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As Transformações do Direito (Estudo Sociológico) – Gabriel Tarde

Tradução: Maristella Bleggi Tomasini

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© 2002 – Maristella Bleggi Tomasini


mtomasini@cpovo.net

Índice das Matérias


Introdução à Obra
Maristella Bleggi Tomasini
Jean-Gabriel (de) Tarde (1843-1904)
O Jurista Sociólogo
Vida e Pensamento
Tarde e a Sociologia do Direito
A Imitação
As Transformações do Direito
Obras
A Sociologia
Aspectos Históricos
Principais Correntes Sociológicas
Organicismo Positivista
Teorias do Conflito
Formalismo
Behaviorismo Social
Funcionalismo
Conclusão
Repercussão da Obra de Gabriel Tarde

As Transformações do Direito

Prefácio à 2a Edição Francesa


Introdução
Observações Preliminares
Lenta introdução do fermento evolucionista e antropológico no estudo do Direito Civil. A evolução jurídica e a
antropologia jurídica. Falsa concepção ordinária da evolução. Similitudes numerosas entre as diversas fases
atravessadas pelos Direitos independentes – problemas que elas suscitam.
Capítulo Primeiro
Direito Criminal
A idéia espontânea do Direito nascida da simpatia, fonte da imitação. Distinção fundamental entre as relações
internas do grupo primitivo e as relações externas com outros grupos. Antigüidade do sentimento da culpabilidade –
dupla evolução paralela e contrária.
Capítulo Segundo
Processos
Similitudes. Ordem lógica e irreversível na sucessão de certos ordálios. Diferenças. Dois sentidos da palavra
evolução, propagação de exemplos ou série de iniciativas. Houve ponto de partida semelhante? Ou caminho
semelhante? Ou semelhante ponto de chegada? Direito Romano e Direito Ateniense comparados. Justiça chinesa. O
processo do amanhã.
Capítulo Terceiro
Regime de Pessoas
A família primitiva. Preconceitos científicos a este respeito. Promiscuidade, matriarcado, patriarcado: quid?
Couvade. Fases curiosas dos direitos da mulher no curso da evolução jurídica no Egito. Gerontocracia. Diversidade
inicial das constituições familiares. Maioridade, cada vez menos precoce. Transformações sucessivas da idéia de
nobreza. Lei superior: alargamento contínuo do círculo social, do círculo jurídico.
Capítulo Quarto
Regime de Bens
Formas primitivas da propriedade. Três tipos de provas invocadas a favor do comunismo primitivo. Pretensa
reprodução desse comunismo nas nascentes colônias modernas. Exame dessa alegação de Sumner-Maine e de A.
Loria. As sociedades animais segundo Espinas. O mir, a allmend, a zadruga, o tonw-ship, etc. A comunidade
familiar seguiu-se ou precedeu à comunidade de aldeia? O verdadeiro significado de ambas. Retomada linear,
retomada vicinal, retomada feudal, direito de retratação, recompra: quid? As pleiges. O carnaval. A ménage
nivernais e os monastérios. Explicação geral: duas grandes causas que fizeram variar o regime e a propriedade
coletiva ou individual. Prescrição: Por que sua duração se vai prolongando? Sucessões.
Capítulo Cinco
Obrigações
I. Erros acreditados. Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações. II.
Obrigações contratuais. Sua antigüidade. Freqüentes entre os membros do grupo social primitivo, raras de grupo
para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções, pleiges. O executor contratual no Egito e na Grécia. Arras.
Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas escriturais, abrandamento de cerimônias, aperfeiçoamentos
industriais, abrandamento das penalidades e dos procedimentos. Faculdade de retratação. Causas de nulidade. III.
Obrigações não contratuais. Sua proporção é crescente? Importância teórica exagerada da idéia de contrato. A
vontade unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato, comando reflexo e recíproco. IV. Obrigação nascida
da combinação de uma vontade com um juízo. Leis de causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo
intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral. V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma
mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação,
do mesmo modo, nítidas e gerais.
Capítulo Sexto
O Direito Natural
O Direito Natural e o Direito das Gentes entre os romanos e os modernos. Razão de ser de sua dualidade e de sua
convergência. Ambigüidade da idéia de natureza: relação intra-orgânica e relação extra-orgânica. Benthan e
Rousseau. Indeterminação essencial da idéia de Direito Natural. Exemplos. Direito Internacional. Verificação
manifesta de nossas explicações neste ramo do Direito: Mare liberum et mare clausum. Contrabando de guerra.
Antinomia da soberania dos Estados e da liberdade dos indivíduos.
Capítulo Sétimo
O Direito e a Sociologia
I. Novas críticas contra a idéia da evolução uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição. Pretendida
necessidade de transformações. Mutações jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou interiores de idéias
estrangeiras ou imprevistas. Exemplo: o Direito Armênio. Retificação de erros. II. Novas considerações em apoio à
importância da imitação. As histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das sociedades. Origens das
instituições feudais. Costumes pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine”. Retirada linear. Direito de
primogenitura. Simplificação dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os juristas. III. Desempenho da
invenção e da lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da
lógica social. O gênio inventivo subordinado às grandes necessidades do organismo. Dualidade destas necessidades
fundamentais, de nutrição e geração; necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente. Convergências ou
coincidências das morais. IV. O Direito e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.

Bibliografia Consultada
Notas

Todo livro, seja ele um poema


ou um romance, é um
Catecismo ou um Código em
projeto. Não há livro, sobre
não importa que assunto, que
não aspire a regrar a conduta
ou o pensamento dos homens,
a ensinar-lhes alguma verdade
ou a fazer-lhes algum bem.
Gabriel Tarde

As Transformações do Direito
Estudo Sociológico
G. Tarde
Membro do Instituto
Professor do Collège de France

Obra baseada na 7a edição francesa de 1912, com notas, comentários, estudo biográfico do autor,
resumo histórico da Sociologia e seus principais representantes

Jean-Gabriel (de) Tarde


(1843-1904)

O Jurista Sociólogo
Foi num final de tarde que, entre prateleiras abarrotadas de livros, encontrei
um pequeno, gasto, com as páginas amareladas e quebradiças. Chamava-se As
Transformações do Direito e vinha assinado por G. Tarde. Era Gabriel Tarde,
crítico mordaz de Lombroso e opositor ferrenho de O Homem Delinqüente, obra
que eu acabara de traduzir. Lembrava-me bem daquele que dissera de Lombroso
que ele foi como café... excitou a todos, mas não alimentou ninguém.
No prefácio, a primeira surpresa: Os pequenos livros têm a vantagem das
preces curtas: se não vão todos ao céu, vão direto ao coração do leitor
contemporâneo que está sempre apressado. Era bonito. Original. Segundo me
disseram, todavia, não era interessante reeditá-lo. Já sofrera rejeições e não tinha
futuro. Levei o livro para casa mesmo assim e comecei o trabalho, cuja
complexidade não demorou a se mostrar claramente. Pouco mais de duzentas
páginas de pura essência escritas em francês clássico entremeado de expressões
idiomáticas, longas perguntas e longas respostas, tudo articulado e funcional... mas
profundamente filosófico. Não seria uma tarefa fácil nem rápida.
Não havia, à época, quase nenhum material disponível sobre Gabriel Tarde,
e eu contava apenas com duas edições de As Transformações do Direito. À medida
em que a tradução avançava, porém, começaram a aparecer outras obras do mesmo
autor numa sincronização notável. Bastou uma consulta à internet para que se
descobrisse a importância dada a todos os seus livros na Europa, especialmente
pela expectativa dos cem anos de sua morte, agora, em 2004. Dediquei-me, então,
não apenas ao trabalho de tradução propriamente, mas a pesquisas paralelas que
pudessem, de modo razoável, apresentar o autor aos seus leitores brasileiros.
Descobri um Gabriel Tarde surpreendente. Filósofo. Irônico e, ao mesmo
tempo, terno; sutil, sem falar no que mais impressiona: o terreno quase metafísico
que reclama àquilo que seriam as transformações pelas quais o Direito passou ao
longo da História, a coragem de, por vezes, abandonar a linguagem objetiva e fazer
uso de imagens poéticas, apelando ao coração e à subjetividade. Para quem viveu
no tempo em que um determinismo avassalador pretendia explicar e reduzir o
universo à mecânica, a sociologia à uma ciência natural, o homem a uma espécie
animal ainda não muito distanciada do macaco; para quem viveu num século XIX
tão tipicamente pretensioso, Gabriel Tarde surge quase romântico, ao reclamar a
cada um sua originalidade irredutível.
Encontrar, num livro de Direito, num capítulo dedicado às insípidas
Obrigações, um trecho como este: Mas quem de nós não inventa e não inova em
algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que
imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo
mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma
modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos?
Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja
misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível,
escapa à sonda do psicólogo.
Quanta coragem, quanta ousadia! Ousar insinuar, – num livro de direito,
obra supostamente técnica, notem bem, – que cada um de nós possui uma fonte
misteriosa que escapa à sonda do psicólogo...
Foi por isso que não pude fugir ao subjetivismo também, e escrevo na
primeira pessoa do singular, ao arrepio da melhor técnica e das mais
recomendáveis precauções. Seria, para mim, uma tarefa irrealizável a de traduzir
um livro como este sem ao menos tentar conhecer (ou, quem sabe, tentar intuir)
quem foi Gabriel Tarde, de onde partiram observações tão sagazes quanto
originais: sagazes, porque correram contra a corrente de pensamento imposta à
época em que viveu; originais, porque idéias e linguagem aliam-se de maneira
simbólica, quase que esgotando todos os recursos semânticos possíveis, e
causando, no leitor, a impressão concreta de poder ultrapassar o pensamento
formal. Gabriel Tarde, assim, requer de seu público a qualidade do sábio que deve
enxergar pelo avesso a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha pelo
direito.
Divido com o leitor aquilo que a curiosidade me levou a descobrir sobre
Jean-Gabriel de Tarde, do qual outras duas obras já estou traduzindo também, A
Criminalidade Comparada e A Opinião e a Multidão. Vejamos sua biografia e, em
tese, seu pensamento.

Vida e Pensamento
Sarlat, no Périgord, foi sua cidade natal. Nasceu em 12 de março de 1843,
numa antiga família de notáveis. Seu pai era juiz de instrução, e sua mãe pertencia
a uma família de juristas. Diz-se que Tarde fez brilhantes estudos entre os jesuítas
de Sarlat, – ainda que não lhe agradasse o internato, – obtendo, em 1860, o
bacharelado em Letras e depois em Ciências. Preparou sua entrada na Escola
Politécnica, mas, em razão de problemas de saúde, como veremos depois, optou
pelo estudo do Direito em Toulouse, estudos estes que terminou em Paris em 1866.
No ano seguinte tornou-se secretário assistente do juiz de Sarlat e depois juiz
substituto, também em Sarlat, de 1869 a 1875; enfim, juiz de instrução até 1894. Já
em 1877 desposara a filha de um conselheiro da Corte de Apelação de Bordeaux ,
tendo com ela três filhos.
A partir de 1880, publicava regularmente na Revue Philosophique e, em
1887, nos Archives d’Anthropologie Criminelle, mantendo abundante
correspondência com criminólogos italianos. Em 1894, seus amigos, numerosos
entre os penalistas, o fazem nomear diretor do serviço de estatística judiciária do
Ministério da Justiça em Paris, pois, desde 1890, com a obra As Leis da Imitação,
tornara-se um homem famoso. A partir de 1896 dá conferências no Collège Libre
des Sciences Sociales e, após um primeiro fracasso, é eleito professor no Collège
de France em 1900. Ensinou até sua morte, que ocorreu em Paris em 1904.
Estes são seus dados biográficos em ordem cronológica. Mas o que mais
poderemos saber sobre esse filósofo, literato, poeta, psicólogo, criminólogo que
alcançou mesmo a celebridade em seu tempo, mas que foi rapidamente esquecido?
Veja-se que assinou seu nome sempre como Gabriel Tarde, mas sabe-se que
poderia assiná-lo também Gabriel de Tarde. Gabriel Tarde ou Gabriel de Tarde?
Ele jamais fez uso da partícula nobiliárquica, ao contrário de seu pai e de seus
filhos. Como pertencesse a uma das mais antigas famílias da região onde nasceu,
poderia indicar tal origem através do uso da partícula de (indicativa de nobreza),
embora não o tenha feito. Jean Tarde (1561-1636), seu antepassado, capelão
particular de Henrique IV, foi um célebre astrônomo, amigo de Galileu que o
presenteou com uma de sua lunetas.
Com apenas 7 anos, o pequeno Gabriel ficou órfão de pai, e sua formação,
junto aos jesuítas de Sarlat, obrigou-o a suportar anos terríveis de internato, meio
depravador, quase tanto quanto a prisão, escreveria ele mais tarde, onde as
crianças são entregues às sugestões violentas das piores entre elas.
Após seu bacharelado em Letras, como dissemos, pretendia cursar a escola
politécnica, quando enfrentou sérios problemas de saúde. Foram problemas que
afetaram sua visão. Tarde sofreu crises dolorosas de oftalmia, numa cegueira quase
total, que o forçou a ficar num quarto escuro durante meses.
O contato com sua obra vai nos revelar um homem sensível, modesto,
voltado ao bem. Apesar da lógica com que desenvolve a temática proposta, por
vezes o texto revela-nos algo de subjetivo e profundo, quase romântico. Foi
justamente este o aspecto que mais incitou minha curiosidade, e levou-me a
pesquisar e procurar compreender quais teriam sido as influências sofridas pelo
autor, influências estas que deveriam ter sido, afinal, muito marcantes. Dados
disponíveis sobre Tarde podem esclarecer em parte tal peculiaridade. Durante sua
juventude que, como vimos, foi bem difícil, descobriu a obra de Maine de Biran,
um grande sofredor. Trata-se de Maria Francisco Pedro Gonthier de Biran, filósofo
francês (1799-1824), considerado um dos baluartes do espiritualismo europeu.
Espiritualismo aqui, – é bom gizar, – de ordem metafísica especulativa. Maine de
Biran preocupou-se com a substância do eu (que não deve ser confundida com a
alma teológica), como “uma força hiperorgânica que se faz consciente de si mesma
quando move algum grão corpóreo”. Especulações à parte, as obras deste filósofo
chegaram a ser republicadas no século XX. Temos: Oeuvres, Paris, 1920; Maine de
Biran, Antologia, M. T. Antonelli, Bréscia, 1948; Oeuvres Choisies, Paris, 1942;
M. de B. e son Oeuvre Philosophique, Paris, 1931, etc. Considero importante, para
uma melhor compreensão do pensamento de Gabriel Tarde, que nos detenhamos
um pouco mais sobre Biran, porque alguns trechos deste livro dependem de um
razoável domínio dos aspectos filosóficos que orientaram a visão de Gabriel Tarde
no tocante às transformações sofridas pelo Direito.
Trata-se do mais vigoroso pensador francês da primeira metade do século
XIX. Muito mais que o de seus contemporâneos, o pensamento de Biran é operante
ainda hoje e teve profunda influência sobre o Intuicionismo[1] e sobre o
Espiritualismo[2] contemporâneos, especialmente sobre Bergson. O interesse
constante e fundamental de Biran é “a inclinação sobre nós mesmos” como a mais
sólida justificativa da tradição religiosa. A vida íntima seria derivada da
consciência, o “sentido da existência individual”, sem a qual não há conhecimento.
Atividade e passividade seriam elementos sempre presentes no ato de conhecer. O
eu não poderia conhecer-se como força espiritual sem agir sobre algo que lhe
resiste: a consciência da própria espiritualidade é dada ao eu pela resistência do
corpo, fatos indissoluvelmente ligados. O esforço, – dado pela experiência interna,
– identifica-se com a causalidade. O eu que se intui imediatamente como esforço
voluntário é o sujeito singular que se vive, mas não se exprime. Biran chama-o
“homem interior”, em oposição ao “homem exterior” captado da análise da ciência.
Na intuição de si mesmo, o eu deduz os conceitos de causa, substância, força,
unidade, etc., que aplica à realidade externa. Afasta-se aqui das formas a priori de
Kant e das idéias inatas de Descartes e do hábito de Hume. Atrás dos fatos e das
leis que a ciência descobre, haveria um mundo de forças semelhantes à nossa
atividade voluntária: nas coisas haveria um princípio de atividade espontânea que
escaparia ao cientista, mas não ao filósofo.
Além de Biran, ao longo da juventude, fase depressiva de sua vida, Tarde leu
também Teresa de Ávila. Minha grande dor – escreveu ele – é não poder satisfazer
minha necessidade suprema de amor. Quem amar? Quem me ama? É a melancolia
célebre dos jovens ao final do século XIX. Lê os estóicos, Hegel, Cournot, escreve
poemas e dá longos passeios a pé.
Quanto a Antônio Agostinho Cournot (1801-1877), trata-se de alguém que
merece um comentário à parte. Foi economista, matemático e realizou
investigações na área dos cálculos de probalidade e fundamentos do conhecimento,
bem como teorias econômicas sobre a riqueza e o encadeamento de idéias nas
ciências e na História. Sua teoria econômica sobre o monopólio de preços ainda é
adotada, assim como outras referentes às finanças públicas. No exemplar de As
Leis da Imitação que tive em mãos (6a edição, Félix Alcan, Paris, 1911), Gabriel
Tarde escreveu: À memória de Cournot eu dedico este livro.” Tal demonstração
de respeito por parte do autor foi, para mim, um indício seguro, tanto da
consideração de Tarde pela obra de Cournot, quanto das bases filosóficas e lógicas
da teoria da imitação, teoria esta que não pecou pela superficialidade ou
precipitação, mas que requereu do autor profundos embasamentos que não refogem
à Teoria do Conhecimento. Melhor prova disso seja talvez a reedição na França,
não só de As Leis da Imitação, como de praticamente toda a obra de Tarde,
reedições que vêm acompanhadas de comentários, entrevistas e discussões a
respeito do alcance de suas teorias que, apesar dos quase cem anos que nos
separam de sua morte, permanecem atuais sob muitos aspectos.
Chegam as primeiras intuições filosóficas. Tarde sentia grande atração pela
matemática, mas terminou optando pelo Direito. Felizmente, a oftalmia
desaparecera e ele segue sua carreira na magistratura, casando-se e tornando-se pai
de três filhos.
Foi sempre um homem apaixonado por seu trabalho. Intelectual poderoso,
não poderia deixar de se interessar pelos debates, crescentes à época, em torno da
Criminologia, ciência nascente. Inspirado, escreve inúmeros artigos e começa a
corresponder-se com César Lombroso, com o qual empreendeu debates que
passaram da polidez inicial aos mais vivos insultos. A propósito, Criminalidade
Comparada, obra que, em breve, será objeto de edição comentada, foi escrita a
partir de o O Homem Delinqüente, e Tarde demonstra aí toda sua sagacidade de
crítico mordaz e opositor ferrenho à tese do criminoso nato. Eis como ele dá início
ao livro: Estais curioso para conhecer a fundo o criminoso, não o criminoso de
ocasião que a sociedade pode imputar-se na maior parte, mas o criminoso nato e
incorrigível pelo qual a natureza, quase unicamente, – dizem-nos, – é
responsável? Lede a última edição de O Homem Delinqüente de Lombroso [3] que
foi, há dois anos, traduzida para o francês. Quanto é lamentável que uma obra
dessa força e dessa densidade, uma tal concentração de experiências e de
observações tão engenhosas quanto perseverantes, e onde se resume o trabalho
não de todo estéril de uma vida inteira, de toda uma escola inovadora, não pôde,
malgrado a força dos erros, tentar a pluma de um tradutor francês!
Mas foi em 1890 que a notoriedade chegou para Gabriel Tarde com As Leis
da Imitação. A partir daí chegou à celebridade, começando uma nova vida em
Paris. Convites, festas, palestras, enfim, uma vida agitada de pensador reconhecido
e famoso ao seu tempo. Não escreveu, porém, apenas livros que se poderiam
chamar técnicos. Eu não podería deixar de falar sobre o que encontrei
a respeito do livro chamado Fragmento da História Futura (Fragment d’Histoire
Future). Trata-se de um fascinante romance de antecipação, recentemente
reeditado na França, como quase toda a obra de Tarde. Neste interessantíssimo
livro, ele dá uma versão poética de todo seu sistema, imaginando que o Sol teria se
extinguido e a Terra ter-se-ia transformado num globo gelado sob a noite eterna. A
humanidade, então, deveria encontrar o caminho de sua regeneração numa
urbanidade escondida, perto do coração quente da Terra, lugar onde os desejos
circulariam instantaneamente, em tempo real, enquanto o espaço seria reduzido a
uma abstração. Tarde pretenderia com isso propor uma teoria sociológica que
pudesse ser válida a despeito do paradigma espaço-tempo? É difícil imaginar sem
haver lido a obra, mas é permitido supor que não lhe faltavam qualidades
intelectuais para enfrentar tal desafio.
Teve uma vida agitada após a celebridade. Escreveu muito, alcançou a fama
e deixou a todos uma obra marcante, perturbadora, eu diria, para aqueles que
empreenderem uma cuidadosa leitura de seus textos. Foi na noite de 12 de maio de
1904, aos 61 anos, que morreu Gabriel Tarde, que também foi poeta: Como todo
ser, estamos destinados a entrar em breve, pela morte, no infinitesimal de onde
saímos, neste infinitesimal: o que poderia ser, no fundo, quem sabe? Tudo além da
verdade, tudo asilo póstumo, inutilmente procurado nos espaços infinitos [4].
O pensamento de Tarde só pode começar a ser compreendido através de sua
concepção da imitação. O célebre autor via aí o princípio de quase toda explicação
sociológica: a ação de um espírito sobre o outro. É de salientar que, à época em
que Tarde iniciou seus estudos, a influência de Spencer era grande, assim como a
da Evolução, do biologismo. Mas, a Tarde, jamais agradou a idéia de admitir o
animal como ascendente do homem e tampouco aceitou que tudo evolui da
homogeneidade confusa para a heterogeneidade definida. Empreendeu uma
verdadeira luta contra todas as formas de interferência do biologismo, do
transformismo e do organicismo em Sociologia. O que nos importa a Sociologia
aqui? Este não é um livro de Direito? Sim, trata-se de um livro de Direito, mas o
leitor não pode se esquecer nunca de que, para Tarde, o Direito deve ser
compreendido como um ramo da grande árvore da Sociologia.
Além disso, para ele, a Sociologia fundamentava-se na Psicologia, no
fenômeno da imitação principalmente. Mas, quando a imitação não pudesse estar
em causa, a invenção explicaria o fenômeno social. A invenção, um fenômeno
idêntico àquele da ordem natural, seria causa de imitações posteriores. O espírito
inventivo a acompanhar o evoluir do tempo, rumo ao aperfeiçoamento que
desemboca no progresso. A lógica social, por sua vez, concilia crenças e desejos.
Quase toda Psicologia Social originou-se nos trabalhos de Gabriel Tarde, que
tiveram grande desenvolvimento na Itália.
Destacamos: Existir é diferir; nossas semelhanças, que o sábio estuda,
nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença
essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que
pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente,
que não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas
fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra.
Quando Tarde afirma que existir é diferir, coloca a diferenciação como
princípio de sua filosofia, atuando juntamente com a preexistência dos possíveis e
o caráter infinitesimal do real. Os seres reais, como os eventos e as coisas,
poderiam não acontecer, e isto já fora sustentado por Leibniz, mas, uma vez que
ocorram, que existam, que aconteçam, sua existência se torna necessária. Assim, a
realidade compõe-se de possibilidades, é virtual, e cada uma de suas emergências
não é senão uma realização probabilística pontual. As entidades não teriam
atributos, mas propriedades, e a realidade, seja das coisas, seja dos homens ou da
sociedade aparece como um continuum de diferenças, de integrações sucessivas de
elementos infinitesimais heterogêneos. Assim o existir é integrar o infinito no
finito. A sociedade é o plano onde a contingência vem à consciência, mas esta é
sempre individual, porque, – em oposição àquilo em que acredita Durkheim, – a
consciência coletiva não tem sentido. A psicologia tardiana entende assim explicar
como indivíduos diferentes chegam a pensar a mesma coisa, ou influenciar o
pensamento dos outros. (Jean-Baptiste Marangiu)[5]. No prefácio da obra A
Opinião e a Multidão, destaca: A expressão psicologia coletiva ou psicologia
social é freqüentemente compreendida num sentido quimérico que importa, antes
de tudo, descartar. Tal sentido consiste em conceber um espírito coletivo, uma
consciência social, um nós que existiria fora ou acima dos espíritos individuais.
Não temos qualquer necessidade, segundo nosso ponto de vista, desta concepção
misteriosa, para estabelecer, entre a psicologia ordinária e a psicologia social, –
que chamaremos inter-espiritual, – uma distinção bastante nítida. Enquanto a
primeira, com efeito, liga-se às relações do espírito com a universalidade dos
outros seres exteriores, a segunda estuda, ou deve estudar, as relações mútuas dos
espíritos, suas influências unilaterais e recíprocas – unilaterais primeiro,
recíprocas depois. Logo, existe entre ambas, – a psicologia ordinária e a
psicologia social, – a diferença do gênero à espécie. Mas a espécie, aqui, é de uma
natureza tão singular e tão importante que deve ser destacada do gênero e tratada
por métodos que lhe sejam próprios.[6]
Contrariamente a Emile Durkheim, seu principal adversário, que foi um
universitário profissional, Tarde poderia ser chamado de um homem da terra, um
jurista ligado à sua província natal que, notadamante durante os anos em que
exerceu a magistratura em Sarlat, observou de forma atenta o comportamento
social de seus semelhantes, de preferência a elaborar uma doutrina universitária.
Suas experiências como juiz de instrução levaram-no primeiro à Criminologia, a
nova ciência desenvolvida pela escola italiana no fim do século XIX. Foi aí que ele
se opôs a César Lombroso, o célebre professor de Medicina Legal, Psiquiatria e
Antropologia Criminal na Universidade de Turim. Mordaz, não apenas em A
Criminalidade Comparada, – em trecho citado mais acima, – mas ainda em sua
Filosofia Penal, Tarde expressou-se assim: “...o mérito de Lombroso não é nada
diminuído pelas pesquisas de seus predecessores: ele é maior a nossos olhos por
esta ausência de método, por esta insuficiência de crítica, por esta complicação
desordenada de fatos heterogêneos, por esta tendência a tomar como prova de
uma regra um acúmulo de exceções, enfim, por esta precipitação nervosa de
julgamento e esta obsessão de idéias fixas, eu quero dizer, de idéias correntes que
se observam em todos os seus escritos, e que sua impetuosidade arrebatadora, sua
riqueza de percepções, sua engenhosidade original não chegam a fazer esquecer.
Este pesquisador entusiasta não é menos o verdadeiro promotor daquilo que ele
chama, – de maneira assaz imprópria, de resto, – a antropologia criminal, e o
impulso que incita, nas múltiplas vias desse ramo de estudos, mesmo fora da
Itália, tantos espíritos distintos, emana dele [7].”
Depois, no terreno da Sociologia, ele desenvolveu, desta vez contra
Durkheim, uma psicologia social do comportamento dos indivíduos. Os fenômenos
coletivos deveriam ser tratados, segundo ele, como fenômenos psicológicos
ordinários. A evolução não vai do simples ao complexo, mas do complexo ao
simples, e deve-se sempre considerar que o heterogêneo é anterior ao homogêneo.
O fato social deve ser definido a partir de interações, de inter-relações entre as
consciências individuais.
Mas o que pensava Durkheim? Durkheim era considerado discípulo de
Augusto Comte e, para ele, o fato social deveria ser visto como coisa, coisa não
material, mas existindo exteriormente às consciências individuais. O caráter
científico deste fato, necessariamente, exigiria sua sujeição a leis determinadas.
Trata-se do sociologismo positivista, com caráter de independência em relação às
consciências e às ações individuais que Durkheim separa dos fatos sociais, para
ele, peculiares ao organismo social: a sociedade vista como uma realidade sui
generis, com natureza própria e independente das naturezas individuais.
Mas autores como Durkheim não conseguem explicar como é que o coletivo
social pode ser assimilado coercivamente pelos indivíduos sem que existam
relações intermentais. Tarde critica este caráter coercivo, exterior e coletivamente
orientado que empresta ao fato social. Aqueles escritores imaginam que estão
declarando uma verdade com grande peso quando eles afirmam, por exemplo, que
as línguas e as religiões são produções coletivas; que as multidões, sem um líder,
construíram o grego, o sânscrito e o hebreu, tal como o Budismo e a Cristandade,
e que as formações e transformações das sociedades são sempre explicadas pela
ação coerciva do grupo sobre os seus membros individuais. (...) A falha destes
autores está, – segundo Tarde, – em não perceberem que, postulando uma força
coletiva, a qual implica a conformidade de milhões de homens agindo juntos sob
certas relações, eles não prestam atenção a uma grande dificuldade,
nomeadamente, o problema de explicar como é que uma tal assimilação geral
podia alguma vez ter lugar. Tarde aceita e propõe a análise da relação
intercerebral de duas mentes, uma refletindo a outra: Apenas assim podemos
explicar os acordos parciais, o bater dos corações em uníssono e as comunhões de
alma, as quais, uma vez ganhas, perpetuadas pela tradição e imitação dos nossos
antecessores, exercem no indivíduo uma pressão que é freqüentemente tirânica,
mas saudável. Se somos governados por modelos coletivos e interpessoais, a
pressão para a adoção desses modelos não é propriamente exterior, mas resultante
do contágio imitativo entre indivíduos, contágio este que pode vir, por exemplo, da
tradição, da educação, dos costumes, da moda. Neste sentido, a invenção entra
como fonte de iniciativas criativas, individuais e independentes, dependente das
leis da imitação efetivadas na atividade intermental, na medida em que é a partir da
invenção que surgem novos modelos a serem imitados. (Marco António Antunes,
Universidade da Beira Interior[8])
Durkheim e Tarde mantiveram polêmica. Ora, para o primeiro, por exemplo,
a horda seria uma espécie de protoplasma do social, da horda passa-se ao clã.
Estranhamente, o clã deveria preceder à família. Concepção curiosa, mas princípio
essencial e necessário à concepção de Durkheim, princípio este que deve ser aceito
como verdadeiro, embora seja natural e humano que os indivíduos se
congregassem primeiro em famílias... Já para Gabriel Tarde, não se poderia admitir
o determinismo dessa afirmação e, muito menos, conferir-lhe a qualidade
dogmática da premissa em que se baseia.
Na França, a influência póstuma de Tarde foi reduzida, se comparada àquela
de Durkheim, que foi sempre sustentada pela Sorbonne, oficial, vencedora e a
serviço da república laica. Nos Estados Unidos, Tarde, notadamente, influenciou
James Mark Baldwin (1861-1934, fundador do American Journal of Psychology, e
Edward Alsworth Ross, 1866-1951). No livro que foi considerado como um
referencial de autoridade nos Estados Unidos, nos anos 20-40, Introduction to the
Science of Sociology, de Robert Park e Ernest Burgess, Tarde é considerado como
um autor importante, tão importante quanto Durkheim.

Tarde e a Sociologia do Direito


Segundo Tarde, a vida em sociedade necessita de uma coesão (liame social),
teoria que ele aplica às transformações do Direito e igualmente à sociologia do
crime. Ele fez suas as primeiras descobertas da psicologia experimental na École
de la Salpétrière (Jean-Martin Charcot, 1825-1893; Alfred Binet,1857-1911). Para
ele não há outra realidade senão a existência de consciências individuais. Os
indivíduos, por sua vez, não se unem uns aos outros senão a partir do momento em
que adotam um modelo de referência e imitam esse modelo. Esta imitação não se
faz sem resistência, sem oposição; mas é ela que permite a adaptação social, a vida
em sociedade, o liame social.

A Imitação
“Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o
artista olha pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas
variações geniais e fugidias, mas que o sábio deve
enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas
mensuráveis, únicas enumeráveis, únicas formuláveis em
dados estatísticos ou em leis científicas.” [9]

A mais conhecida e a mais célebre das obras de Gabriel Tarde, As Leis da


Imitação (1890), apresenta a sociologia do ponto de vista do pluralismo da
dinâmica das relações entre indivíduos e grupos. Tarde vê, na imitação, a
característica constante do fato social e condena os teóricos organicistas e
evolucionistas. O mesmo pensamento expresso em As Leis da Imitação, bem como
seu questionamento frente aos evolucionistas, repete-se nas Transformações do
Direito, onde cabe destacar: Os evolucionistas, malgrado tudo, concordam, pois,
em afirmar a existência de uma lei única necessária de evolução jurídica; mas seu
desacordo começa quando eles se atrevem a formular e a precisar as fases que o
Direito estaria subordinado a atravessar em sua trajetória histórica.
O que motiva fundamentalmente o indivíduo são a crença e o desejo. Todas
as crenças são motivadoras, as crenças ideológicas, mas também as outras, e é o
desejo que alimenta a crença. Veremos, neste livro, esta mesma perspectiva
aplicada a uma inovadora teoria das obrigações correlacionada à lógica, onde a
formação das premissas, seja da parte do indivíduo, seja mesmo da parte do
Estado, obedece a convicções momentâneas submissas às crenças e aos desejos,
variáveis estes de época para época, conformes, ora aos costumes e aos hábitos, ora
à moda, produto das invenções, irradiadas pela imitação.
Ao longo da história, foram as invenções humanas que forneceram os
instrumentos de que a crença e o desejo tiveram necessidade. O gênio inventivo
individual, – portanto não submisso à jurisdição das grandes leis gerais, nem
mesmo previsível através delas, – foi o motor da evolução social. Mas a sociedade,
esta não aparece senão graças à imitação que, para Tarde, é o fator primeiro e
decisivo da aparição do liame social entre os indivíduos, embora não exclusivo. É
porque vivem em conjunto que os homens pensam e agem do mesmo modo. Mas
restaria a pergunta: o que é inventado ou imitado? Qual a relação entre a invenção,
a imitação, as crenças e os desejos? As respostas a estas perguntas aparecem em As
Leis da Imitação, onde Gabriel Tarde se permite filosofar sobre sua teoria e nos
coloca: A invenção e a imitação são o ato social elementar, nós o sabemos. Mas
qual é a substância ou a força social da qual este ato é feito, da qual ele não é
senão a forma? Em outros termos: o “quê” é inventado ou imitado? Aquilo que é
inventado ou imitado, o “quê” é imitado, é sempre uma idéia ou um querer, um
julgamento ou um propósito, onde se exprime uma certa dose de crença e de
desejo, que é, com efeito, toda alma das palavras de uma língua, preces de uma
religião, administração de um Estado, artigos de um código, deveres de uma
moral, trabalhos de uma indústria, técnicas de uma arte. A crença e o desejo. Eis,
pois, a substância e a força; eis, também, as duas quantidades psicológicas que a
análise reencontra no fundo de todas as qualidades sensoriais com as quais elas se
combinam, e, quando a invenção, depois a imitação, dominam para organizá-las e
empregá-las, eis aí, de maneira semelhante, as verdadeiras quantidades sociais. É
pelos acordos ou pelas oposições de crenças que se fortificam ou se limitam entre
si que as sociedades se organizam; as instituições são, sobretudo, isso. É por
concursos ou concorrências de desejos, de necessidades, que as sociedades
funcionam. As crenças, religiosas e morais principalmente, mas também jurídicas,
políticas, lingüísticas mesmo – (porque, quantos atos de fé implicados no menor
discurso, e que poder de persuasão, tão irresistível quanto inconsciente, possui
sobre nós nossa língua materna, verdadeiramente maternal mesmo!) – são as
forças plásticas das sociedades. As necessidades, econômicas ou estéticas, são
suas forças funcionais [10].
A imitação difunde-se em ondas concêntricas em torno do modelo. Esta seria
a explicão da existência da repetição dos fatos e da própria emergência das
instituições. Nesse sentido, notável a observação de Tarde a respeito do direito de
primogenitura e sua difusão. A imitação não é apenas um fato individual, porque
os grupos sociais também se imitam. Explicam-se também assim as convergências
existentes entre associações, sociedades, classes sociais, povos... A imitação opera
primeiramente de dentro para fora. Julgamentos e desejos são copiados antes dos
atos; crenças, antes dos modos de vida. A seguir, a imitação opera do superior em
direção ao inferior: as classes sociais superiores servem de modelo às inferiores, e
não o inverso. Quando a classe superior se isola em suas tradições e as defende
contra as mudanças, pode-se dizer que sua grande obra está cumprida e que seu
declínio avança (Les Lois de l’Imitation). No mesmo diapasão, em Criminalidade
Comparada, Tarde vaticina do mesmo modo, embora com outras palavras: Um
povo, no qual a força do sacrifício pessoal se esgota, vive de seu capital, e sua
decadência está próxima. Permanecemos generosos até o dia em que deixamos de
ser inventivos e fecundos, e começamos a nos tornar imitativos e rotineiros. O
egoísmo é uma aquisição senil.
O processo imitativo não é todavia automático, porque não se desenvolve
sem resistência individual e coletiva. Aliás, é entre os que resistem, entre os que se
recusam a imitar, que estão os inovadores, os que inventam. A imitação não se faz
sem oposição, uma oposição que é seguida de uma adaptação do grupo. É esta
adaptação que permite uma estabilidade provisória, que em breve será abatida por
uma nova invenção... que será imitada, etc.

As Transformações do Direito
Gabriel Tarde, certamente, vai surpreender a todos aqueles que o lerem.
Traduzi-lo foi um desafio, e a tarefa não teria sido possível sem uma pesquisa mais
ampla que a temática proposta neste livro. Especialmente no campo do Direito,
nossos colegas terão muito a descobrir. Antes de mais nada, porém, é importante
notar que a obra foi escrita por um literato. O texto é notável, mas exige do leitor
atenção redobrada, não apenas pelo uso eventual de figuras de linguagem, mas
ainda pelas inversões, pelos enunciados entremeados de apostos e, em especial,
pelas perguntas metodicamente intercaladas, perguntas às vezes longas, tão longas
que optamos por sinalar a chegada de cada uma delas com um ponto de
interrogação invertido, à moda espanhola. Liberalidades desta edição que
esperamos facilite a leitura. Na obra, transparece o estilo socrático empregado pelo
autor, que expõe minuciosamente os dados que quer rebater, demonstra-os
magistralmente, argumenta a favor dos mesmos e, a partir de perguntas engenhosas
e pertinentes, cria-nos a dúvida. Convida-nos então a acompanhá-lo na busca de
outras respostas que não aquelas convencionais e consideradas verdadeiras à
época.
Evolucionistas, antropólogos criminais, romanistas clássicos têm todo o
arcabouço de suas verdades desestruturado a partir dessa metodologia que torna
evidentes falhas tão pressurosamente disfarçadas, e que todavia não eram menos
que baluartes jurídicos, biológicos e sociais. Assim, os conceitos usuais de
evolução, de contrato, da origem das penas, do próprio Direito Natural são objeto
de especulação fecunda e não podem deixar de sofrer sérios abalos.
Está-se diante de um pensador que reclama à imitação um lugar de destaque,
não o mesmo que ocupa o alfabeto em relação à literatura, mas o de fenômeno
social por excelência. E foi a desconsideração deste fenômeno que levou muitos de
seus contemporâneos a exagerarem a importância do atavismo e da
hereditariedade, fenômenos aos quais Tarde não negou a influência, mas tão-só a
exagerada ampliação desta.
Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três
grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação
para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação
para os fenômenos sociais propriamente ditos. (...) É claro que se devem levar em
conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das
analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no
meio físico.
O leitor, todavia, encontrará também um homem que, apesar da ironia e da
desenvoltura com que argumenta e rebate, não consegue esconder sua inclinação
ao bem e ao belo, e à convicção de que a humanidade traz em seu coração um quê
misterioso, visível e palpável em manifestações aparecidas ao longo de toda a
História, através de grandes homens que conduziram os seus na direção de uma
beleza moral que não se confunde com a estética, mas ultrapassa-a. E Tarde
pergunta: Não existe também uma verdade moral que toda sociedade
inevitavelmente formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar
como num golfo, e que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite
Sócrates, Buda, o Cristo, e que o perfeito bravo homem de todos os tempos,
Aristides ou Franklin, Epicteto ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto
árabe ou o santo cristão seja, em toda parte, reconhecível nos mesmos traços
essenciais, não diferindo senão pelo grau de abertura de seu horizonte intelectual
e pelo raio da esfera da humanidade na qual se desenvolve? E não existe uma
beleza, uma moral sublime, una e idêntica, para onde se orienta como a um pólo
toda alma generosa de todos os cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a
simples condensação, num instinto especial, de hábitos hereditários sugeridos por
experiências de utilidade geral acumuladas ao longo do passado da humanidade,
que ora, de preferência, esta orientação traísse também qualquer ação mais sutil e
mais profunda, qualquer revelação do fundo divino das coisas? Muitos
permanecerão indiferentes a isso; muitos, ainda, talvez anseiem pela costumeira
objetividade, muitas vezes estéril, seca, cronológica, de alguns de nossos juristas,
escritores contemporâneos que tudo querem resumir e esquematizar, o quanto baste
para simular uma leve idéia do assunto, tudo em nome da prática; mas outros,
talvez poucos, serão tocados e levados a pensar, a rever idéias e conceitos, a
analisar fatos e circunstâncias a partir de um novo enfoque. Acredito que estes são
os destinatários da mensagem de Gabriel Tarde que escolhi para a abertura deste
livro.
As Transformações do Direito: uma evolução descontínua e multimilenar.
Vê-se aqui Tarde aplicar sua teoria ao processo, ao regime de pessoas, de bens, às
obrigações, ao Direito Natural e ao Direito Criminal.
O processo é historicamente desenvolvido segundo diferentes técnicas
ligadas à invenção de modos de registro. Não há processo sem registro. Na
História, houve mesmo o escrivão iconográfico, que registrava em figuras as etapas
dos julgamentos. O regime de pessoas mostra que a evolução foi extremamente
diversificada. Esse regime varia segundo o tipo de sociedade considerada:
poligâmica, monogâmica, matriarcal, patriarcal. No que concerne ao regime de
bens, Tarde é da opinião que é a invenção pessoal que faz a apropriação. O
inventor proclama-se proprietário para defender seu bem, bem este vital para ele.
Depois, a rede da apropriação desenvolve-se segundo o processo imitativo. A
apropriação privada dos bens é, para ele, a primeira historicamente; a coletiva,
posterior. Quanto às obrigações, os contratos, para Tarde, o princípio segundo o
qual se deve respeitar essas contratações viria do respeito à invenção, respeito que
se impõe àqueles a quem ela aproveita. Esse sentimento, de que se deve respeitar a
invenção no interesse interindividual, torna-se, a seguir, o sentimento que faz
respeitar, no interesse geral, a invenção. Depois, torna-se o sentimento que faz
respeitar as contratações também no interesse geral. É a imitação que permite
generalizar o sentimento de estar obrigado. Mas, em especial, será neste capítulo
dedicado às obrigações que Tarde mais vai surpreender, quando analisa o contrato
e o surgimento das obrigações, tanto quanto a absoluta ineficácia da concepção
ortodoxa, – dita clássica, – dos elementos essenciais à formação do contrato, frente
às novas invenções, v. g., os títulos ao portador. O Direito Natural é, para Tarde,
um direito convencional, contratual, uma construção à qual se dá um alcance
universal. Este dito Direito Natural nada tem a ver com a natureza, da qual a
noção, para ele, permanece muito ambígua, e o estado de natureza” de Jean-
Jacques Rousseau não é, para ele, senão uma utopia, uma construção ideológica
destinada a justificar o poder de um grupo social.
Finalmente, Tarde encerra sua obra trazendo-nos uma interessante análise do
Direito e a Sociologia, onde vai surpreender na parte reservada à analogia do
primeiro com o desenvolvimento da Lingüística.

Obras
As principais obras de Tarde são:

La Criminalité Comparée, Félix Alcan, Paris, 1886.


Les Lois de l’Imitation. Etude sociologique, Félix Alcan, Paris, 1890, Kimé,
Paris, 1993.
La Philosophie Pénale, Storck, Lyon et Masson (depois Maloine), Paris,
1890, Cujas, Paris,1973.
Les Transformations du Droit, Etude Sociologique, Félix Alcan, Paris, 1893,
Berg international, Paris, 1994.
La Logique Sociale, Félix Alcan, Paris, 1895, Institut synthélabo, Le Plessis-
Robinson, 1999.
L’Opposition Universelle, Félix Alcan, Paris, 1897, Institut synthélabo, idem.
Les Lois Sociales >, Félix Alcan, Paris, 1898, Institut synthélabo, idem.
Etudes de Psychologie Sociale, Giard et Brière, Paris, 1898.
Les Transformations du Pouvoir, Félix Alcan, Paris, 1899.
L’Opinion et la Foule, Félix Alcan, Paris, 1901, PUF, Paris, 1989.
Psychologie Économique, Félix Alcan, Paris, 1902.

A Sociologia
Em tese, este resumo não é necessário. Bastaria o livro e mais nenhum
comentário. Todavia, como já observei, para Gabriel Tarde o Direito não pode ser
impunemente dissociado da Sociologia que, por sua vez, sofreu, como o Direito,
muita transformações ao longo da História. Por outro lado, é importante saber, com
razoável certeza, onde e como Gabriel Tarde entra nesta ciência e o que reclama.
Ora, o conceito de Sociologia é variável conforme a época, o enfoque e a
concepção. Teríamos diversas correntes de acordo com a escola individualista de
Rousseau, por exemplo, ou de Hegel, Conte com o positivismo, Spencer com o
evolucionismo, etc.
Pode-se defini-la como a ciência que estuda a natureza, as causas e os efeitos
das relações que se estabelecem entre os indivíduos, quando organizados em
sociedade. Seu objeto são as relações sociais, as transformações por que passam
estas relações, assim como as estruturas, as instituições e os costumes que delas se
originam. Distingue-se das demais ciências sociais pela abrangência de seu objeto,
buscando conhecer, através de metodologia científica, a totalidade da realidade
social, sem proposta de transformação, ou seja, trata-se de conhecer a realidade
como tal. Eis seu conceito corrente, poder-se-ia dizer, seu conceito atual.
A abordagem sociológica das relações entre os indivíduos distingue-se hoje
da abordagem biológica, psicológica, econômica e política dessas relações, ainda
que não fosse sempre assim. Para Gabriel Tarde, assim como para Gustave Le Bon
[11], por exemplo, a Psicologia deve integrar a Sociologia, especialmente no que
concerne às multidões.
Vejamos Le Bon: “Afora as coletividades fixas constituídas pelos povos,
existem coletividades móveis e transitórias denominadas multidões. Ora, essas
multidões, com o concurso das quais se efetuam os grandes movimentos históricos,
têm caracteres inteiramente alheios aos dos indivíduos que as compõem. Quais são
esses caracteres, como evoluem? Esse novo problema foi examinado na Psicologia
das Multidões. Só depois desses estudos comecei a entrever certas influências que
me tinham escapado. Mas ainda não era tudo. Entre os mais importantes fatores da
história, havia um, preponderante: as crenças. (...) Enquanto a psicologia
considerou as crenças como voluntárias e racionais, elas permaneceram
inexplicáveis. Depois de haver provado que elas são irracionais na maioria das
vezes e involuntárias sempre, pude dar a solução desse importante problema. [12]”
Embora haja pontos comuns, Tarde dirige uma crítica a Le Bon. Segundo
este último, haveria uma ascensão perigosa das multidões; mas o primeiro entende
que as multidões seriam um reflexo do passado, condenadas a ser substituídas
pelos públicos, na medida em que não promovem a discussão crítica. Vive-se na
era dos públicos e não na era das multidões como defendia Le Bon. Mas Tarde
afirma que o público pode se tornar, embora raramente, numa multidão em
potência, isto é, de um público tumultuoso derivariam multidões fanáticas que se
passeiam pelas ruas gritando viva ou morra não importa o quê. Tarde estabelece
uma relação inversa entre público e multidão, isto é, o público da Universidade,
dos salões, dos cafés, da imprensa, etc. cresce mais rapidamente à medida que a
multidão tumultuosa diminui; esta situação explica-se porque o público, enquanto
espaço de discussão crítica, é gerador de apaziguamento nas relações pouco
racionais da multidão [13].
Independente disso, porém, o interesse da Sociologia focaliza-se,
atualmente, no todo das interações sociais e não apenas em um de seus aspectos,
cada um dos quais constitui o domínio de uma ciência social específica. Vários
obstáculos impediram a constituição da Sociologia como ciência, desde que ela
surgiu, no século XIX. Entre os mais importantes citam-se a inexistência de
terminologia clara e precisa, assim como a tendência para ver os fatos sociais de
maneira subjetiva. Até então, podemos apenas referir homens e idéias que se foram
desenvolvendo ao longo dos séculos. É o que faremos de maneira muito breve,
apenas suficiente para estabelecer uma noção cronológica destas idéias e de seus
autores, e de como as primeiras foram se propagando de século a século.

Aspectos Históricos
O interesse pelos fenômenos sociais já existia na Grécia antiga, onde foram
estudados pelos sofistas. Os filósofos gregos, porém, não elaboraram uma ciência
sociológica autônoma, já que subordinaram os fatos sociais a exigências éticas e
didáticas. Assim, a contribuição grega à sociologia foi apenas indireta.
Os pensadores antigos já haviam notado a existência de certos fenômenos
sociais que se diferenciavam dos demais, à medida em que não podiam ser
enquadrados nas ciências então conhecidas. Eram observados, assim, sob o ponto
da vista moral, com Sócrates (469-399, a. C.); ou da política, com Aristóteles (384-
322, a. C.).
Do primeiro, mais moralista que filósofo, sabemos que nasceu em Atenas,
discutia pelas ruas, sofreu e foi condenado à morte que voluntariamente aceitou.
Via a finalidade da ação humana na realização do bem moral; a virtude, que
permitiria conhecer o bem, estaria na sabedoria. É dele o emprego da ironia
crítica, que usou contra os sofistas, para demonstrar o absurdo de suas concepções.
Trata-se da maiêutica, método em que em que se multiplicam as perguntas, a fim
de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito geral do
objeto em questão. O leitor terá a oportunidade de ver este método em ação com
Gabriel Tarde.
O segundo, Aristóteles, genialmente estabeleceu, com maior nitidez, o
campo das ciências morais e o das ciências políticas. É a Aristóteles que devemos a
idéia da divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, idéia esta mais
tarde retomada por Montesquieu.
Entre ambos, podemos mencionar Platão (429-347, a. C.), aristocrata e
principal discípulo de Sócrates, com quem conviveu durante oito anos. Sua
concepção filosófica tem a justiça como principal virtude, constituindo-se em
fundamento das demais que dela promanam: a temperança, a coragem e a
prudência
Não deixando de fora o Oriente, podemos dizer que, já no século VII a. C., é
permitido afirmar que havia também sistemas filosóficos, em especial, na Índia e
na China. Na Índia, os Vedas, livros onde a religião, o mito e a filosofia formavam
um todo; na China, o vulto lendário de Confúcio (551-478 a. C.), que ensinava a
viver à procura do bem e evitando o mal.
Já na Idade Média constata-se a existência quase efetiva de um pensamento
social, mas, ressalte-se, pensamento não sistemático, porque baseado na
especulação e não na investigação objetiva dos fatos. Além disso, neste período
medieval, anulou-se a distinção entre as leis da natureza e as leis humanas e impôs-
se a concepção da ordem natural e social como decorrência da vontade divina, que
não seria passível de transformação. Assim, eivado de conotações ideológicas,
éticas e religiosas, o pensamento social medieval pouco evoluiu. Dos pensadores
do medievo, porém, deve-se mencionar Santo Agostinho e Tomás de Aquino.
Agostinho (354-430), ou Santo Agostinho de Tagasta, por muito tempo foi
pagão e professor de retórica, mas converteu-se ao cristianismo, tornando-se bispo,
Bispo de Hyponna. Um dos pais da Filosofia da História, numa moral otimista,
exaltou a liberdade humana que deve dirigir-se a Deus, tendo o bem por
fundamento. Tomás de Aquino (1225-1274), construtor da síntese escolástica,
deteve-se em especial nos estudos deixados por Aristóteles. Apresenta a natureza
inteira “como uma grande hierarquia, partindo do menos perfeito e mais informe
para o mais acabado e mais determinado [14]”. Deve-se a ele a proclamação da
autonomia do saber racional e a separação entre filosofia e dogma.
Como grandes nomes do Renascimento, devemos referir, ao menos, Tomas
Morus (1480-1535) e sua Utopia, editada por Erasmo, obra que delineia uma
cidade ideal inspirada pela República de Platão; e João Althusius (1557-1638), que
defendeu a tese da soberania inalienável do povo, tese esta, mais tarde, retomada
por J. J. Rousseau.
O século XVII inicia-se com Descartes (1596-1650), o pai da filosofia
moderna, e o estabelecimento do princípio da dúvida metódica, partindo da célebre
afirmação: penso, logo, existo. O Discurso do Método, livro de poucas páginas
que, sem a menor dúvida, abalou o mundo, foi escrito para servir de prefácio à
Dióptrica, aos Meteoros e à Geometria, três ensaios surgidos em 1637. É tentador
estendermo-nos. Eis os quatro preceitos do método: 1º) Nunca receber como
verdadeira coisa alguma que não se reconheça evidente como tal, isto é, evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não aceitar senão aqueles juízos
que se apresentem clara e distintamente ao espírito, de modo a não ser possível a
dúvida a respeito deles; 2º) Dividir as dificuldades, que devem serem examinadas
em tantas parcelas quantas se fizerem necessárias; 3º) Conduzir com ordem os
pensamentos, partindo dos objetos mais simples e mais fáceis, para subir, pouco a
pouco, como por degraus, até o conhecimento daqueles objetos mais compostos,
supondo mesmo a existência de ordem entre aqueles não se precedem naturalmente
uns aos outros; 4º) Fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais
que se possa estar seguro de nada se haver omitido.
Mas foi apenas nos séculos XVIII e XIX que as ciências naturais e humanas
fizeram rápidos progressos, com a ocorrência de profundas modificações
econômicas, sociais e políticas ocorridas na sociedade européia daquele tempo, em
decorrência da revolução industrial e do surgimento do capitalismo. Pôde-se então
reafirmar, sobre bases mais sólidas, a libertação do pensamento dos dogmas
medievais. Todavia, mesmo esses progressos, que teriam a seu favor uma suposta
cientificidade, não eram sempre objetivos.
Contam-se, entre os antecedentes da sociologia, a filosofia política, a
filosofia da história, as teorias biológicas da evolução e os movimentos pelas
reformas sociais e políticas; em seus primórdios, foram mais influentes a filosofia
da história e os movimentos reformistas. A pré-história da sociologia situa-se,
assim, num período aproximado de cem anos, de 1750 a 1850, entre a publicação
de L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis), de Montesquieu, e a formulação das
teorias de Auguste Comte e Herbert Spencer. Sobre estes três falaremos um pouco.
Note-se bem que, até aqui, praticamente só falamos de filosofia, pois ainda não
nascera nada que pudesse ser chamado “sociologia”, – ainda não inventada, –
embora, inegavelmente, o pensamento sobre os fatos sociais já existisse, fosse
englobado na filosofia, fosse-o em religião.
Montesquieu (1686-1755) empregou mais de vinte anos para escrever
L’Esprit des Lois, livro célebre pela definição de lei como a relação necessária
que deriva da natureza das coisas. Notável historiador, jurista, estudioso das
ciências sociais, Montesquieu é considerado um precursor da Geografia Humana,
graças a seus trabalhos sobre clima e população.
A constituição da Sociologia como ciência, porém, só vai ocorrer na segunda
metade do século XIX e mesmo o termo sociologia só vai aparecer com Comte,
que consagrou-o na obra Cours de Philosophie Positive (1839, Curso de Filosofia
Positiva), na qual batizou a nova “ciência da sociedade” e tentou definir seu objeto.
Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-1857) orientou seu
pensamento a partir de duas idéias básicas: a de que os fenômenos sociais, como os
de caráter físico, também obedecem a leis; e a de que todo conhecimento científico
e filosófico deve ter por finalidade o aperfeiçoamento moral e político do homem.
Mais tarde, dedicou-se integralmente à instituição da religião da humanidade, que
logo se tornou influente em numerosos países, como Brasil, Chile e México. O
filósofo impregnou-se de misticismo, criou um sacerdócio, sacramentos e orações,
além de propor para seus adeptos uma rígida disciplina. O desejo de firmar e
divulgar as bases do positivismo levou Comte a um empenho quase obsessivo e à
dedicação em tempo integral à propaganda de sua nova religião. A
correspondência de Comte com as sociedades positivistas em todo o mundo era
vastíssima.
Herbert Spencer (1820-1903), um dos fundadores da Sociologia, dirigiu suas
especulações rumo ao evolucionismo, transportando para o mundo moral e social
os mesmos princípios do fenômeno da evolução no mundo físico. Spencer pode
ser considerado um dos adeptos da Teoria Organicista que veremos mais tarde, um
pouco mais em detalhes, em razão das sérias conseqüências sociais e políticas que
advieram desta teoria, com forte repercussão no Direito. O evolucionismo
spenceriano não encontra mais apoio científico. Vale lembrar, todavia, que não se
deve considerar totalmente destituído de mérito o trabalho de um homem que
enfrentou, nada mais nada menos, que a monumental tarefa de construir toda uma
filosofia, uma ética, uma moral e uma justiça que teriam como base pressupostos, à
época, considerados científicos, em oposição às intervenções metafísicas. Spencer
enfrentou duras críticas, mesmo ao tempo em que seus trabalhos tiveram aceitação,
v.g., a acusação do Reverendo Davies, publicada no Guardian de 16 de julho de
1890: Spencer parece subentender aquilo que não reconhece. Na sua elaboração
da idéia de Justiça, Spencer subentende a existência de uma lei que rege a razão
humana e a conduta humana, quando sustenta que o bem da espécie é desejável de
per si e que o entendimento humano aceita esta lei e corresponde a ela sem exigir
outra justificação. Ora, enquanto Spencer se contentar unicamente com demarcar
a marcha da evolução, não terá o direito de empregar a palavra: dever. Como
poderia ele modificar o ‘veredictum’ de Kant e como lhe seria possível refutá-lo?
A isto, Spencer respondeu: Pretende Vossa Reverência que a minha teoria da
direção moral não me autoriza a indignar-me com o espetáculo de uma agressão
ou de um malefício qualquer e acrescenta que, indignando-me, peço emprestado a
Deus o fogo celeste. Subentende-se, pois, daqui, que somente os homens que
aceitam as crenças correntes têm direito a indignar-se perante a iniqüidade. Por
minha parte, não lhes confiro o monopólio desta indignação. Se Vossa Reverência
me perguntar o que me impulsiona a censurar o injusto procedimento dos
civilizados ante as raças inferiores, responder-lhe-ei que sou a isso compelido por
um sentimento que acorda em mim sem a mínima intervenção da noção do dever,
sem a influência de qualquer preceito divino, sem consideração de nenhuma
espécie acerca de castigo ou recompensa neste ou noutro mundo. Tal sentimento
resulta em parte de que se deu origem a um sofrimento, tornando-se-me penoso o
conhecimento que dele tive; e resulta também da irritação que, em mim, desperta a
infração de uma lei de conduta, ao serviço da qual estão os meus sentimentos, lei a
que o bem da humanidade exige, no meu entender, a obediência de todos [15].
Spencer por Spencer talvez reserve algumas surpresas àqueles que o leram somente
através de seus críticos e detratores, alguns julgando-o excessivamente inclinado
ao biologismo, outros julgando-o excessivamente inclinado à metafísica.
Ora, tudo começou em 1859, quando Charles Darwin publicou The Origin of
Species (A origem das espécies), livro polêmico, de grande impacto no meio
científico, que pôs em evidência o papel da seleção natural no mecanismo da
evolução. Darwin partiu da observação segundo a qual, dentro de uma espécie, os
indivíduos diferem uns dos outros. Há, portanto, na luta pela existência, uma
competição entre indivíduos de capacidades diversas. Os mais bem adaptados são
os que deixam maior número de descendentes. Se a prole herda os caracteres
vantajosos, os indivíduos bem dotados vão predominando nas gerações sucessivas,
enquanto os tipos inferiores se vão extinguindo. Assim, por efeito da seleção
natural, a espécie aperfeiçoa-se gradualmente. Entretanto, o sentido em que age a
seleção natural é determinado pelo ambiente, pois um caráter que é vantajoso num
ambiente pode ser inconveniente em outro.
O darwinismo estava fundamentalmente correto, mas teve de ser
complementado e, em alguns aspectos, corrigido pelos evolucionistas do século
XX para que se transformasse na sólida doutrina evolucionista de hoje. As idéias
de Darwin e seus contemporâneos sobre a origem das diferenças individuais eram
confusas ou erradas. Predominava o conceito lamarckista de que o ambiente faz
surgir nos indivíduos novos caracteres adaptativos que se tornam hereditários. Isso
não impediu, todavia, a ampliação do paradigma darwiniano ao campo social, com
reflexos intensos no Direito, tanto civil quanto criminal. Exemplos claros desta
ampliação não faltam. Podemos ilustrá-lo desde já, com a citação empreendida por
Garofalo, em sua famosa obra La Criminologie, na terceira parte da qual, –
destinada à repressão do delito, – abre-se o primeiro capítulo com uma citação de
Darwin (A Origem das Espécies, cap. IV), a saber: Dei o nome de seleção natural,
ou de persistência do mais apto, à conservação das diferenças e das variações
individuais favoráveis, e à eliminação das variações nocivas [16]. É claro que,
nisto, Darwin referia-se às espécies animais, mas idéia inspirou a alguns: e se fosse
assim na sociedade dos homens? Bastava desenvolver as idéias já ventiladas por
Darwin [17] e teríamos um novo sistema, de cunho científico, palavra tão em voga
na época.
Ora, era pretensão de Spencer também aplicar ao homem o determinismo
físico da natureza. As Teorias Organicistas assim estruturadas, no entanto,
terminaram por desembocar numa verdadeira cruzada biológica. Como Tarde
reagiu a isso?
A Sociologia, segundo Tarde, deveria identificar-se com a psicologia social,
só podendo ser compreendida a partir de uma “psicologia intermental” que
estudasse a interação das consciências. Contrariamente às teses correntes em seu
tempo, teses estas que encaravam a Sociologia como física social, biologia social
ou ideologia social, Tarde prefere a expressão “psicologia social”, expressão esta
criada por ele. A verdade é que uma coisa social qualquer, uma palavra de uma
língua, um rito de uma religião, um segredo de um ofício, um procedimento de
arte, um artigo de lei, uma máxima moral, transmite-se e passa, não do grupo
social tomado coletivamente ao indivíduo, mas certamente de um indivíduo, –
parente, mãe, amigo, vizinho, camarada, – a um outro indivíduo, e que, na
passagem de um espírito para outro espírito ela [a coisa social] se reflita. [18]

Principais Correntes Sociológicas


Esse campo nada visa senão indicar, com bastante brevidade, quais são as
cinco correntes principais da sociologia: organicismo positivista, teorias do
conflito, formalismo, behaviorismo social e funcionalismo.

Organicismo Positivista
Primeira construção teórica importante surgida na sociologia, nasceu da
hábil síntese que Comte fez do organicismo e do positivismo, duas tradições
intelectuais contraditórias. O organicismo representa uma tendência do pensamento
que constrói sua visão do mundo sobre um modelo orgânico e tem origem na
filosofia idealista. O positivismo, que fundamenta a interpretação do mundo
exclusivamente na experiência, adota como ponto de partida a ciência natural e
tenta aplicar seus métodos no exame dos fenômenos sociais. Os fundadores da
nova disciplina agora chamada Sociologia adaptaram essa síntese ao ambiente
social e intelectual de seus países: Auguste Comte, na França, Herbert Spencer, no
Reino Unido, e Lester Frank Ward [19], nos Estados Unidos, os pioneiros.
Depois da fase dos pioneiros, surgiu o chamado período clássico do
organicismo positivista, caracterizado por uma primeira etapa, em que a biologia
exerceu influência muito forte, e uma segunda etapa em que predominou a
preocupação com o rigor metodológico e com a objetividade da nova disciplina.
O organicismo biológico, inspirado nas teorias de Charles Darwin,
considerava a sociedade como um organismo biológico em sua natureza, funções,
origem, desenvolvimento e variações. Segundo essa corrente, praticamente extinta,
o que é válido para os organismos é aplicado aos grupos sociais. A segunda etapa
clássica do organicismo positivista, também chamada de sociologia analítica, foi
marcada por grandes preocupações metodológicas e teve em Ferdinand Tönnies
[20], Émile Durkheim e Robert Redfield [21] seus expoentes máximos.
Émile Durkheim (1917-1858), partindo da exterioridade dos fatos sociais,
abordou a sociedade como um fato sui generis e irredutível a outros,
compreendendo-a como um conjunto de ideais constantemente alimentados pelos
indivíduos que fazem parte dela. Dessa forma, conceituou a consciência coletiva
como o “sistema das representações coletivas de uma dada sociedade”. A
linguagem, por exemplo, é uma representação coletiva, assim como os sistemas
jurídicos e as obras de arte.
Para Durkheim, cujo pensamento prevaleceu na França em detrimento do de
Gabriel Tarde, o núcleo organicista encontra-se na afirmação segundo a qual uma
sociedade não é a simples soma das partes que a compõem, e sim uma totalidade
sui generis, que não pode ser diretamente afetada pelas modificações que ocorrem
em partes isoladas. Surge assim o conceito de “consciência coletiva” que se impõe
aos indivíduos, consciência coletiva esta que não existe para Gabriel Tarde. Para
Durkheim, os fatos sociais são “coisas” e como tal devem ser estudados. Seria ele
o sociólogo que mais teria se aproximado de uma teoria sistemática, deixando uma
obra importante também do ponto de vista metodológico, pela ênfase que deu ao
método comparativo, segundo ele o único capaz de explicar a causa dos fenômenos
sociais, e pelo uso do método funcional. Não afirmou, todavia, a grande influência
da imitação nos fatos sociais, coisa que Tarde genialmente destacou, como já se
viu inicialmente. Para Durkheim, não basta encontrar a causa de um fato social; é
preciso também determinar a função que esse fato social vai preencher. Sociólogos
posteriores, como Marcel Mauss [22], Claude Lévi-Strauss [23] e Mikel
Duffrenne, retomaram de forma atenuada o realismo sociológico de Durkheim.

Teorias do Conflito
Segunda grande construção do pensamento sociológico, surgida ainda antes
que o organicismo tivesse alcançado sua maturidade, a teoria do conflito conferiu à
sociologia uma nova dimensão da realidade. O grupo social passou a ser concebido
como um equilíbrio de forças e não mais como uma relação harmônica entre
órgãos, não-suscetíveis de interferência externa.
Antes mesmo de ser adotada pela sociologia, a teoria do conflito já havia
obtido resultados de grande importância em outras áreas que não as
especificamente sociológicas. É o caso, por exemplo, da história, da economia
clássica, em especial sob a influência de Adam Smith [24] e Robert Malthus [25]; e
da biologia nascida das idéias de Darwin sobre a origem das espécies. Dentro
dessas teorias, cabe destacar o socialismo marxista, que representava uma
ideologia do conflito defendida em nome do proletariado, e o darwinismo social,
representação da ideologia elaborada em nome das classes superiores da sociedade
e baseada na defesa de uma política seletiva e eugênica. Ambas enriqueceram a
sociologia com novas perspectivas teóricas. Cumpre detalhar um pouco mais em
que consistia essa representação ideológica elaborada em nome das classes
superioriores da sociedade e sua política seletiva e eugênica. Vejamos Morel e seu
Tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana,
Paris, 1857, para, mais uma vez, ilustrar a aplicação do paradigma biológico à
sociedade. (Vale lembral que Morel é citado por César Lombroso, em seu Homem
Delinqüente, como “o primeiro de todos” [26].)
Foi espantosa a repercussão deste Tratado, apesar de seus erros e de sua
absoluta parcialidade. Não podemos jamais nos esquecer de que todo aquele
período histórico foi marcado por crenças totalmente despidas do que hoje se
considera científico, assim como nosso próprio tempo será também alvo de
análises semelhantes a essas que operamos hoje relativamente ao passado. “Após
Morel, a sociedade humana conheceu o nome de seu inimigo”, Gennil-Perrin
(1913). Saída dos ideais revolucionários de 1789, a idéia da perfectibilidade do
homem é a base da doutrina do progresso que animava o pensamento científico do
século XIX. Vejamos Pierre Larousse: “O mundo marcha em direção ao bem. A fé
na lei do progresso é a verdadeira fé de nossa era. Está aí uma crença que encontra
poucos incrédulos. O progresso não está apenas no indivíduo; ele está ainda, por
conseqüência, no gênero humano. Espelha a mesma lei da espécie. Devemos ter
como verdadeira fé esta fé no progresso que sustenta nossa marcha. Acreditemos
no progresso sem fracioná-lo; num progresso uno, onde todos os progressos se
atenham. Esta é a fé de nossa era.” Ora, ao lado da lógica racional que deveria dar
sustentação ao científico, nenhuma época, nenhum período histórico refoge às
crenças que permeiam a sociedade, a mais das vezes, engendrando a própria razão
e impulsionando nossa maneira de agir. Inoperantes que se fizeram as cruzadas
pela fé, desencadear-se-ia então um verdadeira cruzada biológica, armada de toda
uma sistemática, uma nomenclatura, uma simbologia que se sacraliza através da
ciência.
Morel destacou, em primeiro lugar, que as causas da degenerescência
(definida esta como um desvio doentio do tipo normal da humanidade), sejam elas
de ordem fisiológica ou de ordem moral, são sempre solidárias. Ele observa
sobretudo que essas causas irradiam-se na família e na sociedade, vindo a criar
raças doentes e a constituir, para as nações, um perigo relativo não menos sério
do que aquele que pesa sobre o indivíduo. O ser degenerado, – afirma Morel, –
torna-se não apenas incapaz de constituir, na humanidade, a cadeia de
transmissibilidade de um progresso, mas constitui-se ainda num obstáculo, o
maior obstáculo, a este progresso, através de seu contato mantido com a parte sã
da população”. Como herança, pois, as causas da degenerescência transmitem-se e
são um obstáculo maior à perfectibilidade do homem. Como se vê, Morel apoia-se
também sobre considerações filosóficas e teológicas, e lança a seus colegas um
verdadeiro apelo à mobilização geral. Estas linhas tiradas de seu Tratado são
particularmente instrutivas:
“A solidariedade das causas degeneradoras não é mais, para mim, objeto de
dúvida, e este livro destina-se a demonstrar a origem e a formação de variedades
doentias na espécie humana. É-me impossível doravante separar o estudo da
patogenia das doenças mentais daquela das causas que produzem as
degenerescências fixas e permanentes, das quais a presença, em meio à parte sã da
população, é causa de perigo incessante. Se é assim, o tratamento da alienação
mental não deve ser visto como independente de tudo aquilo que é indispensável
tentar para melhorar o estado intelectual, físico e moral da espécie humana. A
conseqüência é rigorosa dá-se no sentido desse tratamento, compreendido dentro
do ponto de vista médico, mais amplo, mais filosófico e mais social, ao qual se
dirigirá, a partir de agora, toda a atividade de minhas investigações terapêuticas.
(...) Meus objetivos serão alcançados no dia em que se vir aumentar o número de
médicos, dos quais os esforços terão por objetivo a melhora intelectual, física e
moral da espécie humana.”
Destaque-se, entretanto, a perspicácia notável de Gabriel Tarde, no quarto
capítulo da presente obra, ao referir-se à temática do naturalismo jurídico, que
chegou a ter conseqüências no campo do Direito Privado: É sobretudo a propósito
das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou poder ter seqüência.
D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à hereditariedade
fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade, à geração alternante, à pangênese de
Darwin, à perigênese de Hoeckel, e tudo para justificar dessa sorte o direito à
herança. Eis seu raciocínio: se está demonstrado que as virtudes, os vícios, as
doenças, os caracteres quaisquer se transmitem hereditariamente, está provado
que os bens devem se transmitir da mesma maneira. Aliás, por uma razão
biológica que me parece melhor, ele trata de mostrar que direito de sucessão e o
direito de propriedade são, no fundo, idênticos. Mas, com argumentos desse
gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto de que a criança é a continuação
fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do plasma germinativo”, de acordo
com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho responsável por todas as contratações,
engajamentos e todas as faltas do pai. As sociedades primitivas, eu reconheço,
bem antes de toda iluminação antropológica, editaram essa solidariedade
familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em romper esse feixe
natural para permitir a esses elementos disjuntos a formação de associações
verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a necessidade
de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos naturalistas. É
necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim de curvar
servilmente às exigências de seu organismo suas instituições sociais, mas a fim de
empregar este conhecimento na realização de seus fins sociais, dos desígnios
coletivos, mesmo quiméricos às vezes, dos planos de reorganizações nacionais ou
humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único a poder
fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais. Nascidas das funções vitais,
as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e subjugando a
seu turno. O homem social faria bem em conhecer a ciência enciclopédica, seu
querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga medida, numa
medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado sua
onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? – perguntar-
se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo saberia. Eu
digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se satisfazendo,
sua ambição mais elevada, aquela de conhecer. O universo inteiro não apresenta
à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a ela criar seu
objetivo, o que fará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a si própria,
penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única, estendendo-se
socialmente, pela luta e pelo amor, do fundo do coração, de onde eclodem as
inspirações ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas.
Ora, o darwinismo social, como se pôde ver, assumiu conotações claramente
racistas e sectárias. Entre suas premissas estão a de que as atividades de assistência
e bem-estar social não devem ocupar-se dos menos favorecidos socialmente
porque estariam contribuindo para a destruição do potencial biológico da raça.
Nesse sentido, a pobreza seria apenas a manifestação de inferioridade biológica.
Quanta diferença do pensamento sustentado por Tarde!
Felizmente, nem todos os homens que viveram naquele tempo submeteram-
se à miopia da época, e, ao que se pode notar, Gabriel Tarde foi um destes a
respeito de quem pode-se afirmar que fugiu à regra. Em sua obra Criminalidade
Comparada, verdadeira reação empreendida contra o Homem Delinqüente de
Lombroso, Tarde propunha já uma visão mais ampla da questão criminal,
chegando a sugerir políticas de integração social do delinqüente, que não poderia
ser visto simplesmente como a resultante biológica da degeneração.

Formalismo
Para o formalismo, as comparações devem ser feitas entre as relações que
caracterizam qualquer sociedade ou instituição, como, por exemplo, as relações
entre marido e mulher ou entre patrão e empregado, e não entre sociedades globais,
ou entre instituições de diferentes sociedades. O interesse pela comparação entre
relações permitiu à sociologia alcançar um nível mais amplo de generalização e
conferiu maior importância ao indivíduo do que às sociedades globais. Essa
segunda característica abriu caminho para o surgimento da psicologia social.

Behaviorismo Social
Surgida entre 1890 e 1910, o behaviorismo social se dividiu em três grandes
ramos: behaviorismo pluralista, interacionismo simbólico e teoria da ação social,
legando à sociologia preciosas contribuições metodológicas.
O behaviorismo pluralista, formado a partir da escola de imitação-sugestão
representada por Tarde, centralizou-se na análise dos fenômenos de massas e
atribuiu grande importância ao conceito de imitação para explicar os processos e
interações sociais, entendidos como repetição mecânica de atos.
Os americanos Charles Horton Cooley [27], George Herbert Mead[28] e
Charles Wright Mills [29] são alguns dos teóricos do interacionismo simbólico
que, ao contrário do movimento anterior, centralizou-se no estudo do eu e da
personalidade, assim como nas noções de atitude e significado para explicar os
processos sociais.
O alemão Max Weber [30] foi o expoente máximo do terceiro movimento do
behaviorismo, a teoria da ação social. Com seu original método de “construção de
tipos sociais”, instrumento de análise para estudo de situações e acontecimentos
históricos concretos, exerceu poderosa influência sobre numerosos sociólogos
posteriores.

Funcionalismo
A reformulação do conceito de sistema foi o centro de todas as
interpretações que constituem a contribuição do funcionalismo, última grande
corrente do pensamento sociológico e integrada por dois importantes ramos: o
macrofuncionalismo, derivado do organicismo sociológico e da antropologia, e o
microfuncionalismo, inspirado nas teorias da escola psicológica da Gestalt e no
positivismo. Entre os adeptos do funcionalismo estão os antropólogos culturais
Bronislaw Malinowski [31] e A. R. Radcliffe-Brown [32].

Conclusão
Repercussão da Obra de Gabriel Tarde
Assim, a partir de um rápido esboço, espero haver conseguido apresentar, –
resumidamente, – nosso autor, bem como seu pensamento e sua importância,
traçando um brevíssimo histórico da Sociologia, sem maiores pretensões senão
aquelas de melhor situar o leitor de hoje perante uma obra que foi escrita há quase
cem anos.
Independente disso, porém, a obra de Tarde vem sendo objeto de reedições e
comentários, pois sua temática, ao discutir a imitação, a invenção, o público, as
multidões e os meios de comunicação, mostra-se de uma atualidade contundente,
aportando paradigmas plenamente válidos, como ferramentas a serviço daqueles a
quem cabe interpretar a realidade, o Direito e a sociedade.
Finalmente, cabe destacar, a partir do brilhante trabalho “Público,
Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise
Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule”, de Marco António
Antunes, Universidade da Beira Interior, a relação de obras, – algumas bastante
atuais, – que têm em comum o fato de haverem sido escritas a respeito de Gabriel
Tarde. Vejamos algumas:

AAVV, 1973, Gabriel Tarde: Ecrits de psychologie sociale, Toulouse, Privat.


BOUDON, Raymond, 1964, La “statistique psychologique” de Tarde in Annales
internationales de criminologie, nº 2, Paris.
BOUGLÉ, C., 1905, Un sociologue individualiste: Gabriel Tarde in Revue de
Paris, XII, Paris
CLARK, Terence N. (introduction and edited by), 1969, Gabriel Tarde On
Communication and Social Influence: Selected Papers, Chicago, University of
Chicago Press.
DAVIS, Michael, 1906, Gabriel Tarde: An Essay in sociological theory, Columbia
University (tese de doutoramento).
DUPONT, A, 1910, Gabriel Tarde et l’économie politique, Paris
ESPINAS, A., 1910, Notice sur la vie et les oeuvres de Gabriel Tarde in Séances
et travaux de l’Académie des Sciences morales et politiques, LXXIV, Paris.
GEISERT, M., 1935, Le système criminaliste de Tarde, Paris, Editions Domat-
Montchrestien.
GIDDINGS, F., 1896, Reviews of Gabriel Tarde and other works in Political
Science Quarterly, vol. 11.
KATZ, Elihu, 1992, On parenting a paradigm: Gabriel Tarde’s agenda for
opinion and communication research in International Journal of Public Opinion
Research, vol. 4.
LACASSAGNE, A., 1904, Gabriel Tarde (1843-1904) in Archives
d’anthropologie criminelle, vol. 19.
LUBEK, Ian, 1981, Histoire de psychologies sociales perdues: le cas de Gabriel
Tarde in Revue française de sociologie, vol. XXII-3, Paris.
LUBEK, Ian, 1980 (10 Jul) Some overloocked French contributors to social
psychology before 1908: Hamon, Duprat, Tarde, and others in XXII Congresso de
Psicologia, Leipzig, GDR.
MATAGRIN, Amédée, 1910, La psychologie sociale de Gabriel Tarde, Paris,
Félix Alcan.
MILLET, J., 1970, Gabriel Tarde et la philosophie de l’histoire, Paris, Vrin.
RICHARD, G., 1902, Revue de Gabriel Tarde: Psychologie Economique in Revue
Philosophique, vol. 54.
ROCHE-AGUSSOL, Maurice, 1926, Tarde et l’économie psychologique, Paris, M.
Rivière.
TOSTI, Gustavo, 1897, The Sociological Theories of Gabriel Tarde in Political
Science Quarterly, vol. 12.
TOSTI, Gustavo, 1900, Review of Gabriel Tarde’ s Social Laws in Psychological
Review, vol. 7.
VUILLEMIN, J., 1949, L’imitation dans l’interpsychologie de Tarde et ses
prolongements in Journal de psychologie, vol. 42, Paris.
E podemos ainda, felizmente, citar o Brasil, em novembro de 2001, quando
o Dr. Eduardo Viana Vargas, – do Departamento de Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal de Minas Gerais, com dissertação de Mestrado, no início dos
anos 90 sobre Gabriel Tarde, – lança agora o livro Antes Tarde do que Nunca –
Gabriel Tarde e a Emergência das Ciências Sociais, editora Contra Capa, RJ,
2001.
Ao leitor, mais uma vez, reitero o desejo de Gabriel Tarde já destacado na
primeira página: “Todo livro, seja ele um poema ou um romance, é um Catecismo
ou um Código em projeto. Não há livro, sobre não importa que assunto, que não
aspire a regrar a conduta ou o pensamento dos homens, a ensinar-lhes alguma
verdade ou a fazer-lhes algum bem.”

A Tradutora

AS
TRANSFORMAÇÕES
DO
DIREITO
(Estudo Sociológico)

Gabriel Tarde

Prefácio à 2a Edição Francesa


Os pequenos livros têm a vantagem das preces curtas: se não vão todos ao
céu, vão direto ao coração do leitor contemporâneo que está sempre apressado.
Mas têm eles o inconveniente de induzir o crítico em erro, na falta de suficiente
desenvolvimento dos temas. Este teve a sorte de encontrar muita benevolência em
seu caminho; mas objeções foram-lhe endereçadas, talvez nascidas de mal-
entendidos. Faltar-me-ia espaço se fosse responder a todas, ou mesmo apenas
àquelas que o tradutor espanhol Adolpho Posada, professor da Universidade de
Oviedo, introduziu no sábio comentário que fez a honra de acrescentar à sua
tradução. Até agora devo, pois, resignar-me a conservar, quase sem alterações, o
texto da primeira edição. No entanto, parece-me conveniente reproduzir certas
explicações que, já publicadas na Revue Philosophique e endereçadas a um de
nossos mais distintos contraditores, permanecem próprias a dissipar muito bem
interpretações errôneas, às quais me permito opor meu ponto de vista sociológico,
interpretações estas que tiveram lugar um pouco por falha minha talvez.
É verdade que fiz uma obra polêmica negativa, dirigida, ao mesmo tempo,
contra a origem dos novos estudos e contra as suas aplicações?” De forma alguma.
Não foram estes os estudos que combati, mas as conclusões prematuras, as
generalizações precipitadas construídas sobre elas e a origem mesma dessas
generalizações abusivas, a saber: a hipótese sem prova e sem probabilidade de que,
malgrado a diferença das raças e circunstâncias, todas as sociedades tiveram o
mesmo ponto de partida e seguiram – ou tenderam a seguir – normalmente a
mesma série de fases. Se eu nego que o normal seja o uniforme, afirmo em toda
parte a necessidade de um desenvolvimento, de uma gênese por transformação. O
que rebato é o transformismo unilinear que não é senão um determinismo
intensificado. Contento-me com um determinismo simples que se limita a exigir de
todos os fenômenos a obediência às leis da mecânica e da lógica, mas que não se
constrange, de outra parte, a sofrer as exigências dessas tiranias subalternas que
qualquer um intitula: “a fórmula da Evolução...”. Admitindo a heterogenia inicial,
não sem alguma razão, acredito na pluralidade das linhas de desenvolvimento, e
deve-se convir que a observação dos fatos está longe de me ser contrária.
No início dos estudos filológicos, admitia-se, geralmente, – julgava-se
científico e filosófico admitir, – que todas as línguas deveriam proceder de uma
mesma língua mãe, e permanece, até hoje, alguma coisa desse preconceito entre os
lingüistas que pretendem ainda sujeitar todos os idiomas a atravessarem os quatro
estados sucessivos do monossílabo, da aglutinação, da flexão... e do analitismo.
Seria isto o que abriu uma brecha nos estudos lingüísticos, estes que nos poderiam
prestar, ao contrário, o maior serviço, quando se reconheceu que existem um certo
número de famílias de línguas, sem parentesco entre elas, evoluindo cada uma à
parte, e seguindo sua própria lei, como cada idioma seguindo seu próprio gênio?
Bopp [33] ridiculariza, de modo encantador, esta gramática unitária, pois que as
declinações grega, latina, alemã, – únicas conhecidas em sua época, – não
ultrapassariam jamais o número de seis casos, demonstrada sabiamente a
necessidade desse número e a impossibilidade de um número superior. Ele
publicou isto justamente no momento em que a descoberta do sânscrito [34]
revelava a existência de um sétimo, de um oitavo caso e de outros ainda. Não foi
isto o que se fez em prejuízo dos estudos de religião comparada, quando se
demonstrou a Max Müller [35] que sua teoria dos mitos formados por trocadilhos
inconscientes, – ou a Spencer que seu evemerismo [36] renovado, – eram
aplicáveis a tal ou qual mitos, mas não universalmente? Não foi isto o que
prejudicou mesmo estas altas pesquisas e a infância da ciência futura que elas
traziam em seu seio, caso se viesse a demonstrar que há diferentes famílias de
religiões e diversos tipos de evolução religiosa, – e eu acrescentaria política,
econômica, estética, moral, jurídica enfim, – em lugar do tipo único ao qual se está
ainda muito disposto a dogmatizar?
Bem, é o máximo a que ouso avançar. Permaneço convencido de que, após
haver compilado muitos documentos que revelaram, em Direito comparado,
também um sétimo, um oitavo, um centésimo caso não previsto, somos levados a
expandir a noção atualmente difundida de Evolução. A evolução não é uma via,
mas uma rede de vias anastomoseadas.
Já que o fato parece demonstrado pelas línguas, – onde os dicionários
diferem de modo irredutível de uma família a outra, e onde os gramáticos não
apresentam, seja do ponto de vista de sua composição, seja de sua formação, senão
vagas analogias, quase informuláveis, – por que olhar como anticientífica a idéia
de que bem poderia se dar o mesmo nos diferentes ramos da árvore sociológica? O
mais desenvolvido, o melhor formado destes ramos é precisamente a lingüística.
E constata-se que é ela que parece dar a confirmação mais sensível às minhas
idéias em sociologia.
Notai que minha maneira de ver não obriga, de modo algum, a desconhecer a
importância das similitudes imprecisas das quais falei entre os tipos de evolução
independente. Ela as eleva, ao contrário, considerando-as, não como coincidências
fortuitas ou misteriosas, mas como efeitos necessários da lógica humana,
cumprindo finalidade humana, em tudo comparável a ela mesma, e aplicando-se a
descobrir os liames de percepções em tudo similares ou as satisfações de
necessidades orgânicas em tudo semelhantes. Precisar as leis desta lógica,
demonstrar os encadeamentos que ela requer, as uniões que ela impede, as
retrogradações que ela interdita. Realçar estas leis, elevá-las acima de todas as
pequenas fórmulas empíricas de evoluções concretas, como uma fórmula de
evolução ou de dedução superior seja possível, aplicável a todas as conexões
possíveis de trocas sociais. Tal é a tarefa que, ao meu sentir, deve se impor à
Sociologia, se se quiser dar-lhe um lugar entre as ciências, porque nenhuma dessas
leis é, no fundo, outra coisa senão um regramento de possibilidades, ou seja, de
certezas condicionais. A distinção entre uma lei empírica e uma lei científica é que
esta última tem sempre um conteúdo virtual imenso. O que quer que seja, parece-
me que, ao ver as coisas sob tal prisma, não merece quase nenhuma reprovação o
reduzir quase tudo, em ciência social, à imitação. Da imitação ocupei-me muito,
porque jamais pude compreender como se fechavam os olhos diante dela, para
torturar o espírito em explicar sem ela, aquilo que só ela evidenciava da maneira
mais simples ao mundo. Mas eu sei bem que, se a imitação é um fato social
elementar, ela não é, – e eu jamais disse que era, – o que é o alfabeto para quase
toda a literatura. Exagerei talvez seus méritos? Seja. Mas reagi contra uma tal
obstinação!
Um de meus adversários é um bom exemplo. Para ele, a imitação é quase
nada. “Não podem, – diz ele, – existir leis de desenvolvimento jurídico (ou de
desenvolvimento social qualquer, bem entendido) senão fora da imitação”. Os
fatos da imitação não ofereceriam senão a importância “apresentada pelas doenças
para o conhecimento dos estados de saúde”. “É apenas quando a imitação está
fora de causa, quando o desenvolvimento continua incontestavelmente fora de
todo empréstimo, em sua originalidade integral, que se pode, em sentido próprio,
perguntar-se quais são as leis que o regem.” – Em sua originalidade integral? Eu
ignoro o que possa significar tal expressão numa doutrina que, postulando uma
analogia inata, obrigatória, de todos os desenvolvimentos, não deixa a cada um
destes nada de verdadeiro, de profundamente característico. Pode-se permanecer
original, quando não nos assemelhamos a qualquer um senão quando o copiamos.
Mas quando, espontaneamente, centenas de homens isolados agem como um só
homem, não é autônomos que se os devem chamar. São autômatos. Não importa.
O que retenho da precedente citação é que as leis dos fenômenos da imitação não
têm nada de científico. Esta asserção, se refletirmos, supõe a inversão completa da
idéia de ciência. Com efeito, não se saberia contestar, a imitação é uma das formas,
a forma propriamente social, eu creio, – o que não quer dizer a forma social única
– da repetição universal. Com toda certeza, é a ela que são devidos, de fato,
pensamentos e atos humanos, palavras, ritos, produtos, – como a geração em
termos de funções e de caracteres orgânicos, como a ondulação em termos de
movimentos e de figuras, – as repetições, as mais precisas, as mais suscetíveis de
se prestarem aos registros e aos cálculos sábios da estatística, esse termômetro, ou
esse dinamômetro social. Tudo o quanto há de quantitativo, ou quase tudo, no
domínio propriamente social, é o que existe aí de imitativo. Se, pois, a Sociologia
deve, cuidadosamente, excluir de seus dados os fenômenos da imitação, o mesmo
equivale a dizer que as ciências físicas deveriam deixar de lado todos os
fenômenos ondulatórios, luminosos, som, eletricidade; as ciências biológicas,
todos os fenômenos outros além daqueles de geração espontânea; e que físicos ou
naturalistas, ocupando-se do que pode ser medido e contado, em fazendo uso de
seus instrumentos de precisão, perdem seu tempo. Seguramente, não atribuo ao
meu sábio crítico tais enormidades. Mas seu princípio aí o conduz diretamente.
Persisto em crer, pois, que não é sem interesse científico ver-se aplicar
perfeitamente as leis lógicas ou extralógicas da imitação à propagação gradual de
um corpo de costumes, onde uma legislação que, a partir de uma cidade
conquistadora, de uma casta dominante, se difunde ou tende a difundir-se de
comunidade a comunidade, de classe a classe; à estagnação de um direito, do qual
a vida é alimentada unicamente pela imitação dos antepassados; à progressão de
um direito fecundado pela imitação do estrangeiro, etc. Erra-se em não cuidar da
imitação e de sua importância. Imaginando milhares de tipos de similitudes de
evolução jurídica universalizadas sem motivo e exageradas freqüentemente,
deixam de lado a mais concreta, a mais séria, a mais universal das leis do
desenvolvimento. Quero referir-me àquela da expansão progressiva das relações de
direito, que não cessei de pôr em relevo. Verdade seja dita: O que restaria da
história do Direito, caso se suprimisse tudo aquilo que repousa, expressa ou
implicitamente, sobre a imitação?
Alguma coisa, sim. Mas observe-se que não se poderia jamais dizer o quê. O
triste é que, se verdadeiramente não pudesse ser questão de leis do
desenvolvimento jurídico senão “quando a imitação estivesse fora de causa”,
dever-se-ia renunciar a tentar aplicar a menor destas leis, pois: Nos casos em que
as legislações de dois povos, mesmo antípodas um do outro, se assemelhassem
nitidamente, estar-se-ia seguro de que não houve imitação? Não se pode duvidar
que, no passado agitado de nossa espécie, – como em nossos dias, – operaram-se
uma série de semeaduras longínquas de idéias e de exemplos, um transporte
freqüente de germes sociais a grandes distâncias, do qual autores anônimos não
fizeram nenhum alarde e de que todas as pistas se perderam. Outrora, antes do
darwinismo, quando se reconhecia, em dois países distantes, sem comunicação
conhecida, flora e fauna um pouco semelhantes, ou mesmo muito semelhantes,
reputavam-se-as autóctones, criadas sobre o lugar e não se tinha a idéia de
maravilhar-se do prodígio implicado nessa autoctonia. Deve-se aos esforços de
Lyell, de Darwin, de cem outros, fazer prevalecer a idéia de que houve geração e
não criação e que, na realidade, os organismos mais sedentários, plantas ou
animais, encontraram um meio de expedirem, até a extremidade do globo, óvulos
fecundados de sua espécie, missionários de sua religião vital. É suficiente, mesmo,
um só viajante, um prisioneiro de guerra, um navegador extraviado, para inocular
aos insulares, aos bárbaros, tal idéia, tal necessidade, tal produto de um povo
civilizado situado a milhares de léguas de lá. Outras vezes, mais freqüentemente, a
propagação faz-se mais próxima, mas, por conta de revoluções antigas, as etapas
intermediárias desaparecem. Igualmente, tenho eu o direito de pensar que se
inverteram os papéis quando, a propósito de passagens onde supus, – com ou sem
razão, pouco importa, – que certas similitudes marcantes entre povos longínquos
podem ser devidas a empréstimos. Pedem-me a prova de que houve cópia. Eu
perguntaria: Quem me provaria que não houve cópia, ou seja, que houve, talvez,
um encontro dos mais surpreendentes? O maravilhoso não se presume. Talvez eu
me engane, conjeturando a possibilidade de um transporte de nossos contos de
fadas até a terra dos zulus, ou conjeturando aquela de uma ação imitativa qualquer
no fundo das marcantes analogias assinaladas por Seignette entre os costumes pré-
históricos dos árabes e aqueles dos romanos antes das XII Tábuas. Mas se fui
temerário nisso, Humbolt [37] foi mais ainda, porque, seguramente, as analogias de
ordem mitológica, artística, agrícola, sobre as quais ele fundamenta a hipótese de
uma importação de idéias do Antigo Continente até o Novo Mundo, muito tempo
antes de Cristóvão Colombo, são menos nítidas que as confrontações de Seignette;
e, além disso é muito mais corajoso conjeturar uma comunicação pré-histórica da
China ou do Japão com o México dos astecas ou com o Peru dos incas através do
oceano, como àquela da Índia antiga com a Arábia. Todos conjeturamos sempre,
meus adversários bem mais que eu. Eles, em imaginando que, se se pudesse
remontar ao berço de todas as evoluções históricas, convir-se-ia com suas fórmulas
sugeridas, todavia, para um certo número de povos apenas; eu, em supondo que, se
se conhecessem em detalhes os fatos, ver-se-ia, não a totalidade, mas a maioria
(em número e importância) das similitudes sociais postas na conta da geração
espontânea, por assim dizer, ligar-se à geração ordinária e verdadeiramente
“normal” pela via do empréstimo. Hipótese por hipótese, a minha tem talvez a
vantagem da clareza.
Por exemplo: eu consinto de boa vontade que uma invenção pode ter – e
freqüentemente tem – muitos inventores. Mas onde eu disse o contrário? Antes
reconheci isso mesmo em termos formais. Apenas a uniformidade da evolução
exige, além do mais, que as mesmas invenções devam, ao longo do tempo,
aparecer em toda parte e, em toda parte, na mesma ordem. É esta ordem invariável
que eu nego, e não àquela da reaparição inevitável. Ora, concedei-me que, em
razão de sua natureza em parte acidental, as invenções puderam e deveram
suceder-se numa ordem em parte variável, e não se deve retirar todo apoio
concreto à idéia de um único encadeamento normal de fases, porque a
anterioridade ou a posteridade de uma descoberta em relação à outra é fato de
imensa conseqüência, relativamente aos frutos longínquos que ela trará no curso
que vai imprimir à história de um Direito, de uma língua, de uma religião, de uma
ciência, de uma arte. A raça de furfoz, segundo Quatrefages [38], era muito
inferior à raça cro-magnon que desenhava artisticamente, possuindo o arco e a
flecha; mas a primeira, que não sabia nem atirar com o arco nem desenhar,
conhecia a arte da cerâmica que a segunda ignorava. Em agricultura, em cerâmica,
em arquitetura, em limpeza, os antigos peruanos eram muito elevados, mas não
tinham qualquer sorte de escrita. Supondo que a pólvora houvesse sido inventada
nos tempos de Roma, ou a bússola, ou a imprensa, ou simplesmente a notação do
zero, – invenção tão simples em aparência, imaginada pelos gregos, tão
admiravelmente dotados, de resto, em matemática, – a face da antigüidade e do
mundo moderno teria sido absolutamente diferente, e não teríamos, sem dúvida, a
Idade Média... Inútil ir mais longe. Esses exemplos são suficientes para mostrar a
parte do acidental, – em termos de evolução, mesmo científica, – e o erro de não
ver senão uma quantidade negligenciável ou uma anomalia passageira. Do
acidental decorre o necessário. Poligenismo [39] e determinismo [40] nada têm de
contraditório.

G. T.
Maio de 1894.

Introdução
Observações Preliminares
Lenta introdução do fermento evolucionista e
antropológico no estudo do Direito Civil. A evolução
jurídica e a antropologia jurídica. Falsa concepção
ordinária da evolução. Similitudes numerosas entre as
diversas fases atravessadas pelos Direitos independentes –
problemas que elas suscitam.

O Direito é, de todos os domínios da vida social, aquele onde a especulação


filosófica é a menos exercida em nossos dias. Ela tem curso em filologia e
mitologia comparadas, em política, em moral, em estética, em economia política;
mas aos Códigos faz medo. Deixa o Direito aos juristas, a mina aos mineiros.
Recuou ela, – não sei por quê, – diante dos estudos especiais que a exploração
desse novo filão exigiu? Ou haveria, entre o espírito jurídico e o espírito filosófico,
alguma incompatibilidade de natureza? O que quer que seja, esse abandono do
campo legislativo aos simples trabalhadores braçais, chamados comentadores ou
homens de negócios, teve resultados os mais desagradáveis para a ciência do
Direito, primeiramente, porque permaneceu fechada em si, estéril, caseira e
rotineira e, a seguir, porque as ciências outras, suas irmãs, – a economia política
sobretudo, em esquecendo seu parentesco e seus direitos na partilha da herança
comum, – transgrediram, sem saber, seus limites naturais. A reação socialista que
se produziu tão apaixonadamente na segunda metade deste século contra a
economia política da antiga escola, não foi ela devida, em parte, às usurpações
inconscientes desta última que, em suas ambiciosas teorias sobre a riqueza, jamais
foi detida por qualquer grande teoria do Direito, rival e fraterna?
Mas, após alguns anos, a introdução do fermento darwiniano, evolucionista,
antropológico, no Direito Criminal determinou uma crise que se propaga com
extrema rapidez e que começa a ganhar o Direito Civil, ele mesmo [41]. Já os
arqueólogos da legislação haviam preparado esse movimento por suas pesquisas
eruditas. Até eles, o Direito Romano, único estudado historicamente da fonte à
embocadura, era, para o teórico jurisconsulto, alguma coisa como a História Santa
para o historiador de outrora, ou seja, um fenômeno único e sagrado,
absolutamente incomparável, – e por isso sem comparação, – tornado
absolutamente inexplicável. Quando os egiptólogos, quando os assiriólogos
contemporâneos nos revelaram o direito egípcio, o direito assírio; quando, – todos
análogos nas antigüidades das famílias indo-européias e semíticas, germanos,
eslavos, persas, celtas, assim como muçulmanos e hebreus, etc., – nos fabricaram,
pouco a pouco, um vasto museu jurídico, no qual Dareste [42], entre nós, poderia
ser chamado de o conservador, a velha jurisprudência então revelou-se
inesperadamente ampliada e rejuvenescida. Seria contudo uma ilusão pensar que,
em razão de se constatarem similitudes numerosas e surpreendentes entre diversas
línguas, e em razão de fundar-se a filologia comparada, construiu-se a teoria da
linguagem. Seria um erro igual persuadir-se de que foi suficiente ao jurisconsulto
filósofo haver descoberto analogias entre muitas evoluções legislativas mais ou
menos independentes umas das outras e criado assim a legislação comparada.
Essas similitudes não são senão os dados do problema a resolver; trata-se de limitá-
las primeiramente, estreitá-las com habilidade em seus limites naturais,
freqüentemente ultrapassados por um abuso de engenhosidade. Trata-se de explicá-
las, a seguir, em remontando às suas causas, que são de duas sortes: orgânicas ou
sociais. As primeiras consistem nas necessidades inatas e hereditárias da natureza
humana, que permanece a mesma através da diversidade das raças e das gerações;
as segundas, nas necessidades derivadas e adquiridas por contágio imitativo de
homem a homem. Devem-se combinar estas duas ações parciais para se
compreenderem as transformações históricas do Direito, assim também como
àquelas da língua, da religião, das instituições, das indústrias, dos costumes. Mas,
para combiná-las, deve-se, antes de tudo, não as confundir; distingui-las, ao
contrário, com toda a nitidez possível, deixando, a cada uma delas, sua parte.
Não é que belos trabalhos filosóficos sobre o Direito não tenham aparecido,
lá e acolá, por exceção. É suficiente citar a obra capital de Sumner-Maine [43]
sobre o Direito Antigo e os notáveis estudos que se seguiram. Mas pode-se
constatar que a escola evolucionista, tão rapidamente conquistadora, tão pronta aos
impulsos empreendedores fora de seu berço darwiniano, haja se mostrado tão
reservada do ponto de vista do Direito. Sumner-Maine não se liga a ela senão por
um parentesco colateral e muito longínquo de qualquer sorte; e ele é da escola
histórica, muito francesa de origem, que não esperou nem Darwin nem Spencer
para vir ao mundo. Em Direito Penal, é verdade, a doutrina da evolução imiscuiu-
se desde há alguns anos, mas ainda muito de preferência em Antropologia Criminal
do que foi questão em evolucionismo penal. Quanto ao Direito Civil, ele
permaneceu fora do movimento até uma época mais recente ainda. Veja-se
entretanto que se ouvem anunciar já os nomes de “antropologia jurídica” e também
de “evolução jurídica”; mas de modo semelhante aos nomes que os antigos
geógrafos davam, por antecipação, às regiões ainda pouco exploradas da África ou
da América. Na realidade, sem desconhecer o mérito dos primeiros exploradores
destas terras desconhecidas, é permitido supor que eles deixaram toda uma colheita
a ceifar depois deles. Assim é evidente que muitos pesquisadores tendam a se
lançar sobre suas pegadas.
Os historiadores e os arqueólogos da legislação haviam já há muito tempo
preparado seus caminhos.
Mas a História e a Arqueologia são, infelizmente, as que parecem menos
inquietar os discípulos de Herbert Spencer [44] que, aplicando aqui alguma
fórmula geral de evolução, – chave mágica do universo, – tomam por uma
explicação esta aplicação pura e simples. É verdade que os evolucionistas recentes
do Direito são, em geral, também antropologistas [45], e poder-se-ia esperar deste
encontro de pesquisas antropológicas com os grandes sistemas darwiniano e
spenceriano o mais feliz resultado. Poder-se-ia crer que aquilo que o conhecimento
minucioso e detalhado dos órgãos e das necessidades dos indivíduos fornecesse
para alguns completasse ou temperasse a tendência excessiva às generalizações
sugeridas pelos outros; que uns permitiriam, pela primeira vez, propor ao Direito
futuro seu ideal verdadeiro, a perseguição de um Direito verdadeiramente natural,
conforme às exigências naturais do organismo humano, enquanto os outros
revelariam a necessidade das vicissitudes atravessadas no curso de sua história pelo
Direito do passado. Mas a verdade obriga-me a confessar que, ao menos até aqui,
esta confluência de duas grandes escolas não foi muito fecunda em idéias duráveis,
e eu não vejo ainda se elevar, entre as muitas pequenas torres de babel jurídicas
precipitadamente construídas, alguma Torre Eiffel que humilhe com sua sombra os
trabalhos anteriores dos Sumner-Maine e dos Fustel de Coulanges [46]. A Cité
Antique deste último permanece, com seus estudos sobre a origem do sistema
feudal, – infelizmente deteriorados pelo espírito de sistema e de inutilidades
polêmicas, – uma das obras que fazem melhor penetrar, indiretamente, na própria
vida do Direito e nos segredos de suas mutações [47]. Quanto ao Ancien Droit e as
outras obras do grande jurisconsulto inglês, por desprovidas que elas sejam de
ambiciosas pretensões, parecem haver extraído de nosso assunto todo o sumo
filosófico que ele contém. Isso não é senão ilusão no entanto, e restam,
seguramente, muitas outras descobertas a fazer num campo tão pouco ou tão mal
explorado.
Não é fácil saber o que se compreende pela introdução da Antropologia no
Direito Civil. Em Direito Criminal, nós o sabemos, consiste em ocupar-se do
criminoso mais que do crime, em individualizar as questões. Está muito bem. Mas
se, para sustentar a Antropologia Criminal, trata-se de edificar a “Antropologia
Jurídica” [48], poder-se-ia fazer o mesmo com igual sucesso? É que, por acaso,
sonhar-se com individualizar as disposições legais, com ajustá-las aos diversos
indivíduos separadamente, como os alfaiates fazem para nós as vestimentas. De tal
sorte: Ter-se-ia, para cada homem jovem ou para cada jovem mulher, uma idade
especial de maioridade, de capacidade civil? E ter-se-ia também que o valor dos
contratos deveria ser julgado de acordo com o exame antropológico dos
contratantes? Tal seria, seguramente, antes zombar do que emprestar esse sentido
pueril à preocupação naturalista em face da legislação. Não nos esqueçamos: o que
existe de mais natural no homem é o gosto do racional, a necessidade de submeter-
se a regras gerais, arquiteturais de aspecto. Em Direito Penal mesmo essa
necessidade faz-se sentir; mas, bem mais vivamente ainda, em Direito Civil. As
leis são monumentos, não vestes. De preferência são, por sua vez, uns e outros,
porque não é impossível conciliar a uniformidade e o ajustamento. As estatuetas
de Tanagra revelam-nos a graça do plissado individual que as belas mulheres de
Tebas sabiam dar ao panejamento de suas roupas, de corte igual para todas, que
lhes serviam de ornamento. Tal deve ser a arte do legislador civilizado: destacar
regras iguais mas flexíveis, que se dobrem facilmente ao talhe dos indivíduos. Isso
se torna tanto melhor quanto mais obtém ele o ajuste destas prescrições às
necessidades naturais, ou tornadas tais, judiciáveis. E vejo bem que se aplica o
nome de Direito Natural, desviando-o um pouco de seu sentido antigo e estóico
para um certo ideal vago de legislação que seria, por hipótese, – hipótese realizável
ou não, – a perfeição desta conformidade. Mas não posso admitir que, sendo as
necessidades às quais se trata de se conformar em parte, em grande parte, o
produto da cultura e de acidentes históricos, fosse suficiente haver medido muitos
crânios humanos de todos os tempos e de todas as raças e mesmo fazer muito de
psicologia fisiológica, para poder dar a última palavra a esse respeito. Sem dúvida
importa, por exemplo, não esquecer, como fazem muito freqüentemente os juristas,
que a matéria das sucessões se relaciona intimamente àquela da hereditariedade
vivente. Mas isso não é uma razão para entrar, a este propósito, em longos detalhes
sobre a hereditariedade das particularidades anatômicas entre as inúmeras espécies
animais [49], como se se persuadisse de que esse estudo minucioso possa ser o
único a pôr luzes sobre a questão do melhor regime sucessoral a adotar. Adiante
voltaremos a essa grande concepção do Direito Natural.
Muito mais clara em aparência que a idéia de uma “antropologia jurídica” é
aquela da “evolução jurídica”. Também ela apresenta, todavia, grande necessidade
de ser precisada. Se não se trata senão de substituir o estudo do Direito Romano
por aquele do direito asteca, do direito peruano, do direito fueguino, do direito
australiano, do direito da idade do bronze ou da pedra lascada ou polida, de todos
os direitos bárbaros ou selvagens quaisquer, para esclarecer as origens da
legislação, a coisa não reclama senão uma certa dose de erudição fácil, a serviço de
uma força média de imaginação. E esta estará sempre segura do assentimento de
um público especial, se revestir-se dessa “forma banal de originalidade” que
consiste em ser, por sua vez, conservadora e ousada, dedutiva e engenhosa, própria
a lisonjear, ao mesmo tempo, por suas hipóteses científicas, a rotina do espírito e o
gosto das novidades. Aqui, como um pouco por toda a Sociologia, há muito abuso
dos selvagens. Desde Spencer, que inaugurou magistralmente a exploração dessa
mina ao mineiro tão impuro, há um pequeno número de anedotas, sempre as
mesmas, tomadas de algumas tribos americanas, africanas ou oceânicas que
circularam pela imprensa sociológica e que se vão citar por muito tempo ainda sob
diversos rótulos. Sem a sombra de uma prova senão àquelas que pode fornecer
uma observação superficial, consegue-se validar a idéia a priori que o estado social
primitivo, o suposto ponto de partida do progresso, é idêntico entre todos os
selvagens. É impossível, todavia, fechar os olhos sobre as diferenças profundas que
apresentam os selvagens atuais, mesmo os mais inferiores: as raízes verbais, as
construções gramaticais de suas línguas, seus ritos e suas crenças, seus embriões de
governos despóticos ou paternais, seus costumes pacíficos ou belicosos, doces ou
ferozes, fraternos ou perversos, suas melodias harmoniosas, seus ensaios de
desenhos diferem completamente. Mas não se constrangem por tão pouco. Os
selvagens, que são dessemelhantes, o são, diz-se, porque não são educados mais ou
menos no alto da escala da selvageria. Sua própria diversidade é instrutiva do
ponto de vista da identidade original, da qual ela mede o grau de distanciamento.
Ela não a contradiz em nada. Quanto aos selvagens que se assemelham, admite-se,
à primeira vista, que sua similitude seja completamente espontânea. Não se leva,
em geral, em nenhuma conta a extrema probabilidade dos contatos que deveram
existir, fosse entre eles, fosse entre seus ancestrais, na longa noite de sua história
ou, antes, de sua pré-história. Não se sonha em perguntar se, por aí, bem mais
naturalmente que por uma pretensa fórmula de evolução única e necessária, não se
explicaria uma parte notável destas similitudes.
Isso é deplorável, mas forçoso. Se, por evolução, acredita-se dever entender
um encadeamento regrado de fases, de metamorfoses tão fatais e tão regularmente
repetidas quanto àquelas dos insetos, através de variações puramente acidentais e
reputadas insignificantes, não deveria, antes de tudo, a fase inicial ser vista como a
mesma em todos os sentidos? Lamentável é que o transformismo [50] haja nascido
entre os naturalistas, não entre os sociólogos ou físicos; e se está habituado a
considerar como o único tipo possível de desenvolvimento a espécie singular – e
singularmente rotineira – de desenvolvimento apresentado pelos seres organizados.
Persuade-se muito facilmente de que evolução signifique, não apenas produção de
fases sucessivas cumpridas segundo as leis da mecânica e da lógica, mas ainda
reprodução de exemplares múltiplos de fases predeterminadas, análogas às idades
sucessivas de um indivíduo vegetal ou animal [51]. Não ocorre a idéia de que esta
lei das idades, assim conhecida, sobre o modelo desses seres excepcionais, poderia
bem não ser inteiramente aplicável aos sistemas solares ou às transformações das
sociedades; que o crescimento de uma língua, de uma religião, de um corpo de
Direito, de uma arte, tudo estando também conforme ao determinismo universal,
como o crescimento de uma gramínea ou de um quadrúpede, poderia bem ser de
outro modo, original e único em si. Deixa-se muito precipitadamente pensar,
afirmar que, porque todo ser vivo é ou parece ser [52] levado à morte por um
princípio interno, tal princípio deva existir também para todo sistema astronômico,
mesmo chegado à sua fase de equilíbrio estável, e também para toda língua, para
toda religião, para toda legislação, mesmo chegadas aos seus estados de perfeição
relativa e de circulação estacionária, uma necessidade interior de morrer. Ora, que
cedo ou tarde deva provavelmente sobrevir de fora qualquer choque dissolvente
onde perecerá a língua, a religião, a legislação, a mais indestrutível até então, nada
de mais admissível. Assim pereceram antigas civilizações asiáticas que durarariam
ainda sem qualquer acidente de guerra; assim pereceram talvez muitos cultos
atacados pela ciência; assim a velha China, talvez, ao contato com os europeus.
Mas uma coisa é esta morte violenta, – interrupção de uma imortalidade possível e
normal, – e outra é a morte natural, da qual nenhum vivente escapa em limite de
tempo aproximadamente fixo [53]. Antes de generalizar em lei suprema este
último fenômeno, e tantos outros caracteres aparentes ou reais da vida, valeria a
pena refletir um pouco: A idéia-tipo do desenvolvimento, em lugar de ser
emprestada à vida, não poderia ela também ser reclamada à Astronomia ou à
Lingüística ou à Mitologia Comparada? Será que as leis da mecânica e as leis da
lógica, umas se espelhando nas outras, não dominam àquelas da vegetação e da
animalidade? E será que a noção do desenvolvimento, tal como nos é sugerida pela
mecânica celeste, como sendo essencialmente a perseguição de um equilíbrio
estável e móvel, ou bem, tal como ela nos é sugerida pela lógica individual ou
social, como sendo a perseguição de um sistema harmonioso, indefinidamente
durável, de pensamentos e de vontades sem contradição, bem de acordo entre elas,
não é superior em precisão, em clareza, em valor explicativo, à idéia dessa marcha
insensata e fatal em direção à morte que a vida nos sugere?
Nós tentaremos esboçar ou indicar os principais traços da evolução do
Direito concebida como uma alta e complexa operação de lógica social; mas,
primeiramente, haveremos de monstrar a insuficiência do evolucionismo social tal
como ele é geralmente interpretado. Vítima de sua idéia fixa, este é e deve ser
necessariamente levado: 1º) a exagerar o número e o alcance das similitudes que
atingem o espirito à primeira vista, quando se comparam os corpos de Direito
reputados estrangeiros uns com os outros, assim como línguas, religiões, exércitos,
nações consideradas sob o ponto de vista político, industrial, artístico, moral; 2º) a
considerar todas essas semelhanças, verdadeiras ou falsas, como espontâneas, sem
haver considerado, ou sem haver tentado considerar, a parte legítima que cabe ao
princípio da imitação. É curioso ver espíritos que se dizem positivistas sucumbirem
à sedução do maravilhoso realizado, segundo eles, por essas coincidências
multiplicadas e preferirem, à explicação clara de uma parte dessas semelhanças
pelo contágio do exemplo, sua explicação obscura pelo atavismo e pela
hereditariedade. Permitimo-nos entrar em alguns detalhes a esse respeito.
Os melhores espíritos podem ser enganados por sua preocupação
sistemática. Não quero tomar por prova senão Dareste [54]. ”Um fato que os
trabalhos modernos têm trazido à luz, diz ele no início de seu livro sobre a Histoire
du Droit, é a afinidade, para não dizer a identidade de diversas legislações
primitivas. A filologia tem mostrado, através de admiráveis descobertas, a origem
comum da maior parte das línguas européias que ela tem sabido relacionar às
antigas línguas – hoje mortas – da Índia e da Pérsia. Mais estreito ainda é o
parentesco de diversas legislações. Não apenas elas têm todas sofrido
transformações análogas, mas ainda se reproduzem freqüentemente umas e outras,
traço por traço e quase palavra por palavra, através de enormes distâncias e longos
intervalos de tempo, quando então nenhum empréstimo direto era possível. De
sorte que, para explicar esta semelhança, – que não saberia ser fortuita, – deve-se,
necessariamente, admitir: ou que ambos os povos tinham uma origem e por
conseguinte uma tradição comum ou que as mesmas causas tenham para todos os
mesmos efeitos.” Visivelmente, Dareste inclina-se muito para esta última
interpretação. Aliás, – vê-se, – coloca ele muito bem a questão e limita-se, além
disso, a relacionar as legislações das raças superiores, com exclusão meritória dos
selvagens de todas as raças. Mas, nestes limites mesmo, – nós o veremos, – ele
alega muito mais do que prova seu livro. O que quer que seja, – já que ele mesmo
se exprime assim, – não se deve surpreender de ver Letourneau, – que estende a
todas as populações ou nações conhecidas o campo de suas comparações, – atribuir
a mesma uniformidade desoladora ao longo de suas transformações jurídicas.
Contudo a verdade por ele sustentada leva freqüentemente ao preconceito. Ele
admite divergências iniciais de desenvolvimento social a partir da mais baixa
selvageria [55], porque lhe custaria muito confundir as tribos republicanas com as
tribos monárquicas. E esta base de distinção, por mais que seja manifestamente
muito estreita, é sempre boa de observar. Em seu estilo colorido, ele chega também
a caracterizar com vigor a fisionomia jurídica própria a cada povo, inteiramente sui
generis, e ignora afrontosamente nisto, – pelo horror confessado aos romanistas e
imperialistas, – a originalidade superior do Direito Romano, exaltando, além da
medida, àquela do Direito Ateniense por amor às democracias.
Os evolucionistas, malgrado tudo, concordam pois em afirmar a existência
de uma lei única (e necessária) de evolução jurídica. Mas seu desacordo começa
quando eles se atrevem a formular e precisar as fases que o Direito estaria
subordinado a atravessar em sua trajetória histórica. Há todavia alguns pontos
sobre os quais se mostram um pouco em falta. Em Direito Penal, eles admitem e
demonstram a universalidade primitiva tanto no Novo quanto no Antigo Mundo,
do talião e da vingança familiar seguidos da composição pecuniária e, mais tarde,
do processo oficial. Em procedimento criminal, admitem a universalidade
primitiva dos ordálios, dos julgamentos de Deus e, muitas vezes, sob formas
assombrosamente semelhantes. Em Direito Civil, admitem a universalidade
primitiva da comunidade da aldeia, depois de família, como regime de bens, antes
da gradual aparição da propriedade privada; e, como regime de pessoas, a
universalidade primitiva (muito contestada no entanto) do matriarcado, seguido do
patriarcado e, então, daquela da escravidão das mulheres, – coisa pouco conciliável
com a soberania anteriormente atribuída à mãe de família; – depois, a passagem
desta servidão até uma lenta emancipação feminina. Quanto às obrigações,
acredita-se ver em toda parte os contratos reais precederem aos contratos
consensuais, e a elaboração jurídica conduzir os jurisconsultos, fossem romanos,
fossem árabes, fossem hebreus, independentemente uns dos outros, a uma teoria
das obrigações quase que concebida sobre o mesmo plano. Passemos em revista
esses diversos pontos.

Capítulo Primeiro
Direito Criminal
A idéia espontânea do Direito nascida da simpatia, fonte
da imitação. Distinção fundamental entre as relações
internas do grupo primitivo e as relações externas com
outros grupos. Antigüidade do sentimento da
culpabilidade – dupla evolução paralela e contrária.

Comecemos por reconhecer, de boa vontade, uma similitude das mais


universais e mais importantes: a idéia do Direito, por diferente que seja em
conteúdo, é formalmente a mesma em todos os países e em todas as raças. Não que
ela seja inata, mas parece derivar necessariamente de instintos naturais
hereditariamente legados ao homem por seus ancestrais humanos ou pré-humanos
e refletidos pelo meio social. De tal sorte, por impossível que seja, se a idéia do
Direito viesse a desaparecer hoje da humanidade, ela renasceria fatalmente
amanhã. Mas é importante não se enganar, designando a fonte natural dessa
tendência irresistível, quando se pretende, com justiça, fazer remontar até ela as
origens do Direito. “O instinto reflexo de defesa, – diz Letourneau [56], – é a raiz
biológica das idéias de Direito, de justiça, pois que ele é, evidentemente, a base da
primeira das leis, da lei do talião.” Que as noções de que ele trata tenham uma base
biológica, nada de mais verdadeiro; mas que esta raiz seja unicamente, ou
principalmente, o instinto reflexo de defesa, eis que está muito pouco demonstrado.
Em nossa opinião é também, – e antes de tudo, – o instinto de simpatia, condição
primeira e indispensável a todo grupo social, pela comunicação contagiosa de
emoções, de desejos e de idéias.
A omissão grave, o erro importante que observo, tem por causa o
esquecimento muito geral de uma distinção que acredito fundamental. Os
primitivos puderam dar lugar aos julgamentos mais contraditórios, conforme os
juízes, segundo suas relações com os estrangeiros, com os indivíduos pertencentes
a outras tribos, a outras famílias, mesmo vizinhas às suas, ou segundo suas relações
com os membros de seu pequeno grupo, mônada social fechada em si, fortaleza
estreita, rude para com os estranhos, confortável e suave para com os de dentro.
Em suas relações externas, que são muito mais numerosas e mais fáceis de
perceber, – e eis por que a maior parte dos viajantes ou dos eruditos não percebem
senão isso, – eles são grosseiros, cruéis, desumanos. A morte ou a pilhagem de um
estrangeiro não lhes causa nenhum remorso e, se um estrangeiro matar ou pilhar
um dos seus, vêem nisso um razão para guerra, que reclama represálias contra o
autor do delito ou contra os seus, indiferentemente. Se, para a reparação do dano
feito assim à pequena sociedade, se lhe oferece um rebanho ou uma soma em
dinheiro, eles aceitam sem pudor, como nossos Estados civilizados recebem uma
indenização de outro Estado pelos prejuízos sofridos por seus nacionais. Em tudo
isso não existe marca de um sentimento moral propriamente falando; o assassino, o
ladrão não é julgado culpado, e a vingança exercida contra ele ou seu grupo não
tem o caráter de uma punição. Se, pois, está provado que assim foi o começo, – e o
único começo, – da justiça penal, se está provado que é pura e simplesmente a
transformação da vingança primitiva, sua regulamentação oficial com inserção,
mais tarde, de noções teológicas relativas à culpa e ao pecado, poder-se-ia então
atribuir a Enrico Ferri que a idéia da culpabilidade é uma invenção moderna [57],
uma criação fática, contra a natureza ou contra a razão, de imaginação metafísica, e
que o progresso do Direito Penal pode e deve passar dela. É a esta conseqüência,
com efeito, que ele chega logicamente a partir de suas premissas errôneas.
Impende, pois, retificar estas premissas que estão incompletas. Trata-se do
que não se vê, entre os primitivos, como entre nós; e que freqüentemente é o mais
essencial a considerar, ainda mais essencial do que aquilo que se vê. Ora, o que
não se vê entre eles, de ordinário, porque é coisa secreta e murada, são suas
relações internas, o que se passa em seus corações. Tratam-se de remorsos
verdadeiros misturados talvez a temores supersticiosos, quando cometem um
fratricídio ou qualquer outro crime em prejuízo de um de seus irmãos, de seus
concidadãos correligionários; e dá-se entre eles, espectadores do delito ímpio, o
escândalo, a indignação, a vergonha, a dolorosa piedade também, causadas por
essa abominação, aliás muito rara. Todos os livros sagrados, todas as lendas
antigas atestam o remorso vingador, a maldição indignada que castiga os Cains, os
Etéocles e os Polinícios [58] e, ainda mais, os parricidas: seu crime foi condenado
pelos deuses, como aquele de Orestes. E não é questão de vingança então, de
resgate pecuniário; o culpado é proscrito, excomungado por um tribunal
doméstico. E, muitas vezes, quando o crime não parece muito imperdoável, o
objetivo visado pela pena, após muitas provas, é a reconciliação final solenizada
por um festim.
Diremos nós que os tribunais de família, com o caráter sentimental, moral,
de sua justiça e de sua penalidade foram universalmente difundidos entre os
primitivos? Eles o foram extremamente, porque nós os encontramos na origem de
todos os povos indo-europeus, bem como dos semíticos. Nós os vemos funcionar
ainda em nossos dias entre os cabilas [59], entre os ossetos [60] do Cáucaso e
mesmo na China, onde os tribunais imperiais, tomados como modelos, em certa
medida, não foram, de modo algum, por exceção, completamente substituídos,
como ocorreu, em geral, com os tribunais monárquicos nos países civilizados.
Entretanto, eu não ousaria afirmar que eles existiram em toda parte, e que, em toda
parte, fossem julgados moralmente os crimes internos da família, da tribo ou do
clã; enquanto se pode afirmar, sem medo de errar, que, em toda parte, a origem, o
costume da vingança privada, da responsabilidade coletiva, depois do Wergeld
[61], exerceu o que concerne aos crimes exteriores. Também entre os peles-
vermelhas e os bárbaros do antigo continente, a vingança foi praticada, e a
composição em dinheiro ou em cabeças de gado substituiu-a. Mas pode-se afirmar
também que não há um só povo civilizado que não apresentasse, desde suas mais
antigas fases, um sentimento profundo de responsabilidade moral nas relações
recíprocas de seus cidadãos, socialmente aparentes; e se, entre alguns selvagens
contemporâneos, não se encontram marcas desse sentimento (?), mesmo no círculo
estreito de suas relações quase domésticas [62], temos o direito de supor que eles o
perderam, ou bem que esta lacuna lamentável é uma das causas, – e não a menor, –
de sua parada no mais baixo grau da escala humana.
Assim, na origem, a reação defensiva contra o ato criminoso bifurca-se em
duas formas bem distintas e de extensão bastante desigual: uma moral, indignada e,
ao mesmo tempo, compassiva; outra vingativa, odiosa e impiedosa; ambas, por
outro lado, tendo por traço comum uma tendência ao talião verdadeiro ou
simulado. É, com efeito, um erro muito propagado identificar as idéias do talião e
da vingança; àquelas do talião e da penitência não são menos unidas, e o pecador
arrependido acha justo ser punido ou punir-se ele mesmo por onde pecou, como os
exércitos na guerra acham natural vingar-se, devolvendo cilada por cilada,
vandalismo por vandalismo [63]. – Ora, a repressão moral circunscrita aos
tribunais domésticos, ou de repressão vingativa desdobrada nas vinganças de tribo
a tribo, deve ser considerada como a fonte inicial de onde o Direito Penal deriva?
Eu pretendo que seja a primeira, reconhecendo que a segunda tem, mais
freqüentemente e por mais tempo, servido de tipo à justiça dos tribunais de Estado,
quando eles são, pouco a pouco, substituídos no todo pelos tribunais de família e
pelas guerras privadas. É em doses muito variadas, de resto, que esses dois
modelos tão diferentes combinam-se para dar origem às cortes criminais em
diferentes países; e nós vemos já, por aí, que a evolução penal está longe de haver
sido uniforme. Esta variabilidade se explica: um Estado forma-se sempre por uma
anexação mais ou menos violenta e considerável de tribos ou de pequenas
populações mais ou menos estreitamente ligadas ou desunidas pelo sangue,
religião, língua, recordações históricas. Quando a união das tribos, sob essas
diversas relações, é tão estreita quanto possível, e a nação nascida da aglomeração
desses liames é pouco vasta, a justiça do Estado tinge-se fortemente das tintas
familiais; este é o caso de Israel, de Atenas e da maior parte das repúblicas gregas,
de Roma ao tempo dos reis. Também Moisés e outros antigos legisladores destes
povos proscreviam a vingança privada [64], e sua obra reflete, em sua severidade,
um alto sentimento moral. Mesmo quando a aglomeração das tribos primitivas
constituía um vasto império, tal como o Egito e a China, mas um império ainda
muito homogêneo, onde os súditos, os mais afastados, não haviam ainda cessado
de se sentirem como irmãos, a justiça real, sem merecer sempre nem
freqüentemente sua pretensão de ser paternal, marca fortemente, em certos
detalhes, sua derivação doméstica. A justiça egípcia, ainda que algumas vezes
atroz, “denota, – diz Letourneau, – uma humanidade desconhecida da maior parte
dos Estados bárbaros e uma viva preocupação com a solidariedade social”. Se, na
China, os culpados são tratados como prisioneiros de guerra bem mais do que
como crianças corrompidas, não é menos verdade que são também considerados
sob este último aspecto; por exemplo: “todo condenado deve agradecer ao
mandarim juiz a pena pronunciada contra ele”. Evidentemente, se a pena não fosse
concebida senão como uma vingança oficialmente regulamentada, esta bizarra
exigência não existiria. Outras particularidades da justiça Chinesa: o perdão
concedido àquele que espontaneamente se confessa culpado e exprime
arrependimento, o golpe de bastão adotado como pena fundamental, ao modo das
correções usadas pelos pais [65], etc., são de origem familiar e não vingativa. Ser
desonrado aos olhos dos seus, excomungado por sua família é, na China, o maior
dos castigos e, para fugirem de tal punição, vêem-se pobres-diabos consentirem em
substituir condenados à morte. Mediante esta correção, voluntariamente sofrida,
sua memória é restabelecida.
Mas quando as tribos hostis ou heterogêneas são violentamente estreitadas
por um liame fático num Estado pequeno ou grande, como os concidadãos de
renome são na realidade desprovidos de todo sentimento de fraternidade, a justiça
penal procede militarmente, espancando, cortando cabeças, numa sorte de furor
sanguinário. Tais são os grandes reinos incoerentes da Ásia, os pequenos reinos
não menos multicoloridos da África. No Japão, já a penalidade é de natureza mais
vingativa que na China, e o princípio da responsabilidade coletiva impessoal reina
por mais tempo, talvez porque o japonês seja mais belicoso que o chinês, e porque
a conquista desempenhe um grande papel na formação de sua nacionalidade.
Se não levarmos em conta senão as fronteiras políticas de uma sociedade,
nada haverá de mais nítido do que a diferença entre o compatriota e o estrangeiro:
nada existe entre ambos. Mas as fronteiras morais são, ao contrário, imprecisas e,
sob este ponto de vista, há mil graus intermediários, sucessivamente franqueados
ao curso da civilização, da confraternização progressiva entre o compatriota mais
próximo e o estrangeiro mais afastado. O mesmo ato criminoso, pois, segundo
atinja um ou outro desses dois extremos, ou qualquer um dos graus que os
separam, pode incitar a uma punição variável do infinito ao zero com relação à
responsabilidade moral de seu autor. Toda tribo é limitada a um círculo pequeno
ou extenso de tribos congêneres que, mesmo em se combatendo, formam uma
federação social mais ou menos estreita; seus vínculos se enfraquecem à medida
em que se ampliam, até chegar a nações longínquas ou desconhecidas, reputadas
pura e simplesmente como caça. Compreende-se que o senso moral e o senso
penal deveram ser, desde a origem, profundamente diferentes entre duas tribos,
entre as quais uma não está em relação habitual senão com tribos irmãs, e onde
outra não tem relações freqüentes senão com populações heterogêneas. Vê-se já
por aí, do ponto de vista da evolução criminal e penal, a complexidade natural que
fornece a distinção estabelecida por nós, e o que existe de artificial na
simplificação obtida através de sua omissão. Ver-se-á bem melhor a seguir.
Entretanto não está aí senão um dos menores inconvenientes deste
esquecimento. Sua mais grave conseqüência é de haver introduzido este erro: que
o sentimento e a noção da culpabilidade sejam coisa recente, o mesmo que vale
dizer superficial e artificial, um simples produto da alquimia metafísica que teria
transmutado nesse ouro puro, – e eu ignoro como, – o chumbo vil da vingança e do
ódio. A verdade é que este sentimento e esta noção existiram sempre, mas
localizados primitivamente em recintos bastante murados que os esconderam aos
nossos olhos; estas cercas, a civilização as abateu, afastou, abateu novamente e, a
seguir, estendeu cada vez mais o domínio moral, mas não criou jamais a
moralidade, da qual a essência íntima é a simpatia, condição sine qua non do liame
social. Quanto à vingança e ao ódio, paixões não menos primitivas, elas evoluíram
também, e estão longe de se metamorfosearem, quer dizer, de desaparecer, eis que
reaparecem aumentadas aos nossos olhos nessas grandes guerras de revanche que
são as vinganças das nações [66].
É curioso notar as fases dessa evolução. Primeiramente empregados entre
famílias, a vingança e o talião, após a fusão das famílias em pequenos burgos,
foram suprimidos pouco a pouco nas relações interfamiliares, mas apareceram nas
relações belicosas dos burgos entre eles; depois, após a fusão dos burgos em
cidades, vimos desaparecerem as vinganças de burgos e aparecerem as vinganças
das cidades; e enfim, após a agregação das cidades em Estados, e em Estados cada
vez maiores, as guerras de cidade a cidade foram suprimidas, mas em proveito de
guerras de nação contra nação (ou de classe contra classe), e sempre, e em toda
parte, as nações, por grandes que elas sejam, praticam represálias e revanches
militares. De sorte que a vingança rareou mas expandiu-se por graus. Inversa e
simultaneamente, os sentimentos de fraternidade, de mútua assistência, de justiça,
primeiramente reduzidos ao círculo doméstico, foram se desenvolvendo
indefinidamente como uma onda circular.
Em resumo, não é verdade que a vingança, o golpe por golpe das crianças,
seja o único nem o principal ponto de partida da evolução penal. A Penalidade tem
duas fontes: a fonte secundária, ainda que a mais aparente, é a vingança; mas a
fonte essencial é a punição doméstica, expressão de uma reprovação moral e
tradução de um remorso. Estas duas fontes misturam-se em doses muito diversas
nos costumes e leis de diferentes povos, e daí vem sua divergência. A civilização
tende a cavar-lhes dois leitos distintos. Em meio a todas essas dessemelhanças,
relevamos todavia uma similitude importante, mas da qual é fácil extrair a razão, e
que concerne à incriminação. É que, sempre e em toda parte, o assassinato e o
roubo cometidos em prejuízo do compatriota reconhecido como tal são reputados
crimes. É evidente que toda sociedade onde, nas relações mútuas entre seus
membros, reinasse o direito ao assassinato e ao roubo, não tardaria a se dissolver.

Capítulo Segundo
Processos
Similitudes. Ordem lógica e irreversível na sucessão de
certos ordálios. Diferenças. Dois sentidos da palavra
evolução, propagação de exemplos ou série de iniciativas.
Houve ponto de partida semelhante? Ou caminho
semelhante? Ou semelhante ponto de chegada? Direito
Romano e Direito Ateniense comparados. Justiça chinesa.
O processo do amanhã.

No que concerne ao processo, seja criminal ou seja civil, encontramos uma


profusão de curiosas similitudes. Em matéria criminal, primeiramente, é natural
que a prova testemunhal e a confissão hajam sido universalmente empregadas,
ainda que sua importância relativa tenha variado prodigiosamente. Pode-se se
espantar mais ao ver praticar, em qualquer outro país bárbaro ou selvagem, esses
recursos a místicos pareceres que se chamam ordálios [67], onde se joga, por assim
dizer, com a vida dos acusados. É mais surpreendente ainda, à primeira vista,
constatar que suas formas não variam nada. O duelo judicial, é verdade, não foi
praticado em toda parte. Ele não pôde nascer espontaneamente senão no seio de
tribos belicosas. Jamais uma tribo pacífica, como existem em tão grande número
entre os selvagens, o imaginou. Ele não aparece nos códigos bramânicos nem no
Avesta [68]; mas o encontramos nas tribos americanas, australianas, oceânicas,
como também nas do Mundo Antigo. As provas por água fervente ou pelo ferro em
brasa são extremamente difundidas. Elas figuram nas legislações antigas da Índia,
da Pérsia, da Geórgia, dos tchecos, da Polônia, da Sérvia, da Suécia, da Noruega,
da Dinamarca, da Germânia, etc. Evidentemente, é pelo contágio imitativo que se
explica esta difusão. Mas como justificar racionalmente semelhante êxito? Deve-se
supor que, lá onde essas deliberações supersticiosas de divindades importadas de
fora são aclimatadas, existiam anteriormente práticas mais absurdas ou mais cruéis
ainda do que aquelas que foram substituídas.
Com efeito, parece-me haver existido uma certa ordem lógica e irreversível,
não constante, todavia, da sucessão histórica dos ordálios [69], lá ao menos onde o
duelo judicial floresceu. Eles apareceram e continuaram no sentido de um
abrandamento natural escondido na lei geral do menor esforço, regra superior das
transformações industriais, bem como rituais, fonéticas e gramaticais das
sociedades. A tendência de nossa magistratura contemporânea em dar caráter
correcional, cada vez mais, às questões criminais dissimulou em parte essa
tendência geral. Do duelo judicial, o mais insensato, o mais sangrento e o menos
facilmente vulgarizável de todos os ordálios, passou-se, de ordinário, às provas da
água e do fogo, mais brandas que aquelas do ar e suscetíveis de fraude. Mas,
finalmente, o que prevaleceu foi o juramento, que pode ser considerado como uma
forma “abrandada e simplificada”, – diz muito bem Dareste, – dos julgamentos de
Deus [70]. Ele preexistiu muitas vezes a todos os outros e sempre sobreviveu. Lá
onde não existe nenhum indício do duelo judicial nem de qualquer outro ordálio,
por exemplo entre os muçulmanos, o juramento é a prova capital. Entre os Sutras
[71], os mais antigos códigos bramânicos, não se tratam senão de provas pela água
e pelo fogo, menos ainda do juramento das partes. Mas ensinam-nos que o
juramento das testemunhas foi introduzido com o tempo, e este meio de prova
tendeu a predominar. No Código de Manu, que é posterior aos Sutras e que
“inaugura um novo período da legislação bramânica”, a prova se faz “por
testemunhas e, se necessário, pelo juramento da parte”. Os ossetos do Cáucaso, que
sobreviveram à força de arcaísmos jurídicos, não conheciam, até o presente, senão
as provas materiais e o juramento, mas demonstraram que outrora conheceram o
duelo judicial e outros ordálios, dos quais ainda permanecem indícios. Em todos os
países de raça germânica, o duelo judicial foi o mais antigo procedimento. Foi lá o
berço dessa criação e das transformações que a revestiram sucessivamente até os
absurdos neocavaleirescos do duelo moderno. Desde os tempos de Tácito, a
Germânia praticava um duelo divinatório de onde o duelo judicial não pôde senão
nascer. Conhecia ela já a prova da água fervente? É pouco provável, em razão do
silêncio de Tácito. Mas a Lei Sálica fala daquela assim como do juramento da parte
e dos co-juradores. Na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, sob a influência das
idéias cristãs, o combate judicial foi abolido em torno do ano 1000 e substituído
pelo ferro em brasa. No século XIII, este último ordálio foi suprimido a seu turno,
não sem vivas resistências da população, e “o julgamento de Deus assim eliminado
não deixou outro meio de prova senão o juramento prestado por uma das partes e
confirmado por um certo número de co-juradores”.
É evidente, – diga-se entre parênteses, – que o paralelismo dessa ordem de
sucessão nesses três reinados, assim como entre os ossetos e outros povos, nada
tem de espantoso, e que a mesma causa histórica, – a pregação do Evangelho, –
devera, naturalmente, produzir os mesmos efeitos. Mas continuemos. Na Islândia
também o duelo foi abolido em 1011 sob a influência de idéias cristãs; reinava
então a prova do ferro em brasa e, enfim, o juramento prestado, senão pela parte,
ao menos por uma assembléia de vizinhos muito semelhantes aos co-juradores
merovíngios. Na Irlanda, a abolição do combate judicial remonta a São Patrício no
século V. Foi substituído então pela água fervente, que é tema no Senchus Mor.
Depois, pelo juramento da parte e dos co-juradores. Entre todos os povos eslavos,
tchecos, russos, poloneses, etc., o duelo judicial foi usado primitivamente. Entre os
tchecos era a prova por excelência para o homicídio, processo mortífero que
parecia convir às acusações de assassinato. Mas, em certos casos, – tratavam-se de
pessoas julgadas incapazes de lutar, exceção feita, pouco a pouco, à regra, – devia-
se substituir o juramento. Em casos de ataque noturno a uma habitação, o pretenso
agressor devia justificar-se “por juramento, em apondo dois dedos da mão sobre
um ferro em brasa”. Vê-se aqui uma combinação original desses dois meios de
prova. Mas, em caso de danos à colheita, o acusado devia justificar-se através de
juramento confirmado por testemunhas, e estas testemunhas, – dizem-nos, –
“substituíram a prova da água fervente usada antigamente”. Na Polônia usava-se o
combate. Mas, “o combate, sendo ordenado, se o acusado provasse que não se
encontrava em estado de combater, recorria-se à prova do ferro em brasa”. A prova
pelo juramento era também admitida e única requisitada para os delitos de
importância secundária. Estes, sendo mais numerosos, deveram acostumar-se, com
o tempo, a que a prova habitual e normal fosse o juramento. Também o Estatuto de
Wislica (séculos XIV e XV), que revogou muitos dos antigos costumes, não tratou
mais dos ordálios nem do duelo judicial; entretanto, o juramento desempenhava
ainda um importante papel. Em certos casos, este estatuto exige co-juradores. O
código lituano, como o código polonês no qual se inspira, quer que a prova, em
caso de homicídio ou de agressão e ferimentos, se faça pelo juramento do
queixoso. Na Rússia, no século X, o duelo judicial estava em grande uso; ignora-se
se a prova pelo fogo ou água era conhecida. Mas a prova por excelência era
sempre, – juntamente com a produção de peças para convicção, – o juramento do
queixoso. Na Dalmácia, no século XIII, o juramento passou por demonstrativo no
mais alto grau, juramento do acusador, se havia testemunhas; juramento do
acusado, em caso contrário. Aquele que devia jurar com um certo número de co-
juradores podia, se não os encontrasse em número suficiente, “suprir os que
faltavam, prestando ele mesmo, muitas vezes, o mesmo juramento”. Por exceção, o
duelo judicial, na Hungria, sobreviveu à prova pelo ferro em brasa que, no século
XIII, – dizem-nos, – resolvia nove décimos dos processos. A esse respeito, um
registro criminal do Capítulo Episcopal de Warad, de 1209 a 1235, nos dá curiosos
detalhes desse procedimento, bem menos temível na realidade que na aparência.
Mas se o duelo persistiu longo tempo após essa estranha espécie de demonstração,
foi sob forma atenuada e de nenhum modo mortal. De resto, quando o ferro em
brasa era aceito, os clérigos eram autorizados a substituir esta prova pelo
juramento. Notemos também que, segundo o Código sérvio (século XIV), a rainha
das provas não era o juramento, mas “o julgamento de Deus pela água fervente e
pelo ferro em brasa [72]”.
Essa rápida vista de olhos é suficiente para fazer adivinhar a natureza das
similitudes assinaladas entre povos que, na maior parte, tiveram relações
freqüentes uns com os outros. Acrescentemos que as fórmulas de bênçãos do ferro
e da água empregadas nos ordálios eram as mesmas em toda a cristandade. Este
pequeno fato revela bem a importância do papel que a imitação desempenhou
nessa matéria. É de observar, como contraprova desta explicação, que não há
indícios de ordálios entre japoneses e chineses e que, se se conhece um no
Cambodja ou no Tibet, – país simultaneamente esclarecido pela irradiação
imitativa da Índia, – é a prova do óleo fervente, de origem hindu, provavelmente.
Em Madagascar, entre os hovas [73], como um pouco por toda a África, o ordálio
habitual é a prova por uma beberagem envenenada. Pode-se notar também que, se
o combate judicial e algumas provas supersticiosas eram praticadas na América e
na Austrália, bem como em nosso velho continente, o juramento não o era. O
juramento judicial é desconhecido entre quase todos os selvagens [74].
Ele é conhecido todavia em algumas tribos de costumes pacíficos e
agrícolas. Eis uma diferença que tem seu alcance e que, acrescentada a muitas
outras, restringe a seus verdadeiros limites as similitudes precedentemente postas
em relevo. Pode-se ver que, entre certos povos eslavos, a demanda ou a acusação
era suficientemente justificado pelo juramento do queixoso ou do acusador. Isto é o
oposto do que se passa ordinariamente entre os bárbaros [75]. Num caso como no
outro, é verdade que o juramento do acusador ou aquele do acusado fosse
considerado justificativo, o que prova a força da desonra e o horror sagrado que se
ligava à idéia do perjúrio; mas não se poderia chegar a dizer, seguramente, que a
escolha de um ou de outro dos dois juramentos fosse indiferente. Ter a faculdade
de provar jurando passava por uma vantagem muito apreciável; e eis por que, em
tantas legislações bárbaras, o onus probandi, – encargo presentemente, favor então,
– pesava sobre o réu ou acusado. O encargo da prova, com efeito, após haver
incumbido primeiramente – em geral – ao réu ou acusado, passou a seu adversário
e, em nossos dias, é um axioma jurídico indiscutível que a demanda ou acusação
deve provar. A passagem inversa é constatada? Vê-se, no curso de uma evolução
jurídica qualquer, a obrigação da prova transportada do demandista ao demandado,
do acusador ao acusado? Eu não o creio [76]. Eis aí um exemplo da marcha
irreversível; e eu dou muito mais valor, confesso-o, a esses casos de
irreversibilidade, onde se mostra a obra da lógica social, que às similitudes mais
surpreendentes à primeira vista.
Poder-se-ia ser levado a crer talvez que a regra testis unus, testis nullus,
universalmente seguida na Idade Média européia e até em nossos dias ainda,
conservada em algumas legislações particulares dos Estados Unidos, tenha seu
fundamento na natureza humana, e que sua universalidade relativa se explique
dessa forma? Mas, se eu der crédito a Viollet[77], esta regra que exige duas
testemunhas fundamenta-se, na origem, sobre a passagem do evangelho de São
João: in lege vestra scriptum est quod duorum hominium testimonium verum est.
Através deste texto evangélico, a prescrição hebraica foi difundida nos dois
mundos. Não se deve, provavelmente, procurar noutro lugar senão neste costume
judaico a explicação do costume árabe, que exige também duas testemunhas, com
a seguinte modificação todavia: duas testemunhas homens ou bem um homem e
duas mulheres.
Entre os berberes existiram sempre os co-juradores de nossa Idade Média.
Cinqüenta pessoas juram que o acusado é inocente, e ele é absolvido. É esta uma
imitação tradicional de nossa antiga instituição totalmente semelhante? Talvez
esteja aí a sobrevivência de um fundo comum de tradições. Quanto ao mais, a idéia
que vem mais naturalmente, mais espontaneamente, a um homem do povo acusado
de um delito qualquer é a de apelar, – na falta de qualquer prova testemunhal ou
outra, – a seus vizinhos, a seus parentes, a seus amigos, e rogar-lhes que atestem
solenemente sua boa conduta, sua boa reputação, sua honestidade, sua veracidade.
Esta idéia é tão natural que, em muitos países ao mesmo tempo, sem qualquer
imitação, suscitou um procedimento análogo àquele de nossos co-juradores, dos
quais a quase universalidade é fácil de compreender. Para dizer a verdade, este
meio de prova desapareceu verdadeiramente? Não. Não mais que o duelo judicial
que, a despeito de nossas revoluções democráticas, floresce sempre sob a forma de
embates à espada e pistola regulamentados por um código absurdo, autorizados e
freqüentemente ordenados mesmo pelas autoridades militares. Estas, após haverem
prescrito o embate, condenam ao calabouço o vencido, como que para atestar que o
duelo, o duelo militar ao menos, não deixou de ser um verdadeiro julgamento de
Deus [78]. Eis aí uma evolução, ou antes uma persistência extraordinária; e seria
talvez surpreendente que, como o mais absurdo dos ordálios pôde sobreviver em se
transformando, o mais racional, – o juramento dos co-juradores, – houvesse
perecido completamente. Não é verdade. Depois que este juramento foi suprimido,
o hábito de se fazer escoltar ao Palácio de Justiça por um longo séquito de parentes
e de amigos, dos quais apenas a presença era um atestado mudo e solene da
honorabilidade, persistiu até o século XVIII. Em nossos dias, a tendência a invocar
esses atestados em massa é ainda tão forte que, na maior parte dos negócios
correcionais e diante dos tribunais, os réus ou acusados fazem ler, por seus
advogados, certidões revestidas de inúmeras assinaturas. Bem mais: quando um
homem popular vem a ser objeto de uma acusação grave que atinja profundamente
sua honra, ele chega freqüentemente a apresentar-se diante de algum colégio
eleitoral. E então: Não parece a todo mundo, – com exceção única de alguns
filósofos, – que, se obtiver a maioria, sua eleição seja uma espécie de vox populi
reputada sempre vox dei? Seus eleitores são, portanto, co-juradores; e deve-se
confessar que este procedimento, em se generalizando, nos reconduziria a todos
diretamente aos tempos bárbaros.
Mas por natural que seja no fundo esse meio de prova, ele tem se revestido, a
cada época e em cada país, de modalidades notáveis, e as diferenças – aqui
tampouco – não são menos importantes que as concordâncias. Por exemplo, num
formulário da época merovíngia, lê-se esta fórmula citada por Fustel de Coulanges
[79]: “Ele (um homem que se pretenda nascido livre) prestará juramento em
quarenta dias, em tal igreja, onde, pronunciando os juramentos com doze juradores
que sejam de sua família, ou bem, se não tiver mais parentes, com doze juradores
que sejam homens livres como ele diz ser.” Não é o único caso onde vemos os
juízes preferirem assim o juramento dos parentes àquele dos amigos, e não
admitirem este senão na falta daquele. No presente, vemos o parentesco como uma
causa de suspeição legítima. Mas, naquele tempo, era-se sobretudo impressionado
por esta consideração de que uma família inteira não saberia concordar em violar a
santidade do juramento e condenar-se em bloco aos castigos infernais.
Detenho-me para fazer uma observação naturalmente trazida pelo assunto
precedente e de uma importância mais geral. Se tomarmos à parte, isoladamente,
uma invenção jurídica, por exemplo, o duelo judicial, o juramento judicial, os co-
juradores, a prova do fogo, – eu poderia bem dizer a tortura, o júri, a extradição ou
ainda a adoção, o arrendamento de colheita em parceria, etc., – e a seguirmos
através de seus destinos históricos, nada de mais claro que a idéia da evolução
aplicada a este caso, como àquele de uma raiz verbal, de um mito, de uma máquina
industrial, de um procedimento artístico, às quais se seguem as peregrinações no
espaço e no tempo. Mas, abrangendo ao mesmo tempo muitas invenções jurídicas,
mesmo conexas e aproximadas, – o grupo de diversos ordálios, o grupo de diversas
ações da lei ou, em geral, das formas do processo civil, o grupo dos diversos
sistemas de parentesco ou de sucessão, etc., – nós damos também o nome de
evolução à substituição gradual de umas pelas outras. Nada de mais obscuro que
este novo sentido da palavra, completamente distinto do primeiro. Sua obscuridade
não provém de sua maior complexidade, o que não é sempre verdadeiro, mas do
que se percebe de contraditório, a saber, uma real descontinuidade e uma real
acidentalidade dissimuladas sob o falso ar de uma continuidade necessária, ou de
uma necessidade contínua, inerente à idéia mesma de evolução. Ora, por que esta
diferença? Porque, no primeiro caso, a mudança considerada consiste
principalmente em: 1º) na maior ou menor propagação imitativa, onde uma idéia
jurídica, – uma vez nascida em qualquer parte num cérebro engenhoso, graças a
circunstâncias particulares, – mostrou-se benéfica, quando foi pouco a pouco
difundida entre novas classes e empregada a novos objetos; 2º) na maior ou menor
crença em sua eficácia, que acompanha esta difusão imitativa. Eis aí dois
fenômenos contínuos e que, segundo sejam realizados no sentido de uma
majoração ou de uma diminuição da imitação e da fé, constituem,
verdadeiramente, uma evolução ascendente ou descendente, um desenvolvimento
ou um declínio.
Por exemplo, uma vez nascida, num canto da Gália ou da Germânia, a idéia
de fazer lutarem os litigantes [80], – para saber quem tinha razão, – difundiu-se
primeiramente entre povos vizinhos. Depois, em cada um deles, desceu, de camada
em camada, dos grandes aos pequenos, com uma fé cuja intensidade aumentava
naturalmente, à medida em que se via propagar, em torno de si, esse uso sangrento.
Nós sabemos, pelos considerandos da lei Gombette e pelas fulminações de certos
concílios, de que favor frenético ele desfrutava nos tempos merovíngios. Enfim,
esgotou-se a fé, e seu desuso natural começou. Seguem-se facilmente os graus a
partir de São Luiz. Ora, esse progresso seguido desse declínio, essa onda de fé e
de desejo que cresce e depois decresce, enquanto se estende e depois restringe a
imitação desse exemplo, – eis aí um fenômeno tão geral que se pode julgar
universal e, por conseguinte, necessário. Ao contrário, de resto, há as idéias
jurídicas, – por exemplo, aquelas do testamento e da hipoteca, – cujo sucesso, uma
vez que foram elas introduzidas em algum lugar, mantém-se indefinidamente [81].
Há outras, tais como o divórcio ou a adoção, onde o crédito está sujeito a
flutuações, a retomadas em voga após descréditos momentâneos ou mesmo
seculares. Há também casos excepcionais, onde, longe de marchar a passos iguais,
as variações da fé e aquelas da imitação tomam sentido inverso. O júri, por
exemplo, continuando a difundir-se pelo globo, ganhando velocidade, enquanto a
confiança em suas decisões decresce em toda parte. Além disso, se se procurasse
bem, ver-se-ia que a propagação ou o desuso de uma invenção jurídica, como de
uma palavra, de um rito, de uma forma de arte, de um preceito moral, de um artigo
industrial atém-se a circunstâncias particulares, acidentais em grande parte, que os
favorecem ou contrariam. Quaisquer que sejam, – abstração feita às suas causas, –
as variações da imitação e da fé formam uma seqüência natural, como aquelas de
uma quantidade qualquer, e prestam-se, como elas, à concepção de um
encadeamento racional, formulável em espécies de teoremas. Competirá mais tarde
à Estatística, esta matemática transcendente das sociedades, diligenciar estas
fórmulas. Mas como esperar formular, alguma vez, ou formular com uma nitidez
análoga, a lei (se lei houver) de qualquer outro fenômeno, de um fenômeno que
consiste numa troca de qualidades substituídas umas às outras, e não de uma
mesma quantidade em graus variáveis? Quando a fórmula do pretor substituiu, em
Roma, a actio sacramenti ou qualquer outra ação legal; quando, entre nós, a tortura
no século XIII substituiu-se ao duelo judicial, ou bem, há cem anos, o júri
substituiu a tortura: Estão aí fatos comparáveis àquele que vem a ser estudado?
Seria bom mostrar que esta substituição foi gradual, que o começo de uma nova
instituição liga-se ao fim da precedente por um liame estreito, como se passa
gradualmente de uma cor à outra do arco-íris. Não é menos verdade que houve,
num certo momento e num certo lugar, a implantação de um germe novo, mais ou
menos fortuito e imprevisto, impossível mesmo de prever, ainda que justificável ao
final, do mesmo modo que nada nos faria predizer o amarelo após o azul ou o
vermelho após o amarelo, se nós não conhecêssemos as cores.
Tudo isso se diz para fazer perceber que há dois sentidos profundamente
distintos da palavra evolução aplicada às sociedades, e que o erro ou a arte
inconsciente e insidiosa dos evolucionistas é a de os haver confundido: 1.º)
evolução, num sentido muito nítido, quer dizer propagação imitativa, mais ou
menos ampla, de um exemplo fornecido por um primeiro iniciador; 2.º) evolução
quer dizer, num sentido muito confuso, metamorfose à Proteu [82], série de
iniciativas diferentes mais ou menos mal encadeadas. Este equívoco leva a outro
porque, quando nos falam de uma evolução uniforme em todas as sociedades, a
uniformidade da qual se trata estende-se, por sua vez: 1.º) àquela que tem por causa
a imitação de um mesmo modelo, a transmissão de uma mesma tradição; 2.º)
àquela que tem por causa a identidade do organismo humano e do espírito humano
em certa medida, de onde resulta a coincidência de certas invenções maiores
suscitadas, independentemente umas das outras, pelas mesmas necessidades, assim
como sua produção sucessiva numa ordem freqüentemente quase igual, em virtude
das leis da lógica. Limitemo-nos, no momento, a esta observação e, voltando às
formas comparadas do processo, convenhamos, voluntariamente, que, em muitos
procedimentos primitivos, mesmo naqueles de Atenas, como na Actio sacramenti
dos velhos quirites [83], reencontra-se o depósito obrigatório de uma soma em
dinheiro pelos litigantes, previamente a qualquer outra formalidade, para assegurar
o pagamento das custas judiciais. É deplorável ter de constatar que, desde sua mais
remota origem, a justiça aparece em toda parte como uma coisa essencialmente
custosa. E eu estou ao ponto de acrescentar que muitas das numerosas nulidades
imaginadas pelos diversos códigos de processo civil não existem senão para
relembrar as interdições do tabu polinésio; mas eu não me sinto com coragem de
gracejar sobre um tão lamentável assunto [84]. Sumner-Maine observou analogias
flagrantes entre as formas de pignoris capio, usada entre os romanos primitivos, e
aquelas de penhorar o gado, tão importantes no velho Direito Inglês [85]. Hoje,
dizemos ainda mettre na fourrière [86]; mas esta expressão não é mais, entre nós,
que uma sobrevivência, porque a fourrière não mais existe. Fourrière era um
pedaço de terra cercado de tapumes e, extraordinariamente, “situado a céu aberto”,
cuja destinação especial, – tanto era difundido o hábito de penhoras senhoriais, –
era a de receber e de guardar os animais penhorados pelos credores não satisfeitos.
Havia uma em cada cidade.
É provável, convir-se-á sem dificuldade, que a analogia sinalada por
Sumner-Maine ligue-se a esse fundo comum de tradições e de instituições que se
sabe haver sido a herança de todos os povos indo-europeus [87]. Falando de outro
modo, ela tem por causa a imitação de pai para filho. Uma outra analogia indicada
pelo mesmo autor explica-se do mesmo modo, a saber, aquela da vigília dharna
usada entre os hindus, com o jejum contra alguém praticado na Irlanda. Em ambos
os casos, vê-se o credor, para constranger seu devedor a pagar a dívida, plantar-se
indefinidamente diante de sua porta e jejuar até que aquele execute o pagamento
[88]. Efetivamente, o pagamento esperado não tardava nada, tanto a opinião
pública desonrava aquele que deixasse seu credor cair doente por fraqueza ou
morrer de fome diante de sua porta. Farei observar que este procedimento original
de constranger atesta sentimentos compassivos em alto grau entre os primitivos, e
não se pode, de nenhum modo, concordar com a insensibilidade profunda que se
lhe costuma atribuir. Ainda um outro indício onde se observa seu espírito de
fraternidade cordial: entre um grande número de povos bárbaros, sobretudo no
Norte, a refeição comum é a grande cerimônia jurídica, o procedimento por
excelência. Há o banquete de casamento, o banquete de adoção (Noruega), o
banquete de reconciliação, que lembra nosso processo de reabilitação, o banquete
de homenagem dado pelos fazendeiros a seu chefe (Direito Céltico). Mesmo na
Índia atual, de acordo com observações diretas feitas por Lyall, o direito e o hábito
de sentar-se numa mesma mesa, do mesmo modo que o direito e o hábito de casar-
se em conjunto, são o sinal exterior mediante o qual se reconhecem as pessoas que
fazem parte de uma mesma casta. Um jantar era então o equivalente de um
diploma ou de um certificado. Tudo isso, parece-me, testemunha costumes
fraternos e um liame social que pode estreitar-se bem mais. Até o primitivo
procedimento dos romanos, tão duro de aspecto, é suscetível de interpretação
análoga. Observam-se analogias de forma e de espírito entre esse antigo cerimonial
das ações da lei e o mais antigo procedimento dos francos. Um e outro são obra da
parte privada, sem intervenção do poder público. Mas isto não quer dizer, de modo
algum, que um sentimento de ódio ou de vingança os inspire. “Esse procedimento,
diz Glasson, nada tem em comum com o exercício brutal do direito de vingança;
ele é, ao contrário, composto por uma série de atos solenes e sacramentais. A parte
lesada não obtinha reparação pela violência, mas afirmando seu direito através de
atos solenes e fórmulas consagradas.” Isso revela, entre os primitivos, uma
enérgica e justa concepção do Direito.
Perguntemo-nos, em suma, se está provado: 1.º) que o processo e a
organização judiciária tiveram, como ponto de partida semelhante, um mesmo
estado embrionário; ou bem, 2.º) que atravessaram, em seu desenvolvimento,
partindo talvez de estados desiguais, uma ordem semelhante de fases sucessivas;
3.º) que tenderam em toda parte, mesmo por caminhos diferentes, a convergir
espontaneamente na direção de um mesmo estado de perfeição ideal.
Em primeiro lugar: Onde se vê o indício dessa semelhança inicial que se
admite tão facilmente? Quais razões se têm para crer nisso, a não ser essa
simplificação ilusória, essa destruição aparente dos contornos e das cores que a
distância, no tempo e no espaço, opera, e que é a miragem dos historiadores
filósofos? Quanto mais eles remontam ao passado, mais eles vêem também recuar
a cena da vida primitiva, una e uniforme, que brilha a seus olhos num longínquo
engano. Daí o erro geral de situar o uno, o homogêneo, o in-diferente no início e
no fundo das coisas, naquilo que se vê pior, como se, em toda a parte onde se dá ao
trabalho de aprofundar a homogeneidade pretendida, não se vissem pulular as
diferenças características. Se olharmos para as tribos selvagens ou bárbaras ainda
existentes, observar-se-á que, entre algumas, como os cabilas, o poder judicial é
exercido pela assembléia da cidade inteira; que, entre outras, ele se concentra no
chefe, patriarca ou déspota; que, entre outras ainda, ele se divide entre o chefe e a
assembléia; descobrir-se-ia, talvez, que chamam um juiz estrangeiro, semelhante
ao podestat das cidades italianas, para julgar mais imparcialmente suas diferenças.
Observar-se-á também que, se quase todas, – não todas, – praticam certos ordálios
muito diferentes aliás uns dos outros, fazem-no de modo muito desigual; que
muitas não conhecem o juramento, nem mesmo o duelo judicial, meio de prova,
todavia, naturalmente mostrado entre povos que se nos apresentam como
universalmente inclinados à guerra perpétua.
Desconfiemos de generalizações precipitadas. Sumner-Maine, ele mesmo, é
muito apressado em generalizar aqui. Porque as velhas “ações da lei” dos romanos,
assim como muitos dos antigos procedimentos observados por ele na Índia,
consistem em simulacros de combates para disputa de um objeto, ele acreditou que
esta “comédia jurídica” deveria ser o primeiro estado universal do processo. “Toda
essa mímica, – diz Letourneau, – tem como objetivo evidente evitar uma disputa
violenta, limitando-se a recordá-la. Do mesmo modo, as formalidades da penhora
inspiram-se também no ataque primitivo, substituindo-o.” Muito Bem. Este
simbolismo do processo, como aquele da pena, – porque esta “mímica” e o talião
podem se esclarecer mutuamente, – é freqüente. Por uma espécie de simetria
natural dos contrários, ocorre freqüentemente que um fato social reflita outro e,
quase sempre, àquele ao qual se opõe e se substitui. O que há de mais contrário à
reconciliação que a vingança? Todavia, a cerimônia da reconciliação entre os
ciganos no século XIV, tal como os usos morávios nos descrevem [89] é um
simulacro da vingança. Que há de mais contrário à guerra que o jogo? Entretanto
sabe-se que os jogos de cartas e de xadrez, sem falar nos outros, são combates
simulados. Mas universalizar esse caráter que, sem dúvida, deve ser
exclusivamente próprio aos povos imaginativos, é iludir-se à maneira dos filólogos
que querem explicar a origem de todas as línguas pela onomatopéia, mímica vocal.
Aparentemente, esta explicação demasiado simplista, rejeitada, de resto, pela maior
parte dos sábios, não é aplicável senão aos idiomas criados por indivíduos
excepcionais, pertencentes ao que Ribot [90] e outros psicólogos chamam o tipo
auditivo [91]. Haveria mais de verossimilhança, seguramente, em colocar no
linchamento o início universal do processo criminal que deveu preceder ao
processo civil. Nós reencontramos este procedimento sumário entre muitos povos,
notadamente, em Israel, onde, ao lado dos julgamentos reais ou levíticos, havia os
julgamentos de zelo, execução espontânea de um criminoso por uma multidão
indignada; porque a indignação é coisa muito antiga e a moral também, por
conseqüência. Mas ainda seria abusivo pretender, após isso, que todos os povos
primitivos linchassem. Concluímos que a maior diversidade deve ter reinado entre
os procedimentos primitivos, como entre as línguas primitivas.
Em segundo lugar, não percebo uma grande similitude, não mais, na
sucessão de fases atravessadas pelo desenvolvimento dos diversos procedimentos e
das diversas organizações judiciárias, a não ser aquela que é a conseqüência direta
ou indireta da imitação. Direta, quando as instituições jurídicas de um povo
estrangeiro foram copiadas; indireta quando, sem nenhuma cópia jurídica, mas por
conta da difusão geral de exemplos quaisquer e de sua mútua troca, as tribos
tornam-se cidades, as cidades, reinos, impérios, grandes nações mais e mais
civilizadas, ou seja, complexas, e que esse crescimento gradual somado a essa
complexidade gradual constrangem o processo e a organização judiciária a se
adaptarem. Numa certa medida não muito precisa, as formas sucessivas desta
adaptação apresentaram alguma analogia. É certo que, quando a cidade cresce,
uma justiça real deve se substituir aos tribunais de família para diversas naturezas
de delitos ou de processos. Do mesmo modo, o crescimento gradual do grupo
social explica por que, em quase todas as legislações, era interdito, primitivamente,
litigar por procuração, e a apresentação à justiça devia ser pessoal, enquanto, no
final, não apenas tornou-se permitido tomar um procurador, como ainda
obrigatório. É assim que, nos pequenos Estados democráticos, as leis deviam ser
votadas diretamente pelo povo reunido em assembléia e, nos grandes Estados, não
o podiam ser senão por representantes. É certo também que, quando as invenções
relativas à domesticação de animais primeiramente, de plantas a seguir, como
objetos de difusão e permuta, fizeram a tribo passar da vida caçadora à vida
pastoral primeiro; depois, à vida agrícola, que permitiu a fixação ao solo e uma
maior densidade populacional, o processo enriqueceu-se em toda parte e tornou-se
mais complexo, a função judiciária regularizou-se, dividiu-se, especializou-se. Mas
não vejo como esta semelhança pudesse ir mais longe, a não ser através de
empréstimos diretos, sem os quais dois povos permaneceriam sempre estranhos um
ao outro.
De acordo com Letourneau, “se, em fazendo abstração do período imperial
em Roma, nós compararmos a evolução da justiça na cidade de Rômulo, naquela
de Sólon [92], veremos que em ambos os países a organização do poder judiciário
passou por fases quase idênticas. Roma, como a Grécia, começou pela justiça
familiar; depois, ela foi confiada aos cuidados do juiz, dos reis e das cúrias
práticas. A seguir, a reforma de Servius Tullius [93] copiou aquela de Sólon e
transportou aos comícios centuriais a maior parte das atribuições primeiramente
reservadas às cúrias. Uma vez lançado, o movimento foi mais longe ainda, e os
comícios das tribos foram também entregues à justiça. Enfim, chegou-se ao
sistema das Questions, ou seja, comissões de jurados escolhidos por sorteio, como
o eram os heliastas[94] de Atenas. De outra parte, para completar a semelhança, o
senado romano julgava um pouco como o Areópago, e as prerrogativas judiciais do
cônsules haviam começado a parecer-se muito àquelas dos arcontes [95]”. À
primeira vista, estas analogias são especiais; de perto, reduzem-se àquilo que se
deveria esperar de acordo com as leis da imitação e da lógica, das quais já falei
mais acima. Primeiramente, deveu-se a Letourneau “fazer abstração do período
imperial”, como se esta fase final, a mais longa de todas e prolongada até nós
através de toda a Idade Média, não se ligasse intimamente às precedentes: não
houve jamais solução da continuidade judiciária em Roma. Depois, sem entrar nos
detalhes das objeções: Encontrou-se em Atenas o equivalente daquilo que dominou
a justiça romana, a jurisdição do pretor? Em Atenas, os heliastas; em Roma, o
pretor. Eis o que deve saltar aos olhos. De um lado, uma sorte de júri enorme,
composto de 500, de 1.000, de 1.500 jurados reunidos em praça pública, e onde
todos os defeitos próprios aos nossos júris deveriam produzir-se ao décuplo, ao
cêntuplo; de outro lado, um magistrado único ocupando o cargo em seu pretório.
De uma parte, assim, uma multidão julgava de acordo com suas impressões
momentâneas, sem nenhum cuidado das formas nem do fundo do Direito, e diante
da qual, como se vê bem nos discursos civis de Demóstenes e de outros oradores
atenienses, deviam-se advogar as causas mais simples, mesmo de uma parede-
meia, por razões de sentimento e de conveniência política. D’outra parte, um
patrício transformava em ponto de honra o respeito a seu édito, respeito, mesmo
com um exagero meticuloso, às formas antigas de dizer o Direito. Adivinham-se as
divergências que uma tal diferença de organização judiciária devia imprimir à
evolução de ambos os procedimentos e também de ambas as jurisprudências. É à
Heliéia, – malgrado a admiração expressa por Letourneau a este tribunal popular,
dito “mais acessível ao progresso”, – que se imputa comumente a imperfeição
deplorável em que permaneceu o Direito Ateniense, sua inferioridade flagrante
relativamente a outras ciências e artes. O que há de menos suscetível de perfeição
no mundo é o júri. Outra particularidade da justiça romana: por longe que se
remonte às suas origens, vêem-se sempre delitos e crimes perseguidos de ofício.
Sem dúvida, o Senado relembra um pouco, muito pouco, o Areópago, e as
Questões têm em comum com a Heliéia o serem tribunais eleitos, mas eleitos de
uma outra feição, compostos de um muito menor número de membros e limitados
em seus poderes especiais por uma fórmula onde o pretor os encerra num círculo
de Popilius [96]. Onde está a analogia da fórmula romana, tão original, tão
característica, com o procedimento ateniense? Quanto ao mais, comparai a
evolução do processo e da organização judiciária mesmo entre povos muito
vizinhos, Atenas e Esparta, França e Inglaterra, e vós vereis pulularem as mais
fortes diferenças.
Enquanto em Atenas e em Roma a justiça real precede a justiça popular,
relativamente democrática, o inverso tinha lugar na Judéia. Entre os hebreus, após
uma época conjetural, onde reinava a vingança na total ausência de toda justiça
organizada, a primeira fase conhecida foi aquela da assembléia da tribo, uma
espécie de djemmad cabila; depois, a função judiciária, monopolizada pelos levitas,
dividiu-se entre eles, e cresceu então a importância do juiz e do escriba, onde se
percebe a imitação do Egito de quem Israel tanto importou. Enfim vieram os reis.
Salomão é o grande justiceiro lendário, e Josafat organiza o Sinédrio, esta alta
corte de setenta membros que julgavam de acordo com um processo tão sábio e tão
complicado! Guardai-vos, aliás, malgrado sua sabedoria proverbial, de compará-lo
ao Areópago, porque do ponto de vista evolucionista, é precisamente o inverso,
pois este último tribunal, em lugar de ser criação monárquica e relativamente
recente, remonta, ao contrário, aos tempos mais fabulosos da Grécia e, dizem-nos,
“procede, sem dúvida, do Conselho de Anciãos situado da ágora à época
homérica”.
Tudo o que se pode dizer de mais geral a respeito das transformações
sucessivas do processo é que, contrariamente à opinião vulgar, ele se torna cada
vez mais formalista à medida em que avança, ao menos até uma certa época, ou
seja, cada vez mais preciso, regular e minucioso; e veja-se bem por quê. É pela
mesma razão pela qual a ortografia das línguas torna-se de uma meticulosidade
sempre crescente, a despeito desses reformadores atuais, à medida em que
progridem as literaturas. A propósito da Germânia, Letourneau reconhece este fato,
mas parece julgá-lo excepcional e deplora-o. “Em se regularizando, o processo
germânico (amorfo no início) tornou-se tão completamente desarrazoado quanto
àquele de Roma ou da Irlanda. Adotaram-se fórmulas, expressões obrigatórias das
quais a omissão levava à perda da causa.”
Se não há um ponto de partida comum, nem uma via comum que se impôs às
justiças dos diversos povos, dir-nos-ão que elas tendem a se direcionar a um
mesmo ponto de chegada? Até aqui este pólo hipotético não passou sob meus
olhos. E vejo bem, à medida em que se estende o campo do mundo civilizado, um
pequeno número de procedimentos substituir-se a muitos outros que desaparecem
diante deles; e é de crer que esta eliminação progressiva poderá conduzir
finalmente ao reino de um processo único, a saber, aquele do processo, tanto
quanto o da língua própria à nação mais invasora, mais estrondosa, mais
prestigiosa. É certo, de acordo com as leis da imitação que, precisamente porque
existe na origem uma diversidade de coisas originais, aspirando cada uma a fazer-
se imitar universalmente, a unidade deva realizar-se um dia, para triunfo de uma
delas. É assim que, no Império Romano, a unidade jurídica se fez pela
superposição do Direito da cidade de Roma ao Direito Etrusco, ao Direito Céltico,
ao Direito Helênico, etc. Mas uma coisa é esta uniformidade final, efeito
necessário da concorrência de contágios imitativos, espontâneos ou forçados; outra
coisa é a uniformidade que teria por causa uma necessidade de gênero muito
diverso, em virtude da qual cada Direito, em se desenvolvendo isoladamente,
alcançaria um estado muito aproximado daquele para onde viriam a convergir cada
um dos outros, como por uma espécie de atração superior, qualquer que fosse o
afastamento de seu ponto de origem e de suas distintas peregrinações.
Ora, quanto a esse último ponto de vista, concordo de boa vontade que certos
usos ou certas regras devam prevalecer ao longo do tempo, um pouco em toda
parte, porque eles respondem melhor às necessidades da natureza humana naquilo
que elas têm de idêntico e de permanente. Reencontram-se na justiça chinesa, diz
Letourneau, estes “grandes princípios dos quais se orgulha a Europa moderna: as
circunstâncias atenuantes, a não retroatividade, o direito de apelo, o respeito à
liberdade individual, a confusão das penas, enfim o direito de graça deixado ao
soberano.” Este encontro da China e da Europa sob diversos pontos não pode,
aliás, explicar-se pela imitação, já que as instituições de uma e de outra evoluíram
sem se influenciar reciprocamente de maneira apreciável. Mas, expressa nesses
termos gerais e vagos, a analogia sinalada é bem mais completa na aparência do
que é na realidade. Nada se parece menos, de fato, ao processo chinês que o nosso.
Quanto ao mais: Pode-se afirmar que os “grandes princípios” em questão estão
destinados a ser, necessária e universalmente, descobertos pelo progresso jurídico?
Se julgarmos de acordo com o crescimento das idéias socialistas, o respeito à
liberdade individual não parece dever ser o caráter dominante do Direito futuro. As
circunstâncias atenuantes são, aos olhos dos novos criminalistas, uma transação
eclética e passageira entre o antigo dogma da responsabilidade absoluta fundada
sobre o livre arbítrio e a idéia da imputabilidade fundada sobre a defesa social. O
direito de graça é rejeitado por eles como uma sobrevivência do absolutismo
monárquico, da soberania judiciária encarnada no rei. O próprio apelo é de
utilidade contestada. Desconhecido na origem, introduziu-se como uma
necessidade de circunstância, quando a justiça real, sobrepondo-se às justiças
familiares ou locais, mas não ousando ainda suprimi-las, deixou-as funcionar,
reservando-se o direito de julgar em última instância. Eis aí ainda um expediente
eclético. Se um tribunal é presumido superior a outro em sabedoria, por que não
encarregá-lo, desde o início, do conhecimento das causas? Há, judicialmente, dois
graus de jurisdição, como há, politicamente, duas câmaras, dualidade da qual a
utilidade desapareceria no dia em que o recrutamento de uma câmara única fosse
submetido a garantias suficientes, onde, por exemplo, não se pudessem fabricar
leis senão com a condição de se apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais
de capacidade que se exigem dos juízes encarregados apenas de aplicá-las.
Como seria descer até aos detalhes práticos? Será que o processo ideal
implica, necessariamente, na existência de advogados, de defensores, de
meirinhos? De escrivães, convenho, após a invenção da escrita. Entre os astecas
mesmo, na falta da escrita, havia uma sorte de pintura cursiva. Tínhamos um
escrivão pictográfico nos julgamentos. Mas o antigo Egito, ainda que sua evolução
jurídica tenha sido a mais longa, a mais impulsionada na direção de um sentido
próprio entre todas aquelas do universo, era sem advocacia, sem advogados; os
debates eram escritos. Na China, sem advogados, como no Japão. No Prata, – e
todavia sabe-se o quanto os povos da América do Sul se vangloriam de ser amigos
do progresso, – não há nem defensores nem meirinhos. Não vou querer afirmar que
este seja o último termo da perfeição; mas eu acredito ter o direito de concluir que
ninguém saberia descrever o processo do amanhã, – ele será o que for.

Capítulo Terceiro
Regime de Pessoas
A família primitiva. Preconceitos científicos a esse
respeito. Promiscuidade, matriarcado, patriarcado: quid?
Couvade. Fases curiosas dos direitos da mulher no curso
da evolução jurídica no Egito. Gerontocracia. Diversidade
inicial das constituições familiares. Maioridade, cada vez
menos precoce. Transformações sucessivas da idéia de
nobreza. Lei superior: alargamento contínuo do círculo
social, do círculo jurídico.
Após haver examinado o Direito Criminal e o processo, passemos a esta
extensa parte do Direito Civil que rege as relações entre as pessoas. Aqui
novamente veremos desaparecer a idéia de uma evolução uniforme. Acumulam-se
volumes sobre volumes para resolver a questão de saber qual era a constituição da
família primitiva, e não se pergunta se havia razões suficientes para olhar esta
constituição como sendo a mesma em toda parte. Não existe a menor. Os
resultados contraditórios fornecidos por pesquisas igualmente conscienciosas são a
prova. Temos raramente o prazer de encontrar de acordo Morgan com Mac
Lennan, Bachofen com Starcke, Herbert Spencer com antecessores e com Sumner-
Maine. Muitos escritores têm todavia por demonstradas as hipóteses seguintes,
tornadas lugares comuns científicos: na origem, promiscuidade universal, depois
matriarcado, mais tarde patriarcado, etc. D’Aguanno acredita provar que a família
primitiva não poderia ser monogâmica, ainda que a monogamia exista já entre os
animais superiores; porque, se ela apareceu repentinamente, – e ele o crê, – a
formação da primeira horda devera, forçosamente, tê-la dissolvido. “É necessário,
diz ele, admitir que a sociedade primitiva, por certo tempo, destruiu a família, até
que, após um processus muitas vezes secular, aquela reapareceu em seu seio.” Eis
aí muito de imaginação. Concebe-se que seres humanos, após terem uma fêmea só
para si, teriam consentido na promiscuidade da horda? Dizem-me que a vida de
caverna não permitiria em nada aos trogloditas fazerem uma união à parte. Por
quê? Cada família não poderia ter uma gruta só para si? É mais fácil representar
uma horda promíscua aglomerada numa única gruta? O erro é acreditar que a horda
fosse o único ou o principal início da humanidade, e que exista “entre a família e a
sociedade um antagonismo constante nas fases rudimentares” da segunda. Não é
mais natural supor que o desenvolvimento da família, lá onde ela é mais
fortemente organizada, ou seja, patriarcal [97], – porque, de resto, os ensaios mais
diferentes de organização doméstica apareceram em grande quantidade e
coexistiram longo tempo, – produziu seu fracionamento em colônias múltiplas, e
que a tribo nasceu assim, simples federação de famílias? E como a família fosse
obrigada a expulsar freqüentemente os elementos indisciplinados: Não é de supor
que estes detritos de diversas famílias se reunissem talvez, congregados aqui e ali
em hordas? E estas hordas, inimigas naturais das famílias regulares, não deveram
contudo formar-se à maneira de um tipo de família qualquer, pois que não havia
outro modelo a copiar?
Segundo d’Aguanno, que acredita resumir o último estado da arqueologia
pré-histórica, os homens que, na idade da pedra lascada refugiavam-se em grutas,
“andavam nus, sem propriedade e sem família, sem chefes fixos e sem divisão de
trabalho” (pág. 115). Tantas palavras, tantas suposições desmentidas pelos dados
arqueológicos. Os bastões de comando esculpidos que se encontraram nas grutas e
que indicam mesmo, segundo Lartet [98], uma hierarquia marcada pelo número de
suas covas [99], provam que os habitantes das grutas tinham chefes regulares e
estáveis. Para chefes sem estabilidade seria poupado esse luxo relativo de
ornamentação e de insígnias. Eles ignoravam tão pouco a divisão do trabalho que
seus utensílios de pedra tinham destinações especiais e diversas, e certos
arqueólogos estimam que, entre eles, as relações de troca eram muito
desenvolvidas. A descoberta de instrumentos de pedra lascada fabricados com
rochas exóticas, estranhas a todas as rochas do país onde são descobertos, parece
revelar o estabelecimento de um certo comércio internacional a grandes distâncias,
anterior mesmo à idade da pedra polida. Esses trogloditas não andavam
completamente nus, se os analisarmos de acordo com seus raspadores que deviam
servir, pensa-se, para raspar peles de animais e, de acordo com suas belas agulhas
em osso, apontadas e furadas, sem dúvida, para costurar essas peles. Presume-se
facilmente, de acordo com isso, que eles não eram nem sem propriedade nem sem
família...
Não há dificuldade em concordar que a coexistência de muitas aldeias
lacustres a pouca distância umas das outras permite supor relações pacíficas ou
amigáveis entre eles, e o mútuo respeito a seus direitos. Mas que razão existe para
se pensar que “o sentimento do justo e do injusto” nasceu entre os habitantes dos
lagos? Em épocas anteriores, não vemos também grutas habitadas, muito vizinhas
umas das outras? Esta reunião de grutas presumidas contemporâneas é fato
habitual em todos os vales onde se as descobre, notadamente, nos vales de Vézère
e da Dordonha. Na hipótese em que as pequenas comunidades que os habitavam
estivessem continuamente em guerra entre elas, em que não reconhecessem nem
respeitassem qualquer direito, onde nenhum esboço de direito internacional
existisse desde então: Esta aproximação teria sido possível? Não, segundo
d’Aguanno, ele mesmo. É necessário, eu creio, representar esses grupos de
cavernas como federações pacíficas unidas por trocas comerciais. Se está aí um
início da humanidade, – mas não creio que este seja senão um de seus numerosos
inícios, – não vejo nenhum motivo para que nos descrevam nossos primeiros
ancestrais como tigres bebedores de sangue. Eram tranqüilos caçadores, pescadores
de ocasião, passando o tempo, – quando estava bom, – a cercar sua presa e, nos
dias de chuva, a curtir e raspar as peles dos animais mortos por eles. [100]
Mas examinemos um pouco mais de perto a série pretendida: promiscuidade,
matriarcado, patriarcado. Nada mais imaginário do que esta ordem. Dessa
promiscuidade universal, batizada hetairismo, com que Bachofen [101] sonhou,
onde está a prova, não digo de sua universalidade, mas de sua realidade mesmo nos
tempos mais antigos? O exemplo mais nítido que se pode citar desse comunismo
feminino é aquele da tribo hindu dos naires [102]; mas seu estado social está longe
de ser primitivo. Eles formam uma casta nobre. Starcke [103] está autorizado a
dizer que, longe de ser um ponto de partida, esta prática é, entre eles, o último
termo de uma longa evolução. Uma de suas cerimônias nupciais, – porque, coisa
notável, eles têm comemorações de vinte e quatro horas para seus casamentos, –
prova que, numa época anterior, o casamento fiel e durável lhes era conhecido. A
prostituição sagrada, que era obrigatória na Babilônia para todas as mulheres uma
vez na vida, pode ser interpretada como o vestígio de uma época em que os
babilônios disponibilizavam tal prostituição a todos os babilônios? Mas era aos
estrangeiros, não aos indígenas que elas deviam se prostituir, e como era no
Templo de Afrodite que esse sacrifício de suas pessoas devia ter lugar, parece
natural explicar esta forma de culto pelo desejo de ser agradável à impudica deusa,
em a celebrando através de um rito apropriado ao seu gosto, assim como
celebravam o deus da guerra através de jogos guerreiros. É verdade que se pode
perguntar como esta divinização do impudor pudera introduzir-se num país onde
reinava anteriormente a castidade das mulheres. Mas está aí uma das questões mais
complexas. Uma palavra apenas. Não esqueçamos um fenômeno histórico muito
freqüentemente negligenciado: esses frenesis intermitentes de imitação de povo a
povo, não motivados, sem os quais não se compreende a propagação de nenhum
culto. Não vimos propagar-se, nos meios há pouco os mais cultos da Idade Média,
o favor a uma inovação religiosa, – albigense [104], por exemplo, – com as
práticas de um sensualismo dos mais licenciosos?
Muito se fala da couvade, este curioso costume de, em alguns povos,
sujeitar-se o pai, após o nascimento da criança, a colocar-se no leito, fazer-se
sangrar, purgar, tratar-se como doente e sofrer como tal os efeitos de uma
medicação das mais dolorosas. Vê-se aí uma simulação da maternidade e uma
sobrevivência ativa do matriarcado. O pai fingindo ser mãe para ser investido da
autoridade doméstica. Mas, segundo Starcke e diversos sábios, se, como convém,
aproximarmos este uso de muitos outros bem mais difundidos, e dos quais o
sentido é claro, reconhece-se que a couvade não foi instituída nem para o pai, nem
para a mãe; ela o foi no interesse da criança, à qual se acreditava assegurar a
transmissão da bravura paterna, dando ao pai ocasião de a ostentar, porque “ele
deve ter uma grande coragem para submeter-se a prescrições tão numerosas e tão
duras”. Desejou-se ver também, mas erroneamente, na filiação uterina, no hábito
de designar a criança como filho de sua mãe e não como filho de seu pai, um
vestígio do matriarcado desaparecido. Numa sociedade patriarcal, a poligamia, –
que é precisamente o contrário do matriarcado, – deve necessariamente fazer
predominar o hábito em questão, para permitir distinguir as crianças nascidas da
mesma mãe.
Se fosse verdade que a mãe, numa fase muito antiga das sociedades,
houvesse possuído, geralmente e antes do pai, o cetro da família, que prova mais
brilhante poderia ser dada da bondade original do homem e da intensidade dos
sentimentos afetuosos entre nossos ancestrais? Porque, com toda certeza, a
aceitação dócil da autoridade de uma mulher, – este ser fraco, – por seu marido ou
por seus maridos, por seus irmãos, por seus filhos, pelos guerreiros que lhe são
muito superiores em bravura, em força, em inteligência mesmo, não é suscetível de
uma outra explicação, senão o grande desenvolvimento do amor ou da piedade
filial. Pode-se dizer que, em toda parte, nas populações incultas, é atribuído à
mulher, mais freqüentemente que ao homem, um poder oculto e supersticioso
nascido do medo, não do amor. Respondo que esse prestígio de feiticeira, sempre
excepcional, estaria longe de ser suficiente para motivar sua preponderância social
e não é explicável, ele mesmo, senão por uma grande sensibilidade ao seu encanto
próprio, à sua magia sexual. Todavia, por uma contradição singular, os teóricos do
matriarcado contam-se entre os sábios que fazem dos costumes primitivos um
quadro mais tirante ao negro. Mas, de fato, esse matriarcado tão famoso existiu?
Jamais, diz Starcke, as mulheres tiveram mais direitos ou outros direitos que os
homens. Apenas em certas tribos africanas, os bechuanos [105], por exemplo, e a
maioria das populações bantos [106], a mãe de família assiste ao conselho, o
marido é freqüentemente guiado por sua mulher, tudo como um europeu, e as
crianças adoram sua mãe até o fim de seus dias, o que não é muito excepcional,
mesmo na Europa. Em outros termos, a mulher participa dos direitos do homem;
em certas tribos, ela pode mesmo ser chefe, como a Rainha da Inglaterra, ao
mesmo título que o homem, em nenhum lugar a título exclusivo. Se, todavia,
encontramos aqui e acolá uma pequena população como aquela dos kocchs da
Ásia, onde os homens efeminados são respeitosamente submetidos às vontades de
suas mulheres e de suas sogras, que se arrogam o monopólio da bravura e do
trabalho, será que, por acaso, se quer fazer desta inversão sexual, acidental e
mórbida como tantas outras inversões sexuais, tão curiosamente estudas em nossos
dias, a regra geral da humanidade selvagem? Acrescento que as tribos atualmente
situadas no mais baixo grau da escala social, os bosquímanos [107] e os hotentotes
entre outros, ignoram completamente o matriarcado [108].
D’Aguanno, todavia, descreve-nos, como se houvesse visto, a avó matriarcal
no exercício de suas funções judiciais e conta-nos de que maneira ela transmitiu ao
patriarcado o trono familiar. Estamos, é verdade, um pouco surpreendidos por
aprender que esta substituição maravilhosa do matriarcado pelo patriarcado não
parece haver “operado uma mudança notável no organismo jurídico”. Resta saber o
que poderia bem ser o organismo jurídico nesses tempos imaginários. De acordo
com autores menos imaginativos, o matriarcado, na medida em que existiu
acidentalmente, não apareceu nem podia aparecer senão após o regime patriarcal.
É que esse progresso jurídico, tal como nos é dado observar no curso da
História verdadeira, nos apresenta, ordinariamente, não esse destronamento e essa
escravização da mulher consecutiva ao seu pretenso absolutismo; é, ao contrário,
sua emancipação gradual que a fez passar de um regime de escravidão para uma
era de liberdade e de autoridade relativa. Novamente, devemo-nos guardar de
generalizar este último fato. Com efeito, não é mesmo verdadeiro dizer, – ainda
que se o diga e que se o torne a dizer tão freqüentemente, – que o progresso do
direito se opera sempre no sentido da mais completa libertação da mulher,
gradualmente igualada ao marido. A história do Direito Egípcio, a partir dos
ptolomeus, é suficiente para contradizer essa asserção muito geral. Vê-se, então,
sob a influência do Direito Grego, – que subordinava tão absolutamente a mulher
ao homem, – o Direito Egípcio cessar de conceder à mulher, como havia feito
desde as mais antigas épocas, um papel independente, privilegiado às vezes, no
casamento, e submetê-la ao jugo marital. Todavia a importação do direito helênico
foi, para Direito Egípcio, uma aquisição fecunda, um estimulo e uma fonte de
progresso [109]. Do mesmo modo, é bom dizer que o efeito inevitável da
civilização é o de diminuir sem cessar a autoridade jurídica do pai sobre seus
filhos, ao contrário do que se viu em muitas províncias romanas, quando o édito de
Caracala teve por efeito, segundo Sumner-Maine, ampliar a patria potestas
romana, tão rigorosa e tão extensa ainda sob o Império, sobretudo à vista dos bens
próprios às crianças, a uma multidão de pessoas que não conheciam nada
semelhante. Estes últimos, então, em se civilizando, viram bruscamente crescer seu
poder doméstico e mesmo sua fortuna. O progresso cumpriu-se para eles no
sentido de um estreitamento, e não de um relaxamento dos liames autoritários da
família.
Não são apenas os diversos sexos, são as diferentes idades da vida que
disputam entre si a preeminência. Esta luta incessante não se resolve sempre nem
em toda parte da mesma maneira; suas soluções sucessivas não se seguem sempre
e em todo lugar na mesma ordem. Eu admiro aqueles que pretendem regrar de
antemão a sorte desses combates. Ora, – e este é o caso ordinário, – o sexo
masculino domina; ora, raramente, o sexo feminino; mas a subordinação deste
último é mais ou menos completa e varia muito, num sentido ou noutro, segundo
as idéias e as paixões dominantes no curso da civilização. Do mesmo modo, ora a
idade madura, ora a juventude, ora a velhice têm o governo dos negócios. Pode-se
dizer que a gerontocracia é muito freqüente entre os povos primitivos, sem todavia
ser constante, que a efebocracia é exceção, e que o reino dos homens maduros, no
vigor da idade, – o que se poderia chamar antropocracia, – é o regime normal, o
que não quer dizer habitual. Não houve jamais uma sociedade em que as crianças
comandassem como senhores? Por uns tempos, é possível. Mas se esta
singularidade houvesse existido, seria fundamento para pretender que a pedocracia
é uma fase necessária da evolução social, um dos anéis dessa longa corrente? Eu
não vejo mais razão para atribuir esta mesma importância ao matriarcado, à
ginecocracia.
De todos esses debates sem fim relativos aos sistemas de parentesco e de
casamento, o que me parece resultar de mais claro é que a família primitiva foi
muito diferente dela mesma, aqui monogâmica, lá poligâmica, alhures poliândrica,
ora exogâmica, ora endogâmica [110], freqüentemente mais autoritária, às vezes
mais liberal do que se tornou mais tarde. Mas, se o ponto de partida é múltiplo, os
caminhos percorridos são paralelos ou convergem na direção de um mesmo estado
final, notadamente em direção a uma forma de casamento mais ou menos vizinha
ao casamento cristão? Não. Apenas é verdadeiro dizer que a adoção desta forma
superior foi uma causa de triunfo na luta das sociedades, o que explica sua difusão
progressiva. Pouco não faltou todavia para que a conquista árabe não cobrisse a
Europa e não lhe impusesse a poligamia. A monogamia, aliás, é compreendida de
várias maneiras diferentes. No velho Egito, por longe que se remonte em sua
história, o casamento era um contrato de sociedade entre dois iguais; na Arábia, na
Pérsia, na antigüidade greco-romana, entre os mongóis, na China, era um contrato
de venda: a mulher era comprada pelo marido. Na Polinésia e entre os esquimós é
freqüentemente um contrato de empréstimo ou de aluguel temporário. Algures
floresceu o casamento por servidão do genro ao sogro, de Jacó na casa de Labão.
Entre os peles-vermelhas, entre os hindus, esta variedade está representada. Além
disso, havia o casamento por captura.
O casamento não tem, pois, ponto de partida numa forma única e não tende a
isso. Será que, sobre as interdições ao casamento, ora entre parentes, ora entre
estrangeiros, ora entre castas diferentes, – será que, sobre as obrigações ao
casamento, tais como o levirato [111], – será que, sobre os casos de nulidade de
casamento, sobre a faculdade mais ou menos extensa, unilateral de início,
recíproca a seguir [112], de se divorciar ou separar, sejam bens, sejam corpos, as
diversas legislações civilizadas se assemelham ou parecem ter uma tendência
espontânea a assemelhar-se? Na Pérsia, o incesto, mesmo entre ascendentes e
descendentes, era não apenas autorizado, mas favorecido mesmo pela lei, segundo
Dareste. Exceção única, de resto, na família ariana. Entre nós, os reis tiveram, por
longo tempo, o direito de ordenar casamentos entre seus súditos e, após cessar seu
reconhecimento, continuaram a rogar a seus súditos que se casassem, rogo que era
uma ordem. Submetiam-se, quando havia espírito monárquico, do mesmo modo
que, quando havia espírito familiar, submetiam-se a um comando análogo do pai
de família. Hoje, não há mais dessas coerções matrimoniais por ordem; mas
quanto ainda de casamentos forçados impostos por diversas considerações! –
Quanto às interdições ao casamento, nós não admitimos mais aquelas que, editadas
outrora no interesse da conservação das famílias, não respondem mais aos nossos
costumes individualistas; mas nós suportamos, sem lamentar, aquelas que se
fundam sobre um interesse nacional, por exemplo, aquelas que impedem os
militares de se casar até uma certa idade, ou que subordinam o casamento de
oficiais à aprovação de seus chefes. E achamos isso completamente natural.
É assaz notável que a idade da maioridade, muito precoce entre os bárbaros,
mesmo no Norte, tornou-se mais e mais tardia em geral, no curso da civilização
[113]. Entre os romanos primitivos, a puberdade, a plena capacidade jurídica era
fixada aos quatorze anos; do mesmo modo entre os francos ripuários [114], os
burgúndios [115], os visigodos [116]. Ela era fixada aos doze anos entre os anglo-
saxões. Mas, à medida em que se civilizavam, os romanos chegaram a retardar a
maioridade até os vinte e cinco anos; os visigodos, em se civilizando também, sob
a influência da imitação romana, é verdade, retardaram-na até os vinte anos; os
ingleses, até os vinte e um, como nós. Esse retardamento das maioridades é bem
um efeito da civilização, – da civilização que, todavia, aumenta sem cessar a
precocidade das inteligências, – onde, para os plebeus, para as classes nacionais
que permanecem incultas, nós vemos longo tempo subsistir a antiga maioridade
precoce, enquanto ela é retardada nas classes da nobreza. Na Inglaterra e no Oeste
da França, no século XIII, “a moça nobre, diz Viollet, era maior aos quinze anos; a
moça plebéia, aos doze”. No Leste da França, o gentilhomme era maior aos
quatorze ou quinze anos; o plebeu, pouco mais cedo. No século XVI, já estando
organizada a civilização, todas essas maioridades são abaixadas. Como explicar
isso? Assaz simplesmente, eu creio. Quanto mais nos aproximamos da vida
primitiva, mais as profissões são simples, o aprendizado fácil, e mais cedo é
possível a uma criança “arrumar trabalho”. Desde os doze ou treze anos, um
pequeno camponês pode ganhar sua vida. Ele abandona o teto de seu pai, – muito
pobre para alimentá-lo, – e vai trabalhar para um patrão ou para um senhor; ele
troca uma servidão familiar por uma dominação patronal. Assim, é sempre
reduzido o benefício da maioridade. Mas que jovem rapaz letrado de nossos dias,
a não ser na América, – terra nova e primitiva em certo sentido, – ganha sua vida
antes dos vinte e um anos?
As transformações sucessivas da idéia de nobreza podem dar lugar a uma
generalização de certa solidez. Fustel de Coulanges, em sua Monarchie Franque e
outras, mostrou que, após haverem conhecido, num passado remoto, muito tempo
antes da invasão, a nobreza hereditária e inerente ao sangue, os diversos povos da
Germânia quase não conheciam mais, no momento da invasão, senão a nobreza
transitória, administrativa, ligada à escolha real ou às funções públicas. D’outra
parte, em Roma, a mesma evolução produziu-se: no início da história romana,
sabe-se do papel preponderante que desfrutava o patriciato [117]. Ora, pouco a
pouco, esta nobreza de origem fisiológica declinou e, sob o Império, foi substituída
enfim por privilégios temporários de ordem senatorial, livremente recrutados pelo
soberano entre todas as classes da nação. O patriciato não guardava mais que seu
lustro arcaico e seu valor estético, sempre apreciados aliás. – Seria esta uma lei
geral? Eu seria levado a ver aí ao menos uma tendência habitual, conforme àquela
que nós conhecemos sobre a substituição progressiva das causas sociais às causas
naturais nos fatos humanos. Acrescente-se que, pelo enobrecimento, em todos os
países, imagina-se entrar artificialmente, sem nenhuma consangüinidade, no corpo
inicialmente fechado da nobreza, como, pela adoção, no seio da família. Estas duas
invenções respondem ao mesmo objetivo: liberar o lado social do homem de sua
natureza animal, romper a subordinação primitiva das relações sociais às relações
de parentesco.
A prova, todavia, de que a lei enunciada não tem um alcance universal, e de
que a transformação indicada por ela não é absolutamente irreversível, é que uma
transformação precisamente inversa nos é apresentada, excepcionalmente, por
nossa Idade Média [118]. Persigamos a história dos francos e de outros povos
invasores do Império Romano. No momento em que eles se espalharam, nós o
sabemos, e Glasson nos repete, “eles não contavam com nobres em suas fileiras”; e
foi esta ausência de uma classe nobre, nos tempos merovíngios, que permitiu aos
reis dessa época exercerem um poder absoluto. Mas este autor acrescenta: “Foi
apenas na seqüência, e muito mais tarde, que a classe da nobreza (hereditária),
saída em grande parte dos funcionários do reino, constituiu-se e tomou um lugar
importante no Estado.” Assim, entre esses povos, após transformar-se de
hereditária em transitória, a nobreza retorna de transitória à hereditária. Foi
suficiente, para isso, o enfraquecimento do poder central, que deixou os cargos
públicos se perpetuarem em certas famílias, e o usufruto dessas funções se
transformar em propriedade, santa e sagrada aos olhos de todos. Quem sabe se,
pela ação da mesma causa, no seio de nossas democracias modernas, a elaboração
lenta e despercebida de uma nova casta aristocrática seja, além do mais, tão
impossível quanto se é levado a supor, posto que, verdade seja dita, isso me pareça
pouco provável? Não se vêem despontar, aqui e acolá, alguns germes de
verdadeiras dinastias republicanas? O que quer que seja, o exemplo citado prova
até que ponto é temerário generalizar em ciência social [119].
Uma bela, uma admirável progressão que não nos damos ao trabalho de
observar, e que acompanha, porém, todas as evoluções jurídicas, é a ampliação
contínua das relações de direito. Primeiramente, restritas ao grupo estreito e
fechado dos parentes, que cresce tanto quanto pode pela adoção, pela lenda,
anexando toda sorte de parentes fictícios ou imaginários, ampliam-se a seguir, seja
pelo contrato feudal, seja pelo contrato de associação corporativa, no círculo mais
vasto de vizinhos, confrades, concidadãos locais, mais tarde, pela idéia da pátria, a
milhões de compatriotas e, pela idéia de cristandade, de Islã, de uma comunidade
religiosa qualquer, amplia-se a centenas de milhões de estrangeiros mesmo; enfim,
pela idéia de humanidade, de direito das gentes, de direito natural, amplia-se a
todos os homens [120]. E, ao mesmo tempo em que se amplia desse modo, o
campo jurídico aprofunda-se mais e mais, pela admissão sucessiva de camadas
cada vez mais baixas do grupo social, da mulher, do plebeu, do escravo, na grande
igreja do Direito. Eis um duplo progresso incessante que realiza a História. Eis aí a
obra direta ou indireta da imitação que, nascida da idéia da simpatia, condição
essencial da sociabilidade, aumenta-a, desdobra-a, fortifica-a e consolida-a em
direitos e deveres reconhecidos, à medida em que os homens, melhor assimilados
por ela, sentem-se mais ligados entre eles.
Parece que se percebe uma parte dessa façanha quando, na companhia de
Sumner-Maine, discernimos duas fases sucessivas do Direito: aquela onde o
sentimento de solidariedade jurídica fundamenta-se unicamente sobre o sentimento
correto ou errôneo da consangüinidade, e, a seguir, aquela onde ele se fundamenta,
de preferência, sobre a coabitação num mesmo território. Mas, como vemos esse
fato sem ver sua causa, nós a falseamos, exagerando-a. Porque, enunciado nesses
termos, exprime um erro. Jamais, entre pessoas que permaneceram sem contato
simpático e assimilador umas com as outras, o nexo geográfico de vizinhança foi
suficiente para criar um liame de direito: os chineses, os judeus, que se assimilam
tão raramente ao ambiente estrangeiro, são raramente admitidos na comunhão
jurídica. Mais são vizinhos próximos, mais se colocam violentamente fora da lei.
D’Aguanno, que encontra freqüentemente vistas muito justas, a custo observa que
o sentimento de igualdade de direitos primeiramente nasceu nas relações de um
pequeno grupo de pessoas unidas por laços de sangue; depois, da corporação ou da
casta, quando se fecha até que, com o passar do tempo, venha a se expandir. Mas
cada vez que esta expansão rompe ruidosamente um de seus diques, este autor não
vê, sob a ação intermitente das causas assinadas pelos historiadores, – jus connubii
entre patrícios e plebeus, um dia o voto, outro dia conquistas violentas da plebe
sobre a nobreza, em outro a publicação de tal evangelho revolucionário, etc., – a
ação contínua da qual ela deriva. Deve-se, eu creio, não esquecer nunca dessa
consideração muito simples, se se quer desembaraçar com êxito o fio da história, e
não exagerar, falando de evolução.
Uma observação en passant. Os evolucionistas insistem muito, e nisto eles
têm razão, sobre a solidariedade rigorosa que ligava, entre eles, os membros do
grupo social primitivo. Eles repetem freqüentemente que o sentimento da
personalidade coletiva sobrepujava então absolutamente, como nas colmeias e
formigueiros, àquele da personalidade individual. Muito bem. Mas como se pode
dizer, após isso, que os primitivos se distinguiam por um egoísmo grosseiro,
completamente desprovido desse requintado “altruísmo” com o qual apenas a
civilização, parece, os haveria gratificado?
Capítulo Quarto
Regime de Bens
Formas primitivas da propriedade. Três tipos de provas
invocadas a favor do comunismo primitivo. Pretensa
reprodução desse comunismo nas nascentes colônias
modernas. Exame dessa alegação de Sumner-Maine e de
A. Loria. As sociedades animais segundo Espinas. O mir,
a allmend, a zadruga, o tonw-ship, etc. A comunidade
familiar seguiu-se ou precedeu à comunidade de aldeia? O
verdadeiro significado de ambas. Retomada linear,
retomada vicinal, retomada feudal, direito de retratação,
recompra: quid? As “pleiges”. O carnaval. A “ménage
nivernais” e os monastérios. Explicação geral: duas
grandes causas que fizeram variar o regime e a
propriedade coletiva ou individual. Prescrição: Por que
sua duração se vai prolongando? Sucessões.

Não menos que o regime de pessoas, o regime de bens foi objeto, na escola
transformista, de profundos trabalhos que merecem exame. É suficiente citar, entre
outros, a Propriété et ses Formes Primitives, por Laveleye, onde nos é revelada,
senão a universalidade, ao menos a extraordinária freqüência, num passado muito
distante, da apropriação comunista do solo por um grupo de parentes ou de
vizinhos associados. Segundo este eminente economista e seus adeptos, o
comunismo de aldeia teria precedido historicamente àquele de família, que não
seria senão um fracionamento do primeiro. Esta idéia, – que encontrou em seu
caminho generalizadores em excesso e contraditores apaixonados, porque ela
parece ligar-se às preocupações socialistas do momento presente, – apóia-se sobre
um respeitável acúmulo de fatos e de considerações. É inútil resumir o que já foi
tão freqüentemente vulgarizado. Indiquemos apenas os argumentos principais.
Eles são de dois tipos. De uma parte, aproximam-se instituições comunistas ainda
existentes, – disseminadas aqui e ali no coração das montanhas onde tudo se
conserva indefinidamente (allmend suíça, pastagens comuns dos Pirineus), ou nos
vales da mesma forma conservadores da Ásia e nas estepes quase asiáticas da
Rússia (comunidades de aldeias hindus, mir [121] russo, zadruga [122] sérvia) ou,
enfim, entre as tribos selvagens da África, da América, da Oceania; – e retira-se
desta aproximação uma razão para pensar que esses costumes, hoje excepcionais,
são os restos das instituições gerais de antigamente. De outra parte, indo mais
longe, escava-se o solo ou o subsolo jurídico das nações modernas, – as mais
estranhas a todo espírito comunista, – e descobrem-se particularidades, tais como a
retomada linear ou vicinal, nas quais se vê o vestígio de um comunismo anterior.
Há bem uma terceira espécie de provas e que, se fosse justificada, seria a
mais sólida de todas. Também vou examiná-la por completo inicialmente, ainda
que ela tenha muito menos sucesso que as precedentes – não sei por quê. Foi
indicada pela primeira vez por Sumner-Maine em seus Études sur l’Histoire du
Droit [123], mas não vi seu desenvolvimento senão na obra de Loria, economista
italiano, sobre a Analisi della Proprietà Capitalista [124]. Este novo gênero de
argumentos consiste em mostrar que os primeiros pioneiros anglo-saxões da
América do Norte, fundando as colônias esparsas que se tornaram os Estados
Unidos, começaram por praticar a propriedade indivisa do solo, para formar várias
comunidades de aldeia, mais ou menos análogas ao mir ou à comunidade hindu. Se
o fizeram desse modo, não se deveria ver nesse recomeço espontâneo da evolução
histórica da propriedade, a partir de seu suposto termo inicial, a confirmação
experimental, de qualquer sorte, desta hipótese? E não seria provocante encontrar
nos Estados Unidos, – nesta terra clássica do individualismo exuberante, – a mais
autêntica amostra, a melhor demonstração da necessidade do comunismo primitivo
[125]?
Por infelicidade, examinados de perto e sem preconceito, os fatos sinalados
por Sumner-Maine e desenvolvidos por Loria tomam uma significação
completamente diferente daquela indicada por eles. “É um fato muito marcante”,
diz com razão Sumner-Maine, que os primeiros imigrantes ingleses na América
“organizaram-se primeiro espontaneamente em comunidades de aldeia, para se
dedicarem à agricultura”. Muito marcante efetivamente. Sobretudo se esse modo
de estabelecimento houvesse sido tão espontâneo quanto nos afirmam. Mas o
mesmo autor vem de nos dizer que esses primeiros imigrantes “pertenciam
principalmente à classe dos yomem”, ou seja, fazendeiros vassalos. Ora, uma
página mais além, em nota, ele nos ensina que, de acordo com autoridades
americanas eminentemente competentes sobre as quais ele se apóia, essas
primeiras colônias “tendiam a reproduzir, não a Inglaterra do tempo dos Stuarts
(época dessas colonizações), mas aquela do Rei João e da Grande Carta” e que
“essas instituições essencialmente feudais pareciam completamente naturais aos
colonos, qualquer que fosse sua pátria de origem, anglo-saxões, holandeses ou
franceses exilados pela revogação do Édito de Nantes [126]”. Trata-se, como se vê,
não da maravilhosa ressurreição de um passado pré-histórico, morto e esquecido
após séculos, mas do sonho de um passado recente, apenas adormecido, ainda vivo
nas tradições de colonos inteiramente penetrados pelo espírito feudal. O mesmo
fizeram os refugiados franceses que, aliás, vindos após os outros, não puderam
senão seguir a corrente dos hábitos já estabelecidos antes deles sobre o solo
americano. O fenômeno invocado é, pois, um simples fato de imitação dos avós,
onde o atavismo, até mesmo o pseudo-atavismo, do uso de tantos evolucionistas
contemporâneos, não conta absolutamente nada.
Notai como esse comunismo colonial se estabeleceu. “A Corte Geral
concedia uma certa extensão de terras a uma sociedade de indivíduos, e essas terras
eram possuídas pela sociedade a título de propriedade comum.” Era pois, tão
simplesmente, uma concessão de terras feita a uma companhia. Nada mais
freqüente mesmo em nossos dias. Mas não era sempre desse modo que uma
colônia começava. De resto, a sociedade em questão apressava-se em partilhar
entre seus membros, contanto que pudesse fazê-lo, as terras concedidas. Vejamos
entretanto Loria a esse respeito, pois que, de acordo com ele, as colônias são para o
arqueólogo do Direito o que são as montanhas para o geólogo: uma ocasião única
de ver e de tocar terrenos primários, estratos em toda parte enterrados sob espessas
camadas de solo. Instruamo-nos um pouco sobre o antigo passado de nossa raça,
em as estudando.
O que nos ensinam as colônias? Vemos, primeiramente, que seus fundadores
são muito dessemelhantes, muito diferentes de raça, de classe, de religião, de
hábitos, de costumes. Ao Norte dos Estados Unidos, são puritanos ingleses de
classe média; ao Sul, grandes proprietários. No Canadá, emigrados da nobreza,
brigões ou caçadores. Em São Domingos, aventureiros normandos, piratas e
flibusteiros. Nas Antilhas, um clero industrial, ativo e empreendedor. Na Austrália,
condenados espanhóis, anglo-saxões, holandeses, portugueses. Os colonos vêm de
toda parte. Também todos colonizam de maneira diversa. Não apenas suas colônias
diferem pelo objetivo perseguido, – cultura industrial ou agricultura, colônias de
plantação ou colônias de povoação, – mas aquelas que tinham o mesmo objetivo,
atingiam-no por meios diferentes, trabalho livre ou servil, por exemplo.
Apenas uma coisa é comum a esses imigrantes: eles são todos imitadores.
Todos aplicam e copiam modelos tomados de seu antigo ou de seu novo meio. Do
antigo, quando os puritanos da Escócia reproduziram, na América, os costumes
comunistas ainda subsistentes em seu país natal, a retrovenda [127] vicinal [128]
entre outros, ou quando os franceses importaram do Canadá a retrovenda
simplesmente linear [129]. Pela segunda vez; porque Leroy-Beaulieu nos ensina
que os colonos canadenses, nossos compatriotas, “entranhando-se por toda parte na
imensidão das florestas à procura de peles e de caça, tomavam os hábitos indígenas
e deixavam a natureza civilizada pela selvagem”. Ele nos diz também que os
colonos normandos estabelecidos em São Domingos haviam tomado o nome de
caçadores de búfalos, “porque tinham adquirido o costume de se reunirem, após a
caça, para defumar, ou seja, fazer secar a carne dos búfalos que haviam caçado
com fumaça, segundo o procedimento dos selvagens.” Não vejo por que Loria não
procura aí, entre os caçadores nômades, e não entre os colonizadores ingleses, que
começaram pela agricultura, a reaparição fantástica dos tempos primitivos. Em
todo o caso, esses caçadores tornaram-se tais, não espontaneamente, não por uma
necessidade de situação que nunca se fez sentir em torno deles, mas, bem
verdadeiramente, em virtude de um exemplo de seus ancestrais combinado com
aquele dos peles-vermelhas. Além disso, os caçadores tornaram-se pastores a
seguir, depois agricultores, de maneira conforme a uma norma dita modelo? De
modo algum.
Objetar-me-ão talvez que, se nossos colonos e, por conseguinte, nossas
colonizações modernas foram muito dessemelhantes, não se deve ter dado o
mesmo nos tempos pré-históricos. Mas por quê? Por longe que remontemos na
História, não encontramos sempre raças, línguas, costumes, idéias, hábitos
diferentes? Que ilusão tomar por uniformidade real o impressionismo do passado
pelo próprio efeito de seu distanciamento! Tudo se apaga a distância, tudo se
desfaz, mas nós sabemos bem que é suficiente nos aproximarmos das colinas azuis
para ver pulularem diferenças em sua cor uniforme.
A partir dessas opiniões, deve-se convir: as colônias são uma retrogradação.
Vêem-se renascer processos culturais abandonados depois de muito tempo na
pátria mãe; ou instituições desaparecidas naquela, como a escravatura ou mesmo,
talvez, a composição pecuniária para os crimes. O que se deve conceder sem
dificuldade a Loria é que, recolocado em condições semelhantes, o homem tende a
reproduzir, ao menos em parte, instituições quase iguais. Mas o que resulta
claramente de suas pesquisas sobre as colônias é que as condições destas diferiam
profundamente umas das outras. Primeiro, sob as condições indicadas mais acima,
e, também, conforme a segurança ou a insegurança de sua localização: na
vizinhança de tribos ferozes ou pacíficas ou, ainda, conforme o clima. Ora, todas
estas causas de dessemelhanças deviam existir, afinal, entre as tribos primitivas ou
qualificadas como tais, e, por primitivas que elas nos pareçam de longe, teriam
herdado, de uma longa fileira de ancestrais, uma imensa cadeia de tradições.
Uma primeira questão: Se essas colônias fizeram reviver espontaneamente as
“formas primitivas da propriedade”, como foi que elas não fizeram também reviver
as formas primitivas da família? Todavia não nos falam jamais, a esse respeito,
nem do hetairismo, nem do matriarcado, nem do patriarcado poligâmico ou
monogâmico. Dir-se-á que a não ressurreição ou, para melhor dizer, a não
aparição, nas colônias, desses estados supostos da família antiga não prova nada
contra sua existência num passado remoto? Pois bem. Mas então: Qual o direito de
atribuir maior importância aos fatos do coletivismo apresentados pelas colônias?
No que concerne à ocupação das terras, a história das colônias mostra o
homem em toda parte oscilando entre duas tendências antagônicas: a tendência à
dispersão pela apropriação individual e independente, e a tendência à associação
pela apropriação indivisa. De preferência, vê-se-o sempre tender à dispersão, mais
freqüentemente forçada, malgrado ele recorra à associação, à indivisão comunista,
seja para conformar-se às necessidades da vida pastoral, quando ela ainda existe,
seja, mais tarde, para defender-se contra os perigos que cercavam o ambiente ou
para executar trabalhos de desmatamento e de irrigação superiores à sua força
individual. Também é de observar que, em toda parte onde a indivisão subsiste
ainda, e em toda parte onde ela existiu no passado em face da posse imobiliária,
encontra-se um dos três casos de constrangimento enumerados, ou os três de uma
só vez. Ao percorrer-se toda a obra de Laveleye, não se descobriria um único
exemplo de coletivismo agrário que não entrasse numa dessas categorias.
O que não se vê jamais, por exemplo, é uma colônia começando pela
comunidade de aldeia, para estabelecer a seguir a comunidade de família e fundar
enfim a propriedade individual. Loria não nos diz nada semelhante. Ele nos
mostra (tomo II, página 17 e seguintes) que os primeiros colonos, ocupantes de um
solo virgem e prodigiosamente fértil, lá ao menos onde reina uma segurança
relativa, instalavam-se cada um para si e para sua descendência. O fato dominante,
então, é o isolamento dos colonos (p. 23). Eles estão separados por um deserto. É o
extremo oposto do coletivismo. E isto lembra muito bem, como faz observar Loria,
a famosa passagem de Tácito sobre os germanos: Colunt discreti ac diversi, ut
fons, ut campus, ut nemus placuit. Uma luta se engaja a seguir, pouco a pouco, no
coração desses corajosos pioneiros, entre as duas forças que indico a todo
momento: a necessidade da apropriação individual independente e a necessidade
da associação defensiva. Ora, conforme uma ou outra destas duas forças domina, e
na medida em que predomina, – porque sua vitória não é jamais completa, – o
estado social é mais ou menos fortemente marcado de individualismo ou de
coletivismo. Quando este último domina, tal significa: ou que a fase pastoral não
foi ultrapassada, ou que o agricultor está exposto, como os berberes [130]
sedentários, às razias de tribos rapinantes e ferozes, a perigos diversos, ou que ele
tem necessidade, como em Java, da cooperação de uma cidade inteira para irrigar
seus arrozais, desbravar suas florestas, etc. [131] Nos Estado Unidos, o
individualismo dominou nos primeiros tempos, porque os índios eram
relativamente dóceis e pacíficos, porque a cultura não exigia, em geral, a
colaboração de um grande número de braços e porque os imigrantes
desembarcavam da Europa, não no estado de pastores, ignorando a enxada e o
arado, mas munidos dos segredos da agricultura civilizada. Esses neoprimitivos
traziam com eles dez séculos ao menos de invenções agrícolas, e foi sobretudo este
fato, este “fator” intelectual de primeira ordem que, muito mais que “o fator
econômico”, dito preponderante, determinou seu gênero de vida.
É verdade que, entre os colonos americanos, as comunidades de aldeia de
um certo tipo formaram-se lá e acolá; mas Loria reconhece que elas foram
posteriores ao isolamento primitivo dos colonos, e constituíram uma liga contra os
perigos nascidos do isolamento excessivo. Apenas neste segundo período houve,
em alguns estados, na Virgínia entre outros, divisão de terras por lotes, interdição
de possuir individualmente além de um certo máximo de terras, às vezes cultura
em comum. Tal estado de coisas lembra, em vários sentidos, a marcha alemã da
Idade Média [132]. Como nesta, todas as profissões eram monopolizadas e
submetidas a regras tão tirânicas quanto protecionistas. Mas tudo se explica, se
imaginarmos que, ao isolamento dos indivíduos, ou antes, ao isolamento das
famílias, sucedeu o isolamento das cidades, e trata-se, para cada uma daquelas a
seu turno, na ausência de todo comércio, de bastarem-se a si mesmas. Este é um
caráter importante comum a todas as aglomerações humanas dispersas sobre um
vasto território a grandes distâncias umas das outras: aldeia hindu, mir russo,
marcha germânica, allmend suíça. Poder-se-ia acrescentar a vila galo-romana
[133]. Fustel de Coulanges descreve-nos esta como um organismo independente e
resistente, fortemente hierarquizado e centralizado. Não é menos curioso ver, sobre
essa terra americana, onde o individualismo anglo-saxão deveria desabrochar em
nossos dias, a evolução social começar quase que pela regulamentação despótica e
pelo socialismo de estado.
Após as colônias modernas, consultemos as cidade animais, como certos
sociólogos, a respeito do assunto que nos ocupa. Muito bem. O que vemos? Já
entre os animais sociais encontramos, lado a lado, a propriedade individual e a
propriedade coletiva. Esta, lá onde aparece, reveste-se da forma familiar. Um ninho
pertence a um casal de pássaros que, todos os anos, vem habitá-lo, repará-lo em
comum. “A propriedade de um território é um fato constante, quase universal, nas
famílias dos pássaros [134]”, diz Espinas. As famílias vizinhas praticam o respeito
recíproco a seus territórios de caça e de pesca. A caça reservada é conhecida entre
muitas espécies. Quanto a saber se, entre as abelhas, a propriedade individual da
célula precedeu ou seguiu-se à propriedade coletiva da colmeia, não me
encarregarei de resolver este problema. Mas é bem pouco verossímil que a haja
seguido. O que quer que seja, passemos a considerações mais sérias.
O mérito eminente e incontestável de Laveleye é o de haver descoberto,
relacionado, trazido à luz fatos desconhecidos de comunismo disseminados sobre o
globo e na História. Ele extraiu daí um dos livros mais sedutores que se podem ler.
Mas enganou-se, eu creio, na interpretação geral que se apressou em dar a esses
fatos, e onde não cessa de ser obsidiado por suas longas pesquisas. “Os povos
primitivos, diz ele, obedecem a um sentimento instintivo, reconhecendo a todo
homem um direito natural de ocupar uma porção do solo de onde possa tirar com
quê subsistir, trabalhando.” Eis um erro teórico que o conduz imediatamente a
falsear, senão os próprios fatos, ao menos sua ordem cronológica que ele inverte.
Com efeito, de acordo com ele, os primeiros povos “partilhavam igualmente, entre
todos os chefes de famílias, a terra, propriedade coletiva da tribo”. Muitas vezes
ele repete, – e todos aqueles aos quais arrasta a sedução de seus modos repetem
também, – esta última proposição erigida em lei histórica, uma ordem cronológica
que lhes parece se impor como uma dedução lógica. “Na origem, eram o clã, a
aldeia e os corpos coletivos que possuíam a terra; mais tarde, é a família que tem
todos os caracteres de uma corporação, perpetuando-se através dos tempos.” Mas
onde estão as provas desta pretensa verdade, qual seja a de que a comunidade de
aldeia precedeu e engendrou a comunidade de família? Eu as procuro e não as
encontro. Eis aí todavia o nó do problema. E, contrariamente àqueles que de pronto
se resolvem neste sentido, eu pretendo que, lá onde a comunidade de aldeia existe,
ela é a seqüência de comunidades de famílias anteriores, que se federaram entre
elas, ou onde uma só, mais freqüentemente, em crescendo, englobou as outras.
Em apoio a esta idéia, é de observar-se que, em toda parte onde o
coletivismo rural conservou sua seiva e seu sabor arcaico, na Rússia e na Índia, os
co-proprietários guardaram a tradição de um antigo parentesco que os uniria. Na
Índia, “os habitantes de cada cidade (onde existe a indivisão) têm a idéia de que
descendem de um ancestral comum”, diz um relatório oficial inglês. Os
camponeses russos do mir acreditam do mesmo modo em sua filiação comum.
Sobre este ponto Sumner-Maine e Fustel de Coulanges encontram-se, e aquilo que
este diz da marcha germânica do século XII [135], – onde ele não vê senão o resto
de uma antiga co-propriedade familiar, – o primeiro diz também da comunidade de
aldeia hindu que oferece, de acordo com ele, “o aspecto de um grupo de famílias
unidas pela suposição de uma origem comum [136]”. A interdição de vender ou de
legar o bem familiar, – mais tarde, os entraves aportados à faculdade de alienar, –
parecem vestígios de coletivismo antigo. Seja. Mas tais regras costumeiras não
podem se interpretar senão a favor da co-propriedade da família, e não do clã. Ao
homem que deseja testar, o legislador antigo responde, pela boca de Platão, nas
Leis: “Tu não és o dono nem de teus bens nem de ti mesmo; tu e teus bens, tudo
isso pertence à família, ou seja, a teus ancestrais e a tua posteridade.” Mas para que
é bom multiplicar as provas, na ausência de provas contrárias? Não é natural, à
priori, fazer nascer o complexo do simples e não o simples do complexo? Não é
estranho supor que famílias, até então independentes, pelo fato único de sua
aglomeração em um burgo, tenham adquirido a coesão e a disciplina internas, em
lugar da perdê-las, e, pela primeira vez, saboreado as doçuras da indivisão? Não
sabemos, ao contrário, que, em toda a parte e sempre, as relações de cidadania, em
se multiplicando, relaxam as relações de parentesco? A comunidade de aldeia não
pôde nascer senão sobre o modelo ampliado da comunidade de família, como o
fogo de Vesta da cidade não se pôde acender senão no interior do lar doméstico; o
primeiro efeito da primeira, ao seu nascimento, devera cortar, não engendrar a
segunda.
Eu admito, pois, plenamente, que a comunidade de família foi muito
difundida, seja por conta de sua propagação imitativa, seja em razão de sua
aparição espontânea em muitos focos distintos de irradiação na origem das
sociedades. Quer isso dizer que ela existiu sempre? Não. Lá, por exemplo, onde a
família apareceu sob a forma patriarcal, sorte de cesarismo doméstico, o chefe da
casa é o único proprietário. É o individualismo em todo seu esplendor. Aliás,
quando a indivisão familiar se estabelece, ela afeta a maior diversidade de aspectos
e, segundo o governo do grupo inclinar-se mais à hierarquia monárquica ou à
igualdade democrática, ela afasta-se ou aproxima-se do tipo ideal desta, tal como é
ainda representada aos nossos olhos pela zadruga eslava.
Mas, para bem compreender a verdadeira característica desse comunismo
fraternal e o erro daqueles que querem ver aí uma antecipação do coletivismo
social, deve-se ter presente no espírito a estreita, a íntima solidariedade que
incorporava uns aos outros os homens unidos pelo sangue, em épocas e em regiões
onde a insegurança do meio ambiente habituava-os a unirem-se e a aglutinarem-se
assim. O indivíduo conta infinitamente pouco, de ordinário, aos seus olhos ou aos
olhos de outrem entre os primitivos. Como prova de sua nulidade original, não
temos senão que imaginar o papel ínfimo que ele representa ainda em nossas
sociedades civilizadas já. Na Idade Média, não havia a idéia de contar a população
senão por lares. Entre os incas, a nação era partilhada segundo o sistema decimal,
não como nós aferimos no presente, por grupos de 100, de 1.000... indivíduos, mas
por grupos de 100, de 1.000...famílias. Na aldeia hindu, como na comunidade
teutônica, – comparação freqüente sob a pluma de Sumner-Maine, – a família nos
aparece tão forte, tão fechada em si e concentrada, que parece difícil imaginar um
bloco mais resistente: “um mistério extraordinário a envolve”. Nas montanhas do
Cáucaso, entre os ossetos, alguma coisa desse passado sobrevive ainda.
“Encontram-se, diz Dareste, aldeias plantadas como fortalezas nas alturas de um
acesso difícil, onde cada casa é um torreão habitado por uma mesma família ou, de
preferência, por uma comunidade de quarenta, de cinqüenta e até de cem pessoas
unidas entre elas pelos liames de seu parentesco, e correlacionando-se através de
um ancestral comum, do qual elas trazem o nome. Em volta de cada casa há um
muro serrilhado; em um de seus ângulos, há uma torre em forma de pirâmide com
muitos andares, servindo para defesa... Entre os habitantes de uma mesma casa
tudo é comum. A autoridade pertence a um ancião.” Todavia, só a aproximação
dessas habitações, a federação urbana dessas famílias, devia enfraquecê-las mais
ou menos. Qual devia ser, pois, sua concentração interna antes desse
enfraquecimento inevitável?
Se é assim, e isso não é duvidoso, deve-se olhar a propriedade coletiva dos
tempos primitivos como o equivalente puro e simples de nossa propriedade
individual, do mesmo modo que a responsabilidade coletiva dos parentes, em razão
do crime cometido por um deles, aí corresponde à responsabilidade individual de
hoje. O grupo familiar e, muitas vezes por extensão, o grupo de aldeias daquele
tempo, é a única unidade social, indivisível, não podendo ser decomposta como os
indivíduos o podem ser no presente. Sozinho, ele é capaz de exercer o direito de
propriedade, quando apresenta caracteres de personalidade independente e original.
Esta pessoa moral começou por ser a única pessoa real, seja encarnada
despoticamente no chefe, seja marcada e repartida entre todos os membros, mas
sempre, por ele ou por eles, proprietário absoluto de seus bens, com exclusão de
qualquer outro grupo igual. – E isto é tão verdadeiro, que o traço mais flagrante do
pretenso coletivismo descoberto no mir, na allmend suíça ou italiana, na
comunidade de aldeia hindu e javanesa, na marcha germânica, é o seu
exclusivismo essencial, ferozmente não hospitaleiro [137]. – Na Suíça, para gozar
do domínio comunal, deve-se “descender de uma família que tenha esses direitos
desde tempos imemoriais...” Daí as lutas tão violentas “entre os reformadores
radicais, que reclamam direitos iguais para todos, e os conservadores, que
pretendem manter as antigas exclusões”. A allmend forma também “uma
corporação fechada e privilegiada”. Quando se invoca, em favor da antigüidade
das idéias e dos sentimentos comunistas, a tradição da partilha das terras tão
freqüente entre os gregos antigos, não se deve perder de vista que, de acordo com
Aristóteles, as leis gregas sobre a conservação dessas partilhas primitivas
“ligavam-se a um pensamento aristocrático e tinham muitas vezes o objetivo de
impedir a plebe de tornar-se proprietária”. Resumo as citações. Em suma, nas
associações onde a humanidade teria feito seu noviciado comunista, passa-se
ordinariamente o tempo a repelir o estrangeiro que quer forçar as cercas espinhosas
desse sítio familiar. Vejo lá os convivas, mais ou menos numerosos, mais ou
menos parentes, sentados numa mesma mesa. Mas não se segue nunca que esse
seja um banquete público. É um grande jantar particular servido numa sala
hermeticamente fechada.
Como se pôde perceber o vestígio de um comunismo anterior, de uma fé
antiga na co-propriedade universal, do direito inato de todos sobre cada parcela de
terra, em instituições tais como a retomada linear, a interdição de testar e tantos
outros obstáculos opostos pelo costume à alienação do patrimônio: instituições
onde aparece tão fortemente a crença enraizada de que tal pedaço de terra pertence,
por direito inato e hereditário, a tal família, que ele é o corpo permanente desta
personalidade imortal? Eis todavia uma maneira de ver que teve o maior sucesso.
Ora, seguramente, a retomada linear, esta faculdade deixada aos parentes de
recomprar o bem vendido por um deles, e a retomada vicinal, faculdade análoga
deixada às vezes aos vizinhos, atestam, na maior parte dos casos, a existência de
uma co-propriedade anterior e esquecida, limitada aos parentes e aos vizinhos. Nós
o demonstramos, comparando a retomada feudal com as duas precedentes: se o
senhor feudal tinha o direito de recomprar o feudo alienado por seu vassalo, é
porque se lhe reconhecia uma espécie de co-propriedade superior, o domínio
eminente, que o vassalo não tinha o direito de alienar. Mas essas retomadas
tinham ainda uma outra significação mais geral e mais profunda. Para compreendê-
la, deve-se, eu creio, compará-la a muitos outros costumes curiosos inspirados pelo
mesmo espírito, e que não aparecem na explicação precedente. A retrovenda,
faculdade de resgate deixada ao próprio vendedor, espécie de retomada individual,
– o direito concedido ao mesmo vendedor, em muitas legislações primitivas [138],
de arrepender-se da venda, de retratar-se ao longo de um certo prazo; – o direito
concedido ao doador ancião, segundo Viollet, de retratar sua liberalidade por livre
e espontânea vontade; – enfim, disposições constantes em leis muito antigas,
polonesas, por exemplo, que declaram os imóveis imprescritíveis, indisponíveis,
impenhoráveis por dívidas: tantos direitos notáveis que derivam, não da
propriedade coletiva, – pois que se trata expressamente de propriedade individual,
e o vendedor ou o doador podem perfeitamente alienar seu próprio bem, – mas do
desfavor atrelado às alienações nas sociedades pouco civilizadas. É apenas sob este
último ponto de vista que esses direitos singulares e as retomadas podem ser
compreendidos num mesmo golpe de vista. E esse desfavor, a seu turno, não
exprime senão um sentimento de propriedade de tal modo enérgico e exclusivo,
que fazia olhar o proprietário (coletivo ou individual, não importa) e o seu bem
como a carne e a unha, e a ruptura acidental deste liame sagrado, como uma
anomalia dolorosa, uma ferida a curar o mais rápido e o melhor possível [139].
Sumner-Maine faz uma observação muito sutil em apoio à tese comunista.
Sabe-se da dificuldade insuperável que existe, em todo país atrasado, em fazer com
que o camponês aceite a menor modificação no preço costumeiro e nas condições
tradicionais do arrendamento das terras. Estaria aí puro misoneísmo? Não, dizem-
nos. Porque este mesmo iletrado aceita sem dificuldade as mudanças sobrevindas
no preço dos objetos mobiliários. Mas este contraste se explica, se se admitir que
“o sentimento persistente de uma antiga confraternidade na posse do solo” faria
obstáculo à idéia de obter das terras alugadas o mais alto preço exigível, ou seja, à
idéia da renda livremente discutida. Isto é muito justo? A verdade parece-me ser,
de preferência, que esteja aí a lembrança inconsciente de uma época onde o grupo
de pessoas às quais se podia alugar ou vender sua terra era praticamente restrito
aos membros de um pequeno círculo fraternal, enquanto havia toda comodidade
em alugar ou vender suas mercadorias, suas armas, mesmo seu gado aos
estrangeiros. Era permitido explorar, espoliar à vontade estes últimos, não os
outros. Está aí a reprodução, sob uma nova forma, da distinção capital – vista mais
acima – entre as relações interiores do grupo societário e suas relações exteriores.
Eu negligencio intencionalmente argumentos comunistas cujo alcance foi
exagerado. Lançados na pista do comunismo primitivo, os eruditos acreditaram
descobrir o traço evidente neste fato, por exemplo: de que, entre povos pouco
avançados, o uso de obrigações estritamente solidárias entre muitos co-devedores,
em geral membros da mesma família, ou bem como na Idade Média, o uso de
pleiges (reféns por dívidas) foi extremamente difundido. Mas não nos esqueçamos
de que, antes dos progressos sociais que permitiram a invenção da hipoteca e a
tornaram viável, a única garantia séria oferecida a um credor era a pluralidade e a
solidariedade dos devedores. Era naturalmente mais fácil ao que pedia emprestado
convencer a seus parentes, e não a estranhos, a ligarem-se a ele de modo tão
estreito. Esta explicação é tão verdadeira que, em nossos dias ainda, nos usos
comerciais, – porque a hipoteca, com sua morosidade é impraticável, – uma
promissória revestida de uma só assinatura não é jamais descontada; e a
multiplicidade de endossos, freqüentemente de parentes, numa mesma promissória,
portadores de um mesmo warrant, assim como sua responsabilidade coletiva, são
fatos habituais, análogos às obrigações co-reais do passado [140].
Poder-se-ia bem, – diga-se sem zombaria, – olhar o hábito tão geral na
Europa de “fazer carnaval” com seus parentes, jantando com eles na terça-feira
gorda, como uma sobrevivência da antiga vida comum. Se não nos detivemos
sobre essa idéia, é sem dúvida porque, infelizmente, a origem deste costume
nascido da Quaresma cristã pela via do contraste é, aqui, muito claro e não se
presta a nenhum equívoco. Mas, em revanche, o é que impede, à primeira vista, de
ver um fragmento da antiga existência falansteriana, subsistindo curiosamente em
meio ao nosso individualismo atual, tão egoísta, tão ávido pelo ganho, em nossas
recepções periódicas de polidez, em nossas trocas de visitas, em nossos grandes
jantares sacramentalmente ofertados e retribuídos, onde se disfarçam olhares
recíprocos, onde se finge esquecer de alguém, para entregar todos os seus bens
como pasto a seus convivas? É desagradável, eu confesso, que essa conjectura não
sustente o exame. Nessas práticas do mundo, sem dúvida, exprime-se a
sociabilidade humana, antiga seguramente, contemporânea da sociedade mais
primitiva, anterior mesmo a toda sociedade, como a potência é anterior ao ato. Mas
essa expressão de uma coisa tão velha é relativamente jovem e, quando se
remontam às fontes históricas desses hábitos polidos, desses simulacros recíprocos
e alternativos de devotamento ou de prodigalidade, percebe-se que eles decorrem
[141] dos respeitos feudais devidos pelos vassalos ao senhor, ou da refeição feudal
dada pelo senhor aos vassalos, dever limitado de início e unilateral, depois pouco a
pouco generalizado e mutualizado pela imitação descendente de camada em
camada. É curioso seguir as transformações graduais atrás das quais as genuflexões
dos vassalos, prestando o juramento de fé e de respeito a seu suserano, tornaram-se
nossas saudações recíprocas pela inclinação do alto da cabeça num salão.
Também deve-se precaver o espírito e couraçar a razão contra a tentação
erudita, contra a ilusão arqueológica de antedatar prodigiosamente a origem de
certos fatos que têm bem a cor do tempo, como os velhos muros, mas que, como
eles, podem indiferentemente passar por ter alguns milhares de anos a mais ou a
menos. É o próprio Sumner-Maine quem faz observar, a propósito da Índia:
“Assinalaram-se, diz ele, muitas práticas, às quais os indígenas recorrem em
nossos dias pela primeira vez, sob a simples pressão de circunstâncias exteriores, e
que todavia nos são apresentadas, de ordinário, como existindo desde tempos
imemoriais, e como caracterizando a infância da humanidade.” Entre nós, muito se
fala a propósito da questão que nos ocupa, da ménage nivernais. Era uma sorte de
pequeno falanstério rural não muito excepcional em certas regiões francesas nos
séculos XII e XIII. Vê-se aí, naturalmente, um resto de comunismo pré-histórico.
Mas não seria mais natural imaginar aqui a grande corrente de paixão imitativa que
suscitou, precisamente no século XII, tantas comunas e corporações, tantas
associações sob múltiplas formas [142]? Se se quiser ir mais longe, não é visível
que a idéia destas comunas e destas corporações não foi sugerida pelo tipo, – tão
freqüente então, tão multiplicado depois do fim do Império Romano, – da
comunidade monástica, de nenhum modo da comunidade de aldeia? A existência
desta, após quatro séculos de dominação romana, permanece problemática, ou não
pode ser senão acidental, enterrada em lugares obscuros, impróprios para servir de
modelo imitativo. Talvez as guildas [143], as associações comerciais da Idade
Média relacionem-se antes aos collegia de Roma que aos conventos; mas, com
toda certeza, não à marke. Pode-se procurar muito: não se encontrará nada de mais
típico, de mais nítido, em face da organização comunista, que o monastério, onde a
indivisão de bens tem por causa a fusão das almas numa mesma fé e num mesmo
fim. E, de fato, tudo aquilo que se acredita, na Idade Média, próprio às associações
profissionais tem um falso ar monacal e é, antes de tudo, uma confraria.
Na antigüidade grega, não foi o mesmo, salvo que a instituição monástica aí
floresceu sob formas mescladas de patriotismo e de religião, como em Creta, onde
sabemos que Licurgo procurou o plano de sua reforma socialista? Mas, dizem-nos,
jamais houve essa partilha igual de terras, jamais esses ágapes periódicos e tantas
outras instituições atribuídas a esse lendário legislador teriam podido viver e durar,
se o povo espartano não houvesse sido preparado por um longo hábito, ou a
lembrança ainda viva de um comunismo anterior, sobre o qual a história é,
infelizmente, muda. É como se se dissesse que o universal contágio da febre
monacal nos séculos IV e V de nossa era, quando milhares de conventos jorraram
de toda parte sobre o solo do império, denotasse a existência, em toda parte
difundida, ou em toda parte lamentada, da comunidade de aldeia céltica ou
germânica entre os povos cristãos de então. Sabe-se, todavia, que todos tinham,
desde há séculos, o hábito e o gosto da propriedade quiritária, individual que fosse
[144], dogmatizada pelos jurisconsultos romanos. Não. É a contagiosa
propagação, é a salutar epidemia da nova fé que explica sozinha a maravilha
assinalada no início da alta Idade Média; é suficiente, mas é obrigatório supor uma
epidemia semelhante, infinitamente mais localizada, uma crise de patriotismo
religioso revelada e propagada na Lacedemônia [145], para compreender o
radicalismo revolucionário de Licurgo. A esta hipótese se opõe, eu o sei, o
preconceito relativo ao pretenso misoneísmo dos antigos. Mas onde está o
misoneísmo de tantos primitivos que se convertiam em massa às crenças cristãs?
Os historiadores, em geral, fazem a História sem levar em conta esses grandes
furacões de imitação fervorosa que, de tempos em tempos, se erguem
inevitavelmente e rompem ou deformam todos os costumes à sua passagem. Seria
o mesmo que tentar fazer meteorologia sem falar dos ventos.
Tenhamos ao menos por certo o que segue. A mesma causa que, após um
século, fez desaparecer as comunas deveu e pôde sozinha, em tempos mais ou
menos antigos, multiplicá-las em toda parte: eu quero dizer a atração do exemplo
propagado traz o desejo de “fazer como os outros”. Estejamos seguros de que esse
modo muito particular de prazer, ainda visível lá e acolá, – divisão de terras aráveis
em três estreitas e longas bandas recortadas cada uma em parcelas iguais,
periodicamente sorteadas, adubadas com cinza, – foi inventado em algum lugar,
tendo lá sua razão de ser, e imitado em muitos lugares onde estava longe de ser o
melhor regime a seguir [146]. Mantém-se, em raros locais onde, como nas
Hébridas, justifica-se ainda por motivo de utilidade. “É uma observação
surpreendente de Nasse, diz Sumner-Maine, que o sistema de campos comuns
(quer dizer, o vestígio subsistente de uma antiga posse coletiva do solo) apresente,
na Inglaterra, a marca de uma origem exótica.” Surpreendente, com efeito, é esta
observação do meu ponto de vista. Ela se nos apresenta como um convite a supor
que esse coletivismo arcaico, onde se é muito levado a situar o ponto de partida
espontâneo, natural, necessário da evolução da propriedade, começou por ser uma
combinação singular, vulgarizada pouco a pouco e levada para longe por alguma
onda prolongada de imitação.
De resto, antes de nos reportarmos a uma antigüidade fabulosa de
instituições, de usos que se descobrem e que se observam pela primeira vez no
século XIX, é bom observá-los de muito perto [147], porque se os descobre quase
os mesmos, – crê-se, pelo menos, – na Rússia, na Sérvia, na Índia, tanto quanto em
diversos cantos da Europa latina ou germana, onde se é ofuscado por essa vasta
extensão, concluindo pela universal necessidade dessas práticas como fase inicial
das sociedades. Mas é precisamente essa grande difusão que se deveria ter em
guarda contra esta conclusão precipitada. O que me inclina a examinar a zadruga
eslava, – esse sonho de Fourrier realizado, da alta antigüidade que se lhe supõe, – é
sua semelhança assombrosa com a menage nivernais da qual venho de falar, e
também com certas comunidades de família da Lombardia [148]. Tratam-se aqui
de países latinos, trabalhados até as últimas profundidades pelo arado de Roma.
Esse fato imenso, a ocupação romana, que durou 500 anos na Gália e 1.000 anos
na Itália, tempo mais que necessário para um transbordamento de exemplos e de
decretos assimiladores, para fazer desaparecer, sob seus aluviões, todo traço da
propriedade indivisa, bárbara, estrangeira e contrária ao Direito Romano. Esse fato
imenso e culminante na História do mundo, levou-o Laveleye sempre em conta?
Teve ele sempre em vista também este outro fato considerável, qual seja, a ação
exemplar exercida, mesmo fora dos limites do Império, pelas instituições romanas
sobre os bárbaros fascinados, ciumentos e imitadores? E enfim, aquele não menos
importante: a ação do Direito Romano na Europa ao longo de toda a duração da
Idade Média [149]? No entanto, ele não esquece sempre este último fato. A
propósito dos eslavos (p. 464), ele confessa que “na Polônia, na Boêmia e mesmo
entre os eslovenos da Caríntia [150] e da Carniola [151], as comunidades de
família desapareceram, na Idade Média, sob a influência do Direito Romano”. Que
argumento a fortiori se poderia tirar daí contra a data atribuída a certas
comunidades de aldeia ou de família que, remontando a um período anterior à
Roma, teriam sido miraculosamente conservadas em pleno coração do mundo
romano, mesmo a despeito do Direito Romano, o qual, completamente vivo, teria
menos vigor que seu próprio cadáver exumado! Um sociólogo quer que o mir
eslavo seja a forma mais antiga da apropriação do solo, que haja sido adotado em
eras proto-históricas e, provavelmente, antes de toda a História, pela generalidade
das populações bárbaras da Europa. O mir russo seria um fragmento
maravilhosamente conservado aí, como os mamutes da Sibéria, dessa antiga
instituição. Infelizmente, um economista e historiador russo notável acredita haver
fornecido excelentes razões para pensar que o mir é de origem assaz recente. E sua
explicação, além de verossímil, tem a vantagem de conciliar-se muito bem com a
origem atribuída por Fustel de Coulanges, não sem provas em apoio, das
comunidades francesas. Notai que o mir é uma associação de trabalhadores rurais
devedores de renda a um senhor. Isso faz sentir singularmente sua feudalidade.
Ora, de acordo com Fustel, – e é impossível não reconhecer à sua tese um fundo de
verdade, – o senhor feudal não é senão um sucessor transformado dos grandes
proprietários galo-romanos. Deve-se recordar que o domínio rural deste último
dividia-se em duas partes para o cultivo: uma, reserva própria do senhor, consistia
principalmente em prados e florestas, dos quais ele abandonava o gozo parcial do
que fosse apanhado, em madeira morta, em pasto, e mediante prestações, aos
rendeiros da outra parte do domínio. Cada um desses colonos tinha direito a uma
pastagem ou a uma coleta proporcional ao seu lote de cultivo. Era exatamente isso
que tinha lugar no mir. Essa divisão do domínio galo-romano em duas partes teve
maior importância aos olhos de nosso autor, e é a primeira das duas que teria dado
nascimento aos nossos bens comunais. Tudo isso pode ser contestado, mas está, ao
menos, tão provado quanto a origem fabulosamente primitiva do mir, da allmend,
da zadruga e do township.
É suficiente, todavia, desentulhar o terreno. É tempo de aplicar aqui, mais
explicitamente, nosso ponto de vista geral, e expor a uma nova prova sua
veracidade. Duas causas principais, dizem-nos, devem ter feito variar
consideravelmente o regime da propriedade, seja coletiva, seja individual, a
proporção e a natureza de ambas e, por conseguinte, a legislação nesse sentido.
Essas duas causas são duas transformações sociais causadas elas mesmas, uma
pelo progresso da imitação, outra pelo progresso da invenção entre os homens
[152]. A primeira é o alargamento incessante do grupo social, o número crescente
de sociedades unidas pelo sentimento de uma certa concidadania moral devida à
troca simpática e prolongada de exemplos. A segunda é, de uma parte, a
acumulação contínua de invenções relativas à domesticação de animais e de
plantas, a submissão das matérias aos aperfeiçoamentos da indústria; de outra
parte, a substituição freqüente de certas invenções por outras julgadas mais
perfeitas, por exemplo, aquelas que constituíam a metalurgia em vez daquelas que
constituíam a arte de talhar o sílex, ou ainda daquelas que constituíam a arte
agrícola por uma parte das outras que constituíam a arte pastoral ou a arte
venatorial [153].
Imaginemos, para maior clareza e através de uma abstração metódica, que
cada uma destas duas transformações se cumpra sozinha [154]. Isso vai realçar, aos
nossos olhos, a parte da influência que lhes cabia sobre o regime jurídico da
propriedade. Perguntemo-nos, pois, primeiro, qual efeito produziu o aumento
numérico da sociedade. Ele teve por conseqüência necessária, em primeiro lugar, o
crescimento do número de proprietários, à medida em que o grupo se expandia em
profundidade. Quando a mulher, por exemplo, que era outrora excluída, entra por
hipótese no círculo, o direito das filhas à sucessão dos bens começa a ser
reconhecido. Daí, em parte, a exclusão das filhas e, mais tarde, sua admissão no
regime sucessoral arcaico. Em segundo lugar, vem uma conseqüência não menos
necessária desse distanciamento progressivo das fronteiras sociais, senão
nacionais, graças à universal necessidade de exercer e de sofrer o apostolado do
exemplo, que fez crescer incessantemente o número de coisas apropriáveis, seja
individual, seja coletivamente, entre os gêneros de riquezas já existentes, assim
como seu afastamento do proprietário, seja, desnecessidade gradualmente menor
do exercício do domínio direto sobre a coisa. Não vemos realizar-se continuamente
esse grande fato sob nossos olhos? Mais nós observamos, mais se estende raio
territorial, onde nos é praticamente permitido escolher os objetos de nossas posses
mobiliárias ou imobiliárias. A extensão das comunicações de homem a homem
coloca ao nosso alcance jurídico imóveis ou móveis, bens, casas, títulos de
comércio, etc., mais e mais distanciados de nós fisicamente [155]. Outrora devia-se
habitar sua terra e sua casa, e não se concebia o comunismo, a indivisão, senão
entre parentes ou entre vizinhos, entre pessoas reunidas sob um mesmo teto ou
encerradas numa mesma fortaleza. No presente, a indivisão existe entre todos os
acionistas co-proprietários do Canal de Suez, disseminados em todas as partes do
globo, entre todos os membros de um sindicato, entre todos os cidadãos de nossos
Estados crescentes, co-proprietários do domínio público espalhado sobre o
território da metrópole e das colônias.
Quanto ao progresso das invenções, teve ele efeitos ainda mais profundos.
Multiplicou sem cessar as formas de apropriação, seja individual, seja coletiva, dos
objetos já existentes e, de outra parte, criou cada unidade de novos objetos
apropriáveis, de novas riquezas desejáveis. A cada descoberta de um novo animal
doméstico, tais como o asno, o cavalo, a cabra, o carneiro, a vaca, de uma nova
planta alimentícia, tais como a cevada, o centeio, o trigo, o arroz, as riquezas
humanas são acrescidas de todos os seres vivos, animais ou plantas tornados
susceptíveis de domesticação. Toda árvore frutífera que se aclimata, toda espécie
de legume ou de flor que se importa aumenta o tesouro dos pomares e dos jardins.
A cada descoberta de uma arma ou de uma armadilha próprias à caça ou à pesca, a
proporção da fauna marítima ou silvestre transferida à mesa do homem aumenta
rapidamente. É como se uma geração espontânea de animais de caça terrestre e
marítima tivesse lugar. Às invenções relativas à navegação, a partir do remo e da
vela até a hélice do vapor, a partir dos grosseiros instrumentos da astronomia
nascente até a bússola, acrescentaram, à lista de bens, embarcações, balsas, navios,
etc. Às invenções relativas à vidraria, acrescentaram-se as garrafas, as vidraças de
janelas, os espelhos. Às invenções relativas ao crédito, acrescentaram-se as ações
das companhias, os títulos de renda. Às invenções relativas à imprensa,
acrescentaram-se o comércio livreiro, os livros, as revistas, os jornais. Às
invenções artísticas, os templos, os palácios, os quadros, as estátuas, os museus.
Ao mesmo tempo em que novos bens eram suscitados, nasciam novas
maneiras de possuir os antigos. Antes de toda invenção pastoral ou agrícola, a
única maneira de possuir uma terra era conquistá-la. Era este o mesmo motivo pelo
qual a indivisão era a regra, neste caso, em face de imóveis, este modo de posse
sendo de sua natureza indivisa. Não era o mesmo, em grau próximo, no regime
pastoral, mas, desde que uma nova espécie até então desconhecida de animal fosse
importada, a terra via-se desejada e possuída de uma maneira inconcebível
anteriormente. De modo semelhante, a aparição de uma nova planta que exigia um
novo modo de cultivo. Bem entendido, a propriedade das servidões de água, tão
regulamentadas em todos os códigos, não se tornou possível senão após a
descoberta dos efeitos benéficos da irrigação e da arte de irrigar, e as servidões de
paisagem, do mesmo modo que a maior parte das servidões urbanas, não puderam
senão preceder à invenção de muralhas e janelas, a arte de construir. Em geral, o
capítulo das servidões prediais ou rurais deu à propriedade individual um falso ar
coletivista em todos os códigos, a cada progresso da civilização. Enganamo-nos
aqui às vezes; as regras para a repartição das águas de irrigação feitas pelos maures
[156] da Espanha foram tomadas como um resto de coletivismo anterior. O inverso
seria mais verdadeiro.
Eis o que toca ao domínio privado. Mas o domínio público enriquece-se
também pelas invenções relativas à navegação, ainda aos armamentos e à
estratégia, aos serviços de limpeza urbana, aos correios, aos telégrafos. Um
exemplo entre mil: sem o progresso da navegação fluvial, tais caminhos jamais
teriam sido abertos ao público. Deixo a Fouilée, que consagrou todo um
interessante livro intitulado Propriété Sociale, fazer-nos um maravilhoso
inventário de nossas riquezas indivisas, com o cuidado de mostrar-nos de quantos
milhares de francos é co-proprietário cada cidadão francês. Contai os caminhos, os
canais, as redes ferroviárias, os ancoradouros, os fortes, os canhões, os couraçados,
etc., que nós possuímos em conjunto; e contai também os modos variados de posse
que supõe esta variedade de objetos.
Tais são, ao primeiro exame, os efeitos mais marcantes que deve ter o
progresso da imitação e o progresso da invenção sobre o regime da propriedade.
Agora, resultaria dessa percepção sumária a necessidade de uma evolução
universalmente idêntica do direito de propriedade? Sim. Mas apenas na medida em
que a expansão do grupo social é necessária em virtude das leis da imitação, e onde
o progresso da invenção é forçado a fluir numa certa inclinação, como um rio
numa direção vagamente determinada pelas necessidades do organismo e pelas
regras do espírito humano em combate com as forças exteriores. Ora, em que
medida é verdadeiro dizer que a série de invenções inseridas umas sobre as outras
com aparente capricho está sujeita, sem que pareça, a um traçado fatal? Nada de
mais insolúvel, a todo rigor, que um tal problema. Sem dúvida, os rios evoluem,
pois correm e deslocam-se. Mas que geógrafo, mesmo que também geólogo,
poderá submeter a uma fórmula única de evolução suas infinitas sinuosidades? O
sistema pentagonal de Élie de Beaumont [157], – do qual se ria, – era uma
tentativa análoga, para fazer entrar num mesmo plano divino, nítido como um
traçado geométrico, preciso como um cálculo de arquitetura, a ordem de erupção
sucessiva das grandes montanhas. Os naturalistas de seu tempo, – dos quais não se
ria, – viam da mesma maneira a ordem de criação sucessiva das espécies viventes,
como a execução gradual e regular de um plano não menos rigoroso da natureza.
E, certamente, não quero dizer que tudo seja de rejeitar nesta idéia nem na outra.
Pode ser que as leis da mecânica e da lógica circunscrevam, entre fronteiras
intransponíveis, o jogo espontâneo das forças, as vicissitudes de suas uniões e de
seus combates. Pode mesmo ser que, quando se trata de evolução, uma razão
esconda as manobras, solicite-as invisivelmente a cair, um dia ou outro, em
armadilhas inevitáveis, não dispostas de antemão, todas expressas ao longo de uma
via única, mas eternamente semeadas em todas as rotas possíveis, no espaço
infinito das possibilidades realizáveis e irrealizáveis. Quero dizer por aí que ela é,
talvez, destinada a reencontrar aquilo que supõe operar, condições de equilíbrio
mecânico ou de equilíbrio lógico, tais como os tipos astronômicos caracterizados
pelas figuras regulares da geometria, – elipse, parábola, esfera, – tais como os tipos
físicos de ondulação ou tipos químicos de arranjos moleculares permanentes, tais
como os tipos de animais ou de plantas viáveis, tais como as constituições sociais,
as línguas, as religiões, os corpos de Direito, as formas de arte viáveis e duráveis.
De tal sorte que, chegada aí hesitante, um pouco mais cedo, ou um pouco mais
tarde, a partir de um ponto ou de outro, com grande margem deixada ao acidental,
luxo tão necessário ao mundo, necessidade tão profunda do coração das coisas, a
evolução deverá parar e repousar até nova ordem, os planetas descrevendo um giro
gravitacional sem fim, com a ajuda de um imenso compasso elíptico, as ondas
sonoras e luminosas entrelaçando no espaço seus desenhos infinitos de uma
desesperadora regularidade, os óvulos fecundados brincando de reproduzir os
arabescos complicados do esquema ideal de sua espécie, as colônias humanas
comprazendo-se em multiplicar a imagem aumentada ou apequenada de sua pátria
mãe... Sim, isso é admissível, mas não significa, de modo algum, que um leito
invariável e único se imponha ao rio das descobertas, das invenções, das iniciativas
bem sucedidas, de sua fonte selvagem até sua embocadura ultracivilizada. E é
isso, entretanto, que se deveria provar, para se estar autorizado a colocar uma
fórmula única de evolução jurídica.
Durante muito tempo, acreditou-se que as invenções relativas primeiramente
à caça ou à pesca, em segundo lugar à domesticação de animais, enfim à
domesticação das plantas, seguiram-se numa ordem invariável. Caçador ou
pescador, pastor, agricultor: o homem tinha de passar, universal e necessariamente,
por estas três fases, segundo a opinião de todos. Está aí o exemplo mais nítido e o
mais sólido que se pode citar de uma série fatal de invenções. Infelizmente é
necessário renunciá-lo. Sabemos que os caçadores peles-vermelhas começaram,
antes mesmo da chegada dos europeus, a ser agricultores, sem haver nunca, apesar
disso, atravessado o estado pastoral. Eles não possuíam outro animal doméstico
além do cão, seu aliado para a caça. Na América, todavia, as espécies animais
suscetíveis de domesticação não faltavam. Por que, pois, neste continente, houve
tão poucos (talvez nenhum) povos pastores? E por que, ao contrário, na Ásia e na
África, o regime pastoral reinou e reina ainda? A importância capital do acidente
histórico, da originalidade individual em face das invenções mostra-se aqui
claramente. Os polinésios não conheceram o estado pastoral; eles pescavam e
praticavam um pouco de agricultura. Eles não conheciam qualquer animal
doméstico. Fosse verdade, aliás, que as três fases em questão se encadeassem como
se supunha outrora, dever-se-iam ter, em grande conta, as dessemelhanças que
apresentam cada uma delas, segundo circunstâncias acidentais ou diferentes
inspirações do gênio humano. O comunismo restringe-se ou estende-se, e sempre
se modifica entre as populações selvagens ou bárbaras, conforme a natureza de sua
pesca ou de sua caça, que favorece mais ou menos o espírito de associação [158].
Os caçadores de búfalos, de bisões, de elefantes deveram associar-se mais
freqüentemente e de maneira diferente que os caçadores de gamos ou lebres; os
pescadores de baleias, mais freqüentemente e de outra maneira que os pescadores
de carpas. As armas de fogo foram permitidas aos caçadores de feras no
isolamento, onde o arco e a flecha lhes eram defesos. A agricultura pôde ser mais
ou menos intensiva ou extensiva, o que muito influiu sobre o espírito de associação
entre os agricultores, não sendo porém suficiente. Só quando a necessidade da
produção intensiva sobre um menor espaço foi sentida pelos agricultores, é que os
procedimentos de adubagem, – que a tornariam possível, – foram imaginados. Foi
necessária uma iniciativa individual secundada pelas circunstâncias. Porque a idéia
de semear a cada dois ou três anos o trigo, graças ao adubo animal, numa terra
onde existia o hábito secular de descansar seis anos, vinte anos, vinte e cinco anos
às vezes, após uma única colheita precedida de um simples jato de cinzas, esta
idéia tão simples hoje devera parecer, naquele tempo, de uma ousadia
extraordinária, e eu não sei como se pôde obstinadamente taxar de misoneístas às
populações que a adotaram.
Mas se a idéia de um desenvolvimento predeterminado de invenções é
quimérica, existem, em revanche, bem realmente, similitudes espontâneas de
invenções, e cabe-lhes uma certa parte nas coincidências constatadas entre
sociedades que jamais realizaram qualquer empréstimo. Um certo número de
instituições muito semelhantes foram imaginadas espontaneamente, sem qualquer
imitação, por iniciadores diferentes, em diferentes épocas e em diferentes lugares,
porque elas eram as únicas soluções possíveis, simples e fáceis de conceber frente
aos problemas criados pelas necessidades naturais do homem. Por exemplo:
apresentando-se a necessidade urgente de saber o que cultivar na terra, para
alimentar a população, apenas algumas soluções poderiam se oferecer: 1a) forçar as
mulheres a este trabalho; 2º) poupar a vida dos prisioneiros de guerra e reduzi-los à
escravidão; 3º) cultivo livre auxiliado por animais ou por forças naturais
dominadas. Ora, todas estas soluções foram experimentadas e realizadas, mas não
necessariamente na ordem acima exposta. No mundo antigo, a mais difundida foi a
segunda, a cultura servil; e, como se viu florescer a escravidão entre os astecas, –
que jamais tiveram qualquer comunicação com a antigüidade greco-romana, assim
como entre os negros africanos que provavelmente não a conheceram melhor, –
deve-se pensar que sua semelhança a esse respeito não teve por causa a imitação.
Uma vez estabelecida a escravidão, outro problema se apresenta: Qual a
melhor maneira de utilizar o trabalho escravo? Ora, o proprietário e senhor pode,
para o cultivo: seja fazer trabalhar seus escravos em grupo sobre toda a extensão de
seu domínio; seja dispersá-los sobre a propriedade, e conceder a cada deles um lote
especial de onde vai retirar proveitos mediante condições especiais. O senhor
romano, de início, adotou com exclusividade o primeiro procedimento; mas o
senhor galo-romano deu preferência ao segundo que, agigantando-se e
especificando-se, transformou-se em servidão. Esta é uma solução muito fácil de
descobrir e, desde que apareceu em algum lugar onde ofereceu vantagens, uma
corrente de interesses não tardou em torná-la dominante. Assim explica-se o fato
de a servidão haver existido não apenas na Idade Média cristã, como também o de
haver precedido às invasões entre os germanos e, mais antigamente ainda, na
Grécia. “Os hilotas [159] de Esparta, os penestas [160] da Tessália, os clerotas de
Creta, talvez os tetes [161] da Ática fossem servos da gleba.” (Fustel de
Coulanges) Os antigos romanos ignoravam esta forma especial de escravização.
Quando ela, mais tarde, apresentou-se a eles, poder-se-ia admitir que fora copiada?
Isso não é necessário, à vista da simplicidade da idéia: ela produz-se, diz muito
bem o autor que acabamos de citar, “primeiramente sobre um domínio, depois
sobre outro e, pouco a pouco, sobre todos [162]”
Para retornar uma última vez ao coletivismo, perguntemo-nos se, de acordo
com os princípios expostos, ele deve ter precedido à propriedade individual. De
modo algum. Em todos os tempos existiram e precisaram existir, – isto é
reconhecido, – coisas apropriadas individualmente: armas, móveis, vestimentas,
ferramentas. Mas é certo ou provável que a proporção dessas coisas apropriadas
individualmente, relativamente às outras (coletivas), diminuiu sem cessar e, no
presente, é inferior ao que era na idade da pedra lascada ou polida? Não vejo a
menor prova. Concordo apenas que a propriedade coletiva do solo deve ter sido
mais geral e mais extensa, quando se apresentava uma época na qual o solo não era
susceptível de aproveitamento senão em comum [163]. Mas naqueles tempos, em
revanche, a propriedade coletiva das coisas móveis não era sequer imaginável, e
em nossos dias é sob esta forma sobretudo que o coletivismo ganha terreno, pelas
companhias ferroviárias, pelas sociedades industriais ou comerciais quaisquer; é
sob esta forma sobretudo que o coletivismo espera reinar um dia pela expropriação
do satânico capital e sua nacionalização. Vejo bem, além do mais, que o
alargamento do campo social, em diminuindo a insegurança primitiva da indústria,
permite-lhe satisfazer mais amplamente sua tendência inata à propriedade livre e
divisível, enquanto o progresso da agricultura intensiva tornaria a cultura indivisa
mais impraticável. Mas, de outra parte, o alargamento do campo social permitiu
também associações de proprietários maiores e mais fortes; de outro lado, ele
enfraqueceu o sentimento do direito de propriedade. A propriedade exclusiva,
inalienável, perpetuamente fixa do grupo familiar ou de aldeia, o aperfeiçoamento
agrícola, pouco a pouco, substituiu-a pela propriedade exclusiva também, mas
alienável e móvel do indivíduo. Durante esta mudança, o culto à propriedade perde
muito de sua força; ele abdica de seu caráter absoluto e sagrado, e reveste-se de
uma relatividade que unicamente o ceticismo pode penetrar.
A única questão é saber se as condições favoráveis à propriedade indivisa
estão em via de aumento ou de diminuição, ou se, após haverem desaparecido, ou
parecerem desaparecidas, elas não tenderiam a reaparecer transformadas. Podemos
ter por assegurado que o comunismo familiar ou de aldeia não renascerá, porque o
alargamento do horizonte social se lhe opõe. A intensidade do sentimento que seria
o elo com os tempos antigos, entre parentes ou vizinhos, alimenta-se sobretudo de
seu isolamento em um meio hostil. Deviam amar-se muito entre si, e muito odiar
ao estranho, para viver esta vida incômoda. No presente, deve-se amar nesse nível
todos os co-associados, ou mesmo odiar até esse ponto todos os outros homens,
para que o sonho de nossos comunistas atuais foi realizável; poder-se-ia remeter-
lhes a Utopia de Thomas Morus. À medida que, com efeito, se alargava o círculo
social, o sentimento de confraternidade perdia em intensidade o que ganhava em
extensão. Mas o novo coletivismo é muito menos sentimental, porque não tem
necessidade de o ser. Reflitamos, com efeito, nas outras mudanças produzidas pela
causa indicada. Ela teve, notadamente, aquela conseqüência, qual seja, a de que a
distinção, muito nítida na origem, entre o preço para o irmão e o preço para o
estranho, – o primeiro fixado pelo costume, o segundo, unicamente pela
concorrência, – foi se atenuando e apagando por etapas. Segue-se, – corolário
importante, – que o número de compradores ou de locatários possíveis, aceitáveis
juridicamente, dos bens imóveis não cessou de crescer, os preços de fechamento ou
de venda tornaram-se cada vez menos fraternos, costumeiros, justos, cada vez mais
discutidos e aceitos pela força. Daí uma reação que não pôde faltar de se produzir
contra aquilo que se chama de a exploração do fraco pelo forte, da maioria pela
minoria. E quando a maioria torna-se poderosa a seu turno, quer reformar, com ou
sem razão, este estado de coisas, e conduz-se de modo a socializar novamente as
fontes de riquezas, mesmo as imobiliárias, que um longo progresso anterior havia
individualizado [164]. Lembremo-nos, enfim, de uma consideração precedente e
apliquemo-la. Como cada onda de invenções industriais foi seguida, no passado, de
algum novo modo de apropriação, de alguma modificação no regime da
propriedade, seria muito surpreendente que, no decorrer de nosso inventivo século,
tão fértil em renovações da indústria agrícola, como em todas as outras, a
concepção do direito de propriedade não sofresse uma modificação bastante
profunda.
Uma palavra sobre a prescrição. “A duração requerida para que a posse se
transforme em prescrição, diz Viollet, é muito mais curta entre os povos jovens que
entre as nações avançadas em civilização.” Ela prolonga-se à medida em que a
nação se civiliza. Entre os germanos, antes da introdução das idéias romanas entre
eles, ela era de um ano. Entre os romanos, eles mesmos, no início de sua carreira
histórica, ela era de um e dois anos; mais tarde apareceram prescrições de dez
anos, de vinte, de trinta, de quarenta anos; e foram estas últimas que acabaram por
triunfar. Por que isto? Não vou procurar todas as causas. Mas não é evidente que
uma das principais é o progresso da arte de escrever e o hábito de registrar no
curso do desenvolvimento civilizador? Entre os primitivos, que são iletrados, não
se saberia combater uma posse recente senão pela prova verbal de uma posse mais
antiga, e a natureza desta prova é a de tornar-se rapidamente menos probante e
mais perigosa ano a ano. Mas quando a prova escrita de uma propriedade pôde ser
fornecida, a segurança e as garantias de verdade que ela ofereceu subsistiram quase
as mesmas durante longos anos. A invenção ou a importação e a propagação da
arte de escrever tiveram, pois, uma ação indireta das mais fortes sobre a evolução
histórica da prescrição em muitos países diferentes [165].
Não podemos encerrar sem tocar nas sucessões. É verdade que “o regime
sucessoral, consagrado pelos mais antigos usos da humanidade, seja em toda parte
o mesmo”, e que haja atravessado fases invariáveis? Eu vejo bem que, em geral, as
filhas são excluídas, assim como os ascendentes; – concílio que acarretará ao
matriarcado a primeira dessas duas exclusões [166]. Mas vejo também o Direito
nascente, entre diversos povos, hesitar entre a sucessão colateral e a sucessão
direta. Quando um homem morre, não se sabe muito se é seu irmão ou seu filho
que lhe deve suceder. E como sair desta enrascada? Ocorre sempre que o direito do
descendente seja preferido, finalmente, àquele do irmão? Não [167]. Na Arábia e
entre os astecas é o colateral que prevalece. “Em nossos dias ainda, – diz Viollet, –
na Turquia, como outrora em Kief, o Sultão tem por sucessor, não seu filho, mas
seu irmão ou seu tio.” O rio da evolução tem, pois, seus deltas, suas bifurcações
fortuitas. Outro exemplo. No início, entre os bárbaros, a eleição e a hereditariedade
partilhavam confusamente a devolução do poder real. Oscila-se entre um ou outro
desses dois princípios. Mas qual dos dois fixou-se? Ora um, ora outro. Se o
princípio da hereditariedade prevaleceu em quase toda a Europa, cada vez mais, à
medida em que as monarquias se enraizavam, o princípio da eleição excluiu
alhures seu rival, notadamente na Polônia, por conta do próprio desenvolvimento
da realeza.
Dir-se-á, por acaso, que o direito de primogenitura foi uma fase universal e
necessária do regime sucessoral? Mas ele era desconhecido em Roma e em Atenas
[168]. E eu acredito que Fustel de Coulanges, ele mesmo, viu-se bem embaraçado
para encontrar-lhe o gérmen nas instituições do Império Romano. O mundo
semítico ignorava-o também. O que contribuiu para sua propagação foi o exemplo
das classes superiores, onde se implantou primeiramente. Hoje o direito de
primogenitura é praticado em todas as classes do povo inglês, mas começou como
privilégio da nobreza. Um direito opositor ao direito de primogenitura, o direito de
juveigneur, existia entre os germanos, os celtas, os tártaros nômades e outros
povos.
É sobretudo a propósito das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou
poder ter seqüência. D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à
hereditariedade fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade [169], à geração
alternante, à pangênese [170] de Darwin, à perigênese [171] de Hoeckel, e tudo
para justificar dessa sorte o direito à herança. Eis seu raciocínio: se está
demonstrado que as virtudes, os vícios, as doenças, os caracteres quaisquer se
transmitem hereditariamente, está provado que os bens devem se transmitir da
mesma maneira [172]. Aliás, por uma razão biológica que me parece melhor, ele
trata de mostrar que o direito de sucessão e o direito de propriedade são, no fundo,
idênticos. Mas, com argumentos desse gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto
de que a criança é a continuação fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do
plasma germinativo”, de acordo com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho
responsável por todas as contratações e todas as faltas do pai. As sociedades
primitivas, eu reconheço, bem antes de toda iluminação antropológica, editaram
essa solidariedade familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em
romper esse feixe natural, para permitir a esses elementos disjuntos a formação de
associações verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a
necessidade de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos
naturalistas. É necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim
de curvar servilmente, às exigências de seu organismo, suas instituições sociais,
mas a fim de empregar este conhecimento na realização de fins sociais, de
desígnios coletivos, mesmo quiméricos às vezes, de planos de reorganizações
nacionais ou humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único
a poder fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais. Nascidas das
funções vitais, as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e
subjugando a seu turno [173]. O homem social faria bem em conhecer a ciência
enciclopédica, seu querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga
medida, numa medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado
sua onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? –
perguntar-se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo
saberia. Eu digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se
satisfazendo, sua ambição mais elevada, aquela de conhecer. O universo inteiro
não apresenta à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a
ela criar seu objetivo. Ela o criará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a
si própria, penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única,
estendendo-se socialmente, pela luta e pelo amor, de onde eclodem as inspirações
ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas, do fundo do coração.

Capítulo Cinco
Obrigações
I. Erros acreditados. Pretendida ausência do contrato
primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações.
II. Obrigações contratuais. Sua antigüidade. Freqüentes
entre os membros do grupo social primitivo, raras de
grupo para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções,
“pleiges”. O executor contratual no Egito e na Grécia.
Arras. Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas
escriturais, abrandamento de cerimônias,
aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das
penalidades e dos procedimentos. Faculdade de
retratação. Causas de nulidade. III. Obrigações não
contratuais. Sua proporção é crescente? Importância
teórica exagerada da idéia de contrato. A vontade
unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato,
comando reflexo e recíproco. IV. Obrigação nascida da
combinação de uma vontade com um juízo. Leis de
causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo
intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral.
V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma
mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do
silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação,
do mesmo modo, nítidas e gerais.

I. Erros acreditados.
Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções.
Verdadeira fonte das obrigações.

Após os desenvolvimentos precedentes, o que vamos dizer sobre as


obrigações já se pode adivinhar; mas um assunto tão interessante merece que nos
detenhamos. Eis qual foi, segundo d’Aguanno, o ponto de partida da evolução.
“Num primeiro período, o grupo humano agia como um único todo; e, do mesmo
modo que não se concebia então a propriedade privada e que a noção de
personalidade e de liberdade era extremamente fraca, de forma semelhante, as
relações obrigacionais não tinham lugar senão de grupo a grupo, reduzindo-se a
trocas de objetos materiais.” Esta maneira de ver, que parece tão natural e que é tão
falsa, inspira-se no erro fundamental que viciou, nós o sabemos, a história da
penalidade. Faz-se partir da troca internacional a história das obrigações, em
virtude do mesmo ponto de vista que faz partir da vingança, exercida de tribo à
tribo, de família à família, a história da pena. Lançando o olhar, ao contrário, às
relações interpessoais de homem a homem no grupo primitivo, percebe-se que o
castigo, tal como nós o concebemos, era conhecido. Do mesmo modo, se se quiser
bem imaginar que os membros da família antiga, malgrado sua estreita
solidariedade, ou, de preferência, em razão de seus liames fraternais, contraindo
necessariamente obrigações em conjunto, emprestavam-se freqüentemente seus
utensílios e suas armas, trocando seus rebanhos, suas presas, suas peles de animais,
suas grutas talvez, reconhecer-se-ia que eles teriam possuído, para seu uso interno,
uma noção de obrigações de outro modo tão rica e complexa que não se imagina,
de acordo com a consideração exclusiva de suas relações com os
estrangeiros. É, pois, infinitamente provável que nenhum dos quatro
contratos romanos, – do ut des, do ut facias, facio ut des, facio ut facias, – fosse
ignorado no seio da mais antiga corporação doméstica. Estejamos mesmo seguros
de que o análogo às nossas vendas a crédito, quer dizer, a troca a crédito, deve ter
sido praticada, e tanto mais praticada quanto mais forte era o espírito de união.
Com qual direito supor, com o sábio professor italiano, que a troca de objetos
materiais foi a única conhecida pelos primitivos, que jamais, até as épocas mais
avançadas da civilização, trocaram um objeto contra um serviço ou serviços entre
eles? Eu admito esta hipótese, se se quiser, a toda força, não considerar senão as
relações externas dos selvagens ou dos bárbaros; acrescento mesmo que a
observação se aplica também ao comércio exterior das nações mais civilizadas.
Esse grande negócio, quando aparece pela primeira vez entre dois povos que
anteriormente não tinham relações comerciais, por exemplo, entre a Inglaterra e o
Japão no decorrer deste século, começa por não ser senão uma troca, uma troca de
mercadorias contra mercadorias, como devem ter sido as primeiras relações
comerciais entre dois selvagens de tribos diferentes. Além do mais, ele consiste,
como nestas, num pequeno número de operações; e, nesse sentido, mas apenas
nesse sentido, não tendo em conta senão as relações exteriores, é exato dizer que os
contratos eram quase desconhecidos na origem. Não é menos exato acrescentar,
sempre a respeito desse mesmo ponto de vista incompleto, que, exclusivamente
reais no início, esses contratos tornaram-se mais e mais consensuais e, ao mesmo
tempo, mais e mais numerosos. À medida em que se desenvolve o comércio
marítimo entre duas nações, sua desconfiança mútua se dissipa, e elas correm mais
corajosamente o risco de negociar a crédito. Assim, existe uma verdade parcial e
relativa na idéia de Sumner-Maine sobre a ausência primitiva de contratos, e nesta
asserção de Dareste, de que “os contratos reais precederam em toda parte os
contratos consensuais”. Mas quer isso dizer que, no interior do círculo social,
variável a cada época e crescendo sem cessar, no recinto da família, do clã, da
casta, da cidade, da pátria, as convenções não hajam sido nunca raras, e que o
simples consentimento nunca foi impotente para selar um contrato, sob o império
da confiança habitual e sob a autoridade do pai de família, do chefe, do senhor, do
rei? Relata-se, – ou deseja-se, – tomar aqui, por duas fases sucessivas do Direito,
dois ramos diferentes e sempre coexistentes do tronco jurídico.
A grande, a incontestável lei histórica é, – eu repito, – a tendência do círculo
mágico do qual falei, em alargar-se incessantemente, e é também a realização
progressiva desta tendência por tanto tempo enquanto não sobrevêm as catástrofes
que aniquilam uma sociedade. Este progresso que, – nós o sabemos, – deve-se à
atividade contínua da imitação sob suas mil formas, é a causa principal das
transformações cumpridas no modo de compreender e de praticar o Direito relativo
às Obrigações. Uma outra causa é a atividade intermitente da invenção, que tem
por efeito fazer nascer ou fazer desaparecer muitas espécies particulares de
contratos ou de obrigações não contratuais, muitos modos de provas ou de
execuções. O arrendamento de terras não se tornou concebível senão após as
invenções agrícolas; o aluguel de casas, senão após as invenções arquiteturais. Não
se aluga uma tenda. O empréstimo a juros supõe a invenção da moeda e de todas as
indústrias que dão importância ao capital monetário. O contrato de homenagem
feudal desapareceu pouco a pouco, substituído por mil novos contratos
incompatíveis com ele e suscitados por nossa inventiva civilização moderna. A
invenção da escrita sugeriu a prova por escrito, o notariado, o registro (do qual
somos devedores aos atenienses, parece). Ela rechaçou e fez desaparecer a prova
por juramento ou por co-juradores. A invenção da imprensa valeu-nos os anúncios
judiciários. Aquela do correio e das estradas de ferro pede-nos, talvez, a
substituição dos bedéis, como agentes de execução, pelos carteiros. A invenção da
fotografia pede-nos já a confiança ligada à reprodução fotográfica de atos dos
quais a minuta se perdeu, etc. À vista dessas duas ordens de considerações
intimamente entremeadas, explicam-se, sem trabalho, os caracteres com que as
obrigações têm se revestido sucessivamente, e que os historiadores do Direito
tiveram a sagacidade de descobrir. Mas falemos primeiro das obrigações
convencionais apenas, dos contratos.

II. Obrigações contratuais.


Sua antigüidade. Freqüentes entre os membros do grupo
social primitivo, raras de grupo para grupo.
Responsabilidade coletiva. Cauções, “pleiges”. O
executor contratual no Egito e na Grécia. Arras.
Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas
escriturais, abrandamento de cerimônias,
aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das
penalidades e dos procedimentos. Faculdade de
retratação. Causas de nulidade.

Sempre e em toda parte, quando dois homens contratam um com o outro,


sejam concidadãos, sejam estrangeiros, têm prevista a violação possível de suas
contratações, e estão mais ou menos prevenidos contra esta eventualidade. Mas a
natureza e o rigor das precauções tomadas diferem de uma parte, segundo o
contrato haja sido firmado entre um concidadão e um estrangeiro, ainda que esta
diferença tenha se atenuado, à medida em que se distanciava o limite do grupo
social; porque, em se ampliando o limite do grupo, essa proteção diminui. E, de
outra parte, as precauções variam a cada novo grau dessa ampliação progressiva.
No fundo, a única garantia verdadeira é o apoio moral ou material, provável ou
assegurado, dos co-associados sob os olhos dos quais os contratantes se obrigam.
Enquanto não se pensava em contratar fora dos muros cerrados dos vaus
familiares, este apoio era certo; e a segurança, em sendo obtida imediatamente pela
adesão espontânea que dão às convenções um público de parentes, sobreviverá
muito tempo sem qualquer escrito. Mas quando a federação de famílias de um
burgo, de um burgo da cidade, das cidades de um Estado, aumenta por graus este
público, torna-se cada vez mais difícil ter o todo inteiro por testemunha e por
garantia. Procuram-se e criam-se [174] meios variados de provar a obrigação de
outrem em casos de denegação, e de executá-la em casos de vontade viciada. É
sempre graças a algum desses novos procedimentos que um gênero de contrato,
precedentemente encerrado nos muros da família, ou do clã, ou da corporação
citadina, aventura-se a sair e esforça-se por se aclimatar fora.
Quando o empréstimo de consumação, o empréstimo de uso, o empréstimo
em geral tentou fazer portanto sua estréia no mundo, seu início deve ter sido
facilitado pela idéia da garantia ou, mais tarde, pela dos interesses usurários. O
empréstimo puro e simples, sem garantia, sem interesse, foi seguramente muito
usado entre os primitivos, mas apenas entre pessoas da mesma tribo ou da mesma
casta, como ocorre ainda em nossos campos, onde, entre vizinhos, entre primos, os
utensílios domésticos são emprestados quotidianamente. Estejamos seguros de que,
na Roma primitiva, era o mesmo, e que os membros de cada gens se emprestavam
gratuitamente toda sorte de objetos. Mas, em revanche, quando se emprestava fora
de sua gens, quando o patrício emprestava ao plebeu, a usura maltratava, desumana
e feroz, à la Shylock [175]. O curso da civilização teve por efeito abrandar esse
contraste. De uma parte, rareou os empréstimos gratuitos e generalizou os
empréstimos a juros; de outra parte, abaixou ou nivelou a taxa de juros, sob a
influência de causas complexas, é verdade, porém, em parte, por conta de uma
crescente reprovação atrelada à exploração de homens tornados ou reconhecidos
nossos semelhantes. Mesmo em nossos dias, contudo, os europeus permitem-se,
em suas colônias, espoliar sem misericórdia seus devedores indígenas. Na Índia
bramânica, “entre pessoas da mesma casta, – diz Dareste, – os juros não poderiam
ultrapassar o capital; entre pessoas de castas diferentes, o capital poderia ser
multiplicado por 3, por 4 ou por 8”. Muitas legislações antigas, aquelas da Islândia
e da Noruega entre outras, do mesmo modo que a mais antiga legislação romana,
autorizavam o credor a perseguir, com impiedoso rigor, a cobrança de seu crédito:
o devedor insolvente era reduzido à escravidão, para ser constrangido a trabalhar e,
se não trabalhasse, seu dono poderia matá-lo ou mutilá-lo. Mas trata-se aí, – não
duvidemos, – de relações entre pessoas pertencentes a famílias ou a gens
diferentes. Se a lei antiga não fala das relações entre co-associados, é pela mesma
razão pela qual ela nada diz do parricídio às vezes, nem mesmo do adultério; como
os crimes domésticos, os contratos domésticos não eram visualizados. Certamente,
jamais os parentes, os afins, os fiéis de uma mesma confraria teriam ousado
negociar desse modo.
Uma das mais antigas garantias imaginadas para a execução de contratos
exteriores foi a de fazer pesar sobre todos os nacionais uma responsabilidade
coletiva. Por exemplo, na Idade Média, quando um mercador florentino faltava
com a palavra a um lionês, este processava, em Lyon, os mercadores de qualquer
outro mercado de Florença. Está aí uma sorte de vingança comercial exercida sobre
os bens. O penhor, garantia análoga, era uma espécie de refém comercial. A tais
precauções acrescentava-se aquela de exigir o juramento. Mais que qualquer outro
progresso, o progresso das crenças religiosas favoreceu a extensão do sentimento
fraternal e, por conseguinte, a expansão dos contratos fora de seu berço estreito. O
juramento era um sacramento. O violador politeísta da fé jurada temia o raio de
Júpiter. Quanto um árabe seria ardiloso e mais desrespeitoso de sua palavra
empenhada ao estrangeiro, se não fossem os preceitos morais do Alcorão! Será
muito seguro que o hábito de respeitar as contratações teria, algum dia, se
enraizado na humanidade, se não houvesse a idéia de contratar diante de fetiches,
ou da família, ou da tribo, diante do altar dos deuses, do túmulo dos marabutos
[176], das relíquias dos santos?
Outra precaução: o uso de cauções, de coobrigados solidários, tanto mais
geral quanto mais alto se remonta ao passado. Eram parentes muitas vezes. Viu-se
aí, e provavelmente com razão, um resto da antiga solidariedade familiar; mas isso
mesmo prova que se tratam de contratos com estrangeiros, porque não se poderia
estar completamente tranqüilo neste caso, senão através da participação de todos os
membros das duas famílias, na contratação de cada um deles. Mas, nas relações
interiores dos parentes, em seus engajamentos mútuos, esta exigência foi inútil e
mesmo absurda. Como o corpo inteiro da mesma família teria podido tornar-se
solidário ao mesmo tempo em obrigações contraídas por Pedro em relação a Paulo,
e por Paulo em relação a Pedro? A este uso, atrela-se uma particularidade do
Direito grego primitivo, que se encontra também no Direito egípcio e no Direito
persa: “para que houvesse contrato obrigatório, diz Dareste, não era suficiente o
acordo entre duas vontades, era necessário, em geral, que um terceiro interviesse e
prestasse caução.” Daí essa singularidade aparente que, nos contratos de venda
gregos, – descrobriu-se-os em grande número em Delfos, – o seguro contra a
evicção é prometido, não pelo vendedor ele mesmo, mas por um garante chamado
provendedor. Eis aí uma espécie de executor contratual, como vemos ainda os
executores testamentais.
É de crer que as primeiras vendas a estrangeiros devem ter sido feitas à vista.
Depois, quando se estava menos disposto a desconfiar deles, seguiu-se a idéia das
vendas a crédito que, aliás, deviam praticar-se desde há séculos no grupo social, já
que havia aí o hábito do empréstimo que supõe a confiança. A transição da venda
à vista até a venda a crédito devia, nessas relações externas, operar-se pelo
pagamento imediato, não da totalidade, mas de uma fração, primeiro considerável,
a seguir, mínima, do preço. Daí, sem dúvida, o uso das arras. As arras, entretanto,
podem haver existido às vezes desde a origem, e, com toda certeza, adquiriram
mais tarde outra significação. Observemos que, muitas vezes, elas são, não um à
vista pago sobre o preço, mas uma sorte de gratificação de mercado, o pagamento
da pequena festa de albergue destinada a torná-las públicas; alguma coisa como
nossos direitos registrais. Elas faziam parte dessas cerimônias que acompanhavam
o antigo contrato de venda, e onde não era permitido ver senão os meios de dar à
transmissão da propriedade toda a publicidade possível. Porque os meios variam,
mas o fim permanece o mesmo. Quando essas formalidades bizarras
desapareceram, elas foram substituídas; e, se se diz agora, em princípio, que a
venda é perfeita unicamente pelo consentimento, sujeita-se este último, de fato, à
formalidade nova e mais custosa da transcrição, sem a qual a venda não é oponível
a terceiros. No fim, como no início de sua evolução, o contrato de venda é
essencialmente formalista. Assim como a venda à vista, as arras são um sinal
simbólico de tal forma natural, que bem podem ter sido espontâneas desde o início.
Elas simbolizam a tradição futura do preço, ao mesmo título que a entrega de um
torrão de terra ou de um tufo de erva simbolizam a tradição atual ou futura do
campo ou do prado vendido. Tomar a parte pelo todo ou, antes, exprimir o todo
pela parte, isso é o que, em retórica, chama-se uma figura; e esta figura tem curso
espontaneamente também em mitologia, em política, em poesia, assim como em
Direito. Do mesmo modo como se diz cem velas por cem navios, ou dez fogões por
dez casas; do mesmo modo como Aníbal [177], depois de Canas, envia ao senado
de Cartago um alqueire [178] de argolas de ouro, para indicar o número de
cavaleiros romanos mortos nesta gloriosa batalha; do mesmo modo como o rei
personifica o Estado e o embaixador personifica a nação, e que um ultraje feito ao
embaixador é considerado como feito à nação inteira; do mesmo modo como as
jovens gregas depositavam uma mecha de seus cabelos sobre o túmulo de seu
amigo, para simular o sacrifício fúnebre de sua pessoa inteira, e que, ainda em
nossos dias, entre os ossetos [179] do Cáucaso, em lugar de imolar, sobre o túmulo
de um homem, seu cavalo e sua mulher, atira-se lá um punhado dos cabelos de
uma e das crinas do outro; de modo semelhante, o comprador primitivo, para
mostrar que estava disposto a pagar todo o preço da venda, remete ao vendedor
uma porção insignificante deste. Mas será isso dizer, como se diz, que em toda a
parte onde nós vemos as cabeleiras femininas ou as crinas atiradas sobre um
túmulo, haja-se começado por imolar mulheres ou cavalos, e que, em toda parte
onde nós vemos pagarem-se arras, haja-se começado por não vender senão à vista?
Isso não está bem demonstrado. Diz-se muito também, sem prová-lo tampouco,
que a encarnação nacional do rei foi, em toda parte, precedida do governo popular
direto. Será certo que figuras de retórica nada tenham de primitivo [180], e que não
pareça que elas abundem sobretudo entre os iletrados, como os tropos [181]
jurídicos no Direito antigo? Porque o tropo do qual venho de falar não foi o único
que floresceu. A hipérbole, que é quase o inverso do precedente, não serviu, em
Direito criminal, para a exageração das expressivas penalidades do talião
crescente? A metáfora, não existe ela por efígie durante as execuções e as ficções
do Direito civil? Não nos esqueçamos de que a lei é a poesia dos povos-crianças,
que muitas vezes não têm outra: cantam-na em versos, estudam-na com amor, e,
ainda durante a Idade Média, deram-se às coletâneas de Direito nomes afetuosos,
na França, na Alemanha, entre os Árabes: o Espelho de Souabe, o Espelho de Saxe,
a Flor de Magdebourg, a Beleza Sorridente das Coleções. Imaginem-se nomes
semelhantes dados às coletâneas de Sirey ou de Dalloz! – De resto, não arrisco tais
considerações senão a título de conjecturas, como também o são muitas
interpretações mitológicas ou outras, – às quais elas arruínam, eu convenho, – e
que não parecem repousar sobre provas muito mais sólidas.
Acrescento que estou longe de contestar, em muitos casos, a legitimidade
das induções, nas quais combato unicamente a generalização abusiva. Opera-se a
esse respeito, na vida do Direito, um fenômeno análogo àquele que nós
observamos na vida da linguagem, da religião, da indústria, da arte, e que se liga à
perseguição universal e constante de um máximo de utilidade com um mínimo de
esforço. Esse objetivo não se obtém freqüentemente senão pela passagem do todo à
parte e da coisa significada ao signo. Desse ponto de vista, é interessante comparar:
1º) o que os filólogos chamam de a lei do abrandamento fonético: a tendência
preguiçosa em contrair e abreviar as palavras usuais, reduzi-las a uma pequena
parte delas mesmas, que se tornam, por assim dizer, um símbolo do todo; 2º) a
abreviação da escrita, não menos demonstrada; a escrita hieroglífica torna-se,
pouco a pouco, a escrita demótica, mais rápida e mais fácil; 3º) o abrandamento
dos ritos, notadamente dos sacrifícios, com as vítimas humanas sendo substituídas
por imolações de animais, reais no início, depois simulados e, enfim, por oferendas
vegetais; 4º) os aperfeiçoamentos industriais, no mesmo sentido; 5º) enfim, o
abrandamento das penalidades e também dos processos, a despeito de sua
multiplicação: o talião a fazer-se substituir, com o tempo, pela composição
pecuniária; os castigos atrozes do antigo regime, a fazer-se mitigar por graus até
nossas confortáveis prisões; as antigas formas, tão incômodas e tão fatigantes, da
tradição das coisas vendidas, a fazer-se simplificar gradualmente, a ponto de
tornarem-se o “simples dar-se as mãos, o concurso de duas mãos que se
aproximam, uma para dar, outra para receber”. (Dareste.) Tais analogias são muito
naturais e explicam-se muito facilmente, para que se torne útil determo-nos por
mais tempo.
O uso das arras liga-se estreitamente à faculdade de retratar-se, que era tão
habitual no Direito antigo e tão característica. Surpreende-se em ver as antigas
legislações do Oriente, sem falar das nossas, em particular o Direito Muçulmano,
olharem a venda, a doação, o empréstimo de uso, a sociedade, o mandato, o
depósito, mesmo o casamento às vezes, como contratos essencialmente revogáveis
ao nível de uma das partes e malgrado a outra, num certo prazo que foi abreviado
ao longo do processo legislativo. Segundo o Código de Manu, o vendedor tem dez
dias, assim como o comprador, para se arrepender e se liberar; o código bramânico
de Narada, posterior, não dá mais que um ou dois dias. Constata-se, muito
rapidamente, que a idéia do contrato irrevogável faltava em absoluto aos
primitivos, e que, aos seus olhos, a vontade podia sempre desfazer o que havia
feito, a contratação. Isto é esquecer o caráter sacramental que eles atrelavam às
suas convenções, conformes aos costumes tradicionais e concluídas com seus
compatriotas. Sem dúvida, as crianças gostam muito de se liberarem, quando varia
o seu capricho, e ele varia muitas vezes; mas como elas não prevêem nada, nem
mesmo a variação do seu capricho, gostam muito de comprometerem-se de modo
irrevogável. Com os povos-crianças dá-se o mesmo. A idéia de reservar-se o
amanhã, de prever, excepcionalmente, que a venda que é de seu desejo mudará de
direção, não lhes pôde ocorrer antes de suas relações com os estrangeiros, nas
condições de livre concorrência e de mútua traição, onde o costume, o protetor
comum de todos, não intervinha. Aí procuravam-se armar ciladas um para o outro,
sabe-se. Era, pois, natural guardar uma porta de saída, para escapar de um
adversário astuto. Também foi aí, – penso eu, – que a faculdade de se retratar deve
ter nascido, ressalvada a generalização a seguir. Para bem compreender tal
faculdade, não será necessário comparar estas múltiplas escapatórias que as antigas
legislações procuraram para os contratantes, em fazendo, com tempo, a
enumeração dos vícios de consentimento? Não apenas a loucura, a coação, a
embriaguez, o erro são causas de nulidade em Direito Muçulmano [182], mas
ainda a fraqueza de memória, a doença, etc., e mesmo a viagem. Imaginada por um
povo nômade, esta última condição de invalidade tem o ar de uma piada de mau
gosto; mas ela demonstra que se trata, no pensamento do legislador, de atingir
sobretudo aos compromissos contratados com outras tribos, porque era viajando
que se os contatava. Esses primitivos tinham pelos contratos desse gênero,
precisamente o respeito duvidoso que nós dirigimos aos nossos tratados com
potências estrangeiras.

III. Obrigações não contratuais.


Sua proporção é crescente? Importância teórica exagerada
da idéia de contrato. A vontade unilateral. Savigny e os
títulos ao portador. O contrato, comando reflexo e
recíproco.

Chegamos às obrigações que se formam sem contrato. Muito se tem dito e


repetido que a proporção relativa destas, comparadas às obrigações contratuais,
fora diminuindo incessantemente no decorrer da civilização. Na origem, não
haveria senão aquelas, e nós caminhamos na direção de um amanhã onde as outras
serão as únicas reconhecidas. Será verdade? Ouço muito dizer, em toda parte, que
ninguém está obrigado sem havê-lo querido; que o reconhecimento desta verdade é
uma das conquistas do espírito moderno e que, fora da hipótese de um contrato
implícito ou explícito, o estado social desmoronaria como o mundo dos hindus sem
o elefante imaginário que o sustenta. Mas, ao mesmo tempo, dizem-me que devo
obediência a uma multidão de leis nas quais eu jamais teria votado, a uma multidão
de decretos que eu jamais teria assinado. Pergunto-me se o selvagem tiranizado, –
dizem-nos, – pelas prescrições rituais de seus costumes, constrangido à tatuagem,
às vinganças hereditárias, ao culto de seu fetiche, aos usos transmitidos de pai a
filho, como sua língua, e praticados como ela é falada, isto é, simplesmente
sempre, não é mais escravo da vontade de outrem, como o é o mais livre cidadão
de nossas democracias, sob o jugo pesado do imposto, do serviço militar, e sob os
incontáveis volumes dos Bulletin des Lois [183]. Recordo-me de que, em muitos
países atrasados [184] onde, antes da introdução das idéias modernas, não era
suficiente uma maioria de votantes para modificar as leis, mas era necessário o
consentimento unânime dos que estivessem sujeitos à jurisdição. Essa
unanimidade obrigatória mostrou-se entre nós à época merovíngia [185] e
carolíngia [186]. Na Rússia foi o mesmo outrora. Em Montenegro [187] este
princípio “existia nas assembléias políticas populares, substituído, a partir da
metade deste século, por um Conselho de Estado ao estilo moderno”. Entre os
ossetos permanece em vigor. Comparai essa arrogante exigência de nossa dócil
submissão às maiorias eleitorais de algumas vozes, e dizei se a repugnância à
obrigação imposta e não consentida é um sentimento suscitado em toda parte pela
civilização. Tudo o que se pode dizer é que a natureza dos deveres impostos pela
sociedade ao indivíduo não consultado muda com o estado social, com as
transformações trazidas à agricultura, à indústria, às relações políticas, pelas
inovações acumuladas.
O que é verdadeiro também e incontestável é que, primitivamente concebida
como coisa hereditária e inata, transmitida com a vida, a obrigação não contratual
acabou por nada ter em comum com o fato da geração [188]. O crescimento do
grupo social emancipou-o dessa sorte que, nem por isso, é menos tirânica; e não é
menos penoso obedecer a uma maioria eleitoral de confronto, do que contrariar as
prescrições tradicionais dos antepassados. Felizmente, a mesma causa produziu a
transformação análoga das obrigações convencionais. No princípio, não se
acreditava estar obrigado a engajamentos outros que não àqueles contraídos com os
membros de sua família, de seu clã, de sua tribo. Liame de direito e liame de
sangue não eram senão um. A idéia da obrigação, voluntária ou não, ligava-se à
idéia do parentesco e, por conseguinte, ao caráter de intimidade misteriosa e
profunda, indelével e inexplicável, inerente a esta. O indivíduo não tentava mais,
então, raciocinar e discutir seus direitos e seus deveres, adquiridos ou inatos, e não
imaginava perguntar-se por que estava obrigado. Este era um problema
fundamental, diante de cuja majestade ele se inclinava. Pouco a pouco, todavia,
quando as relações comerciais com as tribos exteriores se multiplicaram, fez-se
sentir a necessidade de estender-se, aos contratos com o estrangeiro, o caráter
obrigatório das convenções estabelecidas com os parentes naturais ou adotivos. E
esta necessidade se fez tanto mais intensa quanto o progresso das trocas de
mercadorias e de exemplos, assimilando os povos em contato, fazendo ampliar a
família humana e criar o sentimento da fraternidade aberta. O vinculum juris é
assim estendido e exteriorizado. O vinculum juris é uma coerção que se
fundamenta sobre uma coesão social e uma atração simpática. Assim, vê-se, não é
precisamente pela proporção das obrigações contratuais e não contratuais que as
fases primitivas do direito contrastam com as subseqüentes; é pela fonte, quase
exclusivamente vital no início, quase unicamente social no fim, das obrigações
formadas com ou sem contrato.
Somente que a evolução não parou aí; é por havê-lo esquecido que se é
levado, pela transformação gradual da qual venho de falar, a admitir, sem reflexão,
uma teoria filosófica das obrigações, onde não se tem em conta que, no contrato, e
onde, dentro do contrato, não se vê senão o concurso de duas vontades livres
quaisquer, sem nenhum olhar às exigências imperativas, permanentes ou
cambiantes, do meio social em que estas vontades concorrem, e que é o único
onde elas podem concorrer. Acaba-se por se persuadir que esses concursos de
vontades são o único fundamento racional dos deveres e dos direitos e que, em
toda parte onde há direitos e deveres verdadeiros, deve-se descobrir, procurando
bem, algum contrato preciso ou confuso, explícito ou implícito.
À primeira vista, nada de mais claro nem de mais plausível. Mas reflita-se:
Onde está a razão de pensar, porque duas ou mais vontades estiveram um instante
de acordo, que elas deverão estar necessariamente sempre, e que a força pública, o
conjunto das outras vontades cercantes, deverá sancionar e garantir este acordo, se
ele permanecer estrangeiro, eu digo mesmo hostil? Onde está a razão de pensar
que o único caso em que minha vontade expressa torna-se irrevogável, não pode
mais ser retratada, malgrado as mudanças ulteriores, mesmo as mais motivadas de
meu querer, é aquele em que qualquer um ao mesmo tempo que eu, quer aquilo
que eu quero, e faz-me sabê-lo? No entanto, esta teoria, mediante certos
contrafortes de sofismas, pôde sustentar-se por tanto tempo quanto as relações dos
indivíduos entre eles, ainda que consideravelmente estendidas para fora do grupo
primitivo, não estavam ainda bastante desenvolvidas para cessar de serem
pessoais. Explico-me: enquanto, – visto o fraco progresso das comunicações, a
clientela, por exemplo, é pouco numerosa e resumida a um estreito raio, – o
produtor conhece pessoalmente todos os consumidores aos quais se endereça. Um
sapateiro não trabalha senão para tais e tais clientes, de quem ele conhece os nomes
e as feições; ele não trabalha ainda para um cliente anônimo. Assim é com o
padeiro, com o açougueiro, com o alfaiate, etc. É o mesmo, em tempos mais
próximos ao nosso, com os próprios jornalistas. Por muito tempo, no século XVIII,
Grimm redigiu um jornal manuscrito que se endereçava a uma vintena de cabeças
coroadas. Ele trabalhava para elas pessoalmente, não para o público. Mas, quando
a imprensa tomou seu impulso, quando as estradas de ferro sulcaram os
continentes, quando, por causa das grandes invenções, apareceu e cresceu a
importância deste personagem impessoal que se chama o público, – e o público
está em via de se tornar, na comédia contemporânea, como o coro da tragédia
grega, o principal interlocutor, ao qual se nos endereçamos, e que vos responde, ou
não vos responde, – as condições sociais que haviam feito florescer a teoria do
contrato foram profundamente alteradas. Tal teoria mostra então toda sua estreiteza
e sua insuficiência. Inicialmente, com efeito, como não havia negócios em geral
senão com pessoas consideradas uma a uma e separadamente, o contrato clássico
poderia passar pela mais importante, senão a única, fonte das obrigações. Mas, no
presente, se a lei e, melhor ainda, a prática judiciária, o costume comercial e social,
mais avançado aqui que a lei, não devessem sancionar as contratações tomadas em
relação ao público, senão a partir do momento, unicamente, onde tal pessoa
designada as aceita e faz conhecer sua aceitação, e nada senão que à vista desta
pessoa, a maior parte dos negócios, a totalidade dos grandes negócios, seria
impossível. Em casos que se vão multiplicando, está-se, pois, obrigado, por
romanista encarniçado que se seja, a conceder força jurídica às promessas ainda
não aceitas. Sem cessar, multiplicam-se os engajamentos em relação a pessoas
indeterminadas que, bem entendido, não saberiam aceitar aquilo que elas ignoram;
sem cessar, multiplicam-se os títulos ao portador, os seguros de vida, os anúncios,
os prospectos. Todas estas inovações, suscitadas pelas idéias geniais próprias a este
século, ou aos séculos anteriores, tendem, manifestamente, a relegar ao segundo
plano o contrato que, na época romana clássica, era, sem contradita, o primeiro.
A profunda obra de Savigny sobre o Droit des Obligations descreve às
maravilhas a enrascada inextricável dos romanistas diante das inovações frente às
quais se inquietam. Mais lógico do que a maior parte de seus colegas, este autor
confessa que é impossível fazer entrar essas novas espécies nos quadros clássicos.
“Muito se tem tentado, diz ele, fazer intervir neste estudo (aquele dos títulos ao
portador, sobre os quais ele se estende longamente) o Direito Romano; e, ainda que
seja certo que os romanos não tenham conhecido, de modo algum, os títulos ao
portador, poder-se-ia crer, entretanto, que alguns princípios do Direito Romano
fossem aplicáveis à instituição em questão. Mas os princípios da representação ou
do crédito a adquirir por uma terceira pessoa não podem se aplicar aqui senão de
uma maneira arbitrária e forçada, pois que, entre os romanos, estes princípios eram
constantemente estabelecidos com relação a pessoas determinadas.” Também
Savigny conclui, – com pesar, – como ele deve entender a questão de acordo com
as suas idéias. Quando, em um título, “o devedor obriga-se a pagar ao portador,
quem quer que ele seja”, será uma tal operação jurídica válida? – pergunta-se ele.
“Muitos autores a declaram válida; outros, ao contrário, e os mais autorizados,
têm-na por nula; e eu mesmo, de acordo com a regra estabelecida acima, eu devo,
de forma semelhante, pronunciar-me pela nulidade. Nem a prática da
jurisprudência, nem o interesse dos negócios, por considerável que ele seja, podem
certamente fazer declarar válida, de um ponto de vista abstrato, esta
operação.” (Tomo II, página 250 da tradução francesa. Ver também páginas 238,
274, 277, etc.) Quando se vê um jurista desta envergadura reduzido a tais extremos
por sua própria lógica, não restam mais dúvidas sobre a insuficiência dos
princípios que o guiaram.
Além do mais, deve-se reconhecer um mérito a propósito de uma nova teoria
filosófica do Direito, que faz seu caminho na Alemanha [189]. Não é, de acordo
com ela, o encontro de duas vontades que é o criador da obrigação: é a emissão de
uma vontade única, mesmo antes que se haja realizado o ato. E, no próprio
contrato, se se o analisar a fundo, não se encontrarão dois objetos perfeitamente
distintos, e não apenas um, como erroneamente se afirma? E não existem aí duas
vontades que, por estarem enlaçadas, não deixam de produzir efeitos até certo
ponto independentes um do outro? No contrato epistolar, cada vez mais freqüente,
“é quimérico, diz René Worms, procurar o momento em que as duas vontades se
encontram, visto que, uma vez que o ofertante faz sua oferta, ele não deseja mais:
sua volição continua a portar efeito, mas, enquanto fato psicológico, ela cessa de
existir. Por outro lado, quando a outra parte escreve sua carta de aceitação, ela
esquece também; e, no momento em que a carta é recebida, ela liga “o ofertante,
que não tem mais a intenção de oferecer, que – talvez mesmo – arrependeu-se de
sua oferta”, e liga o aceitante, que – talvez também – arrependa-se já de haver
aceito. A simultaneidade de duas vontades, condição necessária de seu encontro,
não existe pois, ou não existe senão por uma ficção de jurista sutil [190], no caso
do contrato por correspondência. De fato, a simultaneidade não existe quase
nunca; ela se torna cada vez mais fictícia e realizável com a facilidade crescente de
contratar a muito grandes distâncias. Não se saberia dizer quanto esse velho
preconceito do contrato considerado como a verdadeira fonte das obrigações tem
entravado a marcha do Direito.
A verdade é que toda obrigação, contratual ou não, decorre, antes de tudo, de
uma alta e profunda vontade unilateral, aquela do senhor, seja do senhor
hereditário e semidivino, seja do senhor eleito e profano, que legifera como bem
lhe parece. Esta é a única origem das obrigações constituídas sem contrato. Quanto
às obrigações convencionais, elas derivam primeiramente desta grande vontade
unilateral, que se chama a autoridade pública, e, a seguir, da pequena vontade
unilateral de cada um dos contratantes que, à semelhança daquele comando
exterior e superior, – e aliás conforme à latitude que o subjuga, – comanda-se a si
própria, por sua vez senhora e serva, e comanda-se a obedecer ao comando de
outrem. Aí está toda singularidade do contrato: ele é o gosto de comandar-se,
nascido, por imitação, do hábito de ser comandado; ele é, não apenas o comando
reflexo, mas o comandamento recíproco [191], voluntariamente sofrido em
conformidade com uma vontade exterior, sofrida involuntariamente [192].
Mas, – eu convenho, – tudo isso não explica em nada a idéia da obrigação. É
necessário descer mais para encontrar suas raízes. De onde vem o comando,
exterior ou interior, a virtude obrigatória que ela, obrigação, reveste perante nossos
olhos em certos casos, não em todos os casos? A idéia da vontade unilateral não é
mais explicativa, no fundo, do que a velha noção do contrato. No momento em que
se diz que minha própria vontade me obriga, esta vontade não é mais minha; ela
me é tornada estranha; de sorte que é exatamente como se eu recebesse uma ordem
de outrem. Receber do pater familias, do cônsul, de um ministro, de um guarda
campestre, uma ordem que me desagrade, ou receber de meu eu passado uma
ordem que não me desagrade menos: Onde está a diferença no que concerne ao
meu interesse atual? Meu querer passado, que não é mais meu, mas que, no
entanto, se impõe a mim, e que me pode ser oposto, é comparável à vontade dos
ancestrais que dirige os vivos. Ora, quando se deve, e por que se deve obedecer a
um comando, seja interior, seja exterior? Eis, – eu repito, – a questão.

IV. Obrigação nascida da combinação de uma vontade com um


juízo.
Leis de causação e fases da evolução a distinguir.
Silogismo intelectual, lógico, e silogismo prático,
teleológico, moral.

Não a resolveremos jamais, se não quisermos ver aqui os desejos, as


vontades presentes. Existe ainda outra coisa: as crenças, as opiniões. E isso não de
uma vontade, não do encontro de duas vontades, mas antes da combinação de uma
vontade com um julgamento, de um desejo com uma crença que nasce da idéia do
dever de ação, germe essencial da idéia da obrigação. Esta combinação se opera
em virtude de um silogismo despercebido de todos, tanto ele nos é familiar a todos,
e que se pode chamar silogismo moral. Permita-se-nos entrar aqui em alguns
breves desenvolvimentos. A teoria das obrigações é, em jurisprudência, aquilo que
a teoria do valor é em economia política: o problema central de onde escoam, por
todos os declives, as discussões, o que não quer dizer o ponto de convergência
necessário e inevitável de todas as evoluções. As obrigações são concebidas pelos
jurisconsultos árabes [193] de maneira completamente diferente que pelos
jurisconsultos romanos, a despeito da própria influência exercida por estes sobre
aqueles na Ásia menor; e nada autoriza afirmar que a elaboração jurídica dos
primeiros, tanto ela foi prolongada, tanto foi julgada fechada, acabada e perfeita, a
partir do segundo século da Hégira [194], seria mais aproximada do pensamento
dos segundos. Não é mais certo, senão provável, que, se as especulações
embrionárias de Xenofontes [195] e de outros filósofos gregos sobre a menagem
[196], se desenvolvessem a ponto de fundar uma ciência da Economia Política tão
elaborada quanto a nossa, eles teriam sido conduzidos, através dos meandros de
seu pensamento sutil, a uma noção de valor idêntica àquela de Adam Smith ou de
Bastiat [197]. Mas não é menos exato pretender que não existe, que não pode haver
existido, em um sentido muito geral, senão uma só e mesma teoria verdadeira das
obrigações, que uma só e mesma teoria verdadeira do valor, como não é possível
senão uma só e verdadeira fórmula de atração astronômica. Não se nos enganamos,
supondo que o caráter essencial de uma teoria física, se ela é verdadeira, é o de
aplicar-se, de maneira idêntica, a todas as evoluções astronômicas ou geológicas
mais dessemelhantes; e não se nos enganamos tampouco, ao pensar que o caráter
essencial de uma teoria filosófica das obrigações, ou de uma teoria filosófica do
valor, se forem justificadas, é o de aplicar-se a todas as evoluções sociais,
quaisquer que elas sejam[198].
Há, com efeito, duas espécies de leis às quais se é levado a confundir em
nossos dias: as leis de causação e as pretendidas leis da evolução. As primeiras são,
por sua vez, precisas e sem exceção; verificáveis em todos os tempos e em todo
lugar, elas dão trato a similitudes rigorosas de produção, os mesmos fenômenos se
reproduzem, quando as mesmas condições se produzem. As segundas são sempre
muito vagas, se se quiser que elas se adaptem à totalidade, ou à quase totalidade
dos casos, ou, se se as quiser precisar, por pouco que seja, elas são corroídas de
exceções. Infelizmente a confusão destas duas espécies de regras tão diferentes
favoreceu à ambigüidade abusiva da palavra lei. De sorte que, com medo de anular
o alcance universal das primeiras, acreditamo-nos obrigados, muitas vezes, a
universalizar erroneamente o alcance das segundas, ou bem vice-versa. Contudo,
foi provado que os sistemas solares, esparsos nos céus a partir de sua nebulosa
inicial até seu término ignorado, evoluem muito diversamente, e que a fórmula
geral de sua evolução têm-se por permanecer extremamente desprezível e quase
insignificante. E isto abalaria de algum modo o mundo da verdade das leis
mecânicas e da lei newtoniana? E as leis físicas e químicas, não são elas reputadas
imutáveis, ainda que a evolução dos seres vivos, regidos por elas, contenha o que
há de mais variado de espécie à espécie, e mesmo de indivíduo a indivíduo? É
irritante que, em ciências sociais, não se tenha visualizado esta distinção; em
economia política sobretudo. Não é sem razão que os fundadores desta ciência têm
procurado, na ordem destes fatos, regras comparáveis às leis físicas, por sua
constância e sua universalidade. Não a têm nomeado, desse ponto de vista, “a
física social”? A teoria do valor, se ela fosse formulada em termos psicológicos, –
porque a psicologia é, para as sociedades, o que a química é para os seres vivos, –
teria o caráter das leis de causação. Mas, confundindo-as com estas, os
economistas emitem outras que não apresentam senão uma verdade circunstancial.
Em nossos dias, por conta da moda darwiniana e spenceriana, esforça-se por dar
uma cor exclusivamente evolucionista às leis econômicas; e não se percebe que se
tem desvirtuado, dessa sorte, o sentido essencial de algumas dentre elas; elas
cessam de ter uma significação qualquer, se não tiverem uma significação
universal. As transformações industriais e comerciais, como as transformações
religiosas, poéticas, artísticas, lingüísticas, conformam-se a certos tipos, vagamente
formuláveis, de evolução, mas ao mesmo tempo há, em tudo isso, outra coisa de
formulável e com mais precisão.
De modo semelhante, não existem, sob as transformações jurídicas
cambiantes, verdades jurídicas estáveis? Eu creio que cabe à teoria jurídica das
obrigações formulá-las. Mas, para dizer a verdade, em as formulando, se nos
afastaríamos muito dos hábitos de linguagem e de pensamento particulares aos
juristas. É aos lógicos, de preferência, – se não me engano, – que se deve
perguntar. Sua antiga e sempre verdadeira teoria do silogismo poderia, – parece-
me, – ser estendida e completada de certa maneira que permitisse fazer entrar,
como corolários, a teoria do valor, a teoria das obrigações e, talvez mesmo, outras
teorias desse gênero, aplicáveis a outros aspectos das sociedades.
O silogismo [199], procedimento lógico por excelência, não serve apenas de
regra ao julgamento; ele serve também de regra à vontade. Existe o silogismo
intelectual, o único de que nos ocupamos, aquele que combina, não duas
proposições, como se diz muito vagamente, mas duas crenças, variáveis de
intensidade, e onde o grau de intensidade importa considerar. Existe o silogismo
moral, que combina uma crença com um desejo. – Ora, um e outro chegam a
editar, como conclusão, um dever, no sentido mais amplo e mais compreensivo da
palavra; dever de afirmação num caso, dever de ação em outro caso. Eu creio que o
Alcorão [200] é infalível: ora, eu creio que, de acordo com o Alcorão, o Sol gira
em torno da Terra; logo, eu devo afirmar, quer dizer, esforçar-me por crer, que a
Terra não gira em torno do Sol. Eis o silogismo intelectual dos fiéis. Eu creio que
existe uma tal concatenação matemática entre a paralaxe [201] de um objeto e sua
distância; ora, eu creio que a paralaxe do Sol é tal; logo, devo afirmar, aplicar-me
em crer, que a distância do Sol é aquela que indica a concatenação matemática em
questão. Eis o silogismo intelectual dos sábios, e também dos iletrados ao longo de
toda a vida. – Eu desejo obter minha salvação; ora, eu creio que, se eu não jejuar
na Quaresma, não me salvarei; logo, eu devo jejuar na Quaresma, quer dizer, tratar
de querê-lo. Eu desejo ter em meu jardim uma fonte que me falta; ora, eu creio que
em tal local existe um lençol d’água subterrâneo; logo, devo cavar um poço,
constranger-se a tomar esta decisão. Eis um silogismo moral, sob sua forma
religiosa ou profana.
Mas, enquanto não se levarem em conta os graus de crença ou os graus de
desejo combinados assim, a conclusão desses raciocínios elementares,
inconscientes muitas vezes, parece ser quase tão insignificante quanto àquela do
silogismo das escolas. Ela não adquire seu relevo verdadeiramente instrutivo senão
à vista desses graus essencialmente desiguais, variáveis de zero ao infinito, da
certeza à dúvida completa, da paixão à indiferença absoluta. Porque é apenas na
razão dessa desigualdade extrema que o confronto, tão freqüente, tão habitual, de
dois silogismos intelectuais ou morais na alma de um homem, onde suas
conclusões, conduzidas por caminhos diferentes, ora se contradizem, ora se
confirmam, não sendo sempre um choque desestruturador no primeiro caso, nem
um acoplamento estéril no segundo. A lógica clássica nada nos diz desses
combates ou dessas uniões de silogismos; e ela faz bem, porque é impotente para
extrair desses choques íntimos, a não ser a mútua destruição dessas duas
conclusões contraditórias, supostas ambas de força igual. Quanto às duas
conclusões conformes uma à outra, sua mútua confirmação nada tem de mais
interessante, se supusermos, como se faz implicitamente nas escolas, que uma e
outra estão absolutamente certas. O infinito multiplicado por ele mesmo não
aumenta. – Ao contrário, demo-nos ao trabalho de observar que a intensidade dos
deveres de afirmação e de ação, destituídos de nossas crenças e de nossos desejos,
participa de sua desigualdade, que ela aumenta ou diminui, como essas duas
qualidades mentais, em contínuo movimento do alto ou de baixo, e que ela é
rigorosamente determinada pelo grau destas. A partir de então, ser-nos-á fácil
compreender que, quando duas conclusões, dois deveres se contradizem, o dever
menos intenso, o menos fortemente sentido, é o único destruído ou paralisado, o
outro lhe sobrevive, embora diminuído; e que, quando dois deveres se confirmam,
a intensidade de cada um deles é multiplicada pela do outro. Não posso entrar aqui
nos detalhes sem fim dos anexos que a introdução desse ponto de vista acrescenta
ao silogismo ordinário; necessárias complicações que têm por efeito restabelecer a
utilidade prática, o uso habitual e constante desse pretendido instrumento escolar.
É-me suficiente dizer, no momento, que tudo o que tende a fazer elevar ou baixar o
nível da crença ou o do desejo, na maior ou na menor, influi sobre a intensidade do
dever concluído. Se, para retomar um dos exemplos indicados mais acima, meu
desejo de ter água em meu jardim se aviva (por conta de uma longa seca; de
conversações com agrônomos, etc.), e que minha crença na existência de um lençol
d’água subterrâneo em meu jardim vem a crescer também (pela visita de algum
hidrólogo ou pela leitura de certas obras), eu sentirei mais fortemente meu dever de
cavar um poço. Pode ocorrer que esse desejo enfraqueça, enquanto essa crença se
fortifica; ou que ele se fortifique, enquanto ela enfraquece; e, se houver
compensação entre essas variações de sentido inverso, eu sentirei o dever do qual
se trata com uma intensidade que não varia nada.
Mas é de notar um caso singular. É aquele onde, no silogismo da atividade, a
maior [202] é representada por um desejo de intensidade tão superior a qualquer
outro, tão soberano, tão fixado em residir no coração, que se torna quase
inconsciente e age sem se mostrar, tanto mais irresistivelmente, à maneira de um
déspota invisível. Tal é o desejo de salvação no cristão, de gloria na Grécia de
Péricles, de riqueza em muitos dos modernos, a preocupação com a honra entre as
pessoas honestas. Nesse caso, de maneira conforme ao princípio colocado mais
alto, o dever de ação é sentido, de qualquer sorte, infinitamente. Ele reveste-se de
um ar absoluto, imperiosamente dominador. Eis aí o dever moral propriamente
dito, dever puro e simples que perdeu o sentimento de seu parentesco com a
relação de finalidade de onde deriva todavia. – E isso não ocorre unicamente no
silogismo de atividade. É no silogismo do pensamento que o caso especial se
realiza quase. Seja no fiel, seja no homem desprendido de dogmas, realiza-se nas
crenças infinitas e inextirpáveis, na fé nas Santas Escrituras em um, na fé no
testemunho dos sentidos em outro. Daí, para o primeiro, quando ele deduz dos
Livros Sagrados uma conseqüência, o dever absoluto de a afirmá-la, ou, quando
reconhece que um principio é contrário aos Livros Sagrados, o dever absoluto de
negá-lo. Daí também, para o segundo, quando uma idéia se apresenta a ele como a
conclusão de uma experiência feita sob os seus olhos, o dever imperioso de adotá-
la. – A analogia dessas duas singularidades notáveis em dois silogismos
comparados é tal, que não se nos devemos assombrar de ver os jurisconsultos
árabes inscreverem, no cabeçalho de sua lista de obrigações humanas, a obrigação
de crer em tudo o que se deduz da palavra do Profeta. A principal obrigação
canônica dos sectários de uma religião qualquer, de um partido político qualquer,
não é mesmo a adesão a certas idéias? Somente não mais existe a lealdade de fazer
figurar nos códigos a fé obrigatória ou interdita ao lado da ação comandada ou
proibida [203].

V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma


mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do
silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação,
do mesmo modo nítidas e gerais.

Eis que voltamos ao nosso assunto. A obrigação jurídica não é senão uma
espécie da qual o gênero é uma obrigação moral, espécie ela mesma de um gênero
mais vasto, formado, – já o dissemos, – pelos deveres de finalidade. Quando eu me
sinto obrigado a alguma coisa, é sempre porque eu desejo obter uma vantagem ou
evitar um prejuízo, e porque acredito atingir este objetivo, fazendo alguma coisa.
Mas esta obrigação moral não é jurídica, senão quando ela entra nas categorias de
deveres onde o legislador, anônimo ou nominado, costume ou rei, tradição ou
maioria parlamentar, sente, mais ou menos, a obrigação de sancionar, porque ele
deseja tal ou qual fim designado pela vontade geral, e porque ele acredita útil,
desse ponto de vista, consagrar essa natureza de deveres, ter à mão sua execução.
Esta explicação tem a vantagem de aplicar-se igualmente a todas as espécies
de obrigações jurídicas, sejam elas involuntárias e formadas sem contrato, ou
voluntárias e contratuais, ou voluntárias e unilaterais. Por exemplo, minha
obrigação de servir sob a bandeira e de pagar minhas contribuições, cargas
impostas por meu próprio nascimento e sem meu consentimento, fundamenta-se
sobre estes dois silogismos, um deles feito por mim: “Eu desejo o bem de meu
país. Ora, eu acredito ser-lhe útil assim. Logo, eu devo agir assim.” Ou bem: “Eu
desejo não ser atingido por uma condenação judicial. Ora, eu acredito que seria
perseguido correcionalmente, se eu me abstivesse dessas patrióticas corvéias.
Logo, não devo abster-me”. E outro feito pelo Estado: “Eu quero estar armado para
fazer-me respeitar por meus vizinhos. Ora, eu creio que, sem a circunscrição
militar e sem os impostos atuais, eu estaria desarmado. Logo, devo constranger os
cidadãos ao serviço militar e ao pagamento de impostos.”
Por exemplo ainda. Uma casa é vendida por dez mil francos a crédito. Antes
da conclusão deste contrato, cada uma das partes sente-se no dever de concluí-lo,
porque cada uma delas diz: Eu desejo mais adquirir dez mil francos (ou esta casa),
do que arrepender-me de me despojar desta casa (ou de dez mil francos). Ora, eu
creio que, mediante a cessão desta casa (ou deste dinheiro), haveria este dinheiro
(ou esta casa). Logo, devo fazer este negócio. – Mais uma vez o contrato formado
pelo assentimento dessas duas conclusões silogísticas, a obrigação moral de
executá-lo, para o comprador como para o vendedor, fundamenta-se sobre um
silogismo diferente: “Eu não quero ser desonrado aos olhos de meus semelhantes
ou aos meus próprios olhos. Ora, eu acredito que o seria, se não me ativesse às
minhas contratações. Logo, eu devo ater-me a elas (quer dizer, entregar a casa ou
pagar o preço).” Esta obrigação é jurídica, porque o assentimento destas duas
conclusões está de acordo com a conclusão seguinte, tirada pelo legislador: “Eu
quero a paz pública, eu quero a prosperidade geral. Ora, eu creio que a manutenção
forçada das convenções desse gênero (cumpridas em certas condições, como
adiante será dito) pode evitar conflitos entre os cidadãos, e porque isso assegura, na
média dos casos, a maior vantagem para todos. Logo, eu devo impor à força o seu
cumprimento.”
Mesma explicação para as obrigações nascidas de uma promessa ainda não
aceita, seja porque ela se endereça ao público, seja porque ela se endereça a um
deus, a um morto, a um ser imaginário ou relegado a uma majestade silenciosa,
numa misteriosa obscuridade. O industrial, que lança prospectos ou oferece sua
mercadoria com abatimento, ao arrepender-se a seguir, diz a si mesmo: “Não
quero prejudicar meu crédito. Ora, eu acredito que o depreciarei, não executando
minha promessa. Logo, devo ater-me a ela.” E o legislador, neste caso, onde, sob
forma mais ou menos desviada, transforma esta obrigação moral em obrigação
jurídica: “Não quero prejudicar o crédito público, condição da prosperidade geral.
Ora, eu acredito que ele seria abalado pela não execução impune destas ofertas
comerciais. Logo, eu devo sancioná-las.” Sob os imperadores romanos, sob os
Severos, por exemplo, um armador fez voto a Mercúrio de erguer-lhe um pequeno
templo à beira-mar, se o seu navio regressasse com segurança ao porto. Este voto
criou, aos olhos dos pagãos, uma obrigação que, depois de não haver sido, por
longo tempo, senão uma obrigação moral, cuja violação desonraria seu autor,
terminou por receber a consagração da lei civil. Bem mais, essa obrigação passou
aos herdeiros daquele que se obrigou desse modo. Dir-se-ia seriamente, – como se
tem ousado, – que a força obrigatória do voto lhe vem daquilo que é “reputado
como um contrato com os deuses”? Mas, aos olhos dos pagãos, eles mesmos, não é
verdadeiro que os deuses hajam, necessariamente, dado seu consentimento; e, aos
olhos dos cristãos, é demonstrado que os deuses, esses demônios impuros, deram e
fizeram conhecer sua adesão a essa promessa, na qual o armador havia bem
contraído uma ligação com eles. O voto não seria obrigatório moralmente. O
legislador sectário do Cristo não teria a idéia de sancioná-lo civilmente. Não. Se o
nosso armador se sente obrigado, é porque ele quer o retorno de seu navio e
acredita no poder de Mercúrio para o efeito de seu voto; e, se sua contratação tem
efeitos jurídicos, é porque o legislador pagão, desejoso da segurança pública, e
persuadido, como quase todo mundo em torno dele, de que um voto piedoso, se
fosse violado, atrairia a cólera dos deuses sobre todo o Império, sente-se no dever
de impedir essa calamidade.
Isso é tão verdadeiro que, se antes do retorno do seu navio, o armador em
questão se convertesse ao cristianismo e cessasse de acreditar na existência ou no
poder de Mercúrio, ele cessaria de estar moralmente obrigado. Produzir-se-ia
então esta grave anomalia: ele permaneceria juridicamente obrigado a fazer o que
sua consciência lhe interditara cumprir. Mas, quando o inconveniente social desses
conflitos entre Moral e Direito, flagelo reservado aos tempos de crise religiosa,
houver atraído a atenção do próprio legislador, ele não faltará em dissipá-los,
subordinando aqui, e em toda a parte, a consagração civil das obrigações ao seu
valor moral. – Na hipótese inversa da precedente, quer dizer, no caso em que o
público, e também o legislador, convertem-se à nova religião, ou a novas idéias
filosóficas, a obrigação moral de cumprir seu voto subsistiria para o fiel que
permanecesse atrelado às suas velhas crenças, mas a força jurídica não se
acrescentaria mais. Tudo isso se explica da maneira mais natural do mundo, assim
como muitas outras dificuldades da mesma ordem, segundo nossa maneira de ver.
Explica-se do mesmo modo, – pela natureza e pela energia variáveis do
objetivo geral que o legislador perseguiu, e pela natureza e energia, não menos
variáveis, das opiniões que lhe serviram de guia, – a diversidade das legislações
relativamente à proporção das obrigações morais consagradas nas relações de
Direito. Explica-se, de modo semelhante, sua menor diversidade, sua relativa
uniformidade no que concerne às causas de nulidade das contratações civis. Os
vícios que as atingem são de duas espécies: aqueles que dão trato à maior, e
aqueles que dão trato à menor do silogismo moral do obrigado. A maior é viciada,
quando o desejo que ela exprime não emana da própria pessoa que se obrigou, de
seu caráter, mesmo de seus caprichos, espontaneamente manifestados do fundo de
suas idéias e tendência habituais e normais, mas foi sugerido de fora, por captação,
por abuso de autoridade ou por um acesso de loucura. A menor é viciada, quando a
crença que ela contém é, não o resultado de experiências, de leituras, de viagens,
das circunstâncias morais onde é formada a inteligência do indivíduo que se
obriga, mas o efeito de uma mentira interesseira ou de um erro devido a uma causa
doentia, tal como uma ausência de memória subseqüente a uma febre tifóide ou a
um enfraquecimento senil. É evidente que estas alterações psicológicas nas
contratações, – sempre quase as mesmas entre todos os homens, e fáceis de prever
pelos legisladores de todos os países, – retiram, da contratação assim formada, na
média de dos casos, a vantagem social que apresenta o conjunto das contratações
normais.
Também assim as obrigações morais, ou de preferência, em geral, imorais,
proibidas pela legislação, tais como as dívidas de jogo às vezes, os estatutos das
associações criminosas, etc. A lei opõe-se então, como toda a sua força, à execução
dessas contratações julgadas por ela contrárias ao interesse público. É que existiu,
nesse caso, precisamente o inverso da consagração jurídica, conflito e não acordo
de conclusões entre o silogismo moral do obrigado e aquele do legislador.
Mas, na realidade, o trabalho mental que se opera, seja entre o obrigado, seja
entre o legislador, é mais complexo do que acabamos de dizer. No espírito, seja de
um ou de outro, de ordinário, não apenas um único silogismo é formado, mas um
combate ou um concurso de silogismos. E é isso que vai mostrar a íntima relação
da teoria jurídica das Obrigações com a teoria econômica do valor. – De uma parte,
não é nunca sem hesitação, sem oscilações íntimas, que o obrigado se decide a
contratar ou se resigna a aceitar sua obrigação. Ele deve, rapidamente, ou por
muito tempo, contrabalançar sua deliberação, as vantagens que lhe advirão de sua
obrigação com os sacrifícios que lhe vão custar, ou seja, deve confrontar desejos
com desejos, crenças com crenças. Um homem que hesite em trocar um cavalo por
um quadro, faz pequenos raciocínios interiores, por onde conclui, ora que deve, ora
que não deve fazer a troca; ou seja, ora seu cavalo vale menos que o quadro, ora
vale mais. “Eu gosto muito de equitação e acredito que dificilmente substituirei
este cavalo. Logo, não devo trocar. – Eu amo muito as telas desse mestre e acredito
que, se perder essa ocasião, não a encontrarei mais. Logo, devo trocar meu cavalo
por ela.” A luta se estabelece entre estas duas conclusões opostas, engendradas por
umas ou outras premissas; e toda idéia, toda influência superveniente, que tiver por
efeito fazer baixar ou elevar o nível do desejo ou da crença na maior ou menor de
cada um desses silogismos, fortificará ou enfraquecerá tal conclusão, elevará ou
baixará o valor aparente de tal objeto, decidirá enfim o resultado da batalha.
De outra parte, o legislador, quando consagra uma obrigação, quando edita
uma disposição qualquer que cria uma obrigação de fazer ou de não fazer, sabe
muito bem que intervém na mistura de interesses opostos, para favorecer alguns a
despeito de outros. Ele, pois, ele também, escolhe e sacrifica, pesa valores
relativos, dando aqui, à palavra de valor, um sentido, não individual como a toda
hora, mas geral e, em aparência, impessoal, ainda que o valor, em sentido superior,
não seja, no fundo, senão a resultante de inúmeras estimativas pessoais
silogisticamente concluídas. – Se se tratam de contratos? Ele espera tanto quanto
possível e, salvo o caso em que o Estado é, ou se acredita, interessado em proteger
uma das partes contra a outra, por exemplo, no casamento, a igualdade das
vantagens obtidas e dos sacrifícios consentidos pelos dois no conjunto das
convenções; e, se ele, Estado, acredita que uma cláusula, que uma particularidade
qualquer faz geralmente, e com exceções, pender a balança de um único lado, ele
deve anular o contrato atingido desse vício. Existe, na consagração das convenções
livremente formadas, uma presunção de equivalência de vantagens, de equação de
valores. Esta é a razão pela qual se dá força de lei a essas ordens recíprocas que se
endereçam às partes contratantes, como se tais ordens emanassem dele, Estado. E a
prova de que esta presunção está bem no fundo de seu pensamento, é que, quando
ela é formalmente contraditada por certos fatos, ele anula de fato o contrato. Ou
bem, por antecipação, ele coloca regras às quais ele espera que os contratantes
devam conformar-se; e estas regras são aquelas que, por sua vez, parecem-lhe as
mais próprias a impedir a exploração de uma parte pela outra. É nos contratos
especiais, – venda, locação, empréstimos a juros, etc., – que estas regras se
multiplicam e tem manifestamente esse objetivo (por exemplo, limitação legal da
taxa de juros). – A convenção particular que tem meu casamento é consagrada pelo
legislador com restrições que, em geral, possuem um outro desígnio aqui, ele não
deseja, senão secundariamente, a igualdade de vantagens que podem procurar os
esposos. Sua preocupação maior é o interesse do Estado que exige, a todo preço,
mesmo ao preço da sujeição da mulher, ou da indissolubilidade tirânica do liame
matrimonial, a procriação de novos cidadãos. – Ele deixará aliás, e deverá deixar,
uma margem de liberdade mais ou menos ampla à vontade dos contratantes,
segundo as aspirações e as opiniões mais ou menos liberais de seu país e de seu
tempo, partilhadas sempre por ele mesmo. Em Direito israelita, uma venda de bens
móveis está rescindida por causa da lesão de um sexto do preço; entre nós, esta
causa de nulidade não existe para as vendas de bens móveis, porque ela seria um
entrave irritante à nossa grande atividade comercial; e, para os imóveis, a lesão que
dá abertura ao direito de rescisão deve ultrapassar os sete doze avos do preço de
venda. Em suma, nas regras sobre os contratos, o legislador não perde jamais de
vista o quadro dos diversos valores, tal como ele se apresenta a um dado momento
e em dado lugar, e ele deve tê-lo sempre presente, para impedir que um contratante
explore o outro além de uma certa medida, determinada ela mesma pelo estado da
opinião. Não é preciso senão pesar, consciente ou inconscientemente, as utilidades
e as privações, assinar limites ao jogo de vontades que, para adquirir as utilidades
esperadas, permitem privações freqüentemente desproporcionais. – E se se
tratarem de obrigações formadas sem contrato? É o mesmo problema. Não existem
ainda para a autoridade legislativa senão interesses indiferentes a avaliar.
Do mesmo modo, pois, as modificações aportadas ao sistema de valores têm
por efeito, – nós o vimos, – modificar a escala dos delitos e das penas, transformar
o Direito criminal: do mesmo modo, elas têm por conseqüência, com o tempo, a
reforma da legislação civil. Elas comandam fazer interditar certas coisas permitidas
outrora, ou comandam permitir certas outras proibidas antigamente. As proibições
ou os entraves muito tempo opostos à venda de bens rurais foram suprimidos em
nosso regime moderno, e foram mesmo substituídos, em nossos dias, pois leis tais
como o Ato Torrens, que favorecem as alienações de imóveis. É que a estabilidade
hereditária das propriedades em cada família tinha, aos olhos de nossos ancestrais,
um valor de primeira ordem, pouco a pouco diminuído, e, hoje, a mobilização dos
imóveis, por assim dizer, parece ser devida, ao contrário, a uma vantagem
eminente. É assim que o estrangeiro, o adquirente vindo de fora, era reputado
inimigo, e agora é hóspede amado e mimado, o modelo copiado. – Entre o
interesse do credor em fazer penhorar todos os bens móveis ou imóveis do
devedor, e o interesse do devedor em torná-los impenhoráveis, que fará a lei? Isso
depende de qual dos dois lhe pareça valer mais, à razão das necessidades sentidas
em sua época e dos juízos acreditados sobre os melhores meios de as satisfazer.
Entre os georgianos, de acordo com o velho direito, e também entre muitos outros
povos bárbaros [204], a penhora poderia atingir todos os móveis e, à sua falta, a
própria pessoa do devedor. Mas os imóveis de família eram impenhoráveis. Entre
nós, onde a sociedade tornou-se mais ambiciosa de progresso que de duração, e
persuadiu-se de atingir melhor seu objetivo pela proteção do indivíduo que pela
conservação da família, todos os imóveis podem ser penhorados, mas não todos os
móveis: as ferramentas profissionais são excetuadas e alguns móveis
indispensáveis; e a pessoa do devedor, o mais insolvente, é liberada de todo
constrangimento. – Entre os ossetos do cáucaso, tudo pode ser vendido na grande
casa comunal, salvo o caldeirão de cobre e a corrente de ferro que o suspende ao
fogão, objetos sagrados, espécies de fetiches domésticos aos quais se atribui o mais
alto valor social, porque eles são reputados necessários à perpetuidade das
comunidades familiares, sonho supremo desses corações simples.
Segue-se disso que, se uma boa teoria do valor nos informa as causas gerais
que fazem variar continuamente o sistema de valores, o economista indicaria por
aí, ao legislador, em que sentido, quando essas causas funcionam, deve ser
remanejada a legislação [205]. Ora, não é manifesto, de acordo com o que precede,
que essas causas, em última análise, são as invenções, as descobertas, as inovações
individuais propagadas pela imitação, cega ou racional, inconsciente ou reflexa?
Em definitivo, um objeto vale tanto mais quanto mais se deseja um certo bem, e
quanto mais se acredita esse objeto capaz de produzir esse bem [206]. Mas o que é
então que fortifica e generaliza um desejo, que o superexcita e o propaga, a não ser
aquilo que o satisfaz mais abundantemente, aquilo que coloca sua satisfação ao
alcance de um maior número de homens, ou, dizendo de outro modo, uma idéia de
inventor? A invenção da pólvora fortificou e difundiu a sede de conquistas
militares; a invenção da imprensa, a paixão pela leitura; a invenção das estradas de
ferro, a febre da locomoção. E o que é que faz aumentar e difundir uma crença, a
não ser a ação prestigiosa de um apóstolo original, ou a magia do estilo de um
escritor superior, ou o ensinamento de um sábio esclarecido pela descoberta de
fatos? Sem a invenção das estradas de ferro, o legislador francês do século XIX
não teria, sem dúvida, editado a expropriação por causa da utilidade pública. Há
cem anos, julgava-se o direito de propriedade mais respeitável que a necessidade
de deslocamento rápido, e sacrificava-se este àquele. No presente, faz-se o
sacrifício contrário, porque a mania da locomoção, graças à invenção da
locomotiva, foi decuplicada, centuplicada, e porque as estatísticas, habilmente
imaginadas sobre a comparação entre os acidentes de diligência e os de estradas de
ferro, recompensou e vulgarizou a confiança do público na segurança deste último
meio de transporte, de onde a conclusão de que a lei deveria autorizar a passagem
das vias férreas através dos domínios de proprietários eventualmente recalcitrantes.
– O que importa sobretudo observar são as variações de intensidade ou de direção
aportadas por um séquito de grandes homens ao grande desejo coletivo de uma
nação, à sua paixão nacional que subordina naturalmente todos os fins individuais,
tritura-os, dobra-os ou emprega-os. Desde Maomé, que suscitou em todo seu povo
o sonho ardente da propaganda religiosa à mão armada e a fé na vitória, esse
fanatismo e essa fé declinaram sob certos califas e reacenderam sob outros, graças
a reformadores inspirados; e, segundo essas vicissitudes de almas, a obrigação
jurídica de participar da Guerra Santa, de cumprir a peregrinação à Meca, de jejuar
durante o Ramadã [207] era inscrita em primeiro ou segundo lugar, mas bem
raramente em último, na lista dos deveres mais sagrados.
Seria fácil, mas inútil, multiplicar os exemplos. Já disse o bastante para
justificar minha proposição, que a teoria das obrigações e a teoria do valor, em
correlação íntima uma com a outra, ligam-se, ao mesmo tempo e com muitas
outras, à teoria do silogismo devidamente renovado. A lógica, – vê-se, – uma
lógica rigorosa, governa os fenômenos psicológicos e os fenômenos sociais, vistos
sob um certo ângulo, como a mecânica rege os movimentos físicos. E mesmo, para
falar com propriedade, a lógica assim estendida não é outra coisa senão uma
mecânica mental e social, da qual as regras, tão rigorosas quanto universais e
permanentes, regem os encontros dessas forças concorrentes ou opostas que
chamei crenças e desejos [208], verdadeiras quantidades íntimas suscetíveis de
crescer e de diminuir indefinidamente, sem mudar de natureza, ainda que mudando
de objeto, e que, adicionadas umas às outras, subtraídas umas às outras,
combinadas umas às outras, explicam todas as revoluções morais, portanto,
políticas e jurídicas, da humanidade.
Vê-se, a história das sociedades parece-nos, a nós mesmos, submissa a leis, e
a leis muito precisas. Mas, vê-se também, essas leis não perturbam em nada a rica
diversidade das evoluções sociais, como certas fórmulas estreitas que têm a
pretensão de canalizar esses grandes rios, esses Renos, esses Nilos, esses
Mississipis caprichosos e selvagens. Nossas leis, ao contrário, afirmam a
necessidade deste capricho e desta exuberância, a necessidade, por assim dizer,
dessa liberdade. Porque é impossível não se constatar a importância capital
concedida mais acima, na produção das forças sujeitas à jurisdição dessas regras,
ao acidente individual do gênio, à iniciativa pessoal. Eu não pude citar senão
poucos nomes de inventores ilustres. Mas quem de nós não inventa e não inova em
algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que
imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo
mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma
modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos?
Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja
misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível,
escapa à sonda do psicólogo. O sotaque parisiense, no momento atual, é o eco
sintético de todos os timbres de voz que têm caracterizado cada um dos habitantes
de Paris após inumeráveis gerações; nossa espirituosa construção gramatical, em
nossa época, é a síntese de incalculáveis gêneros de espírito, todos inesperados à
sua aparição e dotados de um encanto inteiramente próprio; nossa pintura francesa,
nossa poesia francesa contemporânea são um belo novo onde se condensam todos
os belos novos sucessivamente descobertos por gerações de poetas e de artistas;
nosso ideal nacional ou humanitário, a cor de nosso patriotismo ou de nossa
filantropia, de nosso próprio pessimismo ou de nosso misticismo, são herança
acumulada de inumeráveis formas de devotamento, de sofrimento ou de amor,
inventadas por alguma alma particular, reputada passageira, e propagadas cada
uma por sua vez. Cada aspecto social, cada estado social não é, de qualquer sorte,
senão a integração de infinitesimais invenções, de infinitesimais novidades
aportadas por seres onde cada um, em verdade, foi único em si, sem falar dos
grandes personagens; e eis por que esse estado ou esse aspecto, ele mesmo, não foi
senão uma vez e não se o reverá mais; e eis por que não é permitido falar de uma
sucessão desses estados ou desses aspectos, porque seria submergir numa corrente
banal. Nenhum sociólogo de há dois mil anos, por esclarecido que se o supusesse,
teria previsto a fisionomia de nossa época, o gênio da França ou da Alemanha
atuais. E toda época tem sua fisionomia, porque nós temos todos a nossa; e toda
nação tem seu gênio, porque milhões de homens têm o seu, humilde ou ilustre,
latente ou patente. Existir é diferir. Nossas semelhanças, que o sábio estuda,
nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença
essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que
pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente, que
não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas
fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra. Para dar contas da própria
evolução orgânica, Darwin deveu postular essa floração espontânea e incessante de
variações individuais, inexplicável fundamento de suas explicações. A fortiori,
toda interpretação da História humana requer esse postulado, cheio de
desconhecido e de esperança. Único, ele justifica nosso interesse apaixonado por
esse drama sem fim, quotidianamente renovado, e nossos sacrifícios, e nossos
esforços infatigáveis para preparar sua ação futura, que permanece sempre um
enigma...

Capítulo Sexto
O Direito Natural
O Direito Natural e o Direito das Gentes entre os romanos
e os modernos. Razão de ser de sua dualidade e de sua
convergência. Ambigüidade da idéia de natureza: relação
intra-orgânica e relação extra-orgânica. Benthan e
Rousseau. Indeterminação essencial da idéia de Direito
Natural. Exemplos. Direito Internacional. Verificação
manifesta de nossas explicações neste ramo do Direito:
Mare liberum et mare clausum. Contrabando de guerra.
Antinomia da soberania dos Estados e da liberdade dos
indivíduos

Enquanto se elaboravam as legislações positivas, – o que foi assunto


exclusivamente até aqui, – o sonho de uma justiça mais alta, ideal por sua vez, e
destinada a ser realizada, ou presumida realizada já, em um longínquo passado,
espécie de paraíso terrestre jurídico a descobrir ou a reencontrar, não cessa de
martelar o coração do homem. E este belo sonho, cheio de um pressentimento
verdadeiro, tem exercido uma ação tão poderosa, esta idéia tem sido, por ela
mesma, uma força tão considerável entre aquelas que concorrem para o
melhoramento legislativo, que não nos é permitido passar sem nada dizer.
Menos permitido também o que toca à preocupação do “Direito Natural” ou
da “Eqüidade”, que pode ser muito considerada, quando atinge um certo grau de
acuidade, como uma das fases mais regulares, mais constantes ao seu tempo e à
sua hora, das transformações do Direito. Em toda a civilização que chega à sua
idade clássica, a concepção do Direito Natural, sob diferentes nomes, formula-se
com mais ou menos nitidez: em Roma, já sob Augusto, mas sobretudo sob os
Antônios; em Atenas, ao tempo de Platão (As Leis) e dos estóicos [209], cujo
adágio era, – sabe-se, – “seguir a natureza”; a Inglaterra, no século XVIII; na
França, sob Luiz XIV, quando Domat [210] escreveu seu Droit Civil dans son
Ordre Naturel, comparado por Viollet a um desses frios e simétricos monumentos
da mesma época, ou às tragédias de Racine. Entre os ingleses, o Direito Natural, ou
aquilo que se pode chamar assim, tem por expressão a jurisprudência da
Chancelaria [211] que, segundo Sumner-Maine [212], “traz o nome de eqüidade”.
Ela repousa sobre princípios relativamente novos “que tendem a suplantar a velha
jurisprudência do país, em virtude de uma superioridade moral intrínseca”, quase
como a jurisprudência pretoriana de Roma.
Mas os elementos desta “eqüidade” são muito complexos: Direito Canônico
(nada de menos natural todavia, em certo sentido, que o espírito cristão); Direito
Romano e, a partir do século XVIII, “sistemas misturados de jurisprudência e de
moral retiradas aos publicistas dos Países Baixos. As fontes do jus naturale,
concebido pelos pretores e pelos grandes jurisconsultos de Roma, são elas menos
misturadas? Não. Há primeiro o jus gentium, o direito suposto comum a todas as
nações estrangeiras com as quais Roma, estendendo-se, foi forçada a relacionar-
se. À cada extensão dessas relações internacionais corresponde uma modificação,
ou uma complicação da idéia que se fazia desse Direito, sorte de terreno
sedimentar formado ao pé do rude Direito quiritário por uma seqüência de estratos
superpostos, de aluviões jurídicos devidos aos fluxos sucessivos de imitação
estrangeira. Mas há também, e sobretudo, a filosofia e a moral estóicas, da qual
todos os grandes jurisconsultos romanos, da época em que floresceu a teoria do
Direito Natural, estavam impregnados.
Ora, dessas duas inspirações tão diversas que são combinadas nesta teoria, e
mesmo opostas em um sentido, qual teve a parte mais ativa? Tem-se exagerado
muito, – eu creio, – a importância da primeira às expensas da segunda, ou, de
preferência, às expensas das causas que a esta favoreceram. Vê-se, no comércio
exterior, a alma da regeneração do Direito Civil, de sorte que o progresso deste
último consistiu em estender, pouco a pouco, as relações dos cidadãos entre eles,
graças às inovações pretorianas, às regras jurídicas apostas às relações dos
cidadãos com os estrangeiros. Este seria precisamente o inverso do verdadeiro
progresso moral e jurídico, que consiste, – nós o sabemos, – em tratar os
estrangeiros, num raio que não cessa de crescer, como se tratavam os parentes
primitivamente. Mas, antes de admitir irrefletidamente que o progresso do Direito
Romano fez exceção a uma lei tão geral, perguntemo-nos se é verdadeiramente em
seus contatos com povos exóticos, ou se não é, de preferência, na assimilação, na
unificação de inumeráveis povos pela conquista romana, tornada a paz romana, que
os jurisconsultos de Roma apuseram a idéia do próprio jus gentium. Com toda
certeza, estava a unidade do grande império assentada em seu repouso benfazejo,
que permitiu ao ideal da cidade universal, – concebido alguns séculos antes por
grandes filósofos, ao tempo de Alexandre, – renascer mais brilhante após César. O
estoicismo de Epicteto [213] e de Marco Aurélio era, – como o Evangelho, mas
sob uma forma mais fria e menos arrebatadora, – a extensão do sentimento da
fraternidade a todo gênero humano. Eis aí seu caráter eminente aos olhos de todos.
E é isto que explica seu eclipse nos longos períodos de guerras, de perturbações, de
divisão política e social, e seu retorno fulgurante a cada momento histórico de
grandeza e de paz. Se os moralistas estóicos ou cínicos [214] de longa barba
tiveram quase o mesmo sucesso, na Roma imperial, entre as classes esclarecidas
que serão, mais tarde, entre todas as classes, nos belos séculos da Idade Média, as
menos mendicantes, pregadoras de um outro comunismo fraternal, é que já o
mundo romano começava a formar, como mais tarde a Europa cristã, uma vasta
família aberta. Ora, é sob a influência dominante deste grande fato e desta grande
doutrina ressuscitada por ele, que o Direito Natural é precisado e transfigurado, a
ponto de tornar-se, na realidade, o contrário do jus gentium de onde é reputada sua
origem [215].
Se, com efeito, é colocado, em princípio, que o Direito Natural, do mesmo
modo que o jus gentium, compreende todas as disposições legais comuns a todas as
nações, e não compreende senão estas, os jurisconsultos do Império deveriam ter
dito que a escravidão era essencialmente de Direito Natural. Todos os povos de
então, qualquer que fosse sua diversidade sob outros pontos de vista, tinham
escravos; nada era mais flagrante que esta similitude. Todavia é notável que os
jurisconsultos imperiais, inspirando-se primeiro em sentimentos estóicos, cristãos a
seguir, faziam entrar a escravidão no jus gentim, mas a excluíam do jus naturale. A
seus olhos, pois, este diferia profundamente daquele. Tinha, por conseguinte, uma
outra origem.
Não é menos verdadeiro dizer que os contratos comerciais exteriores
favoreceram grandemente, em todos os países, a prosperidade da idéia e o desejo
de um Direito mais amplo que o Direito nacional. Em Roma, em Atenas, mesmo
na Babilônia foi assim. Mas por quê? Porque estas trocas fizeram nascer, em toda
parte, a simpatia pelo estrangeiro, o gosto de tomar exemplo sobre ele e o desejo,
enfim, de viver, com ele, em comunhão social [216]. E é unicamente na medida em
que esses sentimentos assimiladores foram experimentados, que o jus gentium
aproximou-se do jus naturale, a ponto de acabar por parecer não fazer senão um
com ele. Mas, no fundo, e malgrado tudo, sua dualidade é tão real, fundamenta-se
sobre uma distinção tão profunda, que os desenvolvimentos póstumos do Direito
Romano, durante a era moderna, fizeram eclodir sua dessemelhança e produzir sua
divergência. Enquanto o jus naturale, de uma parte, passava nas melhores
disposições do Direito Canônico, inspirava o Contrato Social de Rousseau e os
Direitos do Homem, o jus gentium propriamente dito, de outra parte, suscitava, nos
séculos XVI e XVII, o que os modernos chamam também de o Direito das Gentes
e que, na realidade, tem mais que um parentesco nominal com seu sinônimo latino.
Quando os principais Estados centralizados da Europa ganharam o sentimento de
sua nacionalidade distinta e perderam aquele de sua solidariedade comum, sob o
cetro de um mesmo papa ou de um mesmo imperador, fez-se sentir a necessidade
de dar uma cor jurídica às relações anárquicas desses grandes indivíduos coletivos,
desses soberanos independentes, rivais e hostis uns aos outros. Não é
surpreendente que se haja, então, imaginado aplicar-lhes as regras relativas às
relações entre dois indivíduos de nacionalidades diferentes. E, muito felizmente, o
jus gentium, que as regrava, formara-se numa época em que o estrangeiro havia
cessado de significar inimigo. Daí o caráter elevado de nosso Direito Internacional,
em teoria, é verdade, muito mais que de fato. Porque, na prática, ele é feroz em
crueldade, odioso em maldade e em cinismo, e nada parece-se menos aos Direitos
do Homem.
Explica-se agora por que, malgrado a íntima conexão histórica do Direito
Natural e do Direito da Gentes, eles não puderam fusionar-se
completamente. Sumner-Mainne sinalou o fato sem dar-lhe a razão [217]. A
verdade é que o Direito Natural, se por aí entendermos a eqüidade, a justiça igual,
indulgente e branda, é a generalização de um tipo de relações tomadas de
empréstimo às relações interiores dos membros do grupo social primitivo, aos
direitos e às obrigações reciprocas de irmãos, de confrades, de concidadãos
estreitamente vinculados; enquanto o jus gentium é, ou ao menos tem a pretensão
de ser, a fórmula das relações entre os homens pertencentes a grupos diferentes.
Aliás, é somente quando as similitudes imitativas, quando os traços de parentesco
social se multiplicam entre dois povos, que eles têm a idéia de formular um direito
internacional para seu uso. O único fato de reconhecer um direito a estrangeiros e
de comerciar com eles denota que eles lhes são desvalorizados. Este é, pois, – eu
repito, – um grande erro, mas um erro explicável e escusável, de fazer honra ao
comércio e ao jus gentium da nobre a alta concepção do Direito Natural, tal como
os romanos nos deixaram. Ela lhes foi sugerida, – tivessem ou não eles
consciência, – de dentro, e não de fora, do grupo social, família, tribo ou cidade.
Nós reencontramos agora, aqui, o falso ponto de vista que combatemos mais
acima, sob tantas outras formas e, notadamente, na explicação histórica da
penalidade.
Mas deve-se convir que a expressão Direito Natural presta-se a este
equívoco, porque a idéia de natureza é ambígua. O que é natural está em relação
exterior com os organismos – concorrência e seleção naturais – ou não está, de
preferência, em relação interior, harmônica, hierárquica, finalidade dos órgãos de
um mesmo corpo? Não confundamos a associação vital com a batalha vital. É
necessário optar. Infelizmente, não se opta: confunde-se [218]. Daí este híbrido
que traz o nome de Direito Natural e que, por suas inconscientes inconseqüências,
ainda mais que por sua grandeza, foi tão bem feito para agradar ao ecletismo
francês, dito espiritualista, da primeira metade deste século. O caráter
completamente notável desse Direito, que lhe é tão caro, é o de não ter nenhum, de
ser alguma coisa absolutamente insípida e incolor, desprovida do menor átomo de
originalidade, ou seja, daquilo que existe, precisamente, de mais natural no homem
e nas coisas humanas.
Certamente, é da natureza de um povo, pequeno ou grande, pequeno como
uma família ou grande como o Império Romano, ter sua marca original; e, a este
título, o direito quiritário, o jus quiritium, malgrado suas asperezas ou, para melhor
dizer, na razão de seu próprio caráter pitoresco, era infinitamente mais natural que
o jus gentium e mesmo que o jus naturae. Ele o foi, ao menos por tanto tempo
quanto persistiram as condições sociais, estreitas e rigorosamente circunscritas, que
lhe deram nascimento. Mas, mais tarde, quando mudaram as circunstâncias, graças
à expansão de Roma para fora, ele deixou de ser. Produziu-se então um fenômeno
que não escapou à sagacidade de Sumner-Maine. Os romanos, no início,
desprezavam o jus gentium nascente, malgrado a amplitude da generalidade
internacional que eles atribuíram, desde então, às suas disposições; e eles
orgulhavam-se das particularidades mais pueris de seu Direito próprio. Mas, pouco
a pouco, surgiu-lhes admiração pelas regras julgadas comuns às leis de todos os
povos e alguma tendência a zombar de seu velho direito quiritário. Como se pôde
operar esta verdadeira revolução moral? Nós já o sabemos. A assimilação gradual
dos povos, sua uniformidade acelerada pela conquista, e a mútua simpatia fizeram
isso. O caráter geral, – ou suposto tal, – de certas instituições fazia-se desprezar no
início, porque geral significava banal e vulgar, tanto que a generalidade dos povos
estrangeiros passava por uma barbárie ambiente. Mas, com a desaparição desse
preconceito chauvinista, habituou-se a pensar que um povo vale um outro e, por
conseguinte, que muitos povos valem mais que um; que as instituições de todos os
povos valem mais que aquelas de um só. A autoridade, a superioridade, a soberania
do número começaram a impor-se aos espíritos. Porque o prestígio do número é
um efeito da assimilação social que substitui, ao aspecto qualificativo dos
indivíduos ou dos povos não ainda assimilados, seu aspecto quantitativo, próprio a
deslumbrar os sábios antes, e permitir um dia aos políticos a aplicação da
estatística e do sufrágio universal. O que quer que seja, quer isto dizer que o
mundo romano, mesmo na época clássica, não foi jamais interessado por um
Direito sem sabor e sem marca própria? De modo algum. O banal, o não original,
não cessara de lhes repugnar, como a toda nação vivaz ainda; e é a título de Direito
universal e romano por sua vez, – como se disse mais tarde “Igreja Católica e
Romana”, e, seguramente, catolicidade jamais significou banalidade, – é a este
título, unicamente, que o Direito Natural foi cultivado com amor pelos
jurisconsultos e magistrados de Roma. Não se dirá, – eu penso, – que o Corpus
juris, sua obra secular, é um monumento sem estilo. É obra de um gênio,
energicamente autoritário, hierárquico, organizador que aspira e que se sobressai
em universalizar suas particularidades distintivas. Sente-se, em toda parte, a garra
do leão, e sente-se-a também em todos os grandes corpos de Direito, tais como o
Direito Canônico e as leis de Napoleão, onde se encarna a mesma pretensão de ter
para si toda razão escrita. Não de a sente menos nos sistemas dos grandes
escritores, – no Contrato Social ou na Aritmética Moral de Benthan [219], – que
acreditaram dogmatizar o Direito racional, outra expressão do Direito Natural.
Venho de comparar Benthan a Rousseau. Não gostaria que se desprezasse o
alcance dessa aproximação. Evidentemente, o Direito Natural, tal como o concebe
o grande Génevois, como o retorno a um estado de natureza imaginário, a uma
quimérica idade do ouro, – é um erro puro e simples. Mas é necessário ver aí
também a visão inconsciente de um ideal de legislação futura fundada sobre a
preocupação exclusiva do bem público, sobre uma sorte de benthanismo
antecipado, como diz Sumner-Maine. Ora, desse ponto de vista, pode-se dizer que
o utilitarismo coletivo, do qual o benthanismo foi uma forma particular e bastante
estreita, destina-se a servir de fundamento comum às legislações futuras, pois que,
inevitavelmente, o progresso das relações sociais deve acabar por dar o sentimento
e estimular a necessidade do bem público. Nesse sentido, o sonho do Direito
Natural poderia ser muito profético. Mas, ao mesmo tempo, deve-se acrescentar
que este bem público, dependente do objetivo geral e das idéias em voga, será
sempre muito diversamente perseguido pelas diferentes sociedades. E não se deve
esquecer que a construção de um Direito não é somente uma obra de teleologia
social, uma conciliação difícil de desejos, de vontades, de interesses, mas também
é uma operação de lógica social, um acordo também muito penoso de julgamentos,
de idéias, de crenças. Antes de tudo, a elaboração jurídica, – seja entre o juiz e o
comentador, seja entre o próprio legislador, – é uma sistematização; ou, – se se
quiser, – é a teleologia apresentada sob um colorido lógico. É bastante dizer que,
sendo infinito o número de elementos a combinar, seria insensato aventurar-se a
predizer qual, dentre as inumeráveis combinações possíveis, é a mais legítima e a
destinada a preponderar. Na realidade, o amanhã jurídico será o que forem as
invenções a surgir. Ninguém saberia prevê-lo.
Vê-se, pelo que precede, que eu me recuso, – como Sumner-Maine, – a
explicar todas as mudanças do Direito pela perseguição suposta desse único fim: a
utilidade. A esta teoria muito difundida objetou-se, com razão, que as crenças e os
preconceitos têm desempenhado um papel ainda maior que as necessidades nas
metamorfoses jurídicas. Ora, em um interessante trabalho sobre Sumner-Maine
[220], Icilio Vanni, professor de Direito em Parma, responde que essas crenças e
esses preconceitos dos quais se fala dão trato a objetos de esperança e de temor,
imaginário ou fundado, não importa, e que, por exemplo, se a fé na divindade do
ancestral, o culto do fogo, constituíram a religião da família antiga em nosso
mundo indo-europeu, esse culto foi considerado como um simples meio de evitar
grandes males ou de obter grandes bens; daí pode-se deduzir que entra também na
preocupação utilitária. Em suma, a maneira pela qual a utilidade é perseguida é
especificada pelas crenças; mas é sempre a utilidade que é o objetivo. – A isso eu
replico duas coisas. Primeiro, esta especificação de utilidade, pela natureza da
crença, é o que nos interessa, porque, até ela, a utilidade permanece vaga e
indeterminada. E como é que aquilo que é indeterminado seria determinante? Em
especificando a utilidade, as crenças criam necessidades novas que não existiriam
sem elas; elas a suscitam menos que as precisam. E isso não é procura de revanche;
porque não são as necessidades que dão às crenças sua forma característica; são as
percepções ou as alucinações particulares. Há, pois, aí duas fontes distintas. Em
segundo lugar, Vanni esquece de dizer-nos, não apenas de qual utilidade ele quer
falar, mas ainda da utilidade de quem. Dito de outro modo: Quais são as partes do
grupo social, qual é a classe ou a casta cujas necessidades a satisfazer, criadas ou
especificadas, como vem de ser dito, são o objetivo perseguido pela legislação?
Nós vemos variar, nós vemos crescer esta fração dominante da sociedade no curso
da civilização, e está aí a causa mais importante das variações jurídicas. Mas por
que esta fração varia e cresce? Eis a questão. E nós nos esforçamos por respondê-
la. Em toda parte se nos oferecem, a nós, em uma dada sociedade, a distinção entre
a minoria governante e a maioria governada. E a minoria governante, ora não
persegue senão sua própria utilidade egoísta, com exclusão daquela de seus
súditos, ora faz concessões aos desejos daqueles, mas numa medida muito variável,
e que varia segundo os princípios morais em curso, acreditados por uma religião
nova ou por uma filosofia em voga. Não é suficiente, pois, dizer que os homens
têm necessidades e que eles procuram satisfazê-las para resolver, por este axioma,
– muito simples na verdade, mas muito estéril, – os problemas jurídicos de todos
os tempos e de todos os lugares. As necessidades não são senão matéria elaborada
e transfigurada por formas ideais do espírito.
Voltemos ao Direito Natural. Haveria, malgrado tudo, a temeridade de pedir
à idéia desta Eqüidade famosa, – ao sentimento confuso que nós temos e que é o
eco de nosso passado jurídico, – a solução das questões práticas e precisas que se
colocam aos fazedores de leis? Alguns ecléticos têm tentado, e conhece-se a
puerilidade de suas soluções. A menor reflexão é suficiente para mostrar a
incerteza incurável e o indeterminismo essencial desta idéia. Dir-me-ão somente
qual é a maneira mais “natural” de contar os graus de parentesco? Se a
representação é natural ou não? Se os colaterais da linha paterna devem ou não
devem “naturalmente” ser preferidos àqueles da linha materna? Seria natural,
parece, preferi-los e dar, em toda parte, em geral, a preferência ao masculino sobre
o feminino, pois que nada há de mais natural no mundo que o direito do mais forte.
Adota-se contudo a negativa.
Em face do processo criminal ou civil, o que é conforme ao Direito Natural?
Hoje, vejo bem que seria “natural” substituir, em um grande número de casos, os
meirinhos pelos carteiros, as intimações pelas cartas. Mas por que, e desde quando
isso começa a nos parecer natural, ou seja, racional? Porque e desde que o
progresso das comunicações, graças à invenção das estradas de ferro, dos correios,
dos selos postais, etc., chegou-se ao ponto que nós conhecemos. Há dois séculos,
nada seria menos natural que a idéia de semelhante reforma. Era natural, ao tempo
em que se acreditava no sobrenatural quotidiano, considerar os ordálios, duelo
judiciário, como o procedimento por excelência. Há alguns anos ainda, a maior
parte dos juristas, se fossem consultados, seriam da opinião de que o júri era de
Direito Natural, que deveria ser sempre inscrito à testa do processo criminal ideal.
No presente, quantas mudanças a esse respeito!
O Direito Natural comporta um título relativo aos privilégios e hipotecas?
Impossível responder. Impossível dizer se será um progresso para a legislação do
século XX ou XXI apagar dos códigos o privilégio e a hipoteca. Quem pode
predizer qual será o regime da propriedade em um ou dois séculos, e se será tal que
permitirá ainda a penhora imobiliária? Não sabemos que, entre muitos povos, os
imóveis foram ou são ainda impenhoráveis? Outra questão: O testamento faz ou
não parte do Direito Natural? É natural que um homem sobreviva a si mesmo por
qualquer sorte de disposição de seus bens numa época que se segue à sua morte?
Está aí a liberdade absoluta ou a liberdade restrita – e em que proporções? – do
direito de testar, que é o regime testamental mais natural? – Vejo bem que o
regime matrimonial da comunhão de bens é mais justo que o regime dotal; mas não
mais natural. Porque aquilo que é natural, ainda uma vez, é o abuso da força. –
Constato também que o progresso da civilização faz predominar mais e mais os
contratos escritos sobre os contratos verbais. Mas é muito claro que, se isso nos
parece natural, é por causa da invenção muito artificial e da difusão contagiosa da
arte da escrita... inútil insistir.
Eu já disse uma palavra sobre o Direito Internacional; mas retorno, antes de
terminar, porque esse ramo do Direito nos fornece uma excelente ilustração de
nossos princípios sobre a importância decisiva da imitação e da invenção em toda a
extensão do domínio jurídico. De onde vem a um texto de lei em geral seu poder
efetivo? Vem, unicamente e antes de tudo, da força pública, do comando
legislativo? Maine provou muito bem que não está aí senão uma das fontes, e a
mais recente, da autoridade atrelada às prescrições legais. Todavia, se o Direito
Internacional não existisse, poder-se-ia recusar admitir a opinião do grande
jurisconsulto inglês. Mas eis todo um corpo de Direito que se impõe em tempos de
guerra nas relações dos exércitos, em tempos de paz, nas relações diplomáticas e
que, entretanto, não deve sua força a uma ordem legislativa, pois que não existe
legislador supremo das nações. Deve-a mesmo sempre a um contrato pelo qual, à
falta de uma ordem superior, os diversos Estados iguais e soberanos teriam
convindo em observar certas regras? Não. A maior parte das leis de guerra que
reconhecem os Estados civilizados não foram jamais deliberadas, ou não foram
unanimemente aceitas nas convenções internacionais. Esse Direito parece ser a
realização gloriosa dessa “moral sem obrigação nem sanção” com a qual sonhava
Guyau [221]. De onde procede pois, na realidade, esse poder eficaz? É bem
simples e bem conhecido: do sucesso que tiveram em seu tempo as obras de
Grotius [222] e de Vattel [223], quer dizer, da adesão entusiástica dada às suas
fórmulas por uma multidão de espíritos eminentes, depois homens de Estado,
enfim de espíritos esclarecidos quaisquer que sofreram sucessivamente o contágio
salutar desse entusiasmo. E esse sucesso, ele mesmo, essa corrente imitativa, que é
transportada sobre esses livros de preferência a outros, explica-se pelo grau de
civilização comum a que haviam chegado, no século XVII, os povos europeus,
graças a essas sucessões de grandes inundações imitativas, a romanização, a
cristianização, a feudalização, a “humanização” da Renascença, sem falar das
guerras, que contribuíram para a disseminação de todos esses germes, para a
expansão dessas ondas, para o nivelamento do solo da Europa por suas próprias
perturbações. Grotius e seus sucessores, pela acolhida feita a seus livros,
suscitaram no público “um sentimento intenso de aprovação a favor de um certo
número de regras [224]”, um sentimento intenso de “reprovação” contra aqueles
que as violentam. Tal é sua única sanção. Para que esta intensidade de sentimento
seja alcançada, foi preciso que a propagação dessas idéias fosse rápida, e que os
espíritos fossem inflamados por sua velocidade adquirida. É aqui de se ter em
conta, por sua vez, o número de imitadores e o grau de convicção apaixonada
excitada em cada um deles. O poder real de uma fórmula jurídica é igual, para falar
matematicamente, ao produto dessas duas quantidades multiplicadas uma pela
outra.
Seria menos assombroso ver um tratado de Grotius, uma “personalidade sem
mandato”, fazer-se obedecer por todos os soberanos em virtude de sua própria
autoridade, quer dizer, pela conformidade de suas opiniões às idéias que sua leitura
sugeriu à maior parte dos homens, se se imaginasse que, depois de tudo, um livro
qualquer, à medida em que se faz ler com favor por um público cada vez mais
extenso e fervoroso, está em via de tornar-se um Catecismo ou um Código. Todo
livro, seja ele um poema ou um romance, é um Catecismo ou um Código em
projeto. Não há livro, sobre não importa que assunto, que não aspire a regrar a
conduta ou o pensamento dos homens, a ensinar-lhes alguma verdade ou a fazer-
lhes algum bem; e, segundo uma ou outra destas duas tendências seja mais
manifesta, pode-se dizer que ele é um Dogma ou uma Lei embrionária. De resto,
há todos os graus intermediários possíveis entre o Dogma ou a Lei que, desde a sua
promulgação, estão seguros de ser acreditados ou obedecidos pela quase
unanimidade daqueles aos quais se endereçam, e o livro que, quando de sua
publicação, não pode contar com certeza sobre nenhum leitor favorável. Quantos
códigos, desde aquele de Manu até a maior parte das leis e das constituições
revolucionárias, sem contar muitos éditos reais, não obtiveram jamais senão uma
obediência aparente, parcial e momentânea! Quantos credos têm inspirados menos
fé que os escritos de Platão ou de Aristóteles! – Será surpreendente, depois disso,
que o Direito Internacional, formulado por grandes escritores dos três últimos
séculos, seja praticado em nossos dias, como foi o Direito Romano durante nossa
Idade Média, sem qualquer ordem legislativa?
Vejamos agora a ação das invenções sobre o desenvolvimento desse Direito.
O problema de saber qual será o modo de apropriação internacional dos mares e
dos rios, se se deve preferir o regime do mar livre, indiviso, aberto a todas as
bandeiras (mare liberum) ou do mar fechado e monopolizado (mare clausum), se a
navegação de um curso d’água deve existir para todos os Estados ribeirinhos, seja
apenas nos limites de suas respectivas margens, seja da fonte à embocadura; o
problema relativo, em tempos de guerra, aos direitos dos navio neutros, a saber, se
seus carregamentos podem ser ou não visitados pelos navios beligerantes, e se
estes, em caso afirmativo, têm o direito de realizar a apreensão da mercadoria
chamada contrabando de guerra trazida pelos navios neutros; esses problemas, e
muitos outros, são susceptíveis de numerosas soluções, entre as quais a opção é
raramente isenta de arbitrariedade. Não é mesmo fácil decidir se a abolição do
direito de navegação é, sem qualquer contestação possível, preferível à sua
manutenção, ainda que todos os Estados civilizados, com exceção dos Estados
Unidos, sejam da opinião de o abolir. Malgrado aquilo que existe de selvagem
nesse direito de armar e de lançar, em tempos de guerra, corsários para capturar
navios mercantes pertencentes ao inimigo, deve-se convir que a grande república
transatlântica não saberia renunciar a essas permissões de caça humana, como ela
faz observar, sem imitar o luxo ruinoso e desastroso de nossos armamentos
marítimos permanentes; e pode-se hesitar em escolher entre esses dois males. Não
é menos verdadeiro que, de um período a outro, vê-se a balança dos motivos a
favor de tal solução e em prejuízo de tal outra oscilar aos olhos de todos e levar a
uma modificação do Direito das Gentes. Então, se se procurar a causa profunda
dessa mudança, descobre-se sempre alguma invenção industrial ou militar ou
alguma nova idéia teórica eclodida nos espíritos.
São as invenções, na verdade, que têm simplesmente por efeito modificar as
aplicações de um princípio e não o próprio princípio. Por exemplo. O princípio de
que o contrabando de guerra pode ser apreendido se for reconhecido. Trata-se de
saber o que se deve entender por essas palavras; antes da invenção dos navios de
casco metálico, não se imaginava inserir o ferro, ao lado da madeira e do cânhamo,
enquanto doravante deve-se classificar esse metal entre os artigo proibidos. Do
mesmo modo, regras sobre bloqueios de portos de mar devem se ressentir do fato
que, depois da invenção das estradas de ferro, os portos sitiados podem se irradiar
por terra, de onde se segue que o bloqueio marítimo se torna cada dia mais ilusório
e deve ser tido como tal. Mas as invenções têm também o poder de atingir às
próprias regras e às mais estáveis. O sistema de mar fechado poderia ser mantido
depois que os navios a vapor foram inventados? Um regime que convém à
cabotagem não saberia resistir aos progressos da grande navegação. – E, a
propósito, observemos que, aqui, a evolução do Direito Marítimo, em se
prolongando, produziu duas transformações inversas. O mar, de acordo com os
jurisconsultos romanos, era propriedade comum e indivisa de todas as Nações
ribeirinhas. Desta indivisão, passou-se à individualização da propriedade, aqui
como em face das terras; do mar livre ao mar fechado. Mais eis que se passa
novamente do mar fechado ao mar livre. A História é cheia dessas surpresas.
Não se pode duvidar que o conjunto das invenções civilizadoras, de onde
resulta o crescimento de nosso bem-estar material, haja poderosamente contribuído
para o abrandamento das leis de guerra, a proibição dos saques a cidades, o
tratamento mais humano dos prisioneiros, primitivamente escravizados e
espoliados. Mas, ao mesmo tempo em que somos humanizados desse modo,
tornamo-nos mais bárbaros num ponto muito importante, e esta anomalia serve
precisamente de contraprova à nossa explicação, porque é manifesto que, sem a
fecundidade inventiva de nossa época e sua afeição carinhosa pelos inventores
quaisquer, esta exceção a nossa regra de humanidade não existiria. O hábito com
efeito, de ver em todo inventor um benfeitor, mais ou menos dissimulado,
quaisquer que sejam os efeitos imediatos de sua descoberta, explica sozinho nossa
atitude singular, à vista das terríveis descobertas de engenhos militares, e mesmo
engenhos criminosos, que têm tornado a guerra tão mortal e o crime tão temível.
Os homens da Idade Média, muito mais rudes que nós todavia, faziam uma muito
diferente acolhida às novidades desse gênero. A balestra [225], à sua aparição, foi
anatematizada, notadamente pelo Concílio de Latrão em 1139 [226], como uma
arma desumana e feroz. Em todo lugar, ela foi, da parte da população, objeto de
uma indignação que levou muitos séculos para ser vencida. O mesmo grito de
indignação saudou mais tarde o arcabuz. Nos combates, não se faziam jamais
aquartelar os balestreiros primeiro, depois os arcabuzeiros, que eram considerados
como bandidos. Em nossos dias, ao contrário, é com uma calma perfeita, com
admiração, que acolhemos nossas novas armas, nossas balas cônicas, com
ferimentos tão dolorosos e quase sempre mortais, nossos fuzis de tiro rápido,
nossos torpedos próprios a fazer voar grandes navios com toda sua equipagem.
Sabe-se também com que brandura foram tratados, em Paris, os dinamitadores e
quanto, comparada ao alarme público por seus atentados assustadores, a
indignação pública contra eles foi fraca e de pouca duração. Eu sei bem que, no
escândalo causado na Idade Média pelas inovações militares, entrava um pouco
desse “misoneísmo” que fazia proscrever então os sapatos de bicos revirados ou o
chapéu feminino no momento de sua vinda, como também a balestra ou o arcabuz.
Eu sei bem, de modo semelhante, que, em nossa complacência em aplaudir ou em
aceitar todas as nossas novas armas, todos os nossos novos explosivos, há muito
desse “filoneísmo” que nos valeu o progresso de nossa indústria. Mas isso prova o
que o misoneísmo pode ter de bom, e o filoneísmo de mau, para não dizer
detestável; e aliás é claro que o misoneímo ou o filoneísmo, tendentes a se
regrarem pelos modelos antigos ou pelos novos, é sempre de imitatividade passiva
e cega – ou ao menos míope.
O Direito Internacional forma-se sob o império do ideal atual do Direito
Natural. Mas a prova que este ideal é transitório e demanda ser reformado é que,
aplicado, por sua vez, ao Direito Internacional e ao Direito Individual, ele
engendra, com o tempo, entre ambos, uma contradição não percebida. Considera-
se como um grande progresso moderno o respeito crescente à soberania dos
Estados pequenos ou grandes, como, em nossas legislações civis, o respeito
crescente à liberdade dos indivíduos. Porque aquilo que se chama liberdade para as
pessoas, chama-se soberania para as nações. Um Estado é soberano quando se o
julga livre para escolher a constituição que lhe apraz, o regime comercial que lhe
convém e para tomar todas as medidas militares que pareçam úteis à sua defesa ou
aos seus projetos, às suas ambições coloniais por exemplo. Mas não se percebe
que, em se respeitando além de um certo grau esse individualismo nacional, se nos
expomos a violar ou a deixar violar gravemente o individualismo pessoal, único
real. Com efeito, colocamo-nos agora tão longe da observação da regra relativa a
essa autonomia dos Estados que, quando apraz a um deles armar-se até os dentes,
arregimentar toda sua população válida, eriçar-se de fortalezas, gastar todos os seus
bilhões em couraçados ou em torpedos, os outros estados deixam-no fazê-lo,
sabendo que a tolerância desse abuso obriga-os a imitar, cedo ou tarde, este
exemplo, a arruinar-se assim em orçamentos de guerra. Ora, por conta desses
armamentos exagerados e necessariamente contagiosos, a liberdade dos indivíduos,
em cada Estado, encontra-se submissa a restrições, a impostos, a regulamentações
cada vez mais abusivas e tirânicas, que a reduzem a muito pouca coisa, enquanto a
liberdade desastrosa desses grandes leviatãs abstratos, os Estados, satisfazem-se
triunfalmente. E certo que a prática um pouco menos timorata do direito
incontestável de intervenção, – limitação necessária da independência dos Estados,
– teria, muitas vezes, conseqüências favoráveis à independência dos indivíduos, tão
ameaçados, de outra parte, – estranho contraste, – pelo o progresso do socialismo
de Estado. Suponhamos que, para lutar contra uma liga comercial das nações
americanas, os povos europeus tentassem organizar a seu turno um grande
zollwerein [227] continental, e que a obstinação de um único Estado europeu em
repelir esse regime, vantajoso para todos, fizesse fracassar a realização desse vasto
plano. Amaldiçoar-se-ia esse Estado. Mas ninguém lhe contestaria o direito de
isolar-se assim, em enorme prejuízo de todo nosso continente? É duvidoso. Após
haver visto como um grande progresso a expropriação de particulares por causa da
utilidade pública, ver-se-ia como uma retrogradação a expropriação de um Estado
por causa da utilidade européia.
Mas, observemos, não é senão entre povos civilizados à nossa maneira que
nós concebemos e praticamos esse respeito escrupuloso por aquilo que julgamos
ser o Direito Natural das Nações. Porque nós não temos nenhum escrúpulo em
expropriar, quando bem nos parece, os Estados bárbaros ou as tribos selvagens que
nos são vizinhas. Os índios encravados no território dos Estados Unidos sabem-no.

Capítulo Sétimo
O Direito e a Sociologia
I. Novas críticas contra a idéia da evolução
uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição.
Pretendida necessidade de transformações. Mutações
jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou
interiores de idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo:
o Direito Armênio. Retificação de erros. II. Novas
considerações em apoio à importância da imitação. As
histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das
sociedades. Origens das instituições feudais. Costumes
pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine” .
Retomada linear. Direito de primogenitura. Simplificação
dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os
juristas. III. Desempenho da invenção e da lógica.
Desenvolvimento reputado análogo ao Direito
Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica
social. O gênio inventivo subordinado às grandes
necessidades do organismo. Dualidade destas
necessidades fundamentais, de nutrição e geração;
necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente.
Convergências ou coincidências das morais. IV. O Direito
e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.

Em resumo, os estudos precedentes permitem-nos constatar que, em nenhum


dos principais ramos do Direito se aplica a tese da uniformidade da evolução; e,
além disso, eles nos fazem perceber o caminho por onde se devem procurar as leis
gerais que determinam as fases jurídicas, sem fazer obstáculo à rica diversidade de
seus cursos. Mas estas duas conclusões, uma negativa e outra positiva, valem o
trabalho de um exame mais aprofundado, e trataremos de fortificá-las por algumas
considerações de ordem ainda mais geral que têm por objetivo unir, por um liame
ainda mais estreito, o Direito à Sociologia.

I. Novas críticas contra a idéia da evolução uniforme.


Uniformidade e diferenciação: contradição. Pretendida
necessidade de transformações. Mutações jurídicas
sempre devidas a inserções exteriores ou interiores de
idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo: o Direito
Armênio. Retificação de erros.

Comecemos por formular novas críticas contra a idéia que combatemos. Os


partidários da evolução uniforme, seja em Direito, seja em toda ordem de fatos
sociais, lingüísticos, religiosos, políticos, econômicos, estéticos, morais, são os
mesmos que dão por característica primeira à evolução jurídica, como a todas as
outras, a de ter uma diferenciação. Eu sei bem que não existe aí inconseqüência, se
se entender a fórmula no sentido de que a diferenciação, entre cada povo em via de
evoluir juridicamente, opera-se da mesma maneira. Mas empresta-se-lhe também,
sem tomar cuidado, uma outra significação onde a contradição é flagrante. Por
exemplo, em comparando a história do Direito Francês àquela do Direito Alemão,
far-se-á ver, – com a satisfação evidente de aplicar uma vez mais a famosa lei
spenceriana, – que, partindo de um mesmo estado jurídico próprio ao Império
Franco, estes dois Direitos divergiram de maneira singular, sob a influência,
notadamente, do Direito Romano e do Direito Canônico infiltrados aqui e ali em
doses muito desiguais; de tal sorte que, salvo o esforço crescente de um e de outro
em direção à centralização legislativa, nada se assemelha em sua marcha. Mostrar-
se-á o quanto a Inglaterra e a França chegaram a legislações que não podem ser
mais desiguais, ainda que partindo de um ponto comum no século XII e mesmo
além. Do mesmo modo, dir-se-á que o início da evolução na Suécia e na
Dinamarca foi a comunidade de aldeia, mas que, desse comunismo igualitário,
saiu, por caminhos diversos, a organização aristocrática da Dinamarca e a
democracia sueca. – Em política semelhantemente. Desse ponto de vista, diz
Glasson [228], “a Idade Média resume-se a uma luta entre a Nação, a Igreja, a
monarquia e a feudalidade”. Ora, destas “quatro forças em permanente estado de
conflito para chegar à supremacia”, na Inglaterra, foi a primeira que acabou por
sujeitar as outras; na França, foi a terceira; na Alemanha, a última. Nada de mais
diferente que estas três evoluções. – Depois disso, que nos repitam que a evolução
é necessariamente a mesma em toda parte. Como conciliar a necessidade dessa
similitude com a necessidade dessas diferenças? E se as diferenças são tais entre
povos irmãos, em continua troca de exemplos e modelos, que será entre as nações
sem parentesco nem contato?
Todavia, a maior parte dos evolucionistas são muito sérios e muito sagazes
para fechar os olhos sobre as dessemelhanças profundas que separam as
transformações dos diversos Direitos. Mas eles se acreditam autorizados a não as
levarem senão fracamente em consideração, sob o pretexto de que, se em todas as
sociedades, a evolução fosse abandonada a ela mesma, ela se conformaria à sua
fórmula. O triste é que esta hipótese é inadmissível: Qual é, pois, o Direito que,
espontaneamente, sem influências exteriores e acidentais, – tomadas a um Direito
estrangeiro ou a inovações suscitadas por gênios originais mesmo indígenas, – não
seria nunca transformado? O Direito Romano teria indefinidamente permanecido o
direito quiritário, sem as guerras e as anexações que puseram Roma em
comunicação fecunda ou perturbadora com tantos povos estrangeiros, forçado o
pretor ao contágio de idéias exóticas, sugerida a idéia do jus gentium, depois do jus
naturae, e, por essa série de transfusões de sangues diferentes, regenerada a velha
Lei das Doze Tábuas. Uma forma social qualquer, língua, religião, Direito, quando
ela é fixada, isto é, equilibrada em permanência, é suscetível de duração indefinida,
se permanecer localizada e fechada, ao abrigo de invasões, por exemplo, numa ilha
afastada. Foi assim que os berberes das Canárias, os guanchos [229], perpetuaram
até o século XVI, época em que foram descobertos (ou redescobertos), o estado
social dos trogloditas da pedra polida, contemporâneos do homem fóssil de Cro-
Magnon, o que deu lugar a pensar que dele descendiam. Os berberes africanos, ao
contrário, inundados tantas vezes pelo transbordamento da civilização egípcia,
fenícia, romana, árabe, transformaram-se completamente [230]. Entre os tuaregues
[231], em particular, a mulher é emancipada a ponto de fazer reinar debaixo de sua
tenda um despotismo igual àquele da “dama” européia em sua casa; enquanto,
entre os guanchos, ela permanece escravizada [232].
A palavra evolução é enganosa. É tão suave de se pronunciar que dá
naturalmente a idéia de um deslizar sobre a areia sem obstáculo nem bloqueio.
Mas, se se entrar no detalhe, percebe-se que a fluidez, a continuidade aparente
emprestadas assim às séries de mudanças é imaginária. Tomai um Direito
qualquer, vós vereis que sua evolução, dita contínua, decompõe-se em inserções
laboriosas e muitas vezes sangrentas de novas idéias aportadas de tempos em
tempos, de um lado ou de outro, – não se sabe por quê, – ao imprevisto. Elas foram
enxertadas nele, seja por uma religião proselitista (cristianismo, islamismo,
budismo), seja por uma conquista exterior (Direito Romano infundido mais que
imposto aos vencidos, mesmo aos egípcios e aos gregos; Direito Inglês superposto
às leis hindus; Direito Francês islamizado na Argélia, etc.), seja por revoluções
intestinas que fizeram passar o poder dos patrícios aos plebeus, ou do Senado ao
Imperador ou da nobreza ao Terceiro Estado, etc., seja por um interesse
intermitente por instituições e legislações estrangeiras. Os exemplos desta última
causa de renovação jurídica são numerosos: que nos seja suficiente indicar a
influência exercida pelo Direito Romano mesmo fora do Império Romano, pelo
Direito Grego entre os bárbaros, pelo Direito Chinês em toda Ásia oriental, – pelo
Direito Canônico, em outro sentido, sobre o Direito laico da Idade Média e dos
tempos modernos.
Ora, no intervalo desses enxertos dolorosos, lentos para cicatrizar, nem
sempre vitoriosos, o Direito dito nacional parece não ter a menor tendência a
“evoluir”; ele não parece tender senão a assentar-se. Cada um desses progressos é
um golpe de chicote imprevisto que o desperta e o desvia. Pode-se pretender
seriamente que o Direito Romano clássico esperava e aspirava receber o abalo que
lhe foi comunicado pela propagação do cristianismo, que tão fortemente o
bizantinizou em seu último estágio? O que foi que, desde o seu nascimento,
predestinou-o a este abalo regenerador? E, para remontar ainda mais além: As
ações da lei tendiam elas mesmas ao sistema formulado? Os éditos dos pretores, as
leis votadas, os éditos reais, etc.: tantas fontes intermitentes de Direito, que não
correm jamais sem provocação. Há nesta pretendida necessidade de evolução
jurídica o que há naquela que constrange a linguagem a passar pelas três fases
sucessivas do monossilabismo, da aglutinação e da flexão. Os novos lingüistas
sabem que valor atribuir a esta fórmula...
Lancemos um golpe de vista sobre o Direito da Armênia, segundo Dareste.
Os armênios, meio arianos, meio semitas, tinham primitivamente um Direito
caracterizado, dizem-nos, pela vingança do sangue e pela constituição patriarcal da
família. Entre a influência do Império Persa e aquela do Império Romano, seus
dois grandes vizinhos, eles oscilaram. Mas sua conversão ao cristianismo, depois
das conquistas de Justiniano, puseram fim a sua hesitação, e, em 536, a legislação
de seus conquistadores foi superposta a seu Direito nacional, que permanecera
fortemente romanizado. Mais tarde as Cruzadas fundam um reino feudal no
Oriente; o Direito Armênio feudaliza-se. A prova de que, sem os acasos da guerra
e as inspirações do apostolado, sem as vitórias bizantinas e a propagação da fé
cristã, os Armênios teriam guardado seu velho Direito inalterado, fornecem-nos
seus vizinhos, os georgianos. Estes, em tudo semelhantes àqueles, mas que
permaneceram independentes, conservaram seu Direito primitivo; incorporados já
ao Império russo, eles eram ainda regidos por suas próprias leis. – Assim, lado a
lado, eis dois povos irmãos, os georgianos e os armênios, dos quais um
permaneceu sempre fiel à vingança do sangue e ao regime patriarcal, e onde o
outro apresentou a mais completa mistura legislativa. Mas essa mistura não é
menos um Direito nacional também, tornado tal sem qualquer contestação
possível, pela íntima fusão de elementos emprestados às fontes mais diversas, às
Leis de Moisés, às constituições dos imperadores bizantinos, aos concílios dos
primeiros séculos, aos costumes feudais [233]. Quanto ao Direito dos georgianos,
se nos parece mais homogêneo e unitário, não será talvez porque nós ignoramos
quase inteiramente sua formação histórica? O pouco que sabemos nos ensina, aliás,
que os diferentes ordálios admitidos na Geórgia tinham origens múltiplas.
Da tribo pele-vermelha ao Império Asteca, seguem-se as fases de uma
transformação bastante regular [234]. Evidentemente esta série de progressos
corresponde a uma série de invenções militares e agrícolas [235]. É ela necessária,
esta evolução? O exemplo de numerosas tribos indígenas que permaneceram
estacionárias prova o contrário. Foi ela uniforme na América? Nós podemos
responder pelo contraste das duas civilizações, asteca e peruana, que partiram do
mesmo estado selvagem e atingiram resultados opostos. O Império Mexicano,
quase em toda parte, substituiu o comunismo pelo individualismo, e sua
organização, essencialmente aristocrática e militar, tinha qualquer coisa de feudal.
O Império Inca era um grande falanstério pacífico e piedoso, uma teocracia
igualitária.
Muitos sábios, na verdade, não têm qualquer dificuldade em reconhecer que
a necessidade de mudança é fraca ou nenhuma entre os selvagens; chega-se mesmo
a emprestar-lhes um horror natural à mudança, que seria – coisa muito
extraordinária – a marca distintiva dessas crianças grandes. Mas, em revanche,
quer-se que o grau de civilização meça-se, de qualquer sorte, pelo apetite de
mudança. Daí a conseqüência que a evolução social devesse ser extremamente
lenta no início e que se fosse acelerando a cada passo. Essa persuasão geral parece
confirmada, à primeira vista, pelo espírito de rotina inerente a numerosos selvagens
ainda existentes. Todavia, se aplicar-se essa proposição à cada um dos aspectos da
vida social tomado à parte, em particular às evoluções lingüística e religiosa,
percebe-se que a verdade é, de preferência, o inverso desse preconceito filosófico.
Com efeito, as línguas nascentes, – por exemplo, o francês do século X, – são o
que há de mais instável, de mais continuamente cambiante; sua rapidez de
crescimento não diminui senão na idade adulta, onde estaciona. O francês não foi
muito mais alterado do século X ao XII, em duzentos anos, do que do XIII ao
XIX? E, desde há dois séculos e meio, quais mudanças foram tão importantes para
submeter sua gramática, ossificada, por assim dizer? Do mesmo modo que o
cristianismo nascente desenvolveu-se visivelmente até o Concílio de Nicéia [236],
depois disso, quase não mudou. – A evolução de uma arte nova, tal como a pintura
a óleo, do século XV ao XVI, a tragédia grega no século V antes da nossa era, a
tragédia francesa de Rotrou a Racine, etc., é mais rápida até o momento em que a
arte está formada, após o que detém-se, – equilíbrio móvel, – patinando sobre o
mesmo lugar ou progredindo bem lentamente, progresso insensível, penoso, como
aquele de um rio esgotado que se entranha nos deltas pantanosos em direção à sua
embocadura. De modo semelhante, tomai uma indústria qualquer a partir da data
em que ela é colocada ou recolocada a progredir. Vereis que cada uma dá lugar a
observações parecidas. Nossos tempos não fazem mesmo exceção à regra. O
século XIX tem por característica haver voltado, principalmente em direção à
indústria, seu gênio inventivo, admirável de resto, como as épocas anteriores
preferiram direcionar o seu rumo à jurisprudência, à teologia, à poesia, à
arquitetura, à pintura, à cultura da língua, – e desse modo inauguraram, em quase
todos os ramos da indústria, uma nova era de maravilhosas germinações, que são
um verdadeiro recomeço da história para cada uma delas. O espetáculo, pois, dessa
magia de transformações rápidas que assistimos até aqui é ele mesmo uma
verificação de nossa lei. Não acreditemos que essa febre durará para sempre. Já em
muitas das indústrias especiais chegadas a uma perfeição relativa, impossível de
ultrapassar momentaneamente, não se inventa mais, não se aperfeiçoa mais,
contenta-se em produzir e reproduzir, e o sucesso não é senão muito grande. Após
um período muito curto de ensaios, de criações, de metamorfoses muito profundas
e muito precipitadas, a indústria das estradas de ferro, definitivamente organizada,
lança-se ao mundo e não recebe senão aperfeiçoamentos secundários. Se ela fosse
mais “progressista”, ela não seria provavelmente tão próspera.
Tudo isso se explica, – se se quiser bem reconhecer conosco que toda
transformação é devida a um afluxo de pequenas ou de grandes invenções, – pela
exploração de uma nova mina de descobertas. São estas minas, como as outras: não
são jamais inesgotáveis, e a extração do mineral, abundante e fácil no início, torna-
se difícil e ingrata depois. – As pobres e pequenas pedreiras, de ordem filosófica e
mitológica notadamente, que propiciaram à curta imaginação dos selvagens, num
longínquo passado, a extração de seu idioma, seu culto, sua bagagem social, foram
depois longamente exploradas por seus ancestrais; daí sua estagnação atual.

II. Novas considerações em apoio à importância da


imitação. As histórias infantis e os mitos solares. A fase
feudal das sociedades. Origens das instituições feudais.
Costumes pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de
“aubaine” [237]. Retomada linear. Direito de
primogenitura. Simplificação dos procedimentos e da
gramática. Imitação entre os juristas.

Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três
grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação
para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação
para os fenômenos sociais propriamente ditos. Não quero repetir aqui [238] as
relações mútuas destes três agentes de analogia universal. É claro que se devem
levar em conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das
analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no
meio físico. Não é, pois, duvidoso que a influência dos climas e aquela das raças
não dêem a chave de um certo número de semelhanças observadas entre
sociedades de mesmo sangue ou que floresceram sob a mesma latitude. Mas muito
se tem exagerado a importância destas duas influências em Sociologia, porque se
despreza o papel dominante da terceira, que acaba sempre por usar as outras ou
imprimir-lhes sua marca. Aquilo que existe de contínuo, aquilo que existe de
necessário, aquilo que existe de submisso às leis cientificamente formuláveis, nos
fatos sociais, é o caráter comum a todos eles, e que é exclusivamente próprio ao
seu conjunto: o de serem imitativos ou imitados [239]. Imitação consciente ou
inconsciente, inteligente ou motora, instrução ou rotina, não importa. Falar, rezar,
trabalhar, guerrear, realizar obra social qualquer, é repetir aquilo que se aprendeu
com alguém que o aprendeu com outro alguém, e assim, em seqüência, até os
primeiros editores de cada uma das raízes verbais que se transmitem, de forma
idêntica, de boca a boca, desde há milhares de anos, como as ondulações luminosas
ou sonoras de átomo a átomo, ou até os primeiros autores de cada um dos ritos, de
cada um dos processos de trabalho, de cada um dos procedimentos guerreiros,
estocadas de esgrima, manobras, astúcias estratégicas que passam de homem a
homem ao longo de um tempo mais ou menos prolongado. Eu não digo que a
imitação seja toda a realidade social; ela não é senão uma expressão da simpatia
que lhe é preexistente e que ela redobra quando a expressa; e ela depende da
invenção, faísca da qual ela não é senão o fulgor. Ela começa por ser uma espécie
de serva da hereditariedade, por tanto tempo quanto o grupo social se reduza à
família e a transmissão de exemplos se limite ao estreito círculo dos parentes.
Depois, quando ela se liberta da geração, quando ela domina mesmo a seu turno,
tanto mais ela se curva sob uma outra regra: ela é subordinada, – nós o sabemos, –
às leis superiores da lógica, como a ondulação às leis da mecânica. Mas não é
menos certo que ela, sozinha, confeccione os tecidos sociais organizados pela
Lógica social. Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha
pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas variações geniais e fugidias, mas que
o sábio deve enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas mensuráveis,
únicas enumeráveis, únicas formuláveis em dados estatísticos ou em leis
científicas. O que era a física antes que a teoria da ondulação aí houvesse realizado
sua estréia e que muitas das leis da mecânica fossem conhecidas? Bem pouca
coisa. Tal será a Sociologia, enquanto dela não fizer parte, – uma larga e invasiva
parte, – a teoria da imitação.
Faltos de observarem a universalidade, a continuidade, a importância maior
do fato da imitação na História, muitos arqueólogos, muitos historiadores, mesmo
os mais circunspectos e os mais lúcidos, são conduzidos às mais errôneas induções.
Por exemplo: Não foi o estranho esquecimento desse fato elementar que, por longo
tempo, permitiu acreditar-se no abuso extravagante dos mitos solares? [240] Vê-se-
os em toda parte, não apenas lá onde eles realmente existem, mas em quaisquer
lendas de todos os povos e até nas histórias infantis. Como se havia reencontrado o
tema da Pele de Asno, do Pequeno Polegar, do Gato de Botas, etc., quase idênticos
entre povos separados pelas maiores distâncias, ficou-se maravilhado com esta
coincidência e acreditou-se não se poder explicá-la de outro modo senão que pela
preocupação com um mesmo fenômeno exterior, visível e igualmente notável em
todos os pontos da Terra. E qual fenômeno preencheria melhor estas condições
senão os movimentos periódicos do Sol no céu, seu nascimento, seu crescimento,
seu declínio, sua morte, sua ressurreição? E então, com grandes reforços de
etimologias de fazer cair os cabelos, mediante a transformação de Barba Azul
[241] em Indra [242], sob o pretexto de que ambos eram barbudos, ou qualquer
outra assimilação insolente, chegou-se a fazer adotar esta hipótese engenhosa por
espíritos sérios. Não havia a idéia de dizer-se que, depois de séculos e séculos, a
imitação, seja de criança a criança, tão poderosa, tão constante, tão universal, seja
de adulto a adulto, durante as vigílias em que se repetem as fábulas próprias a
agradar aos espíritos incultos, trabalho que espalha os contos populares, seria
largamente suficiente para fazer compreender sua difusão de um lado a outro da
Terra, até entre os zulus, onde se descobriram algumas de nossas récitas lendárias.
Eis aí uma amostra entre milhares de erros grosseiros que seriam evitados
em se tendo em vista a ação imitativa; mas há erros mais sutis, mais difíceis de
perceber, dos quais ela preservaria também os melhores espíritos. Está-se bastante
inclinado, entre os sociólogos, a tomar a constituição feudal [243], tão complexa e
tão característica, por uma fase necessária da evolução social, de não importa que
raça ou que nação. Fustel de Coulanges, ele mesmo, após haver observado que o
regime feudal se produz entre populações que nada têm de germânico, Gália
meridional, Império Bizantino, países eslavos, Hungria, Irlanda, do mesmo modo
que entre os povos que nada têm de romano, conclui assim: “Ele é produzido em
todas as raças; não é romano nem germânico, pertence à natureza humana.”
Todavia, antes de recorrer à hipótese quase miraculosa de uma geração espontânea
desse regime singular, em toda parte o mesmo, eu não sei em quantos diferentes
lugares, não haveria lugar para procurar se sua ubiqüidade relativa, – exagerada
aliás, – não seria explicável pelas vias mais simples da geração social ordinária,
quer dizer, da imitação? Ora, todas as pesquisas do eminente historiador que acabo
de citar tendem precisamente a mostrar que os elementos disseminados do regime
feudal existiam quase todos nas instituições do Império Romano, e que seu
desenvolvimento simultâneo, sintético, foi o resultado de circunstâncias muito
particulares, em que o mundo romano ocidental, especialmente a Gália,
encontrava-se após a queda do poder imperial. O alódio [244] não seria senão o
domínio rural dos galos-romanos, a cidade; o benefício [245] não seria senão o
precário [246]; o patronato é completamente romano. A imunidade é uma extensão
dada às isenções de encargos municipais que os imperadores concediam às vezes.
Que mais o mesmo autor nos ensina aliás?– E isto é uma luz bem mais viva ainda
jogada sobre a questão. – Que os antrustiões reais [247], a relação do rei
merovíngio com seus fiéis antrustiões, foi o primeiro embrião do liame da
vassalagem... – Mas, se é assim, qual é a idéia que se oferece naturalmente ao
espírito? É que a síntese desses elementos múltiplos sob a forma do feudo, da
homenagem e dos serviços feudais é um feliz reencontro operado em algum lugar
do mundo romano, e não alhures, e, deste canto do mundo, propagou-se pouco a
pouco, entre próximos, graças às vantagens momentâneas e também à
popularidade contagiante da qual se beneficiou, como tudo aquilo que o vento da
moda leva à popa. Como sabemos que a marcha da imitação é uma cascata liberada
do alto para baixo da pirâmide social, e dos povos mais civilizados aos mais
bárbaros, acolheremos sem trabalho que a idéia dos antrustiões reais foi imitada
pelos grandes senhores, depois pelos pequenos senhores, em se modificando, e
que, uma vez constituída na nação romana, a feudalidade difundiu-se na Germânia
e um pouco em toda parte [248]. O fato é que se a viu nascer na Gália mais rápido
que em nenhuma outra parte aliás, bem mais tarde na Irlanda, na Dinamarca, na
Suécia, no Império Bizantino; e, se não se tem sempre a prova de que ela foi
importada de fora nos países em que se a constata [249], nada mais admissível que
esta conjectura. A idéia da ogiva é certamente mais simples que a idéia da
feudalidade, e sua aparição, idêntica em muitos centros diversos de propagação na
Idade Média, no Império Árabe e na cristandade separadamente, repugnaria muito
menos à razão. Têm-se todavia motivos para pensar que se a tomou dos árabes ou
que eles a obtiveram de nós [250], mas, em todo caso, o gênio humano economiza,
mesmo aqui, o custo de uma dupla invenção supérflua.
Tudo o que há de nítido, de preciso, de característico nas similitudes de uma
ordem qualquer, lingüística, religiosa, política, econômica, jurídica que os
evolucionistas tenham observado entre diferentes povos, mesmo muito distantes,
tem por causa a imitação. Tais são, não é de duvidar, as analogias surpreendentes
apresentadas, desses diversos pontos de vista, pelos hindus, pelos germanos,
eslavos, celtas, latinos, helenos, nações que se mais agruparam, sob o nome de
arianos, em uma mesma raça hipotética. Hipótese verdadeira ou falsa, mas que,
mesmo aqui, tem tido a culpa de embair o espírito filosófico e de fechar os olhos à
evidência. Por uma verdadeira petição de princípio, após haver concluído o
parentesco fisiológico desses povos, porque se haviam constatado semelhanças
entre suas línguas ou suas instituições, deixou-se pensar que elas eram semelhantes
porque eles eram parentes. Confundiram-se duas coisas que, mesmo que
estivessem relacionadas uma a outra nesse caso, nem por isso deveriam ser menos
distinguidas; tomou-se por uma herança vital o que não era evidentemente senão
uma herança social. A linguagem e a religião muito se transmitem em geral, e
salvo muitas exceções notáveis, dos pais aos filhos, os filhos não as herdam do
mesmo modo como herdam os traços físicos de seus pais; fala-se, não a língua de
sua família, se dela se está sempre separado, mas a língua das pessoas que se ouve
falar durante a infância. Isso é muito claro. Por que, pois, desde que se descobriu
um fundo comum de raízes verbais, de mitos, de processos, de formas
embrionárias de governo nas nações indo-européias, apressa-se a decidir que elas
tiveram ancestrais comuns, como se esta indução não sofresse qualquer dúvida?
Triste é que, uma vez a árvore genealógica dos soi-disant arianos definitivamente
traçada, assim como aquela dos semitas e de outras grandes famílias possíveis,
percebe-se, entre povos heterogêneos, similitudes senão lingüísticas, ao menos
religiosas e jurídicas, iguais em precisão e em importância àquela dos povos
reputados congêneres. Por exemplo. Os arianos, entre eles, não nos mostram, em
parte alguma, coincidência mais completa que aquela que, segundo Seignette
[251], revela-se entre os costumes dos árabes antes de Maomé e as instituições dos
romanos primitivos. “O poder paterno em todo seu rigor, a tutela perpétua das
mulheres, o testamento, a hereditariedade dos agnatos [252], dos chefes e dos
gentios, sua tutela, a tutela testamentária, o nexum, a pignoris capio, o abandono
noxal [253], o talião, a composição legal, as relações de patrão a cliente foram
costumes inscritos na Lei das Doze Tábuas. Eles correspondem a usos pré-
islâmicos identicamente semelhantes, dos quais alguns foram mantidos, outros
abolidos pelo Alcorão.” Se se relacionar a vizinhança da Arábia e da Índia, onde
reinaram costumes análogos, e a tendência mútua dos povos vizinhos a
emprestarem-se suas instituições civis, bem mais que suas religiões e sobretudo
seus idiomas, explicar-se-á sem trabalho essas semelhanças por uma ação
imitativa.
O que confirma esta interpretação são muitos outros pontos de contato
jurídico entre arianos e semitas. Eles apresentam uma tal precisão que sua aparição
espontânea é absolutamente inconcebível. Foi espontaneamente que se pôde
produzir a estreita similitude do direito criminal ou civil israelita com a legislação
ateniense e os costumes hindus? Em Israel como em Atenas, o direito de asilo era
aberto em certos lugares designados aos homicidas involuntários; a vingança do
sangue não podia realizar-se, senão após conduzir-se o culpado perante os juízes e
fazê-lo condenar, se agiu com intenção de matar. Aliás, a influência grega trai-se
claramente nos códigos rabínicos, pelo emprego de palavras técnicas tomadas do
grego (Dareste). Em Israel, como na Índia, existe a responsabilidade penal dos
habitantes das comunas. Como na Grécia e na Índia, o irmão deve desposar a viúva
de seu irmão morto sem filhos; e, enquanto a Lei ordena, entre diversos semitas, a
prostituição das filhas, ela a interdita entre os hebreus. O credor israelita pode fazer
penhorar os móveis de seu devedor, mas não tem o direito de penetrar em sua
morada. Ele deve esperar à porta: último traço, sem dúvida, – diz Dareste, – do
antigo costume de constranger pelo jejum, do qual falam o Código de Manu e as
leis irlandesas. Como os germanos de Tácito, os israelitas possuem a instituição da
Ketubá [254], dote constituído pelo marido a sua mulher. “O marido, que é o
único a ter o direito de divórcio, compromete-se a não usar deste direito, senão
mediante o encargo de pagar à sua mulher uma certa soma”, que é a ketubá,
garantia engenhosa concedida à esposa contra a onipotência marital. O Direito
Hebraico tem também traços de semelhanças marcantes com o Direito Romano,
notadamente por uma certa maneira de redigir o contrato de venda, que relembra
nosso testamento místico. – Manifestamente, tais concordâncias não saberiam ser
inatas.
Muitos fatos que devem parecer anomalias, se se lhes aplicar a fórmula
estreita da evolução, são conseqüências muito simples do princípio da imitação.
Por exemplo, o direito de aubaine, este odioso costume próprio aos tempos da
barbárie, não se atenuou, mas, ao contrário, agravou-se desde os tempos
merovíngios até a belle époque da Idade Média; isto é, à medida em que a Europa
se civilizava ou se desbarbarizava. No início, segundo Viollet, ele não se exercia
senão contra os estrangeiros desconhecidos e sem consideração, e não contra os
estrangeiros conhecidos e considerados. Mas, pouco a pouco, estendeu-se a todos.
Eis um singular progresso jurídico e bem às avessas do que se poderia predizer de
acordo com as fórmulas em curso. Mas explica-se o fato, seja por considerações de
ordem fiscal, seja, – eu creio, – em se relacionando sobretudo que, sob os
merovíngios, malgrado a barbárie da época, a sobrevivência das estradas romanas e
dos hábitos romanos de viagem multiplicava os contatos assimiladores com o
estrangeiro e deixava ver ainda nele um compatriota social; ainda mais que o
fantasma do imenso império reinava sempre nas imaginações. Mas, mais tarde,
quando a feudalidade estabelecida encerrou cada feudo em si, sem comunicação
com os de fora, estrangeiro e inimigo voltaram a ser sinônimos. Depois, nos
séculos XV e XVI, o movimento de viagens, de relações internacionais e
interfeudais é retomado, anima-se e conduz à supressão do direito de aubaine.
Às vezes a imitação parece não ter nada a ver em certas similitudes
históricas que a identidade da natureza humana parece suficiente para explicar; e
todavia é incontestável, de sua parte, e de larga parte, que ela tem ação. Porque, ao
lado da imitação irradiante, existe a imitação difusa, e, ao lado da imitação em
linha direta – por assim dizer, que reúne duas coisas uma a outra por uma série de
cópias, – há a imitação colateral que, por séries do mesmo gênero, relaciona-as
separadamente a um modelo comum, muito antigo às vezes. À forma difusa da
imitação importa muito considerar. Assim, notam-se curiosamente similitudes
surpreendentes que apresentaram a organização dos exércitos sob os imperadores
dos últimos séculos, – caixa de dotação da armada, causas de exceção, exoneração
mediante uma soma em dinheiro variável, etc. – e sob o Império napoleônico.
Tem-se observado também, e Taine [255] foi um dos primeiros, que a
administração romana em geral, após a reforma de Diocleciano, parecia-se
espantosamente com a que saiu pronta do cérebro de Napoleão. É de crer todavia
que o grande corso haja copiado Diocleciano? Não diretamente ao menos. Mas
como ele, e não menos que ele, estava romanizado e latinizado até a medula dos
ossos pela educação clássica; e, independente de toda influência racial, não é
surpreendente que esses dois grandes espíritos batidos pela sorte, semelhantemente
à efígie de Roma e de César, hajam concebido o mesmo programa de
reorganização militar e civil em conjunturas um pouco análogas.
Mostramos muitas vezes, mais acima, um outro gênero de ação indireta, de
uma importância capital. O funcionamento prolongado da imitação em todas as
ordem de fatos sociais tem-se exercido sobre o Direito, alargando incessantemente
o círculo de simpatia e de fraternidade. A civilização, a bondade, a justiça jamais
puderam florir aqui embaixo, senão no cercado, onde devem existir sem cessar,
recuadas dentro de muros, até que estas plantas preciosas possam um dia ser
cultivadas em plena terra. Nós não o veremos. Mas talvez possamos fazer observar
a ação direta, imediata, da imitação sobre o Direito, quando ela tem a ele próprio
por objeto. É através dela que, com o tempo, a unificação jurídica das diversas
classes e das diversas províncias de uma nação não pode deixar de operar-se. Ela
unifica as classes tanto quanto as províncias pela eterna tendência de o inferior
imitar o superior. O costume jurídico dos grandes desce, através dos diversos
estágios da nobreza, às últimas classes da plebe, e tende a fazer desaparecer a
diversidade de seus costumes próprios. De modo semelhante, as grandes cidades
passam suas legislações às pequenas, as pequenas aos burgos, e sua costumeira
disparidade desaparece. As nações mais brilhantes irradiam-se do mesmo modo
sobre as mais obscuras. Já indiquei acima a descida contagiosa do direito de
primogenitura da nobreza ao povo. Retomemos este instrutivo exemplo. No início
do período feudal, o direito de primogenitura e o direito de masculinidade, ligados
conjuntamente, não se formularam no princípio com precisão, senão que para a
sucessão real. Depois, os grandes senhores, a seu turno, e, após eles, todos os
possuidores de feudos [256] modelaram-se sobre o rei. Todavia, os plebeus
permaneceram ainda fora desse movimento. Nas colônias de São Luiz diz-se que o
pai plebeu não pode avantajar a um de seus filhos, mesmo em face de móveis e de
bens adquiridos. Dito de outro modo, os plebeus tinham então o privilégio de viver
por antecipação sob o império de uma legislação igualitária e democrática.
Tiveram eles a idéia de apreciarem sua felicidade? Não. Eles não tiveram senão o
mais vivo desejo de copiar o exemplo retrógrado vindo do alto. A partir do século
XVI, talvez antes, a plebe vangloriava-se de ter também o direito de fazer um
primogênito. Em Béarn [257], a regra aristocrática estendeu-se à herança dos
plebeus. Do mesmo modo, na Normandia “a indivisibilidade dos grandes feudos,
consagrada pela Corte de Justiça [258] e pelo Grande Direito dos Costumes,
estendeu-se, com os anos, aos simples subvassalos, aos feudos ordinários e aos
plebeus com terras adquiridas mediante aluguel, mas que se poderiam adquirir a
termo fixo [259], e, nesta província, a igualdade da partilha não era observada
senão para os bens de herança plebéia [260], que formavam uma classe
intermediária entre o feudo e o alódio.”
Não quero dizer por aí que a imitação haja sido aqui, não mais que em toda
parte aliás, cega e desinteligente. Se se imita o superior, não é apenas por
“sugestão”, é também por vaidade ou por um interesse familiar. Os pais plebeus
julgavam o direito de primogenitura muito próprio a consolidar e elevar sua
família. Mas não se deve esquecer que, se este objetivo, a perpetuidade e a
ascensão social da família, entrou e ancorou-se em seu coração, a visão da nobreza
não era estranha a esta preocupação, de nenhum modo espontânea entre os hilotas.
Qualquer que seja, aliás, a causa da imitação, é seguro que se imita e que, se não se
houvesse imitado, jamais o direito de primogenitura reinaria em toda parte onde se
o viu estabelecido no século XVIII.
Outro exemplo. “A retomada linear [261] introduziu-se primeiro apenas para
os feudos e foi a seguir estendida às heranças tidas por plebéias, mas com o mesmo
objetivo, para conservar as propriedades da família.” Vê-se, entre parênteses, pela
maneira através da qual esta retomada veio às famílias plebéias, que é difícil olhá-
la como um resto de um comunismo primitivo e soi-disant democrático. – Outro
exemplo ainda. Nos países de direito consuetudinário, com a dissolução da
comunidade, a mulher nobre tinha sozinha, originariamente, o direito de repudiar
ou de aceitar a comunhão, fazendo inventário nos quarentas dias que se seguiam ao
falecimento do marido. Mas, pelo final da Idade Média, “a prática tendeu desde
então a estender-se à viúva plebéia, que viria a desfrutá-la definitivamente na
reforma do Costume de Paris em 1580.
Segundo John (citado por Viollet), cada povo germânico tinha seu direito
próprio; mas, pouco a pouco, quando se estabeleceu o Império Franco, um único
desses Direitos, aquele dos francos, e aquele dos mais ilustres, dos francos sálios
[262], a saber, a Lei Sálica [263] suplantou todas as outras. A unidade jurídica
operou-se assim numa sociedade da mesma maneira que a unidade lingüística:
todos os dialetos são expulsos sob o nome de algaravias pelo dialeto invasor da
capital. – Num grupo de pessoas em contato, o mais civilizado comunica seu
Direito a seus vizinhos por uma sorte de exosmose jurídica. É assim que, na Idade
Média, o Direito Alemão penetrou na Boêmia e na Polônia. E ele introduziu-se
primeiro pelas camadas mais esclarecidas da população, pelas cidades. O Direito
de Magdebourg serviu de modelo à maior parte das cidades tchecas do Norte e a
quase todas as cidades polonesas. – A influência italiana, na mesma época fez-se
sentir na legislação dalmática.
De uma outra maneira ainda, em sentido diferente, a imitação trabalha para
unificar o Direito. Uma língua que possui muitos tipos de declinações ou de
conjugações termina, com o tempo, por dar preponderância a um desses tipos,
objeto de imitação crescente, sobre o qual se declinam ou se conjugam desde então
todas as palavras novas. Por que este modelo é imitado cada vez mais e, enfim,
exclusivamente? Unicamente porque ele era já um pouco mais imitado. A
imitação serve aqui de razão suficiente a ela mesma. Em latim, a primeira e
segunda declinações prevaleceram (rosa, rosae; dominus, domini). Em francês, a
primeira conjugação. Também todos os verbos novamente criados conjugam-se
sobre aimer, não sobre vieillir ou sobre recevoir. Diz-se hypnnotiser, magnétiser,
dérailler; não se tem idéia de dizer hypnnotisoir, magnétisir, déraillir. É o mesmo
em Direito. Quando um Direito possui muitos procedimentos próprios a alcançar
um mesmo objetivo, – por exemplo, muitos modos de libertação de escravos, – um
só dentre eles acaba por prevalecer e reduz os outros ao estado de velharias. Sob os
merovíngios, havia na Gália sete ou oito maneiras de libertar, umas de origem
germânica, outras de origem romana – pelo denário, pela lança, pela flecha, pela
Igreja, pela carta. – Mas no século VIII, a libertação pela carta, quer dizer, por
escrito, era a única usada. – Esta simplificação dos procedimentos, não sem
relação, – vê-se, – com o abrandamento dos processos que foi questão mais acima,
distingue-se todavia, do mesmo modo que a simplificação análoga das gramáticas
não deve ser confundida com o abrandamento fonético. Porque, freqüentemente,
não há motivo apreciável para preferir o procedimento ou a forma gramatical
escolhida. Não se dá o mesmo com outros gêneros de unificação, onde a imitação
aparece a serviço da razão. Por exemplo. No fim do Império Romano, vemos
justaporem-se, de acordo com Fustel de Coulanges, muitas classes diferentes de
agricultores: “escravos trabalhando em comum, escravos com posse especial de um
feudo, pequenos fazendeiros livres, colonos fixados ao solo”. Ora, pouco a pouco,
a última classe, modificando-se, estendeu-se progressivamente, porque ela pareceu
apresentar mais vantagens, e afastou todas as outras. Na Idade Média, unicamente
ela existia.
É curioso notar a maneira pela qual a imitação jurídica age no mundo
especial dos magistrados e dos jurisconsultos. Aqui é altamente consciente e
reflexa; e responde a uma necessidade de uniformidade e de estabilidade tão
necessárias à segurança do sujeito à jurisdição, tanto que é, muitas vezes,
obrigatória. Mas, não fosse ela, pode-se assegurar que se operaria da mesma forma.
Entre as inumeráveis interpretações a que os textos legais, como os versículos das
Escrituras, são susceptíveis, o juiz deve escolher; e se ele escolhesse
arbitrariamente, em cada processo, sem preocupar-se com suas soluções passadas
nem se detendo perante espécies análogas, para as Cortes superiores, a unidade da
legislação não impediria a anarquia jurídica. Também o juiz é, necessariamente,
essencialmente rotineiro; esta santa rotina – que se chama sua jurisprudência – é
objeto de seu culto mais fervoroso [264]. Mas ele não está sempre preocupado no
mesmo grau em não contradizer-se, em não desviar-se de sua linha e da de seus
predecessores; ele o é cada vez menos, quando o espírito de conservação e de
tradição abaixa na sociedade ambiente; e então, ele, de preferência e cada vez mais,
cuida de decidir como a maior parte dos outros juízes, seus contemporâneos,
quando não são eles mesmos seus superiores hierárquicos. Sua imitatividade
incurável, e sempre inteligente, volta-se em direção ao novo modelo de preferência
ao antigo; a moda torna-se-lhe mais cara que o costume, como ao próprio
legislador a ao público. Porque a estabilidade da legislação não é um bem menor
que sua uniformidade. Mas não se aprecia mais a primeira em certas épocas, senão
que aspirando à outra em outros tempos. Hoje, queremos muito ver leis uniformes
para todos, para todas as classes e todas as províncias, mas nós as alteramos à
vontade. Outrora, aplicavam-se teimosamente as velhas leis costumeiras, mas
suportava-se sem muita trabalho o fracionamento da França e a divisão em
camadas da sociedade francesa numa multidão de diferentes leis. E bem: o juiz
participa um pouco dessas mudanças de vento sobrevindas à atmosfera pública, de
sorte que seu próprio gênero de imitação, por excepcionalmente racional que ela
seja, não deixa de ser, em parte, uma sedução.
Pode-se ver ainda a prova no fato de que o juiz francês de nossos dias, não
contente em conformar-se aos arestos de seus colegas ou aos seus próprios,
esforça-se por tomar decisões conformes às opiniões teóricas expressas pelos
comentadores acreditados de códigos. Ora, esse respeito um pouco supersticioso
pelos “autores” compreender-se-ia muito bem da parte dos magistrados romanos,
entre os quais nasceu. Os romanos não conheciam nada análogo às nossas
coletâneas de arestos e, por conseguinte, àquilo que chamamos “jurisprudência”;
eles não tinham, aliás, juízes permanentes. Foi, sem nenhuma dúvida, na falta desta
autoridade reguladora de precedentes judiciais, que eles sentiram a necessidade de
criar uma outra, atribuindo às respostas dos prudentes uma considerável
importância. Nossos juízes da Idade Média e também do Antigo Regime, na falta
de coletâneas de arestos regulamentares reunidos e publicados, deviam inclinar-se
diante da opinião dos grandes juristas de seu tempo. Mas nossos juízes atuais, que
podem abster-se desse modelo exterior, pois que eles têm o modelo interno, como
se dá que respeitem a “doutrina” quase tanto quanto a jurisprudência?
Eis aí uma verdade dupla, a acrescentar às numerosas duplas jurídicas que
Viollet finamente notou [265] e todas, de resto, são testemunhas eloqüentes a favor
do poder da imitação. Porque, seguramente, podem-se encontrar excelentes razões
para justificar, mesmo em nossa época, a submissão dócil de nossos advogados, os
mais radicais e os mais inovadores, à autoridade de um Troplong ou de um
Demolombe, dos quais uma citação faz ganhar ou perder um processo. Mas
estejamos bem certos de que, se os romanos, nossos mestres, não elevassem à
classe de leis as responsa prudentum, e, se nossos pais, a seu exemplo, não
houvessem recolhido como oráculos as opiniões de um Dumoulin ou de um
Pothier, uma meia dúzia de escritores jurisconsultos não se encontrariam hoje
investidos, entre nós, do estranho direito, sem nenhum mandato, de dizer o Direito
para todos.
III. Desempenho da invenção e da
lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito
Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica
social. O gênio inventivo subordinado às grandes
necessidades do organismo. Dualidade dessas
necessidades fundamentais, de nutrição e geração;
necessidade e dificuldade de harmonizá-las
juridicamente. Convergências ou coincidências das
morais.

Mas nem todas essas similitudes, mesmo de origem social, que apresentam
as legislações ou, para melhor dizer, as atividades jurídicas dos diversos povos,
têm a imitação por causa. Muitas erguem-se pela lógica. Se o homem é imitativo, é
porque ele é inventivo; se a ação niveladora e contínua da devolução de exemplos
persegue seu curso, dividida em milhões de rios, riachos e valetas que contribuem
cada um para o que se poderia chamar de as formações sedimentares da
civilização, é, eu repito, porque, de tempos em tempos, grandes ou pequenas
inovações, montanhas ou colinas, têm surgido. E, se o homem é inventivo, é
porque ele é lógico. Lógico ou inventivo, é tudo o mesmo no fundo. Uma
invenção, uma descoberta não é senão a resposta a um problema, e esta resposta
consiste sempre em ligar uns aos outros, por relação fecunda de meio e fim, modos
de ação precedentemente separados e estéreis, ou ligar uns aos outros pela relação
não menos fecunda de causa à conseqüência, de idéias ou de percepções que,
anteriormente, pareciam não ter nada em comum [266]. E é verdade que, em se
fazendo, dessa sorte, confirmar ou entreajudarem-se idéias ou atos, crenças ou
desejos, a invenção tem freqüentemente por efeito tornar inúteis ou incômodas as
invenções anteriores e, por conseguinte, criar novas contradições ou
contrariedades. Mas faz-se então sentir, – mais ou menos viva e geralmente,
segundo tempos e lugares, – a necessidade de remediar esse mal-estar, de
promover entre eles acordos parciais. Esta é a obra dos fundadores de religiões ou
dos filósofos na esfera da inteligência; dos moralistas e legisladores na esfera da
atividade. Esta elaboração lógica não é também uma grande invenção, uma
descoberta superior? Na medida em que experimenta a necessidade de descobrir e
de inventar, segundo o sentido ordinário da palavra, um povo experimenta também
a necessidade de coordenar originalmente suas descobertas e necessidades que
foram suscitadas. E seus sistemas de filosofia, do mesmo modo que seus códigos,
são máquinas grandiosas que fazem honra ao gênio humano, como o telégrafo
elétrico ou a fórmula da atração. O legislador está para o engenheiro assim como o
filósofo está para o sábio. Uns e outros são diferentes obreiros da lógica social; eles
respondem, cada um por sua parte, a este problema maior que, como todos os
outros problemas nascidos de nossas necessidades, renascem de suas próprias
soluções, tornam-se paixão, depois se abrandam e se resolvem em repouso, para
renascerem mais exigentes, inquietantes às vezes.
Ora, se existem razões para pensar que esse trabalho lógico, em se
prolongando, deve chegar a resultados divergentes, característicos, artísticos; é
também de crer que, sob muitos aspectos, seus efeitos serão fatalmente bastante
semelhantes. Essas similitudes serão de duas espécies: umas serão simplesmente
formais; outras, substanciais.
Eis um exemplo das primeiras. Dareste sinala, en passant, entre o
desenvolvimento do Direito Muçulmano e aquele do Direito Romano, uma
similitude incontestável, mas que se trata de bem interpretar. Os grandes
jurisconsultos árabes trabalharam sobre a base um pouco estreita do Alcorão, como
os grandes jurisconsultos romanos, sobre o fundamento não menos estreito da Lei
das Doze Tábuas. Aqueles, como estes, desenvolveram o Direito pela via da
autoridade doutrinal, inovando sem cessar sob o pretexto de comentar. Hanifat,
Malek, Chefeï e Hanbal, do VIII ao IX século, “criaram o Direito Muçulmano,
como antes deles Sabinus e Labéon criaram o Direito Romano. Roma tivera os
sabinianos e os proculianos [267]. O Islã teve os hanifitas, os malequitas, os
chefeïtas e hanbalitas, todos igualmente ortodoxos”, mas de horizonte mais ou
menos amplo. “Enfim, esse grande movimento terminou entre os árabes como em
Roma. Em um certo momento, a criação parou e sobreveio a esterilidade.” – É
muito justo. Mas, para ver bem o significado dessa aproximação, é necessário
compará-la a muitas outras, na esfera jurídica ou mesmo fora dela. O Direito
Hebreu desenvolveu-se de modo muito semelhante. Grandes rabinos elaboraram a
Lei de Moisés, tornada pouco a pouco a Michná e o Talmude; eles fundaram
escolas rivais e seu trabalho, enfim, parou, chegando a uma perfeição relativa. Do
mesmo modo, em todo país que se civiliza, vêem-se gramáticos sábios elaborarem,
depurarem, estenderem, fixarem a língua nacional, espécie de Alcorão caído do
céu, do qual eles são os respeitosos e engenhosos comentadores ou falsificadores.
Cada idioma cultivado tem seus Vaugelas, chefes de escolas divididas; e, em toda
parte, após haver apaixonado os espíritos, – os nossos, na França em meio ao
século XVII, – esta fermentação gramatical tem fim quando a perfeição relativa da
língua parece obtida. Da mesma maneira ainda em religião. Sobre uma Bíblia ou
um Evangelho trabalham, num dado momento, teólogos famosos que argumentam,
comentam, coordenam, desnaturam, sistematizam, dividem-se em seitas ou em
heresias até que, enfim, a ortodoxia é uma vez fixada. A era dos grandes teólogos e
dos grandes heresiarcas encerra-se por um certo número de séculos ao menos. O
budismo, o bramanismo, o judaísmo, o islamismo, como o cristianismo,
atravessaram esses períodos.
O que é preciso admirar aqui é, em toda ordem de idéias, a duração relativa
de obras lógicas, de sistemas coerentes formados por uma longa e pertinaz reflexão
ou por uma colaboração secular, qualquer que seja, aliás, a heterogeneidade de
seus elementos importados de fora. Uma língua, sobretudo considerada em seu
lado gramatical, é um desses todos lógicos; e sabe-se a persistente vitalidade das
línguas, sobretudo de sua gramática, ainda mais que seu dicionário. Uma religião,
quando é condensada em teologia, o que não se pôde fazer com o paganismo
helênico, apresenta o mesmo caráter. Da mesma maneira, um código. Viu-se,
através de invasões e catástrofes, o Corpus Juris reinar na Europa até os nossos
dias. Fenômeno ainda mais notável, a Mischná, que é o Corpus Juris dos judeus,
devida à elaboração dos grandes jurisconsultos hebreus, tem persistido e dura
ainda, malgrado a dispersão do povo. Esta força de resistência inerente a tudo o
que é sistemático, e esta tendência de toda coisa social a sistematizar-se, eis
similitudes que nada têm de imaginário; e elas têm um caráter de universalidade e
de profundidade totalmente diverso das semelhanças tão exageradas de idéias e de
instituições entre civilizações heterogêneas.
Mas o que isso significa? Quer isso dizer que haja uma fórmula mágica de
evolução por onde tudo seja forçado a fluir? Não. Isso quer simplesmente dizer que
o homem é um animal lógico, e que sua necessidade de coordenação sistemática
tem acessos de excitação seguidos de calma. Vemo-la nascer e crescer nele. Ele se
alimenta, durante certo tempo, de suas próprias satisfações. Dadas percepções
incoerentes, o árabe, o hindu, o hebreu primitivos procuraram vagamente um
acordo; um dia, eles acreditaram havê-lo encontrado, graças ao ensinamento
religioso de um homem aclamado como divino ou semidivino; e, de pronto, sua
sede de verdade, dita de crenças sistematizadas, de fraca que era, tornou-se muito
forte. Também a elaboração lógica que produziu esta palavra divina e que explica
seu sucesso não parou nela; continuou após ela. Porque esta palavra apresenta
obscuridades e, aplicada aos fatos, ela faz surgir mil dificuldades novas. Trata-se
de dissipar estas dúvidas, de completar a harmonia; nesta tarefa trabalham
ansiosamente os teólogos. Vê-se, eles não fazem senão prosseguir na obra do
fundador de sua religião. Como ele, eles partem de dados contraditórios a
conciliar; estes dados, para eles, teólogos, como para ele, fundador de uma religião,
são fatos e textos. Depois, quando todos os meios possíveis de conciliação foram
imaginados, o melhor é adotado: o monumento teológico parece chegar ao seu
coroamento. – É isso bem verdadeiro todavia? Nós sabemos que cedo sobrevêm
novos dados, observações e experiências científicas ou muitas idéias suscitadas
pelo contato com religiões estrangeiras. Daí novos esforços para resolver esses
novos problemas. E assim por diante.
Tratam-se de desejos e não de crenças a harmonizar? A lógica das
sociedades não procede de outra forma. O coração humano nasce povoado de
desejos tão incoerentes quanto suas idéias; fazer um mundo desse caos,
transformar, seja no seio do indivíduo, seja, por conseguinte, no do grupo social,
esta incoerência em mútua assistência, eis o problema que se colocou aos primeiros
legisladores confundidos freqüentemente com fundadores de cultos. Ele é
resolvido por uma lei reputada divina, Lei de Moisés, de Zoroastro, de Manou, de
Maomé. Mas, após um certo tempo, novas necessidades, novos comandos íntimos
engendrados pelas invenções civilizadoras, pelos contatos com povos estrangeiros,
como ocorreu com Israel e com o Islã, tornam difícil conciliá-los com os comandos
legais. Então, esforçam-se os jurisconsultos de um lado, os casuístas de outro, por
dissimular as dissonâncias ou absorvê-las numa harmonia superior. Eles são
reputados como quem não obra senão a extensão da venerável Lei; mas, na
realidade, eles se esforçam por substituir em parte, às suas ordens, por ordens não
menos imperiosas que ditam as novas necessidades. “Contornar a lei para provar
que se a respeita” é máxima de uma prodigiosa antigüidade. Os rabinos trataram a
Lei de Moisés como os pretores o jus quiritium. Como a prescrição relativa ao ano
sabático – que, a cada sete anos, extinguia as dívidas – molestava bastante,
começaram por demonstrar que havia algumas exceções à regra. “Ela não se
aplicaria nem às mercadorias vendidas a crédito nem aos salários, nem às
obrigações impostas pelos tribunais.” Depois, graças a esta última exceção, famoso
Hilel [268], contemporâneo de Jesus Cristo, forneceu um meio de subtrair um
crédito qualquer a esta prescrição sagrada: “O credor não precisa fazer mais que
remeter seu título ao tribunal, que lhe dá em troca um título judicial.” – Pela via da
ficção também, como observou Sumner-Maine, o Direito transforma-se um pouco
em toda parte. Do mesmo modo que, em lingüística, o progresso se opera pela
adição de um sentido figurado ao sentido próprio das palavras, da mesma maneira,
em Direito, a adoção, parentesco figurado, acrescenta-se ao parentesco natural, etc.
– Os autores destas engenhosidades fazem, definitivamente, a mesma coisa que
havia feito o próprio autor da Lei, em a compondo: Maomé, por exemplo, não
fizera senão refundir os antigo costumes árabes e apropriá-los à sua época. Depois,
chegou momento em que o edifício da jurisprudência e da casuística parecia
completo. Admira-se-o, diz-se-o inviolável, por tanto tempo quanto, ao menos, o
estado social não é inovado. Mas quando esta renovação tem lugar, a elaboração
lógica retorna mais bela, sempre a mesma, no fundo. Apenas parece que os
legisladores modernos, diferentemente dos antigos, não têm em conta os
precedentes legislativos. Todavia, isso não é senão uma vã aparência. A faculdade
de tudo transtornar legislativamente, que pertence, em teoria, aos nossos deputados
e senadores, não é senão nominal; eles são forçados a respeitar, numa certa
medida, as leis antigas, os hábito jurídicos das populações e também a inspirarem-
se em suas necessidades, velhas ou novas, que eles devem satisfazer de modo
conforme a esses hábitos. De fato, sua onipotência aparente não é senão uma dócil
obediência ou constrangimento a essas necessidades, a essas ordens de seus
eleitores. Tais ordens são para eles o que eram para os rabinos os preceitos de
Moisés ou, para os jurisconsultos árabes, as prescrições do Alcorão. Jurisconsultos
antigos ou legisladores contemporâneos realizam, igualmente, ato de submissão a
comandos superiores que eles elaboram de maneira lógica, submetendo-os,
hierarquicamente, uns aos outros. Após o que, os textos votados e promulgados,
nossos comentadores atuais, professores, juízes, conselheiros, fazem dizer, sob a
forma de jurisprudência ou doutrina, uma multidão de coisas com as quais seus
autores não sonharam jamais.
Em suma, a similitude da evolução, muito vaga e completamente formal,
constatada por Dareste entre o Direito Muçulmano e o Direito Romano não é senão
o caso de uma similitude muito mais vasta e muito mais prolongada; e ela consiste
em que a evolução, em toda ordem dos fatos sociais, tem sempre por ponto de
partida um certo número de percepções naturais ou de idéias ensinadas, de
necessidades inatas ou adquiridas sobre as quais se exerce uma necessidade, por
sua vez inata e cada vez mais desenvolvida, de coordenação lógica, ela mesma,
com suas vicissitudes de excitação e de apaziguamento: de apaziguamento, quando
está satisfeita por um tempo, por uma obra grandiosa e monumental; de excitação,
quando novas idéias e desejos necessitam de um trabalho de modificação ou
reforma. Apesar de tudo, Dareste não desconhece as profundas diferenças que
separam ambos os Direitos por ele comparados. Porque é de observar-se que são,
no fundo, os costumes pré-islâmicos e as leis primitivas de Roma que se parecem.
À medida em que cada um desses Direitos se desenvolve, aumenta sua distância. O
Direito Muçulmano não conhece distinção entre a posse e a propriedade, nem a
prescrição, nem a hipoteca, nem as servidões, as quais substituiu pela idéia bem
superior à concepção romana, de uma associação entre proprietários. Se a teoria
das obrigações, em revanche, parece ser quase a mesma em ambos os Direitos, é
porque os jurisconsultos muçulmanos as tomaram de empréstimo, na Síria, aos
jurisconsultos romanos. Aliás, esta semelhança não é senão uma aparência
enganosa [269].
Mas, além das similitudes que foram questão até agora e que apresentam o
modo de ação da lógica social, há outras bem mais profundas que tratam da
natureza dos objetos sobre os quais elas são exercidas. Novamente devem-se aqui
multiplicar as reservas. – Eu não voltarei àquilo que disse a respeito de seu
funcionamento silogístico. Um código pode ser considerado como a conclusão,
mais ou menos bem tirada, de um gigantesco silogismo prático, do qual a maior é
fornecida pelo estado das aspirações, das paixões, dos apetites numa dada
sociedade, e a menor, pelo estado dos conhecimentos, das crenças, das idéias.
Logo, todo empreendimento, toda inovação, toda invenção que tende a modificar a
maior ou a menor deve ter seu contragolpe legislativo. A menor é modificada pela
aparição de novas crenças religiosas, de novas idéias filosóficas ou científicas. A
maior, quer dizer, o objetivo perseguido, – que é sempre a consagração de uma
hierarquia de interesses e de privilégios, – é modificada, seja em razão de guerras
civis ou exteriores, de revoluções ou de conquistas devidas a táticas hábeis, a
traços de gênio político ou militar, seja por mudanças econômicas devidas a
invenções que, transformando as profissões, abalam o equilíbrio das necessidades.
A evolução jurídica, pois, depende das evoluções religiosa, filosófica, política,
militar, econômica, e ela não saberia ser una e predeterminada senão se as outras o
forem também. Bem mais. Mesmo que cada uma delas estivesse sujeita a fases
regulares, não se seguiria, necessariamente, que a primeira, que é sua combinação,
tivesse o mesmo caráter de regularidade. Porque as evoluções elementares aqui são
independentes e não paralelas, elas não marcham no mesmo passo; a evolução
criada deve, pois, variar muito mais que qualquer de seus elementos. Uma religião
pouco avançada, como no Egito, pôde coexistir com um governo assaz
aperfeiçoado, uma indústria e arte maravilhosas; na Índia, é quase o inverso que se
vê. Tudo isso prova que a divergência – (Sempre crescente? Não digo isso.) – das
atividades jurídicas é inevitável. Mas, malgrado tudo, ela não ocorre sem
concordâncias manifestas que têm a estreiteza pouco elástica do círculo em que é
dado moverem-se o pensamento e a vontade humana, e onde eles são
freqüentemente forçados a girar no mesmo sentido, como andorinhas aprisionadas.
O gênio inventivo está às ordens das necessidades que lhes colocam seus
problemas. Ora, tais problemas, por diferentes que eles sejam, alinham-se sob um
pequeno número de líderes, sempre os mesmos: o problema da fome e o problema
do amor, a necessidade da conservação e a necessidade da reprodução por si tudo
dominam. A cada um desses dois grandes pontos de interrogação relacionam-se
linhas de problemas, fluindo em séries até um certo ponto irreversíveis. Da fome
satisfeita, decorre a necessidade de vestimenta, depois de abrigo, depois de todos
os gêneros de propriedade e de conforto. Do amor satisfeito decorre a necessidade
de paternidade, da família, de um Estado forte, de todos os gêneros de associação.
À medida em que se satisfazem melhor separadamente, nascem outras
necessidades, superiores e mais livres: a necessidade de distrações e de artes e a
necessidade de conhecimentos; a necessidade de simpatia imitativa e a necessidade
de harmonia lógica, o amor à justiça e o culto do belo. Eu sei bem que a árvore
genealógica desses problemas sucessivos é multiforme e pitoresca, como todas as
árvores; eu sei bem que as soluções possíveis de cada um deles são numerosas e
que é a natureza, sempre acidental em parte, da solução encontrada que determina
ou especifica aquela do problema seguinte. Eu sei bem, além do mais, que as
necessidades que vão crescendo sem cessar, – porque elas têm origem inteiramente
social: necessidade de prazer e de justiça, necessidade de curiosidade e necessidade
de beleza, – são, precisamente, os problemas suscetíveis das soluções mais
numerosas e mais variadas, por conseguinte, é mais temerário procurar adivinhar
de antemão como o amanhã as resolverá. Eu acredito também, em conseqüência,
que, se os autores de codificações não tivessem uma pronunciada tendência a
copiarem-se através das distâncias e das épocas, essas grandes tentativas de síntese
prática difeririam provavelmente umas das outras, tanto quanto diferem dois
sistemas filosóficos originais, o sistema de Descartes ou o sistema de Kant, aqueles
de Platão ou de Aristóteles, de Hegel ou de Spencer, ou duas escolas de arte
originais, a arquitetura grega e a arquitetura ogival, o canto gregoriano e a música
de Wagner. E, de fato, se fizermos a abstração dos pastiches, constataremos que,
no fundo, esses grandes monumentos do Direito são muito diferentes. Todavia, é-
nos permitido afirmar que eles devem divergir cada vez mais, entregues a eles
mesmos? Não parece que a elaboração lógica, em se prolongando, reconduz ou
tende a reconduzi-los a uma similitude relativa, como se o esgotamento das
invenções, das soluções menos perfeitas e menos viáveis, devesse conduzir as
civilizações heterogêneas a se reencontrarem sobre um certo número de invenções
mais perfeitas?
Questão insolúvel a todo rigor, do mesmo modo que a questão análoga que
se coloca à filosofia natural: É ou não é inevitável que toda evolução biológica
force a convergência em direção à produção de um organismo animal aproximado
do tipo humano? Para responder, é necessário poder comparar a fauna dos planetas
vizinhos ou distantes à nossa, faculdade que nos falta, que, infelizmente, nos
faltará sempre, e que não nos faltaria se a ciência fosse verdadeiramente a razão de
ser do ser, como tantos filósofos têm orgulhosamente pensado. A própria
insolubilidade dessas questões fundamentais prova que o homem é feito para agir
mais que para saber. Prova que se, – para consolar-se de sua impotência em não
possuir jamais a plena verdade do pensamento, – ele aspira a realizar a beleza
acabada da conduta, se não for à sua inteligência, é ao seu coração sobretudo que
ele deve perguntar a regra de sua ação.
Aliás, se o quadro da verdade completa nos é velado, nós o percebemos em
fragmentos. Estamos certos, se certeza existe, que nossa geometria, nossa
mecânica, nossa astronomia, nossa física, em seu estado incompleto, são
verdadeiras; e devemos pensar que, não importa em que humanidade estelar, a
evolução científica acabaria por chegar a teoremas idênticos aos nossos teoremas.
Não existe também uma verdade moral que toda sociedade inevitavelmente
formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar como num golfo, e
que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite Sócrates, Buda, o Cristo,
e que o perfeito bravo homem de todos os tempos, Aristides ou Franklin, Epicteto
ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto árabe ou o santo cristão seja, em
toda parte, reconhecível nos mesmos traços essenciais, não diferindo senão pelo
grau de abertura de seu horizonte intelectual e pelo raio da esfera de humanidade
na qual se desenvolve? E não existe uma beleza, uma moral sublime, una e
idêntica, para onde se orienta como a um pólo toda alma generosa de todos os
cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a simples condensação, num instinto
especial, de hábitos hereditários sugeridos por experiências de utilidade geral
acumuladas ao longo do passado da humanidade, que ora, de preferência, esta
orientação traísse também qualquer ação mais sutil e mais profunda, qualquer
revelação do fundo divino das coisas? Parece, porque seguramente as inspirações
do heroísmo são bem mais semelhantes entre elas que as inspirações do gênio; e
parece mesmo também que esta verdade moral haja existido para o homem muito
tempo antes da mais fraca aurora da verdade intelectual; e que esta beleza moral
não tenha esperado, para manifestar-se, a aparição das belas-artes. Seguramente,
esta estética superior da conduta, esta arte poética da vontade, têm de notável que
todos os seus estetas se compreendam e simpatizem através dos tempos, enquanto
os estetas das artes divergem sem cessar. E, enquanto nada se parece menos à
música ideal do presente que aquela do passado, é sempre quase a mesma a
harmonia das ações justas, é sempre quase a mesma a melodia dos sentimentos
puros que nos cantam os grandes moralistas.
Mas a legislação não é a moral, não mais que a filosofia não é a ciência. A
filosofia pretende preencher as lacunas da ciência; e eis por que ela difere tanto
dela mesma de um sistema a outro. A legislação pretende substituir por regras
precisas as máximas vagas e freqüentemente ambíguas da moral; e eis por que ela
é cambiante de um código a outro, e ela sempre o será. É-nos suficiente, para
prová-lo, sinalar a natureza proteiforme da capital dificuldade que se oferece ao
legislador de todos os países e de todas as épocas, a saber, aquela de conciliar as
duas grandes necessidades de nutrição e de geração, sob a forma social, mais ou
menos desenvolvida, que elas revestem. No indivíduo, elas se combatem: a procura
do alimento e a procura do prazer, a aprendizagem de uma profissão e o amor das
mulheres redobram dolorosas lutas no coração dos jovens; e no coração dos pais de
família, o dever de desenvolvimento pessoal é sempre presa do dever de devoção a
outrem. Nas sociedades, eles não se combatem menos. Estendidos pelos contatos e
exemplos sociais que o dividem e o subdividem ao infinito, o primeiro, a
necessidade de conservação, enche nossos códigos de tudo o que contempla a
propriedade e as obrigações, tais como a venda, locação, empréstimo; a segunda,
de tudo o que dá trato ao casamento, à família, às corporações, às igrejas, ao
Estado, a todas as diversas formas de associação que são criadas a partir do
primeiro par conjugal. É necessário, para que o equilíbrio social seja assegurado,
que, desses dois grandes ramos do desejo humano, o primeiro esteja sempre
subordinado à segunda necessidade, quer dizer, que, – se o progresso industrial
conduz a primeira a novas brotações, fortifica o egoísmo, aumentando o conforto,
– o progresso moral suscita como contrapeso novas extensões artificiais da família,
e fortifica assim o espírito de fraternidade, de abnegação, de amor. É tarefa própria
ao legislador favorecer o crescimento destas últimas forças, eminentemente sociais,
em toda parte onde se as vê manifestarem-se. Mais a indústria tem progredido e,
com ela, o individualismo, mais deve o legislador secundar o espírito de devoção
sob todas as suas manifestações antigas ou recentes, e não se limitar a superexcitar
o espírito de patriotismo, ainda que a extensão dos sacrifícios à pátria, coisa digna
de nota, aumente e agrave, paralelamente, os progressos do egoísmo. A pátria não
seria suficiente para preencher o coração do homem social, e o legislador deve:
defender primeiro a família, onde o coração se exercita com o sacrifício de si,
aprende o gosto e o prazer de devotar-se; respeitar também todas as associações
religiosas, industriais, civis, – que não sejam conspirações sediciosas, – e permitir
o crescimento daquelas que quiserem nascer delas mesmas. Lembremo-nos do
legislador antigo, tão patriota, mas tão pouco respeitoso dos lares, das gentes, das
fhratries [270], das curias [271], de todas as confrarias quaisquer. Todavia a
indústria rudimentar reprimia então as necessidades de conforto. Com mais forte
razão, o legislador moderno, para lutar contra o industrialismo individualista de seu
tempo, deve mostrar-se associacionista, se não socialista.

IV. O Direito e a Lingüística: analogias de


desenvolvimento.

Bem entendido, o quadro restrito deste volume nos torna defeso entrar no
detalhe de reformas tornadas necessárias pela mudança de nosso estado social, e
nosso trabalho deve parar por aqui. Antes de terminar, todavia, insisto sobre a
importância – às vezes ainda desconhecida – de estudar o Direito como um simples
ramo da Sociologia, se se quiser apreender sua realidade viva e completa. Ele não
é, aliás, um ramo qualquer dessa grande árvore que possa ser impunemente
separado do tronco, e que não se abastece de seiva por seu ajuste em relação aos
outros, em razão de múltiplas semelhanças e de diferenças não menos instrutivas,
que esta aproximação faz perceber entre seus diversos modos de crescimento. Mas
é sobretudo a evolução jurídica que demanda ser esclarecida desse modo: a rigor, o
desenvolvimento de uma religião, de uma arte, de um corpo de ciências tal como a
geometria, de uma indústria tal como aquela dos metais ou dos tecidos, pode ser
explicado separadamente; não aquele de um corpo de Direito, porque o Direito,
entre as outras ciências sociais, tem o caráter distintivo de ser, como a língua, não
apenas parte integrante, mas espelho integral da vida social. As invenções
lingüísticas, – que elas consistam em criar palavras novas ou novos sentidos de
palavras antigas, ou novas construções de frases, – têm de particular o serem
provocadas e exigidas pelo conjunto de todas as outras invenções. A cada uma
destas, que aporta sempre sobre a marcha verbal uma ação nova ou um novo
objeto, deve sempre corresponder a criação de um signo vocal distinto. Existem
assim, em outro sentido todavia, inovações jurídicas que nascem, senão para
exprimir, ao menos para colocar, no grande escaninho dos direitos, cada nova
forma de atividade introduzida por quaisquer inovações.
Eis por que chego tão freqüentemente, no decorrer deste estudo, a notar
similitudes entre a marcha jurídica e a marcha lingüística de evolução da
humanidade. Similitudes curiosas, tanto mais quanto elas entram, evidentemente,
na categoria daquelas que não têm como causa a imitação. A todas as analogias
que indiquei de passagem mais acima eu poderia acrescentar muitas. Rebusquemos
mais algumas, ao acaso, o quanto baste para dar às outras o gosto de colhê-las aqui.
Esta será também uma pequena ilustração das verdades gerais por nós enunciadas.
O Direito e a Língua, sabe-se, são coisas imitativas e rotineiras em alto grau.
Nada se faz senão pelo jogo perpétuo e combinado de três formas de imitação: a
imitação de outrem sob suas duas espécies: cópia do modelo contemporâneo
(moda) e cópia do modelo antigo (costume); e imitação de si mesmo (hábito). Mas
a que domina e dá o tom é, seja na Língua, seja no Direito, a influência costumeira.
Quando o afluxo de novidades recebidas pela moda, aqui e ali, ultrapassa um certo
grau, sempre muito baixo, a dificuldade de classificá-las e de assentá-las
logicamente num sistema de noções ou de instituições depois de muito tempo
consolidadas, produz uma crise, um mal-estar da legislação ou da língua; e é
necessário que uma morra ou expulse violentamente a maior parte desses alimentos
indigestos, tão apressadamente ingeridos. Também tem sido sempre impossível
implantar e fazer viver, numa nação qualquer, mesmo a mais escravizada, uma
língua ou um Direito constituídos de todas as peças, por lógica e artisticamente
construídos que eles possam ser. Essas admiráveis construções definham logo que
nascem, enquanto os amálgamas legislativos ou gramaticais do passado se
obstinam em não morrer. Por quê? Precisamente porque a lógica é a suprema
necessidade. Porque essa necessidade, para a língua como para o Direito, divide-se
em duas que se combatem. E este combate faz toda a vida, toda a dificuldade, todo
interesse de elaboração jurídica ou lingüística através dos tempos. Se não se
tratasse senão de conciliar entre eles os elementos de uma legislação ou de uma
linguagem, de maneira a criar um todo regular e coerente, seria bem fácil; mas, ao
mesmo tempo em que o esforço dos gramáticos ou dos juristas ou, de preferência,
o esforço de todo o público, conspire, ciente ou inconscientemente, de forma
constante em direção a este arranjo lógico interno de uma gramática pouco a pouco
depurada de suas exceções e de suas bizarrias, de uma codificação pouco a pouco
regularizada e tornada simétrica, trata-se também e sobretudo de estarem as
gramáticas e os códigos de acordo, e em acordo cada vez menos imperfeito, com a
sociedade que eles devem reger. Este último acordo, ele também, é um arranjo
lógico em outro sentido da palavra, teleológico, para falar com propriedade. Ora, o
estado da sociedade, se se abarcarem num olhar as idéias e as pretensões opostas
que se justapõem, é sempre, em grande parte, ilógico e incoerente. Para um corpo
de Direito, pois, como para um corpo lingüístico, o problema da evolução consiste
em adaptar-se consigo mesmo, tanto quanto se pode fazer, adaptando-se a uma
sociedade que jamais se adapta muito bem a ela mesma. Ele consiste, falando de
outro modo, em realizar o lógico através do ilógico. Por conseguinte, existe sem
cessar o perigo de sacrificar uma dessas duas aspirações paralelas e contrárias, e os
gramáticos como os juristas, têm uma pronunciada tendência em fazer prevalecer
abusivamente a primeira, enquanto o público, por felicidade, tem uma tendência
inversa. Daí essas duas doenças diferentes, das quais o Direito e também a língua
podem ser afetados: conciliarem-se com eles mesmos, mas não com o meio social,
como uma constituição revolucionária ou como o volapuque [272], a mais regular
das línguas; ou bem, conciliar-se com o meio social, mas não com eles mesmos,
como a constelação confusa das leis inglesas ou a maior parte de nossas línguas
européias.
Os lingüistas, após haverem suportado eles mesmos, – os primeiros, – a
ilusão das fórmulas simplistas de evolução, deveram rejeitá-las: eles não acreditam
mais, nós o sabemos, na necessária travessia dos três estados do monossilabismo,
da aglutinação e da flexão. Mas eles não têm rejeitado essas generalizações vagas e
falsas, senão para substituí-las por leis precisas e sólidas. E quando se vai ao fundo
destas leis, o que se encontra? Uma simples aplicação das leis mais gerais da
imitação, considerada como o procedimento elementar e universal da lógica social.
Por exemplo. Perguntai a Darmesteter [273] como se opera a mudança do
sentido das palavras (abstração feita, no momento, da mudança de seu som). Ele
vos dirá que, ora existe a extensão de seu sentido, seja por irradiação, seja por
encadeamento, ora estreitamento e, finalmente, desaparição e esquecimento. O
esquecimento desempenha um grande papel na evolução lingüística, como o
desuso na evolução jurídica, a memória e o hábito sendo irmãos. O caráter
simbólico de certos procedimentos, tais como as antigas formas da tradição, são
inevitavelmente esquecidas com o tempo, como o caráter metafórico de certas
expressões verbais; daí uma causa das transformações freqüentes para as palavras e
os processos. Há direitos e deveres que não mais se praticam, como palavras e
construções gramaticais de frases que cessam de ser empregadas, apesar de ainda
figurarem, por rotina, nos dicionários, nas gramáticas e nos códigos. Se se pudesse
fazer um dicionário em oito volumes com nada além de palavras desaparecidas da
língua francesa, duplicar-se-ia facilmente uma biblioteca com todas as legislações
mortas, com todo velho vestuário jurídico da França. – Sem desaparecer, o sentido
de uma palavra pode fechar-se por especialização; assim veste, hábito, após
haverem significado vestimenta em geral, designam agora formas muito especiais
de vestimenta; cátedra, de início, significou um assento qualquer. Ao contrário,
pode existir a extensão pela via da generalização crescente; é o caso, notadamente,
de todo substantivo próprio que acaba por tonar-se um substantivo comum, tal
como renard [274], um Alceste, um Tartufo. Paralelamente, as instituições ou os
procedimentos jurídicos modificam-se, seja por uma extensão, seja por uma
especialização gradual de seu domínio. Como exemplo do primeiro caso, tem-se,
no Direito Romano, os progressos do direito pretoriano, os progressos do
procedimento baseado em formulários, o progresso do procedimento
extraordinário. Como exemplo do segundo caso, pode-se citar a exclusão das
mulheres da herança, exclusão geral, segundo o Direito Germânico, mas pouco a
pouco distanciada e enfim restrita à hereditariedade monárquica. Quanto às
mudanças de sentido por irradiação ou por encadeamento, observemos que as
mudanças de uso dos processos e das instituições jurídicas apresentam a mesma
distinção muito aparente. Existe irradiação, em sentido análogo àquele de
Darmesteter, quando uma instituição tal como a homenagem ou o juramento, após
não ser aplicada senão a um objeto, desenvolve-se, aplicando-se a uma multidão de
outros. Existe encadeamento, quando uma instituição tal como o duelo judicial
subsiste e sobrevive mudando de alma muitas vezes, como os substantivos
romance e papel.
Ora, não é visível que tais modificações jurídicas ou lingüísticas, por
acréscimo, decréscimo ou deslocamento, ergam-se, por sua vez, de uma mesma
causa: o poder expansivo da imitação dirigido pela tendência geral ao acordo
lógico, em ambos o sentidos da palavra? Com efeito, quando uma forma legal ou
uma forma verbal se aplica a novos casos, cresce seu domínio, pois que, no grande
concurso das formas existentes, todas mais ou menos rivais ou aliadas umas às
outras, ela é favorecida pela superveniência de idéias ou de necessidades
propagadas pela imitação, às quais é apropriada a exprimir ou a satisfazer. Ao
contrário, quando ela se especializa, ou quando ela se transforma, é que, por conta
de idéias ou de necessidades contraditórias que sobrevêm e são difundidas entre o
público, ela luta com maior desvantagem contra suas rivais e é abandonada por
suas aliadas. Não retornarei sobre aquilo que já disse alhures [275] a
respeito da distinção fundamental entre os dois modos de operação da lógica social
ou mesmo individual, o duelo lógico ou o acoplamento lógico. Acredita-se haver
dito tudo, quando se fala da luta pelo direito ou da concorrência vital das palavras
de uma língua. Mas não se viu assim senão um lado da verdade, e ainda, de
ordinário, se o viu mal. Sejam palavras, sejam direitos que se façam obstáculo, é
entre eles que se deve escolher um, sacrificando o outro, – por exemplo, os
sinônimos ou essas formas paralelas de ação oferecidas, ao mesmo tempo, pelo
Direito Quiritário e pelo Direito Pretoriano, pelo Direito costumeiro e pelo Direito
escrito, espécies de sinônimos jurídicos, – e há também palavras e direitos que se
transportam seguros, seja porque se combinam numa nova criação, seja
simplesmente porque um não se pode propagar sem apressar a propagação do
outro. No que concerne à luta pelo direito, observemos,
primeiramente, que a expressão é equívoca. A luta contra as violações individuais
de um direito existente e reconhecido não faz senão conservar o Direito, como o
bom combate dos professores e dos críticos para a correção do estilo não faz senão
conservar a língua. A luta que faz progredir o Direito e a língua é aquela que se
engaja entre um direito ou uma palavra nova, em via de formular-se e fazer-se
reconhecer, e um direito ou uma palavra antiga que se trata de destronar. Desse
ponto de vista, Ihering tem razão em dizer que os progressos do Direito são, não
pacíficos, inconscientes, sem esforços, mas, muitas vezes, obtidos ao preço de
enérgicas afirmações e combates encarniçados. Apenas errou ao acrescentar que
nisso a evolução do Direito difere por completo em face daquela das línguas. Ele
parece acreditar que estas evoluem sem qualquer conflito. Todavia, não realizamos
sempre, em falando, um trabalho e um combate lógicos, muito consciente, ainda
que muito rápido? Desde a criança, para a qual falar bem é a principal preocupação
intelectual, até ao escritor que se aplica com constância em escrever bem, não
cessamos de procurar locuções justas, fortes, delicadas, de estudar o léxico e a
gramática, e criticá-los, em os aplicando. Se a vida do Direito não é, numa boa
metade, senão uma seqüência de processos terminados por julgamentos, ou uma
seqüência de deliberações legislativas penosas, hesitantes, terminadas por
promulgações de leis, o equivalente do processo, na vida das línguas, não é a
escolha que fazemos a cada instante, mais ou menos rapidamente, às vezes com
muito trabalho, entre duas expressões, entre duas construções gramaticais de frases
que pretendem disputar nossa preferência? E não existe aí um séquito de
argumentações internas, de pequenas deliberações, de pequenas sentenças?
Nós não podemos, sente-se, senão tangenciar esse vasto assunto. Façamos
observar, terminando, que se se tentar abarcar num mesmo golpe de vista as
sucessivas fases das diversas línguas, não se percebe em lugar algum uma
tendência dessas diversas evoluções lingüísticas, contanto que elas permaneçam
independentes, a convergir na direção de uma mesma língua ou de um mesmo
estado final. A um resultado análogo nos conduz o estudo de diversas evoluções
jurídicas. Tudo o que se vê claramente é uma tendência ao triunfo de uma só língua
ou de um pequeno grupo de línguas, de um único Direito, ou de um muito pequeno
grupo de Direitos, e de uma língua ou de um Direito comum a todas as classes da
sociedade. Ora, esta é a dupla conseqüência inevitável da ação por longo tempo
contínua da imitação. Mais se remonta ao passado, mais se descobrem idiomas
distintos e costumes que tinham força de lei; ainda que, na origem, devam-se supor
tantas línguas e tantos direitos quantas cidades [276]. Mas, à medida em que as
relações entre os homens se multiplicam, a maior parte dessas criações lingüísticas
e jurídicas, tão espantosamente multiplicadas, são rechaçadas ou destruídas, para
que um pequeno número dentre elas, e nem sempre as melhores, devam às
circunstâncias históricas, étnicas, geográficas, ainda mais que à sua superioridade
intrínseca, o privilégio de se difundirem sobre o globo. D’outra parte, e
simultaneamente, as mudanças são aportadas às línguas pelos empréstimos de
palavras nobres ao estilo plebeu, de palavras literárias ao estilo ordinário,
empréstimos irônicos freqüentemente, mas sempre imitativos, e estas mudanças
correspondem, em Direito, às mudanças produzidas pela importação do direito de
primogenitura às camadas plebéias, pela gradual extensão às classes inferiores de
direitos quaisquer primitivamente reservados às classes superiores. Pouco a pouco,
dessa sorte, estabelece-se uma língua igual para todos, do mesmo modo que um
Direito igual para todos.

Fim
Bibliografia Consultada
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dias, vol. III, Ed. Mestre Jou, São Paulo. SPENCER, Herbert. A Justiça, Livrarias
Aillaud & Bertrand, editado em Lisboa, sem data.

Notas
[1] – Concepção que afirma serem as entidades da Lógica Matemática livres
criações do pensamento, independendo de origens empíricas, e sustentadas pela
clareza que lhes confere seu caráter intuitivo.

[2] – Doutrina que admite a independência e o primado do espírito com relação às


condições materiais.

[3] – L’Homo delinquente, por Cesare Lombroso, 3a edição, Fratelli Bocca,


1884. Tradução francesa de Félix Alcan.

[4] – Gabriel Tarde et la philosophie de l’Histoire, Vrin 1970, citado em entrevista


concedida por JEAN-BAPTISTE MARANGIU EM 11/03/99, disponível na
Internet.

[5] – JEAN-BAPTISTE MARANGIU EM 11/03/99, entrevista disponível na


Internet sobre vida, obra e pensamento de G. Tarde. (GABRIEL TARDE\Revue
d’Histoire des Sciences Humaines.htm).
[6] – G. Tarde. L’Opinion et la Foule, 2a edição, Felix Alcan, Paris, 1904.

[7] – TARDE, G., La Philosophie Pénale, A. Maloine, Editor, Paris, 1903.

[8] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário


e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco
António Antunes, Universidade da Beira Interior, BOCC – Biblioteca on-line de
Ciências da Comunicação.htm

[9] – As Transformações do Direito, Capítulo VII, O Direito e a Sociologia.

[10] – G. TARDE, Les Lois de l’Imitation, 6a edição, Félix Alcan, Paris, 1911.

[11] – Gustave Le Bon (1841-1931) foi médico, sociólogo e é conhecido


especialmente por sua obra sobre a psicologia das multidões. Espírito curioso e
universal, fundou a Bibliothèque de philosophie scientifique. L’Homme et les
sociétés (O Homem e as Sociedades), publicada em 1881, empreende uma nova
leitura da sociedade, abordando a Antropologia Social e Cultural que chamará
“ciência do homem”. A obra apresenta o resumo do estado dos conhecimentos
antropológicos ao final do século XIX, e o autor anuncia uma teoria do irracional
(fábulas, mitos e lendas), assim como uma história das mentalidades que
desenvolve na Psychologie des foules (Psicologia das Multidões). (Le
Bon\L’Homme et les sociétés – Leurs origines et leur histoire.htm)

[12] – A Revolução Francesa e a Psicologia das Revoluções. Livraria Garnier, Rio


de Janeiro, 1922.

[13] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário


e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco
António Antunes, Universidade da Beira Interior, BOCC.

[14] – FAGUET, Emílio. Iniciação Filosófica, Guimarães & Cia., Lisboa, 1915.

[15] – SPENCER, Herbert. A Justiça, Livrarias Aillaud & Bertrand, editado em


Lisboa, sem data.

[16] – GAROFALO, R. La Criminologie – Étude sur la Nature du Crime et la


Théorie de la Pénalité, Alcan, Paris, 1892.

[17] – Sobre este tema, vale citar aqui a interessante tradução sintética de João
Corrêa de Oliveira, A Origem do Homem, de Charles Darwin, Magalhães Moniz
Editor, Porto, sem data.

[18] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário


e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco
António Antunes, op. cit.

[19] – Ward, Lester Frank (1841-1913). Sociólogo americano. Partidário da


divisão da sociologia em duas grandes partes, a dinâmica e a estática, idéia que
dividia com Auguste Comte e Herbert Spencer. Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda.

[20] – Ferdinand Julius Tönnies nasceu em Riep, Schleswig, na Alemanha, em 26


de julho de 1855. Na Universidade de Kiel, lecionou filosofia, economia,
estatística e sociologia, mas foi demitido do cargo por denunciar o nazismo e o
anti-semitismo. Presidiu por 24 anos a Sociedade Alemã de Sociologia, que ajudou
a fundar com Georg Simmel, Werner Sombart e Max Weber. Morreu em Kiel, em
11 de abril de 1936. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[21] – Redfield, Robert (1897-1958). Antropólogo americano. Teórico do


organicismo positivista, um dos primeiros a estudar o fenômeno da aculturação.
Adaptou temas sociológicos à antropologia. Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda.

[22] – Marcel Mauss nasceu em Épinal, França, em 10 de maio de 1872. Era


sobrinho de Émile Durkheim, que muito contribuiu para sua formação intelectual.
As principais contribuições de Mauss consistem na aplicação e no refinamento
teórico de conceitos desenvolvidos inicialmente por Durkheim, a quem sucedeu
como editor da revista L’Année Sociologique, que circulou de 1898 a 1913. Morreu
em Paris em 10 de fevereiro de 1950. Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda.

[23] – Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 28 de novembro de


1908. Sua maior preocupação é estabelecer fatos verdadeiros sobre a mente
humana, mais do que sobre a organização social de qualquer sociedade ou classe
particular. Alinha-se assim entre os antropólogos sociais que procuram, por meio
de comparações, descobrir verdades fundamentais do comportamento humano em
escala universal. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[24] – Adam Smith foi batizado em 5 de junho de 1723 em Kirkcaldy, Escócia.


Smith chegou à conclusão de que todo sistema econômico em que existisse a livre
atividade dos indivíduos se desenvolveria de forma harmônica, de acordo com um
modelo de crescimento contínuo da riqueza geral do país. Dois séculos depois de
sua morte em Edimburgo, em 17 de julho de 1790, Adam Smith permanece como
uma das figuras mais destacadas da história do pensamento econômico, o primeiro
elo de uma corrente em que se incluem autores fundamentais como David Ricardo
e Karl Marx. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[25] – Thomas Robert Malthus nasceu entre 14 e 17 de fevereiro de 1766, em


Rookery, Surrey, Inglaterra. Seu pai era amigo do filósofo David Hume e seguidor
ardoroso de Jean-Jacques Rousseau. Em 1798, Malthus publicou anonimamente
seu Essay on Population (Ensaio sobre a população), no qual afirma que a
população cresce em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos
aumenta em progressão aritmética. A solução para evitar epidemias, guerras e
outras catástrofes provocadas pelo excesso de população, consistiria, segundo ele,
na restrição dos programas assistenciais públicos de caráter caritativo e na
abstinência sexual dos membros das camadas menos favorecidas da sociedade.
Malthus morreu em Saint Catherine, Somerset, em 23 de dezembro de 1834.
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[26] – ...”é justamente nesta tara, que torna duráveis, que perpetua as tendências
embrionárias para o crime, que reside a natureza teratológica e mórbida do
criminoso nato; quando esta tara patológica, hereditária, não existe, as tendências
criminosas embrionárias atrofiam-se, como se atrofiam num corpo bem munido de
órgãos embrionários, – o timo, por exemplo. Magnam, depois de haver negado os
criminosos natos, apresenta-nos, ele mesmo, uma série de casos. Não acredito que
o faça para colocar-se, ele próprio, em falta. Certamente, se é para demonstrar que
são hereditárias, nos filhos de alcoólatras, não faz senão repetir o que já afirmei em
minha edição italiana e o que disse, antes de mim e melhor do que eu, Saury,
Knetch, Jacoby, Motet e o primeiro de todos, Morel.” LOMBROSO, César. O
Homem Delinqüente, Ricardo Lez Editor, Porto Alegre, 2001.

[27] – Cooley, Charles Horton (1864-1929). Sociólogo americano. Teórico do


interacionismo simbólico, considerou a importância do eu e da personalidade no
fato social e aprofundou o estudo das teorias grupais. Obras: Natureza humana e
ordem social (1902), Organização social (1909). Encyclopaedia Britannica do
Brasil Publicações Ltda.

[28] – Mead, George Herbert (1863-1931). Filósofo e sociólogo americano.


Principal representante do pragmatismo no país, com sua teoria que chamou
behaviorismo social. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[29] – Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, nos Estados Unidos, em 28
de agosto de 1916. Mills aplicou a teoria do determinismo econômico de Marx e
Weber, segundo a qual as relações de produção determinam, em última instância, a
composição de classes e os elementos da superestrutura de uma sociedade. Morreu
em Nyack, estado de Nova York, em 20 de março de 1962. Encyclopaedia
Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[30] – Max Weber nasceu em Erfurt, Prússia, em 21 de abril de 1864. Em 1918,


Weber participou, depois de terminada a primeira guerra mundial, da elaboração da
constituição da república de Weimar. Morreu em Munique, em 14 de junho de
1920. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
[31] – Um dos mais importantes antropólogos do século XX. Bronislaw Kasper
Malinowski nasceu em 7 de abril de 1884 em Cracóvia, Polônia. Formou-se em
filosofia pela Universidade Jagelloniana de Cracóvia, em 1908. Malinowski
conquistou renome nos círculos antropológicos com ensaios sobre os aborígines
australianos. Na segunda guerra mundial engajou-se na defesa da Polônia.
Malinowski atraiu também a admiração de cientistas de outras áreas, como
psicologia e lingüística. Reconhecia seu débito para com os sociólogos europeus,
sobretudo Émile Durkheim, Marcel Mauss e outros da escola francesa, mas a suas
noções abstratas preferiu um enfoque mais centrado no indivíduo, que julgava mais
realista. Afirmava que todo costume, objeto material, idéia e crença preenche uma
função vital, tem um objetivo e é parte indispensável de qualquer civilização. O
antropólogo deve entender tais funções e relações para compreender a cultura.
Malinowski incentivou estudos sobre mudanças sociais e culturais e programas
educacionais para missionários e assistentes sociais. Morreu em 16 de maio de
1942 em New Haven, Connecticut, Estados Unidos. Encyclopaedia Britannica do
Brasil Publicações Ltda.

[32] – Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em Birmingham, Warwick,


Inglaterra, em 17 de janeiro de 1881. Entre 1906 e 1912, realizou pesquisas
antropológicas nas ilhas Andaman, a sudoeste da Indochina, e na Austrália
ocidental, a fim de estudar os sistemas de parentesco e a organização familiar dos
povos aborígines. Radcliffe-Brown reclamou a condição de ciência para a
antropologia e para as demais disciplinas das sociedades humanas. Morreu em
Londres, em 24 de outubro de 1955. Encyclopaedia Britannica do Brasil
Publicações Ltda.

[33] – Francisco Bopp foi um filólogo alemão (1791-1867), estudante das línguas
industânicas e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim. É
considerado o fundador da filologia comparada. Enciclopédia Brasileira Mérito.
(N. da T.).

[34] – O sânscrito foi descrito e codificado pelo gramático Panini no século V a.C.
Descobriram-se semelhanças entre esta língua, o latim e o grego, descoberta esta
que pode ser considerada como responsável pelos avanços da filologia no Ocidente
em fins do século XVIII. Trata-se de uma língua indo-européia do ramo indo-
ariano. Os quatro Vedas foram escritos em sâncrito (1200-900 a.C.). Entre os
séculos VI a.C. e XI d.C., tornou-se a língua da literatura e da ciência hindus. É
mantida, ainda hoje, por razões culturais, como língua constitucional da Índia.
(Dicionário Aurélio Século XXI, 2001). Além disso, pode-se acrescentar que o
sânscrito converteu-se, juntamente com o latim e o grego, no modelo fundamental
para a reconstrução do indo-europeu original ou proto-indo-europeu. Sua
gramática possui traços muito semelhantes aos da grega e da latina, tais como seu
caráter flexivo, segundo o modelo raiz-tema-desinência, e sua complexidade
sintática. (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações) (N. da T.)
[35] – Max Friedrich Müller (1823-1900). Lingüista e historiador. Seria alemão, de
acordo com a Encyclopaedia Britannica do Brasil, ou inglês, conforme
Enciclopédia Brasileira Mérito. Dedicou-se ao estudo do sânscrito desde a
juventude e realizou um estudo comparativo das mitologias indo-européias,
concluindo que elas provinham de um mesmo tronco ariano primitivo. Max Müller
pensou ter encontrado na mais antiga literatura hindu, sobretudo nos Vedas, as
formas primitivas das crenças e dos mitos, e pareceu-lhe que as divindades eram,
na origem, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homens primitivos”,
impressionados pelos fenômenos da natureza, haviam começado por dar-lhes
nomes, e que estes nomes gradualmente tornaram-se pessoas: o espírito primitivo
considerado incapaz de representar as abstrações. Assim, a vida do universo
dramatizara-se progressivamente. Max Müller tentou dar exemplos concretos desse
processo. Como a luz do sol é a fonte de toda vida e atividade, ele foi levado a dar
aos “fenômenos solares” uma importância capital. Para ele, a luta de Zeus (em cujo
nome está a raiz que significa dia) contra os Titãs não é senão o drama cotidiano e
a vitória da luz sobre as trevas. As formas monstruosas dos Gigantes seriam as
névoas da Noite. Tifon seria a tempestade. Atenas seria a luz virgem do dia ao
amanhecer. Hefestos, o ferreiro, o sol levante: o disco de ferro vermelho saído da
forja divina. Héracles ou Hércules, por sua vez, torna-se um mito solar por
excelência, através dos doze trabalhos que seriam os doze signos do zodíaco, ou
seja, as doze etapas percorridas pelo Sol durante o ano. Assim, pouco a pouco, a
mitologia inteira, através de etimologias incertas, – os “trocadilhos inconscientes
referidos por Gabriel Tarde, – achou-se reduzida a uma vasta meditação sobre a
chuva e bom tempo. Evidentemente, tratam-se de idéias simples demais. Hoje está
demonstrado que os mitos não provém de uma enfermidade de linguagem.
Verificou-se que as interpretações alegóricas, ao aplicarem aos mitos os fenômenos
meteorológicos, estão longe de ser primitivas. Resultam, sim, de especulações
tardias: Jano, por exemplo, um deus romano, só foi considerado como o símbolo
do ano a partir dos pitagóricos de Roma, o que não se deu antes do primeiro século
antes de Cristo, ao passo que o próprio Janus já existia há muito tempo. Na religião
egípcia, o mito de Ísis e Osíris, – mito solar por excelência, – não é primitivo sob
sua forma canônica, mas resume uma teologia completa longamente elaborada.
Pierre GRIMAL. A Mitologia Grega, 2a edição. Difusão Européia do Livro, São
Paulo, 1958. (N. da T.).

[36] – Do grego Euhémeros; latim, Euhemerus ou Evemerus (300 a.C.), filósofo e


historiador grego, mais -ismo. Doutrina segundo a qual as personagens ou heróis
mitológicos são seres humanos divinizados após a morte. Dicionário Aurélio
Século XXI, 2001. (N. da T.).

[37] – Friedrich Wilhelm Karl Heinrich Alexander von Humboldt nasceu em


Berlim em 14 de setembro de 1769. Atraído desde jovem pelas expedições
científicas, renunciou ao cargo de inspetor de minas e, em maio de 1799, partiu de
Madri, com o botânico francês Aimé Bonpland, para a América. A maior parte da
fortuna que herdou foi gasta nessa viagem e na publicação de suas obras. Publicou
Voyage de Humboldt et Bonpland aux régions équinoxiales du nouveau continent,
fait en 1799-1804 (1805-1834), em trinta volumes, e Kosmos, Entwurf einer
physischen Weltbeschreibung (1845-1862, Cosmos, ensaio de uma descrição física
do mundo), em cinco volumes, concluídos aos 86 anos do autor e síntese de seus
conhecimentos. Morreu em Berlim em 6 de maio de 1859. Encyclopaedia
Britannica do Brasil. (N. da T.).

[38] – João Luiz Armando de Quatrefages de Bréau foi matemático (graduado


antes do 20 anos), antropólogo, zoólogo, etnólogo e médico francês (1810-1892).
Seus célebres dons de erudição atraíram a atenção de todos, e afirma-se que jamais
foi superado como professor de Antropologia. Foi Presidente da Academia de
Ciências da França. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[39] – Qualquer hipótese ou teoria que afirma que determinada entidade, ser ou
conjunto de seres não tem origem única e resulta de múltiplos processos,
independentes entre si, de formação ou desenvolvimento. Dicionário Aurélio
Século XXI. (N. da T.).

[40] – Relação entre os fenômenos pela qual estes se acham ligados de modo tão
rigoroso que, a um dado momento, todo fenômeno está completamente
condicionado pelos que o precedem e acompanham, e condiciona com o mesmo
rigor os que lhe sucedem. Quando relacionado a fenômenos naturais, o
determinismo constitui o princípio da ciência experimental que fundamenta a
possibilidade de busca de relações constantes entre os fenômenos. Dicionário
Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[41] – É de observar-se aliás que, em todos os tempos, a refundição legislativa, o


enxerto de novas idéias na árvore jurídica iniciou-se pelo ramo penal, a primeira
manifestação e sempre a mais em evidência.

[42] – Études d’histoire du Droit, por Dareste, do Instituto (Lerose et Forcel,


1889).

[43] – Jurisconsulto e historiador inglês, seu nome completo era Henrique James
Sumner-Maine (1822-1888). Foi um dos primeiros a lecionar Direito Romano na
Inglaterra, e sua obra Direito Antigo (1861) teve muita repercussão. Também
estudou as condições jurídicas e sociais da Índia, onde esteve de 1862 a 69, como
membro do conselho do vice-rei. Em Governo Popular, 1885, provocou acirrada
polêmica, porque Sumner-Maine, baseando-se no método histórico, negou a teoria
do contrato social de Rousseau. Sua obra foi considerada antiliberal. Recebeu o
título de Sir. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[44] – Herbert Spencer nasceu em Derby, Derbyshire, Inglaterra, em 27 de abril de


1820 e adquiriu, como autodidata, uma boa formação científica. Dedicou-se ao
estudo dos fenômenos sociais, que tratou sob perspectiva científica. Spencer indica
a possibilidade de, por meio do princípio da evolução, oferecer explicação total da
realidade, bem como realizar a síntese das diferentes ciências. Concebeu a
realidade toda como produto do desenvolvimento perpétuo de uma força de caráter
incognoscível manifestada na evolução do que é de início homogêneo,
indeterminado e simples, para a heterogeneidade, determinação e complexidade.
Processo semelhante observa-se-ia nas sociedades humanas, que teriam evoluído
das hordas primitivas para as sociedades militares, cuja coesão se baseava na força,
até chegar às industriais, baseadas em contrato voluntário entre indivíduos.
Spencer preconizou um modelo liberal sem nenhum tipo de intervencionismo
estatal como única forma de respeito à liberdade individual. Morreu em Brighton,
Sussex, em 8 de dezembro de 1903. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da
T.).

[45] – Por exemplo, Letourneau, autor de L’Évolution Juridique (1891) e Giuseppe


d’Aguanno de quem o livro intitulado La genesi e l’Evoluzione del Diritto Civile
secondo le Resultanze delle Science Antropologiche e Storico-sociali (Turin, 1890)
deu lugar a que dele nos ocupássemos algumas vezes. Citemos ainda, de um autor
de uma outra ordem de idéias, a obra de Ibering sobre a Lutte pour le Droit. Já é
tempo que a famosa “luta pela vida” encontre uma palavra a dizer em legislação.

[46] – Numa Diniz Fustel de Coulanges, historiador francês (1830-1889).


Lecionou História em várias escolas francesas. Em seus escritos, procurou
diminuir a importância que se atribuía à influência alemã na formação da tradição
histórica francesa. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[47] – O culto excessivo e exclusivo do documento escrito conduziu esse grande


historiador, no fim de sua carreira, ao preconceito que o tornou injusto à vista das
descobertas de outros. É curioso, por exemplo, vê-lo então censurar, a Laveleye, a
Glasson, etc., o emprego do método comparativo que, precisamente, lhe valeu sua
obra maior, a Cité Antique.

[48] – Esse desejo traduz a expressão empregada por um antropologista distinto,


Manouvrier.

[49] – Ver, por exemplo, a obra acima citada de d’Aguanno.

[50] – Em biologia, transformismo significa a doutrina segundo a qual as espécies


se formam por sucessivas transformações de organismos anteriores. Dicionário
Aurélio Século XXI. (N. da T.)

[51] – É-se muito levado a confundir o liame verdadeiramente rigoroso de causa e


efeito, de condições a condicionado, com o liame muito mais brando e flutuante de
fase à fase numa evolução qualquer.

[52] – De acordo com Dr. Weissmann (Essais sur l’Hérédité, 1892), os seres vivos
monocelulares são imortais; eles segmentam-se, mas onde está o cadáver? A morte
não seria senão uma “invenção prática” mas bastante recente da vida. Delboeuf
tem também muito curiosas e profundas considerações sobre isso (La Matière
Brute et la Matière Vivante).

[53] – Desejar-se-ia-se saber, diz Espinas, se as populações (animais) se


desorganizam e morrem por elas mesmas ao cabo de um período limitado como os
indivíduos mais simples que as compõem. Nós não pudemos recolher qualquer
observação que o estabelecesse. (Société Animales, p. 513).

[54] – Camilo Dareste foi um naturalista francês (1822-1899). Foi um dos


primeiros a ocupar-se de morfologia experimental, que ele denominou teratogenia.
É considerado um dos precursores da moderna orientação experimental em
Embriologia. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[55] – O termo é atualmente evitado pelos antropólogos, por ser considerado


impreciso e pouco fundamentado, além de ter conotação depreciativa. (N. da T.).

[56] – Trata-se do prefaciador de L’Homme Criminel (O Homem Delinqüente), de


César Lombroso, traduzido para o francês a partir da 4a edição italiana, Félix
Alcan, 1887. Neste prefácio, vê-se com clareza a posição de Letourneau sobre a
origem do sentimento de justiça: ...”o primeiro móvel que suscitou, na consciência
de nossos ancestrais selvagens, um vago sentimento de justiça foi simplesmente a
necessidade de defender-se, o movimento reflexo que, no homem e no animal, faz
instintivamente devolver golpe por golpe. No animal, ele resulta em atos
maquinalmente executados que não deixam na consciência senão traços fugidios.
No homem, por grosseiro que ele seja, mas vivendo em sociedade, a repetição das
agressões e das resistências acaba por gerar a idéia de contrabalançar, mais ou
menos exatamente, os agravos sofridos e as vinganças satisfeitas. Formulou-se
então a grande lei da justiça primitiva, a lei do talião, tão bem resumida no adágio
semítico: olho por olho, dente por dente. Esta lei do talião, nós a reencontramos, no
tempo e no espaço, em todas as raças pouco desenvolvidas”. (N. da T.)

[57] – D’Aguanno, – devo convir, – assina à idéia moral uma data muito recuada.
Ele nos ensina que “o sentimento do justo e do injusto apareceu somente no fim da
era quaternária” (ver seu livro, p. 114). E ele faz ver todas as conseqüências que
deduziu desse dado tido como incontestável.

[58] – Mitologia grega. Etéocles era Rei de Tebas, filho de Édipo e Jocasta e irmão
de Polinice e Antígona. Concordou em ceder o trono a seu irmão Polinice em anos
alternados, mas faltou à promessa, e os irmãos digladiaram-se até a morte.
Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[59] – O natural ou o habitante da Cabília (Argélia, Norte da África). (N. da T.)


[60] – Povo oriundo do Cáucaso Central. Na Bética, ficou representando os alanos.
Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[61] – Wergeld ou vehrgeld é palavra de origem alemã derivada de wehr, defesa e


de geld, dinheiro. No Direito Germânico e na França, durante a época franca,
constituía-se na indenização que o autor de um fato danoso pagava à vítima deste
fato, ou àqueles que tivessem direito, para assim subtrair-se à vingança privada.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[62] – Como o sentimento dessa profunda distinção entre o tratamento do


compatriota e a conduta em relação ao estrangeiro faltaria nos homens primitivos,
quando nós constatamos sua existência nas sociedades animais? “As abelhas, – diz
Letourneau, – são muito gulosas, respeitando sempre (Sempre? Quem pode
assegurar?) as provisões de reserva acumuladas nos alvéolos de sua colmeia, mas
de sua colmeia somente, porque muitas dentre elas tentam se introduzir para pilhar
as colmeias estrangeiras, a despeito das sentinelas... ou bem elas armam
emboscadas nas vizinhanças de uma colmeia rival para assaltar, na passagem, as
abelhas saqueadoras...” Tal deve ser, tal é a tribo primitiva. Nenhum ou quase
nenhum dos crimes e delitos interiores, mas os exteriores todos parecem
permitidos.

[63] – É bom fazer esta observação para prevenir o erro dos escritores que, sempre
que vêem num código antigo uma penalidade inspirada pelo espírito do talião,
apressam-se muito vivamente em ver aí um espírito de vingança e uma prova
irrefragável de costumes ferozmente grosseiros. – A vingança é o único modo de
repressão prática, lá onde uma força pública exterior e superior às tribos faz falta.
É, aliás, um dos mais eficazes remédios contra o delito que jamais se imaginou, e
eu não sei se os criminalistas utilitários, em lugar de tanto denegrirem este
costume bárbaro, não deveriam, logicamente, propor seu restabelecimento. Um dia
ou outro, se a série de bombas anarquistas não parar por ela mesma, perceber-se-á
que o único modo eficaz de repressão é o de retornar ao antigo procedimento de
represálias. Para lutar contra essa selvageria, devem-se restaurar esses costumes
selvagens. Por tanto tempo quanto, na Argélia, mesmo após nossa conquista, esses
costumes reinaram, usufruiu-se, com pouca despesa – diz Seignette, muito
competente a esse respeito – “de uma segurança muito satisfatória para pessoas e
bens”. Mas depois que, politicamente, a administração francesa acreditou dever
esforçar-se para suprimir, com a condição sine qua non, essa vingança familiar,
empenhando-se em “desagregar a tribo”, constatou-se que “em toda parte onde
seus esforços foram coroados de sucesso, a segurança desapareceu, sem que a
organização normal da polícia pareça hoje suficiente para restabelecê-la”. O
problema penal seria melhor resolvido por esses primitivos que por nós? (Ver
Código muçulmano de Khalil, trad. francesa de Seignette, introdução.) O mesmo
autor diz além do mais: “É fora de dúvida para que se dê ao trabalho de comparar
as estatísticas criminais da França e da Argélia. Os crimes violentos... são muito
menos freqüentes entre os árabes que entre os europeus à vista da proporção
populacional.

[64] – A primeira palavra pronunciada pelos antigos legisladores, diz Dareste, foi a
supressão da vingança privada... Num certo momento, o Estado constitui-se e
eleva-se a mediador e pacificador.

[65] – Nas penalidades chinesas, não encontro nada que traia o desejo de tornar a
pena semelhante à falta, senão quando o assassino é punido de morte. Aliás, por
não importa que outra falta, – injúria, difamação, roubos, incêndios, – infligem-se
golpes de bambus, como fazem os pais por todo pecadilho, fustigando sua
progenitura.

[66] – Não assistimos nós, nesse momento, uma recrudescência desses crimes de
ódio, de ódio individual e sobretudo de ódio coletivo?

[67] – O ordálio é prática quase universal entre povos primitivos. Toma múltiplas
formas. Em bramanismo, por exemplo, há dez, sendo os principais o das escadas e
pesos, o do fogo, o da água e o do veneno. Quando a perspicácia humana é incapaz
de encontrar o culpado, existiria nas coisas um poder intrínseco que revelaria a
iniqüidade e reivindicaria a justiça. Em termos mais filosóficos, no ordálio, a
natureza das coisas falaria quando consultada: a vontade divina intimamente
vinculada à ordem social. MICKLEM, Nathaniel. La Religion, Fondo de Cultura
Económica, México-Buenos Aires, 2a edição 1950. (N. da T.)

[68] – Chama-se Avesta ao conjunto de textos sagrados primitivos dos povos


iranianos. A palavra deriva do idioma avéstico masdâo, e significa onisciente,
caráter atribuído ao deus Aúra, mais o sufixo –ismo. Foi daí que se originou o
masdeísmo, religião antiga dos iranianos caracterizada pela divinização das forças
naturais e pela admissão de dois princípios em luta, aúra-masda e arimã, espécies
do bem e do mal. O Avesta é também conhecido como Zendavesta. Dicionário
Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[69] – “Os ordálios são, de qualquer sorte, as perícias divino-legais. Eles


correspondem à fase mitológica do espírito humano, como as nossas perícias atuais
começam a corresponder à sua fase científica que apenas começa. (...)Quando, por
exemplo, sempre religiosas, mas voltadas ao delírio divinatório, as populações
européias dos séculos XII e XIII cessaram de depositar fé nos duelos judiciais e em
outras provas quiméricas, um positivismo relativo fez-se sentir também na
escolástica, secamente racional, estritamente aristotélica desses tempos, a exigir o
emprego de um meio mais racional de intuição do processo: o sistema inquisitorial.
Todavia, esses tempos de racionalismo seco e duro tinham sua superstição
especial, a superstição da força, e é através da força que ele pretende descobrir a
verdade, pela força dos silogismos de escola em teologia, pela força da tortura em
justiça criminal.” TARDE, Gabriel. La Philosophie Pénale, Maloine, 4a edição,
Paris, 1903. (N. da T.).
[70] – Desse juramento merovíngio ao nosso juramento judicial atual até o nosso
juramento decisório notadamente ou àquele que é exigido de nossas testemunhas
não há senão um passo, e a transição é fácil de seguir. Assim, nosso juramento, ele
mesmo, é um resto dos julgamentos de Deus e não mais uma forma.

[71] – Na literatura da Índia, tratado onde se reúnem, sob a forma de breves


aforismos, as regras do rito, da moral, da vida cotidiana. Enciclopédia Brasileira
Mérito. (N. da T.).

[72] – As citações e informações anteriores foram todas tiradas do livro de Dareste.

[73] – Constituíam os hovas a classe aristocrática da raça malásia. Nouveau Petit


Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[74] – Ver Letourneau, p. 43 e seg.

[75] – Eu passo por alto as diferenças mais superficiais. Entre os aborígenes da


Índia, o juramento judicial é prestado sobre a pele de um tigre ou de um lagarto; na
Sumatra, sobre o túmulo de um ancestral; entre os germanos, primitivamente,
sobre as espadas consagradas aos deuses e, após sua conversão ao cristianismo,
sobre as relíquias dos santos, como ainda sobre o Evangelho ou sobre o Corão. As
mulheres germanas juravam sobre o próprio peito. Por insignificantes que possam
parecer essas particularidades, elas não revelam menos divergências essenciais na
maneira de conceber a hierarquia das coisas respeitáveis.

[76] – Para as causas de recusa de testemunhas, observa-se uma inversão análoga.


Entre os árabes (v. Seignette, obra citada), de acordo com o código muçulmano, é
o parentesco das testemunhas com o acusador, mas não com o acusado, que
permite recusar seu testemunho; precisamente o inverso do que tem lugar entre
nós. Esta diferença se atém ao sistema acusatório; e, como o progresso das
comunicações, a extensão do grupo social, deve inevitavelmente substituir, um dia,
a acusação privada pela acusação pública, pode-se acreditar também que a
passagem do modo árabe de recusa até o nosso é irreversível. Entre nós ainda,
quando a ofensa apresenta-se como partie civile, último resto subsistente do
procedimento acusatório, não pode ser ouvida como testemunha dos fatos dos
quais foi a vítima.

[77] – Histoire du Droit Français, p. 26.

[78] – A respeito do duelo, encontramos, em Mantegazza, a referência que segue:


“Os tratadistas definiram o duelo um combate singular, de homem a homem, em
tempo, modo e lugar determinado, ao árbitro dos combatentes, em conseqüência de
um desafio por palavras e por escrito. De todas as definições, a mais concisa e, ao
mesmo tempo, mais exata é a que dá Ellero: o duelo é um combate privado e
convencional por pontos de honra. Hoje, na nossa sociedade moderna, há três
opiniões diversas sobre o valor moral do duelo. Uma pequena minoria o defende, o
exalta, dele faz a panacéia de todas as baixezas humanas, a única e segura
salvaguarda da honra, uma ginástica salubre de coragem e delicadeza. Outros, o
maior número, admitem o duelo como uma dolorosa necessidade que defende de
maiores males. Não se devem procurar as ocasiões, mas, dadas elas, aceitá-lo. Esta
grande maioria não se lembra que, pensando assim, põe o duelo na mesma linha
que a prostituição, vergonha tolerada para fugir a maiores males. Há, ainda, uma
classe de pensadores, e a esta me honro de pertencer, que reputam o duelo uma
vergonha da civilização que se deve combater nas escolas, nos livros, nas leis, com
todas as armas honestas do sentimento e do pensamento. E quem, a não ser que
feche os olhos para não ver, poderá não achar o duelo imoral e injusto? De um lado
é expor-se a um evidente perigo de morte, sem que um importante dever obrigue a
isto; de outro, a morte provável de um homem que, em caso algum, provocador ou
provocado, se pode chamar agressor injusto. Isto, porém, não impede que o duelo
seja um melhoramento na história da evolução do ódio. O selvagem ofendido mata
o ofensor sem desafio prévio: julgar-se-ia muito estúpido se avisasse o inimigo de
que iria atacá-lo. Preferirá, a mais das vezes, esperá-lo escondido e feri-lo
impunemente, quando se não lança, impetuosamente, sobre ele. Os antigos não
conheceram o duelo. César não pensou, de modo algum, vingar com um desafio as
injúrias de Catão, e Pompeu, ofendido, não mandou cartel a César. Contam César e
Tácito que os antigos germanos decidiam pelas armas as questões e os agouros,
mas todos os povos do Norte, especialmente os escandinavos, legislavam sobre
este costume. Muitos escritores atribuem aos lombardos a origem do duelo. Se isso
não é verdade, é certo, pelo menos, que eles o introduziram na Itália. Desta
invenção do duelo não devemos acusar os germanos, mas antes louvá-los, porque o
duelo é uma transformação progressiva da vingança. É o ódio acompanhado de
desejo de uma justiça e de um sentimento de coragem e generosidade”.
MANTEGAZZA, Paulo. Fisiologia do Ódio, Livraria Clássica Ed., Lisboa, 1946.
(N. da T.).

[79] – Monarchia Franque, p. 439.

[80] – Esta idéia foi anteriormente sugerida por outra bem mais antiga – e da qual
já falava Tácito – de fazer lutarem, antes de uma batalha, um guerreiro do exército
e um prisioneiro inimigo, para adivinhar o resultado provável do combate geral de
acordo com aquele do combate particular. Assim, o duelo divinatório engendrou o
duelo judicial. Mas estas são, todavia, duas invenções distintas; a aparição da
segunda exigira uma combinação mental nova, a saber, a idéia de consultar a
divindade para um combate singular, não mais a propósito da batalha entre dois
exércitos, mas, a propósito do processo entre dois homens.

[81] – Indefinidamente é dizer muito. Há ainda aqui exceções. Maomé suprimiu o


testamento que, – a dar-se crédito a Seignette (e ele dá provas muito fortes em
apoio à sua opinião), – existia nos costumes pré-islâmicos.
[82] – Da mitologia grega, deus capaz de assumir múltiplas formas. (N. da T.).

[83] – Chamavam-se quirites aos cidadãos que residiam em Roma, em oposição


àqueles que andavam nos exércitos (N. da T.).

[84] – Um exemplo entre mil. Há alguns anos, um agricultor abastado e honesto de


minha vizinhança, o Senhor D., demandava contra um de seus vizinhos. Ele
obteve, por conta de uma sindicância sumária neste processo que não era suscetível
de apelo, um julgamento que condenava seu adversário a pagar-lhe 700 francos de
perdas e danos. Ora, na redação do julgamento, houve uma omissão: esqueceu-se
de mencionar que as testemunhas haviam prestado juramento. Notai que elas
haviam prestado juramento à vista de todos e de todo mundo; mas a menção desta
formalidade arcaica faltara nos considerandos do julgamento. O perdedor, em
razão desta omissão, requereu a pena de nulidade, pedindo a cassação da sentença.
A Corte cassou o julgamento e devolveu a causa a outro tribunal. Em aguardando
que a causa fosse julgada por aquele, o adversário do Sr. D. pretendeu haver as
custas do processo de cassação, em torno de 1.800 francos. D. assombra-se e
indigna-se; tomariam seus bens, seria expropriado e seus imóveis, – que
sustentavam toda sua família, – seriam adjudicados a preço vil, suficiente apenas
para pagar as ditas custas. Eis um homem arruinado por haver ganho seu processo;
eu poderia mesmo dizer por haver ganho duas vezes, porque, após sua ruína, o
novo tribunal decidiu o feito, julgando-o como o primeiro. Acrescento que D.,
aturdido com essa aventura, esteve em via de perder a cabeça. E verdadeiramente
tinha por quê.

[85] – Intitutions Primitives, trad. Franc., p. 323 e seg.

[86] – Enviar ao depósito de bens penhorados, confiscar, penhorar (N. da T.).

[87] – E mesmo muitos outros; porque a questão de raça aqui é muito secundária.
Os semitas assemelham-se espantosamente aos arianos em suas origens jurídicas.

[88] – Entre os hebreus, raça semítica todavia, encontra-se um traço deste


procedimento, como faz observar Dareste. O credor, para haver de seu devedor o
que lhe pertence, não pode se introduzir no domicílio daquele. “Vós esperareis
fora, – diz o Deuteronômio, – e ele vos dará pessoalmente o que tiver.”

[89] – Ver Dareste, pág. 166: “O homicida apresenta-se descalço, sem cinto, na
cova do defunto. O mais próximo parente deste toca-o, entre os ombros, com a
ponta de uma espada e lhe diz: etc.”

[90] – Armand Ribot (1839-1916), filósofo francês autor de estudos de psicologia


experimental: Doenças da Memória, Doenças da Vontade, etc. Nouveau Petit
Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).
[91] – Revue Philosophique, outubro 1891. Artigo de Ribot, Enquete sobre as
idéias gerais.

[92] – Legislador ateniense e um dos sete sábios da Grécia (640-558 a. C.).


Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[93] – Sexto Rei de Roma (578-534 a. C.) Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit.
(N. da T.).

[94] – Membro da Heliéia, na antiga Grécia, o mais importante tribunal ateniense,


composto de seis mil membros, os heliastas, que eram sorteados anualmente entre
os cidadãos de mais de trinta anos de idade. (N. da T.).

[95] – Magistrado da Grécia antiga, primeiramente com poder de legislar, e, depois


de Sólon (em 559 a.C.), mero executor das leis (N. da T.).

[96] – Popilius Lenas, cônsul romano em 173 a. C.. O senado enviou-o para junto
do rei da Síria, Antiocus Epiphane, para obrigá-lo a renunciar às suas conquistas.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[97] – A família patriarcal é o regime da autocracia paternal, o governo cesariano


da família, por sua vez igualitária e despoticamente regida. Que esse regime haja
existido na origem de todas as evoluções sociais independentes, é muito
improvável; mas que haja existido na origem de todas aquelas que acabaram por
triunfar no concurso geral das civilizações, é muito provável, como Sumner-Maine
me parece haver demonstrado em um de seus mais sólidos estudos. A idéia dessa
organização começou por ser uma invenção, cujos efeitos vantajosos a fizeram
adotar gradualmente. Mas outras idéias haviam já, sem dúvida, aparecido, e é
difícil, impossível mesmo, descobri-las sempre.

[98] – Arqueólogo francês(1801-1871). Dedicou-se ao estudo sistemático das


cavernas da França, encontrando, em Aurignac, sinais evidentes da existência do
homem e de mamíferos extintos. É considerado um dos mais ilustres fundadores da
Paleontologia. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[99] – Ver a esse respeito um opúsculo do italiano Ratto que formula objeções
sólidas contra a opinião de seu compatriota.

[100] – Julgamos pertinente acrescentar aqui uma passagem escrita pelo próprio G.
Tarde, da obra La Philosophie Pénale, 4a edição, A. Maloine, Paris, 1903. “A
criminalidade transforma-se de época para época. É verdade que, em se
transformando, ela diminui? Sim, certamente, se não remontarmos senão aos
tempos bárbaros. Mas não me parece demonstrado, malgrado o preconceito
difundido a este respeito, que os selvagens mais antigos fossem dados ao
homicídio e ao roubo em grande escala. Este erro, que serviu de fundamento à
explicação do crime pelo atavismo, demanda ser esclarecido desde o início de
nosso trabalho. Exagera-se a imoralidade dos selvagens ainda existentes, como
demonstrou, entre outros autores, Henry Joly em seu livro Crime (1888), e, sem o
menor fundamento, apressa-se em atribuir a improbidade e a desumanidade mais
completas às populações da Idade da Pedra, as quais, todavia, – como observa
Nadailhac e as descobertas da arqueologia pré-histórica, – não poderiam ser
desprovidas de toda boa-fé, pois que praticavam o comércio exterior, e não
poderiam ser desprovidas de toda piedade, pois que nos deixaram vestígios não
duvidosos dos cuidados que dispensavam aos seus doentes. Ainda que no mundo
selvagem atual ou moderno, – único observado por nós, – as tribos pilhantes e
sanguinárias apareçam em maior número, não se segue, de modo algum, que fosse
sempre assim, que a espécie humana haja nascido maldosa, que a bondade, o
sentimento da justiça e a semente das virtudes quaisquer sejam obra tardia da
civilização.” (N. da T.).

[101] – Jurisconsulto e historiador suíço (1815-1887). Considerado um dos


fundadores da Etnologia Jurídica, dedicou-se também a estudos puramente
históricos. Procurou demonstrar as características extra-raciais da religião e as
diferenças psicológicas entre o homem primitivo e o civil. Caracterizou a religião
primitiva como um culto da mãe e da terra. Sua obra foi exaltada sobretudo pelos
adeptos de Nietzsch. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.)

[102] – Do sânscr. nayaka, ’chefe’, ’diretor’, pelo malaiala nayar. Entre os hindus
do Malabar, militar nobre. As nairas eram mulheres desta casta. Dicionário Aurélio
Século XXI. (N. da T.).

[103] – Famille Primitive, pág. 84.

[104] – O albigenses eram membros de uma facção da seita dos cátaros, que
professavam doutrina maniqueísta, pregavam a austeridade e a não-violência.
Surgidos no S. da França no séc. XI, foram exterminados no séc. XIII (N. da T.).

[105] – Pertencente a Botsuana, antiga Bechuanalândia, na África austral (N. da


T).

[106] – De ba-, partícula africana que indica plural, mais -ntu, homem. Termo
cunhado na década de 1850 por W.H.I. Bleek, bibliotecário do governo britânico
na antiga Colônia do Cabo.
Os bantos formam uma população cujo idioma é constituído por um grupo
de línguas pertencentes ao benuê-congo, e que é composto de várias centenas de
línguas faladas numa área muito extensa da África, desde o paralelo 5º até a antiga
Colônia do Cabo, na atual República da África do Sul. Dicionário Aurélio Século
XXI. (N. da T.).
[107] – Do africâner boschjesman, homem da mata. Povo nômade que habita
principalmente o deserto de Calaári, Botsuana e Namíbia, no S.O. da África (N. da
T.).

[108] – (Reforme sociale, 15 de julho de 1886). Artigo de Claúdio Jannet sobre o


livro do inglês Devas, Mestre em Artes de Oxfort, Études sur la Vie de Famille. O
autor “mostra que o costume que liga as crianças à mãe de preferência ao pai (das
Mutterrecht) nasce espontaneamente em certas situações econômicas e morais e
não é, de modo algum, a prova de um estado precedente de poliandria ou de
casamento comunal. A sociedade egípcia, na época demótica, é a prova”. Claudio
Jannet, a esse propósito, cita uma idéia de Bertillon que, impressionado com o
número de falsas uniões parisienses, propunha seriamente fazer uma lei para
reconhecer sua existência, análoga àquela do concubinato romano. “Chegar-se-ia
assim a uma família puramente maternal, pela corrupção mesmo de uma
civilização precedente mais elevada. Não é o caso desses budistas birmaneses onde
os costumes domésticos assemelham-se surpreendentemente àqueles dos
americanos contemporâneos? A família aí é instável, a democracia reina no lar
tanto quando poderia desejá-lo um jurisconsulto moderno.”

[109] – Segundo Viollet, em seu Précis de l’Histoire du Droit Français, obra


tornada clássica, a igualdade jurídica, senão política, do homem e da mulher estava
talvez mais perto de ser completamente realizada no século XIII, sob o império de
certos costumes ao menos, do que em nossos dias. Nós ainda dizemos na França,
como esse autor observa com perspicácia, que um pai dá sua filha em casamento;
nós não dizemos jamais que ele dá seu filho em casamento.

[110] – Mais freqüentemente a tribo era endogâmica e o clã exogâmico.

[111] – Do latim, levir, cunhado, mais –ato. Prática socialmente institucionalizada


do casamento de uma viúva com o irmão de seu marido, ou a regra matrimonial
que prescreve esse tipo de casamento que é, inclusive, mencionado no Antigo
Testamento como vigente entre os hebreus (N. da T.).

[112] – Eis, por exemplo, um progresso que parece verdadeiramente irreversível. O


divórcio, quando era praticado primitivamente, começou por ser unilateral,
concedido ao marido apenas; depois, mutualizou-se, e a mulher, a seu turno, pôde
requerer o divórcio. Jamais se viu o inverso, ou seja, a passagem do divórcio
mútuo ao divórcio unilateral. Esse caso entra numa regra geral que formulei
alhures como um corolário das leis da imitação.

[113] – Ver particularmente a obra já citada de Viollet, pág. 428 e seguintes.

[114] – Do latim, ripuariu, da margem. Indivíduo dos ripuários, antigas tribos


germânicas que habitavam as margens do Reno (N. da T.).
[115] – Povos de raça teutônica que habitaram primeiramente a região
compreendida entre o Vístula e o Ôder. Durante o século III, dividiram-se em dois
ramos, um dos quais invadiu a Gália, enquanto o outro ocupou a ilha de Borholm,
no Báltico. Mais tarde, um dos chefes desse povo, Gondicário, invadiu a Gália e
fundou aí o reino da Borgonha (N. da T.).

[116] – Do latim, visigothu, germano do west, oeste, mais, do latim, gothu, godo.
Indivíduo dos visigodos ou godos do Oeste (N. da T.).

[117] – Do latim, patriciatu, por via semi-erudita. Entre os romanos, estado ou


condição de patrício. A classe nobre; a aristocracia, a nobreza (N. da T).

[118] – E pela antigüidade romana, ela mesma. No início do século II de nossa era,
a cúria, nos municípios romanos, compunha-se ainda de magistrados eleitos. Foi só
mais tarde que essa magistratura eleita se tornou hereditária.

[119] – Quis-se assentar aqui, como regra geral, a passagem irreversível da


teocracia à monarquia laica. Todavia, o inverso é visto na história. A monarquia
carolíngia era teocrática, enquanto a monarquia merovíngia não o era; e aquela de
Luiz XIV era mais que a de Henrique IV. – Bodin, em sua République está muito
longe de supor que não haja senão uma linha de evolução e um único sentido de
evolução social. Há, diz ele, seis mudanças perfeitas. “São, a saber, de monarquia
em estado popular ou de popular em monarquia; e paralelamente de monarquia em
aristocracia ou de aristocracia em monarquia; e de aristocracia em estado popular
ou de estado popular em aristocracia.” Ele admite, vê-se, a reversibilidade dessas
mudanças políticas. E todavia, como se sabe que cada época erige, a esse respeito,
suas preferências ou seus hábitos em leis, há uma tendência a ver, em cada um
desses pares de transformações, uma como normal e outra como anormal. Porém
ocorre que sua escolha é precisamente o inverso da nossa. “Todas as mudanças de
senhorias em estados populares, diz ele, foram violentas e sangrentas, e, ao
contrário, os estados populares transformam-se em senhoriais por uma mudança
suave e insensível”, por exemplo, “na República de Veneza, Lucques, Raguse,
Gênes.” Parece que, a seus olhos, esta última evolução seja conforme à natureza
das coisas.

[120] – Na Belle histoire des idées morales dans l’antiquité, por Denis, seguem-se
as etapas de uma parte desse grande progresso ininterrupto.

[121] – Comuna rural autônoma da Rússia. O mir é um organismo de propriedade


coletiva (N. da T.).

[122] – Sociedade familiar existente entre os escravos do Sul, caracterizada pela


comunidade de bens entre os parentes unidos por linha masculina. Enciclopédia
Brasileira Mérito (N. da T.).
[123] – Página 264 da tradução francesa.

[124] – Ver o primeiro capítulo do segundo volume desse livro interessante e


escrito com profundidade (Turim, 1889).

[125] – Eu disse primitivo, porque este adjetivo do qual se abusa e do qual somos
forçados a usar e abusar nós mesmos como outros, teria então um sentido nítido e
preciso que estou longe de lhe conceder. Ou ele nada significa, com efeito, pois
que não pode ser questão, bem entendido, de remontar ao primeiro homem ainda
semi-animal ou às primeiras coisas humanas, em sentido unicamente cronológico;
ou ele significa, simples e claramente, num sentido de preferência lógico, que
existe um ciclo fechado de fases, onde voltas e revoltas sujeitam as coisas humanas
a periódicas repetições. Primitivo, pois, quer dizer recomeço, ou nada quer dizer.
Tenho de fazer esta observação de uma vez por todas.

[126] – Édito de Nantes. Rescrito de Henrique IV da França que promulgou, em


1598, a liberdade de consciência e de culto para os protestantes em todo o país,
com exceção de Paris, Lião, Reims, Toulouse e Dijon. A liberdade assegurada pelo
édito compreendia o direito de possuir templos, sinos e escolas. Aos indivíduos,
assegurava o direito de concorrer a todos os empregos e dignidades do Estado, bem
como de ser julgado por um tribunal huguenote. Havia, porém, algumas limitações,
como a proibição de trabalho em dias santificados pela Igreja Católica e a
obrigação de sujeitar-se às leis matrimoniais da Igreja oficial. Houve muitas
hostilidades ao cumprimento do Édito de Nantes, o que acarretou revoltas
huguenotes em 1620 e 1628, em verdadeira guerra civil. Luiz XIV determinou a
revogação do rescrito em 1685, daí resultando o exílio dos inconformados, exílio
este referido por G. Tarde no texto. A emigração de perto de 40.000 huguenotes
para a Inglaterra trouxe grande prejuízo econômico para a França. Enciclopédia
Brasileira Mérito (N. da T.).

[127] – De retr(o) mais venda. Em contrato de compra e venda de imóvel, cláusula


que ao vendedor reserva o direito de recomprar o bem dentro de certo prazo, sob a
condição de restituir o preço, ressarcir os gastos efetuados pelo comprador e
reembolsá-lo pelo valor dos melhoramentos acrescentados ao imóvel (N. da T.).

[128] – Chamo assim ao direito concedido aos vizinhos do vendedor desapossado


adquirirem-no de um estranho ao grupo, reembolsando o preço de sua aquisição.

[129] – Quer dizer, o direito concedido aos parentes do vendedor desapossado de


afastar da mesma maneira o adquirente estranho à família.

[130] – Do árabe, Barbar. Indivíduo dos berberes, qualquer dos povos nômades
que habitam as regiões norte-africanas da antiga Barbária (Marrocos, Argélia,
Tunísia, Líbia e Egito) e do Saara (N. da T.).
[131] – Na América, os selvagens, na falta de machados de metal, tinham
necessidade de unir seus esforços para derrubar suas florestas. Hoje o indivíduo,
por seus próprios esforços, por seu trabalho remunerado, pode adquirir terras tanto
quanto ganhar dinheiro. Mas, nos tempos da indústria grosseira e sem comércio,
ele não podia adquirir senão coisas móveis, armas encontradas ou trocadas,
ferramentas, jóias, presas de caça, colheitas anuais. Quanto aos domínios, não
havia, em geral, senão duas maneiras de os adquirir: o desmatamento ou a
conquista. Mas, seja para conquistar, seja mesmo, assaz freqüentemente, para
desbravar, era necessária uma associação de esforços, militar num caso, laboriosa e
pacífica no outro. Era o clã inteiro que se anexava um novo território. Devia então
parecer natural possuir as coisas adquiridas coletivamente e aproveitar, cada um, a
parte das coisas individualmente conquistadas. Eis em parte por que, lá onde as
terras são comuns, os móveis, todavia, mesmo quando poderiam sê-lo, não o são.

[132] – E esse estado de coisas tinha como caráter marcante ser de um equilíbrio
sempre muito instável. Sumner-Maine faz a mesma observação a respeito da
comunidade de aldeia hindu: “Tudo o que perturbava sua ordem pacífica levava ao
engrandecimento da família dominante e de seu chefe”, ou seja, à aparição da
propriedade individual, primeiramente excepcional, depois generalizada pela
imitação. – A constituição da aldeia hindu era aristocrática ou democrática? É
duvidoso. Ela era aristocrática, assim parece, de acordo com as observações
precedentes. Em todo caso, esses comunistas são de um conservadorismo
excessivo, rebeldes a todo melhoramento agrícola. Deu muito trabalho fazê-los
compreender a utilidade da cultura do algodão.

[133] – Diz-se de povo ou da civilização oriunda do contato entre os invasores


romanos e os gauleses após a conquista da Gália (N. da T.).

[134] – “A habitação comum, a propriedade familiar, análoga à dos clãs iroqueses


ou aos falanstérios dos povos da América Central, existe também entre os pássaros.
Citarei, a título de exemplo, aqueles que constroem seus ninhos em família, uns
sobre as árvores, outros no alto de velhos edifícios” (Letourneau.)

[135] – Problèmes d’Histoire, página 313 e 314.

[136] – Ètudes sur l’Histoire du Droit, página 20.

[137] – Ver na última edição da obra de Laveleye muitas passagens, especialmente


páginas 129, 148, 278, 379.

[138] – Notadamente em todos os países muçulmanos. Ver a esse respeito a


Théorie du Droit Musulman de Savvas-Pacha.

[139] – Ver o artigo de Koralesky sobre a família patriarcal no Cáucaso, na Revue


Intern. de Sociologie, julho-agosto de 1893. O autor mostra aí que, nessas
populações caucásicas que permaneceram tão primitivas, o culto dos ancestrais
acarreta enormes despesas em festins rituais que arruínam a família e a obrigam a
vender alguns de seus bens. Mas, “antes de concluir-se a venda com um
estrangeiro, o costume exige que se dê preferência aos familiares parentes
pertencentes ao mesmo clã. Se for um membro do mesmo clã que o compre, a terra
não sai do círculo dos parentes e o culto das divindades familiares não sofre
interrupção. O direito de preempção familiar, quer dizer, o direito de comprar
concedido, de preferência, aos parentes (retomada linear) encontra-se assim em
relação muito mais estreita com o culto familiar do que se acreditava até então. Se
é assim, e se esta explicação, como eu acredito, é suscetível de uma certa
generalização, vê-se que o direito de retomada linear, simples corolário de crenças
religiosas, nada tem a ver com a comunidade de aldeia, ela mesma. Trata-se de fato
derivado do culto dos ancestrais, preferencialmente a constituir-se num fato
primitivo.

[140] – Ver Viollet, página 501.

[141] – Na Europa ao menos; mas alhures, a explicação deve apenas modificada.


Não é provável que, de modo semelhante, as maneiras afetadas dos chineses, e
mesmo as cerimônias hospitaleiras dos árabes sob suas tendas, procedam, pela
imitação, de hábitos primitivamente próprios a seus chefes, a seus reis, a seus
líderes quaisquer?

[142] – Em toda parte e sempre o campo imita a cidade. Assim, não devemos nos
surpreender com um fato, desconhecido pelos historiadores, mas revelado por
Luchaire (Les Communes Françaises à l’Époque des Capétiens Directs, 1890), a
saber, após e conforme as grandes comunas juramentadas do século XII, Laon,
Dijon, Soissons, etc., uma multidão de pequenas comunas rurais (pág. 69 e seg.)
pulularam. O homem nasce tão sociável que, de todos os exemplos humanos, o
mais contagioso é, naturalmente, o exemplo da associação.

[143] – Do francês guilde, gilde latim medieval, gilda, forma latinizada, reunião,
banquete de natureza simbólica e religiosa;corporação. Associação de auxílio
mútuo constituída na Idade Média entre as corporações de operários, artesãos,
negociantes ou artistas (N. da T.).

[144] – A eclosão dos monastérios, é verdade, poderia haver sido sugerida pela
organização interior da vila galo-romana, tal como Fustel de Coulanges nos
descreve. Essas vilas, que se dividiam por quase todo o solo da Gália, e de onde
saíram nove décimos de nossas cidades modernas, eram o mesmo que pequenas
repúblicas unas e indivisíveis. Cada domínio bastava-se a si mesmo. Havia, como
em cada comunidade de aldeia, uma aproximação instrutiva – “moleiros, padeiros,
carpinteiros de carros, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, barbeiros”. Esses costumes
de trabalho repartido e solidário da vida grupal disciplinada e autônoma não podem
haver favorecido o gosto das comunidades monásticas? É possível, mas esta
explicação não se aplicaria senão aos escravos e aos colonos; e é sobretudo às
classes superiores, entre os proprietários, que tem servido a paixão do hábito
monástico.

[145] – Esparta. (N. da T.).

[146] – Em muitas grandes cidades da América do Sul, onde não chove jamais,
onde, por conseqüência, os telhados chatos são os únicos racionais, existe o furor
de construir casas em estilo renascença, com telhados pontudos, para seguir a
moda européia.

[147] – Laveleye pretende descobrir na China a propriedade coletiva. Mas vê-se


obrigado a remontar, diz-nos, ao ano 2205 a. C.

[148] – La Propriété et ses Formes Primitives, última edição, p. 487.

[149] – Acrescentai a isso um outro cataclismo: a invasão da idéia feudal que se


difundiu invisivelmente durante o período mais obscuro da alta Idade Média, como
um transbordamento noturno do qual se nos maravilhamos ao acordar. Para ele,
este último fato tem tal relevância que, malgrado seu desejo de relacioná-lo ao
mais longínquo passado das raças arianas, os townships escoceses, como qualquer
outra comunidade ainda subsistente, Sumner-Maine deixa escapar esta confissão:
“Pensa-se geralmente que o sistema feudal da Escócia, muito exclusivo e muito
unitário, deveria ter podido apagar os traços dos antigos usos teutônicos nas terras
baixas”, quer dizer, nas zonas mais férteis, mais cultivadas, as primeiras inundadas
pelas invasões das novas modas. Na verdade, ele cita um exemplo que acredita
próprio (Histoire du Droit, pág. 130 e seg.) a contradizer essa asserção geral e
acreditada, mas simplesmente porque a comunidade agrícola da qual se trata
parece-lhe ter “uma cor das mais arcaicas”. São necessárias razões mais fortes,
documentos precisos, para permitir afirmar-se que um fragmento de tempos
fabulosos sobreviveu, no meio de uma planície, a despeito dos quatro grandes fatos
assinalados.

[150] – No original Carinthie, estado da República da Áustria. Nouveau Petit


Larousse Illustré, Librairie Larousse – Paris, 1947, (N. da T.).

[151] – Carniole, antiga província da Áustria, de população eslovena, partilhada


em 1919 entre a Iugoslávia e a Itália. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie
Larousse – Paris, 1947, (N. da T.).

[152] – Foi questão, mais acima, os efeitos diretos da imitação e da invenção sobre
o regime da propriedade. Tratam-se agora de seus efeitos indiretos que são muito
mais importantes. Não existe ação direta desse gênero senão quando, por exemplo,
um novo direito de propriedade é inventado e é propagado pela imitação. Para que
uma semelhante invenção seja feita, é necessário que ela tenha se tornado desejável
e viável, através de um conjunto de outras invenções, em aparência, estranhas ao
Direito, tais como a idéia de um novo modo de cultura intensiva.

[153] – De venatório, do latim, venatoriu. Respeitante à caça (N. da T.).

[154] – Esta separação, eu o sei, é impossível de fato. É justamente o aumento do


grupo social que força o espírito inventivo a desenvolver-se, para imaginar novos
meios de subsistência e de bem-estar e, vice-versa, é a descoberta de novos meios
de subsistência ou de novas indústrias que torna possível o aumento numérico das
sociedades.

[155] – Aliás, por ela mesma, e independentemente do progresso inventivo, a causa


indicada não cria qualquer novo objeto a possuir, não acrescenta nada às riquezas
existentes sobre a terra.

[156] – Habitantes da Mauritânia. Quando os cartagineses se estabeleceram na


África setentrional, deram aos berberes indígenas o nome de maures, nome este
que, na Idade Média, foi estendido aos conquistadores árabes da Espanha. Nouveau
Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse – Paris, 1947, (N. da T.).

[157] – Geólogo francês (1798-1874). Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.
da T.).

[158] – Em geral, a caça está ligada ao comunismo. É assim mesmo em nossas


nações civilizadas, onde os territórios de caça são desfrutados indivisamente pelos
caçadores, mais freqüentemente reunidos em bandos. Este comunismo é de tal
maneira inevitável, que não se deve ter o trabalho de observá-lo. Mas, caso fosse
insignificante: Por que aquele dos selvagens teria significação?

[159] – Do grego, heilótes. Em Esparta, escravo que cultivava o campo. (N. da T.).

[160] – Antigo povo da Penéstia, na Ilíria Meridional, na Grécia antiga.


Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[161] – Proletários atenienses. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[162] – Em face de similitudes sem imitação, pode-se citar ainda a semelhança dos
procedimentos pecuniários empregados pela Restauração francesa, para pôr fim às
reivindicações dos emigrados arruinados pela Revolução, com medidas tomadas
em casos semelhantes “em Éfeso e em toda a Ásia após a conquista de Mitrídate”.
( Dareste, Hist. du Droit, p. 49).

[163] – Aliás, é inconteste que o coletivismo sempre coexistiu com a propriedade


individual de uma parte do solo. Por longe que se remonte na História, vê-se a
marke germânica, a allmend suíça, etc. cumprirem uma função especial, análoga
àquela de nossas comunas, apenas mais extensa e mais importante. – Todavia é
bom acrescentar que a propriedade coletiva pôde e deveu ser freqüentemente a
forma primitiva da soberania nacional, quer dizer, comunal. Isso quando as idéias
de propriedade e de soberania estavam confundidas. É natural pensar que então, na
opinião de todos, uma sorte de domínio eminente sobre todas as terras cabia ao clã,
à tribo, ao Estado.

[164] – Eu não digo que o deseje. Veja-se o porquê: percebo muito a maneira pela
qual esta revolução se opera, segundo todas as verossimilhanças. É certo que a
terra é monopolizada pelos proprietários; mas este monopólio, enquanto a
propriedade individual domina, neutraliza-se quase, em se fracionando. Se o
coletivismo se estabelecesse, ver-se-ia este monopólio concentrar-se simplesmente
entre as mãos de alguns políticos, que acabariam por explorar todo o solo em seu
proveito. Na realidade, a terra é e será sempre monopolizada; e o único remédio,
ou o único paliativo, a este inconveniente é o fracionamento das propriedades, o
que é bom para favorecer também as associações livres de proprietários, para
conciliar com a pequena propriedade a grande cultura. A propriedade individual é
o único contrapeso eficaz que subsiste ainda contra os excessos da centralização
política e administrativa. O exemplo das comunidades de aldeia em Java, tão
admiradas todavia por Laveleye, permite estas apreensões. Partilham-se
periodicamente os lotes de terra, mas o prefeito extrai, apenas para si, dez vezes
mais que seus administrados, e os conselheiros municipais três vezes mais.
Acrescente-se que os habitantes trabalham a terra do prefeito (pág. 66). Em suma,
o prefeito é senhor, e sua assim dita comunidade de bens é uma sorte de feudo. E
este caso não é uma exceção. Cada vez que Laveleye nos faz penetrar no coração
de uma dessas colmeias falansterianas de aspecto idílico a distância, nós
descobrimos algo semelhante. Na Alemanha, segundo Tácito, cada um dos co-
proprietários toma uma parte “proporcional à sua dignidade”. (Ver também páginas
88, 129, 34, 148, 278, 322, 354, 379, etc.). Existe aí alguma coisa para reflexão.

[165] – Entre os povos em que a distinção entre as relações com os parentes e as


relações com os estrangeiros guarda alguma coisa de sua nitidez primitiva, a
duração da prescrição não era igual à vista de todos. Em direito muçulmano, de
acordo com a escola malaquita (ver Dareste, obra citada, página 61), a prescrição é
de dez anos entre os estrangeiros e de quarenta anos entre os parentes.

[166] – Às vezes, ao inverso daquilo que se observa geralmente, as mulheres são


excluídas da sucessão após haverem sido admitidas. Os cabilas da Argélia, no
último século, aboliram o direito de sucessão das mulheres editado pelo Profeta e
voltaram, – diz Dareste, – “ao antigo costume que não dá à mulher senão
alimentos”.

[167] – Viollet, Histoire des Institutions Polit., página 246.

[168] – No velho Egito, “as crianças sucediam a seu pai sem distinção de sexo e,
em geral, em iguais porções, salvo cláusula testamental a favor do
primogênito” (Dareste). Mas “essa cláusula testamental é, para dizer a verdade,
uma compensação. Ela se atém ao fato de que o primogênito entre os filhos está
encarregado de representar a sucessão, enquanto ela permanecer indivisa, e fazer a
partilha entre todos os herdeiros”.

[169] – Processo de reprodução por meio de gemas, comum nos vegetais


inferiores. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[170] – Teoria formulada por Darwin, segundo a qual os caracteres hereditários


provém de todas as células do organismo. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da
T.).

[171] – Teoria que pretende explicar a determinação da forma do organismo e,


portanto, a hereditariedade e a evolução, pela natureza do movimento vibratório
dos plastídulos, ou seja, unidades granulosas dispostas em fileira no protoplasma.
Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[172] – Quanto a perguntar por considerações dessa ordem a serem feitas na


escolha dentre os múltiplos regimes sucessorais, inútil pensar, bem entendido.

[173] – Eu evito com cuidado a palavra “adaptação”, da qual se abusa, porque é


equívoca. Dizer que as funções sociais se adaptam às funções vitais pode significar
indiferentemente que elas se submetem àquelas ou que elas se submetem a elas
mesmas.

[174] – Aqui vem juntar-se a influência direta da invenção à sua influência


indireta.

[175] – Shakespeare escreveu The Merchant of Venice (1596-1597, O mercador de


Veneza, obra esta protagonizada por Shylock, judeu que pretende usar a justiça
para uma terrível vingança contra Antônio, o mercador cristão. Encyclopaedia
Britannica do Brasil. (N. da T.).

[176] – Do árabe murabit, literalmente: aquele que vive em um ribat (fortaleza ou


monastério, ou seja, eremita, monge, guia religioso. A palavra significa geralmente
asceta religioso ou guia espiritual muçulmano; em sentido estrito, membro de
qualquer uma das comunidades religiosas e militares do Norte da África, de grande
ascendência espiritual e política entre os berberes. Por extenção, significa também
local sagrado, associado à presença de um marabu, como o templo onde este
realiza o serviço religioso, ou a sepultura em que está enterrado.(N. da T.).

[177] – As técnicas de combate inventadas por Aníbal nas batalhas que travou
contra os exércitos romanos foram consagradas pela história dos conflitos bélicos.
Aníbal foi talvez o maior gênio militar da antigüidade. Filho de Amílcar Barca,
comandante da primeira guerra púnica contra os romanos, Aníbal nasceu em
Cartago no ano 247 a.C. Aos 26 anos, depois do assassinato do pai e do cunhado
Asdrúbal, assumiu o comando do exército. Durante a segunda guerra púnica,
Aníbal reagiu organizando uma expedição à Itália, composta de aproximadamente
quarenta mil homens e grande número de elefantes. Após a travessia dos Pireneus
e dos Alpes, o cartaginês infligiu aos romanos a primeira derrota em Trébia, no
vale do rio Pó, onde incorporou a suas tropas os gauleses cisalpinos. Na batalha de
Trasimeno esmagou as forças de Flamínio, estimadas em 15.000 homens, e
conquistou o domínio da Itália central. G. Tarde, aqui, refere-se à batalha travada
em Canas, campo situado nas proximidades de Bareta, Apúlia, SE. da Itália, em
216 a. C., outra retumbante vitória de Aníbal contra um contingente romano duas
vezes mais numeroso que as tropas cartaginesas. Encyclopaedia Britannica do
Brasil e Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.)

[178] – Neste caso, a medida não é agrária, mas significa um recipiente com
capacidade de um alqueire, para medição de quantidade de grãos de cereais. (N. da
T.).

[179] – Povo da região de Ossétia, no Cáucaso Central, que parece descender dos
antigos iranianos. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[180] – As mais antigas raízes verbais foram a designação de um objeto ou de uma


ação por um de seus caracteres entre mil; a expressão do todo pela parte.

[181] – Emprego de palavra ou expressão em sentido figurado. (N. da T.).

[182] – Ver a obra já citada de Savvas-Pacha.

[183] – Boletim das Leis, ou seja, espécie de diários oficiais da época (N. da T.).

[184] – Ver Viollet, Hist. des Instit. Polit., página 286 e s.

[185] – Pertencente ou relativo à primeira dinastia francesa, fundada por Meroveu,


que reinou de 448 a 458. (N.da T.).

[186] – Pertencente ou relativo à dinastia de Carlos Magno, rei dos francos e


imperador do Ocidente de 742 até 814. (N. da T.).

[187] – Principado balcânico; independente após o Tratado de Berlin (1878), reino


após 1910, anexado à Ioguslávia depois de 1919. Nouveau Petit Larousse Illustré,
op. cit. (N. da T.)

[188] – Uma das mais rigorosas obrigações de direito, em todo país teocrático (e
quase toda sociedade começa por aí), é a obrigação de crer. Ora, na origem ela é
uma simples herança fisiológica. Vós nasceis de pais muçulmanos ou cristãos, vós
deveis crer na Lei de Maomé ou de Jesus, como, sob os merovíngios, as famílias
francas, visigodas, romanas, misturadas sobre o solo gaulês, seguiam cada uma sua
própria legislação. Mas, mais tarde, foi o fato de habitar um país muçulmano ou
cristão que, independente de qualquer parentesco, criou a obrigação da crença
muçulmana ou cristã, como a submissão à legislação nacional, a mesma para toda
uma população, aparentada ou não.

[189] – Ela é exposta e discutida com uma independente simpatia por René
Worms, em sua tese sobre a Volonté Unilatérale Considérée comme Source
d’Obligacion, Giard, 1891 (A vontade unilateral considerada como fonte da
obrigação). Ele mostra que, seja em Direito Romano, seja nas legislações
modernas, deve-se dar um lugar inconfessável, mas real, às obrigações nascidas de
uma vontade unilateral: em Direito Romano, promessas de doações a cidades, a
pessoas morais, votos aos deuses (tornados legados piedosos do Direito Canônico);
em Direito Francês, estipulação por alguém, contratos de seguro de vida em favor
de crianças não intervenientes no contrato, títulos à ordem ou ao portador, ofertas
de negócios, etc.

[190] – É curioso notar aqui a fraqueza filosófica de um dos mais ilustres


comentadores de nossos códigos. Eis como ele tenta salvar a velha teoria
desestruturada por objeções análogas à precedente. “O autor da oferta, diz
Demolombe, em a emitindo, emite a vontade de formar o contrato, quando a outra
parte houver aceito. Por sua aceitação, a outra parte emite uma vontade análoga.
As duas vontades se encontram, e o contrato está formado.” Worms sinala o vício
desse raciocínio. “O contrato não pode se formar senão se a vontade atual do
ofertante concorrer com a do aceitante. O ofertante tem, por sua oferta,
manifestado sua vontade de manter, até a aceitação, sua vontade de contratar. Mas,
se a vontade de contratar desapareceu no momento da aceitação, por qual estará ele
retido? Por sua primeira vontade que o obrigaria a não mudar de intenção. Logo, é
sempre e unicamente por sua primeira declaração, por sua declaração de vontade
unilateral, que ele está obrigado.”

[191] – Poder-se-ia observar também que, no início das sociedades, os


engajamentos unilaterais precediam, em geral, os engajamentos recíprocos. A
doação precedeu à troca; doação ao senhor, doação aos deuses, tornada em breve
imposto obrigatório. Spencer bem o demonstrou. – O engajamento da mulher em
relação ao marido precedeu àquele do marido em relação a ela; o casamento não
começou por ser um contrato. – Assim, pelo desenvolvimento que elas emprestam
às promessas unilaterais, as sociedades velhas revivem, mas num sentido
totalmente diferente, um dos caracteres de sua infância.

[192] – É a vontade unilateral que apreende (sapere, prehendere) que, na origem,


fundou o direito de propriedade e, afinal, o direito autoritário da família ou da
cidade. Isto significa que a visão de um homem resolvido a tomar e a guardar um
objeto faz nascer na alma daquele que olha uma espécie de respeito natural pelo
exercício desta vontade, da qual este respeito é o reflexo. – É assim que, mesmo
em nossos dias, no que concerne à tomada de posse de uma nova ilha descoberta, o
Estado manifesta a intenção de estabelecer-se, e é reputado proprietário aos olhos
de todos os Estados civilizados. Se é assim, por que a vontade unilateral de fazer e
de dar não teria a virtude de engendrar a obrigação, o dever? Um destes fatos está
exatamente na dependência do outro. A visão de um homem que manifestou a
vontade de fazer ou dar qualquer coisa faz nascer naquele que olha a expectativa
jurídica desta ação ou desta doação.

[193] – Ver, a esse respeito, a obra já citada de Savvas-Pacha e o código


muçulmano de Khàlil traduzido por Seignette.

[194] – Era maometana, que tem como ponto de partida a fuga de Maomé de Meca
para Medina, em 622 da nossa era. (N. da T.).

[195] – Historiador, filósofo e general ateniense, um dos discípulos de Sócrates.


Distinguiu-se na guerra do Peloponeso, dirigindo a retirada dos dez mil. Mais
tarde, combateu contra seus concidadãos que o haviam banido e não se lembraram
dessa sentença 20 anos mais tarde. Espírito curioso e engenhoso, boa testemunha
das coisas de seu tempo escritor simples, puro e espiritual. Nasceu em torno de 427
e morreu depois de 355 a. C.. Nouveau Petit Larousse, op. cit. (N. da T.)

[196] – A palavra menagem, aqui, tem o significado de pacto, promessa feita no


cumprimento de palavra dada, de uma cláusula ou de um contrato. A mesma
palavra significa também homenagem, preito, e ainda prisão fora do cárcere, que a
justiça militar concede sob promessa ou palavra do preso de que não sairá do lugar
onde se acha ou que lhe for designado. Enciclopédia Brasileira Mérito, Dicionário
Aurélio Século XXI. (N. da T.)

[197] – Economista francês nascido em Bayonne, Claude-Frédéric Bastiat foi um


defensor da liberdade do trabalho e do livre-comércio. Nasceu em 1801 e morreu
em 1850. Nouveau Petit Larousse, op. cit. (N. da T.)

[198] – Quanto às disposições legais relativas às obrigações, é de modo abusivo


que elas pretendem o nome de teoria; e, ainda que sejam dotadas, graças a sua
generalidade, de uma longevidade especial que lhes permitiu sobreviver a outras
partes de seus códigos, elas não são, elas próprias, susceptíveis senão que de
aplicações circunscritas e temporárias. Sua sobrevivência é, aliás, mais aparente
que real, e a permanência enganosa do Direito formal dissimula aqui as mutações
do Direito vivo. A “teoria” legal das obrigações parece restar quase a mesma do
Império Romano até nós. Mas a substância dessas formas, o conteúdo dessas
fórmulas mudou completamente. É a mesma gramática, é o mesmo dicionário;
apenas tal regra ou tal palavra, outrora muito usadas, caíram em desuso e vice-
versa. Não apenas tal gênero de contrato, – por exemplo, a retrovenda ou o
contrato em cabeças de gado usados antigamente na Idade Média, – é agora
excepcional, ou tal outro, – o arrendamento fechado, antes muito raro, – está
generalizado; mas ainda as condições dentro das quais esses contratos se operam
foram subvertidas. Os preços de venda, os preços de fechamento perderam suas
antigas proporções. Contratos de venda, arrendamentos, locações de empregados,
contratos de casamento mesmo; todas essas convenções guardaram seus nomes,
mas foram profundamente transformadas. Pode-se dizer, depois disso, que o
Direito relativo às obrigações permaneceu o mesmo? – E de modo semelhante:
Pode-se dizer que é idêntico entre dois povos, porque um emprestou ao outro suas
fórmulas ou, espontaneamente, imaginou fórmulas semelhantes?

[199] – Do grego, syllogismós, argumento; pelo latim, syllogismu. Dedução formal


tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas, por inferência, se tira
uma terceira, chamada conclusão. (N. da T.)

[200] – Compilação do conjunto das revelações de Deus, Alá, ao profeta Maomé


(c.570-632), que compreende a doutrina religiosa e a codificação da vida civil e
social islâmica. (N. da T.).

[201] – Diferença aparente na localização de um corpo quando observado por


diferentes ângulos. (N. da T.)

[202] – A premissa maior. (N. da T.).

[203] – Esta diferença pode dirigir-se em parte a que, no silogismo intelectual, por
profunda e infinita que seja a crença contida na premissa maior, jamais esta se
torna inconsciente, operando invisivelmente. Sua majestade permanece sempre
diminuída em comparação à premissa maior, igualmente infinita, do silogismo
moral. Esta pode continuar a agir por muito tempo ainda, após sua desaparição ou
sua morte que não se percebe. Quantos deveres morais sobrevivem aos desejos e às
esperanças religiosas que os fizeram nascer! Mas, quando um dogma é abalado ou
abatido num espírito, todos os princípios que dele decorrem não tardam a tombar
com ele.

[204] – Dareste, página 132.

[205] – Mas, bem entendido, o sistema de direitos e de obrigações, ossatura do


corpo social, não saberia corresponder senão muito inexatamente, nem adaptar-se
senão muito devagar ao sistema de valores, coisa plástica, em mutação contínua,
como a carne viva.

[206] – Gostaria muito que se nos guardássemos de julgar, sobre esse simples
enunciado, nossa teoria do valor. Limito-me a citá-lo aqui. Aliás, (na Revue
Philosophique, na Revue d’Économie Politique) tentei esboçá-lo mais
completamente. Tive o prazer de ver Gide, em seu Traité d’Économie Politique,
dar boa acolhida a uma parte dessas idéias e notadamente a esta, de que a crença,
não menos que o desejo, (expressão da necessidade) é um fator essencial do valor.
– Deve-se ter em conta também a repartição, mais ou menos igual ou desigual, das
fortunas. – Acreditei mostrar que o valor tem dois sentidos inversos e
complementares: o primeiro exprimindo o resultado da luta engajada em cada
indivíduo, entre os desejos e as crenças que ele trata de sacrificar uns aos outros; o
segundo exprimindo o resultado do concurso de desejos e de crenças que se
entreajudam e se entreconfirmam.

[207] – O nono mês do ano muçulmano, considerado sagrado, e durante o qual a


lei de Maomé prescreve o jejum num período diário entre o alvorecer e o pôr-do-
sol. (N. da T).

[208] – Permito-me enviar o leitor, curioso de esclarecimentos, a um capítulo de


meu Lois de l’Imitation, a respeito do que chamei de o duelo lógico ou
acoplamento lógico das inovações sucessivas, conformes ou contraditórias, ou toda
ordem de fatos sociais, em lingüística, em mitologia, em política, em legislação,
em indústria, em arte.

[209] – Partidários do estoicismo, designação comum às doutrinas dos filósofos


gregos Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores Cleanto (século III a.C.),
Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto (55-135) e Marco Aurélio (121-180),
caracterizadas sobretudo pela consideração do problema moral, constituindo a
ataraxia, a calma, o estado em que a alma, pelo equilíbrio e pela moderação na
escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade: a
imperturbabilidade o ideal do sábio. (N. da T.).

[210] – João Domat (1625-1696) foi um jurisconsulto francês, jansenista. O


jansenismo era uma doutrina sobre a graça, a predestinação e a capacidade moral
do homem presente, com tendência ao rigorismo moral. Ligado ao círculo de Port-
Royal e amigo íntimo de Pascal, – com quem estudou matemática, – foi magistrado
durante trinta anos. Droit Civil dans son Ordre Naturel foi publicada em 1694.
Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[211] – Ministério das Relações Exteriores (N. da T.). >

[212] – Ancien droit, página 43 e seguintes da tradução francesa.

[213] – Filósofo estóico (60 d.C., morto em data ignorada) que viveu em Roma e
foi escravo de Epafrodito, um liberto de Nero que lhe prodigalizava maus-tratos,
suportados com paciência por Epicteto. Suas doutrinas assemelhavam-se às cristãs,
mas não há prova de contato direto entre este filósofo e pregadores do
cristianismo. Não especulou sobre a natureza, ciência ou bens, mas limitou-se à
doutrina moral, preocupado em indicar ao homem regras práticas de proceder. Foi
exilado em Roma, em 90 d.C., por Domiciano. Não deixou escritos. Sua doutrina,
porém, pôde chegar até nós graças a seu discípulo Flávio Arriano, que redigiu, com
as notas que tomara, as Práticas e o Manual. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N.
da T.).

[214] – A palavra aqui não se insere na acepção comum, mas significa partiário do
Cinismo, enquanto doutrina e modo de vida dos seguidores dos filósofos socráticos
Antístenes de Atenas (444-356 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.),
fundadores da Escola Cínica, que pregavam a volta à vida em estrita conformidade
com a natureza e, por isso, se opunham radicalmente aos valores, aos usos e às
regras sociais vigentes. (N. da T.).

[215] – “A moderna expressão Direito das Gentes não corresponde, de maneira


alguma, à expressão latina jus gentium empregada por jurisconsultos romanos. O
jus gentium dos romanos era o conjunto de instituições de direito privado, comuns
à maior parte dos povos civilizados, que eram acessíveis aos peregrinos. Opunha-
se ao jus civili, que era o conjunto das instituições próprias ao povo romano e do
qual os cidadãos romanos, unicamente, podiam usar. Ainda hoje, no Direito
Francês, a jurisprudência e alguns autores servem-se da expressão direito das
gentes no sentido que ela tinha em Direito Romano, em oposição ao Direito Civil,
para regrar, por uma distinção análoga, a situação dos estrangeiros na França em
relação ao exercício de direitos privados” (AUBRY ET RAU, Cours de Droit Civil
Français, I, § 78) in FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit International
Public, Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[216] – Há também uma outra razão, porque o problema é complexo e árduo.


Como, ainda uma vez, pôde ser que as relações com o estrangeiro, que se odiava
ou, ao menos, que não se amava, dessem nascimento, direta ou indiretamente, a um
Direito que, comparado ao Direito nascido das relações com o compatriota, único
objeto das afeições do coração, constituiu um real abrandamento dos rigores
jurídicos, um passo decisivo em direção à era da eqüidade? A coisa se explica,
além das considerações acima, se se observar que, visto o caráter eminentemente
hierárquico, não igualitário e autoritário, de uma Nação primitiva, – e mesmo de
uma Nação qualquer, – o Direito nacional, a despeito da simpatia mútua dos
cidadãos, deve ser fundado sobre a autoridade, sobre a desigualdade, e apoiar
sobretudo o poder do pai, do magistrado, do marido, do sacerdote ou do áugure, do
patrício, do chefe militar. Ao contrário, precisamente porque o romano e o
estrangeiro não faziam parte da mesma nação, eles sentiam-se iguais entre si, sem
poder legítimo um sobre o outro. É, pois, sobre esse pé de igualdade, – quer dizer,
sobre a relação que tende a estabelecer, no seio da própria nação, o progresso da
civilização, – mas ao longo do tempo e mais em aparência do que em realidade,
que, em primeiro lugar e muito realmente, fundamentaram-se as regras do Direito
com o estrangeiro, do jus gentium. E eis por que o jus gentium parece-se tanto com
o jus naturale, pois que é tomado freqüentemente por este. Não é menos verdade
que a simpatia é, não menos que a autoridade (no fundo da qual a simpatia se
esconde) a fonte do Direito.
[217] – “Parece estranho à primeira vista, diz ele, no Ancien Droit, encontrar, na
história inteira do Direito, o jus naturale e o jus gentium sempre misturados e
jamais confundidos.”

[218] – Por exemplo: Em que sentido é verdadeiro dizer que os fundadores teóricos
do Direito da Gentes moderno hajam aplicado o Direito Natural às relações dos
Estados? Eles acreditaram dever considerar esses Estados como iguais entre si,
iguais em direito, malgrado sua extrema desigualdade de poder, e trata-se de
conciliar juridicamente essas soberanias desiguais. Problema insolúvel, para dizer a
verdade. Quem diz soberania, poder supremo, diz poder sem limite territorial. Esta
idéia de uma multiplicidade de soberanos, supostos senhores absolutos cada um em
seu domínio pequeno ou grande, e nisso iguais, é o que há de mais anárquico no
fundo, e mesmo contraditório. A concepção que reinava no mundo romano-cristão,
após a própria queda do Império, segundo a qual não havia nem podia haver senão
uma soberania no mundo, dividida, aliás, em duas ou mais pessoas, – como a
divindade tripla e una, da qual a idéia foi talvez sugerida pela divisão do poder
imperial – era tudo de outro modo natural, se se qualificar assim toda a idéia
própria a estabelecer a ordem, o equilíbrio e a paz no mundo, e a produzir o mais
lógico dos arranjos.

[219] – “A maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas” –


este era o lema com o qual Bentham define o utilitarismo, doutrina por ele criada,
cujo fim era a obtenção do bem-estar do indivíduo pela organização pragmática da
sociedade. Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 de fevereiro de 1748.
Estudou direito em Oxford, formando-se em 1772. Em sua obra An Introduction to
the Principles of Morals and Legislation (1789) expôs a doutrina do utilitarismo,
cuja base era o reconhecimento de que o mundo é regido por dois princípios:
prazer (bem) e dor (mal). Como esse fato é incontestável, a ordem social e moral
deve buscar a utilidade, isto é, aquilo que produz o bem do indivíduo ou, pelo
menos, evita uma dor desnecessária. É preciso estabelecer uma ordem de valores,
de acordo com a utilidade de cada um e escolher pragmaticamente os que possam
produzir o maior bem para o maior número de pessoas. Como o castigo produz dor
e não bem-estar, só deve ser empregado para prevenir males piores. Interessado
numa reforma legislativa em benefício do povo, Bentham colaborou em vários
projetos legais para o desenvolvimento do ensino, a erradicação da pobreza e a
suavização das penas e dos regimes de prisão. Contribuiu também para que
diversos países adotassem mudanças em suas leis penais e processuais. Em 1823
participou da fundação da Westminster Review e formou a seu redor um grupo de
discípulos, entre eles o filósofo John Stuart Mill, que perpetuou sua doutrina ao
longo do século XIX. Na verdade, Bentham nunca pretendeu elaborar uma teoria
filosófica, mas sim favorecer a racionalização das instituições. Suas idéias
exerceram grande influência sobre o desenvolvimento do liberalismo político e
econômico. Morreu em Londres, em 6 de junho de 1832. Encyclopaedia Britannica
do Brasil (N. da T.).
[220] – Gli studi di Sumner-Maine, por Icilio Vanni.

[221] – Guyau, Jean-Marie (1854-1888). Poeta e filósofo francês. Sua obra procura
valorizar a função da solidariedade na ética. Esboço de uma moral sem obrigação
nem sanção. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[222] – Hugo Grotius (Huigh de Groot), considerado o fundador do Direito


Internacional, nasceu em Delft, Países Baixos, em 10 de abril de 1583. Formou-se
aos 15 anos pela Universidade de Leyden e, em 1598, editou a enciclopédia de
Marciano Capela. Em 1607 tornou-se advogado fiscal da província da Holanda e
em 1613 pensionário (espécie de governador) de Rotterdam. Durante esse período
firmou-se como poeta, dramaturgo e historiador. A partir de 1610, ao lado de
Oldenbarnevelt, passou a defender a doutrina do bispo Arminius, oposta ao dogma
calvinista da predestinação, o que despertou o ódio da casa reinante, protetora dos
calvinistas. Oldenbarnevelt foi executado e Grotius fugiu, em 1621, para Paris,
onde foi bem recebido por Luís XIII e pelo cardeal Richelieu. Em De jure belli ac
pacis (1625, Sobre o direito de guerra e de paz), sua obra mais importante e
dedicada a Luiz XIII, afirma que as relações entre os países deviam fundar-se em
sua independência e igualdade. Obra considerada um verdadeiro código de Direito
Internacional, foi traduzida em todas as línguas. Desenvolveu, ainda, a doutrina da
guerra justa, como meio de obter reparação quando não existissem tribunais
competentes para resolver os litígios. Escreveu sobre o Antigo e o Novo
Testamento, os costumes belgas e a história dos bárbaros. Em 1634 a rainha
Cristina designou-o embaixador da Suécia em Paris, posto que conservou até a
morte. Grotius morreu num naufrágio perto de Rostock, Alemanha, em 28 de
agosto de 1645. Suas obras exerceram notável influência sobre o pensamento
racionalista e iluminista do século XVII. Encyclopaedia Britannica do Brasil e
FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit International Public, Librairie
Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[223] – Vattel, Emmerich de (1714-1767). Jurista suíço. Conhecido por um tratado


que estabelece regras básicas para as relações internacionais. Defendeu os ideais de
liberdade e igualdade expressos na declaração de independência dos EUA. Direito
das gentes (1758). Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[224] – Esses são os termos de Sumner-Maine em seu Traité de Droit


International.

[225] – Arma antiga, formada de arco, cabo e corda, com que se disparavam
pelouros ou setas. (N. da T.).

[226] – Sumner-Maine, Traité de Droit international.

[227] – Zollverein ou a união aduaneira alemã. O Congresso de Viena havia


organizado, no centro da Europa, a Confederação Germânica, composta de 39
Estados separados uns dos outros por barreiras aduaneiras que paralisavam a
indústria e entravavam o comércio. A Prússia, então, colocou-se à cabeça de uma
vasta associação aduaneira. Mais do que qualquer outro Estado, a Prússia sofreu
com a existência de aduanas múltiplas, possuindo seus Estados encravados, uns ao
lado do Elba, outros do Reno. Em 1818 concluiu, com muitas dificuldades, uma
união aduaneira que recebeu o nome de Liga Prussiana. Enfim, em 1833, graças a
uma perseverança e uma habilidade notáveis, o governo russiano conseguiu fundir
diversas uniões aduaneiras anteriormente existentes (liga bárbara e outras)em uma
só união aduaneira ou zollverein. FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit
International Public, Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[228] – Ver sua muito interessante introdução à Hist. du Droit de d’Allemagne, por
F. Schulle.

[229] – Antigos habitantes do Tenerife, ilhas Canárias. (N. da T.)

[230] – Ver a esse respeito o início de um livro dos mais instrutivos para quem se
interessa pela embriologia das sociedades, Le Formation des Cités chez les
Populations Sédentaires de l’Algérie, por Masqueray (Paris, Leroux, 1886).

[231] – Povo berbere, nômade, que se desloca entre o centro e o O. do deserto de


Saara. (N. da T.).

[232] – Sua escravização aqui, diga-se de passagem, não é nada própria a


confirmar a hipótese do matriarcado primitivo. >

[233] – Que há de mais nacional, de mais original que o Direito Egípcio? Todavia,
nada mais composto. O Egito antigo, há lugar para supor, não era senão uma
combinação de raças berberes e de raças negras da África com semitas vindos da
Ásia. Imaginem-se as seqüências incalculáveis do acaso histórico ou pré-histórico
desse encontro.

[234] – Ver Évolution de la Propriété, por Letourneau, página 186.

[235] – Acrescente-se que o caráter próprio desta civilização, como de qualquer


outra, lhe vem da natureza das invenções que fizeram e da natureza daquelas que
lhes faltaram fazer, não menos fortuitamente. Por exemplo, é porque eles não
tinham gado, – e parece que eles não tiveram a idéia de domesticar algumas das
espécies animais de sua fauna, – que os astecas, ainda que civilizados em tantos
outros aspectos, praticaram a antropofagia. Observemos o quanto as invenções
muito simples faziam falta a esses povos tão engenhosos: entre eles, nada de
balança, nada de pesos, nada de moedas, nada de embarcações.

[236] – O Concílio de Nicéia reuniu-se em 325, em Constantinopla, sob o


pontificado de S. Silvestre, para combater o arianismo, movimento teológico
iniciado por Ário, Presbítero de Alexandria. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da
T.).

[237] – Direito pelo qual a sucessão de um estrangeiro não naturalizado era


atribuída ao soberano. O Direito de aubaine foi suprimido em 1819. Por analogia,
em francês, a palavra também significa caso fortuito vantajoso, proveito
inesperado. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[238] – Já consagrei a esse assunto meu livro sobre Lois de l’Imitation (Alcan).

[239] – Não excetuamos mesmo as invenções e as descobertas enquanto fatos


sociais. Não apenas elas são sempre em parte imitativas, formadas por uma
interseção mental de imitações diversas, mas ainda, mesmo no que elas têm de
mais original, devem ser imitadas para se tornarem fatos sociais e não simples
fatos individuais. Uma invenção não propagada, uma idéia não adotada, não reflete
no espírito de outrem. É, socialmente, como se não existisse.

[240] – Max Friedrich Müller (1823-1900), já mencionado anteriormente, pensou


ter encontrado na mais antiga literatura hindu, sobretudo nos Vedas, as formas
primitivas das crenças e dos mitos, e pareceu-lhe que as divindades eram, na
origem, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homens primitivos”,
impressionados pelos fenômenos da natureza, haviam começado por dar-lhes
nomes, e que estes nomes gradualmente tornaram-se pessoas. Como a luz do sol é
a fonte de toda vida e atividade, ele foi levado a dar aos “fenômenos solares” uma
importância capital. Para ele, a luta de Zeus (em cujo nome está a raíz que significa
dia) contra os Titãs não é senão o drama cotidiano e a vitória da luz sobre as
trevas. As formas monstruosas dos Gigantes seriam as névoas da Noite. Tifon seria
a tempestade. Atenas seria a luz virgem do dia ao amanhecer. Hefestos, o ferreiro,
o sol levante: o disco de ferro vermelho saído da forja divina. Héracles ou
Hércules, por sua vez, torna-se um mito solar por excelência, através dos doze
trabalhos que seriam os doze signos do zodíaco, ou seja, as doze etapas percorridas
pelo Sol durante o ano. Assim, pouco a pouco, a mitologia inteira, através de
etimologias incertas, achou-se reduzida a uma vasta meditação sobre a chuva e
bom tempo. Evidentemente, tratam-se de idéias simples demais. Hoje está
demonstrado que os mitos não provém de uma enfermidade de linguagem.
Verificou-se que as interpretações alegóricas, ao aplicarem aos mitos os fenômenos
meteorológicos, estão longe de ser primitivas. Resultam, sim, de especulações
tardias: Jano, por exemplo, um deus romano, só foi considerado como o símbolo
do ano a partir dos pitagóricos de Roma, o que não se deu antes do primeiro século
antes de Cristo, ao passo que o próprio Janus já existia há muito tempo. Na religião
egípcia, o mito de Ísis e Osíris, – mito solar por excelência, – não é primitivo sob
sua forma canônica, mas resume uma teologia completa longamente elaborada.
Pierre GRIMAL. A Mitologia Grega, 2a edição. Difusão Européia do Livro, São
Paulo, 1958. (N. da T.).
[241] – Personagem de conto homônimo de Charles Perrault, publicado em Contos
da Carochinha (1696). Sua sétima esposa, prestes a ser morta ao descobrir que ele
degolara as seis antecessoras, é salva pela chegada de seus irmãos, que o matam.
Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[242] – Divindade védica da antiga Índia, deus do céu e da chuva, protetor dos
guerreiros e inimigo das trevas. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[243] – Os traços característicos dos quais ela se compõe, dos quais ela é a
combinação original, são muito bem definidos por Fustel de Coulanges: “Posse
condicional do solo em lugar da propriedade; sujeição dos homens ao senhor em
lugar de obediência ao rei; hierarquia dos senhores entre eles em lugar do feudo e
da homenagem.”

[244] – Bem ou propriedade com isenção de direitos senhoriais em oposição ao


feudo. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[245] – Benefício. Entre os romanos, significava privilégio. A partir do século III,


passou a designar as concessões de terras feitas pelos imperadores. Larousse du
XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[246] – Precário. Em direito antigo, designava-se sob o nome de precário, ao


tempo dos francos, uma concessão de terras concedida pela Igreja que parece havê-
la tomado de empréstimo ao Direito Romano. Imita o fisco imperial que, para
explorar suas terras, consentia, sob o Império, baixas temporadas de cinco anos. O
precário é, com efeito, uma concessão de terras feita, na origem, por cinco anos e
mediante o pagamento de uma taxa anual. Com o tempo, porém esta concessão
modificou-se, tornando-se vitalícia, e foi afastada a cláusula em virtude da qual, na
falta de pagamento da taxa, estaria revogada de pleno direito. Enfim, o precário
tornou-se, freqüentemente, transmissível aos herdeiros do concessionário.
Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[247] – No original truste royale, sorte de companhia guerreira composta por


homens livres agrupados em torno de chefes, entre os francos, para constituir-lhes
uma espécie de guarda de honra da qual os membros tinham o nome de antrustiões.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[248] – Se o estabelecimento do regime feudal fosse devido principalmente à


conquista germânica, e houvesse sido criado pela exploração dos vencidos, seria
incompreensível que esse regime fosse tão facilmente difundido na Germânia,
entre os pretensos conquistadores, e se apresentasse, na Idade Média, com
características bem mais rigorosas, bem mais aristocráticas e opressivas ainda que
aquelas que afetou na Itália, senão na França. Ao contrário, se se admitir que ele se
constituiu pacificamente, por ele mesmo, através e não mediante os transtornos e
as conquistas, a partir de germes instalados pelo Império Romano, deslocados
pelos bárbaros, compreender-se-á muito bem que, uma vez formadas, as
instituições feudais, julgadas excelentes desde sua eclosão, tenham sido bem-
vindas na Germânia, país tão dócil às sugestões romanas.

[249] – Diz-se que ela havia existido no Japão, mas muito se tem forçado a
proporção das analogias e fechado os olhos às suas diferenças.

[250] – Em sua bela obra sobre a civilização árabe, o Dr. Le Bon dá argumentos
especiais em favor da primeira opinião.

[251] – Tradução francesa do Código Muçulmano de Khâlil, introdução, página


XXXVII.

[252] – Pessoas que tem relação de parentesco (entre indivíduos de qualquer sexo)
traçada por linha exclusivamente masculina. A palavra vem do latim agnatione.
(N. da T.).

[253] – No Direito Romano, abandono noxal era a medida penal limitadora da


vingança de sangue. Consistia na entrega do filho do criminoso, pelo próprio pater
familias, à parte ofendida, a fim de livrar-se da reparação do dano patrimonial
oriunda do delito. Ainda no Direito Romano, era a faculdade concedida ao dono de
animais domésticos, eventualmente causadores de prejuízos à propriedade alheia,
de abandonar seu domínio em favor do lesado, a título de ressarcimento. (N. da T.).

[254] – Criada por Shimón Ben Shetaj, no ano 80 antes da Era Comum, a ketubá é
o documento legal que atesta o matrimônio. Escrita em aramaico, linguagem das
massas e de todos os documentos legais desse período, enumera as obrigações
legais do marido para com a esposa em caso de morte ou divórcio. As obrigações
da esposa para com seu marido não são detalhadas na ketubá. Estas sempre foram
dadas como conhecidas. KOLATCH, Alfred J.. El Libro Judio de Por Que, L. B.
Publishing CO., Reencuentro, L. B. Editorial C.C., Jerusalém, Israel, 1995. (N. da
T.).

[255] – Hippolyte-Adolphe Taine nasceu em Vouziers, Ardennes, França, em 21


de abril de 1828. Estudou no Collège Bourbon (Paris) e na École Normale
Supérieure (1848). Doutorou-se em letras em 1853 com uma tese sobre a poesia de
La Fontaine e a seguir dedicou-se inteiramente à literatura. Aos trinta anos já era
famoso. Taine expôs sua teoria do conhecimento, racionalista e positivista, em Les
Philosophes Français du XIXe Siècle (1857). Professor de estética e história da arte
na Escola de Belas-Artes, publicou Philosophie de l’Art (1865) e procurou analisar
a evolução artística com base na fisiologia e na sociologia. Considerava a arte e a
literatura como funções naturais do homem, exercidas sob a influência de uma
faculdade mestra, própria de cada nação e de cada artista. Essa faculdade, por sua
vez, seria determinada pelas condições geográficas e por três fatores principais: a
raça, o momento histórico e o meio ambiente. Escreveu sobre autores como
Stendhal e Balzac, e apontou este último como fundador de uma literatura
sociológica.
Em De l’Intelligence (1871),voltou-se para o estudo da psicologia, que o
atraíra desde jovem. A aplicação sistemática de suas doutrinas à interpretação dos
fenômenos morais, estéticos e espirituais de seu tempo converteu-o em grande
teórico do naturalismo. Hippolyte Taine morreu em Paris em 5 de março de 1893.
Reconheceu grande valor ao trabalho de César Lombroso, o que se pode aferir
através da carta que escreveu ao grande criminólogo italiano, carta esta que abre a
5a edição do Homem Delinqüente. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[256] – Ver o Droit Coutumier, Henri Beaune, página 405 e seguintes.

[257] – Antigo país da França que pertencia aos condes de Foix, em Navarra, e foi
reunido à França por Luiz XIII em 1620. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit.
(N. da T.).

[258] – No original Livre de l’Échiquier, nome dano na Normandia à Corte de


Justiça que foi transformada em Parlamento do século XVI. Nouveau Petit
Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[259] – Ténements roturies, no original. (N. da T.).

[260] – No original Bourgage, herança plebéia que, situada numa cidade ou num
burgo fechado, não era submetida a nenhuma espécie de taxa de censo nem feudal.
Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[261] – Beaune, obra citada.

[262] – Da tribo de francos que vivia primitivamente nas margens do Issel. (N. da
T.).

[263] – Vale lembrar que a Lei Sálica excluía do trono as mulheres. (N. da T.).

[264] – A jurisprudência enxerta-se sobre a legislação. Isto é, definitivamente, uma


sorte de novo Direito costumeiro sobre o Direito legislativo que, precisamente,
tinha por objetivo substituir-se ao costume anterior. O costume dos juízes
substituiu àquele dos sujeitos à jurisdição. Eis tudo. Mas sempre e em toda parte,
vê-se a autoridade jurídica ter por fundamento necessário a imitação.

[265] – E, a relacionar, as duplas lingüísticas, das quais Darmesteter citou muitos


exemplos, eles também explicáveis pela imitação apenas, apesar de o progresso da
imitação tender igualmente a fazer-lhes desaparecer, como vimos mais acima a
propósito da simplificação das gramáticas e dos procedimentos.

[266] – Não há lugar para comentar aqui. Mas ao leitor instruído não faltarão
exemplos colocados pela história das ciências ou das indústrias. A descoberta de
Newton, por exemplo, consistiu em olhar duas idéias estranhas até uma à outra: a
queda dos corpos terrestres e a gravitação da Lua em torno da Terra, como duas
conseqüências de um mesmo princípio. A invenção da locomotiva consistiu em
reunir teleologicamente esses dois modos de ação até separados, o pistão à vapor e
a locomoção sobre rodas, etc.

[267] – Proculianos. Em Direito Romano, designava-se por esta palavra o membro


de uma escola de jurisconsultos que foi fundada sob Augusto, por Marco Antísio
Labeão (50-18 a. C.), um dos primeiros a introduzir, no Direito Romano, princípios
filosóficos. A escola deveu seu nome a um de seus sucessores, Proculus, e as
soluções que davam os proculianos a diversas questões controversas estavam em
oposição àquelas da escola rival, – a escola sabiniana, – sem que haja existido,
parece, diferença radical de método. Foram chefes desta escola: Proculus, Nerva, o
filho, Pegasus, Juventius, Celsus, o pai, Celsus, o filho, Neratius Priscus. Larousse
du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932; Enciclopédia Brasileira
Mérito. (N. da T.).

[268] – Doutor judeu do século I a.C.. Autoridade em leis e doutrina judaicas, foi
presidente do Sinédrio. Era liberal e compôs um método de interpretação dos livros
sagrados denominado As Sete Regras. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[269] – Para convencer-se é suficiente ler o Etude sur la théorie du Droit


musulman (Paris, 1892), por Savvas Pacha, antigo ministro do sultão. Distinguem-
se: 1º) as obrigações concernentes às crenças religiosas; 2º) as obrigações
concernentes às práticas religiosas. A mais obrigatória das “ações” é a fé! – Outra
distinção: 1º) as obrigações que incumbem a todos os crentes sem exceção: fé,
prece, jejum; 2º) as obrigações que, cumpridas por uma parte dos crentes, são
consideradas como cumpridas por todos, em virtude da reversibilidade dos méritos
e dos deméritos. O quanto estamos longe das noções de nossos autores clássicos!

[270] – Phratries, palavra de origem grega que significa uma subdivisão da tribo.
Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[271] – Aqui trata-se de subdivisão das tribos entre os romanos e também o lugar
de reunião de cada uma dessas subdivisões. Nouveau Petit Larousse Illustré, op.
cit. (N. da T.).

[272] – Do volapuque Volapük, de vol, mundo, mais pük, língua. Trata-se de uma
língua auxiliar de comunicação internacional, lançada em 1879 pelo alemão Mons.
Johann Martin Schleyer (1831-1912). Dicionário Aurélio Século XXI, ed. 2001. (N.
da T.).

[273] – Darmesteter foi um lingüista francês que viveu de 1846 a 1888 e


desenvolveu estudos sobre as línguas romanas. Seu irmão, James, estudou
particularmente as línguas do antigo Irã. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit.
(N. da T.).

[274] – Não existe correlação em português. Em francês, renard significa raposa; a


alusão relaciona-se com Jules Renard (1864-1910), autor do Roman de Renart,
coletânea de vinte e seis pequenos poemas em que os personagens são animais,
particularmente a raposa. Trata-se de uma verdadeira epopéia, espirituosa sátira
das classes dirigentes da Idade Média. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.
da T.).

[275] – Em meu Lois de l’Imitation, capítulo intitulado “As leis lógicas da


imitação”, e, notadamente, página 173 e seguintes.

[276] – Isto é tão verdadeiro que, mesmo em nossa própria época, a cidade, de
acordo com Arsène Dumont, é a unidade lingüística. (Rev. Scientif., 10 de
setembro de 1892).

© 2002 – Maristella Bleggi Tomasini


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Junho 2002

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