, multiplicá-las em toda parte: eu quero dizer a atração do exemplo
propagado traz o desejo de “fazer como os outros”. Estejamos seguros de que esse
modo muito particular de prazer, ainda visível lá e acolá, – divisão de terras aráveis
em três estreitas e longas bandas recortadas cada uma em parcelas iguais,
periodicamente sorteadas, adubadas com cinza, – foi inventado em algum lugar,
tendo lá sua razão de ser, e imitado em muitos lugares onde estava longe de ser o
melhor regime a seguir [146]. Mantém-se, em raros locais onde, como nas
Hébridas, justifica-se ainda por motivo de utilidade. “É uma observação
surpreendente de Nasse, diz Sumner-Maine, que o sistema de campos comuns
(quer dizer, o vestígio subsistente de uma antiga posse coletiva do solo) apresente,
na Inglaterra, a marca de uma origem exótica.” Surpreendente, com efeito, é esta
observação do meu ponto de vista. Ela se nos apresenta como um convite a supor
que esse coletivismo arcaico, onde se é muito levado a situar o ponto de partida
espontâneo, natural, necessário da evolução da propriedade, começou por ser uma
combinação singular, vulgarizada pouco a pouco e levada para longe por alguma
onda prolongada de imitação.
De resto, antes de nos reportarmos a uma antigüidade fabulosa de
instituições, de usos que se descobrem e que se observam pela primeira vez no
século XIX, é bom observá-los de muito perto [147], porque se os descobre quase
os mesmos, – crê-se, pelo menos, – na Rússia, na Sérvia, na Índia, tanto quanto em
diversos cantos da Europa latina ou germana, onde se é ofuscado por essa vasta
extensão, concluindo pela universal necessidade dessas práticas como fase inicial
das sociedades. Mas é precisamente essa grande difusão que se deveria ter em
guarda contra esta conclusão precipitada. O que me inclina a examinar a zadruga
eslava, – esse sonho de Fourrier realizado, da alta antigüidade que se lhe supõe, – é
sua semelhança assombrosa com a menage nivernais da qual venho de falar, e
também com certas comunidades de família da Lombardia [148]. Tratam-se aqui
de países latinos, trabalhados até as últimas profundidades pelo arado de Roma.
Esse fato imenso, a ocupação romana, que durou 500 anos na Gália e 1.000 anos
na Itália, tempo mais que necessário para um transbordamento de exemplos e de
decretos assimiladores, para fazer desaparecer, sob seus aluviões, todo traço da
propriedade indivisa, bárbara, estrangeira e contrária ao Direito Romano. Esse fato
imenso e culminante na História do mundo, levou-o Laveleye sempre em conta?
Teve ele sempre em vista também este outro fato considerável, qual seja, a ação
exemplar exercida, mesmo fora dos limites do Império, pelas instituições romanas
sobre os bárbaros fascinados, ciumentos e imitadores? E enfim, aquele não menos
importante: a ação do Direito Romano na Europa ao longo de toda a duração da
Idade Média [149]? No entanto, ele não esquece sempre este último fato. A
propósito dos eslavos (p. 464), ele confessa que “na Polônia, na Boêmia e mesmo
entre os eslovenos da Caríntia [150] e da Carniola [151], as comunidades de
família desapareceram, na Idade Média, sob a influência do Direito Romano”. Que
argumento a fortiori se poderia tirar daí contra a data atribuída a certas
comunidades de aldeia ou de família que, remontando a um período anterior à
Roma, teriam sido miraculosamente conservadas em pleno coração do mundo
romano, mesmo a despeito do Direito Romano, o qual, completamente vivo, teria
menos vigor que seu próprio cadáver exumado! Um sociólogo quer que o mir
eslavo seja a forma mais antiga da apropriação do solo, que haja sido adotado em
eras proto-históricas e, provavelmente, antes de toda a História, pela generalidade
das populações bárbaras da Europa. O mir russo seria um fragmento
maravilhosamente conservado aí, como os mamutes da Sibéria, dessa antiga
instituição. Infelizmente, um economista e historiador russo notável acredita haver
fornecido excelentes razões para pensar que o mir é de origem assaz recente. E sua
explicação, além de verossímil, tem a vantagem de conciliar-se muito bem com a
origem atribuída por Fustel de Coulanges, não sem provas em apoio, das
comunidades francesas. Notai que o mir é uma associação de trabalhadores rurais
devedores de renda a um senhor. Isso faz sentir singularmente sua feudalidade.
Ora, de acordo com Fustel, – e é impossível não reconhecer à sua tese um fundo de
verdade, – o senhor feudal não é senão um sucessor transformado dos grandes
proprietários galo-romanos. Deve-se recordar que o domínio rural deste último
dividia-se em duas partes para o cultivo: uma, reserva própria do senhor, consistia
principalmente em prados e florestas, dos quais ele abandonava o gozo parcial do
que fosse apanhado, em madeira morta, em pasto, e mediante prestações, aos
rendeiros da outra parte do domínio. Cada um desses colonos tinha direito a uma
pastagem ou a uma coleta proporcional ao seu lote de cultivo. Era exatamente isso
que tinha lugar no mir. Essa divisão do domínio galo-romano em duas partes teve
maior importância aos olhos de nosso autor, e é a primeira das duas que teria dado
nascimento aos nossos bens comunais. Tudo isso pode ser contestado, mas está, ao
menos, tão provado quanto a origem fabulosamente primitiva do mir, da allmend,
da zadruga e do township.
É suficiente, todavia, desentulhar o terreno. É tempo de aplicar aqui, mais
explicitamente, nosso ponto de vista geral, e expor a uma nova prova sua
veracidade. Duas causas principais, dizem-nos, devem ter feito variar
consideravelmente o regime da propriedade, seja coletiva, seja individual, a
proporção e a natureza de ambas e, por conseguinte, a legislação nesse sentido.
Essas duas causas são duas transformações sociais causadas elas mesmas, uma
pelo progresso da imitação, outra pelo progresso da invenção entre os homens
[152]. A primeira é o alargamento incessante do grupo social, o número crescente
de sociedades unidas pelo sentimento de uma certa concidadania moral devida à
troca simpática e prolongada de exemplos. A segunda é, de uma parte, a
acumulação contínua de invenções relativas à domesticação de animais e de
plantas, a submissão das matérias aos aperfeiçoamentos da indústria; de outra
parte, a substituição freqüente de certas invenções por outras julgadas mais
perfeitas, por exemplo, aquelas que constituíam a metalurgia em vez daquelas que
constituíam a arte de talhar o sílex, ou ainda daquelas que constituíam a arte
agrícola por uma parte das outras que constituíam a arte pastoral ou a arte
venatorial [153].
Imaginemos, para maior clareza e através de uma abstração metódica, que
cada uma destas duas transformações se cumpra sozinha [154]. Isso vai realçar, aos
nossos olhos, a parte da influência que lhes cabia sobre o regime jurídico da
propriedade. Perguntemo-nos, pois, primeiro, qual efeito produziu o aumento
numérico da sociedade. Ele teve por conseqüência necessária, em primeiro lugar, o
crescimento do número de proprietários, à medida em que o grupo se expandia em
profundidade. Quando a mulher, por exemplo, que era outrora excluída, entra por
hipótese no círculo, o direito das filhas à sucessão dos bens começa a ser
reconhecido. Daí, em parte, a exclusão das filhas e, mais tarde, sua admissão no
regime sucessoral arcaico. Em segundo lugar, vem uma conseqüência não menos
necessária desse distanciamento progressivo das fronteiras sociais, senão
nacionais, graças à universal necessidade de exercer e de sofrer o apostolado do
exemplo, que fez crescer incessantemente o número de coisas apropriáveis, seja
individual, seja coletivamente, entre os gêneros de riquezas já existentes, assim
como seu afastamento do proprietário, seja, desnecessidade gradualmente menor
do exercício do domínio direto sobre a coisa. Não vemos realizar-se continuamente
esse grande fato sob nossos olhos? Mais nós observamos, mais se estende raio
territorial, onde nos é praticamente permitido escolher os objetos de nossas posses
mobiliárias ou imobiliárias. A extensão das comunicações de homem a homem
coloca ao nosso alcance jurídico imóveis ou móveis, bens, casas, títulos de
comércio, etc., mais e mais distanciados de nós fisicamente [155]. Outrora devia-se
habitar sua terra e sua casa, e não se concebia o comunismo, a indivisão, senão
entre parentes ou entre vizinhos, entre pessoas reunidas sob um mesmo teto ou
encerradas numa mesma fortaleza. No presente, a indivisão existe entre todos os
acionistas co-proprietários do Canal de Suez, disseminados em todas as partes do
globo, entre todos os membros de um sindicato, entre todos os cidadãos de nossos
Estados crescentes, co-proprietários do domínio público espalhado sobre o
território da metrópole e das colônias.
Quanto ao progresso das invenções, teve ele efeitos ainda mais profundos.
Multiplicou sem cessar as formas de apropriação, seja individual, seja coletiva, dos
objetos já existentes e, de outra parte, criou cada unidade de novos objetos
apropriáveis, de novas riquezas desejáveis. A cada descoberta de um novo animal
doméstico, tais como o asno, o cavalo, a cabra, o carneiro, a vaca, de uma nova
planta alimentícia, tais como a cevada, o centeio, o trigo, o arroz, as riquezas
humanas são acrescidas de todos os seres vivos, animais ou plantas tornados
susceptíveis de domesticação. Toda árvore frutífera que se aclimata, toda espécie
de legume ou de flor que se importa aumenta o tesouro dos pomares e dos jardins.
A cada descoberta de uma arma ou de uma armadilha próprias à caça ou à pesca, a
proporção da fauna marítima ou silvestre transferida à mesa do homem aumenta
rapidamente. É como se uma geração espontânea de animais de caça terrestre e
marítima tivesse lugar. Às invenções relativas à navegação, a partir do remo e da
vela até a hélice do vapor, a partir dos grosseiros instrumentos da astronomia
nascente até a bússola, acrescentaram, à lista de bens, embarcações, balsas, navios,
etc. Às invenções relativas à vidraria, acrescentaram-se as garrafas, as vidraças de
janelas, os espelhos. Às invenções relativas ao crédito, acrescentaram-se as ações
das companhias, os títulos de renda. Às invenções relativas à imprensa,
acrescentaram-se o comércio livreiro, os livros, as revistas, os jornais. Às
invenções artísticas, os templos, os palácios, os quadros, as estátuas, os museus.
Ao mesmo tempo em que novos bens eram suscitados, nasciam novas
maneiras de possuir os antigos. Antes de toda invenção pastoral ou agrícola, a
única maneira de possuir uma terra era conquistá-la. Era este o mesmo motivo pelo
qual a indivisão era a regra, neste caso, em face de imóveis, este modo de posse
sendo de sua natureza indivisa. Não era o mesmo, em grau próximo, no regime
pastoral, mas, desde que uma nova espécie até então desconhecida de animal fosse
importada, a terra via-se desejada e possuída de uma maneira inconcebível
anteriormente. De modo semelhante, a aparição de uma nova planta que exigia um
novo modo de cultivo. Bem entendido, a propriedade das servidões de água, tão
regulamentadas em todos os códigos, não se tornou possível senão após a
descoberta dos efeitos benéficos da irrigação e da arte de irrigar, e as servidões de
paisagem, do mesmo modo que a maior parte das servidões urbanas, não puderam
senão preceder à invenção de muralhas e janelas, a arte de construir. Em geral, o
capítulo das servidões prediais ou rurais deu à propriedade individual um falso ar
coletivista em todos os códigos, a cada progresso da civilização. Enganamo-nos
aqui às vezes; as regras para a repartição das águas de irrigação feitas pelos maures
[156] da Espanha foram tomadas como um resto de coletivismo anterior. O inverso
seria mais verdadeiro.
Eis o que toca ao domínio privado. Mas o domínio público enriquece-se
também pelas invenções relativas à navegação, ainda aos armamentos e à
estratégia, aos serviços de limpeza urbana, aos correios, aos telégrafos. Um
exemplo entre mil: sem o progresso da navegação fluvial, tais caminhos jamais
teriam sido abertos ao público. Deixo a Fouilée, que consagrou todo um
interessante livro intitulado Propriété Sociale, fazer-nos um maravilhoso
inventário de nossas riquezas indivisas, com o cuidado de mostrar-nos de quantos
milhares de francos é co-proprietário cada cidadão francês. Contai os caminhos, os
canais, as redes ferroviárias, os ancoradouros, os fortes, os canhões, os couraçados,
etc., que nós possuímos em conjunto; e contai também os modos variados de posse
que supõe esta variedade de objetos.
Tais são, ao primeiro exame, os efeitos mais marcantes que deve ter o
progresso da imitação e o progresso da invenção sobre o regime da propriedade.
Agora, resultaria dessa percepção sumária a necessidade de uma evolução
universalmente idêntica do direito de propriedade? Sim. Mas apenas na medida em
que a expansão do grupo social é necessária em virtude das leis da imitação, e onde
o progresso da invenção é forçado a fluir numa certa inclinação, como um rio
numa direção vagamente determinada pelas necessidades do organismo e pelas
regras do espírito humano em combate com as forças exteriores. Ora, em que
medida é verdadeiro dizer que a série de invenções inseridas umas sobre as outras
com aparente capricho está sujeita, sem que pareça, a um traçado fatal? Nada de
mais insolúvel, a todo rigor, que um tal problema. Sem dúvida, os rios evoluem,
pois correm e deslocam-se. Mas que geógrafo, mesmo que também geólogo,
poderá submeter a uma fórmula única de evolução suas infinitas sinuosidades? O
sistema pentagonal de Élie de Beaumont [157], – do qual se ria, – era uma
tentativa análoga, para fazer entrar num mesmo plano divino, nítido como um
traçado geométrico, preciso como um cálculo de arquitetura, a ordem de erupção
sucessiva das grandes montanhas. Os naturalistas de seu tempo, – dos quais não se
ria, – viam da mesma maneira a ordem de criação sucessiva das espécies viventes,
como a execução gradual e regular de um plano não menos rigoroso da natureza.
E, certamente, não quero dizer que tudo seja de rejeitar nesta idéia nem na outra.
Pode ser que as leis da mecânica e da lógica circunscrevam, entre fronteiras
intransponíveis, o jogo espontâneo das forças, as vicissitudes de suas uniões e de
seus combates. Pode mesmo ser que, quando se trata de evolução, uma razão
esconda as manobras, solicite-as invisivelmente a cair, um dia ou outro, em
armadilhas inevitáveis, não dispostas de antemão, todas expressas ao longo de uma
via única, mas eternamente semeadas em todas as rotas possíveis, no espaço
infinito das possibilidades realizáveis e irrealizáveis. Quero dizer por aí que ela é,
talvez, destinada a reencontrar aquilo que supõe operar, condições de equilíbrio
mecânico ou de equilíbrio lógico, tais como os tipos astronômicos caracterizados
pelas figuras regulares da geometria, – elipse, parábola, esfera, – tais como os tipos
físicos de ondulação ou tipos químicos de arranjos moleculares permanentes, tais
como os tipos de animais ou de plantas viáveis, tais como as constituições sociais,
as línguas, as religiões, os corpos de Direito, as formas de arte viáveis e duráveis.
De tal sorte que, chegada aí hesitante, um pouco mais cedo, ou um pouco mais
tarde, a partir de um ponto ou de outro, com grande margem deixada ao acidental,
luxo tão necessário ao mundo, necessidade tão profunda do coração das coisas, a
evolução deverá parar e repousar até nova ordem, os planetas descrevendo um giro
gravitacional sem fim, com a ajuda de um imenso compasso elíptico, as ondas
sonoras e luminosas entrelaçando no espaço seus desenhos infinitos de uma
desesperadora regularidade, os óvulos fecundados brincando de reproduzir os
arabescos complicados do esquema ideal de sua espécie, as colônias humanas
comprazendo-se em multiplicar a imagem aumentada ou apequenada de sua pátria
mãe... Sim, isso é admissível, mas não significa, de modo algum, que um leito
invariável e único se imponha ao rio das descobertas, das invenções, das iniciativas
bem sucedidas, de sua fonte selvagem até sua embocadura ultracivilizada. E é
isso, entretanto, que se deveria provar, para se estar autorizado a colocar uma
fórmula única de evolução jurídica.
Durante muito tempo, acreditou-se que as invenções relativas primeiramente
à caça ou à pesca, em segundo lugar à domesticação de animais, enfim à
domesticação das plantas, seguiram-se numa ordem invariável. Caçador ou
pescador, pastor, agricultor: o homem tinha de passar, universal e necessariamente,
por estas três fases, segundo a opinião de todos. Está aí o exemplo mais nítido e o
mais sólido que se pode citar de uma série fatal de invenções. Infelizmente é
necessário renunciá-lo. Sabemos que os caçadores peles-vermelhas começaram,
antes mesmo da chegada dos europeus, a ser agricultores, sem haver nunca, apesar
disso, atravessado o estado pastoral. Eles não possuíam outro animal doméstico
além do cão, seu aliado para a caça. Na América, todavia, as espécies animais
suscetíveis de domesticação não faltavam. Por que, pois, neste continente, houve
tão poucos (talvez nenhum) povos pastores? E por que, ao contrário, na Ásia e na
África, o regime pastoral reinou e reina ainda? A importância capital do acidente
histórico, da originalidade individual em face das invenções mostra-se aqui
claramente. Os polinésios não conheceram o estado pastoral; eles pescavam e
praticavam um pouco de agricultura. Eles não conheciam qualquer animal
doméstico. Fosse verdade, aliás, que as três fases em questão se encadeassem como
se supunha outrora, dever-se-iam ter, em grande conta, as dessemelhanças que
apresentam cada uma delas, segundo circunstâncias acidentais ou diferentes
inspirações do gênio humano. O comunismo restringe-se ou estende-se, e sempre
se modifica entre as populações selvagens ou bárbaras, conforme a natureza de sua
pesca ou de sua caça, que favorece mais ou menos o espírito de associação [158].
Os caçadores de búfalos, de bisões, de elefantes deveram associar-se mais
freqüentemente e de maneira diferente que os caçadores de gamos ou lebres; os
pescadores de baleias, mais freqüentemente e de outra maneira que os pescadores
de carpas. As armas de fogo foram permitidas aos caçadores de feras no
isolamento, onde o arco e a flecha lhes eram defesos. A agricultura pôde ser mais
ou menos intensiva ou extensiva, o que muito influiu sobre o espírito de associação
entre os agricultores, não sendo porém suficiente. Só quando a necessidade da
produção intensiva sobre um menor espaço foi sentida pelos agricultores, é que os
procedimentos de adubagem, – que a tornariam possível, – foram imaginados. Foi
necessária uma iniciativa individual secundada pelas circunstâncias. Porque a idéia
de semear a cada dois ou três anos o trigo, graças ao adubo animal, numa terra
onde existia o hábito secular de descansar seis anos, vinte anos, vinte e cinco anos
às vezes, após uma única colheita precedida de um simples jato de cinzas, esta
idéia tão simples hoje devera parecer, naquele tempo, de uma ousadia
extraordinária, e eu não sei como se pôde obstinadamente taxar de misoneístas às
populações que a adotaram.
Mas se a idéia de um desenvolvimento predeterminado de invenções é
quimérica, existem, em revanche, bem realmente, similitudes espontâneas de
invenções, e cabe-lhes uma certa parte nas coincidências constatadas entre
sociedades que jamais realizaram qualquer empréstimo. Um certo número de
instituições muito semelhantes foram imaginadas espontaneamente, sem qualquer
imitação, por iniciadores diferentes, em diferentes épocas e em diferentes lugares,
porque elas eram as únicas soluções possíveis, simples e fáceis de conceber frente
aos problemas criados pelas necessidades naturais do homem. Por exemplo:
apresentando-se a necessidade urgente de saber o que cultivar na terra, para
alimentar a população, apenas algumas soluções poderiam se oferecer: 1a) forçar as
mulheres a este trabalho; 2º) poupar a vida dos prisioneiros de guerra e reduzi-los à
escravidão; 3º) cultivo livre auxiliado por animais ou por forças naturais
dominadas. Ora, todas estas soluções foram experimentadas e realizadas, mas não
necessariamente na ordem acima exposta. No mundo antigo, a mais difundida foi a
segunda, a cultura servil; e, como se viu florescer a escravidão entre os astecas, –
que jamais tiveram qualquer comunicação com a antigüidade greco-romana, assim
como entre os negros africanos que provavelmente não a conheceram melhor, –
deve-se pensar que sua semelhança a esse respeito não teve por causa a imitação.
Uma vez estabelecida a escravidão, outro problema se apresenta: Qual a
melhor maneira de utilizar o trabalho escravo? Ora, o proprietário e senhor pode,
para o cultivo: seja fazer trabalhar seus escravos em grupo sobre toda a extensão de
seu domínio; seja dispersá-los sobre a propriedade, e conceder a cada deles um lote
especial de onde vai retirar proveitos mediante condições especiais. O senhor
romano, de início, adotou com exclusividade o primeiro procedimento; mas o
senhor galo-romano deu preferência ao segundo que, agigantando-se e
especificando-se, transformou-se em servidão. Esta é uma solução muito fácil de
descobrir e, desde que apareceu em algum lugar onde ofereceu vantagens, uma
corrente de interesses não tardou em torná-la dominante. Assim explica-se o fato
de a servidão haver existido não apenas na Idade Média cristã, como também o de
haver precedido às invasões entre os germanos e, mais antigamente ainda, na
Grécia. “Os hilotas [159] de Esparta, os penestas [160] da Tessália, os clerotas de
Creta, talvez os tetes [161] da Ática fossem servos da gleba.” (Fustel de
Coulanges) Os antigos romanos ignoravam esta forma especial de escravização.
Quando ela, mais tarde, apresentou-se a eles, poder-se-ia admitir que fora copiada?
Isso não é necessário, à vista da simplicidade da idéia: ela produz-se, diz muito
bem o autor que acabamos de citar, “primeiramente sobre um domínio, depois
sobre outro e, pouco a pouco, sobre todos [162]”
Para retornar uma última vez ao coletivismo, perguntemo-nos se, de acordo
com os princípios expostos, ele deve ter precedido à propriedade individual. De
modo algum. Em todos os tempos existiram e precisaram existir, – isto é
reconhecido, – coisas apropriadas individualmente: armas, móveis, vestimentas,
ferramentas. Mas é certo ou provável que a proporção dessas coisas apropriadas
individualmente, relativamente às outras (coletivas), diminuiu sem cessar e, no
presente, é inferior ao que era na idade da pedra lascada ou polida? Não vejo a
menor prova. Concordo apenas que a propriedade coletiva do solo deve ter sido
mais geral e mais extensa, quando se apresentava uma época na qual o solo não era
susceptível de aproveitamento senão em comum [163]. Mas naqueles tempos, em
revanche, a propriedade coletiva das coisas móveis não era sequer imaginável, e
em nossos dias é sob esta forma sobretudo que o coletivismo ganha terreno, pelas
companhias ferroviárias, pelas sociedades industriais ou comerciais quaisquer; é
sob esta forma sobretudo que o coletivismo espera reinar um dia pela expropriação
do satânico capital e sua nacionalização. Vejo bem, além do mais, que o
alargamento do campo social, em diminuindo a insegurança primitiva da indústria,
permite-lhe satisfazer mais amplamente sua tendência inata à propriedade livre e
divisível, enquanto o progresso da agricultura intensiva tornaria a cultura indivisa
mais impraticável. Mas, de outra parte, o alargamento do campo social permitiu
também associações de proprietários maiores e mais fortes; de outro lado, ele
enfraqueceu o sentimento do direito de propriedade. A propriedade exclusiva,
inalienável, perpetuamente fixa do grupo familiar ou de aldeia, o aperfeiçoamento
agrícola, pouco a pouco, substituiu-a pela propriedade exclusiva também, mas
alienável e móvel do indivíduo. Durante esta mudança, o culto à propriedade perde
muito de sua força; ele abdica de seu caráter absoluto e sagrado, e reveste-se de
uma relatividade que unicamente o ceticismo pode penetrar.
A única questão é saber se as condições favoráveis à propriedade indivisa
estão em via de aumento ou de diminuição, ou se, após haverem desaparecido, ou
parecerem desaparecidas, elas não tenderiam a reaparecer transformadas. Podemos
ter por assegurado que o comunismo familiar ou de aldeia não renascerá, porque o
alargamento do horizonte social se lhe opõe. A intensidade do sentimento que seria
o elo com os tempos antigos, entre parentes ou vizinhos, alimenta-se sobretudo de
seu isolamento em um meio hostil. Deviam amar-se muito entre si, e muito odiar
ao estranho, para viver esta vida incômoda. No presente, deve-se amar nesse nível
todos os co-associados, ou mesmo odiar até esse ponto todos os outros homens,
para que o sonho de nossos comunistas atuais foi realizável; poder-se-ia remeter-
lhes a Utopia de Thomas Morus. À medida que, com efeito, se alargava o círculo
social, o sentimento de confraternidade perdia em intensidade o que ganhava em
extensão. Mas o novo coletivismo é muito menos sentimental, porque não tem
necessidade de o ser. Reflitamos, com efeito, nas outras mudanças produzidas pela
causa indicada. Ela teve, notadamente, aquela conseqüência, qual seja, a de que a
distinção, muito nítida na origem, entre o preço para o irmão e o preço para o
estranho, – o primeiro fixado pelo costume, o segundo, unicamente pela
concorrência, – foi se atenuando e apagando por etapas. Segue-se, – corolário
importante, – que o número de compradores ou de locatários possíveis, aceitáveis
juridicamente, dos bens imóveis não cessou de crescer, os preços de fechamento ou
de venda tornaram-se cada vez menos fraternos, costumeiros, justos, cada vez mais
discutidos e aceitos pela força. Daí uma reação que não pôde faltar de se produzir
contra aquilo que se chama de a exploração do fraco pelo forte, da maioria pela
minoria. E quando a maioria torna-se poderosa a seu turno, quer reformar, com ou
sem razão, este estado de coisas, e conduz-se de modo a socializar novamente as
fontes de riquezas, mesmo as imobiliárias, que um longo progresso anterior havia
individualizado [164]. Lembremo-nos, enfim, de uma consideração precedente e
apliquemo-la. Como cada onda de invenções industriais foi seguida, no passado, de
algum novo modo de apropriação, de alguma modificação no regime da
propriedade, seria muito surpreendente que, no decorrer de nosso inventivo século,
tão fértil em renovações da indústria agrícola, como em todas as outras, a
concepção do direito de propriedade não sofresse uma modificação bastante
profunda.
Uma palavra sobre a prescrição. “A duração requerida para que a posse se
transforme em prescrição, diz Viollet, é muito mais curta entre os povos jovens que
entre as nações avançadas em civilização.” Ela prolonga-se à medida em que a
nação se civiliza. Entre os germanos, antes da introdução das idéias romanas entre
eles, ela era de um ano. Entre os romanos, eles mesmos, no início de sua carreira
histórica, ela era de um e dois anos; mais tarde apareceram prescrições de dez
anos, de vinte, de trinta, de quarenta anos; e foram estas últimas que acabaram por
triunfar. Por que isto? Não vou procurar todas as causas. Mas não é evidente que
uma das principais é o progresso da arte de escrever e o hábito de registrar no
curso do desenvolvimento civilizador? Entre os primitivos, que são iletrados, não
se saberia combater uma posse recente senão pela prova verbal de uma posse mais
antiga, e a natureza desta prova é a de tornar-se rapidamente menos probante e
mais perigosa ano a ano. Mas quando a prova escrita de uma propriedade pôde ser
fornecida, a segurança e as garantias de verdade que ela ofereceu subsistiram quase
as mesmas durante longos anos. A invenção ou a importação e a propagação da
arte de escrever tiveram, pois, uma ação indireta das mais fortes sobre a evolução
histórica da prescrição em muitos países diferentes [165].
Não podemos encerrar sem tocar nas sucessões. É verdade que “o regime
sucessoral, consagrado pelos mais antigos usos da humanidade, seja em toda parte
o mesmo”, e que haja atravessado fases invariáveis? Eu vejo bem que, em geral, as
filhas são excluídas, assim como os ascendentes; – concílio que acarretará ao
matriarcado a primeira dessas duas exclusões [166]. Mas vejo também o Direito
nascente, entre diversos povos, hesitar entre a sucessão colateral e a sucessão
direta. Quando um homem morre, não se sabe muito se é seu irmão ou seu filho
que lhe deve suceder. E como sair desta enrascada? Ocorre sempre que o direito do
descendente seja preferido, finalmente, àquele do irmão? Não [167]. Na Arábia e
entre os astecas é o colateral que prevalece. “Em nossos dias ainda, – diz Viollet, –
na Turquia, como outrora em Kief, o Sultão tem por sucessor, não seu filho, mas
seu irmão ou seu tio.” O rio da evolução tem, pois, seus deltas, suas bifurcações
fortuitas. Outro exemplo. No início, entre os bárbaros, a eleição e a hereditariedade
partilhavam confusamente a devolução do poder real. Oscila-se entre um ou outro
desses dois princípios. Mas qual dos dois fixou-se? Ora um, ora outro. Se o
princípio da hereditariedade prevaleceu em quase toda a Europa, cada vez mais, à
medida em que as monarquias se enraizavam, o princípio da eleição excluiu
alhures seu rival, notadamente na Polônia, por conta do próprio desenvolvimento
da realeza.
Dir-se-á, por acaso, que o direito de primogenitura foi uma fase universal e
necessária do regime sucessoral? Mas ele era desconhecido em Roma e em Atenas
[168]. E eu acredito que Fustel de Coulanges, ele mesmo, viu-se bem embaraçado
para encontrar-lhe o gérmen nas instituições do Império Romano. O mundo
semítico ignorava-o também. O que contribuiu para sua propagação foi o exemplo
das classes superiores, onde se implantou primeiramente. Hoje o direito de
primogenitura é praticado em todas as classes do povo inglês, mas começou como
privilégio da nobreza. Um direito opositor ao direito de primogenitura, o direito de
juveigneur, existia entre os germanos, os celtas, os tártaros nômades e outros
povos.
É sobretudo a propósito das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou
poder ter seqüência. D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à
hereditariedade fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade [169], à geração
alternante, à pangênese [170] de Darwin, à perigênese [171] de Hoeckel, e tudo
para justificar dessa sorte o direito à herança. Eis seu raciocínio: se está
demonstrado que as virtudes, os vícios, as doenças, os caracteres quaisquer se
transmitem hereditariamente, está provado que os bens devem se transmitir da
mesma maneira [172]. Aliás, por uma razão biológica que me parece melhor, ele
trata de mostrar que o direito de sucessão e o direito de propriedade são, no fundo,
idênticos. Mas, com argumentos desse gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto
de que a criança é a continuação fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do
plasma germinativo”, de acordo com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho
responsável por todas as contratações e todas as faltas do pai. As sociedades
primitivas, eu reconheço, bem antes de toda iluminação antropológica, editaram
essa solidariedade familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em
romper esse feixe natural, para permitir a esses elementos disjuntos a formação de
associações verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a
necessidade de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos
naturalistas. É necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim
de curvar servilmente, às exigências de seu organismo, suas instituições sociais,
mas a fim de empregar este conhecimento na realização de fins sociais, de
desígnios coletivos, mesmo quiméricos às vezes, de planos de reorganizações
nacionais ou humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único
a poder fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais. Nascidas das
funções vitais, as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e
subjugando a seu turno [173]. O homem social faria bem em conhecer a ciência
enciclopédica, seu querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga
medida, numa medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado
sua onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? –
perguntar-se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo
saberia. Eu digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se
satisfazendo, sua ambição mais elevada, aquela de conhecer. O universo inteiro
não apresenta à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a
ela criar seu objetivo. Ela o criará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a
si própria, penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única,
estendendo-se socialmente, pela luta e pelo amor, de onde eclodem as inspirações
ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas, do fundo do coração.
Capítulo Cinco
Obrigações
I. Erros acreditados. Pretendida ausência do contrato
primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações.
II. Obrigações contratuais. Sua antigüidade. Freqüentes
entre os membros do grupo social primitivo, raras de
grupo para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções,
“pleiges”. O executor contratual no Egito e na Grécia.
Arras. Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas
escriturais, abrandamento de cerimônias,
aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das
penalidades e dos procedimentos. Faculdade de
retratação. Causas de nulidade. III. Obrigações não
contratuais. Sua proporção é crescente? Importância
teórica exagerada da idéia de contrato. A vontade
unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato,
comando reflexo e recíproco. IV. Obrigação nascida da
combinação de uma vontade com um juízo. Leis de
causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo
intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral.
V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma
mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do
silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação,
do mesmo modo, nítidas e gerais.
I. Erros acreditados.
Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções.
Verdadeira fonte das obrigações.
Eis que voltamos ao nosso assunto. A obrigação jurídica não é senão uma
espécie da qual o gênero é uma obrigação moral, espécie ela mesma de um gênero
mais vasto, formado, – já o dissemos, – pelos deveres de finalidade. Quando eu me
sinto obrigado a alguma coisa, é sempre porque eu desejo obter uma vantagem ou
evitar um prejuízo, e porque acredito atingir este objetivo, fazendo alguma coisa.
Mas esta obrigação moral não é jurídica, senão quando ela entra nas categorias de
deveres onde o legislador, anônimo ou nominado, costume ou rei, tradição ou
maioria parlamentar, sente, mais ou menos, a obrigação de sancionar, porque ele
deseja tal ou qual fim designado pela vontade geral, e porque ele acredita útil,
desse ponto de vista, consagrar essa natureza de deveres, ter à mão sua execução.
Esta explicação tem a vantagem de aplicar-se igualmente a todas as espécies
de obrigações jurídicas, sejam elas involuntárias e formadas sem contrato, ou
voluntárias e contratuais, ou voluntárias e unilaterais. Por exemplo, minha
obrigação de servir sob a bandeira e de pagar minhas contribuições, cargas
impostas por meu próprio nascimento e sem meu consentimento, fundamenta-se
sobre estes dois silogismos, um deles feito por mim: “Eu desejo o bem de meu
país. Ora, eu acredito ser-lhe útil assim. Logo, eu devo agir assim.” Ou bem: “Eu
desejo não ser atingido por uma condenação judicial. Ora, eu acredito que seria
perseguido correcionalmente, se eu me abstivesse dessas patrióticas corvéias.
Logo, não devo abster-me”. E outro feito pelo Estado: “Eu quero estar armado para
fazer-me respeitar por meus vizinhos. Ora, eu creio que, sem a circunscrição
militar e sem os impostos atuais, eu estaria desarmado. Logo, devo constranger os
cidadãos ao serviço militar e ao pagamento de impostos.”
Por exemplo ainda. Uma casa é vendida por dez mil francos a crédito. Antes
da conclusão deste contrato, cada uma das partes sente-se no dever de concluí-lo,
porque cada uma delas diz: Eu desejo mais adquirir dez mil francos (ou esta casa),
do que arrepender-me de me despojar desta casa (ou de dez mil francos). Ora, eu
creio que, mediante a cessão desta casa (ou deste dinheiro), haveria este dinheiro
(ou esta casa). Logo, devo fazer este negócio. – Mais uma vez o contrato formado
pelo assentimento dessas duas conclusões silogísticas, a obrigação moral de
executá-lo, para o comprador como para o vendedor, fundamenta-se sobre um
silogismo diferente: “Eu não quero ser desonrado aos olhos de meus semelhantes
ou aos meus próprios olhos. Ora, eu acredito que o seria, se não me ativesse às
minhas contratações. Logo, eu devo ater-me a elas (quer dizer, entregar a casa ou
pagar o preço).” Esta obrigação é jurídica, porque o assentimento destas duas
conclusões está de acordo com a conclusão seguinte, tirada pelo legislador: “Eu
quero a paz pública, eu quero a prosperidade geral. Ora, eu creio que a manutenção
forçada das convenções desse gênero (cumpridas em certas condições, como
adiante será dito) pode evitar conflitos entre os cidadãos, e porque isso assegura, na
média dos casos, a maior vantagem para todos. Logo, eu devo impor à força o seu
cumprimento.”
Mesma explicação para as obrigações nascidas de uma promessa ainda não
aceita, seja porque ela se endereça ao público, seja porque ela se endereça a um
deus, a um morto, a um ser imaginário ou relegado a uma majestade silenciosa,
numa misteriosa obscuridade. O industrial, que lança prospectos ou oferece sua
mercadoria com abatimento, ao arrepender-se a seguir, diz a si mesmo: “Não
quero prejudicar meu crédito. Ora, eu acredito que o depreciarei, não executando
minha promessa. Logo, devo ater-me a ela.” E o legislador, neste caso, onde, sob
forma mais ou menos desviada, transforma esta obrigação moral em obrigação
jurídica: “Não quero prejudicar o crédito público, condição da prosperidade geral.
Ora, eu acredito que ele seria abalado pela não execução impune destas ofertas
comerciais. Logo, eu devo sancioná-las.” Sob os imperadores romanos, sob os
Severos, por exemplo, um armador fez voto a Mercúrio de erguer-lhe um pequeno
templo à beira-mar, se o seu navio regressasse com segurança ao porto. Este voto
criou, aos olhos dos pagãos, uma obrigação que, depois de não haver sido, por
longo tempo, senão uma obrigação moral, cuja violação desonraria seu autor,
terminou por receber a consagração da lei civil. Bem mais, essa obrigação passou
aos herdeiros daquele que se obrigou desse modo. Dir-se-ia seriamente, – como se
tem ousado, – que a força obrigatória do voto lhe vem daquilo que é “reputado
como um contrato com os deuses”? Mas, aos olhos dos pagãos, eles mesmos, não é
verdadeiro que os deuses hajam, necessariamente, dado seu consentimento; e, aos
olhos dos cristãos, é demonstrado que os deuses, esses demônios impuros, deram e
fizeram conhecer sua adesão a essa promessa, na qual o armador havia bem
contraído uma ligação com eles. O voto não seria obrigatório moralmente. O
legislador sectário do Cristo não teria a idéia de sancioná-lo civilmente. Não. Se o
nosso armador se sente obrigado, é porque ele quer o retorno de seu navio e
acredita no poder de Mercúrio para o efeito de seu voto; e, se sua contratação tem
efeitos jurídicos, é porque o legislador pagão, desejoso da segurança pública, e
persuadido, como quase todo mundo em torno dele, de que um voto piedoso, se
fosse violado, atrairia a cólera dos deuses sobre todo o Império, sente-se no dever
de impedir essa calamidade.
Isso é tão verdadeiro que, se antes do retorno do seu navio, o armador em
questão se convertesse ao cristianismo e cessasse de acreditar na existência ou no
poder de Mercúrio, ele cessaria de estar moralmente obrigado. Produzir-se-ia
então esta grave anomalia: ele permaneceria juridicamente obrigado a fazer o que
sua consciência lhe interditara cumprir. Mas, quando o inconveniente social desses
conflitos entre Moral e Direito, flagelo reservado aos tempos de crise religiosa,
houver atraído a atenção do próprio legislador, ele não faltará em dissipá-los,
subordinando aqui, e em toda a parte, a consagração civil das obrigações ao seu
valor moral. – Na hipótese inversa da precedente, quer dizer, no caso em que o
público, e também o legislador, convertem-se à nova religião, ou a novas idéias
filosóficas, a obrigação moral de cumprir seu voto subsistiria para o fiel que
permanecesse atrelado às suas velhas crenças, mas a força jurídica não se
acrescentaria mais. Tudo isso se explica da maneira mais natural do mundo, assim
como muitas outras dificuldades da mesma ordem, segundo nossa maneira de ver.
Explica-se do mesmo modo, – pela natureza e pela energia variáveis do
objetivo geral que o legislador perseguiu, e pela natureza e energia, não menos
variáveis, das opiniões que lhe serviram de guia, – a diversidade das legislações
relativamente à proporção das obrigações morais consagradas nas relações de
Direito. Explica-se, de modo semelhante, sua menor diversidade, sua relativa
uniformidade no que concerne às causas de nulidade das contratações civis. Os
vícios que as atingem são de duas espécies: aqueles que dão trato à maior, e
aqueles que dão trato à menor do silogismo moral do obrigado. A maior é viciada,
quando o desejo que ela exprime não emana da própria pessoa que se obrigou, de
seu caráter, mesmo de seus caprichos, espontaneamente manifestados do fundo de
suas idéias e tendência habituais e normais, mas foi sugerido de fora, por captação,
por abuso de autoridade ou por um acesso de loucura. A menor é viciada, quando a
crença que ela contém é, não o resultado de experiências, de leituras, de viagens,
das circunstâncias morais onde é formada a inteligência do indivíduo que se
obriga, mas o efeito de uma mentira interesseira ou de um erro devido a uma causa
doentia, tal como uma ausência de memória subseqüente a uma febre tifóide ou a
um enfraquecimento senil. É evidente que estas alterações psicológicas nas
contratações, – sempre quase as mesmas entre todos os homens, e fáceis de prever
pelos legisladores de todos os países, – retiram, da contratação assim formada, na
média de dos casos, a vantagem social que apresenta o conjunto das contratações
normais.
Também assim as obrigações morais, ou de preferência, em geral, imorais,
proibidas pela legislação, tais como as dívidas de jogo às vezes, os estatutos das
associações criminosas, etc. A lei opõe-se então, como toda a sua força, à execução
dessas contratações julgadas por ela contrárias ao interesse público. É que existiu,
nesse caso, precisamente o inverso da consagração jurídica, conflito e não acordo
de conclusões entre o silogismo moral do obrigado e aquele do legislador.
Mas, na realidade, o trabalho mental que se opera, seja entre o obrigado, seja
entre o legislador, é mais complexo do que acabamos de dizer. No espírito, seja de
um ou de outro, de ordinário, não apenas um único silogismo é formado, mas um
combate ou um concurso de silogismos. E é isso que vai mostrar a íntima relação
da teoria jurídica das Obrigações com a teoria econômica do valor. – De uma parte,
não é nunca sem hesitação, sem oscilações íntimas, que o obrigado se decide a
contratar ou se resigna a aceitar sua obrigação. Ele deve, rapidamente, ou por
muito tempo, contrabalançar sua deliberação, as vantagens que lhe advirão de sua
obrigação com os sacrifícios que lhe vão custar, ou seja, deve confrontar desejos
com desejos, crenças com crenças. Um homem que hesite em trocar um cavalo por
um quadro, faz pequenos raciocínios interiores, por onde conclui, ora que deve, ora
que não deve fazer a troca; ou seja, ora seu cavalo vale menos que o quadro, ora
vale mais. “Eu gosto muito de equitação e acredito que dificilmente substituirei
este cavalo. Logo, não devo trocar. – Eu amo muito as telas desse mestre e acredito
que, se perder essa ocasião, não a encontrarei mais. Logo, devo trocar meu cavalo
por ela.” A luta se estabelece entre estas duas conclusões opostas, engendradas por
umas ou outras premissas; e toda idéia, toda influência superveniente, que tiver por
efeito fazer baixar ou elevar o nível do desejo ou da crença na maior ou menor de
cada um desses silogismos, fortificará ou enfraquecerá tal conclusão, elevará ou
baixará o valor aparente de tal objeto, decidirá enfim o resultado da batalha.
De outra parte, o legislador, quando consagra uma obrigação, quando edita
uma disposição qualquer que cria uma obrigação de fazer ou de não fazer, sabe
muito bem que intervém na mistura de interesses opostos, para favorecer alguns a
despeito de outros. Ele, pois, ele também, escolhe e sacrifica, pesa valores
relativos, dando aqui, à palavra de valor, um sentido, não individual como a toda
hora, mas geral e, em aparência, impessoal, ainda que o valor, em sentido superior,
não seja, no fundo, senão a resultante de inúmeras estimativas pessoais
silogisticamente concluídas. – Se se tratam de contratos? Ele espera tanto quanto
possível e, salvo o caso em que o Estado é, ou se acredita, interessado em proteger
uma das partes contra a outra, por exemplo, no casamento, a igualdade das
vantagens obtidas e dos sacrifícios consentidos pelos dois no conjunto das
convenções; e, se ele, Estado, acredita que uma cláusula, que uma particularidade
qualquer faz geralmente, e com exceções, pender a balança de um único lado, ele
deve anular o contrato atingido desse vício. Existe, na consagração das convenções
livremente formadas, uma presunção de equivalência de vantagens, de equação de
valores. Esta é a razão pela qual se dá força de lei a essas ordens recíprocas que se
endereçam às partes contratantes, como se tais ordens emanassem dele, Estado. E a
prova de que esta presunção está bem no fundo de seu pensamento, é que, quando
ela é formalmente contraditada por certos fatos, ele anula de fato o contrato. Ou
bem, por antecipação, ele coloca regras às quais ele espera que os contratantes
devam conformar-se; e estas regras são aquelas que, por sua vez, parecem-lhe as
mais próprias a impedir a exploração de uma parte pela outra. É nos contratos
especiais, – venda, locação, empréstimos a juros, etc., – que estas regras se
multiplicam e tem manifestamente esse objetivo (por exemplo, limitação legal da
taxa de juros). – A convenção particular que tem meu casamento é consagrada pelo
legislador com restrições que, em geral, possuem um outro desígnio aqui, ele não
deseja, senão secundariamente, a igualdade de vantagens que podem procurar os
esposos. Sua preocupação maior é o interesse do Estado que exige, a todo preço,
mesmo ao preço da sujeição da mulher, ou da indissolubilidade tirânica do liame
matrimonial, a procriação de novos cidadãos. – Ele deixará aliás, e deverá deixar,
uma margem de liberdade mais ou menos ampla à vontade dos contratantes,
segundo as aspirações e as opiniões mais ou menos liberais de seu país e de seu
tempo, partilhadas sempre por ele mesmo. Em Direito israelita, uma venda de bens
móveis está rescindida por causa da lesão de um sexto do preço; entre nós, esta
causa de nulidade não existe para as vendas de bens móveis, porque ela seria um
entrave irritante à nossa grande atividade comercial; e, para os imóveis, a lesão que
dá abertura ao direito de rescisão deve ultrapassar os sete doze avos do preço de
venda. Em suma, nas regras sobre os contratos, o legislador não perde jamais de
vista o quadro dos diversos valores, tal como ele se apresenta a um dado momento
e em dado lugar, e ele deve tê-lo sempre presente, para impedir que um contratante
explore o outro além de uma certa medida, determinada ela mesma pelo estado da
opinião. Não é preciso senão pesar, consciente ou inconscientemente, as utilidades
e as privações, assinar limites ao jogo de vontades que, para adquirir as utilidades
esperadas, permitem privações freqüentemente desproporcionais. – E se se
tratarem de obrigações formadas sem contrato? É o mesmo problema. Não existem
ainda para a autoridade legislativa senão interesses indiferentes a avaliar.
Do mesmo modo, pois, as modificações aportadas ao sistema de valores têm
por efeito, – nós o vimos, – modificar a escala dos delitos e das penas, transformar
o Direito criminal: do mesmo modo, elas têm por conseqüência, com o tempo, a
reforma da legislação civil. Elas comandam fazer interditar certas coisas permitidas
outrora, ou comandam permitir certas outras proibidas antigamente. As proibições
ou os entraves muito tempo opostos à venda de bens rurais foram suprimidos em
nosso regime moderno, e foram mesmo substituídos, em nossos dias, pois leis tais
como o Ato Torrens, que favorecem as alienações de imóveis. É que a estabilidade
hereditária das propriedades em cada família tinha, aos olhos de nossos ancestrais,
um valor de primeira ordem, pouco a pouco diminuído, e, hoje, a mobilização dos
imóveis, por assim dizer, parece ser devida, ao contrário, a uma vantagem
eminente. É assim que o estrangeiro, o adquirente vindo de fora, era reputado
inimigo, e agora é hóspede amado e mimado, o modelo copiado. – Entre o
interesse do credor em fazer penhorar todos os bens móveis ou imóveis do
devedor, e o interesse do devedor em torná-los impenhoráveis, que fará a lei? Isso
depende de qual dos dois lhe pareça valer mais, à razão das necessidades sentidas
em sua época e dos juízos acreditados sobre os melhores meios de as satisfazer.
Entre os georgianos, de acordo com o velho direito, e também entre muitos outros
povos bárbaros [204], a penhora poderia atingir todos os móveis e, à sua falta, a
própria pessoa do devedor. Mas os imóveis de família eram impenhoráveis. Entre
nós, onde a sociedade tornou-se mais ambiciosa de progresso que de duração, e
persuadiu-se de atingir melhor seu objetivo pela proteção do indivíduo que pela
conservação da família, todos os imóveis podem ser penhorados, mas não todos os
móveis: as ferramentas profissionais são excetuadas e alguns móveis
indispensáveis; e a pessoa do devedor, o mais insolvente, é liberada de todo
constrangimento. – Entre os ossetos do cáucaso, tudo pode ser vendido na grande
casa comunal, salvo o caldeirão de cobre e a corrente de ferro que o suspende ao
fogão, objetos sagrados, espécies de fetiches domésticos aos quais se atribui o mais
alto valor social, porque eles são reputados necessários à perpetuidade das
comunidades familiares, sonho supremo desses corações simples.
Segue-se disso que, se uma boa teoria do valor nos informa as causas gerais
que fazem variar continuamente o sistema de valores, o economista indicaria por
aí, ao legislador, em que sentido, quando essas causas funcionam, deve ser
remanejada a legislação [205]. Ora, não é manifesto, de acordo com o que precede,
que essas causas, em última análise, são as invenções, as descobertas, as inovações
individuais propagadas pela imitação, cega ou racional, inconsciente ou reflexa?
Em definitivo, um objeto vale tanto mais quanto mais se deseja um certo bem, e
quanto mais se acredita esse objeto capaz de produzir esse bem [206]. Mas o que é
então que fortifica e generaliza um desejo, que o superexcita e o propaga, a não ser
aquilo que o satisfaz mais abundantemente, aquilo que coloca sua satisfação ao
alcance de um maior número de homens, ou, dizendo de outro modo, uma idéia de
inventor? A invenção da pólvora fortificou e difundiu a sede de conquistas
militares; a invenção da imprensa, a paixão pela leitura; a invenção das estradas de
ferro, a febre da locomoção. E o que é que faz aumentar e difundir uma crença, a
não ser a ação prestigiosa de um apóstolo original, ou a magia do estilo de um
escritor superior, ou o ensinamento de um sábio esclarecido pela descoberta de
fatos? Sem a invenção das estradas de ferro, o legislador francês do século XIX
não teria, sem dúvida, editado a expropriação por causa da utilidade pública. Há
cem anos, julgava-se o direito de propriedade mais respeitável que a necessidade
de deslocamento rápido, e sacrificava-se este àquele. No presente, faz-se o
sacrifício contrário, porque a mania da locomoção, graças à invenção da
locomotiva, foi decuplicada, centuplicada, e porque as estatísticas, habilmente
imaginadas sobre a comparação entre os acidentes de diligência e os de estradas de
ferro, recompensou e vulgarizou a confiança do público na segurança deste último
meio de transporte, de onde a conclusão de que a lei deveria autorizar a passagem
das vias férreas através dos domínios de proprietários eventualmente recalcitrantes.
– O que importa sobretudo observar são as variações de intensidade ou de direção
aportadas por um séquito de grandes homens ao grande desejo coletivo de uma
nação, à sua paixão nacional que subordina naturalmente todos os fins individuais,
tritura-os, dobra-os ou emprega-os. Desde Maomé, que suscitou em todo seu povo
o sonho ardente da propaganda religiosa à mão armada e a fé na vitória, esse
fanatismo e essa fé declinaram sob certos califas e reacenderam sob outros, graças
a reformadores inspirados; e, segundo essas vicissitudes de almas, a obrigação
jurídica de participar da Guerra Santa, de cumprir a peregrinação à Meca, de jejuar
durante o Ramadã [207] era inscrita em primeiro ou segundo lugar, mas bem
raramente em último, na lista dos deveres mais sagrados.
Seria fácil, mas inútil, multiplicar os exemplos. Já disse o bastante para
justificar minha proposição, que a teoria das obrigações e a teoria do valor, em
correlação íntima uma com a outra, ligam-se, ao mesmo tempo e com muitas
outras, à teoria do silogismo devidamente renovado. A lógica, – vê-se, – uma
lógica rigorosa, governa os fenômenos psicológicos e os fenômenos sociais, vistos
sob um certo ângulo, como a mecânica rege os movimentos físicos. E mesmo, para
falar com propriedade, a lógica assim estendida não é outra coisa senão uma
mecânica mental e social, da qual as regras, tão rigorosas quanto universais e
permanentes, regem os encontros dessas forças concorrentes ou opostas que
chamei crenças e desejos [208], verdadeiras quantidades íntimas suscetíveis de
crescer e de diminuir indefinidamente, sem mudar de natureza, ainda que mudando
de objeto, e que, adicionadas umas às outras, subtraídas umas às outras,
combinadas umas às outras, explicam todas as revoluções morais, portanto,
políticas e jurídicas, da humanidade.
Vê-se, a história das sociedades parece-nos, a nós mesmos, submissa a leis, e
a leis muito precisas. Mas, vê-se também, essas leis não perturbam em nada a rica
diversidade das evoluções sociais, como certas fórmulas estreitas que têm a
pretensão de canalizar esses grandes rios, esses Renos, esses Nilos, esses
Mississipis caprichosos e selvagens. Nossas leis, ao contrário, afirmam a
necessidade deste capricho e desta exuberância, a necessidade, por assim dizer,
dessa liberdade. Porque é impossível não se constatar a importância capital
concedida mais acima, na produção das forças sujeitas à jurisdição dessas regras,
ao acidente individual do gênio, à iniciativa pessoal. Eu não pude citar senão
poucos nomes de inventores ilustres. Mas quem de nós não inventa e não inova em
algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que
imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo
mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma
modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos?
Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja
misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível,
escapa à sonda do psicólogo. O sotaque parisiense, no momento atual, é o eco
sintético de todos os timbres de voz que têm caracterizado cada um dos habitantes
de Paris após inumeráveis gerações; nossa espirituosa construção gramatical, em
nossa época, é a síntese de incalculáveis gêneros de espírito, todos inesperados à
sua aparição e dotados de um encanto inteiramente próprio; nossa pintura francesa,
nossa poesia francesa contemporânea são um belo novo onde se condensam todos
os belos novos sucessivamente descobertos por gerações de poetas e de artistas;
nosso ideal nacional ou humanitário, a cor de nosso patriotismo ou de nossa
filantropia, de nosso próprio pessimismo ou de nosso misticismo, são herança
acumulada de inumeráveis formas de devotamento, de sofrimento ou de amor,
inventadas por alguma alma particular, reputada passageira, e propagadas cada
uma por sua vez. Cada aspecto social, cada estado social não é, de qualquer sorte,
senão a integração de infinitesimais invenções, de infinitesimais novidades
aportadas por seres onde cada um, em verdade, foi único em si, sem falar dos
grandes personagens; e eis por que esse estado ou esse aspecto, ele mesmo, não foi
senão uma vez e não se o reverá mais; e eis por que não é permitido falar de uma
sucessão desses estados ou desses aspectos, porque seria submergir numa corrente
banal. Nenhum sociólogo de há dois mil anos, por esclarecido que se o supusesse,
teria previsto a fisionomia de nossa época, o gênio da França ou da Alemanha
atuais. E toda época tem sua fisionomia, porque nós temos todos a nossa; e toda
nação tem seu gênio, porque milhões de homens têm o seu, humilde ou ilustre,
latente ou patente. Existir é diferir. Nossas semelhanças, que o sábio estuda,
nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença
essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que
pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente, que
não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas
fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra. Para dar contas da própria
evolução orgânica, Darwin deveu postular essa floração espontânea e incessante de
variações individuais, inexplicável fundamento de suas explicações. A fortiori,
toda interpretação da História humana requer esse postulado, cheio de
desconhecido e de esperança. Único, ele justifica nosso interesse apaixonado por
esse drama sem fim, quotidianamente renovado, e nossos sacrifícios, e nossos
esforços infatigáveis para preparar sua ação futura, que permanece sempre um
enigma...
Capítulo Sexto
O Direito Natural
O Direito Natural e o Direito das Gentes entre os romanos
e os modernos. Razão de ser de sua dualidade e de sua
convergência. Ambigüidade da idéia de natureza: relação
intra-orgânica e relação extra-orgânica. Benthan e
Rousseau. Indeterminação essencial da idéia de Direito
Natural. Exemplos. Direito Internacional. Verificação
manifesta de nossas explicações neste ramo do Direito:
Mare liberum et mare clausum. Contrabando de guerra.
Antinomia da soberania dos Estados e da liberdade dos
indivíduos
Capítulo Sétimo
O Direito e a Sociologia
I. Novas críticas contra a idéia da evolução
uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição.
Pretendida necessidade de transformações. Mutações
jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou
interiores de idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo:
o Direito Armênio. Retificação de erros. II. Novas
considerações em apoio à importância da imitação. As
histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das
sociedades. Origens das instituições feudais. Costumes
pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine” .
Retomada linear. Direito de primogenitura. Simplificação
dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os
juristas. III. Desempenho da invenção e da lógica.
Desenvolvimento reputado análogo ao Direito
Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica
social. O gênio inventivo subordinado às grandes
necessidades do organismo. Dualidade destas
necessidades fundamentais, de nutrição e geração;
necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente.
Convergências ou coincidências das morais. IV. O Direito
e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.
Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três
grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação
para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação
para os fenômenos sociais propriamente ditos. Não quero repetir aqui [238] as
relações mútuas destes três agentes de analogia universal. É claro que se devem
levar em conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das
analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no
meio físico. Não é, pois, duvidoso que a influência dos climas e aquela das raças
não dêem a chave de um certo número de semelhanças observadas entre
sociedades de mesmo sangue ou que floresceram sob a mesma latitude. Mas muito
se tem exagerado a importância destas duas influências em Sociologia, porque se
despreza o papel dominante da terceira, que acaba sempre por usar as outras ou
imprimir-lhes sua marca. Aquilo que existe de contínuo, aquilo que existe de
necessário, aquilo que existe de submisso às leis cientificamente formuláveis, nos
fatos sociais, é o caráter comum a todos eles, e que é exclusivamente próprio ao
seu conjunto: o de serem imitativos ou imitados [239]. Imitação consciente ou
inconsciente, inteligente ou motora, instrução ou rotina, não importa. Falar, rezar,
trabalhar, guerrear, realizar obra social qualquer, é repetir aquilo que se aprendeu
com alguém que o aprendeu com outro alguém, e assim, em seqüência, até os
primeiros editores de cada uma das raízes verbais que se transmitem, de forma
idêntica, de boca a boca, desde há milhares de anos, como as ondulações luminosas
ou sonoras de átomo a átomo, ou até os primeiros autores de cada um dos ritos, de
cada um dos processos de trabalho, de cada um dos procedimentos guerreiros,
estocadas de esgrima, manobras, astúcias estratégicas que passam de homem a
homem ao longo de um tempo mais ou menos prolongado. Eu não digo que a
imitação seja toda a realidade social; ela não é senão uma expressão da simpatia
que lhe é preexistente e que ela redobra quando a expressa; e ela depende da
invenção, faísca da qual ela não é senão o fulgor. Ela começa por ser uma espécie
de serva da hereditariedade, por tanto tempo quanto o grupo social se reduza à
família e a transmissão de exemplos se limite ao estreito círculo dos parentes.
Depois, quando ela se liberta da geração, quando ela domina mesmo a seu turno,
tanto mais ela se curva sob uma outra regra: ela é subordinada, – nós o sabemos, –
às leis superiores da lógica, como a ondulação às leis da mecânica. Mas não é
menos certo que ela, sozinha, confeccione os tecidos sociais organizados pela
Lógica social. Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha
pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas variações geniais e fugidias, mas que
o sábio deve enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas mensuráveis,
únicas enumeráveis, únicas formuláveis em dados estatísticos ou em leis
científicas. O que era a física antes que a teoria da ondulação aí houvesse realizado
sua estréia e que muitas das leis da mecânica fossem conhecidas? Bem pouca
coisa. Tal será a Sociologia, enquanto dela não fizer parte, – uma larga e invasiva
parte, – a teoria da imitação.
Faltos de observarem a universalidade, a continuidade, a importância maior
do fato da imitação na História, muitos arqueólogos, muitos historiadores, mesmo
os mais circunspectos e os mais lúcidos, são conduzidos às mais errôneas induções.
Por exemplo: Não foi o estranho esquecimento desse fato elementar que, por longo
tempo, permitiu acreditar-se no abuso extravagante dos mitos solares? [240] Vê-se-
os em toda parte, não apenas lá onde eles realmente existem, mas em quaisquer
lendas de todos os povos e até nas histórias infantis. Como se havia reencontrado o
tema da Pele de Asno, do Pequeno Polegar, do Gato de Botas, etc., quase idênticos
entre povos separados pelas maiores distâncias, ficou-se maravilhado com esta
coincidência e acreditou-se não se poder explicá-la de outro modo senão que pela
preocupação com um mesmo fenômeno exterior, visível e igualmente notável em
todos os pontos da Terra. E qual fenômeno preencheria melhor estas condições
senão os movimentos periódicos do Sol no céu, seu nascimento, seu crescimento,
seu declínio, sua morte, sua ressurreição? E então, com grandes reforços de
etimologias de fazer cair os cabelos, mediante a transformação de Barba Azul
[241] em Indra [242], sob o pretexto de que ambos eram barbudos, ou qualquer
outra assimilação insolente, chegou-se a fazer adotar esta hipótese engenhosa por
espíritos sérios. Não havia a idéia de dizer-se que, depois de séculos e séculos, a
imitação, seja de criança a criança, tão poderosa, tão constante, tão universal, seja
de adulto a adulto, durante as vigílias em que se repetem as fábulas próprias a
agradar aos espíritos incultos, trabalho que espalha os contos populares, seria
largamente suficiente para fazer compreender sua difusão de um lado a outro da
Terra, até entre os zulus, onde se descobriram algumas de nossas récitas lendárias.
Eis aí uma amostra entre milhares de erros grosseiros que seriam evitados
em se tendo em vista a ação imitativa; mas há erros mais sutis, mais difíceis de
perceber, dos quais ela preservaria também os melhores espíritos. Está-se bastante
inclinado, entre os sociólogos, a tomar a constituição feudal [243], tão complexa e
tão característica, por uma fase necessária da evolução social, de não importa que
raça ou que nação. Fustel de Coulanges, ele mesmo, após haver observado que o
regime feudal se produz entre populações que nada têm de germânico, Gália
meridional, Império Bizantino, países eslavos, Hungria, Irlanda, do mesmo modo
que entre os povos que nada têm de romano, conclui assim: “Ele é produzido em
todas as raças; não é romano nem germânico, pertence à natureza humana.”
Todavia, antes de recorrer à hipótese quase miraculosa de uma geração espontânea
desse regime singular, em toda parte o mesmo, eu não sei em quantos diferentes
lugares, não haveria lugar para procurar se sua ubiqüidade relativa, – exagerada
aliás, – não seria explicável pelas vias mais simples da geração social ordinária,
quer dizer, da imitação? Ora, todas as pesquisas do eminente historiador que acabo
de citar tendem precisamente a mostrar que os elementos disseminados do regime
feudal existiam quase todos nas instituições do Império Romano, e que seu
desenvolvimento simultâneo, sintético, foi o resultado de circunstâncias muito
particulares, em que o mundo romano ocidental, especialmente a Gália,
encontrava-se após a queda do poder imperial. O alódio [244] não seria senão o
domínio rural dos galos-romanos, a cidade; o benefício [245] não seria senão o
precário [246]; o patronato é completamente romano. A imunidade é uma extensão
dada às isenções de encargos municipais que os imperadores concediam às vezes.
Que mais o mesmo autor nos ensina aliás?– E isto é uma luz bem mais viva ainda
jogada sobre a questão. – Que os antrustiões reais [247], a relação do rei
merovíngio com seus fiéis antrustiões, foi o primeiro embrião do liame da
vassalagem... – Mas, se é assim, qual é a idéia que se oferece naturalmente ao
espírito? É que a síntese desses elementos múltiplos sob a forma do feudo, da
homenagem e dos serviços feudais é um feliz reencontro operado em algum lugar
do mundo romano, e não alhures, e, deste canto do mundo, propagou-se pouco a
pouco, entre próximos, graças às vantagens momentâneas e também à
popularidade contagiante da qual se beneficiou, como tudo aquilo que o vento da
moda leva à popa. Como sabemos que a marcha da imitação é uma cascata liberada
do alto para baixo da pirâmide social, e dos povos mais civilizados aos mais
bárbaros, acolheremos sem trabalho que a idéia dos antrustiões reais foi imitada
pelos grandes senhores, depois pelos pequenos senhores, em se modificando, e
que, uma vez constituída na nação romana, a feudalidade difundiu-se na Germânia
e um pouco em toda parte [248]. O fato é que se a viu nascer na Gália mais rápido
que em nenhuma outra parte aliás, bem mais tarde na Irlanda, na Dinamarca, na
Suécia, no Império Bizantino; e, se não se tem sempre a prova de que ela foi
importada de fora nos países em que se a constata [249], nada mais admissível que
esta conjectura. A idéia da ogiva é certamente mais simples que a idéia da
feudalidade, e sua aparição, idêntica em muitos centros diversos de propagação na
Idade Média, no Império Árabe e na cristandade separadamente, repugnaria muito
menos à razão. Têm-se todavia motivos para pensar que se a tomou dos árabes ou
que eles a obtiveram de nós [250], mas, em todo caso, o gênio humano economiza,
mesmo aqui, o custo de uma dupla invenção supérflua.
Tudo o que há de nítido, de preciso, de característico nas similitudes de uma
ordem qualquer, lingüística, religiosa, política, econômica, jurídica que os
evolucionistas tenham observado entre diferentes povos, mesmo muito distantes,
tem por causa a imitação. Tais são, não é de duvidar, as analogias surpreendentes
apresentadas, desses diversos pontos de vista, pelos hindus, pelos germanos,
eslavos, celtas, latinos, helenos, nações que se mais agruparam, sob o nome de
arianos, em uma mesma raça hipotética. Hipótese verdadeira ou falsa, mas que,
mesmo aqui, tem tido a culpa de embair o espírito filosófico e de fechar os olhos à
evidência. Por uma verdadeira petição de princípio, após haver concluído o
parentesco fisiológico desses povos, porque se haviam constatado semelhanças
entre suas línguas ou suas instituições, deixou-se pensar que elas eram semelhantes
porque eles eram parentes. Confundiram-se duas coisas que, mesmo que
estivessem relacionadas uma a outra nesse caso, nem por isso deveriam ser menos
distinguidas; tomou-se por uma herança vital o que não era evidentemente senão
uma herança social. A linguagem e a religião muito se transmitem em geral, e
salvo muitas exceções notáveis, dos pais aos filhos, os filhos não as herdam do
mesmo modo como herdam os traços físicos de seus pais; fala-se, não a língua de
sua família, se dela se está sempre separado, mas a língua das pessoas que se ouve
falar durante a infância. Isso é muito claro. Por que, pois, desde que se descobriu
um fundo comum de raízes verbais, de mitos, de processos, de formas
embrionárias de governo nas nações indo-européias, apressa-se a decidir que elas
tiveram ancestrais comuns, como se esta indução não sofresse qualquer dúvida?
Triste é que, uma vez a árvore genealógica dos soi-disant arianos definitivamente
traçada, assim como aquela dos semitas e de outras grandes famílias possíveis,
percebe-se, entre povos heterogêneos, similitudes senão lingüísticas, ao menos
religiosas e jurídicas, iguais em precisão e em importância àquela dos povos
reputados congêneres. Por exemplo. Os arianos, entre eles, não nos mostram, em
parte alguma, coincidência mais completa que aquela que, segundo Seignette
[251], revela-se entre os costumes dos árabes antes de Maomé e as instituições dos
romanos primitivos. “O poder paterno em todo seu rigor, a tutela perpétua das
mulheres, o testamento, a hereditariedade dos agnatos [252], dos chefes e dos
gentios, sua tutela, a tutela testamentária, o nexum, a pignoris capio, o abandono
noxal [253], o talião, a composição legal, as relações de patrão a cliente foram
costumes inscritos na Lei das Doze Tábuas. Eles correspondem a usos pré-
islâmicos identicamente semelhantes, dos quais alguns foram mantidos, outros
abolidos pelo Alcorão.” Se se relacionar a vizinhança da Arábia e da Índia, onde
reinaram costumes análogos, e a tendência mútua dos povos vizinhos a
emprestarem-se suas instituições civis, bem mais que suas religiões e sobretudo
seus idiomas, explicar-se-á sem trabalho essas semelhanças por uma ação
imitativa.
O que confirma esta interpretação são muitos outros pontos de contato
jurídico entre arianos e semitas. Eles apresentam uma tal precisão que sua aparição
espontânea é absolutamente inconcebível. Foi espontaneamente que se pôde
produzir a estreita similitude do direito criminal ou civil israelita com a legislação
ateniense e os costumes hindus? Em Israel como em Atenas, o direito de asilo era
aberto em certos lugares designados aos homicidas involuntários; a vingança do
sangue não podia realizar-se, senão após conduzir-se o culpado perante os juízes e
fazê-lo condenar, se agiu com intenção de matar. Aliás, a influência grega trai-se
claramente nos códigos rabínicos, pelo emprego de palavras técnicas tomadas do
grego (Dareste). Em Israel, como na Índia, existe a responsabilidade penal dos
habitantes das comunas. Como na Grécia e na Índia, o irmão deve desposar a viúva
de seu irmão morto sem filhos; e, enquanto a Lei ordena, entre diversos semitas, a
prostituição das filhas, ela a interdita entre os hebreus. O credor israelita pode fazer
penhorar os móveis de seu devedor, mas não tem o direito de penetrar em sua
morada. Ele deve esperar à porta: último traço, sem dúvida, – diz Dareste, – do
antigo costume de constranger pelo jejum, do qual falam o Código de Manu e as
leis irlandesas. Como os germanos de Tácito, os israelitas possuem a instituição da
Ketubá [254], dote constituído pelo marido a sua mulher. “O marido, que é o
único a ter o direito de divórcio, compromete-se a não usar deste direito, senão
mediante o encargo de pagar à sua mulher uma certa soma”, que é a ketubá,
garantia engenhosa concedida à esposa contra a onipotência marital. O Direito
Hebraico tem também traços de semelhanças marcantes com o Direito Romano,
notadamente por uma certa maneira de redigir o contrato de venda, que relembra
nosso testamento místico. – Manifestamente, tais concordâncias não saberiam ser
inatas.
Muitos fatos que devem parecer anomalias, se se lhes aplicar a fórmula
estreita da evolução, são conseqüências muito simples do princípio da imitação.
Por exemplo, o direito de aubaine, este odioso costume próprio aos tempos da
barbárie, não se atenuou, mas, ao contrário, agravou-se desde os tempos
merovíngios até a belle époque da Idade Média; isto é, à medida em que a Europa
se civilizava ou se desbarbarizava. No início, segundo Viollet, ele não se exercia
senão contra os estrangeiros desconhecidos e sem consideração, e não contra os
estrangeiros conhecidos e considerados. Mas, pouco a pouco, estendeu-se a todos.
Eis um singular progresso jurídico e bem às avessas do que se poderia predizer de
acordo com as fórmulas em curso. Mas explica-se o fato, seja por considerações de
ordem fiscal, seja, – eu creio, – em se relacionando sobretudo que, sob os
merovíngios, malgrado a barbárie da época, a sobrevivência das estradas romanas e
dos hábitos romanos de viagem multiplicava os contatos assimiladores com o
estrangeiro e deixava ver ainda nele um compatriota social; ainda mais que o
fantasma do imenso império reinava sempre nas imaginações. Mas, mais tarde,
quando a feudalidade estabelecida encerrou cada feudo em si, sem comunicação
com os de fora, estrangeiro e inimigo voltaram a ser sinônimos. Depois, nos
séculos XV e XVI, o movimento de viagens, de relações internacionais e
interfeudais é retomado, anima-se e conduz à supressão do direito de aubaine.
Às vezes a imitação parece não ter nada a ver em certas similitudes
históricas que a identidade da natureza humana parece suficiente para explicar; e
todavia é incontestável, de sua parte, e de larga parte, que ela tem ação. Porque, ao
lado da imitação irradiante, existe a imitação difusa, e, ao lado da imitação em
linha direta – por assim dizer, que reúne duas coisas uma a outra por uma série de
cópias, – há a imitação colateral que, por séries do mesmo gênero, relaciona-as
separadamente a um modelo comum, muito antigo às vezes. À forma difusa da
imitação importa muito considerar. Assim, notam-se curiosamente similitudes
surpreendentes que apresentaram a organização dos exércitos sob os imperadores
dos últimos séculos, – caixa de dotação da armada, causas de exceção, exoneração
mediante uma soma em dinheiro variável, etc. – e sob o Império napoleônico.
Tem-se observado também, e Taine [255] foi um dos primeiros, que a
administração romana em geral, após a reforma de Diocleciano, parecia-se
espantosamente com a que saiu pronta do cérebro de Napoleão. É de crer todavia
que o grande corso haja copiado Diocleciano? Não diretamente ao menos. Mas
como ele, e não menos que ele, estava romanizado e latinizado até a medula dos
ossos pela educação clássica; e, independente de toda influência racial, não é
surpreendente que esses dois grandes espíritos batidos pela sorte, semelhantemente
à efígie de Roma e de César, hajam concebido o mesmo programa de
reorganização militar e civil em conjunturas um pouco análogas.
Mostramos muitas vezes, mais acima, um outro gênero de ação indireta, de
uma importância capital. O funcionamento prolongado da imitação em todas as
ordem de fatos sociais tem-se exercido sobre o Direito, alargando incessantemente
o círculo de simpatia e de fraternidade. A civilização, a bondade, a justiça jamais
puderam florir aqui embaixo, senão no cercado, onde devem existir sem cessar,
recuadas dentro de muros, até que estas plantas preciosas possam um dia ser
cultivadas em plena terra. Nós não o veremos. Mas talvez possamos fazer observar
a ação direta, imediata, da imitação sobre o Direito, quando ela tem a ele próprio
por objeto. É através dela que, com o tempo, a unificação jurídica das diversas
classes e das diversas províncias de uma nação não pode deixar de operar-se. Ela
unifica as classes tanto quanto as províncias pela eterna tendência de o inferior
imitar o superior. O costume jurídico dos grandes desce, através dos diversos
estágios da nobreza, às últimas classes da plebe, e tende a fazer desaparecer a
diversidade de seus costumes próprios. De modo semelhante, as grandes cidades
passam suas legislações às pequenas, as pequenas aos burgos, e sua costumeira
disparidade desaparece. As nações mais brilhantes irradiam-se do mesmo modo
sobre as mais obscuras. Já indiquei acima a descida contagiosa do direito de
primogenitura da nobreza ao povo. Retomemos este instrutivo exemplo. No início
do período feudal, o direito de primogenitura e o direito de masculinidade, ligados
conjuntamente, não se formularam no princípio com precisão, senão que para a
sucessão real. Depois, os grandes senhores, a seu turno, e, após eles, todos os
possuidores de feudos [256] modelaram-se sobre o rei. Todavia, os plebeus
permaneceram ainda fora desse movimento. Nas colônias de São Luiz diz-se que o
pai plebeu não pode avantajar a um de seus filhos, mesmo em face de móveis e de
bens adquiridos. Dito de outro modo, os plebeus tinham então o privilégio de viver
por antecipação sob o império de uma legislação igualitária e democrática.
Tiveram eles a idéia de apreciarem sua felicidade? Não. Eles não tiveram senão o
mais vivo desejo de copiar o exemplo retrógrado vindo do alto. A partir do século
XVI, talvez antes, a plebe vangloriava-se de ter também o direito de fazer um
primogênito. Em Béarn [257], a regra aristocrática estendeu-se à herança dos
plebeus. Do mesmo modo, na Normandia “a indivisibilidade dos grandes feudos,
consagrada pela Corte de Justiça [258] e pelo Grande Direito dos Costumes,
estendeu-se, com os anos, aos simples subvassalos, aos feudos ordinários e aos
plebeus com terras adquiridas mediante aluguel, mas que se poderiam adquirir a
termo fixo [259], e, nesta província, a igualdade da partilha não era observada
senão para os bens de herança plebéia [260], que formavam uma classe
intermediária entre o feudo e o alódio.”
Não quero dizer por aí que a imitação haja sido aqui, não mais que em toda
parte aliás, cega e desinteligente. Se se imita o superior, não é apenas por
“sugestão”, é também por vaidade ou por um interesse familiar. Os pais plebeus
julgavam o direito de primogenitura muito próprio a consolidar e elevar sua
família. Mas não se deve esquecer que, se este objetivo, a perpetuidade e a
ascensão social da família, entrou e ancorou-se em seu coração, a visão da nobreza
não era estranha a esta preocupação, de nenhum modo espontânea entre os hilotas.
Qualquer que seja, aliás, a causa da imitação, é seguro que se imita e que, se não se
houvesse imitado, jamais o direito de primogenitura reinaria em toda parte onde se
o viu estabelecido no século XVIII.
Outro exemplo. “A retomada linear [261] introduziu-se primeiro apenas para
os feudos e foi a seguir estendida às heranças tidas por plebéias, mas com o mesmo
objetivo, para conservar as propriedades da família.” Vê-se, entre parênteses, pela
maneira através da qual esta retomada veio às famílias plebéias, que é difícil olhá-
la como um resto de um comunismo primitivo e soi-disant democrático. – Outro
exemplo ainda. Nos países de direito consuetudinário, com a dissolução da
comunidade, a mulher nobre tinha sozinha, originariamente, o direito de repudiar
ou de aceitar a comunhão, fazendo inventário nos quarentas dias que se seguiam ao
falecimento do marido. Mas, pelo final da Idade Média, “a prática tendeu desde
então a estender-se à viúva plebéia, que viria a desfrutá-la definitivamente na
reforma do Costume de Paris em 1580.
Segundo John (citado por Viollet), cada povo germânico tinha seu direito
próprio; mas, pouco a pouco, quando se estabeleceu o Império Franco, um único
desses Direitos, aquele dos francos, e aquele dos mais ilustres, dos francos sálios
[262], a saber, a Lei Sálica [263] suplantou todas as outras. A unidade jurídica
operou-se assim numa sociedade da mesma maneira que a unidade lingüística:
todos os dialetos são expulsos sob o nome de algaravias pelo dialeto invasor da
capital. – Num grupo de pessoas em contato, o mais civilizado comunica seu
Direito a seus vizinhos por uma sorte de exosmose jurídica. É assim que, na Idade
Média, o Direito Alemão penetrou na Boêmia e na Polônia. E ele introduziu-se
primeiro pelas camadas mais esclarecidas da população, pelas cidades. O Direito
de Magdebourg serviu de modelo à maior parte das cidades tchecas do Norte e a
quase todas as cidades polonesas. – A influência italiana, na mesma época fez-se
sentir na legislação dalmática.
De uma outra maneira ainda, em sentido diferente, a imitação trabalha para
unificar o Direito. Uma língua que possui muitos tipos de declinações ou de
conjugações termina, com o tempo, por dar preponderância a um desses tipos,
objeto de imitação crescente, sobre o qual se declinam ou se conjugam desde então
todas as palavras novas. Por que este modelo é imitado cada vez mais e, enfim,
exclusivamente? Unicamente porque ele era já um pouco mais imitado. A
imitação serve aqui de razão suficiente a ela mesma. Em latim, a primeira e
segunda declinações prevaleceram (rosa, rosae; dominus, domini). Em francês, a
primeira conjugação. Também todos os verbos novamente criados conjugam-se
sobre aimer, não sobre vieillir ou sobre recevoir. Diz-se hypnnotiser, magnétiser,
dérailler; não se tem idéia de dizer hypnnotisoir, magnétisir, déraillir. É o mesmo
em Direito. Quando um Direito possui muitos procedimentos próprios a alcançar
um mesmo objetivo, – por exemplo, muitos modos de libertação de escravos, – um
só dentre eles acaba por prevalecer e reduz os outros ao estado de velharias. Sob os
merovíngios, havia na Gália sete ou oito maneiras de libertar, umas de origem
germânica, outras de origem romana – pelo denário, pela lança, pela flecha, pela
Igreja, pela carta. – Mas no século VIII, a libertação pela carta, quer dizer, por
escrito, era a única usada. – Esta simplificação dos procedimentos, não sem
relação, – vê-se, – com o abrandamento dos processos que foi questão mais acima,
distingue-se todavia, do mesmo modo que a simplificação análoga das gramáticas
não deve ser confundida com o abrandamento fonético. Porque, freqüentemente,
não há motivo apreciável para preferir o procedimento ou a forma gramatical
escolhida. Não se dá o mesmo com outros gêneros de unificação, onde a imitação
aparece a serviço da razão. Por exemplo. No fim do Império Romano, vemos
justaporem-se, de acordo com Fustel de Coulanges, muitas classes diferentes de
agricultores: “escravos trabalhando em comum, escravos com posse especial de um
feudo, pequenos fazendeiros livres, colonos fixados ao solo”. Ora, pouco a pouco,
a última classe, modificando-se, estendeu-se progressivamente, porque ela pareceu
apresentar mais vantagens, e afastou todas as outras. Na Idade Média, unicamente
ela existia.
É curioso notar a maneira pela qual a imitação jurídica age no mundo
especial dos magistrados e dos jurisconsultos. Aqui é altamente consciente e
reflexa; e responde a uma necessidade de uniformidade e de estabilidade tão
necessárias à segurança do sujeito à jurisdição, tanto que é, muitas vezes,
obrigatória. Mas, não fosse ela, pode-se assegurar que se operaria da mesma forma.
Entre as inumeráveis interpretações a que os textos legais, como os versículos das
Escrituras, são susceptíveis, o juiz deve escolher; e se ele escolhesse
arbitrariamente, em cada processo, sem preocupar-se com suas soluções passadas
nem se detendo perante espécies análogas, para as Cortes superiores, a unidade da
legislação não impediria a anarquia jurídica. Também o juiz é, necessariamente,
essencialmente rotineiro; esta santa rotina – que se chama sua jurisprudência – é
objeto de seu culto mais fervoroso [264]. Mas ele não está sempre preocupado no
mesmo grau em não contradizer-se, em não desviar-se de sua linha e da de seus
predecessores; ele o é cada vez menos, quando o espírito de conservação e de
tradição abaixa na sociedade ambiente; e então, ele, de preferência e cada vez mais,
cuida de decidir como a maior parte dos outros juízes, seus contemporâneos,
quando não são eles mesmos seus superiores hierárquicos. Sua imitatividade
incurável, e sempre inteligente, volta-se em direção ao novo modelo de preferência
ao antigo; a moda torna-se-lhe mais cara que o costume, como ao próprio
legislador a ao público. Porque a estabilidade da legislação não é um bem menor
que sua uniformidade. Mas não se aprecia mais a primeira em certas épocas, senão
que aspirando à outra em outros tempos. Hoje, queremos muito ver leis uniformes
para todos, para todas as classes e todas as províncias, mas nós as alteramos à
vontade. Outrora, aplicavam-se teimosamente as velhas leis costumeiras, mas
suportava-se sem muita trabalho o fracionamento da França e a divisão em
camadas da sociedade francesa numa multidão de diferentes leis. E bem: o juiz
participa um pouco dessas mudanças de vento sobrevindas à atmosfera pública, de
sorte que seu próprio gênero de imitação, por excepcionalmente racional que ela
seja, não deixa de ser, em parte, uma sedução.
Pode-se ver ainda a prova no fato de que o juiz francês de nossos dias, não
contente em conformar-se aos arestos de seus colegas ou aos seus próprios,
esforça-se por tomar decisões conformes às opiniões teóricas expressas pelos
comentadores acreditados de códigos. Ora, esse respeito um pouco supersticioso
pelos “autores” compreender-se-ia muito bem da parte dos magistrados romanos,
entre os quais nasceu. Os romanos não conheciam nada análogo às nossas
coletâneas de arestos e, por conseguinte, àquilo que chamamos “jurisprudência”;
eles não tinham, aliás, juízes permanentes. Foi, sem nenhuma dúvida, na falta desta
autoridade reguladora de precedentes judiciais, que eles sentiram a necessidade de
criar uma outra, atribuindo às respostas dos prudentes uma considerável
importância. Nossos juízes da Idade Média e também do Antigo Regime, na falta
de coletâneas de arestos regulamentares reunidos e publicados, deviam inclinar-se
diante da opinião dos grandes juristas de seu tempo. Mas nossos juízes atuais, que
podem abster-se desse modelo exterior, pois que eles têm o modelo interno, como
se dá que respeitem a “doutrina” quase tanto quanto a jurisprudência?
Eis aí uma verdade dupla, a acrescentar às numerosas duplas jurídicas que
Viollet finamente notou [265] e todas, de resto, são testemunhas eloqüentes a favor
do poder da imitação. Porque, seguramente, podem-se encontrar excelentes razões
para justificar, mesmo em nossa época, a submissão dócil de nossos advogados, os
mais radicais e os mais inovadores, à autoridade de um Troplong ou de um
Demolombe, dos quais uma citação faz ganhar ou perder um processo. Mas
estejamos bem certos de que, se os romanos, nossos mestres, não elevassem à
classe de leis as responsa prudentum, e, se nossos pais, a seu exemplo, não
houvessem recolhido como oráculos as opiniões de um Dumoulin ou de um
Pothier, uma meia dúzia de escritores jurisconsultos não se encontrariam hoje
investidos, entre nós, do estranho direito, sem nenhum mandato, de dizer o Direito
para todos.
III. Desempenho da invenção e da
lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito
Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica
social. O gênio inventivo subordinado às grandes
necessidades do organismo. Dualidade dessas
necessidades fundamentais, de nutrição e geração;
necessidade e dificuldade de harmonizá-las
juridicamente. Convergências ou coincidências das
morais.
Mas nem todas essas similitudes, mesmo de origem social, que apresentam
as legislações ou, para melhor dizer, as atividades jurídicas dos diversos povos,
têm a imitação por causa. Muitas erguem-se pela lógica. Se o homem é imitativo, é
porque ele é inventivo; se a ação niveladora e contínua da devolução de exemplos
persegue seu curso, dividida em milhões de rios, riachos e valetas que contribuem
cada um para o que se poderia chamar de as formações sedimentares da
civilização, é, eu repito, porque, de tempos em tempos, grandes ou pequenas
inovações, montanhas ou colinas, têm surgido. E, se o homem é inventivo, é
porque ele é lógico. Lógico ou inventivo, é tudo o mesmo no fundo. Uma
invenção, uma descoberta não é senão a resposta a um problema, e esta resposta
consiste sempre em ligar uns aos outros, por relação fecunda de meio e fim, modos
de ação precedentemente separados e estéreis, ou ligar uns aos outros pela relação
não menos fecunda de causa à conseqüência, de idéias ou de percepções que,
anteriormente, pareciam não ter nada em comum [266]. E é verdade que, em se
fazendo, dessa sorte, confirmar ou entreajudarem-se idéias ou atos, crenças ou
desejos, a invenção tem freqüentemente por efeito tornar inúteis ou incômodas as
invenções anteriores e, por conseguinte, criar novas contradições ou
contrariedades. Mas faz-se então sentir, – mais ou menos viva e geralmente,
segundo tempos e lugares, – a necessidade de remediar esse mal-estar, de
promover entre eles acordos parciais. Esta é a obra dos fundadores de religiões ou
dos filósofos na esfera da inteligência; dos moralistas e legisladores na esfera da
atividade. Esta elaboração lógica não é também uma grande invenção, uma
descoberta superior? Na medida em que experimenta a necessidade de descobrir e
de inventar, segundo o sentido ordinário da palavra, um povo experimenta também
a necessidade de coordenar originalmente suas descobertas e necessidades que
foram suscitadas. E seus sistemas de filosofia, do mesmo modo que seus códigos,
são máquinas grandiosas que fazem honra ao gênio humano, como o telégrafo
elétrico ou a fórmula da atração. O legislador está para o engenheiro assim como o
filósofo está para o sábio. Uns e outros são diferentes obreiros da lógica social; eles
respondem, cada um por sua parte, a este problema maior que, como todos os
outros problemas nascidos de nossas necessidades, renascem de suas próprias
soluções, tornam-se paixão, depois se abrandam e se resolvem em repouso, para
renascerem mais exigentes, inquietantes às vezes.
Ora, se existem razões para pensar que esse trabalho lógico, em se
prolongando, deve chegar a resultados divergentes, característicos, artísticos; é
também de crer que, sob muitos aspectos, seus efeitos serão fatalmente bastante
semelhantes. Essas similitudes serão de duas espécies: umas serão simplesmente
formais; outras, substanciais.
Eis um exemplo das primeiras. Dareste sinala, en passant, entre o
desenvolvimento do Direito Muçulmano e aquele do Direito Romano, uma
similitude incontestável, mas que se trata de bem interpretar. Os grandes
jurisconsultos árabes trabalharam sobre a base um pouco estreita do Alcorão, como
os grandes jurisconsultos romanos, sobre o fundamento não menos estreito da Lei
das Doze Tábuas. Aqueles, como estes, desenvolveram o Direito pela via da
autoridade doutrinal, inovando sem cessar sob o pretexto de comentar. Hanifat,
Malek, Chefeï e Hanbal, do VIII ao IX século, “criaram o Direito Muçulmano,
como antes deles Sabinus e Labéon criaram o Direito Romano. Roma tivera os
sabinianos e os proculianos [267]. O Islã teve os hanifitas, os malequitas, os
chefeïtas e hanbalitas, todos igualmente ortodoxos”, mas de horizonte mais ou
menos amplo. “Enfim, esse grande movimento terminou entre os árabes como em
Roma. Em um certo momento, a criação parou e sobreveio a esterilidade.” – É
muito justo. Mas, para ver bem o significado dessa aproximação, é necessário
compará-la a muitas outras, na esfera jurídica ou mesmo fora dela. O Direito
Hebreu desenvolveu-se de modo muito semelhante. Grandes rabinos elaboraram a
Lei de Moisés, tornada pouco a pouco a Michná e o Talmude; eles fundaram
escolas rivais e seu trabalho, enfim, parou, chegando a uma perfeição relativa. Do
mesmo modo, em todo país que se civiliza, vêem-se gramáticos sábios elaborarem,
depurarem, estenderem, fixarem a língua nacional, espécie de Alcorão caído do
céu, do qual eles são os respeitosos e engenhosos comentadores ou falsificadores.
Cada idioma cultivado tem seus Vaugelas, chefes de escolas divididas; e, em toda
parte, após haver apaixonado os espíritos, – os nossos, na França em meio ao
século XVII, – esta fermentação gramatical tem fim quando a perfeição relativa da
língua parece obtida. Da mesma maneira ainda em religião. Sobre uma Bíblia ou
um Evangelho trabalham, num dado momento, teólogos famosos que argumentam,
comentam, coordenam, desnaturam, sistematizam, dividem-se em seitas ou em
heresias até que, enfim, a ortodoxia é uma vez fixada. A era dos grandes teólogos e
dos grandes heresiarcas encerra-se por um certo número de séculos ao menos. O
budismo, o bramanismo, o judaísmo, o islamismo, como o cristianismo,
atravessaram esses períodos.
O que é preciso admirar aqui é, em toda ordem de idéias, a duração relativa
de obras lógicas, de sistemas coerentes formados por uma longa e pertinaz reflexão
ou por uma colaboração secular, qualquer que seja, aliás, a heterogeneidade de
seus elementos importados de fora. Uma língua, sobretudo considerada em seu
lado gramatical, é um desses todos lógicos; e sabe-se a persistente vitalidade das
línguas, sobretudo de sua gramática, ainda mais que seu dicionário. Uma religião,
quando é condensada em teologia, o que não se pôde fazer com o paganismo
helênico, apresenta o mesmo caráter. Da mesma maneira, um código. Viu-se,
através de invasões e catástrofes, o Corpus Juris reinar na Europa até os nossos
dias. Fenômeno ainda mais notável, a Mischná, que é o Corpus Juris dos judeus,
devida à elaboração dos grandes jurisconsultos hebreus, tem persistido e dura
ainda, malgrado a dispersão do povo. Esta força de resistência inerente a tudo o
que é sistemático, e esta tendência de toda coisa social a sistematizar-se, eis
similitudes que nada têm de imaginário; e elas têm um caráter de universalidade e
de profundidade totalmente diverso das semelhanças tão exageradas de idéias e de
instituições entre civilizações heterogêneas.
Mas o que isso significa? Quer isso dizer que haja uma fórmula mágica de
evolução por onde tudo seja forçado a fluir? Não. Isso quer simplesmente dizer que
o homem é um animal lógico, e que sua necessidade de coordenação sistemática
tem acessos de excitação seguidos de calma. Vemo-la nascer e crescer nele. Ele se
alimenta, durante certo tempo, de suas próprias satisfações. Dadas percepções
incoerentes, o árabe, o hindu, o hebreu primitivos procuraram vagamente um
acordo; um dia, eles acreditaram havê-lo encontrado, graças ao ensinamento
religioso de um homem aclamado como divino ou semidivino; e, de pronto, sua
sede de verdade, dita de crenças sistematizadas, de fraca que era, tornou-se muito
forte. Também a elaboração lógica que produziu esta palavra divina e que explica
seu sucesso não parou nela; continuou após ela. Porque esta palavra apresenta
obscuridades e, aplicada aos fatos, ela faz surgir mil dificuldades novas. Trata-se
de dissipar estas dúvidas, de completar a harmonia; nesta tarefa trabalham
ansiosamente os teólogos. Vê-se, eles não fazem senão prosseguir na obra do
fundador de sua religião. Como ele, eles partem de dados contraditórios a
conciliar; estes dados, para eles, teólogos, como para ele, fundador de uma religião,
são fatos e textos. Depois, quando todos os meios possíveis de conciliação foram
imaginados, o melhor é adotado: o monumento teológico parece chegar ao seu
coroamento. – É isso bem verdadeiro todavia? Nós sabemos que cedo sobrevêm
novos dados, observações e experiências científicas ou muitas idéias suscitadas
pelo contato com religiões estrangeiras. Daí novos esforços para resolver esses
novos problemas. E assim por diante.
Tratam-se de desejos e não de crenças a harmonizar? A lógica das
sociedades não procede de outra forma. O coração humano nasce povoado de
desejos tão incoerentes quanto suas idéias; fazer um mundo desse caos,
transformar, seja no seio do indivíduo, seja, por conseguinte, no do grupo social,
esta incoerência em mútua assistência, eis o problema que se colocou aos primeiros
legisladores confundidos freqüentemente com fundadores de cultos. Ele é
resolvido por uma lei reputada divina, Lei de Moisés, de Zoroastro, de Manou, de
Maomé. Mas, após um certo tempo, novas necessidades, novos comandos íntimos
engendrados pelas invenções civilizadoras, pelos contatos com povos estrangeiros,
como ocorreu com Israel e com o Islã, tornam difícil conciliá-los com os comandos
legais. Então, esforçam-se os jurisconsultos de um lado, os casuístas de outro, por
dissimular as dissonâncias ou absorvê-las numa harmonia superior. Eles são
reputados como quem não obra senão a extensão da venerável Lei; mas, na
realidade, eles se esforçam por substituir em parte, às suas ordens, por ordens não
menos imperiosas que ditam as novas necessidades. “Contornar a lei para provar
que se a respeita” é máxima de uma prodigiosa antigüidade. Os rabinos trataram a
Lei de Moisés como os pretores o jus quiritium. Como a prescrição relativa ao ano
sabático – que, a cada sete anos, extinguia as dívidas – molestava bastante,
começaram por demonstrar que havia algumas exceções à regra. “Ela não se
aplicaria nem às mercadorias vendidas a crédito nem aos salários, nem às
obrigações impostas pelos tribunais.” Depois, graças a esta última exceção, famoso
Hilel [268], contemporâneo de Jesus Cristo, forneceu um meio de subtrair um
crédito qualquer a esta prescrição sagrada: “O credor não precisa fazer mais que
remeter seu título ao tribunal, que lhe dá em troca um título judicial.” – Pela via da
ficção também, como observou Sumner-Maine, o Direito transforma-se um pouco
em toda parte. Do mesmo modo que, em lingüística, o progresso se opera pela
adição de um sentido figurado ao sentido próprio das palavras, da mesma maneira,
em Direito, a adoção, parentesco figurado, acrescenta-se ao parentesco natural, etc.
– Os autores destas engenhosidades fazem, definitivamente, a mesma coisa que
havia feito o próprio autor da Lei, em a compondo: Maomé, por exemplo, não
fizera senão refundir os antigo costumes árabes e apropriá-los à sua época. Depois,
chegou momento em que o edifício da jurisprudência e da casuística parecia
completo. Admira-se-o, diz-se-o inviolável, por tanto tempo quanto, ao menos, o
estado social não é inovado. Mas quando esta renovação tem lugar, a elaboração
lógica retorna mais bela, sempre a mesma, no fundo. Apenas parece que os
legisladores modernos, diferentemente dos antigos, não têm em conta os
precedentes legislativos. Todavia, isso não é senão uma vã aparência. A faculdade
de tudo transtornar legislativamente, que pertence, em teoria, aos nossos deputados
e senadores, não é senão nominal; eles são forçados a respeitar, numa certa
medida, as leis antigas, os hábito jurídicos das populações e também a inspirarem-
se em suas necessidades, velhas ou novas, que eles devem satisfazer de modo
conforme a esses hábitos. De fato, sua onipotência aparente não é senão uma dócil
obediência ou constrangimento a essas necessidades, a essas ordens de seus
eleitores. Tais ordens são para eles o que eram para os rabinos os preceitos de
Moisés ou, para os jurisconsultos árabes, as prescrições do Alcorão. Jurisconsultos
antigos ou legisladores contemporâneos realizam, igualmente, ato de submissão a
comandos superiores que eles elaboram de maneira lógica, submetendo-os,
hierarquicamente, uns aos outros. Após o que, os textos votados e promulgados,
nossos comentadores atuais, professores, juízes, conselheiros, fazem dizer, sob a
forma de jurisprudência ou doutrina, uma multidão de coisas com as quais seus
autores não sonharam jamais.
Em suma, a similitude da evolução, muito vaga e completamente formal,
constatada por Dareste entre o Direito Muçulmano e o Direito Romano não é senão
o caso de uma similitude muito mais vasta e muito mais prolongada; e ela consiste
em que a evolução, em toda ordem dos fatos sociais, tem sempre por ponto de
partida um certo número de percepções naturais ou de idéias ensinadas, de
necessidades inatas ou adquiridas sobre as quais se exerce uma necessidade, por
sua vez inata e cada vez mais desenvolvida, de coordenação lógica, ela mesma,
com suas vicissitudes de excitação e de apaziguamento: de apaziguamento, quando
está satisfeita por um tempo, por uma obra grandiosa e monumental; de excitação,
quando novas idéias e desejos necessitam de um trabalho de modificação ou
reforma. Apesar de tudo, Dareste não desconhece as profundas diferenças que
separam ambos os Direitos por ele comparados. Porque é de observar-se que são,
no fundo, os costumes pré-islâmicos e as leis primitivas de Roma que se parecem.
À medida em que cada um desses Direitos se desenvolve, aumenta sua distância. O
Direito Muçulmano não conhece distinção entre a posse e a propriedade, nem a
prescrição, nem a hipoteca, nem as servidões, as quais substituiu pela idéia bem
superior à concepção romana, de uma associação entre proprietários. Se a teoria
das obrigações, em revanche, parece ser quase a mesma em ambos os Direitos, é
porque os jurisconsultos muçulmanos as tomaram de empréstimo, na Síria, aos
jurisconsultos romanos. Aliás, esta semelhança não é senão uma aparência
enganosa [269].
Mas, além das similitudes que foram questão até agora e que apresentam o
modo de ação da lógica social, há outras bem mais profundas que tratam da
natureza dos objetos sobre os quais elas são exercidas. Novamente devem-se aqui
multiplicar as reservas. – Eu não voltarei àquilo que disse a respeito de seu
funcionamento silogístico. Um código pode ser considerado como a conclusão,
mais ou menos bem tirada, de um gigantesco silogismo prático, do qual a maior é
fornecida pelo estado das aspirações, das paixões, dos apetites numa dada
sociedade, e a menor, pelo estado dos conhecimentos, das crenças, das idéias.
Logo, todo empreendimento, toda inovação, toda invenção que tende a modificar a
maior ou a menor deve ter seu contragolpe legislativo. A menor é modificada pela
aparição de novas crenças religiosas, de novas idéias filosóficas ou científicas. A
maior, quer dizer, o objetivo perseguido, – que é sempre a consagração de uma
hierarquia de interesses e de privilégios, – é modificada, seja em razão de guerras
civis ou exteriores, de revoluções ou de conquistas devidas a táticas hábeis, a
traços de gênio político ou militar, seja por mudanças econômicas devidas a
invenções que, transformando as profissões, abalam o equilíbrio das necessidades.
A evolução jurídica, pois, depende das evoluções religiosa, filosófica, política,
militar, econômica, e ela não saberia ser una e predeterminada senão se as outras o
forem também. Bem mais. Mesmo que cada uma delas estivesse sujeita a fases
regulares, não se seguiria, necessariamente, que a primeira, que é sua combinação,
tivesse o mesmo caráter de regularidade. Porque as evoluções elementares aqui são
independentes e não paralelas, elas não marcham no mesmo passo; a evolução
criada deve, pois, variar muito mais que qualquer de seus elementos. Uma religião
pouco avançada, como no Egito, pôde coexistir com um governo assaz
aperfeiçoado, uma indústria e arte maravilhosas; na Índia, é quase o inverso que se
vê. Tudo isso prova que a divergência – (Sempre crescente? Não digo isso.) – das
atividades jurídicas é inevitável. Mas, malgrado tudo, ela não ocorre sem
concordâncias manifestas que têm a estreiteza pouco elástica do círculo em que é
dado moverem-se o pensamento e a vontade humana, e onde eles são
freqüentemente forçados a girar no mesmo sentido, como andorinhas aprisionadas.
O gênio inventivo está às ordens das necessidades que lhes colocam seus
problemas. Ora, tais problemas, por diferentes que eles sejam, alinham-se sob um
pequeno número de líderes, sempre os mesmos: o problema da fome e o problema
do amor, a necessidade da conservação e a necessidade da reprodução por si tudo
dominam. A cada um desses dois grandes pontos de interrogação relacionam-se
linhas de problemas, fluindo em séries até um certo ponto irreversíveis. Da fome
satisfeita, decorre a necessidade de vestimenta, depois de abrigo, depois de todos
os gêneros de propriedade e de conforto. Do amor satisfeito decorre a necessidade
de paternidade, da família, de um Estado forte, de todos os gêneros de associação.
À medida em que se satisfazem melhor separadamente, nascem outras
necessidades, superiores e mais livres: a necessidade de distrações e de artes e a
necessidade de conhecimentos; a necessidade de simpatia imitativa e a necessidade
de harmonia lógica, o amor à justiça e o culto do belo. Eu sei bem que a árvore
genealógica desses problemas sucessivos é multiforme e pitoresca, como todas as
árvores; eu sei bem que as soluções possíveis de cada um deles são numerosas e
que é a natureza, sempre acidental em parte, da solução encontrada que determina
ou especifica aquela do problema seguinte. Eu sei bem, além do mais, que as
necessidades que vão crescendo sem cessar, – porque elas têm origem inteiramente
social: necessidade de prazer e de justiça, necessidade de curiosidade e necessidade
de beleza, – são, precisamente, os problemas suscetíveis das soluções mais
numerosas e mais variadas, por conseguinte, é mais temerário procurar adivinhar
de antemão como o amanhã as resolverá. Eu acredito também, em conseqüência,
que, se os autores de codificações não tivessem uma pronunciada tendência a
copiarem-se através das distâncias e das épocas, essas grandes tentativas de síntese
prática difeririam provavelmente umas das outras, tanto quanto diferem dois
sistemas filosóficos originais, o sistema de Descartes ou o sistema de Kant, aqueles
de Platão ou de Aristóteles, de Hegel ou de Spencer, ou duas escolas de arte
originais, a arquitetura grega e a arquitetura ogival, o canto gregoriano e a música
de Wagner. E, de fato, se fizermos a abstração dos pastiches, constataremos que,
no fundo, esses grandes monumentos do Direito são muito diferentes. Todavia, é-
nos permitido afirmar que eles devem divergir cada vez mais, entregues a eles
mesmos? Não parece que a elaboração lógica, em se prolongando, reconduz ou
tende a reconduzi-los a uma similitude relativa, como se o esgotamento das
invenções, das soluções menos perfeitas e menos viáveis, devesse conduzir as
civilizações heterogêneas a se reencontrarem sobre um certo número de invenções
mais perfeitas?
Questão insolúvel a todo rigor, do mesmo modo que a questão análoga que
se coloca à filosofia natural: É ou não é inevitável que toda evolução biológica
force a convergência em direção à produção de um organismo animal aproximado
do tipo humano? Para responder, é necessário poder comparar a fauna dos planetas
vizinhos ou distantes à nossa, faculdade que nos falta, que, infelizmente, nos
faltará sempre, e que não nos faltaria se a ciência fosse verdadeiramente a razão de
ser do ser, como tantos filósofos têm orgulhosamente pensado. A própria
insolubilidade dessas questões fundamentais prova que o homem é feito para agir
mais que para saber. Prova que se, – para consolar-se de sua impotência em não
possuir jamais a plena verdade do pensamento, – ele aspira a realizar a beleza
acabada da conduta, se não for à sua inteligência, é ao seu coração sobretudo que
ele deve perguntar a regra de sua ação.
Aliás, se o quadro da verdade completa nos é velado, nós o percebemos em
fragmentos. Estamos certos, se certeza existe, que nossa geometria, nossa
mecânica, nossa astronomia, nossa física, em seu estado incompleto, são
verdadeiras; e devemos pensar que, não importa em que humanidade estelar, a
evolução científica acabaria por chegar a teoremas idênticos aos nossos teoremas.
Não existe também uma verdade moral que toda sociedade inevitavelmente
formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar como num golfo, e
que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite Sócrates, Buda, o Cristo,
e que o perfeito bravo homem de todos os tempos, Aristides ou Franklin, Epicteto
ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto árabe ou o santo cristão seja, em
toda parte, reconhecível nos mesmos traços essenciais, não diferindo senão pelo
grau de abertura de seu horizonte intelectual e pelo raio da esfera de humanidade
na qual se desenvolve? E não existe uma beleza, uma moral sublime, una e
idêntica, para onde se orienta como a um pólo toda alma generosa de todos os
cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a simples condensação, num instinto
especial, de hábitos hereditários sugeridos por experiências de utilidade geral
acumuladas ao longo do passado da humanidade, que ora, de preferência, esta
orientação traísse também qualquer ação mais sutil e mais profunda, qualquer
revelação do fundo divino das coisas? Parece, porque seguramente as inspirações
do heroísmo são bem mais semelhantes entre elas que as inspirações do gênio; e
parece mesmo também que esta verdade moral haja existido para o homem muito
tempo antes da mais fraca aurora da verdade intelectual; e que esta beleza moral
não tenha esperado, para manifestar-se, a aparição das belas-artes. Seguramente,
esta estética superior da conduta, esta arte poética da vontade, têm de notável que
todos os seus estetas se compreendam e simpatizem através dos tempos, enquanto
os estetas das artes divergem sem cessar. E, enquanto nada se parece menos à
música ideal do presente que aquela do passado, é sempre quase a mesma a
harmonia das ações justas, é sempre quase a mesma a melodia dos sentimentos
puros que nos cantam os grandes moralistas.
Mas a legislação não é a moral, não mais que a filosofia não é a ciência. A
filosofia pretende preencher as lacunas da ciência; e eis por que ela difere tanto
dela mesma de um sistema a outro. A legislação pretende substituir por regras
precisas as máximas vagas e freqüentemente ambíguas da moral; e eis por que ela
é cambiante de um código a outro, e ela sempre o será. É-nos suficiente, para
prová-lo, sinalar a natureza proteiforme da capital dificuldade que se oferece ao
legislador de todos os países e de todas as épocas, a saber, aquela de conciliar as
duas grandes necessidades de nutrição e de geração, sob a forma social, mais ou
menos desenvolvida, que elas revestem. No indivíduo, elas se combatem: a procura
do alimento e a procura do prazer, a aprendizagem de uma profissão e o amor das
mulheres redobram dolorosas lutas no coração dos jovens; e no coração dos pais de
família, o dever de desenvolvimento pessoal é sempre presa do dever de devoção a
outrem. Nas sociedades, eles não se combatem menos. Estendidos pelos contatos e
exemplos sociais que o dividem e o subdividem ao infinito, o primeiro, a
necessidade de conservação, enche nossos códigos de tudo o que contempla a
propriedade e as obrigações, tais como a venda, locação, empréstimo; a segunda,
de tudo o que dá trato ao casamento, à família, às corporações, às igrejas, ao
Estado, a todas as diversas formas de associação que são criadas a partir do
primeiro par conjugal. É necessário, para que o equilíbrio social seja assegurado,
que, desses dois grandes ramos do desejo humano, o primeiro esteja sempre
subordinado à segunda necessidade, quer dizer, que, – se o progresso industrial
conduz a primeira a novas brotações, fortifica o egoísmo, aumentando o conforto,
– o progresso moral suscita como contrapeso novas extensões artificiais da família,
e fortifica assim o espírito de fraternidade, de abnegação, de amor. É tarefa própria
ao legislador favorecer o crescimento destas últimas forças, eminentemente sociais,
em toda parte onde se as vê manifestarem-se. Mais a indústria tem progredido e,
com ela, o individualismo, mais deve o legislador secundar o espírito de devoção
sob todas as suas manifestações antigas ou recentes, e não se limitar a superexcitar
o espírito de patriotismo, ainda que a extensão dos sacrifícios à pátria, coisa digna
de nota, aumente e agrave, paralelamente, os progressos do egoísmo. A pátria não
seria suficiente para preencher o coração do homem social, e o legislador deve:
defender primeiro a família, onde o coração se exercita com o sacrifício de si,
aprende o gosto e o prazer de devotar-se; respeitar também todas as associações
religiosas, industriais, civis, – que não sejam conspirações sediciosas, – e permitir
o crescimento daquelas que quiserem nascer delas mesmas. Lembremo-nos do
legislador antigo, tão patriota, mas tão pouco respeitoso dos lares, das gentes, das
fhratries [270], das curias [271], de todas as confrarias quaisquer. Todavia a
indústria rudimentar reprimia então as necessidades de conforto. Com mais forte
razão, o legislador moderno, para lutar contra o industrialismo individualista de seu
tempo, deve mostrar-se associacionista, se não socialista.
Bem entendido, o quadro restrito deste volume nos torna defeso entrar no
detalhe de reformas tornadas necessárias pela mudança de nosso estado social, e
nosso trabalho deve parar por aqui. Antes de terminar, todavia, insisto sobre a
importância – às vezes ainda desconhecida – de estudar o Direito como um simples
ramo da Sociologia, se se quiser apreender sua realidade viva e completa. Ele não
é, aliás, um ramo qualquer dessa grande árvore que possa ser impunemente
separado do tronco, e que não se abastece de seiva por seu ajuste em relação aos
outros, em razão de múltiplas semelhanças e de diferenças não menos instrutivas,
que esta aproximação faz perceber entre seus diversos modos de crescimento. Mas
é sobretudo a evolução jurídica que demanda ser esclarecida desse modo: a rigor, o
desenvolvimento de uma religião, de uma arte, de um corpo de ciências tal como a
geometria, de uma indústria tal como aquela dos metais ou dos tecidos, pode ser
explicado separadamente; não aquele de um corpo de Direito, porque o Direito,
entre as outras ciências sociais, tem o caráter distintivo de ser, como a língua, não
apenas parte integrante, mas espelho integral da vida social. As invenções
lingüísticas, – que elas consistam em criar palavras novas ou novos sentidos de
palavras antigas, ou novas construções de frases, – têm de particular o serem
provocadas e exigidas pelo conjunto de todas as outras invenções. A cada uma
destas, que aporta sempre sobre a marcha verbal uma ação nova ou um novo
objeto, deve sempre corresponder a criação de um signo vocal distinto. Existem
assim, em outro sentido todavia, inovações jurídicas que nascem, senão para
exprimir, ao menos para colocar, no grande escaninho dos direitos, cada nova
forma de atividade introduzida por quaisquer inovações.
Eis por que chego tão freqüentemente, no decorrer deste estudo, a notar
similitudes entre a marcha jurídica e a marcha lingüística de evolução da
humanidade. Similitudes curiosas, tanto mais quanto elas entram, evidentemente,
na categoria daquelas que não têm como causa a imitação. A todas as analogias
que indiquei de passagem mais acima eu poderia acrescentar muitas. Rebusquemos
mais algumas, ao acaso, o quanto baste para dar às outras o gosto de colhê-las aqui.
Esta será também uma pequena ilustração das verdades gerais por nós enunciadas.
O Direito e a Língua, sabe-se, são coisas imitativas e rotineiras em alto grau.
Nada se faz senão pelo jogo perpétuo e combinado de três formas de imitação: a
imitação de outrem sob suas duas espécies: cópia do modelo contemporâneo
(moda) e cópia do modelo antigo (costume); e imitação de si mesmo (hábito). Mas
a que domina e dá o tom é, seja na Língua, seja no Direito, a influência costumeira.
Quando o afluxo de novidades recebidas pela moda, aqui e ali, ultrapassa um certo
grau, sempre muito baixo, a dificuldade de classificá-las e de assentá-las
logicamente num sistema de noções ou de instituições depois de muito tempo
consolidadas, produz uma crise, um mal-estar da legislação ou da língua; e é
necessário que uma morra ou expulse violentamente a maior parte desses alimentos
indigestos, tão apressadamente ingeridos. Também tem sido sempre impossível
implantar e fazer viver, numa nação qualquer, mesmo a mais escravizada, uma
língua ou um Direito constituídos de todas as peças, por lógica e artisticamente
construídos que eles possam ser. Essas admiráveis construções definham logo que
nascem, enquanto os amálgamas legislativos ou gramaticais do passado se
obstinam em não morrer. Por quê? Precisamente porque a lógica é a suprema
necessidade. Porque essa necessidade, para a língua como para o Direito, divide-se
em duas que se combatem. E este combate faz toda a vida, toda a dificuldade, todo
interesse de elaboração jurídica ou lingüística através dos tempos. Se não se
tratasse senão de conciliar entre eles os elementos de uma legislação ou de uma
linguagem, de maneira a criar um todo regular e coerente, seria bem fácil; mas, ao
mesmo tempo em que o esforço dos gramáticos ou dos juristas ou, de preferência,
o esforço de todo o público, conspire, ciente ou inconscientemente, de forma
constante em direção a este arranjo lógico interno de uma gramática pouco a pouco
depurada de suas exceções e de suas bizarrias, de uma codificação pouco a pouco
regularizada e tornada simétrica, trata-se também e sobretudo de estarem as
gramáticas e os códigos de acordo, e em acordo cada vez menos imperfeito, com a
sociedade que eles devem reger. Este último acordo, ele também, é um arranjo
lógico em outro sentido da palavra, teleológico, para falar com propriedade. Ora, o
estado da sociedade, se se abarcarem num olhar as idéias e as pretensões opostas
que se justapõem, é sempre, em grande parte, ilógico e incoerente. Para um corpo
de Direito, pois, como para um corpo lingüístico, o problema da evolução consiste
em adaptar-se consigo mesmo, tanto quanto se pode fazer, adaptando-se a uma
sociedade que jamais se adapta muito bem a ela mesma. Ele consiste, falando de
outro modo, em realizar o lógico através do ilógico. Por conseguinte, existe sem
cessar o perigo de sacrificar uma dessas duas aspirações paralelas e contrárias, e os
gramáticos como os juristas, têm uma pronunciada tendência em fazer prevalecer
abusivamente a primeira, enquanto o público, por felicidade, tem uma tendência
inversa. Daí essas duas doenças diferentes, das quais o Direito e também a língua
podem ser afetados: conciliarem-se com eles mesmos, mas não com o meio social,
como uma constituição revolucionária ou como o volapuque [272], a mais regular
das línguas; ou bem, conciliar-se com o meio social, mas não com eles mesmos,
como a constelação confusa das leis inglesas ou a maior parte de nossas línguas
européias.
Os lingüistas, após haverem suportado eles mesmos, – os primeiros, – a
ilusão das fórmulas simplistas de evolução, deveram rejeitá-las: eles não acreditam
mais, nós o sabemos, na necessária travessia dos três estados do monossilabismo,
da aglutinação e da flexão. Mas eles não têm rejeitado essas generalizações vagas e
falsas, senão para substituí-las por leis precisas e sólidas. E quando se vai ao fundo
destas leis, o que se encontra? Uma simples aplicação das leis mais gerais da
imitação, considerada como o procedimento elementar e universal da lógica social.
Por exemplo. Perguntai a Darmesteter [273] como se opera a mudança do
sentido das palavras (abstração feita, no momento, da mudança de seu som). Ele
vos dirá que, ora existe a extensão de seu sentido, seja por irradiação, seja por
encadeamento, ora estreitamento e, finalmente, desaparição e esquecimento. O
esquecimento desempenha um grande papel na evolução lingüística, como o
desuso na evolução jurídica, a memória e o hábito sendo irmãos. O caráter
simbólico de certos procedimentos, tais como as antigas formas da tradição, são
inevitavelmente esquecidas com o tempo, como o caráter metafórico de certas
expressões verbais; daí uma causa das transformações freqüentes para as palavras e
os processos. Há direitos e deveres que não mais se praticam, como palavras e
construções gramaticais de frases que cessam de ser empregadas, apesar de ainda
figurarem, por rotina, nos dicionários, nas gramáticas e nos códigos. Se se pudesse
fazer um dicionário em oito volumes com nada além de palavras desaparecidas da
língua francesa, duplicar-se-ia facilmente uma biblioteca com todas as legislações
mortas, com todo velho vestuário jurídico da França. – Sem desaparecer, o sentido
de uma palavra pode fechar-se por especialização; assim veste, hábito, após
haverem significado vestimenta em geral, designam agora formas muito especiais
de vestimenta; cátedra, de início, significou um assento qualquer. Ao contrário,
pode existir a extensão pela via da generalização crescente; é o caso, notadamente,
de todo substantivo próprio que acaba por tonar-se um substantivo comum, tal
como renard [274], um Alceste, um Tartufo. Paralelamente, as instituições ou os
procedimentos jurídicos modificam-se, seja por uma extensão, seja por uma
especialização gradual de seu domínio. Como exemplo do primeiro caso, tem-se,
no Direito Romano, os progressos do direito pretoriano, os progressos do
procedimento baseado em formulários, o progresso do procedimento
extraordinário. Como exemplo do segundo caso, pode-se citar a exclusão das
mulheres da herança, exclusão geral, segundo o Direito Germânico, mas pouco a
pouco distanciada e enfim restrita à hereditariedade monárquica. Quanto às
mudanças de sentido por irradiação ou por encadeamento, observemos que as
mudanças de uso dos processos e das instituições jurídicas apresentam a mesma
distinção muito aparente. Existe irradiação, em sentido análogo àquele de
Darmesteter, quando uma instituição tal como a homenagem ou o juramento, após
não ser aplicada senão a um objeto, desenvolve-se, aplicando-se a uma multidão de
outros. Existe encadeamento, quando uma instituição tal como o duelo judicial
subsiste e sobrevive mudando de alma muitas vezes, como os substantivos
romance e papel.
Ora, não é visível que tais modificações jurídicas ou lingüísticas, por
acréscimo, decréscimo ou deslocamento, ergam-se, por sua vez, de uma mesma
causa: o poder expansivo da imitação dirigido pela tendência geral ao acordo
lógico, em ambos o sentidos da palavra? Com efeito, quando uma forma legal ou
uma forma verbal se aplica a novos casos, cresce seu domínio, pois que, no grande
concurso das formas existentes, todas mais ou menos rivais ou aliadas umas às
outras, ela é favorecida pela superveniência de idéias ou de necessidades
propagadas pela imitação, às quais é apropriada a exprimir ou a satisfazer. Ao
contrário, quando ela se especializa, ou quando ela se transforma, é que, por conta
de idéias ou de necessidades contraditórias que sobrevêm e são difundidas entre o
público, ela luta com maior desvantagem contra suas rivais e é abandonada por
suas aliadas. Não retornarei sobre aquilo que já disse alhures [275] a
respeito da distinção fundamental entre os dois modos de operação da lógica social
ou mesmo individual, o duelo lógico ou o acoplamento lógico. Acredita-se haver
dito tudo, quando se fala da luta pelo direito ou da concorrência vital das palavras
de uma língua. Mas não se viu assim senão um lado da verdade, e ainda, de
ordinário, se o viu mal. Sejam palavras, sejam direitos que se façam obstáculo, é
entre eles que se deve escolher um, sacrificando o outro, – por exemplo, os
sinônimos ou essas formas paralelas de ação oferecidas, ao mesmo tempo, pelo
Direito Quiritário e pelo Direito Pretoriano, pelo Direito costumeiro e pelo Direito
escrito, espécies de sinônimos jurídicos, – e há também palavras e direitos que se
transportam seguros, seja porque se combinam numa nova criação, seja
simplesmente porque um não se pode propagar sem apressar a propagação do
outro. No que concerne à luta pelo direito, observemos,
primeiramente, que a expressão é equívoca. A luta contra as violações individuais
de um direito existente e reconhecido não faz senão conservar o Direito, como o
bom combate dos professores e dos críticos para a correção do estilo não faz senão
conservar a língua. A luta que faz progredir o Direito e a língua é aquela que se
engaja entre um direito ou uma palavra nova, em via de formular-se e fazer-se
reconhecer, e um direito ou uma palavra antiga que se trata de destronar. Desse
ponto de vista, Ihering tem razão em dizer que os progressos do Direito são, não
pacíficos, inconscientes, sem esforços, mas, muitas vezes, obtidos ao preço de
enérgicas afirmações e combates encarniçados. Apenas errou ao acrescentar que
nisso a evolução do Direito difere por completo em face daquela das línguas. Ele
parece acreditar que estas evoluem sem qualquer conflito. Todavia, não realizamos
sempre, em falando, um trabalho e um combate lógicos, muito consciente, ainda
que muito rápido? Desde a criança, para a qual falar bem é a principal preocupação
intelectual, até ao escritor que se aplica com constância em escrever bem, não
cessamos de procurar locuções justas, fortes, delicadas, de estudar o léxico e a
gramática, e criticá-los, em os aplicando. Se a vida do Direito não é, numa boa
metade, senão uma seqüência de processos terminados por julgamentos, ou uma
seqüência de deliberações legislativas penosas, hesitantes, terminadas por
promulgações de leis, o equivalente do processo, na vida das línguas, não é a
escolha que fazemos a cada instante, mais ou menos rapidamente, às vezes com
muito trabalho, entre duas expressões, entre duas construções gramaticais de frases
que pretendem disputar nossa preferência? E não existe aí um séquito de
argumentações internas, de pequenas deliberações, de pequenas sentenças?
Nós não podemos, sente-se, senão tangenciar esse vasto assunto. Façamos
observar, terminando, que se se tentar abarcar num mesmo golpe de vista as
sucessivas fases das diversas línguas, não se percebe em lugar algum uma
tendência dessas diversas evoluções lingüísticas, contanto que elas permaneçam
independentes, a convergir na direção de uma mesma língua ou de um mesmo
estado final. A um resultado análogo nos conduz o estudo de diversas evoluções
jurídicas. Tudo o que se vê claramente é uma tendência ao triunfo de uma só língua
ou de um pequeno grupo de línguas, de um único Direito, ou de um muito pequeno
grupo de Direitos, e de uma língua ou de um Direito comum a todas as classes da
sociedade. Ora, esta é a dupla conseqüência inevitável da ação por longo tempo
contínua da imitação. Mais se remonta ao passado, mais se descobrem idiomas
distintos e costumes que tinham força de lei; ainda que, na origem, devam-se supor
tantas línguas e tantos direitos quantas cidades [276]. Mas, à medida em que as
relações entre os homens se multiplicam, a maior parte dessas criações lingüísticas
e jurídicas, tão espantosamente multiplicadas, são rechaçadas ou destruídas, para
que um pequeno número dentre elas, e nem sempre as melhores, devam às
circunstâncias históricas, étnicas, geográficas, ainda mais que à sua superioridade
intrínseca, o privilégio de se difundirem sobre o globo. D’outra parte, e
simultaneamente, as mudanças são aportadas às línguas pelos empréstimos de
palavras nobres ao estilo plebeu, de palavras literárias ao estilo ordinário,
empréstimos irônicos freqüentemente, mas sempre imitativos, e estas mudanças
correspondem, em Direito, às mudanças produzidas pela importação do direito de
primogenitura às camadas plebéias, pela gradual extensão às classes inferiores de
direitos quaisquer primitivamente reservados às classes superiores. Pouco a pouco,
dessa sorte, estabelece-se uma língua igual para todos, do mesmo modo que um
Direito igual para todos.
Fim
Bibliografia Consultada
ALVIN, Décio Ferraz, Sociologia, Edições de Ouro, RJ.
Cruz Costa, Herculano Pires, Alcântara Silveira, Jorge de Sena e Hernani Donato.
Livros que Abalaram o Mundo, Editora Cultrix, São Paulo, 1965.
Les Temps des Livres, critiques littéraires, por Mark Hunyady, 21 de julho de 2001
– [www.letemps.ch]
Notas
[1] – Concepção que afirma serem as entidades da Lógica Matemática livres
criações do pensamento, independendo de origens empíricas, e sustentadas pela
clareza que lhes confere seu caráter intuitivo.
[10] – G. TARDE, Les Lois de l’Imitation, 6a edição, Félix Alcan, Paris, 1911.
[14] – FAGUET, Emílio. Iniciação Filosófica, Guimarães & Cia., Lisboa, 1915.
[17] – Sobre este tema, vale citar aqui a interessante tradução sintética de João
Corrêa de Oliveira, A Origem do Homem, de Charles Darwin, Magalhães Moniz
Editor, Porto, sem data.
[26] – ...”é justamente nesta tara, que torna duráveis, que perpetua as tendências
embrionárias para o crime, que reside a natureza teratológica e mórbida do
criminoso nato; quando esta tara patológica, hereditária, não existe, as tendências
criminosas embrionárias atrofiam-se, como se atrofiam num corpo bem munido de
órgãos embrionários, – o timo, por exemplo. Magnam, depois de haver negado os
criminosos natos, apresenta-nos, ele mesmo, uma série de casos. Não acredito que
o faça para colocar-se, ele próprio, em falta. Certamente, se é para demonstrar que
são hereditárias, nos filhos de alcoólatras, não faz senão repetir o que já afirmei em
minha edição italiana e o que disse, antes de mim e melhor do que eu, Saury,
Knetch, Jacoby, Motet e o primeiro de todos, Morel.” LOMBROSO, César. O
Homem Delinqüente, Ricardo Lez Editor, Porto Alegre, 2001.
[29] – Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, nos Estados Unidos, em 28
de agosto de 1916. Mills aplicou a teoria do determinismo econômico de Marx e
Weber, segundo a qual as relações de produção determinam, em última instância, a
composição de classes e os elementos da superestrutura de uma sociedade. Morreu
em Nyack, estado de Nova York, em 20 de março de 1962. Encyclopaedia
Britannica do Brasil Publicações Ltda.
[33] – Francisco Bopp foi um filólogo alemão (1791-1867), estudante das línguas
industânicas e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim. É
considerado o fundador da filologia comparada. Enciclopédia Brasileira Mérito.
(N. da T.).
[34] – O sânscrito foi descrito e codificado pelo gramático Panini no século V a.C.
Descobriram-se semelhanças entre esta língua, o latim e o grego, descoberta esta
que pode ser considerada como responsável pelos avanços da filologia no Ocidente
em fins do século XVIII. Trata-se de uma língua indo-européia do ramo indo-
ariano. Os quatro Vedas foram escritos em sâncrito (1200-900 a.C.). Entre os
séculos VI a.C. e XI d.C., tornou-se a língua da literatura e da ciência hindus. É
mantida, ainda hoje, por razões culturais, como língua constitucional da Índia.
(Dicionário Aurélio Século XXI, 2001). Além disso, pode-se acrescentar que o
sânscrito converteu-se, juntamente com o latim e o grego, no modelo fundamental
para a reconstrução do indo-europeu original ou proto-indo-europeu. Sua
gramática possui traços muito semelhantes aos da grega e da latina, tais como seu
caráter flexivo, segundo o modelo raiz-tema-desinência, e sua complexidade
sintática. (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações) (N. da T.)
[35] – Max Friedrich Müller (1823-1900). Lingüista e historiador. Seria alemão, de
acordo com a Encyclopaedia Britannica do Brasil, ou inglês, conforme
Enciclopédia Brasileira Mérito. Dedicou-se ao estudo do sânscrito desde a
juventude e realizou um estudo comparativo das mitologias indo-européias,
concluindo que elas provinham de um mesmo tronco ariano primitivo. Max Müller
pensou ter encontrado na mais antiga literatura hindu, sobretudo nos Vedas, as
formas primitivas das crenças e dos mitos, e pareceu-lhe que as divindades eram,
na origem, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homens primitivos”,
impressionados pelos fenômenos da natureza, haviam começado por dar-lhes
nomes, e que estes nomes gradualmente tornaram-se pessoas: o espírito primitivo
considerado incapaz de representar as abstrações. Assim, a vida do universo
dramatizara-se progressivamente. Max Müller tentou dar exemplos concretos desse
processo. Como a luz do sol é a fonte de toda vida e atividade, ele foi levado a dar
aos “fenômenos solares” uma importância capital. Para ele, a luta de Zeus (em cujo
nome está a raiz que significa dia) contra os Titãs não é senão o drama cotidiano e
a vitória da luz sobre as trevas. As formas monstruosas dos Gigantes seriam as
névoas da Noite. Tifon seria a tempestade. Atenas seria a luz virgem do dia ao
amanhecer. Hefestos, o ferreiro, o sol levante: o disco de ferro vermelho saído da
forja divina. Héracles ou Hércules, por sua vez, torna-se um mito solar por
excelência, através dos doze trabalhos que seriam os doze signos do zodíaco, ou
seja, as doze etapas percorridas pelo Sol durante o ano. Assim, pouco a pouco, a
mitologia inteira, através de etimologias incertas, – os “trocadilhos inconscientes
referidos por Gabriel Tarde, – achou-se reduzida a uma vasta meditação sobre a
chuva e bom tempo. Evidentemente, tratam-se de idéias simples demais. Hoje está
demonstrado que os mitos não provém de uma enfermidade de linguagem.
Verificou-se que as interpretações alegóricas, ao aplicarem aos mitos os fenômenos
meteorológicos, estão longe de ser primitivas. Resultam, sim, de especulações
tardias: Jano, por exemplo, um deus romano, só foi considerado como o símbolo
do ano a partir dos pitagóricos de Roma, o que não se deu antes do primeiro século
antes de Cristo, ao passo que o próprio Janus já existia há muito tempo. Na religião
egípcia, o mito de Ísis e Osíris, – mito solar por excelência, – não é primitivo sob
sua forma canônica, mas resume uma teologia completa longamente elaborada.
Pierre GRIMAL. A Mitologia Grega, 2a edição. Difusão Européia do Livro, São
Paulo, 1958. (N. da T.).
[39] – Qualquer hipótese ou teoria que afirma que determinada entidade, ser ou
conjunto de seres não tem origem única e resulta de múltiplos processos,
independentes entre si, de formação ou desenvolvimento. Dicionário Aurélio
Século XXI. (N. da T.).
[40] – Relação entre os fenômenos pela qual estes se acham ligados de modo tão
rigoroso que, a um dado momento, todo fenômeno está completamente
condicionado pelos que o precedem e acompanham, e condiciona com o mesmo
rigor os que lhe sucedem. Quando relacionado a fenômenos naturais, o
determinismo constitui o princípio da ciência experimental que fundamenta a
possibilidade de busca de relações constantes entre os fenômenos. Dicionário
Aurélio Século XXI. (N. da T.).
[43] – Jurisconsulto e historiador inglês, seu nome completo era Henrique James
Sumner-Maine (1822-1888). Foi um dos primeiros a lecionar Direito Romano na
Inglaterra, e sua obra Direito Antigo (1861) teve muita repercussão. Também
estudou as condições jurídicas e sociais da Índia, onde esteve de 1862 a 69, como
membro do conselho do vice-rei. Em Governo Popular, 1885, provocou acirrada
polêmica, porque Sumner-Maine, baseando-se no método histórico, negou a teoria
do contrato social de Rousseau. Sua obra foi considerada antiliberal. Recebeu o
título de Sir. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).
[52] – De acordo com Dr. Weissmann (Essais sur l’Hérédité, 1892), os seres vivos
monocelulares são imortais; eles segmentam-se, mas onde está o cadáver? A morte
não seria senão uma “invenção prática” mas bastante recente da vida. Delboeuf
tem também muito curiosas e profundas considerações sobre isso (La Matière
Brute et la Matière Vivante).
[57] – D’Aguanno, – devo convir, – assina à idéia moral uma data muito recuada.
Ele nos ensina que “o sentimento do justo e do injusto apareceu somente no fim da
era quaternária” (ver seu livro, p. 114). E ele faz ver todas as conseqüências que
deduziu desse dado tido como incontestável.
[58] – Mitologia grega. Etéocles era Rei de Tebas, filho de Édipo e Jocasta e irmão
de Polinice e Antígona. Concordou em ceder o trono a seu irmão Polinice em anos
alternados, mas faltou à promessa, e os irmãos digladiaram-se até a morte.
Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).
[63] – É bom fazer esta observação para prevenir o erro dos escritores que, sempre
que vêem num código antigo uma penalidade inspirada pelo espírito do talião,
apressam-se muito vivamente em ver aí um espírito de vingança e uma prova
irrefragável de costumes ferozmente grosseiros. – A vingança é o único modo de
repressão prática, lá onde uma força pública exterior e superior às tribos faz falta.
É, aliás, um dos mais eficazes remédios contra o delito que jamais se imaginou, e
eu não sei se os criminalistas utilitários, em lugar de tanto denegrirem este
costume bárbaro, não deveriam, logicamente, propor seu restabelecimento. Um dia
ou outro, se a série de bombas anarquistas não parar por ela mesma, perceber-se-á
que o único modo eficaz de repressão é o de retornar ao antigo procedimento de
represálias. Para lutar contra essa selvageria, devem-se restaurar esses costumes
selvagens. Por tanto tempo quanto, na Argélia, mesmo após nossa conquista, esses
costumes reinaram, usufruiu-se, com pouca despesa – diz Seignette, muito
competente a esse respeito – “de uma segurança muito satisfatória para pessoas e
bens”. Mas depois que, politicamente, a administração francesa acreditou dever
esforçar-se para suprimir, com a condição sine qua non, essa vingança familiar,
empenhando-se em “desagregar a tribo”, constatou-se que “em toda parte onde
seus esforços foram coroados de sucesso, a segurança desapareceu, sem que a
organização normal da polícia pareça hoje suficiente para restabelecê-la”. O
problema penal seria melhor resolvido por esses primitivos que por nós? (Ver
Código muçulmano de Khalil, trad. francesa de Seignette, introdução.) O mesmo
autor diz além do mais: “É fora de dúvida para que se dê ao trabalho de comparar
as estatísticas criminais da França e da Argélia. Os crimes violentos... são muito
menos freqüentes entre os árabes que entre os europeus à vista da proporção
populacional.
[64] – A primeira palavra pronunciada pelos antigos legisladores, diz Dareste, foi a
supressão da vingança privada... Num certo momento, o Estado constitui-se e
eleva-se a mediador e pacificador.
[65] – Nas penalidades chinesas, não encontro nada que traia o desejo de tornar a
pena semelhante à falta, senão quando o assassino é punido de morte. Aliás, por
não importa que outra falta, – injúria, difamação, roubos, incêndios, – infligem-se
golpes de bambus, como fazem os pais por todo pecadilho, fustigando sua
progenitura.
[66] – Não assistimos nós, nesse momento, uma recrudescência desses crimes de
ódio, de ódio individual e sobretudo de ódio coletivo?
[67] – O ordálio é prática quase universal entre povos primitivos. Toma múltiplas
formas. Em bramanismo, por exemplo, há dez, sendo os principais o das escadas e
pesos, o do fogo, o da água e o do veneno. Quando a perspicácia humana é incapaz
de encontrar o culpado, existiria nas coisas um poder intrínseco que revelaria a
iniqüidade e reivindicaria a justiça. Em termos mais filosóficos, no ordálio, a
natureza das coisas falaria quando consultada: a vontade divina intimamente
vinculada à ordem social. MICKLEM, Nathaniel. La Religion, Fondo de Cultura
Económica, México-Buenos Aires, 2a edição 1950. (N. da T.)
[80] – Esta idéia foi anteriormente sugerida por outra bem mais antiga – e da qual
já falava Tácito – de fazer lutarem, antes de uma batalha, um guerreiro do exército
e um prisioneiro inimigo, para adivinhar o resultado provável do combate geral de
acordo com aquele do combate particular. Assim, o duelo divinatório engendrou o
duelo judicial. Mas estas são, todavia, duas invenções distintas; a aparição da
segunda exigira uma combinação mental nova, a saber, a idéia de consultar a
divindade para um combate singular, não mais a propósito da batalha entre dois
exércitos, mas, a propósito do processo entre dois homens.
[87] – E mesmo muitos outros; porque a questão de raça aqui é muito secundária.
Os semitas assemelham-se espantosamente aos arianos em suas origens jurídicas.
[89] – Ver Dareste, pág. 166: “O homicida apresenta-se descalço, sem cinto, na
cova do defunto. O mais próximo parente deste toca-o, entre os ombros, com a
ponta de uma espada e lhe diz: etc.”
[93] – Sexto Rei de Roma (578-534 a. C.) Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit.
(N. da T.).
[96] – Popilius Lenas, cônsul romano em 173 a. C.. O senado enviou-o para junto
do rei da Síria, Antiocus Epiphane, para obrigá-lo a renunciar às suas conquistas.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).
[99] – Ver a esse respeito um opúsculo do italiano Ratto que formula objeções
sólidas contra a opinião de seu compatriota.
[100] – Julgamos pertinente acrescentar aqui uma passagem escrita pelo próprio G.
Tarde, da obra La Philosophie Pénale, 4a edição, A. Maloine, Paris, 1903. “A
criminalidade transforma-se de época para época. É verdade que, em se
transformando, ela diminui? Sim, certamente, se não remontarmos senão aos
tempos bárbaros. Mas não me parece demonstrado, malgrado o preconceito
difundido a este respeito, que os selvagens mais antigos fossem dados ao
homicídio e ao roubo em grande escala. Este erro, que serviu de fundamento à
explicação do crime pelo atavismo, demanda ser esclarecido desde o início de
nosso trabalho. Exagera-se a imoralidade dos selvagens ainda existentes, como
demonstrou, entre outros autores, Henry Joly em seu livro Crime (1888), e, sem o
menor fundamento, apressa-se em atribuir a improbidade e a desumanidade mais
completas às populações da Idade da Pedra, as quais, todavia, – como observa
Nadailhac e as descobertas da arqueologia pré-histórica, – não poderiam ser
desprovidas de toda boa-fé, pois que praticavam o comércio exterior, e não
poderiam ser desprovidas de toda piedade, pois que nos deixaram vestígios não
duvidosos dos cuidados que dispensavam aos seus doentes. Ainda que no mundo
selvagem atual ou moderno, – único observado por nós, – as tribos pilhantes e
sanguinárias apareçam em maior número, não se segue, de modo algum, que fosse
sempre assim, que a espécie humana haja nascido maldosa, que a bondade, o
sentimento da justiça e a semente das virtudes quaisquer sejam obra tardia da
civilização.” (N. da T.).
[102] – Do sânscr. nayaka, ’chefe’, ’diretor’, pelo malaiala nayar. Entre os hindus
do Malabar, militar nobre. As nairas eram mulheres desta casta. Dicionário Aurélio
Século XXI. (N. da T.).
[104] – O albigenses eram membros de uma facção da seita dos cátaros, que
professavam doutrina maniqueísta, pregavam a austeridade e a não-violência.
Surgidos no S. da França no séc. XI, foram exterminados no séc. XIII (N. da T.).
[106] – De ba-, partícula africana que indica plural, mais -ntu, homem. Termo
cunhado na década de 1850 por W.H.I. Bleek, bibliotecário do governo britânico
na antiga Colônia do Cabo.
Os bantos formam uma população cujo idioma é constituído por um grupo
de línguas pertencentes ao benuê-congo, e que é composto de várias centenas de
línguas faladas numa área muito extensa da África, desde o paralelo 5º até a antiga
Colônia do Cabo, na atual República da África do Sul. Dicionário Aurélio Século
XXI. (N. da T.).
[107] – Do africâner boschjesman, homem da mata. Povo nômade que habita
principalmente o deserto de Calaári, Botsuana e Namíbia, no S.O. da África (N. da
T.).
[116] – Do latim, visigothu, germano do west, oeste, mais, do latim, gothu, godo.
Indivíduo dos visigodos ou godos do Oeste (N. da T.).
[118] – E pela antigüidade romana, ela mesma. No início do século II de nossa era,
a cúria, nos municípios romanos, compunha-se ainda de magistrados eleitos. Foi só
mais tarde que essa magistratura eleita se tornou hereditária.
[120] – Na Belle histoire des idées morales dans l’antiquité, por Denis, seguem-se
as etapas de uma parte desse grande progresso ininterrupto.
[125] – Eu disse primitivo, porque este adjetivo do qual se abusa e do qual somos
forçados a usar e abusar nós mesmos como outros, teria então um sentido nítido e
preciso que estou longe de lhe conceder. Ou ele nada significa, com efeito, pois
que não pode ser questão, bem entendido, de remontar ao primeiro homem ainda
semi-animal ou às primeiras coisas humanas, em sentido unicamente cronológico;
ou ele significa, simples e claramente, num sentido de preferência lógico, que
existe um ciclo fechado de fases, onde voltas e revoltas sujeitam as coisas humanas
a periódicas repetições. Primitivo, pois, quer dizer recomeço, ou nada quer dizer.
Tenho de fazer esta observação de uma vez por todas.
[130] – Do árabe, Barbar. Indivíduo dos berberes, qualquer dos povos nômades
que habitam as regiões norte-africanas da antiga Barbária (Marrocos, Argélia,
Tunísia, Líbia e Egito) e do Saara (N. da T.).
[131] – Na América, os selvagens, na falta de machados de metal, tinham
necessidade de unir seus esforços para derrubar suas florestas. Hoje o indivíduo,
por seus próprios esforços, por seu trabalho remunerado, pode adquirir terras tanto
quanto ganhar dinheiro. Mas, nos tempos da indústria grosseira e sem comércio,
ele não podia adquirir senão coisas móveis, armas encontradas ou trocadas,
ferramentas, jóias, presas de caça, colheitas anuais. Quanto aos domínios, não
havia, em geral, senão duas maneiras de os adquirir: o desmatamento ou a
conquista. Mas, seja para conquistar, seja mesmo, assaz freqüentemente, para
desbravar, era necessária uma associação de esforços, militar num caso, laboriosa e
pacífica no outro. Era o clã inteiro que se anexava um novo território. Devia então
parecer natural possuir as coisas adquiridas coletivamente e aproveitar, cada um, a
parte das coisas individualmente conquistadas. Eis em parte por que, lá onde as
terras são comuns, os móveis, todavia, mesmo quando poderiam sê-lo, não o são.
[132] – E esse estado de coisas tinha como caráter marcante ser de um equilíbrio
sempre muito instável. Sumner-Maine faz a mesma observação a respeito da
comunidade de aldeia hindu: “Tudo o que perturbava sua ordem pacífica levava ao
engrandecimento da família dominante e de seu chefe”, ou seja, à aparição da
propriedade individual, primeiramente excepcional, depois generalizada pela
imitação. – A constituição da aldeia hindu era aristocrática ou democrática? É
duvidoso. Ela era aristocrática, assim parece, de acordo com as observações
precedentes. Em todo caso, esses comunistas são de um conservadorismo
excessivo, rebeldes a todo melhoramento agrícola. Deu muito trabalho fazê-los
compreender a utilidade da cultura do algodão.
[142] – Em toda parte e sempre o campo imita a cidade. Assim, não devemos nos
surpreender com um fato, desconhecido pelos historiadores, mas revelado por
Luchaire (Les Communes Françaises à l’Époque des Capétiens Directs, 1890), a
saber, após e conforme as grandes comunas juramentadas do século XII, Laon,
Dijon, Soissons, etc., uma multidão de pequenas comunas rurais (pág. 69 e seg.)
pulularam. O homem nasce tão sociável que, de todos os exemplos humanos, o
mais contagioso é, naturalmente, o exemplo da associação.
[143] – Do francês guilde, gilde latim medieval, gilda, forma latinizada, reunião,
banquete de natureza simbólica e religiosa;corporação. Associação de auxílio
mútuo constituída na Idade Média entre as corporações de operários, artesãos,
negociantes ou artistas (N. da T.).
[144] – A eclosão dos monastérios, é verdade, poderia haver sido sugerida pela
organização interior da vila galo-romana, tal como Fustel de Coulanges nos
descreve. Essas vilas, que se dividiam por quase todo o solo da Gália, e de onde
saíram nove décimos de nossas cidades modernas, eram o mesmo que pequenas
repúblicas unas e indivisíveis. Cada domínio bastava-se a si mesmo. Havia, como
em cada comunidade de aldeia, uma aproximação instrutiva – “moleiros, padeiros,
carpinteiros de carros, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, barbeiros”. Esses costumes
de trabalho repartido e solidário da vida grupal disciplinada e autônoma não podem
haver favorecido o gosto das comunidades monásticas? É possível, mas esta
explicação não se aplicaria senão aos escravos e aos colonos; e é sobretudo às
classes superiores, entre os proprietários, que tem servido a paixão do hábito
monástico.
[146] – Em muitas grandes cidades da América do Sul, onde não chove jamais,
onde, por conseqüência, os telhados chatos são os únicos racionais, existe o furor
de construir casas em estilo renascença, com telhados pontudos, para seguir a
moda européia.
[152] – Foi questão, mais acima, os efeitos diretos da imitação e da invenção sobre
o regime da propriedade. Tratam-se agora de seus efeitos indiretos que são muito
mais importantes. Não existe ação direta desse gênero senão quando, por exemplo,
um novo direito de propriedade é inventado e é propagado pela imitação. Para que
uma semelhante invenção seja feita, é necessário que ela tenha se tornado desejável
e viável, através de um conjunto de outras invenções, em aparência, estranhas ao
Direito, tais como a idéia de um novo modo de cultura intensiva.
[157] – Geólogo francês (1798-1874). Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.
da T.).
[159] – Do grego, heilótes. Em Esparta, escravo que cultivava o campo. (N. da T.).
[162] – Em face de similitudes sem imitação, pode-se citar ainda a semelhança dos
procedimentos pecuniários empregados pela Restauração francesa, para pôr fim às
reivindicações dos emigrados arruinados pela Revolução, com medidas tomadas
em casos semelhantes “em Éfeso e em toda a Ásia após a conquista de Mitrídate”.
( Dareste, Hist. du Droit, p. 49).
[164] – Eu não digo que o deseje. Veja-se o porquê: percebo muito a maneira pela
qual esta revolução se opera, segundo todas as verossimilhanças. É certo que a
terra é monopolizada pelos proprietários; mas este monopólio, enquanto a
propriedade individual domina, neutraliza-se quase, em se fracionando. Se o
coletivismo se estabelecesse, ver-se-ia este monopólio concentrar-se simplesmente
entre as mãos de alguns políticos, que acabariam por explorar todo o solo em seu
proveito. Na realidade, a terra é e será sempre monopolizada; e o único remédio,
ou o único paliativo, a este inconveniente é o fracionamento das propriedades, o
que é bom para favorecer também as associações livres de proprietários, para
conciliar com a pequena propriedade a grande cultura. A propriedade individual é
o único contrapeso eficaz que subsiste ainda contra os excessos da centralização
política e administrativa. O exemplo das comunidades de aldeia em Java, tão
admiradas todavia por Laveleye, permite estas apreensões. Partilham-se
periodicamente os lotes de terra, mas o prefeito extrai, apenas para si, dez vezes
mais que seus administrados, e os conselheiros municipais três vezes mais.
Acrescente-se que os habitantes trabalham a terra do prefeito (pág. 66). Em suma,
o prefeito é senhor, e sua assim dita comunidade de bens é uma sorte de feudo. E
este caso não é uma exceção. Cada vez que Laveleye nos faz penetrar no coração
de uma dessas colmeias falansterianas de aspecto idílico a distância, nós
descobrimos algo semelhante. Na Alemanha, segundo Tácito, cada um dos co-
proprietários toma uma parte “proporcional à sua dignidade”. (Ver também páginas
88, 129, 34, 148, 278, 322, 354, 379, etc.). Existe aí alguma coisa para reflexão.
[168] – No velho Egito, “as crianças sucediam a seu pai sem distinção de sexo e,
em geral, em iguais porções, salvo cláusula testamental a favor do
primogênito” (Dareste). Mas “essa cláusula testamental é, para dizer a verdade,
uma compensação. Ela se atém ao fato de que o primogênito entre os filhos está
encarregado de representar a sucessão, enquanto ela permanecer indivisa, e fazer a
partilha entre todos os herdeiros”.
[177] – As técnicas de combate inventadas por Aníbal nas batalhas que travou
contra os exércitos romanos foram consagradas pela história dos conflitos bélicos.
Aníbal foi talvez o maior gênio militar da antigüidade. Filho de Amílcar Barca,
comandante da primeira guerra púnica contra os romanos, Aníbal nasceu em
Cartago no ano 247 a.C. Aos 26 anos, depois do assassinato do pai e do cunhado
Asdrúbal, assumiu o comando do exército. Durante a segunda guerra púnica,
Aníbal reagiu organizando uma expedição à Itália, composta de aproximadamente
quarenta mil homens e grande número de elefantes. Após a travessia dos Pireneus
e dos Alpes, o cartaginês infligiu aos romanos a primeira derrota em Trébia, no
vale do rio Pó, onde incorporou a suas tropas os gauleses cisalpinos. Na batalha de
Trasimeno esmagou as forças de Flamínio, estimadas em 15.000 homens, e
conquistou o domínio da Itália central. G. Tarde, aqui, refere-se à batalha travada
em Canas, campo situado nas proximidades de Bareta, Apúlia, SE. da Itália, em
216 a. C., outra retumbante vitória de Aníbal contra um contingente romano duas
vezes mais numeroso que as tropas cartaginesas. Encyclopaedia Britannica do
Brasil e Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.)
[178] – Neste caso, a medida não é agrária, mas significa um recipiente com
capacidade de um alqueire, para medição de quantidade de grãos de cereais. (N. da
T.).
[179] – Povo da região de Ossétia, no Cáucaso Central, que parece descender dos
antigos iranianos. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).
[183] – Boletim das Leis, ou seja, espécie de diários oficiais da época (N. da T.).
[188] – Uma das mais rigorosas obrigações de direito, em todo país teocrático (e
quase toda sociedade começa por aí), é a obrigação de crer. Ora, na origem ela é
uma simples herança fisiológica. Vós nasceis de pais muçulmanos ou cristãos, vós
deveis crer na Lei de Maomé ou de Jesus, como, sob os merovíngios, as famílias
francas, visigodas, romanas, misturadas sobre o solo gaulês, seguiam cada uma sua
própria legislação. Mas, mais tarde, foi o fato de habitar um país muçulmano ou
cristão que, independente de qualquer parentesco, criou a obrigação da crença
muçulmana ou cristã, como a submissão à legislação nacional, a mesma para toda
uma população, aparentada ou não.
[189] – Ela é exposta e discutida com uma independente simpatia por René
Worms, em sua tese sobre a Volonté Unilatérale Considérée comme Source
d’Obligacion, Giard, 1891 (A vontade unilateral considerada como fonte da
obrigação). Ele mostra que, seja em Direito Romano, seja nas legislações
modernas, deve-se dar um lugar inconfessável, mas real, às obrigações nascidas de
uma vontade unilateral: em Direito Romano, promessas de doações a cidades, a
pessoas morais, votos aos deuses (tornados legados piedosos do Direito Canônico);
em Direito Francês, estipulação por alguém, contratos de seguro de vida em favor
de crianças não intervenientes no contrato, títulos à ordem ou ao portador, ofertas
de negócios, etc.
[194] – Era maometana, que tem como ponto de partida a fuga de Maomé de Meca
para Medina, em 622 da nossa era. (N. da T.).
[203] – Esta diferença pode dirigir-se em parte a que, no silogismo intelectual, por
profunda e infinita que seja a crença contida na premissa maior, jamais esta se
torna inconsciente, operando invisivelmente. Sua majestade permanece sempre
diminuída em comparação à premissa maior, igualmente infinita, do silogismo
moral. Esta pode continuar a agir por muito tempo ainda, após sua desaparição ou
sua morte que não se percebe. Quantos deveres morais sobrevivem aos desejos e às
esperanças religiosas que os fizeram nascer! Mas, quando um dogma é abalado ou
abatido num espírito, todos os princípios que dele decorrem não tardam a tombar
com ele.
[206] – Gostaria muito que se nos guardássemos de julgar, sobre esse simples
enunciado, nossa teoria do valor. Limito-me a citá-lo aqui. Aliás, (na Revue
Philosophique, na Revue d’Économie Politique) tentei esboçá-lo mais
completamente. Tive o prazer de ver Gide, em seu Traité d’Économie Politique,
dar boa acolhida a uma parte dessas idéias e notadamente a esta, de que a crença,
não menos que o desejo, (expressão da necessidade) é um fator essencial do valor.
– Deve-se ter em conta também a repartição, mais ou menos igual ou desigual, das
fortunas. – Acreditei mostrar que o valor tem dois sentidos inversos e
complementares: o primeiro exprimindo o resultado da luta engajada em cada
indivíduo, entre os desejos e as crenças que ele trata de sacrificar uns aos outros; o
segundo exprimindo o resultado do concurso de desejos e de crenças que se
entreajudam e se entreconfirmam.
[213] – Filósofo estóico (60 d.C., morto em data ignorada) que viveu em Roma e
foi escravo de Epafrodito, um liberto de Nero que lhe prodigalizava maus-tratos,
suportados com paciência por Epicteto. Suas doutrinas assemelhavam-se às cristãs,
mas não há prova de contato direto entre este filósofo e pregadores do
cristianismo. Não especulou sobre a natureza, ciência ou bens, mas limitou-se à
doutrina moral, preocupado em indicar ao homem regras práticas de proceder. Foi
exilado em Roma, em 90 d.C., por Domiciano. Não deixou escritos. Sua doutrina,
porém, pôde chegar até nós graças a seu discípulo Flávio Arriano, que redigiu, com
as notas que tomara, as Práticas e o Manual. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N.
da T.).
[214] – A palavra aqui não se insere na acepção comum, mas significa partiário do
Cinismo, enquanto doutrina e modo de vida dos seguidores dos filósofos socráticos
Antístenes de Atenas (444-356 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.),
fundadores da Escola Cínica, que pregavam a volta à vida em estrita conformidade
com a natureza e, por isso, se opunham radicalmente aos valores, aos usos e às
regras sociais vigentes. (N. da T.).
[218] – Por exemplo: Em que sentido é verdadeiro dizer que os fundadores teóricos
do Direito da Gentes moderno hajam aplicado o Direito Natural às relações dos
Estados? Eles acreditaram dever considerar esses Estados como iguais entre si,
iguais em direito, malgrado sua extrema desigualdade de poder, e trata-se de
conciliar juridicamente essas soberanias desiguais. Problema insolúvel, para dizer a
verdade. Quem diz soberania, poder supremo, diz poder sem limite territorial. Esta
idéia de uma multiplicidade de soberanos, supostos senhores absolutos cada um em
seu domínio pequeno ou grande, e nisso iguais, é o que há de mais anárquico no
fundo, e mesmo contraditório. A concepção que reinava no mundo romano-cristão,
após a própria queda do Império, segundo a qual não havia nem podia haver senão
uma soberania no mundo, dividida, aliás, em duas ou mais pessoas, – como a
divindade tripla e una, da qual a idéia foi talvez sugerida pela divisão do poder
imperial – era tudo de outro modo natural, se se qualificar assim toda a idéia
própria a estabelecer a ordem, o equilíbrio e a paz no mundo, e a produzir o mais
lógico dos arranjos.
[221] – Guyau, Jean-Marie (1854-1888). Poeta e filósofo francês. Sua obra procura
valorizar a função da solidariedade na ética. Esboço de uma moral sem obrigação
nem sanção. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).
[225] – Arma antiga, formada de arco, cabo e corda, com que se disparavam
pelouros ou setas. (N. da T.).
[228] – Ver sua muito interessante introdução à Hist. du Droit de d’Allemagne, por
F. Schulle.
[230] – Ver a esse respeito o início de um livro dos mais instrutivos para quem se
interessa pela embriologia das sociedades, Le Formation des Cités chez les
Populations Sédentaires de l’Algérie, por Masqueray (Paris, Leroux, 1886).
[233] – Que há de mais nacional, de mais original que o Direito Egípcio? Todavia,
nada mais composto. O Egito antigo, há lugar para supor, não era senão uma
combinação de raças berberes e de raças negras da África com semitas vindos da
Ásia. Imaginem-se as seqüências incalculáveis do acaso histórico ou pré-histórico
desse encontro.
[238] – Já consagrei a esse assunto meu livro sobre Lois de l’Imitation (Alcan).
[242] – Divindade védica da antiga Índia, deus do céu e da chuva, protetor dos
guerreiros e inimigo das trevas. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).
[243] – Os traços característicos dos quais ela se compõe, dos quais ela é a
combinação original, são muito bem definidos por Fustel de Coulanges: “Posse
condicional do solo em lugar da propriedade; sujeição dos homens ao senhor em
lugar de obediência ao rei; hierarquia dos senhores entre eles em lugar do feudo e
da homenagem.”
[249] – Diz-se que ela havia existido no Japão, mas muito se tem forçado a
proporção das analogias e fechado os olhos às suas diferenças.
[250] – Em sua bela obra sobre a civilização árabe, o Dr. Le Bon dá argumentos
especiais em favor da primeira opinião.
[252] – Pessoas que tem relação de parentesco (entre indivíduos de qualquer sexo)
traçada por linha exclusivamente masculina. A palavra vem do latim agnatione.
(N. da T.).
[254] – Criada por Shimón Ben Shetaj, no ano 80 antes da Era Comum, a ketubá é
o documento legal que atesta o matrimônio. Escrita em aramaico, linguagem das
massas e de todos os documentos legais desse período, enumera as obrigações
legais do marido para com a esposa em caso de morte ou divórcio. As obrigações
da esposa para com seu marido não são detalhadas na ketubá. Estas sempre foram
dadas como conhecidas. KOLATCH, Alfred J.. El Libro Judio de Por Que, L. B.
Publishing CO., Reencuentro, L. B. Editorial C.C., Jerusalém, Israel, 1995. (N. da
T.).
[257] – Antigo país da França que pertencia aos condes de Foix, em Navarra, e foi
reunido à França por Luiz XIII em 1620. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit.
(N. da T.).
[260] – No original Bourgage, herança plebéia que, situada numa cidade ou num
burgo fechado, não era submetida a nenhuma espécie de taxa de censo nem feudal.
Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).
[262] – Da tribo de francos que vivia primitivamente nas margens do Issel. (N. da
T.).
[263] – Vale lembrar que a Lei Sálica excluía do trono as mulheres. (N. da T.).
[266] – Não há lugar para comentar aqui. Mas ao leitor instruído não faltarão
exemplos colocados pela história das ciências ou das indústrias. A descoberta de
Newton, por exemplo, consistiu em olhar duas idéias estranhas até uma à outra: a
queda dos corpos terrestres e a gravitação da Lua em torno da Terra, como duas
conseqüências de um mesmo princípio. A invenção da locomotiva consistiu em
reunir teleologicamente esses dois modos de ação até separados, o pistão à vapor e
a locomoção sobre rodas, etc.
[268] – Doutor judeu do século I a.C.. Autoridade em leis e doutrina judaicas, foi
presidente do Sinédrio. Era liberal e compôs um método de interpretação dos livros
sagrados denominado As Sete Regras. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).
[270] – Phratries, palavra de origem grega que significa uma subdivisão da tribo.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).
[271] – Aqui trata-se de subdivisão das tribos entre os romanos e também o lugar
de reunião de cada uma dessas subdivisões. Nouveau Petit Larousse Illustré, op.
cit. (N. da T.).
[272] – Do volapuque Volapük, de vol, mundo, mais pük, língua. Trata-se de uma
língua auxiliar de comunicação internacional, lançada em 1879 pelo alemão Mons.
Johann Martin Schleyer (1831-1912). Dicionário Aurélio Século XXI, ed. 2001. (N.
da T.).
[276] – Isto é tão verdadeiro que, mesmo em nossa própria época, a cidade, de
acordo com Arsène Dumont, é a unidade lingüística. (Rev. Scientif., 10 de
setembro de 1892).