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A Consolacao Da Filosofia Boecio PDF
A Consolacao Da Filosofia Boecio PDF
Sobre a obra:
Sobre nós:
PREFÁCIO DE
MARC FUMAROLI
1 edição 1998
2 edição 2012
4 tiragem 2016
Tradução do latim
WILLIAN LI
Revisão da tradução
Gilson Cesar Cardoso de Souza (texto latino)
Monica Stahel (prefácio)
Preparação do original
Vadim Valentinovitch Nikitin
Revisões gráficas
Solange Martins
Eliane Rodrigues de Abreu
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Capa
Katia Harumi Terasaka
Prefácio
Bibliografia
Biografia
A consolação da filosofia
Prefácio
Procópio, em sua Guerra dos godos, retrata os últimos dias de Teodorico, que
se tornou um tirano sanguinário, com características dignas de um Macbeth. Ele
nos conta que o velho rei, a quem serviam durante um banquete um enorme
peixe, acreditou reconhecer na cabeça do peixe a de Símaco, que o fixava com
um olhar insustentável. O rei teve de se retirar do banquete para dissimular seu
desvario. E o historiador bizantino, intérprete da opinião pública romana e
bizantina, atribui a esse remorso o rápido fim do tirano ariano.
Nessa tragédia complexa, onde se entrelaçam fios políticos e religiosos no
pano de fundo de intrigas de corte, Boécio e Símaco, tanto para a história quanto
para a lenda, aparecem no papel de heróis. Inscrevem-se naturalmente num
longo desfile de mártires da “liberdade romana”, vítimas da tirania: Cícero
assassinado por Marco Antônio, Sêneca obrigado por Nero a suicidar-se, e todas
as altas figuras de senadores estóicos, celebrados por Tácito, que foram
martirizados por Tibério e Calígula. Embora godo, Teodorico, por sua feroz
“injustiça”, representando o tirano louco, entra também na galeria dos sombrios
“quadros da história” tão característicos da crônica romana. Desta vez, no
entanto, as protelações do tirano deixaram à sua vítima o tempo necessário para
preparar a mais brilhante derrota que o espírito pode infligir à força: uma obra-
prima escrita na prisão, a Consolação da filosofia.
Apesar da ajuda e do alívio que o prisioneiro de Pavia pôde, por um tempo,
receber de Símaco, é bastante improvável que ele tenha tido à sua disposição,
para escrever, algo além de tabuinhas e um estilete. Nenhum livro. Ora, a
Consolação da filosofia, conforme demonstrou a “Concordância” estabelecida
por Cooper (1928) entre a Consolação e os cinco tratados teológicos de Boécio,
bem como o estudo de fontes de Gruber (1978, Kommentar zur Boethius), é
literalmente tecida de remissões a textos poéticos e filosóficos que, por si sós,
formariam uma bela biblioteca. E isso não deve nos surpreender.
Como todos os antigos letrados, Boécio tinha à sua disposição na memória,
treinada desde a infância, os textos clássicos. Aprender a ler era, ao mesmo
tempo, “apreender” o texto lido, fixá-lo no espírito, abrigá-lo num
compartimento da memória, organizada e aumentada gradualmente, como uma
vasta biblioteca invisível, mas não silenciosa: os textos lidos e aprendidos em voz
alta podiam também ser evocados em voz alta ou por uma voz interior que
conseguia, à sua vontade, repeti-los, compará-los, meditá-los. No livro X das
Confissões, Santo Agostinho evoca de maneira arrebatadora os “entrepostos”, os
“palácios” da memória letrada em que ele pouco a pouco armazenara toda a
enciclopédia das artes liberais ao longo de sua juventude aplicada e de seus
estudos de adulto. Boécio, organizado segundo o mesmo modelo, era senhor em
sua prisão de Pavia, não somente dessa enciclopédia de que fala Santo Agostinho,
mas também dos poetas latinos de que o Padre da Igreja se nutria, embora não
dissesse uma palavra sobre isso, por serem eles pagãos, e dos poetas e filósofos
gregos, bem como de seus comentadores, que Santo Agostinho só conhecia por
seus intérpretes latinos. Podemos até afirmar que, em certo sentido, a situação do
prisioneiro era mais favorável do que a de que gozara por muito tempo como
grande senhor em sua rica biblioteca. Pois então ele se entregara a trabalhos de
técnico, que exigiam a consulta de volumina raros e a confrontação de passagens
complicadas. Trabalhara como filólogo e erudito tanto quanto como filósofo. Na
prisão, reduzido à sua memória, forçado a encontrar nela recursos espirituais
para enfrentar os sofrimentos, a solidão e a morte, ele deixa de ser um tradutor,
comentarista, erudito; ele se torna “autor”, ou diríamos hoje, com uma palavra
equívoca, “criador”. É uma maneira de falar que teria desagradado tanto a
Boécio quanto a Santo Agostinho, que, nas Confissões, pela vontade de um
exercício espiritual, coloca-se numa situação análoga, só, sem livros, à mercê de
Deus. Então ele pede à sua memória que se faça palavra, e à sua palavra que se
eleve a Deus, que lhe abra caminho até Ele. Boécio, por sua vez, joga com os
dois sentidos da palavra memória: um passivo, associado à metáfora do
receptáculo; outro ativo, associado à metáfora da viagem e mesmo da volta da
alma a seu lugar natal. A Filosofia, interlocutora de Boécio nesse “sonho” que é
mais um despertar, recrimina o prisioneiro, que ela educou em sua infância e
adolescência, por ter deixado seu ensinamento cair na memória-receptáculo,
onde não era mais que letra morta; sua própria aparição, despertando Boécio,
recoloca-o no caminho da anamnese; com ela todas as palavras, as noções, os
encadeamentos aprendidos e que se haviam “depositado” na memória tornamse
novamente palavra de vida, veículo em movimento que afasta a alma da tristeza,
da fraqueza, da dúvida para conduzi-la a um porto seguro. No entanto, não se
deve exagerar a antítese entre memória-receptáculo e memória-movimento,
memória-depósito e memória-veículo. Se a ascensão de Boécio é possível, é
também porque ele dispunha de recursos interiores prontos para serem usados.
Nós aprendemos, com Montaigne, que “saber de cor não é saber”. Mas
aprendemos isso com um letrado moderno, confortavelmente instalado em sua
torre-biblioteca, cercado de livros impressos que ele folheia e relê à vontade.
Para ele é fácil dar-se como exemplo de um espírito vivo e livre, passando
levianamente sobre a “tábua rasa” de um gênio aliviado dos pesos livrescos.
Trata-se em grande parte de uma ficção lisonjeira. Ela é característica das
ilusões a que deu origem o livro impresso, que fez parecer supérflua a arte antiga
e medieval da memória. De fato, nada substitui os textos clássicos aprendidos de
cor muito cedo. Eles viverão em nós durante toda a nossa existência, despertando
para seu sentido, de início adormecido, à medida que nossa experiência de adulto
é capaz de reconhecê-los. É então que eles estão prontos para nos apoiar nas
provações e, se somos escritores, a prefigurar e a sustentar nossos próprios
desafios ao silêncio. O progresso técnico em nada muda as leis da biologia
literária, filosófica, espiritual. O que Boécio nos ensina, com tanta autoridade
hoje como no século VI, é que a única cultura fértil, oral ou escrita, é a que
trazemos intimamente em nós, são os textos clássicos inesgotáveis inseminados
na memória e cujas palavras tornam-se fontes vivas, à prova da tristeza, do
sofrimento, da morte. O resto, de fato, é “literatura”.
Para esse recurso aos mestres de vida, cuja voz foi gravada há muito tempo
mas que os ruídos do mundo encobriram, Boécio escolheu uma forma clássica:
será sua variante pessoal do diálogo platônico. Os interlocutores: a Filosofia (a
Diotima de Platão, a Beatriz de Dante), e o próprio Boécio, reduzido à humildade
e ardente condição de um discípulo em busca da verdade e da salvação. A
encenação do diálogo e dos poemas que dão ritmo ao desenrolar libertador deve
algo a outra obra-prima da antiguidade tardia, muito lida durante toda a Idade
Média e Renascença: as Núpcias de Mercúrio e da Filologia, de Marciano
Capella. Esse autor era um romano da África do Norte, como Santo Agostinho e
Apuleio. Ele compôs seu livro em Cartago, sob a dominação dos vândalos, entre
460 e 470. Letrado de alto nível, escrevendo para a instrução de seu filho,
resumiu, “sob o olhar dos bárbaros”, a cultura greco-romana em linguagem
alegórica. As Núpcias são já um sonho que desperta. Vê-se ali a Virgem
Filologia, sob a conduta da Sabedoria, deixando suas primeiras mestras, as Musas,
e percorrendo a ordem das esferas celestes, para enfim receber a homenagem
das Sete Artes (Gramática, Dialética e Retórica, o Trivium medieval; e em
seguida a Geometria, a Aritmética, a Astronomia e a Harmonia Musical, o futuro
Quadrivium). Ele se eleva assim, gradualmente, ao conhecimento e à
contemplação da ordem divina do mundo. Como em Platão, a ascensão do
conhecer em Marciano Capella é inseparável do entusiasmo poético, e a prosa
dialogada desse grande sonho de libertação dá lugar regularmente à métrica. Tal
como Boécio, Marciano Capella não faz alusão ao cristianismo. A salvação da
alma imortal, nesses dois autores contemporâneos dos tempos bárbaros, é uma
promessa que o helenismo foi o primeiro a fazer e o primeiro a saber manter. A
Roma do Sonho de Cipião já tinha sido convertida muitos séculos antes de aderir
oficialmente ao cristianismo.
Nascida de uma tragédia, a Consolação de Boécio é muito mais tensa que as
Núpcias. Também tem um estilo mais nervoso, menos barroco. Assim que a
situação é criada (o sonho, a entrada em cena da Filosofia, seu retrato, a expulsão
das Musas), tudo se resume a um diálogo severo e cerrado (entremeado de
admiráveis vôos poéticos) entre ela e o prisioneiro, transfigurado em discípulo.
Há tão pouco enternecimento quanto nos Pensamentos de Pascal: a urgência é
muito premente. A direção de consciência da Filosofia é proporcional ao que está
em jogo: muito dura no início, sempre firme, nunca fria. Ela começa por obrigar
seu discípulo a tornar-se realmente um discípulo. Isso supõe que ele expulse de si
mesmo a dor de homem político e de cortesão caído em desgraça, a revolta
contra a injustiça, a angústia de prisioneiro separado dos seus, privado de seus
bens e que logo estará privado também da vida. Essa expulsão do passivo
biográfico dá lugar a um belo trecho de Memórias, que ocupa o capítulo 4 do
Livro I. Texto germinal, em que se deve ver o “incunábulo” de um gênio literário
votado, após uma incubação de dez séculos, a uma espantosa floração na França,
de Commy nes a Retz, de Saint-Simon a Chateaubriand.
Essa operação purgativa culmina num poema inspirado diretamente nos
coros dos Trágicos gregos e de Sêneca. Boécio conclui de seu destino pessoal a
questão geral e central que vai, a partir de então, servir-lhe de viático:
Por que esse contraste entre a ordem do mundo e a desordem que sua
própria liberdade introduz entre os homens, entre a justiça do céu e as injustiças
que triunfam na terra? A esse problema, já levantado por Sófocles, Boécio, ainda
amargo e abatido, só pode responder no momento por uma súplica:
Não é Boécio que o entoa, mas a Visitante, que, com esse poema, escancara-
lhe a porta que leva à harmonia eterna. O clima filosófico muda: da protréptica
moral de tipo estóico, apropriada à cura pessoal e afetiva, passamos a um
registro aparentemente mais abstrato, o da teodicéia de inspiração platônica. No
entanto, de um registro a outro, a mestra e seu discípulo não cessam de recorrer,
em sua ardente conversação, ao rigor dialético comum, à Academia, ao Liceu,
ao Pórtico. Por mais exaltada que esteja pela visão da pátria divina e pelo desejo
da verdadeira felicidade, a alma de Boécio insiste em não deixar sua razão
insatisfeita, e em eliminar todas as sombras que o impeçam ainda de se
abandonar a esse anseio de Deus. O prisioneiro, voltando a tornar-se filósofo, já
se libertou da opressão subjetiva da infelicidade que pesava sobre seus sentidos e
seu coração. É preciso agora libertar-se do peso de uma dúvida, de gravidade
diferente, que atormenta sua razão: o problema da desgraça imerecida, em toda
a sua generalidade, independente de qualquer aplicação pessoal e biográfica. E é
respondendo a essa questão que a Filosofia vai começar verdadeiramente a fazer
o olhar interior de Boécio mudar de rumo, a demovê-lo da mistura das
aparências e da realidade que confunde a própria razão neste mundo sublunar, a
ensiná-lo a reconhecer a verdade de Deus. Como pode Deus, a própria Bondade,
a Idéia do Bem, permitir em alguma parte de seu universo uma desordem tal que
os inocentes sejam oprimidos e os criminosos recompensados? É a pergunta que
Boécio já fazia no fim de sua “autobiografia”, mas desta vez isenta de qualquer
marca subjetiva e particular. A essa objeção da razão, a Visitante responde
levando ao extremo a inversão das aparências iniciada no Livro I. A desgraça
terrestre dos inocentes é na realidade a prova de sua inocência e da sua inclusão
na ordem eterna que preside ao universo. O triunfo dos maus é, à imagem destes,
“talhada no tecido dos sonhos”, do não-Ser; consagração ilusória do erro a que os
levou a escolha do mal, ou seja, do nada.
Vendo as coisas do ponto de vista de Deus, essas aparentes desordens e
injustiças são os paradoxos semânticos resultantes, na terra, do entrelaçamento
da ordem desejada por Deus e da liberdade humana, abrindo seu caminho na
matéria sujeita à geração e à corrupção. Esses paradoxos terríveis, ao mesmo
tempo que respeitam a liberdade humana, não afetam em nada a arquitetura e a
música do universo, nem seu princípio divino. Na luz do Ser eterno e
incorruptível, o bem sobre a terra é recompensado apenas pelo fato de ser bem,
participando da Bondade de Deus. O mal é castigado apenas pelo fato de ser mal,
privando-se voluntariamente da bondade de Deus. E, quanto mais os maus
exercem vitoriosamente o mal, mais o poder de que acreditam usufruir os
mergulha na miséria e rebaixa suas almas ao horror dos animais selvagens. A
própria impunidade, na visão humana, da qual imaginam prevalecer, é o pior dos
castigos que lhes são reservados: sua ruína e sua perda os aliviariam de parte de
seus crimes e lhes ofereceriam uma oportunidade para despertarem para sua
verdadeira condição. Para ver dessa forma, ao contrário das aparências e da
interpretação que a humanidade, iludida, dela nos dá, é preciso ter-se elevado
firmemente ao ponto de vista sob o qual não há Ser, não há realidade a não ser
em Deus, e no Bem que faz do universo um cosmos. É preciso ter abandonado o
ponto de vista limitado que, abrangendo apenas o teatro terrestre, percebe nele
apenas o império da Fortuna, cujos fluxo e refluxo, patéticos e absurdos,
desafiam a Justiça eterna que ordena todo o universo. É preciso ter deixado de
estar cego à luz do Ser, que abandona a maldade ao horror invisível, vertiginoso,
do Não-Ser. Numa fórmula de admirável densidade, a Filosofia declara:
Malorum possibilitatem non esse potentiam: a capacidade de fazer o mal deixada
aos maus não é um poder. Ela não se enraíza na única realidade viva, que é o
Bem, que é Deus, que é a ordem desejada por Deus. Ela não pode atentar contra
a alma humana, que, vinda de Deus, caminha para Deus. Carrascos e vítimas só
o são num teatro de sombras que é preciso ver do outro lado: então, os carrascos
o são de si próprios e as vítimas são os vencedores do grande jogo cósmico. A luz
divina os envolve. E a Visitante traça para Boécio um retrato, ou melhor, uma
radiografia divina dos tiranos, que deveria bastar para curá-lo de todo
ressentimento contra Teodorico:
Mas resta ainda uma objeção a ser eliminada para que a derrubada das
aparências se realize e a razão acabe por se render. Neste teatro do mundo, como
conciliar a liberdade humana e a onipotência providencial de Deus? Os dois
últimos livros da Consolação são dedicados a desenredar essa dificuldade. A
Filosofia faz Boécio reconhecer que a presciência divina não é um determinismo,
mas que, por isso mesmo, ela não abandona a alma que escolheu o Bem aos
caprichos cegos da Fortuna. O ato livre não é uma ilusão, mesmo que a escolha
do mal busque para si álibis na Fortuna e na Fatalidade. A escolha do Bem, em
compensação, superando o peso do corpo e o horizonte ilusório do tempo, é o
próprio exercício da liberdade, a participação do homem na ordem divina, seu
concurso para a harmonia transcendente do universo. Sobre esta terra de ilusões
e provas, o herói e o santo, previstos mas não predeterminados por Deus, fazem
pressentir por sua liberdade a plenitude feliz, total, definitiva da ordem cósmica,
de quem eles foram aliados e testemunhas no interior do tempo terrestre.
Marc Fumaroli
Bibliografia
Homem de Estado, filósofo e poeta latino. Nasceu em Roma por volta de 480
d.C. e morreu em 524. Ele mesmo nos forneceu um breve resumo de sua vida no
primeiro livro de sua obra mais célebre, A consolação da filosofia. Descendia da
antiga família Anicius: cristã havia mais de um século, ela prestara importantes
serviços ao Império. Seu pai, que fora cônsul em 487, morreu muito cedo, e o
jovem Boécio encontrou um mestre e amigo na pessoa de Quinto Aurélio
Símaco, por quem durante toda a vida teve profunda veneração e com cuja filha,
Rusticiana, mais tarde ele se casou. Dono de ampla cultura – conhecia
perfeitamente o grego –, dedicou-se primeiro ao estudo e concebeu o grandioso
projeto – que só realizou parcialmente – de traduzir para o latim toda a obra de
Platão e a de Aristóteles, com o objetivo de mostrar que as diferenças de seus
sistemas filosóficos são apenas aparentes. Depois entrou na carreira de
magistratura, em que teve sucesso raro e singular: foi questor, depois cônsul em
várias ocasiões (510, 511), com apenas trinta anos. Até então, como ele mesmo
diz, sua felicidade foi perfeita. Tido em grande consideração por Teodorico,
estimado e amado pelos homens mais ilustres de sua época, entre os quais
Cassiodoro e Enódio, cumulado de afeto por uma família ideal, invejado por sua
cultura e sua força, parecia não ter nada mais a desejar. Mas, em pouco tempo,
sua sorte muda. A queda foi mais rápida do que a ascensão. Depois de defender
em Verona, na presença do próprio Teodorico, o senador Albino, acusado de
traição em favor do imperador de Bizâncio, Justiniano I, viu-se implicado na
acusação. Foi preso em Pavia, condenado à morte e executado em meio aos
mais atrozes suplícios, em 524. Foi evidentemente uma condenação política; mas
logo ela assumiu significado religioso. O condenado foi considerado santo e
recebeu as honras de mártir. Enquanto homem político, Boécio merece um lugar
na história da Itália, por ter tentado de todas a maneiras um acordo e uma união
entre romanos e godos. Um brusco despertar de barbárie no espírito de Teodorico
fez fracasssar sua generosa tentativa, a qual pagou com a vida. Mas Boécio
ocupa um lugar ainda maior na história da cultura e da civilização européias: na
história da cultura, por ter tornado acessíveis ao mundo ocidental as fontes gregas
do saber graças a suas traduções de certos tratados fundamentais de filosofia
(Categorias, Sobre a interpretação e outros escritos sobre a lógica de Aristóteles,
o Isagoge de Porfírio) e das artes do quadrívio, fornecendo assim aos eruditos
instrumentos de pesquisa indispensáveis; na história da civilização por ter levado
as gerações futuras a meditarem sobre A consolação da filosofia, escrito na
prisão, que foi, depois da Bíblia e de A regra monástica de São Bento, a obra mais
lida na Idade Média. Mesmo despojado dos elementos lendários que logo se
sobrepuseram a ela, a figura de Boécio continua sendo uma das mais
significativas do fim da latinidade. Foi escolhida com razão como símbolo do
declínio de uma civilização e do início de uma nova era, aquela da qual nasceu –
após uma laboriosa e fecunda fusão de elementos antigos e recentes – a
civilização moderna.
Ezio Franceschini
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
Livro I
I. 1
I. 2
Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos
meus manuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma
mulher que inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e
revelavam uma clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e
delas emanava uma força inexaurível. Ela parecia ter vivido tantos anos que não
era possível que fosse do nosso tempo. Sua estatura era indiscernível: por vezes
tinha o tamanho humano, outras parecia atingir o céu e, quando levantava a
cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos céus e desaparecia dos olhares
humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos fios, trabalhados
minuciosamente e feitos de um material perfeito; ela revelou mais tarde ter sido
ela própria quem teceu a veste. A poeira dos tempos, assim como acontece com
o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor. Embaixo de sua
imagem estava escrito um Pi e em cima um Theta 1. E, entre essas duas letras,
via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento inferior ao superior. No
entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma tomou um pedaço dela.
Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas
da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e,
lançando-lhes olhares inflamados de cólera, disse: “Quem permitiu a estas
impuras amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem
remediar a sua dor como vão ainda acrescentar-lhe doces venenos.
“São elas que por lamentos estéreis das paixões matam a acuidade da Razão,
fazem com que a alma humana se acostume à dor e não a deixam mais
sossegada. Se pelo menos importunásseis um neófito com vossas insídias
habituais, eu não daria grande importância, não estaríeis importunando um de
meus discípulos. Mas justamente a este, versado nos estudos eleáticos e
acadêmicos? Afastai-vos, Sereias de cantos mortais, e deixai que eu e minhas
próprias Musas curemos o doente.”
Com essas palavras, o coro harmonioso baixou os olhos com tristeza e atirou-
se piedosamente ao solo com o rosto rubro de vergonha. Quanto a mim, estava
com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir essa mulher que
tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silêncio o que ela
iria fazer. Então ela se aproximou e se sentou ao pé da minha cama e, vendo
minha grande tristeza e terrível aflição, deplorou nestes versos a perturbação da
minha alma:
I. 3
I. 4
I. 5
I. 6
E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz
celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face.
E, mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que desde a
adolescência freqüentava a minha mente: era a Filosofia.
E eu lhe perguntei: “Mas que fazes aqui, na solidão de meu exílio, ó mestra
de todas as virtudes, tendo descido do alto do céu? Ou também tu, culpada, queres
partilhar as acusações caluniosas?” E ela disse: “Haveria eu de abandonar meu
discípulo e não tomar também do fardo que suportas e da calúnia que te
impuseram? Mas à Filosofia não é lícito deixar caminhando sozinho um discípulo
seu. Temeria eu a censura, como se isso jamais tivesse acontecido comigo, e
ficaria em pânico? Achas que esta é a primeira vez que a Sabedoria se confronta
com os perigos e as más ações dos homens? E também não foi assim aos antigos,
antes da época de nosso caro Platão, quando tivemos grandes embates com o
perigo da estultícia? E na sua época não estava lá Sócrates, que, vencendo uma
morte injusta, foi levado por mim à imortalidade? Mais tarde, a turba do popular
Epicuro, os estóicos e muitos outros ainda disputavam sua herança. Nem
reclamando nem resistindo, escapei de ser eu mesma parte da presa. A veste,
que eu havia tecido com minhas próprias mãos, foi rasgada e arrancada, e os que
fizeram isso partiram com os farrapos pensando tê-la inteira. E, como
reconheciam nesses farrapos vestígios de minha túnica, algumas pessoas
desavisadas tomaram aqueles malfeitores por discípulos meus e foram levados
por eles ao erro e ao engano. Pois, se nem do exílio de Anaxágoras, do veneno
dado a Sócrates ou dos tormentos de Zenão ouviste falar, pelo menos de Cânio,
Sêneca e Sorano, cuja fama não é por demais antiga, e da qual ainda se conserva
a memória, podes facilmente estudar a doutrina. O que os levou a serem
malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles eram totalmente
distintos da turba. Portanto não é de surpreender se neste oceano da vida somos
perturbados por muitas tempestades, principalmente se desejamos afastar-nos
dos homens maus. E seu número, embora grande, deve no entanto ser
desprezado, pois eles não têm guia algum que os dirija e ficam na ignorância,
que os deixa ao capricho da Fortuna. E, quando se preparam para nos atacar com
maior violência, nosso chefe nos defende com suas tropas e forma uma barreira,
e eles só se apoderam das coisas sem valor. E nós, de cima, nos rimos com a
inutilidade do que roubaram, pois estamos ao abrigo de todo tumulto furioso e
protegidos por fortificações imbatíveis de qualquer assalto da ignorância.”
I. 7
I. 8
I. 9
I. 10
Quando acabei de gemer minhas mágoas, ela, com seu semblante tranqüilo
e sem se deixar comover por minhas palavras, disse: “Bastou-me ver tua tristeza
e tuas lágrimas para compreender que sofrias no exílio. Mas não poderia saber
quão distante é o exílio a menos que me narrasses. No entanto, não foste expulso
de tua pátria, mas te desviaste dela.
Ou, se preferes ser considerado como banido, foste tu mesmo que te baniste.
De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira
pátria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos,
governada pela opinião da maioria, mas ‘por um só mestre e um só rei’4, que se
alegra com o crescimento de seu povo, e não com o banimento. De fato, deixar-
se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a verdadeira
liberdade. Por acaso ignoras uma antiqüíssima lei de tua cidade, que proíbe
serem expulsos os que a escolheram como pátria? Com efeito, estando ao abrigo
de seus muros e fortificações, não se deve temer o risco de ser exilado. Mas, se
te extravias de seus limites, corres tal risco. Por isso, não é o aspecto deste lugar
ou a tua tristeza que me comovem. Tampouco lamento as esplêndidas estantes
ornadas de cristal e marfim de tua biblioteca, mas o que recolheste, não dos
livros, mas do que dá vida aos livros: os antigos pensamentos a eles confiados.
Disseste a verdade a respeito dos serviços que prestaste à comunidade, mas,
considerando a multiplicidade de teus serviços, foste muito modesto. E, sobre a
honestidade ou a falsidade dos que te acusavam, disseste o que todos já sabiam.
Quanto aos crimes e às mentiras dos delatores, achaste que bastaria mencionar
os fatos para que o povo se colocasse ao teu lado, em suas conversas e debates.
Recriminaste também com severidade a ingratidão do Senado. Queixaste-te
também das acusações feitas a mim. Enfim, inflamado, atacaste violentamente a
Fortuna e, queixando-se de que não foste justamente recompensado pelos teus
méritos, fizeste votos para que a terra fosse governada como o céu. Mas eis que
tua alma foi grandemente perturbada por sofrimentos e sentimentos de cólera e
desespero que te puxam por todos os lados e te fazem ter disposições de espírito
tais que não é possível ainda tratar-te com um remédio eficaz. Dessa forma, por
um tempo usaremos de alguns remédios paliativos: assim, a espessa casca que a
desordem de tuas emoções acabou por transformar num tumor será removida,
primeiro por uma leve massagem que a preparará para ser tratada mais tarde
por um medicamento eficaz.
I. 11
I.13
II. 1
Após essas palavras, ela se calou por alguns instantes e, quando recapturou
minha atenção após esse curto tempo de silêncio, prosseguiu nestes termos: “Se
eu compreendi perfeitamente as causas e a natureza de tua doença, creio que é
por sentires profundamente a perda de tua fortuna anterior que desfaleces. É
apenas o que tomas por uma reviravolta da Fortuna que agita teu espírito.
Conheço todos os multiformes embustes que ela usa para enganar os homens até
torná-los loucos e desesperados, abandonando-os em seguida a qualquer
momento. Se tu te lembrasses de sua natureza, suas práticas e o que ela vale,
reconhecerias que nada poderias ter perdido de bom graças a ela, e, na minha
opinião, seria de grande proveito ter isso sempre na memória. Tinhas por hábito,
mesmo quando ela te brindava com seus favores, invectivá-la em alta voz, e para
isso usavas de máximas saídas do meu santuário. Mas toda mudança brusca de
situação provoca também uma perturbação no espírito, e é dessa forma que tu,
por algum tempo, abandonaste a tranqüilidade. Mas já é hora de tomares um
medicamento doce e suave que, uma vez penetrando teu organismo, irá
preparar-te para te submeteres a remédios mais fortes. Que venha então a
Retórica, com seus persuasivos encantos, mas que só não se desvia do caminho
quando segue minhas instruções, e com a Música, essa encantadora servidora de
minha casa, alternando os modos maior e menor. O que houve, homem, para que
mergulhasses na melancolia e no desespero? Sem dúvida viste algo de novo e
extraordinário. Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela
sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela
permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou
quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens. Descobriste a dupla visão
desse poder cego. Enquanto ela ainda dissimula seu verdadeiro semblante aos
outros, diante de ti ela se desmascarou completamente. Se a aprecias, recorre às
suas práticas, cessa de chorar. Mas, se sua duplicidade te horroriza, despreza-a,
afasta-a de ti: seus jogos são funestos. Em vez de provocar em ti todo esse
desespero, ela te deixaria com tua tranqüilidade. Pois ao menos ela te deixou,
enquanto ninguém está certo se ela o está inclinando para um lado ou outro, ao
acaso. Atribuis grande valor a uma felicidade que deves perder? E aprecias a
companhia momentânea de uma Fortuna que ao partir te deixará desesperado? E
ninguém pode domar seus caprichos, ela semeia catástrofes atrás de si, a
inconstante Fortuna nada mais é que o sinal que anuncia a ruína. Não basta ver a
situação em que estás; a Sabedoria consiste em avaliar a finalidade de todas as
coisas, e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo ao outro que
caracteriza a Fortuna que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou
desejá-la. Enfim, deves tolerar, sem queixas, tudo o que acontece no âmbito da
Fortuna, já que aceitaste seu jugo. Pretendes frear ou atiçar a teu gosto o tirano
que deste a ti mesmo? Isso não só seria exceder tuas possibilidades como tornar
ainda pior o estado em que te encontras. Se confiasses teu barco ao sabor dos
ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem;
se jogasses tuas sementes nos campos, haveria a alternância entre os anos bons e
ruins. Tu te abandonaste ao domínio da Fortuna: deves submeter-te aos caprichos
de tua mestra. Pretendes sustar a rápida revolução de sua roda? Oh, insensato!
Então a Fortuna não seria mais a Fortuna.”*
II. 2
II. 3
II. 5
“Se a Fortuna se defendesse com tais argumentos, não terias com que
responder, mas, se por acaso existe algum argumento para justificar tuas
queixas, deves apresentá-lo.” Então eu disse: “Sim, essas são brilhantes palavras
impregnadas do mel da retórica e da música, mas elas encantam apenas no
momento em que se as ouve. As pessoas que sofrem sentem mais
profundamente sua tristeza e, quando seus ouvidos cessam de escutar essas doces
consolações, a melancolia enraizada toma seu lugar.” E ela: “Admito que é
verdade. Tais palavras não são ainda o remédio que vai curar tua doença, mas
pelo menos acalmarão tua dor rebelde a qualquer tratamento. Eu te darei os
remédios capazes de agir em profundidade quando chegar o momento oportuno.
Entrementes, para que não te lastimes de novo, vou recordar tua importância e a
magnitude de tua felicidade. Não lembro apenas que, quando da morte de teu
pai, foste elevado junto aos homens de maior projeção, freqüentaste as casas das
pessoas mais distintas do Estado e começaste a ganhar estima para por fim
tornar-te um deles. Quem não te felicitou pelo fato inaudito de te tornares
membro de uma família tão distinta, tomar para ti uma esposa tão respeitável e
mesmo ter a sorte de nascer um primogênito masculino? Não mencionarei – ou
melhor, prefiro não mencionar – os privilégios que foram reservados somente a
ti: cargos honoríficos que assumiste mesmo quando jovem, quando eles eram
negados a pessoas mais velhas, mas eu me alegro sobremaneira em recordar
aquilo que foi o apogeu de tua glória. Se os sucessos humanos concorrem para a
definição da felicidade, como é que algumas adversidades, mesmo
consideráveis, poderiam apagar de tua memória o extraordinário dia em que
viste teus dois filhos, cônsules na mesma legislatura, fazerem-se escoltar desde a
tua casa até o Fórum pelos senadores e todo o povo e quando, tomando eles seu
lugar na Cúria e assentando-se sobre a cadeira curul, tu pronunciavas o
panegírico do rei que tornou célebres tua inteligência e tua eloqüência e quando,
no Circo, entre os dois cônsules, tu, com a generosidade de um triunfador,
cumulavas de bens a multidão que vinha atrás de ti? Suponho que na ocasião não
encontravas palavras para agradecer a Fortuna, durante aquele tempo em que
ela te acariciava e te tratava como seu predileto. Pois ela te deu um presente que
nenhum mortal jamais teve. Queres fazer com ela um balanço? É somente agora
que ela vem pela primeira vez lançar-te um olhar malévolo. Mas se levasses em
consideração a quantidade e a extensão de tuas alegrias e dores, não poderias
dizer que o saldo não foi positivo até o momento. E, se pensas que não tens
oportunidades porque tuas pretensas alegrias passadas se foram para sempre, não
tens motivo para te considerares infeliz, uma vez que tuas pretensas penas
presentes apenas passam. Ou por acaso é agora que chegas como neófito ao
teatro da vida? Pensas encontrar alguma constância nos negócios humanos,
enquanto o próprio homem extingue-se de um momento para o outro? Mesmo
quando se pode contar com a estabilidade de uma situação fortuita – o que é
excepcional –, de qualquer forma o último dia da vida é o encontro certo com a
morte, mesmo para quem a Fortuna favorece. Dessa forma, eu te pergunto: qual
é a diferença entre abandoná-la com a morte ou ser abandonado por ela?
II. 6
Então eu disse: “Tens razão, ó mãe nutriz de todas as virtudes, e não posso
negar a rapidez da minha ascensão. Mas é precisamente essa lembrança que me
fere mais. Com efeito, em toda reviravolta da Fortuna, não há maior desgraça do
que ter conhecido a suprema glória.” E ela: “Mas não é porque expias um erro
do teu julgamento que tens o direito de imputá-lo às coisas. Com efeito, se a
expressão sem sentido ‘alegria fortuita’ significa algo para ti, podes contar os bens
deleitáveis que usufruis comigo. Por conseguinte, se preservaste até aqui, intacto
e não violado, tudo o que possuías de mais precioso no inventário de tua fortuna
graças à vontade divina, podes queixar-te de algum infortúnio contra ti? Ora, teu
sogro Símaco, honra do gênero humano, goza de boa saúde e está perfeitamente
lúcido e, o que pagarias ao preço de tua própria vida, mostra-se calmo e não se
inquieta muito com tua atual situação. Tua esposa está viva, ela que é um modelo
de humildade, castidade e honradez, enfim, um retrato das qualidades de seu pai.
Ela está viva, repito, mas por tua causa suporta uma vida para ela horrenda – e te
digo que apenas isso pode justificar um decréscimo de tua situação – e, de
saudades de ti, ela se precipita em lágrimas e dores. E o que haveria de dizer de
teus filhos, que já foram cônsules e, como é natural nas pessoas dessa idade, já
se forma neles um caráter semelhante ao do pai e do avô? Portanto, já que a
preocupação maior dos mortais é estarem vivos, como serias feliz se tivesses
consciência de tua felicidade, tu, que possuis coisas que aos olhos dos outros
valem mais que a vida! Seca portanto estas lágrimas. A Fortuna não foi cruel
com toda a tua família, e a tempestade que se abateu sobre ti não foi demasiado
violenta, pois tuas âncoras são firmes, e não te deixa partir à deriva quem te
consola no presente e te permite nutrir esperanças no futuro.” Eu então respondi:
“Sim, e peço que elas me sejam de valia; enquanto os meus familiares estiverem
em segurança, aconteça o que acontecer, nadarei contra a corrente. Mas podes
ver quanto caiu o meu prestígio.” E ela: “Já ganhei um ponto se não estás mais
inteiramente insatisfeito com a situação atual. Não posso suportar esse
comportamento fraco, essa maneira de exaltar teu desespero com o pretexto de
que algo falta à tua felicidade. Acaso existe algum homem que possua uma
felicidade tão perfeita que não se queixe de algo? A felicidade terrestre traz
sempre consigo preocupações e, além de nunca ser completa, sempre tem um
termo. Um possui imensas riquezas, mas se envergonha da sua origem humilde;
outro é de linhagem nobre e ilustre, mas preferiria não sê-lo devido à sua
insegurança e pobreza. Outro possui ambos os bens, mas não se conforma com
seu celibato; há ainda o que é feliz no casamento mas não possui filhos, e
acumula riquezas para uma pessoa que não será de seu sangue. Tal outro sentiu a
alegria de ter filhos, mas a conduta deles deixa-o desolado. Em suma: ninguém
está contente com a sua situação, e cada situação comporta um aspecto que não
se nota a menos que seja experimentado, e quem o experimenta sabe quão ruim
ele é. Acrescento ainda o caso das pessoas mais favorecidas pela Fortuna, cuja
sensibilidade aumenta na medida de sua felicidade; a menor adversidade as
abate: é preciso muito pouco para tirar os afortunados de sua felicidade.
Quantos não se sentem desgraçados ao mais leve golpe da Fortuna?
Considera quantos não se sentiriam muito afortunados se tivessem uma pequena
parte daquilo que a Fortuna te deixou! Este mesmo lugar que chamas de exílio é
a pátria de muitos, de tal forma que te digo que a desgraça é apenas o que é tido
como tal, e a felicidade pode entrar em toda parte se suportamos tudo sem
queixas. Mas que homem pode haver que seja afortunado o suficiente para não
querer sempre mais, impelido pela ambição? Quantas vezes sua felicidade não é
afastada por causa da amargura da condição humana! Mesmo aquele que
desfruta sua felicidade com contentamento não poderá impedi-la de partir
quando a Fortuna quiser. Pode-se ver então verdadeiramente como é digna de
lástima a condição humana, uma vez que, naqueles que se satisfazem facilmente,
ela não dura para sempre, e aqueles que se beneficiam muito dela estão sempre
descontentes. Por que então, ó mortais, buscais fora de vós mesmos o que se
encontra dentro de vós? O erro e a ignorância vos cegam. Vou te mostrar
rapidamente no que consiste a suprema felicidade. A teu ver há algum bem mais
precioso do que tua própria vida? ‘Não’, responderás. Então, se consegues ser
senhor de ti mesmo, possuirás algo que jamais poderás perder nem a Fortuna te
arrebatar. E, para que aprendas melhor que a felicidade independe da Fortuna,
segue meu raciocínio. Se é verdade que a felicidade é o supremo bem de uma
natureza guiada pela razão, fica claro que a instabilidade da Fortuna não tem
nenhum conhecimento da natureza da felicidade. Além disso, aquele que se
abandona a essa efêmera felicidade pode saber ou não se ela é volúvel. Se não
sabe, como poderíamos chamar de feliz alguém tão cego pela ignorância? Se
sabe, não deixará de temer perder algo que se pode perder num instante, e esse
medo incessante não lhe permitirá ser feliz. Pode ser que ele julgue sem valor o
que vai perder. Então facilmente suportará a perda de algo dispensável, sem se
importar. E esse bem não passará de uma ninharia. E, uma vez que sei que tu
permaneces uma pessoa que adquiriu a firme certeza, provada em diversas
demonstrações, de que as almas dos homens não são mortais e além disso que o
sucesso material dado pela Fortuna cessa com a morte, podes ter certeza de que,
se a morte não é capaz de arrancar tua felicidade, muito menos o pode a morte
violenta, e para a maior parte dos homens seus males terminam somente com a
morte. Além disso sabemos que muitas pessoas encontraram a felicidade não
apenas com a morte mas também em meio a dores e suplícios. Então pergunto:
como a vida na Terra poderia tornar os homens felizes, se muitos só encontram a
felicidade em seu termo?
II. 8
Se és prudente e desejas
Estabelecer-te duradouramente em algum lugar;
Se estás decidido a não te dobrar
Às rajadas ensurdecedoras
Do Euro, e a desprezar as ameaças
Das vagas do Oceano,
Não construas tua casa
Em cimos montanhosos
Ou nas areias instáveis.
Lá em cima, o Austro impetuoso
Se manifesta com todas as suas forças;
Embaixo, as areias resvalam
E não fornecem alicerce seguro.
Foge dos perigos dissimulados
Em locais deslumbrantes.
Não te esqueças de construir tua casa
Sobre a pedra sólida.
O vento poderá soprar a qualquer hora
E agitar a superfície do mar;
Feliz de estar ao abrigo
Dentro de tuas quatro paredes,
Tu usufruirás de dias amenos
E zombarás da fúria dos climas.
II. 9
Mas, uma vez que meus raciocínios já começaram a aplacar tua miséria,
gostaria de passar a usar de remédios mais fortes. Vamos em frente. Mesmo se
os dons da Fortuna não fossem frágeis e passageiros, haveria um bem ao menos
que fosse inteiramente teu e que resistiria a um exame atento e minucioso? As
riquezas têm valor por si mesmas ou porque pertencem a ti? Qual delas tem
maior valor? O ouro? Ou uma profusão de objetos? Ora, as riquezas parecem ter
mais valor quando se vão do que quando são adquiridas. É por isso que a avareza
é causa de antipatia, e a generosidade, de louvores. Uma vez que não é possível
manter algo que só tem valor se for trocado, o dinheiro só tem valor quando
muda de mãos e deixamos de possuí-lo. Por outro lado, se todo o dinheiro do
mundo estivesse concentrado nas mãos de uma só pessoa, ninguém mais o teria.
Muita gente no mundo se empenha em obter riquezas a todo custo, mas elas
devem ir necessariamente para as mãos de outros, e portanto diminuem. E,
assim, os que as possuíam devem necessariamente ficar mais pobres. Portanto,
como são limitadas e lastimáveis essas riquezas que não podem ser possuídas em
sua totalidade por muitos ao mesmo tempo, nem se tornar propriedade de um
sem deixar outro mais pobre! Ou será o brilho das pedras preciosas que chama a
tua atenção? Mas o que há de característico nesse brilho é que se trata apenas de
uma luz própria das pedras, não dos homens, e considero extremamente
surpreendente que elas suscitem neles tanta admiração. De fato, que objeto
desprovido de movimento e sopro vital seria interessante para um ser dotado de
vida e razão? Mesmo que elas se distingam das outras coisas graças ao trabalho
do Criador, elas têm em si mesmas apenas uma centelha de beleza e estão muito
abaixo da tua constituição para merecer tanta atenção de tua parte. Ou será a
beleza da Natureza que te deslumbra? Mas como não haveria de ser assim? Ela é,
na realidade, parte de uma grande obra. Dessa forma, às vezes temos prazer em
contemplar o mar calmo, em admirar o céu, as estrelas, a lua e o sol. Mas essas
coisas têm algo em comum contigo? Acaso ousas parecer mais perfeito que o
seu esplendor? É teu corpo que se cobre de flores na primavera? És tu que dás os
frutos do verão? Por que te deixas levar por esses fúteis pensamentos? Por que
preferes te apegar a bens exteriores a cultivar os teus próprios? A Fortuna jamais
conseguirá te oferecer bens que a Natureza não quis te dar. É verdade que os
frutos da terra são destinados a nutrir os seres vivos. Mas se quisesses apenas
satisfazer tuas necessidades pessoais – aquilo que é suficiente à tua natureza – não
terias o direito de aspirar a uma Natureza mais generosa. Pois a Natureza se
contenta com o mínimo, e, se queres acrescentar o supérfluo ao que satisfaz as
tuas necessidades, esse acréscimo será desagradável ou prejudicial. Se pensas,
por exemplo, em te distinguires por tuas roupas, ao examiná-las serão a natureza
do tecido ou a habilidade do costureiro que admirarei. Ou será uma multidão de
criados que te torna feliz? Mas, se eles se portam mal, serão um fardo para a
casa e muito prejudiciais ao próprio senhor; se, pelo contrário, eles são honestos,
como a honestidade, sendo deles, poderia acrescentar algo às tuas riquezas? Tudo
isso te mostra claramente que nada do que julgas ser teus próprios bens te
pertence na realidade. E, se eles não têm nenhuma qualidade digna de ser
procurada, por que te lamentas quando os perdes ou te alegras quando os
conservas? E, se essas coisas são belas por si mesmas, que tem isso a ver contigo?
Com efeito, esses bens te agradariam naturalmente e por si mesmos,
independentemente da Fortuna. Pois não é pelo fato de eles terem sido acrescidos
à tua fortuna que têm valor, é apenas porque a teus olhos eles eram valiosos que
tu quiseste acrescentá-los aos teus bens. Mas por que todo esse alarde com
relação à Fortuna? Creio que é por temeres a carência e desejares a abundância.
Ora, isso te leva ao resultado inverso. Na verdade, é motivo de grande
preocupação ter de zelar por seus objetos preciosos, quando se os tem em grande
quantidade, e também é verdade que as preocupações aumentam à medida que
aumentam as riquezas, enquanto a preocupação diminui quando não damos
grande importância a essas coisas, nos contentamos com o que nos dá a Natureza
e não temos uma ambição muito grande. Acaso não tens verdadeiramente
nenhum bem que seja teu próprio e inerente à tua natureza, para que seja preciso
procurares bens em objetos externos e estranhos a ti? A ordem das coisas se
inverte a tal ponto que um ser vivo, racional e feito à imagem de Deus, crê poder
distinguir-se apenas pela posse de objetos sem vida! E outros seres vivos se
contentam em ser o que são, mas vós, que sois dotados de alma e feitos à
semelhança de Deus, vós empregais vossa natureza na busca de objetos sem
importância, sem noção da desigualdade da troca e da ofensa que fazeis ao
Criador. Ele, o Criador, quis que os homens estivessem acima de todas as
criaturas terrestres, e vós vos aviltais colocando-vos abaixo do que é mais vil.
Com efeito, se é evidente que todo bem pertencente a outro vos parece mais
valioso do que para aquele que o possui, quando considerais que os objetos mais
insignificantes são bens para vós, então vos colocais a vós mesmos como
inferiores a esses objetos. E, de fato, esse raciocínio é exato; pois assim é a
natureza humana: superior a todo o resto da criação quando usa de suas
faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de ser o que
realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmos é inerente à sua
natureza; no homem, é uma degradação. Como é grande o vosso erro, quando
pensais em vos exaltar com coisas externas! É algo inconcebível! E ademais,
quando alguém se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que
são admirados, e não quem os traz. E afirmo ainda: não há bem material que não
cause algum mal a quem o possui. Dirás que minto? Tu não o negarias. Ora, as
riquezas muitas vezes lesaram quem as possuía, principalmente porque os ladrões
e perversos, ávidos dos bens dos outros, acreditam ser seu direito possuir todo o
ouro e coisas preciosas do mundo. Assim, se tu temes encontrar um agressor
armado de uma espada e um punhal, se tivesses entrado na estrada da vida sem
fortuna, poderias viver cantando ao lado do ladrão. Estranha felicidade esta,
proporcionada pelos bens terrestres: só se pode possuíla ao custo da própria
tranqüilidade!
II. 10
II. 11
Mas que dizer das honras e do poder, que na vossa ignorância da verdadeira
honra e do verdadeiro poder levam vossas cabeças a delirar nos céus? Se eles
caem nas más mãos de pessoas sem escrúpulos, que Etna em erupção, que
inundações poderiam ser piores do que eles? Em todo o caso – e creio que te
lembras –, teus ancestrais decidiram abolir o poder consular por causa da antiga
arrogância dos cônsules, poder que antes era o fundamento de sua liberdade, e
por causa disso mesmo eles tinham banido do Estado toda realeza. Mas se por
acaso – e isso acontece raramente – os poderes caem nas mãos de homens
honestos, o que neles agrada além da esperada honestidade com que exercem
suas funções? Donde se conclui que a virtude não se adquire por causa das
honrarias, apenas as honrarias são acrescentadas a ela. E de que se trata afinal
esse poder que achais tão desejável e vos comove tanto? Pobres mortais! Não
vedes quem sois e a quem acreditais comandar? Se vísseis numa assembléia de
ratos um deles reivindicar e querer exercer sua autoridade sobre todos os outros
ratos, com que gargalhadas não seria recebida essa sua pretensão? Dize-me,
poderias tu, com relação a teu corpo, encontrar algo mais frágil que o ser
humano, que freqüentemente morre apenas pela picada de um inseto ou por ter
pegado vermes? E que poder tem um homem sobre outro, excetuando-se o seu
corpo e aquilo que é menos até que o corpo, isto é, seus bens? É possível dar
ordens a um espírito livre? É possível abalar a resolução de um espírito firme e
perturbar sua tranqüilidade? Um tirano que pensasse poder fazer, por meio da
tortura, um homem livre denunciar os pretensos cúmplices de uma rebelião
contra ele veria o seguinte procedimento: o homem livre e honesto morderia a
própria língua, parti-la-ia e a cuspiria no rosto do tirano. Assim, as torturas que o
tirano considerasse instrumentos de crueldade e pavor tornar-se-iam para o sábio
uma oportunidade de mostrar sua virtude.
E o que poderia ser feito a um outro sem o risco de receber de volta o
mesmo troco? Segundo a tradição, Busíris, que tinha o costume de assassinar seus
hóspedes, foi assassinado quando era hóspede de Hércules. Régulo meteu a
ferros um grande número de prisioneiros de guerra cartagineses, mas depois ele
próprio teve de estender suas mãos aos ferros dos que tinha vencido. Podemos
então chamar de potente um ser que é incapaz de impedir alguém de dar o
mesmo troco às coisas que ele faz? E além disso: se estas honras e este poder
fossem inatos e inerentes a si mesmos, eles jamais poderiam ser exercidos pelos
perversos. Pois, por princípio, os opostos não se associam; à Natureza repugna
toda união de contrários. Dessa forma, como é incontestável que pessoas más
freqüentemente ocupam cargos públicos, fica evidente que esses cargos não são
intrinsecamente bons, já que toleram pessoas de má índole. Essa é portanto a
opinião mais racional que devemos ter de todos os presentes da Fortuna, que
privilegia também com tanta abundância as pessoas más. Quanto a esse assunto,
eis o modo correto de abordá-lo: todos reconhecem a coragem naquele que
mostra coragem, e a velocidade em quem dá mostras de ser veloz. Do mesmo
modo acontece com a música e os músicos, a medicina e os médicos, a retórica
e os oradores. Na verdade, a natureza de cada coisa produz o que lhe é próprio,
não se mistura às coisas que lhe são contrárias e evita espontaneamente o que lhe
é oposto. Ora, as riquezas não podem satisfazer uma avareza insaciável, nem o
poder tornar senhor de si aquele que se entrega a todo tipo de paixões, e, quando
se concede um cargo público a uma pessoa sem escrúpulos, nem ela se torna
mais digna por causa disso, pelo contrário, coloca em evidência sua natureza
perversa. E por que é assim? O fato é o seguinte: é que vós costumais dar às
coisas, independentemente do que elas são, denominações falsas, cujo caráter
enganador se revela facilmente quando passam pelo crivo da verdade, que elas
costumam esconder. E é por esse motivo que não podemos verdadeiramente
falar delas como sendo riquezas, poder ou honrarias. Enfim, podemos dizer o
mesmo a respeito da fortuna: não há nada nela que mereça ser procurado, não
há nada nela que seja intrinsecamente bom, uma vez que ela também beneficia
pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se associa.
II. 12
II. 13
Então eu disse: “Tu bem sabes que a ambição de sucesso neste mundo
jamais foi para mim a busca fundamental. Mas eu quis aproveitar a ocasião de
seguir a carreira política para evitar que minhas habilidades ficassem inativas.”
Então ela respondeu: “Há apenas uma coisa que move os espíritos dotados de
grandes qualidades, mas que não chegaram ainda à total posse de seu valor: é a
paixão pela glória e a fama que se busca pelos bons serviços prestados ao Estado.
Mas pensa na pequenez e na futilidade de uma tal motivação! Toda a extensão da
Terra, como bem o sabes graças às demonstrações dos astrônomos, comparada à
extensão do Céu, não passa de um pequeno ponto: isso quer dizer que, comparada
à extensão dos céus, a magnitude da Terra não é quase nada. E, dessa região tão
ínfima, apenas um quarto, segundo os cálculos de Ptolomeu, é habitado por seres
vivos. E, se desse quarto tu tirares toda a superfície ocupada por oceanos, lagos,
desertos, etc., restará uma ínfima parte onde habitam os homens. Ora, vós que
estais cercados e presos no interior deste ínfimo ponto de um ponto, como podeis
sonhar seriamente em estender a vossa fama e alargar os limites de vossa
notoriedade? E o que tem de grandioso e magnífico a glória humana, restrita a
limites tão estreitos? E isso sem esquecer que essa pequena parte do mundo é
povoada e habitada por inúmeras nações, que diferem umas das outras pela
língua, costumes e modo de vida; e tal é a dificuldade das viagens, tamanha a
diversidade de idiomas e tão pouca a freqüência das trocas comerciais que é
enorme o obstáculo para a expansão da fama, não somente entre os homens,
mas mais ainda entre as nações. Mesmo na época de Cícero, tal como ele
mesmo reconhece num de seus escritos, a fama do Império Romano não havia
ainda atravessado o Cáucaso, e no entanto naquela época Roma estava no seu
apogeu, e fazia tremer os partos e os povos daquelas regiões. Vês agora quão
restrita era a fama que buscavas aumentar e propagar? Como poderia um
cidadão de Roma ter fama para além de seus limites? E ainda mais: os costumes
e as instituições dos outros povos são tão diferentes que algo que é muito
considerado por uns é, segundo outros, um crime digno do maior suplício. Segue-
se daí que o homem que busca a fama não tira o menor proveito de ter seu nome
espalhado pela multidão dos povos. Cada um, portanto, se satisfará em ver sua
fama propagar-se entre os seus, e a sua tão falada imortalidade se restringirá às
fronteiras de uma só nação. E quantos homens que foram célebres em seu tempo
não caíram no esquecimento por não terem deixado nenhum escrito! No entanto,
qual a utilidade de tais escritos, que desaparecem junto com seus autores na
escuridão do tempo? Quanto a vós, credes assegurar vossa imortalidade ao
pensar na fama de que gozareis no futuro. Mas se consideras seriamente o
infinito da eternidade, por que razão te alegras da longevidade de tua fama? Com
efeito, a duração de um só instante comparada à de dez mil anos, por serem
ambas limitadas, têm uma curta dimensão, mas de qualquer forma não é uma
diferença desprezível. Mas esse número de anos, bem como qualquer um de seus
múltiplos, não podem ser comparados a uma duração infinita. Na verdade,
podemos comparar duas coisas finitas mas jamais comparar o finito com o
infinito. Segue-se que a fama de alguém, seja qual for sua extensão, se
comparada à eternidade, cujo fim jamais se atinge, mostra-se não apenas de
pouco impacto, mas, na realidade, quase inexistente. E ainda por cima vós, para
obtê-la, deveis granjear o favor do povo e dos vagos boatos para saber como agir
de maneira conveniente, desprezando a superioridade da consciência e do
mérito: vós buscais vossa recompensa na miserável ralé. Aprendei como certo
homem divertiu-se um dia ridicularizando esse gênero de arrogância. Esse
homem cobriu de injúrias um indíviduo que, sem sê-lo de fato, intitulava-se
filósofo, não para praticar a verdadeira virtude, mas por vaidade e desejo de
glória vã. Pois bem, esse homem disse ao outro que reconheceria sua qualidade
de filósofo se ele se mostrasse capaz de agüentar, sem se desesperar nem se
enervar, uma torrente de injúrias. O pretenso filósofo conseguiu por algum
tempo ter paciência, mas, após ter-se contido diante dos insultos, descarregou ele
próprio sua ira: ‘E então, reconheces agora que sou filósofo?’ E o outro lhe
respondeu: ‘Estava prestes a reconhecê-lo, se não tivesses dito coisa alguma.’
Além disso, qual o lucro que as pessoas de mérito têm – pois é delas que eu falo –
em buscar a glória com suas virtudes, uma vez que tudo acaba com a morte e a
destruição do corpo? Isso, se é verdade o que dizem (coisa com a qual não posso
absolutamente concordar): que extintos os homens, sua fama cessa com eles,
pois ela se atribui a alguém que já não existe. Mas se pelo contrário a alma,
consciente de si mesma, ganha os céus depois de se libertar desta prisão terrestre,
não irá ela desprezar todas as suas antigas preocupações, uma vez que, tendo
ganhado o Céu, pouco se importará com tudo o que é terrestre?
II. 14
II. 15
Mas não quero que penses que estou a travar um combate impiedoso contra
a Fortuna; por vezes acontece de ela não enganar os homens, mas esclarecê-los.
Tal é o caso quando ela se desmascara e mostra seus métodos de ação. Talvez
não compreendas ainda o sentido de minhas palavras. Há um motivo para ficares
surpreso com minha impaciência de contar-te tudo, e a razão é que encontro
dificuldade em achar as palavras adequadas para exprimir meu pensamento. Eis
o que penso: a Fortuna é mais benéfica aos seres humanos quando se mostra
adversa do que quando se mostra favorável. Quando se mostra sedutora e
atraente, está sempre mentindo com sua aparência de felicidade; a adversa,
porém, é sempre sincera quando revela por suas reviravoltas seu caráter instável.
Uma engana, a outra instrui. Uma, ludibriando os homens com uma falsa
felicidade, captura a alma daqueles que desfrutam de seus dons; a outra, pelo
contrário, libera a alma fazendo-a ver a precariedade da sorte.
Assim, podes ver que uma é caprichosa, flutuante e sempre ignora o que faz,
enquanto a outra é comedida, pronta para tudo e experiente devido aos seus
contatos com a adversidade. Enfim, a Fortuna favorável usa de todos os seus
encantos para desviar as pessoas do verdadeiro bem, enquanto a Fortuna
desfavorável trava-lhes o caminho para levá-las novamente aos verdadeiros
valores. Acaso achas de pouca importância o fato de esta severa e temível
Fortuna te revelar quem são teus verdadeiros amigos, distinguir a franqueza e a
hipocrisia de teus companheiros e levar o que te foi dado por ela para deixar
apenas o que é teu? Por que preço buscarias adquirir esse discernimento quando
não estavas abalado pela Fortuna e te acreditavas feliz? Agora, tu te queixas da
ruína; contudo, encontraste por isso mesmo tua mais preciosa riqueza: teus
verdadeiros amigos.
II. 16
Oxalá o Universo, numa perfeita concórdia,
Conheça variações harmoniosas,
E os elementos em disputa
Observem um pacto perpétuo.
Oxalá Febo conduza a rósea luz
Do dia em seu carro de ouro
Para que Febe domine as noites
Trazidas por Vésper.
Tudo isso, para que o mar insaciável contenha
Suas ondas num limite determinado;
Para que os solos movediços não possam
Se estender por vastas regiões.
Eis a série de fenômenos controlados
Por aquele que rege a Terra e o Mar
E que comanda o Céu: o Amor.
Se por acaso ele afrouxar suas rédeas
Lá onde hoje ele reina,
Logo se instalará a guerra,
E o mecanismo que agora é movido
Com coerência e beleza
Não poderá resistir às forças destruidoras.
Pois é também o Amor que sustenta os povos
Unidos por um pacto inviolável,
É ele quem reforça os laços sagrados
Do casamento por relações virtuosas;
É ele também quem dita as leis
Aos seus fiéis companheiros.
Bem-aventurado será o gênero humano
Se seu coração obedecer ao Amor,
O mesmo a quem o próprio Céu estrelado obedece.”
* O autor faz aqui um jogo entre as palavras latinas Fors e Fortuna. (N. do
T.)
5. Homero, Ilíada.
Livro III
III. 1
Mal havia ela acabado de cantar e eu já estava ávido por ouvi-la novamente;
fiquei mudo, com os ouvidos bem abertos à beleza de suas melodias. Passaram-
se alguns instantes. Depois eu disse: “Ninguém melhor que tu sabe reconfortar os
espíritos abalados. Isso se deve à força de tua persuasão ou ao prazer de te ouvir
cantar? Não sei, mas graças a ti recobrei minhas forças. Agora que já te ouvi
dizer tantas verdades, não creio ser incapaz de resistir aos golpes da Fortuna.
Dessa forma, os remédios que julgavas serem fortes demais para mim não me
metem mais medo e, já que estou impaciente por ouvir-te novamente, peço-te
com insistência que os administres.” Então ela respondeu: “Estou bem certa de te
ter visto acolher e beber minhas palavras, e esperava agora encontrar-te nesta
disposição de espírito, mas seria mais justo dizer que fui eu quem a provocou. É
verdade que os medicamentos que ainda deves tomar vão primeiramente soltar
tua língua, mas, quando tiveres engolido as palavras, esses efeitos se atenuarão.
Mas, já que declaras desejar ouvir-me mais, como ficarias impaciente se
soubesses para onde estou te conduzindo!” “E para onde?”, perguntei. Ela
respondeu: “Para a verdadeira felicidade, a felicidade que teu coração vê em
sonhos, mas que não podes contemplar tal como ela é porque tua vista se desvia
para as aparências.” Aí eu disse: “Ah, sim! Eu te suplico! Mostra-me sem
demora o que é a verdadeira felicidade!” E ela: “De bom grado farei o que me
pedes, mas primeiramente tentarei definir com palavras e delimitar um tema
para reflexão do que te é mais familiar no conceito de felicidade a fim de que,
quando o tiveres examinado bem, voltes os olhos para a direção oposta e
reconheças a verdadeira imagem da felicidade.
III. 2
III. 3
Então ela ficou imóvel, o olhar estático; e, como que mergulhando nas
profundezas de seu pensamento, começou a falar desta maneira: “Os mortais
têm todos uma única preocupação pela qual não medem esforços; seja qual for o
caminho tomado, o objetivo é sempre o mesmo: a felicidade. Ora, trata-se de
um bem que, ao ser obtido, não deixa lugar para nenhum outro desejo. E é
realmente o bem supremo, que contém em si mesmo todos os bens: se apenas
um lhe faltasse, ele não poderia ser o bem supremo, pois fora dele haveria algo
ainda a ser desejado. É claro, portanto, que a felicidade é um estado de
perfeição, pelo fato de reunir em si mesma todos os bens. É para aí, como
dissemos anteriormente, que todos os mortais se dirigem pelos mais diversos
caminhos. Com efeito, todos os homens têm em si o desejo inato do bem
verdadeiro, mas os erros de sua ignorância desviam-nos para falsos bens. Alguns
homens, acreditando que o bem supremo consiste em não lhes faltar nada,
trabalham sem cessar para amealhar riquezas; outros, acreditando que o bem
supremo consiste em serem tidos em alta conta pelos concidadãos, esforçam-se
por se fazer respeitar por todos ocupando cargos honoríficos. Outros há que estão
persuadidos de que o supremo bem reside no poder supremo; assim, desejam o
poder para si ou tentam se imiscuir na corte dos governantes. Quanto àqueles que
acreditam não haver nada melhor que a celebridade, tratam de tornar seu nome
glorioso na paz ou na guerra. Contudo, a maioria acredita ter obtido o soberano
bem quando estão alegres e contentes: a seus olhos a suprema felicidade consiste
em se embriagar no prazer. Para alguns, esses bens se transformam
indiferentemente em meio ou fim. Dessa forma, vemos homens desejar a
riqueza para adquirir o poder, enquanto outros buscam o poder tendo em vista a
glória ou a riqueza. É portanto para a aquisição desses bens e outros semelhantes
que tendem as ações e os esforços humanos. É o que ocorre quando se buscam
os altos cargos e a popularidade, porque se acredita que daí se obtém uma certa
celebridade: e também com o casamento e a paternidade, que se buscam pela
satisfação que deles se extrai. Quanto aos amigos, são o tesouro mais sagrado que
temos, pois eles nos foram dados pela virtude e não pela Fortuna, enquanto todos
os outros bens são adquiridos em vista do prazer ou do poder que proporcionam.
Ademais, certas condições físicas estão também associadas aos bens que acabei
de enumerar. Assim, uma constituição robusta e um grande porte parecem
reforçar a autoridade; e a beleza e a rapidez, a celebridade, bem como a saúde, o
prazer; mas, percorrendo todas essas vantagens, essas pessoas crêem estar
buscando manifestamente a felicidade. Com efeito, cada um considera que
aquilo que busca acima de tudo é nada mais que o bem supremo. Mas nós
tínhamos definido bem supremo como sendo a felicidade; dessa forma, cada um
considera que a felicidade reside naquilo que deseja mais do que qualquer outra
coisa. Assim, tens sob teus olhos as diversas formas de felicidade que os homens
concebem: riquezas, honras, poder, glória, prazeres. É sem dúvida alguma pelo
fato de tomar apenas tais coisas em consideração que Epicuro, seguindo a lógica,
foi persuadido de que o soberano bem fosse o prazer, uma vez que todos os outros
bens tendem para o prazer. Mas volto a considerar os esforços daqueles cuja
alma não cessa de procurar o que é bom para si, mesmo se sua escolha o induz
ao erro; tal como o ébrio, sua alma não encontra o caminho de casa. De fato, os
que se esforçam para que não lhes falte nada não dão a impressão de estarem se
enganando? Ora, para experimentar a perfeição da felicidade pensam que não
há nada melhor que uma grande profusão de bens, sem nada invejar de ninguém
e tendo o suficiente para si mesmos. E também não se enganam aqueles que
pensam que o que há de melhor no mundo são os sinais de respeito prestados
pelos outros? É claro que não! Pois não pode ser sem valor nem desprezível
aquilo que quase a totalidade dos mortais procura obter por meio de imensos
esforços. Não se encontra no número desses bens também o poder? Por que não?
Deve-se considerar como um estado de fraqueza e fragilidade aquele que
obviamente é superior ao resto? É verdadeiramente real que a celebridade deve
ser tida por nada? Pois não devemos ficar indiferentes quanto a tudo o que se
destaque e que pareça também ser o mais ilustre. Com efeito, nem é preciso
dizer que a felicidade não conhece nem tormentos nem tristezas e tampouco é
vítima de alguma dor ou vergonha, uma vez que, mesmo quando se trata de
coisas sem importância, buscamos algo cuja posse ou usufruto nos forneça o
prazer. Ora, o que os homens querem obter são as riquezas, as honras, o poder, a
glória e os prazeres; e se eles desejam esses bens é porque acreditam que eles os
preenchem, tornam-nos dignos de respeito, fazem-nos exercer o poder, usufruir
da celebridade ou levar uma vida agradável. É evidentemente a felicidade que os
homens buscam por caminhos tão diferentes, e isso serve para mostrar
manifestamente a energia inesgotável da Natureza, já que, por contraditórios e
diversos que sejam seus caminhos, todos eles reconhecem estar perseguindo um
mesmo fim: a felicidade.
III. 4
III. 5
III. 6
III. 7
III. 9
III. 10
III. 11
Quanto à glória, quantas vezes ela nos engana! Como ela é vergonhosa!
Assim, o trágico estava com a razão ao exclamar: “Ó glória, ó glória! quantos vis
mortais, Graças a ti, desonraram a história com seus nomes!” 6
Muitas pessoas, com efeito, devem seu renome às opiniões errôneas da
multidão: o que pode ser mais vergonhoso que isso? Aqueles que são festejados
injustamente devem certamente enrubescer ao ouvir os elogios que lhe são
feitos. E, mesmo quando o mérito está na origem da glória, o que pode ela
acrescentar à consciência do sábio, que avalia o que é bom ou não em si, e não
se apega ao rumor do público, mas à verdade de sua consciência? E, se é tido por
belo ouvir a fama, então é necessariamente vergonhoso não ouvi-la. Ademais,
como disse ainda agora, há um grande número de povos aos quais a fama de um
homem não chega, e, por esse motivo, aquele que tu cobres de glória aqui é tido
como um homem comum na maior parte da Terra.
Ademais, não levo em conta minimamente o reconhecimento público, pois
ele não procede de um juízo sóbrio nem perdura por muito tempo. Quanto à
vaidade e à futilidade de um nome ilustre, quem não reconheceria sua
vacuidade? Se há uma relação entre o nascimento e a celebridade, isso é devido
a outra pessoa. O que é afinal a nobreza senão uma distinção que tem por origem
as belas ações feitas pelos ancestrais? E, se a celebridade se adquire pelos elogios
dos outros, então é forçoso reconhecer que os que elogiam é que são célebres.
Conseqüentemente, se a celebridade não é aquisição própria, não é a de um outro
que tornará alguém célebre. E, se há algo de bom na nobreza hereditária, a meu
ver isso se resume ao fato de os herdeiros poderem ser dignos dos méritos de
seus ancestrais.
III. 12
III. 13
III. 14
III. 15
Portanto, está fora de dúvida que esses caminhos para a felicidade levam a
um beco sem saída e não ao lugar aonde prometeram levar. Mostrar-te-ei como
essas metas são mal conduzidas desde o princípio. Vejamos: tu queres te esforçar
para ficar rico? Mas para isso terás de tornar alguém pobre. Pretendes alcançar o
brilho das honrarias? Mas para isso será necessário suplicar àqueles que as
conferem, e tu, que pretendes eclipsar os outros, deverás humilhar-te com tuas
súplicas. Ambicionas o poder? Lembra-te de que sempre correrás o risco de uma
traição por parte de teus subordinados e estarás sujeito a muitos perigos. Procuras
então a glória? O caminho é árduo, difícil e cheio de perigos. Desejas levar uma
vida de prazeres? Ora, quem não desprezaria e rejeitaria o escravo de uma coisa
tão banal e vulnerável como o teu corpo? Quanto aos que se destacam por suas
qualidades físicas, considera como é tênue e frágil esse bem com o qual contam.
Tendes acaso a menor esperança de ultrapassar o porte dos elefantes, a força dos
touros ou a velocidade dos tigres? Observai a extensão do Céu, sua permanência
e o ritmo de seus deslocamentos, e cessai por um momento de considerar o que
não tem valor algum. O que torna o Céu admirável não são tanto suas
propriedades quanto a Razão que o move. Já o esplendor da beleza, como
desaparece rápido! Como é fugaz! As flores da primavera são menos efêmeras.
E se, como diz Aristóteles, os seres humanos tivessem olhos de lince para
ultrapassar a superfície das aparências, à vista das vísceras de Alcibíades não
achariam eles seu corpo medonho, que no entanto era tão belo na superfície? Por
conseguinte, se te acham belo, não é esse um atributo da Natureza, mas do juízo
dos olhos que te vêem. Podeis vangloriar-vos quanto quiserdes de vossas
qualidades físicas; bem sabeis que o objeto de vossa admiração pode ser levado
por uma simples febre em três dias. De tudo o que foi dito pode-se concluir como
fato essencial que os atrativos incapazes de garantir os bens que prometem e que
não reúnem em si a totalidade dos bens existentes não são caminhos que levam à
felicidade, e portanto não são suficientes para levar o homem à verdadeira
felicidade.
III. 16
III. 17
“Desse modo, uma vez que já viste as formas que reveste o bem imperfeito
assim como as que reveste o bem perfeito, creio agora ser preciso te mostrar
onde se encontra a perfeita felicidade. A esse respeito julgo ser necessário antes
de tudo perguntarmos se um bem tal como o que acabas de definir pode existir
na realidade deste mundo; caso contrário, poderíamos passar ao lado da verdade
sem vê-la e deixarmo-nos enganar por uma representação ilusória de nossa
imaginação. No entanto, sabemos que esse bem existe e é a fonte de todos os
bens, o que é inegável. Com efeito, tudo o que é tido por imperfeito o é devido a
uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja,
algo parece imperfeito, é porque existe também necessariamente nesse campo
algo que seja perfeito. Pois, se não admitimos que a perfeição existe, não
poderíamos sequer imaginar como aquilo que é tido por imperfeito possa existir.
O universo não foi, no momento de sua criação, constituído de elementos
degradados e incompletos, mas teve sua origem a partir de elementos intactos e
acabados; no entanto, vencido pelo esgotamento, acabou caindo na imperfeição.
Mas se, como acabamos de demonstrar, há uma felicidade imperfeita que é um
bem perecível, não se pode duvidar de que haja também uma felicidade durável
e perfeita.”
“Eis uma conclusão absolutamente irrefutável e verdadeira”, respondi.
“Agora, se queres saber onde ela se encontra, eis como deves raciocinar. Todos
os homens concordam em afirmar que Deus, princípio de todas as coisas, é bom.
E, como não podemos conceber nada melhor do que Deus, quem poderia
duvidar de que aquilo que é melhor que todo o resto seja bom? Portanto, nossos
raciocínios mostram que Deus é bom a tal ponto que está fora de dúvida que o
bem perfeito também está presente nele. Caso contrário, Deus não poderia ser o
princípio de todas as coisas. Pois, se houvesse algo que possuísse o bem perfeito e
parecesse ser anterior a Deus e mais velho que ele, isso teria preeminência sobre
Deus, pois tudo o que é perfeito parece evidentemente ser o primeiro quanto a
algo que é de certa forma derivado. Eis por que, para evitar prolongar o
raciocínio infinitamente, é preciso admitir que o Deus soberano contém o
perfeito e soberano bem. Mas nós tínhamos estabelecido que o bem perfeito é a
verdadeira felicidade, portanto a verdadeira felicidade reside necessariamente
no Deus soberano.” “Eu o admito e afirmo que é totalmente impossível
contradizer-te”, respondi. E ela: “Mas peço-te que tomes perfeita consciência do
caráter sagrado e inviolável de tua adesão à afirmação de que o Deus soberano
contém o soberano bem.” “Como assim?”, perguntei. “Não vás supor que o Pai
de todas as coisas tenha recebido do exterior o soberano bem, que está contido
nele ou que ele o possua devido à Natureza, de tal forma que Deus e a felicidade,
isto é, o possuidor e a coisa possuída, fossem substâncias distintas. Se acaso
pensasses que o soberano bem foi recebido do exterior, poderias julgar que quem
o tivesse dado fosse superior a quem o recebeu. Mas nós afirmamos com
absoluta certeza que Deus está infinitamente acima de todas as coisas existentes.
E se o soberano bem se encontra em Deus por sua Natureza, mas em essência
dele difere, dado que estamos a falar de um Deus que é princípio de todas as
coisas, quem teria feito tal combinação? Quem puder que o imagine! Enfim,
aquilo que é diferente de uma coisa, seja esta o que for, não pode ser justamente
aquilo que reconhecemos como diferente. Dessa forma, aquilo que é por
natureza diferente do soberano bem não pode ser o soberano bem; no entanto,
não se pode dizer o mesmo de Deus, já que constatamos que não há nada acima
de Deus. Assim, não pode existir absolutamente nada cuja natureza seja melhor
que seu princípio; podemos, pois, concluir com certeza que aquilo que é o
princípio de todas as coisas também é, por sua substância, o soberano bem.”
“Assim é”, disse eu. “Mas nós não tínhamos estabelecido que o soberano bem é a
felicidade?” “Sim”, respondi. “Dessa forma”, disse ela, “é preciso admitir que
Deus é a suprema felicidade.” Eu respondi: “Não tenho como refutar tuas
proposições anteriores e vejo que elas levam a essa conclusão.” “Examinemos
agora”, disse ela, “se podemos provar tal afirmação de maneira mais sólida
partindo da seguinte proposição: não podem existir dois soberanos bens que
difiram um do outro. Pois, quando dois bens são diferentes um do outro, fica
claro que um não é o que o outro é, e dessa forma nenhum dos dois pode ser
considerado perfeito dado que um falta ao outro. Mas o que não é perfeito
evidentemente não é o soberano, portanto é absolutamente impossível que os
bens soberanos possam diferir entre si. Ora, havíamos concluído que a felicidade
e Deus são o soberano bem, portanto é precisamente a divindade soberana que é
a felicidade suprema.” “Não se pode concluir nada de mais verdadeiro,
irrefutável e digno de Deus”, respondi. “Continuemos”, disse ela. “Do mesmo
modo que os geômetras que deduzem os teoremas que eles demostraram
chamam-nos de porismata, eu também vou te demonstrar uma espécie de
corolário. Se de um lado é pela aquisição da felicidade que as pessoas ficam
felizes e, de outro, a felicidade é por natureza divina, conclui-se que é pela
aquisição do divino que eles podem se tornar felizes. E assim, da mesma forma,
é pela aquisição da justiça que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da
sabedoria, sábias. Se seguirmos a mesma lógica, quando alguém adquirir a
felicidade, tornar-se-á um deus. Por conseguinte, todo homem feliz seria um
deus. Mas, embora seja evidente que não há senão um único Deus por sua
própria Natureza, como partícipe do divino nada impede que um homem o seja.”
“Eis”, disse eu, “uma proposição tão bela quanto preciosa, que tu chamas de
porisma.” 7 “No entanto nada é mais belo do que esta outra proposição que a
razão me obriga a deduzir das proposições precedentes.” “E qual é?”, perguntei.
“Uma vez que a felicidade parece incluir uma multiplicidade de coisas, achas
que todas essas coisas se reuniriam de alguma forma para constituir um só corpo
heterogêneo, que seria o da felicidade, ou que dentre essas coisas todas haveria
uma só que constituísse a substância da felicidade e à qual tudo se voltaria?”
“Gostaria que me esclarecesses tua pergunta explicando ponto por ponto”,
respondi. “Não havíamos considerado a felicidade um bem?”, perguntou ela.
“Sim, e até mesmo como sendo o bem supremo”, respondi. Então ela: “Podes
com efeito aplicar essa qualificação a todos os bens. Com efeito, a felicidade
pode ser considerada a suprema independência, o poder supremo, a mais alta
consideração social, a celebridade e o prazer supremo. E então? Todas essas
coisas – a independência, o poder, a glória, etc. – são partes da felicidade ou se
inclinam em direção a um bem que está acima de todos?” E eu respondi:
“Compreendo o problema que me apresentas, mas desejo saber qual é a
conclusão.” “Aprende, pois, como se pode resolver esse problema. De fato, se
todas essas coisas fossem partes da felicidade, elas difeririam umas das outras.
Com efeito, a natureza das partes é tal que é por suas diferenças que constituem
um só e mesmo corpo. Ora, foi demonstrado que todas essas coisas são uma
única e mesma substância, portanto não podemos de forma alguma falar em
partes. Caso contrário a felicidade pareceria resultar da reunião de vários
membros, o que não é possível.” “Até aqui não tenho objeção alguma a fazer,
mas aguardo a continuação”, disse eu. “Por outro lado, vemos claramente que
todas as outras coisas referem-se ao bem. Com efeito, se buscamos a
independência é porque a consideramos um bem, e se buscamos o poder é
porque ele também é tido como um bem; da mesma maneira podemos
raciocinar com relação à consideração social, à celebridade e ao prazer. Por
conseguinte, a essência e a causa de tudo o que é desejável é o bem. Pois aquilo
que não contém em si nenhum bem verdadeiro ou aparente não pode de forma
alguma ser desejado. Por outro lado, as coisas que não são boas por natureza,
mas dão a impressão de sê-lo, são buscadas como se fossem verdadeiramente
boas. Disso resulta que temos razão em acreditar que a essência, a motivação e a
causa de todas as coisas desejáveis são o bem que reside nelas. Por outro lado,
aquilo em vista de que algo se procura é que é, afinal de contas, o que é
verdadeiramente procurado, como no caso de alguém que precisa cavalgar por
motivo de saúde e não almeja tanto a equitação, mas a saúde que ela lhe
proporciona. Assim sendo, dado que por meio de todas aquelas coisas o que é
procurado é na verdade o bem, não são tanto aquelas coisas, mas em realidade o
bem em si que desejamos. Mas havíamos também admitido que quando se
deseja alguma coisa é em vista da felicidade que ela propicia, e também que
todas as pessoas buscam apenas a felicidade. Do que foi dito, conclui-se
claramente que o bem e a felicidade propriamente ditos têm uma só substância.”
“Não vejo como negar”, disse eu. “Mas havíamos também demonstrado que
Deus e a verdadeira felicidade são uma só e mesma coisa.” “Sim”, respondi.
“Podemos então concluir, sem medo de estar enganados, que o soberano bem
reside apenas em Deus, excluindo-se tudo o mais.”
III. 20
III. 21
“Estou de acordo”, disse eu, “pois teus raciocínios são perfeitos e todas as
tuas proposições encadeiam-se perfeitamente.” E ela: “Qual seria o preço, na tua
opinião, para se conhecer o que é o verdadeiro bem?” “O preço seria infinito, se
chegássemos também a conhecer ao mesmo tempo Deus, que é o bem
supremo”, respondi. Então ela disse: “Pois bem, revelar-te-ei ao final de um
raciocínio irrefutável o que afirmei, com a condição de que já tenhas aceitado
nossas últimas conclusões como definitivas.” “Compreendo perfeitamente”, disse
eu. “Não havíamos demonstrado que as coisas que muitas pessoas buscam não
são bens verdadeiros nem perfeitos, pela simples razão de que eles diferem entre
si e que, como um falta ao outro, eles não podem proporcionar bem absoluto em
sua plenitude? Ora, não havíamos também demonstrado que o verdadeiro bem
somente existe quando todos os bens se reúnem para produzir uma só forma e
um só efeito; e também que a independência, o poder, a posição social, a
celebridade e mesmo o prazer também são bens mas que, se não estão todos
reunidos numa só coisa, por si mesmos não possuem nada que lhes permita ser
considerados bens desejáveis?” “Sim”, respondi, “e quanto a isso não resta mais
dúvida.” “Por conseguinte, as coisas não são bens verdadeiros quando diferem
entre si, mas somente quando tendem a formar uma unidade é que começam a
sê-lo. Não acontece de elas se tornarem bens quando realizam plenamente sua
unidade?” “Parece que sim”, respondi. E ela: “Mas dize-me sim ou não:
concordas que tudo o que é um bem o é pela sua participação no bem supremo?”
“Sim.” “Tu deves então admitir, devido ao mesmo raciocínio, que o uno e o bem
são a mesma coisa: com efeito, as coisas que por natureza não provocam efeitos
diferentes têm a mesma substância.” “É impossível negá-lo”, disse eu. E ela
acrescentou: “Sabes então que tudo o que existe subsiste tal qual é durante o
tempo em que é uno, e que morre e se desagrega quando deixa de ser uno?”
“Como assim?”, perguntei. E ela: “Entre os seres vivos, quando a alma e o corpo
são um e permanecem unidos, podemos falar em seres vivos; mas, quando essa
unidade se desagrega devido à decomposição, é claro que esse ser morre e deixa
de ser um ser vivo. Acontece o mesmo com o corpo: enquanto ele preserva o
mesmo aspecto graças à união entre as partes que o constituem, vêmo-lo como
uma pessoa humana, mas, se as partes do corpo se dividem, dividem e destroem
sua unidade, e o corpo desaparece e deixa de ser o que era. Da mesma forma, se
examinarmos todas as outras áreas, veremos claramente que, enquanto uma
coisa é una, subsiste, mas, assim que deixa de sê-lo, perece.” Eu disse: “À
medida que vou acompanhando teus raciocínios, minhas idéias vão ficando cada
vez mais claras.” E ela: “Existirá um único ser que, enquanto se comporta
conforme à sua natureza, não queira mais continuar a viver e deseje sua própria
morte e destruição?” “Se considero o conjunto dos seres vivos que possuem a
faculdade natural de querer ou não querer, não posso encontrar um único ser
que, excetuando-se circunstâncias excepcionais, renunciasse espontaneamente à
sua vida e buscasse por si próprio a destruição. Pois todo ser vivo se esforça por
manter sua vida e faz tudo para evitar a morte e a destruição. Mas com relação
às plantas, às árvores e aos seres completamente inanimados, eu hesito bastante
em compartilhar o teu ponto de vista.” E ela replicou: “No entanto, não há nada a
duvidar com relação a esse assunto, uma vez que podes observar que as plantas e
as árvores esforçam-se por buscar para si os lugares mais convenientes
conforme a natureza o permita e onde não corram o risco de secar rapidamente
e morrer. Assim, algumas buscam a planície, outras a montanha; há as que
buscam os pântanos, algumas se prendem aos rochedos, enquanto outras
preferem o árido deserto, e, se tentássemos transplantá-las, morreriam. A
natureza dá a cada um aquilo que lhe convém e faz tudo para evitar que um ser
vivo morra, durante o espaço de tempo que lhe cabe. E como explicar que todas
as plantas absorvam seu alimento das raízes, como se estas fossem uma boca
mergulhada no solo e que, graças à seiva deste, desenvolvem sua madeira e sua
casca? Como explicar que as partes mais frágeis, como a seiva, estejam cobertas
e protegidas do exterior pela resistência da madeira, enquanto a casca defende a
planta toda das tempestades, para protegê-la de toda a sorte de agressão? E como
a natureza não seria solícita uma vez que, multiplicando as sementes, ajuda todas
as espécies a se propagarem? E quem pode ignorar que todas essas espécies são
como mecanismos vivos concebidos não apenas para subsistir por certo tempo,
mas também para adquirir cada qual uma espécie de eternidade? Quanto aos
seres que se acredita serem inanimados, também eles, segundo a mesma lógica,
não procuram o que lhes é próprio? Por que o fogo sobe verticalmente levado por
sua leveza, e a terra, devido a seu peso, segue o caminho oposto, senão pelo fato
de esses movimentos estarem conformes à sua natureza? Prossigamos nosso
raciocínio: tudo o que está de acordo com uma outra coisa a preserva e, no
sentido oposto, tudo o que lhe é hostil a destrói. E os corpos sólidos, como as
pedras, mantêm suas partes firmes e não se deixam degradar facilmente. Quanto
aos líquidos, bem como ao ar e à água, é verdade que se deixam dividir
facilmente, mas, uma vez divididos, logo se reconstituem; quanto ao fogo, este é
impossível de ser dividido. E não estamos falando aqui dos movimentos
voluntários de uma alma lúcida, mas do instinto natural, tal como digerimos sem
pensar os alimentos que tínhamos comido ou como respiramos sem nos dar conta
enquanto dormimos. Portanto, mesmo entre os seres vivos o desejo de preservar
a vida não parte de uma atividade intencional da alma, mas dos impulsos
naturais. É certo que em certos casos, devido a motivos excepcionais, a vontade
se entrega a uma morte que contraria a natureza, enquanto o ato de procriação, a
única coisa que permite aos seres mortais se perpetuarem e que agrada sempre à
Natureza, tem muitas vezes de ser refreado pela mesma vontade. E tanto isso é
verdade que a vontade de autopreservação não parte de um movimento da alma,
mas de um instinto natural. E tal se dá porque a Providência atribuiu às suas
próprias criaturas o que é talvez a principal razão por que elas subsistem: o desejo
natural de permanecer o quanto for possível. Eis por que tu não tens razão
alguma para duvidar de que tudo o que existe busca naturalmente sua perenidade
e evita sua destruição a todo custo.” “Reconheço agora não ter a menor dúvida a
respeito daquilo que há poucos momentos parecia discutível”, respondi.
“Portanto”, replicou ela, “aquilo que procura subsistir e se perpetuar deseja
ser uno, pois, se a unidade é desfeita, não há nada que possa subsistir.” “É
verdade”, disse eu. “Portanto, todos os seres desejam formar uma unidade.” Eu
concordei. “Mas havíamos demonstrado que o que é uno é precisamente o bem.”
“Com toda certeza”, respondi. “Portanto”, continuou ela, “todas as coisas
procuram o bem, isto é, o bem é precisamente aquilo que todas as coisas
buscam.” Eu respondi: “Com efeito, não se pode conceber nada de mais
verdadeiro, pois ou todas as coisas não se ligam a uma única e mesma coisa e,
privadas de um princípio diretor, seguem a esmo seu caminho, ou existe algo
para o qual todas as coisas se remetem, e isso é o supremo bem.” E ela
exclamou: “Oh, meu discípulo, como estou contente! Pois acabas de desvendar
aquilo que constitui o centro da verdade! Acabas de dizer precisamente aquilo
que julgavas ignorar.” “O quê?”, perguntei. “Qual é o fim de todas as coisas?”
“Aquilo que sem sombra de dúvida todas as coisas procuram, e, como havíamos
concluído que é o bem, temos de reconhecer que o fim de todas as coisas é o
bem.
III. 22
III. 23
III. 24
6. Eurípedes, Andrômaca.
7. “Corolário”.
8. Verso de Parmênides citado por Platão.
Livro IV
IV. 1
IV. 2
IV. 3
IV. 5
Então eu disse: “Agora reconheço e vejo que temos razão em dizer que as
pessoas corruptas, embora conservem a aparência externa de seres humanos,
transformamse na realidade em bestas devido ao seu estado interior. Mas eu
preferiria que não mais lhes fosse permitido que sua crueldade e sua infâmia se
exercessem livremente, flagelando as pessoas de bem.” “Mas isso não é
permitido!”, exclamou ela, “conforme te demonstrarei na ocasião propícia. Pelo
contrário, se isso mesmo que julgas ser-lhes permitido lhes fosse retirado, o
castigo desses celerados seria em grande parte atenuado. E de fato – coisa que
pode parecer inacreditável – os maus tornam-se necessariamente mais infelizes
quando têm sucesso em realizar aquilo que desejam do que quando são incapazes
de satisfazer seus desejos. De fato, se é uma infelicidade querer fazer o mal, ser
capaz de fazê-lo é uma infelicidade maior ainda, pois sem essa capacidade o
efeito da má vontade seria quase inexistente. Portanto, dado que o querer, o
poder e a realização de uma má ação são, individualmente, uma infelicidade, um
triplo infortúnio se abate necessariamente sobre aqueles nos quais vês reunirem-
se essas três condições.” “Rendo-me aos teus argumentos”, disse eu, “mas meu
mais caro desejo é que eles fiquem liberados de um tal infortúnio, tornando-se
incapazes de cometer qualquer ação má.” “Eles estarão livres disso, talvez mais
cedo do que possas querer e do que eles próprios acreditam. Pois no curso tão
rápido de uma vida nada acontece tão tardiamente para que a espera possa ser
longa, sobretudo a uma alma imortal. Suas esperanças imensas e suas jogadas
ambiciosas levam freqüentemente a um fim brutal e inesperado, o que
evidentemente limita sua maldade. Se, com efeito, sua vileza os torna infelizes, o
homem médio é necessariamente cada vez mais infeliz enquanto sua vida vai se
prolongando, e eu consideraria esses pobres indivíduos os mais infelizes dos
homens se a morte não pusesse um fim à sua maldade. E, de fato, se nossas
conclusões sobre o desafortunado e a maldade são verdadeiras, fica claro que a
infelicidade é infinita quando a maldade é eterna.” Então eu disse: “Eis uma
conclusão surpreendente e difícil de ser apreendida, mas sei que resulta
inteiramente daquilo que já foi estabelecido como verdadeiro.” “Tens razão”,
disse ela, “e, se encontramos dificuldade em aderir a uma conclusão, é preciso
demonstrar que alguma das proposições anteriores é falsa ou então provar que o
encadeamento dos raciocínios não conduz necessariamente a essa conclusão;
caso contrário, tendo sido aceitas as proposições anteriores, não se pode negar a
conclusão. O que vou acrescentar, portanto, pode parecer mais surpreendente
ainda, mas é uma conclusão que é o resultado necessário daquilo que foi
admitido como verdadeiro.” “E de que se trata?”, perguntei eu. “Pois bem,
afirmei há pouco que as pessoas desonestas estão em melhor situação se elas são
castigadas do que se ficam impunes perante a justiça. E, no momento, não penso
naquilo que pode vir à mente de alguém, segundo o que um comportamento
indigno é corrigido pela pena e reconduzido ao caminho justo devido ao medo do
castigo, como um exemplo que servisse aos outros para que ninguém mais
cometesse tal crime; é porque me coloco num outro plano que considero mais
infelizes os desonestos que ficam impunes, embora eu não deixe de levar em
consideração uma eventual correção ou um tal exemplo.” “E qual seria esse
plano diferente onde te situas?”, perguntei. “Nós havíamos admitido que os bons
são felizes e os maus infelizes, não é mesmo?” “Sim!”, respondi. “Por
conseguinte”, disse ela, “se algum bem vem se acrescentar à infelicidade de um
homem, este não ficaria mais feliz do que aquele cuja infelicidade permanece
intacta, sem mistura e desprovida da menor parcela de bem. Não pensas assim?”
“Sim, esse é o meu ponto de vista”, declarei. “Tomemos agora esse mesmo
infeliz a quem faltam todos os bens; supõe que se lhe acrescente um outro mal
àqueles que já constituem sua infelicidade. Não o consideraríamos muito mais
infeliz que aquele cujo infortúnio é atenuado por sua participação no bem?”
“Como poderia ser de outra forma?”, respondi. “No entanto, é manifesto que
seria justo os desonestos serem punidos, mas, pelo contrário, eles escapam à
punição.” “Quem poderia contradizê-lo?” “Mas ninguém também dirá que tudo o
que é justo não seja bom, e o injusto, mau.” “É evidente”, respondi. “Portanto, os
desonestos se beneficiam quando são punidos, pois uma parte do bem lhes é
acrescentada – trata-se precisamente de sua punição, que é boa porque é justa –,
e essas mesmas pessoas, quando escapam do castigo, adquirem um mal
suplementar – trata-se da impunidade que reconheceste ser um mal devido à sua
iniqüidade.” “Não posso discordar”, disse eu. “Portanto, os desonestos são muito
mais infelizes se gozam de uma injusta impunidade do que quando recebem a
punição merecida.” Então eu disse: “Isso resulta necessariamente das conclusões
às quais acabamos de chegar. Mas, dize-me, supões tu que as almas não recebem
nenhum tipo de castigo após a morte do corpo?” E ela: “Mas com toda a certeza!
E ainda por cima castigos graves; uns, a meu ver, com toda a severidade que o
crime merece, outros, pelo contrário, com uma clemência purificadora. Mas no
momento não é minha intenção discutir esse assunto. Até agora, pudemos
demonstrar-te que o poder dos maus, que tu achavas tão escandaloso, é
inexistente, e que aqueles a quem deploravas a impunidade não escapam jamais
dos castigos devidos à sua má conduta e que sua liberdade de agir, a qual
desejavas que tivesse rapidamente um fim, não dura muito tempo; e, além disso,
a maldade somente cresceria se ela fosse exercida por mais tempo, e, no caso
extremo, a infelicidade seria infinita se a maldade se prolongasse; finalmente,
que os desonestos são mais infelizes se ficam impunes do que se sofrem seu
castigo.”
Então eu tomei a palavra: “Quando examino teus argumentos, fico
persuadido de que não se pode dizer nada de mais verdadeiro. Mas, se
consideramos o juízo dos homens, quem não acharia tuas idéias, já não digo
críveis, mas nem sequer audíveis?” E ela disse: “É verdade o que dizes, pois as
pessoas em geral são incapazes de elevar seus olhos acostumados às trevas em
direção à luz da verdade, onde a evidência se impõe, e acabam por ser
semelhantes aos pássaros, cujas faculdades visuais se intensificam à noite e
desaparecem com a luz do dia. Dessa forma, têm o olhar fixado não sobre a
ordem do universo, mas sobre seus próprios sentimentos, e crêem ser felizes por
poder cometer todo o tipo de má ação livre e impunemente. Mas vê o que
prescreve a lei eterna. Toma por modelo aquilo que há de melhor, e não terás
mais necessidade de um juiz que te traga uma recompensa: estarás tu mesmo
participando do melhor. Por outro lado, consagra-te ao que há de pior sem
encontrar ninguém que te possa punir: serás tu que te precipitarás sozinho no
abismo. Assim, se olhas um de cada vez, a sórdida terra e o céu excluindo
qualquer outro objeto, acreditarás estar, segundo o ponto de vista, quer no lodo,
quer em meio aos astros. Mas a maioria dos mortais nem sequer olha para as
estrelas. Mas quê? Colocar-nos-emos ao lado de pessoas que demonstramos
serem parecidas a bestas? Supõe agora que alguém tenha perdido a vista, e até
mesmo a lembrança de ter possuído tal faculdade, e que pensa que nada lhe falta
para adquirir a perfeição humana: acaso seríamos nós a partilhar a opinião de tal
cego? E as pessoas comuns tampouco partilharão nossa opinião, que se sustenta
sobre uma argumentação tão sólida, de que os que cometem uma injustiça
sejam mais infelizes do que os que a sofrem”. “Gostaria de ouvir essa
argumentação”, disse eu. “Acaso ousarias dizer que um malfeitor não merece
sempre ser castigado?” “Claro que não!” “Por outro lado, também é claro que os
maus são infelizes de diversas maneiras.” “Sim”, respondi. “Portanto, duvidas de
que os que merecem ser castigados sejam infelizes?” “De modo algum”,
respondi.
“Se, por conseguinte, estivesses encarregado de um caso, a quem pensas que
deveria ser infligida a pena? Àquele que cometeu a injustiça ou àquele que a
sofre?” “Não posso hesitar um instante sequer: eu daria razão à vítima e
reprimiria o criminoso.” “No entanto, o autor da injustiça não te parece mais
digno de lástima do que a própria vítima?” “Sim”, respondi. E ela retrucou:
“Portanto, pelas razões nas quais se apóia o princípio que diz que uma conduta
vergonhosa, por sua própria natureza, torna a pessoa que a pratica infeliz, parece-
nos que a infelicidade recai não sobre a vítima, mas sobre o autor da má ação.”
E ela acrescentou: “Ora, em nossos dias os advogados agem de maneira inversa.
Com efeito, é em favor daqueles que sofreram um dano grave e severo que
tentam convencer o juiz, enquanto essa piedade deveria manifestar-se
principalmente com relação aos culpados; estes deveriam ser chamados à justiça
não por acusadores encolerizados, mas benevolentes e cheios de consideração,
assim como os doentes que são levados ao médico, de forma que o castigo os
curasse completamente do mal ligado aos seus crimes. Nessas condições, a
presteza da defesa seria menos grave ou, então, se ela preferisse tornar-se útil,
endossaria o procedimento da acusação. E os malfeitores mesmos seriam os
primeiros a não considerar seu castigo como sofrimento, ou a juntar-se à
solicitude dos defensores e a se entregarem sem hesitação aos seus acusadores e
ao juiz se lhes fosse permitido entrever por uma fresta a virtude que
abandonaram e vissem a possibilidade de se livrar do fardo de seus vícios. É
dessa forma que os sábios não experimentam a menor parcela de ódio. Pois
quem poderia odiar os bons, senão os maus e viciados? Quanto a odiar os
malfeitores, isso seria um contra-senso. Se, com efeito, a astenia é uma doença
do corpo, a maldade é uma espécie de doença da alma, dado que, a nosso ver, os
que sofrem das doenças do corpo não são odiados; pelo contrário, são dignos de
lástima. Por isso, são causa de maior lástima, e não de ódio, aqueles cuja alma
está atacada por um mal mais impiedoso do que qualquer forma de astenia: a
maldade.
IV. 8
IV. 9
IV. 10
IV. 11
“Aceito o que afirmas”, disse eu, “mas, como a ti foi dado desvendar as
causas dos fenômenos obscuros e explicar qual o seu mistério, peço-te que
desvendes completamente a questão e me esclareças quanto a um assunto que
me aflige muito.” Então ela esboçou um ligeiro sorriso: “Tu me pedes”, disse ela,
“para abordar uma questão cujo estudo se reveste da mais alta importância e que
é quase impossível discernir na sua totalidade. E, de fato, a questão é de tal
ordem que, se tocamos num só dos problemas que comporta, vão surgindo outros
ao infinito, como as cabeças da Hidra, e não se poderia deter seu ritmo senão
graças a um recurso especial da inteligência. Com efeito, ao abordar essa
questão, habitualmente caímos em outras mais complicadas, que são as da
indivisibilidade da Providência, do curso do Destino, dos acontecimentos
imprevisíveis, do conhecimento e da predestinação divinas e do livre-arbítrio,
questões essas cuja dificuldade bem podes avaliar. Mas já que uma parte do teu
tratamento consiste em examinar igualmente todos os assuntos, embora o nosso
tempo seja limitado, tentaremos abordar rapidamente esses temas. Mas, se a
poesia e a música igualmente te atraem, é preciso que adies tais prazeres para
mais tarde. É preciso, em vez disso, que eu construa, numa ordem rigorosa, uma
série de argumentos.” “Como queiras”, disse eu. Então, passando a um outro
assunto, ela discorreu nestes termos: “Tudo o que vem ao mundo, todos os seres
sujeitos à mudança e à evolução, tudo o que se move de uma certa maneira,
encontram sua causa, sua ordem e sua forma na estabilidade da inteligência
divina. Esta, firme na cidadela de sua indivisibilidade, fixa uma regra multiforme
ao governo do universo. Quando se considera essa regra do ponto de vista da
pureza da inteligência divina, chamamo-la Providência; mas quando se a
considera com relação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o que os
antigos chamavam Destino. Ver-se-á facilmente que se trata de duas coisas
diversas, se examinarmos a natureza de cada uma delas. Com efeito, a
Providência é precisamente a razão divina que reside no princípio supremo de
todas as coisas e que ordena o universo; quanto ao Destino, trata-se da disposição
inerente a tudo o que pode mover-se, e pela qual a Providência reúne todas as
coisas, cada uma no seu devido lugar. E, com efeito, a Providência abarca todas
as coisas de uma só vez, apesar da sua diversidade e do seu número infinito;
quanto ao Destino, ele reparte cada coisa individualmente situando-a no espaço e
no tempo, atribuindo-lhe uma forma em vista de seu movimento, embora esse
desenvolvimento da ordem temporal que mostra sua unidade na perspectiva da
inteligência divina seja a própria Providência, enquanto essa mesma unidade,
uma vez distribuída e alocada no tempo, chamase Destino. Embora se trate de
duas coisas diferentes, elas dependem uma da outra: o desenvolvimento do
Destino procede da indivisibilidade da Providência. Com efeito, do mesmo modo
que um artista começa por representar mentalmente a forma de sua criação
antes de passar para a realização, e além disso cumpre por etapas sucessivas
aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também Deus fixa
pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquanto o
Destino organiza na multiplicidade e na temporalidade exatamente aquilo que foi
fixado. Por conseguinte, que o Destino seja movido por espíritos divinos ao
serviço da Providência, ou que a trama do Destino seja urdida pela alma, pela
natureza, que lhe é totalmente servil, pelo movimento dos astros no céu, pelo
poder dos anjos ou pela habilidade multiforme dos demônios – que um só ou
mesmo todos esses fatores venham a intervir –, o que é absolutamente evidente é
que a forma imutável e simples do que se deve realizar é a Providência,
enquanto o Destino é o entrelaçamento cambiante e o decorrer temporal daquilo
que a simplicidade divina fixou para ser realizado. Segue-se que tudo o que é
subordinado ao Destino o é também à Providência, à qual está submetido o
próprio Destino, mas que certas coisas que estão colocadas sob o controle da
Providência não estão subordinadas ao encadeamento do Destino. Estas são
coisas tais que, fixadas de maneira imutável na proximidade da divindade
suprema, escapam ao Destino e às suas combinações cambiantes. Suponhamos
os círculos concêntricos. O que está mais próximo do centro aproxima-se mais
de sua indivisibilidade e constitui, para todos os outros círculos situados no
exterior, uma espécie de pivô em torno do qual giram os outros, enquanto o
círculo mais externo, que descreve a maior circunferência, se desdobra de
maneira tão mais extensa que se afasta da indivisibilidade do centro; por outro
lado, se um círculo coincide em todos os seus pontos com o centro e cessa de se
desdobrar e estender, segundo o mesmo raciocínio, quanto mais alguma coisa se
distancia da inteligência suprema, mais e mais os liames do Destino a envolvem,
enquanto alguma coisa é tanto menos dependente do destino quanto mais se
aproxima desse pivô do universo. E, se ela adere firmemente à inteligência
suprema, desprovida de todo movimento, torna-se também imóvel e escapa à
dominação do Destino. Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à
inteligência, e o ser criado ao ser absoluto, o tempo à eternidade, a
circunferência ao centro, eis aí precisamente o que é a ordem variável do
Destino comparada à unidade imutável da Providência. E é essa ordem do
Destino que faz mover o céu e os outros astros, que mantém a harmonia entre os
elementos e estabelece entre eles uma mudança alternada de formas e
qualidades; ela renova todos os seres que nascem e morrem sem qualquer
modificação, permitindo aos seres pequenos e a suas sementes crescerem
segundo sua natureza. É essa mesma ordem do Destino que tece os liames das
ações dos seres humanos às suas diferentes fortunas segundo um encadeamento
imutável de causas, dado que têm sua origem na Providência. Assim sendo, o
universo é regido da melhor maneira dado que a indivisibilidade, que é a sede da
inteligência divina, produz um encadeamento inevitável de causas, e, por outro
lado, esse encadeamento domina por sua imutabilidade os seres sujeitos à
transformação, que, sem ele, estariam abandonados ao acaso. E é dessa forma
que, mesmo se tua incapacidade de apreender o encadeamento das coisas leva-
te a ver somente confusão e desordem em todas as coisas, tudo é regido por uma
lei que orienta todas as coisas para o bem. Com efeito, não há nada que ocorra
tendo em vista o mal, mesmo no caso dos malfeitores; eles, como foi
amplamente demonstrado, procuram o bem, mas se desviam do caminho devido
a uma deplorável ignorância, e evidentemente não seria um encadeamento de
fatos que tivesse sua origem no bem supremo que poderia afastá-los de seu
próprio princípio. ‘No entanto’, dirias tu, ‘pode-se imaginar confusão maior que
aquela na qual os bons experimentam tanto a adversidade quanto a prosperidade
e na qual os malfeitores vêem realizar-se tanto o que desejam quanto o que não
desejam?’ Ah! Acaso os homens seriam suficientemente inteligentes para ter
sempre razão quando julgam alguém bom ou mau? A esse respeito, os juízos dos
homens são discordantes, e os homens que a alguns parecem merecer a
recompensa e a outros o castigo são os mesmos. No entanto, admitamos que haja
um homem capaz de distinguir os bons dos malfeitores: seria ele também
realmente capaz de observar o temperamento íntimo das almas? Na realidade,
surpreendendo-te assim em nada diferes daquele que não sabe por que, quando
se não goza de boa saúde, os alimentos doces são mais apropriados a uns e os
alimentos ácidos a outros, e também por que a medicina suave tem sucesso em
certos doentes enquanto outros necessitam de medicina mais violenta. Isso, no
entanto, não é nada surpreendente para o médico que distingue, segundo os casos,
graus e diferenças na doença e mesmo na saúde. E, por outro lado, o que te
parece ser a saúde das almas senão a bondade? E a sua doença, a maldade? E
quem é que preserva as coisas boas e afasta as más senão Deus, mestre e
médico das almas? Pois é ele quem, ao volver o olhar de seu posto de observação
que é a Providência, reconhece o que convém a cada um e lhe aplica o
tratamento que sabe ser o mais adequado. É então que intervém o fato
surpreendente que é a realização do Destino, quando Deus realiza
conscientemente algo que causa espanto aos ignorantes. Com efeito, se eu
quisesse limitar-me a lembrar alguns exemplos acessíveis à razão humana para
ilustrar a profundidade de Deus, quando vês em alguém a encarnação da justiça
e uma perfeita eqüidade, a Providência, que tudo sabe, tem um juízo inverso a
respeito dele; nosso amigo Lucano nos faz notar que ‘se a causa do vencedor
deve aos deuses o seu favor, a do vencido tem o de Catão por si?’ Por
conseguinte, tudo o que vês acontecer aqui de contrário a tuas expectativas é na
verdade a expressão da ordem que mais convém ao universo, mesmo se, a teus
olhos, pareça ser uma desordem onde reina a confusão. Suponhamos a existência
de alguém cujos costumes fossem suficientemente bons para que a seu respeito o
julgamento divino e o humano coincidissem; mas, se lhe falta força de espírito e
se alguma contrariedade o assalta, corre o risco de cessar de cultivar uma virtude
que não lhe permitirá manter a Fortuna a seu favor. É essa a razão por que uma
sábia repartição arranja as coisas para ele, a quem a virtude poderia ser
diminuída pela adversidade, a fim de que se evite sofrer algo para o que não está
preparado. Suponhamos a existência de outro homem, virtuoso em todos os
pontos, santo e próximo a Deus; a idéia de que tal homem possa ser atingido por
não importa que tipo de mal parece tão sacrílega à Providência que ela nem
sequer permite que a menor doença corporal venha acometê-lo. Como de fato
diz um que é mais eminente que eu: ‘O corpo do homem amado pelos deuses
está pleno de força.’9 Além disso, freqüentemente a direção dos negócios
humanos é confiada aos bons para que se coloque um freio nas extravagâncias
da maldade. A alguns, a Providência, segundo o seu temperamento, envia uma
mistura de bens e males: ela atiça uns para evitar que uma felicidade muito
prolongada os corrompa; permite a outros que sejam duramente golpeados, a
fim de que suas virtudes se reforcem pela prática e pelo hábito da paciência. Uns
temem mais do que deveriam os males que podem suportar; outros desprezam
temerariamente penas que excedem suas forças; é para fazer com que uns e
outros se conheçam melhor que Deus lhes envia essas provas. Uns adquirem ao
preço de uma morte gloriosa o respeito dos homens por seu nome; outros, não se
dobrando à tortura, dão exemplo a todos mostrando que os males não podem
prevalecer sobre o mérito. Ora, que essas provas aconteçam como convém, de
maneira ordenada e no interesse daqueles sobre os quais elas se abatem, não se
pode duvidar. Pois o fato de os malfeitores receberem um tratamento ora
desagradável, ora conforme aos seus desejos segue a mesma razão; e, quanto ao
mau tratamento que os malfeitores recebem, ninguém evidentemente se espanta,
pois todos consideram que bem o merecem. E, na verdade, seus castigos
dissuadem os outros de fazerem o mesmo, corrigindo dessa forma todos a quem
são expostos; mas, quando lhes acontecem coisas agradáveis, trata-se de uma
grande lição para os homens de bem, que aprendem assim como devem
considerar essa forma de prosperidade, que freqüentemente está a serviço dos
malfeitores. Quanto a esse assunto, creio também que uma tal repartição se deve
ao fato de haver homens de uma natureza tão impulsiva e brutal que a miséria
poderia levá-los a cometer os piores crimes; assegurando-lhes conforto material
a Providência cuida de sua doença. Este, sentindo sua consciência manchada
pela desonra e comparando-se a si mesmo com a sua Fortuna, teme mais que os
outros perder os bens que constituem sua alegria. E, por medo de perder seu
tesouro, modificará seu comportamento e corrigirá seus vícios. Outros sofrem
um desastre merecido por terem abusado de sua prosperidade. Alguns
receberam o direito de punir a fim de que as pessoas honestas fossem postas à
prova, e os malfeitores, castigados. De fato, assim como não há nenhuma aliança
possível entre os honestos e os malfeitores, estes últimos também não se
entendem entre si. E como poderiam, visto que estão em desacordo consigo
mesmos, cuja consciência é torturada pelas suas más ações, e que cometem atos
dos quais logo se arrependem? É dessa forma que a Providência nos revela algo
surpreendente: o fato de os malfeitores tornarem bons outros malfeitores. Alguns,
com efeito, pelo fato de terem sido maltratados pelas piores pessoas que existem,
passam a odiá-las e a odiar os que fazem o mal, e reencontram sua virtude moral
procurando não mais se assemelhar àqueles que agora detestam. Somente a
Divindade possui esse poder de transformar o mal em bem, servir-se dele e daí
fazer desabrochar efeitos salutares. Pois há uma ordem geral que abarca todas as
coisas; o que escapa de um lado aparece sempre de outro, a fim de que, no reino
da Providência, nada seja deixado ao acaso, ‘pois só um Deus poderia explicar
esses mistérios?’” “Mas acho difícil falar dessas coisas como se eu fosse um
deus.10” “Não há homem algum que possa compreender apenas com seus
recursos nem explicar com palavras todo o mecanismo da obra divina. Que
baste, portanto, ter compreendido apenas isto: é o mesmo Deus, criador de todos
os seres, que dispõe todas as coisas orientando-as para o bem e que, do mesmo
modo, assimila e mantém próximos a si todos os seres por ele criados, servindo-
se do Destino para eliminar o mal de onde se exerce a atividade divina. E é dessa
forma que, se observas a repartição que efetua a Providência daquilo que se
acredita ocorrer ao acaso sobre a Terra, poderás ver que não há aí nenhum mal.
Mas percebo que teu espírito, fatigado pela dificuldade dos raciocínios e esgotado
pela gravidade do assunto, anseia impacientemente pelas doçuras da poesia.
Bebe então desse doce sumo e encontrarás forças para ir mais longe.
IV. 12
IV. 13
IV. 14
V. 1
Mal havia ela acabado de falar, começou a examinar outro assunto. Então eu
lhe disse: “Teus conselhos são sem dúvida certos e dignos de tua autoridade, mas
o que acabas de dizer a respeito da Providência, isto é, que essa questão não pode
ser tratada independentemente de muitas outras questões, pude eu próprio
experimentar. Peço-te portanto que agora me digas se achas que o acaso existe
realmente e, caso exista, em que ele consiste.” E ela: “Apresso-me a cumprir
minha promessa e abrir-te o caminho que leva diretamente à tua pátria. Ora,
essas questões, embora seu entendimento seja útil, nos desviarão um pouco do
nosso caminho, e temo que tais desvios te fatiguem e talvez até te impeçam de
percorreres até o fim o caminho reto.” “Não”, disse eu, “não tens nada a temer,
pois essa será para mim uma ocasião de refrear minha inquietude e de me
instruir sobre temas que tanto me interessam. Cada ponto de tua argumentação
me parecerá irrefutável, e nenhuma das conclusões será posta em dúvida.” E
ela: “Vou então satisfazer o teu desejo”, e logo começou da seguinte maneira:
“Se definirmos o acaso como um acontecimento produzido acidentalmente e não
por uma seqüência de qualquer tipo de causa, longe de consentir na definição,
considero essa palavra absolutamente desprovida de sentido, salvo a significação
da realidade a que ela se refere. Com efeito, se Deus obriga todas as coisas a se
dobrarem às suas leis, onde haveria lugar para o acaso? Nada pode ser feito a
partir do nada: esse é um axioma cuja verdade jamais foi contestada, embora os
antigos o fizessem princípio, não do princípio criador, mas da matéria criada, isto
é, da natureza sob todas as suas formas. Ora, se um fato se produzisse sem causa,
poderíamos dizer que ele surgiu do nada. E, se isso não pode ocorrer, também o
acaso, tal como o acabamos de definir, não pode se produzir.” “Mas quê!”, disse
eu, “não há nada que possa ser chamado de ‘acaso’ ou ‘acidente’? Ou existirá
uma outra realidade, que escapa à compreensão dos homens, à qual possam
corresponder essas palavras?” Ela respondeu: “Aristóteles, a quem eu tanto amo,
nos fornece na sua Física uma definição ao mesmo tempo breve e próxima da
verdade.” “E qual é?”, perguntei. “Ele diz que toda vez que uma ação é realizada
com um determinado fim, mas algo além do que estava sendo procurado
acontece por uma razão ou outra, isto se chama acaso, como por exemplo
quando alguém cava o solo para fazer um plantio e encontra ali um tesouro que
estava escondido. Pode-se crer com certeza que isso aconteceu fortuitamente e,
no entanto, o que ocorre não provém do nada; o acontecimento tem causas
próprias, cujo conteúdo imprevisto e inesperado parece ter sido produzido pelo
acaso. Pois, se o agricultor não tivesse sulcado o solo e o homem que colocou ali
seu dinheiro não o tivesse escondido no local, o ouro nunca teria sido descoberto.
Tais são portanto as causas desse ganho fortuito que resulta de uma série de
circunstâncias e não de uma ação intencional. Com efeito, nem aquele que
enterrou o ouro nem aquele que revolveu seu campo agiram com a finalidade de
que esse ouro fosse descoberto; mas, como eu já disse, acontece, por uma soma
de circunstâncias, que um revolveu a terra justamente onde o outro havia
escondido o ouro. Podemos portanto definir o acaso como um acontecimento
inesperado, resultado de uma somatória de circunstâncias, que aparece no meio
de ações realizadas com uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal
conjunto de circunstâncias é justamente a ordem que procede de um
encadeamento inevitável e tem como fonte a Providência, que dispõe todas as
coisas em seus lugares e tempo.
V. 2
“Agora concordo e vejo que tudo se passa como dizes”, disse eu. “Mas,
nesse encadeamento de causas solidárias umas às outras, resta-nos ainda um
pouco de livre arbítrio ou o encadeamento do destino abrange também os
movimentos da alma humana?” “Sim”, respondeu ela, “o livre-arbítrio existe, e
nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a
faculdade de julgar. Com efeito, todo ser naturalmente capaz de usar a razão
possui a faculdade do juízo, que lhe permite distinguir cada coisa. Portanto, é ele
que julga o que deve ser evitado e o que deve ser procurado. E, assim, procura-
se tudo aquilo que se julga ser desejável, enquanto se faz de tudo para evitar o
que se julga deva ser evitado. E é dessa forma que os seres providos de razão são
igualmente providos da faculdade de dizer sim ou não. Mas atenta para o fato de
que nem todos os seres a possuem na mesma proporção. De fato, as substâncias
celestes e divinas possuem um juízo profundo, uma vontade sem mácula e a
capacidade de realizar seus desejos. Quanto às almas humanas, são
necessariamente mais livres quando se mantêm na contemplação da inteligência
divina, e menos livres quando descem para juntar-se às coisas corporais, e
menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o fundo da
servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter a posse de sua própria razão.
Pois quando seus olhos deixam de ver a luz da verdade suprema para baixarem
sobre o mundo inferior e as trevas, sua visão logo se distorce sob o véu da
ignorância, e essas almas são perturbadas por uma servidão da qual elas mesmas
são responsáveis, sendo, de uma certa forma, prisioneiras de sua própria
liberdade. E no entanto a compreensão da Providência, que prevê todas as coisas
desde a eternidade, vê tais coisas e dispõe tudo o que está predestinado a cada
uma, segundo seu mérito.
V. 4
V. 5
V. 6
V. 7
E ela então respondeu: “Não é de hoje que tais queixas são feitas à
Providência; Marco Túlio (Cícero), quando abordou as diferentes formas de
divinação, discutiu com veemência sobre essa questão, e tu mesmo por longo
tempo e detalhadamente também a estudaste, mas nenhum de vós pôde até
agora expô-la com suficiente cuidado e rigor. Se o problema continua obscuro é
que o encadeamento do raciocínio humano não se pode aplicar à simplicidade da
presciência divina, e, se ela pudesse ser pensada pelos homens de alguma
maneira, não restaria mais a menor dificuldade. Tentarei expor claramente o
problema, mas somente quando eu compreender o que te aborrece tanto. Com
efeito, eu me pergunto por que não concedes nenhuma pertinência ao raciocínio
daqueles que procuram explicar o problema e cuja opinião é que, dado que a
presciência não é causa dos acontecimentos futuros, ela não impede de modo
algum a existência do livre-arbítrio. Podes encontrar uma prova da necessidade
das coisas futuras a não ser no fato de que as coisas conhecidas de antemão não
podem deixar de se produzir? Conseqüentemente, se o fato de se conhecerem tais
coisas antes não confere nenhuma necessidade às coisas futuras, caso que
reconheceste há pouco, qual seria a razão pela qual a realização das coisas que
dependem da vontade fosse dirigida forçosamente a um termo fixado
anteriormente? Pela necessidade do raciocínio e a fim de que vejas a
conseqüência que daí resulta, suponhamos que não haja a presciência. Supondo-
se isso, os acontecimentos determinados por uma vontade livre estariam sujeitos
à necessidade?” “De forma alguma.” “Suponhamos agora que haja a
presciência, mas que ela não imponha nenhuma necessidade às coisas; segundo
julgo, a vontade manterá sua inteira e absoluta liberdade. Mas tu me dirás que,
mesmo que a presciência não cause necessariamente os acontecimentos futuros,
ela não deixa de ser o sinal de que estes acontecimentos ocorrerão
necessariamente. Por conseguinte, mesmo que não tenha havido presciência, a
realização dos acontecimentos futuros seria claramente estabelecida como
necessária: pois um sinal, seja qual for, indica apenas o que é, mas não pode
criar o que ele indica. Deve-se portanto começar por estabelecer que tudo
acontece como efeito de uma necessidade absoluta, se queremos demonstrar que
a presciência é a marca dessa necessidade, pois, se essa necessidade não existe,
também a presciência por sua vez não pode existir como sinal de algo que não
existe. Portanto, quando queremos provar solidamente a existência de uma coisa,
não é por sinais ou por argumentos extrínsecos que a demonstraremos, mas pelas
razões que lhe são próprias e necessárias. Mas como pode ocorrer que
acontecimentos previstos não se produzam? A objeção teria cabimento se eu
pretendesse que os acontecimentos previstos pela Providência pudessem não
ocorrer; mas o que eu afirmo é que esses acontecimentos, se se realizaram,
tinham neles mesmos, por sua natureza, alguma necessidade que os obrigou a se
produzir – creio que poderás compreender isso facilmente. Com efeito, quando
vemos uma infinidade de acontecimentos desenrolar-se sob nossos olhares
enquanto se estão realizando – como por exemplo os exercícios que os
condutores de carros fazem diante de nós, e todos os acontecimentos desse
gênero –, acaso algum desses atos é determinado pela necessidade? De forma
nenhuma! Não distinguiríamos aí mais um ato de destreza se todos esses
movimentos fossem forçados. Ora, os atos que não são necessários no momento
em que se realizam também não o eram anteriormente, mesmo se eles
devessem acontecer mais tarde. Eis por que há acontecimentos que se irão
produzir e cuja realização não é minimamente necessária. Não posso crer que
alguém diga que o que acontece agora não tenha sido um acontecimento futuro
no passado, antes que se realizasse. Eis, portanto, o gênero de acontecimentos
que, embora já antes conhecidos, se realizam livremente, pois, assim como o
conhecimento do presente não torna necessários os fatos que se realizam, da
mesma forma a presciência do que vai acontecer não impõe nenhuma
necessidade aos acontecimentos futuros. Mas tu dizes que o principal ponto de
controvérsia é precisamente saber se é possível conhecer de antemão os
acontecimentos cuja realização não é necessária. Isso parece a ti implicar uma
contradição, pois, segundo pensas, se os acontecimentos são previstos, eles têm
de ser necessários: se negamos a sua necessidade negamos também a
presciência, já que a certeza não pode se aplicar senão a uma verdade certa.
Com efeito, tu pensas que emitir um juízo que não se conforma à realidade
significa afastar-se do caráter absoluto da verdade. Pois o fato de que
acontecimentos dúbios tenham sido previstos como que para acontecer
necessariamente é para ti um erro de juízo, não mais a certeza infalível, já que
do teu ponto de vista considerar as coisas de forma diferente do que são significa
afastar-se da rigorosa precisão da certeza absoluta. E a causa desse erro é que
todos pensam que conhecem algo a partir das propriedades e da natureza do que
é conhecido, enquanto o que ocorre é justamente o contrário. De fato, tudo o que
é conhecido não é compreendido segundo suas características, mas sim segundo
a capacidade daqueles que procuram conhecer. Usarei de um breve exemplo
para maior compreensão do que digo. De fato, a circularidade de um corpo
esférico não é constatada do mesmo modo pela vista e pelo tato. O olho, estando
distante, percebe-o de uma só vez, graças aos raios que emite; por outro lado o
tato, envolvendo a forma esférica e se deslocando pela superfície do corpo,
percebe seu caráter esférico por etapas. Também o homem é percebido de
maneira diversa conforme é considerado segundo os sentidos, a imaginação, a
razão ou a inteligência. Os sentidos percebem-no do ponto de vista da matéria
que lhe serve de suporte, enquanto a imaginação avalia apenas a forma,
abstraindo a matéria. A razão, por sua vez, ultrapassa a forma e, tendo em vista
as características gerais de todos os indivíduos, concebe segundo a idéia de
espécie. Mas o olhar da inteligência eleva-se ainda mais. Ultrapassando a esfera
das idéias gerais, apreende a idéia da forma absoluta pelo simples poder do
pensamento. O principal fato a ser considerado é que as faculdades superiores
podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se
ao nível das que lhes são superiores. Com efeito, os sentidos não podem perceber
nada além da matéria; a imaginação não é capaz de apreender a idéia geral da
espécie; e a razão não pode conceber a forma absoluta. A inteligência, no
entanto, como que pairando acima de todas as coisas, não apenas vê a forma
absoluta como distingue também a matéria contida na forma, e da mesma
maneira distingue o absoluto, coisa que as outras faculdades são incapazes de
fazer. Assim, a inteligência, como a razão, conhece as idéias gerais; a
imaginação, a forma abstrata; os sentidos, a matéria. No entanto, ela não tem
necessidade nem da razão, nem da imaginação, nem dos sentidos: se é permitido
expressar-me desta forma, ela apreende tudo de maneira absoluta e por uma
única visão do espírito. Da mesma forma a razão, quando concebe uma idéia
geral, não tem necessidade nem da imaginação nem da sensação para
compreender os fatos que são do âmbito dessas duas faculdades. Pois é ela que,
de acordo com a idéia que faz do gênero, nos deu esta definição: ‘o homem é um
animal bípede racional’. Ora, essa idéia, precisamente pelo fato de ser uma idéia
geral, implica, como todos concordam, noções que são do âmbito da imaginação
e dos sentidos; e no entanto não foi nem pelos sentidos nem pela imaginação que
a razão as adquiriu, mas por uma concepção que lhe é própria. E finalmente a
imaginação, embora tenha no princípio se utilizado dos sentidos para aprender a
ver e a conceber as formas pode, sem o concurso dos sentidos, representar todos
os objetos sensíveis, e é capaz de fazê-lo não pelos sentidos, mas por suas
próprias qualidades. Vês agora como todo o conhecimento humano depende de
suas faculdades e não da natureza própria das coisas que lhe são alheias? E isso
não acontece sem razão, pois, dado que todo juízo é um ato daquele que o
pronuncia, é preciso que cada um aja de acordo com suas próprias faculdades, e
não pela influência de uma causa externa.
V. 8
V. 9
V. 10
V. 11
Uma vez que já foi demonstrado que tudo o que é conhecido não o é por sua
própria natureza, mas a partir da natureza daqueles que buscam conhecer,
vejamos agora, nos limites que nos são permitidos, qual é a natureza da
substância divina a fim de que possamos também distinguir de que espécie é seu
saber. Todas as pessoas que vivem de acordo com a razão partilham da certeza
de que Deus é eterno. Procuremos portanto ver o que é a eternidade, pois é ela
que nos esclarece sobre a natureza divina bem como sobre sua sabedoria. Pois
bem, a eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como
podemos concebê-la conforme ao que é temporal. Com efeito, todo ser que vive
o presente no tempo vem do passado e caminha para o futuro, e não há nada
relacionado ao tempo que possa abarcar toda a extensão de uma vida ao mesmo
tempo. Esses seres não podem apreender novamente no dia seguinte o que já foi
perdido no anterior, e numa vida vivida dia a dia só se pode viver o momento
presente, transitório e fugaz. Portanto, aquele que está sujeito à lei do tempo,
mesmo se, como pensava Aristóteles, sempre começa e jamais cessa de ser e
cuja vida se desenrola segundo o ritmo de um tempo ilimitado, não pode no
entanto ser concebido como um ser eterno. Pois, mesmo que a extensão de sua
vida seja ilimitada, não pode apreender e abarcar totalmente e de uma só vez sua
vida, já que não possui mais o passado e ainda não desfrutou o futuro. Por
conseguinte, aquele que apreende e possui de uma só vez a totalidade da
plenitude de uma vida sem limites, à qual não falta nada do futuro nem nada
escapa do passado, esse sim pode ser considerado com razão como um ser
eterno, e é necessário que ele esteja sempre presente e em plena posse de si
mesmo, já que para ele o presente abarca todo o tempo ilimitado. Portanto, não
têm razão aqueles que, ao ouvirem dizer que Platão acreditava que este mundo
não teve começo e tampouco terá um fim no tempo, concluem que desse modo
o mundo criado partilha da eternidade de seu criador. De fato, uma coisa é
percorrer uma vida sem limites, coisa que Platão atribui ao mundo, e outra é
abarcar de uma só vez toda a presença de uma vida sem limites, o que
evidentemente é próprio da inteligência divina. E Deus tampouco deve ser
concebido como anterior à criação quanto à quantidade de tempo que decorreu,
mas sobretudo com relação à indivisibilidade que caracteriza sua natureza. Com
efeito, é essa natureza presente de uma vida imóvel que imita o desenrolar
ilimitado do tempo; e, como o tempo não pode reproduzi-lo nem se igualar a ele,
degrada-se passando da imobilidade ao movimento e limita-se, passando da
indivisibilidade desse presente a uma quantidade infinita de futuro e de passado.
E, uma vez que ele não pode estar em plena posse da plenitude da vida, ao
mesmo tempo devido ao fato de que não cessa de passar de uma forma a outra,
dá a impressão de assemelhar-se até certo ponto àquilo que não pode realizar
nem imitar, pois está atado ao tipo de presente breve e fugidio que, por ter certa
semelhança com o presente permanente, confere a tudo o que toca a impressão
de que o ser é permanente. Mas, como ele não pôde ficar na permanência, o
tempo se deixou levar pelo caminho do infinito, e dessa forma perdeu-se num
caminho onde não pode abarcar a plenitude em sua permanência. Eis por que, se
quisermos definir corretamente as coisas, diremos como Platão que Deus com
certeza é eterno, mas o mundo apenas perpétuo. Portanto, uma vez que todo juízo
abarca segundo sua própria natureza aquilo que lhe é submetido e que Deus tem
uma natureza sempre eterna e presente, também seu saber, que ultrapassa todo o
movimento do tempo, permanece imutável em seu presente e, abarcando os
espaços infinitos do passado e do futuro, considera a todos os acontecimentos
como se eles já estivessem se desenrolando. É dessa forma que, se queres ter
uma idéia de sua presciência, pela qual ele distingue todas as coisas, estarás mais
próximo da verdade se a considerares não como a presciência do futuro, mas
como a ciência de uma eminência a qual não se pode ultrapassar; assim,
preferimos chamá-la de previdência, e não previsão, pois ela se estabelece longe
do que há mais abaixo, e é dessa forma que dos cimos do universo ela
supervisiona todas as coisas. Portanto, por que queres tu que aquilo sobre o qual
se espalha a luz divina se torne necessário, quando nem os próprios homens
tornam necessário aquilo que querem? Acaso o teu olhar confere a menor
necessidade àquilo que vês no presente?” “Não”, respondi. “Ora, se é permitido
comparar o presente divino ao presente humano, do mesmo modo que tu vês
certas coisas neste presente temporal que é o teu, assim Deus discerne todas as
coisas em seu presente eterno. Essa é a razão por que a presciência divina não
modifica a natureza das coisas em suas propriedades e as vê presentes em seus
lugares tais como elas se realizarão um dia no tempo. Ela não se engana com o
juízo que faz das coisas e, de uma só visada de sua inteligência, distingue
perfeitamente o que ocorrerá de maneira necessária; tal como vós homens vedes
alguém andando sobre a terra e o sol se levantar sobre o céu: mesmo se
percebeis as duas coisas ocorrerem ao mesmo tempo, distinguis também uma da
outra e considerais a primeira como efeito do livre-arbítrio e a segunda como
necessária. Da mesma maneira, vendo de cima todas as coisas, o olhar divino
não modifica a qualidade das coisas que estão corretamente presentes em seus
devidos lugares, mas que são futuras com relação ao tempo. E é por isso que não
se trata de uma opinião, mas sim de um conhecimento embasado na verdade
quando Deus sabe que uma coisa vai se produzir e em relação à qual ele não
ignora que esteja livre da necessidade de se produzir. Mas, se tu me retrucas
dizendo que um acontecimento que Deus prevê não pode deixar de ocorrer e
mesmo assim ele não se produz, levado pelas amarras às quais chamas de
necessidade, concordarei que a necessidade existe realmente, mas não pode ser
compreendida senão por um espírito habituado à meditação das coisas divinas.
Eu diria até que esse mesmo acontecimento que está por vir é, em verdade,
necessário se o remetemos ao conhecimento que Deus dele tem mas,
considerado em sua própria natureza, ele é independente de toda obrigação. Com
efeito, há duas espécies de necessidade: uma, absoluta, tal como aquela que
sujeita os homens à morte; a outra, condicional, como por exemplo quando sabes
que um homem está andando e ele realmente está. Pois o que todos sabem não
pode diferir do conhecimento dessa coisa, mas essa condição não implica de
forma alguma uma necessidade simples. Com efeito, essa necessidade não
resulta da natureza própria de alguma coisa, mas do acréscimo de uma condição,
pois nenhuma necessidade obriga alguém que caminha por sua própria vontade a
seguir outra direção, mesmo se, enquanto ele anda, siga uma direção.
Conseqüentemente, se a Providência vê algo como estando presente, esse algo
necessariamente deve estar, embora ela não possa imprimir nenhuma
necessidade que esteja ligada a uma natureza distinta. Ora, Deus vê como
presentes os acontecimentos futuros que resultam do livre-arbítrio. Por
conseguinte, esses acontecimentos, do ponto de vista do olhar divino, tornam-se
necessários e submetidos a uma condição que é o conhecimento divino; mas,
considerados em si mesmos, não perdem a absoluta liberdade de sua natureza.
Daí resulta que todos os acontecimentos que Deus conhece de antemão e que vão
se produzir produzir-se-ão com certeza; mas alguns deles provêm do livre-
arbítrio e, embora se produzam, não perdem ao se realizarem sua natureza
própria, segundo a qual, antes que ocorram, poderiam não acontecer. E que
importa se eles não são necessários já que, devido à condição do saber divino,
ocorrerão mesmo de certa forma, como se estivessem sujeitos à necessidade? É
precisamente o que ocorre nos exemplos que acabei de mencionar: o sol que se
levanta e o homem que caminha. No momento em que esses acontecimentos se
produzem, não podem deixar de se realizar, e no entanto um deles, antes mesmo
que ocorresse, deveria necessariamente ocorrer, e o outro não. E é dessa forma
que Deus considera todas as coisas em seu presente eterno: elas se realizarão
com certeza, mas algumas delas procedem forçosamente da necessidade das
coisas, enquanto outras procedem do poder daquelas que se realizam. Portanto,
não nos enganamos ao dizer que, se vemos as coisas da perspectiva divina, são
necessárias; mas, consideradas nelas mesmas, estão livres de qualquer vínculo
com a necessidade. Acontece o mesmo com tudo o que está relacionado aos
sentidos: se os encaramos do ponto de vista da razão, são universais, mas, se os
consideramos em si mesmos, são singulares; se estivesse em teu poder mudar os
planos, tornarias vã a Providência, uma vez que talvez pudesses modificar o que
ela conhece previamente. Eu responderia que podes mesmo mudar o rumo de
teus projetos mas, dado que a verdade da Providência vê em seu presente que
podes realizar tudo conforme ela deseja ou tomar outro rumo que é o teu, não
podes de forma alguma evitar a presciência divina, pois não podes escapar do
olhar sempre presente, mesmo se tomas outro rumo, recorrendo a teu livre-
arbítrio. Que dirias então? O saber divino poderia ser modificado por tuas
disposições a ponto de, conforme quisesses tal ou tal coisa, não soubesse ele de
tuas hesitações? De forma alguma! O olhar divino precede de longe todo o
futuro, e ele o faz vir no presente segundo o modo de conhecimento que lhe é
peculiar, sem passar, como tu crês, da presciência de uma coisa à outra, mas, de
um só golpe de vista, ele prevê e abarca tuas mudanças sem se modificar. E
Deus possui essa imediaticidade da compreensão e visão de todas as coisas, não
da realização de acontecimentos futuros somente, mas de sua própria
indivisibilidade. E é também dessa forma que podemos resolver a dificuldade
que acabas de mencionar e que se baseia no sacrilégio de se dizer que nossas
ações futuras fornecem a causalidade do saber de Deus. Na verdade, a natureza
desse saber, que abarca todas as coisas num conhecimento imediato, fixa todas
as coisas num limite sem depender em nada dos acontecimentos futuros. Sendo
assim, os mortais conservam seu livre-arbítrio intacto, e não há nenhuma
injustiça nas leis que propõem recompensas e punições às vontades que são
absolutamente livres de toda necessidade. Aquele que nos observa do alto, que
perdura eternamente, que tem a presciência de todas as coisas, é Deus, que, com
a eternidade sempre presente de seu olhar, concorda com a qualidade futura de
nossas ações distribuindo aos bons as recompensas e aos maus os castigos. E não
é em vão que colocamos em Deus nossas esperanças e preces, as quais, sendo
justas, não podem permanecer sem algum efeito. Afastai-vos portanto do mal,
cultivai o bem, elevai vossas almas à altura de vossas justas esperanças e fazei
chegar aos céus vossas humildes preces. A menos que queirais esconder a
verdade, é grande a necessidade que tendes de viver segundo o bem, quando agis
sob os olhos de um juiz que tudo vê.”
11. Homero, Ilíada.