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Guia para o Tratamento da Dor em

Contextos de Poucos Recursos

Editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA DOR (IASP) ®


Guia para o Tratamento da Dor
em Contextos de Poucos Recursos
Material educativo escrito por uma equipe de autores multidisciplinar e multinacional,
para distribuição geral aos prestadores de cuidados de saúde

Editores
Andreas Kopf, MD
Department of Anesthesiology
Charité Medical University
Berlin, Germany

Nilesh B. Patel, PhD


Department of Medical Physiology
University of Nairobi
Nairobi, Kenya
© 2010 IASP®

International Association for the Study of Pain® (Associação Internacional para o Estudo da Dor)

Todos os direitos reservados. Este material só pode ser utilizado para propósitos educacionais e de
treino com a menção da fonte de origem
É proibida a sua venda ou uso comercial

Translated from the original English edition, published in 2009 under the title
Guide to Pain Management in Low-Resource Settings.

Os tópicos da pesquisa e tratamento da dor foram selecionados para publicação, mas as informações fornecidas
e opiniões expressas não envolveram qualquer verificação dos resultados, conclusões e opiniões por parte da
IASP. Assim, as opiniões expressas no Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos não refletem
necessariamente as da IASP ou dos Diretores e Conselheiros.

A IASP não assume nenhuma responsabilidade por qualquer dano e /ou danos a pessoas ou bens, em questões
de responsabilidade civil, negligência, ou qualquer uso de quaisquer métodos, produtos, instrução ou ideias
contidas no material aqui contido. Devido ao rápido avanço da ciência médica, a editora recomenda que deve
haver uma verificação independente dos diagnósticos e dosagens de medicamentos. A menção de determinados
produtos farmacêuticos e qualquer procedimento médico não implica o endosso ou recomendação por parte
dos editores, autores ou IASP em favor de outros medicamentos ou procedimentos que não são abordados no
texto. São esperados erros e omissões.

Apoiado por uma bolsa educacional da International Association for the Study of Pain

Uma versão preliminar deste texto foi impressa em 2009

A presente versão em língua Portuguesa do Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos foi produzida
no âmbito de uma colaboração entre a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) e a Sociedade
Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), sob a coordenação de José Castro Lopes, elemento de ligação da IASP
.
aos seus capítulos na América Latina.

Agradece-se a valiosa colaboração de: Ana Marcos, Ana Valentim, Ananda Fernandes, Cristina Pinto, Daniel
Pozza, Diamantino Pereira, Duarte Correia, Durval Campos Kraychete, Fabiola Peixoto Minson, Fani Neto,
Filipe Antunes, Graça Carrapatoso, Isaura Tavares, Ivone Nabais, João Batista Garcia, João Mota Dias, Jorge
Cortez, José Osvaldo Oliveira Júnior, José Tadeu Tisseroli Siqueira, Luis Agualusa, Manuel Pedro Ribeiro da Silva,
Maria José Ramalho, Maria Rosa Fragoso, Rosário Alonso, Susana Abreu e Teresa Sarmento.

A tradução da obra original foi parcialmente financiada com o apoio da Fundação Grünenthal – Portugal.

Translated from the original English edition, published in 2010 under the title Guide to Pain Management in Low-
Resource Settings.

Published by:
IASP Press®
International Association for the Study of Pain
111 Queen Anne Ave N, Suite 501
Seattle, WA 98109-4955, USA
Fax: 206-283-9403
www.iasp-pain.org
Índice

Prefácio vii
Introdução viii

Bases
1. Histórico, Definições e Opiniões Atuais 1
Wilfried Witte and Christoph Stein
2. Obstáculos ao Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos 6
Olaitan A Soyannwo
3. Fisiologia da dor 9
Nilesh B. Patel
4. Fatores Psicológicos na Dor Crónica 14
Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfi ngsten, and Vladimir Hrabal
5. Influências Etnoculturais e de Género na Dor 23
Angela Mailis-Gagnon
6. Farmacologia dos Analgésicos (Exceto Opioides) 30
Kay Brune
7. Os Opioides na Medicina da Dor 36
Michael Schäfer
8. Princípios dos Cuidados Paliativos 44
Lukas Radbruch and Julia Downing
9. Terapêuticas Complementares para a Gestão da Dor 57
Barrie Cassileth and Jyothirmai Gubili

Avaliação Física e Psicológica do Doente


10. Antecedentes de dor e Avaliação da Dor 65
Richard A. Powell, Julia Downing, Henry Ddungu, and Faith N. Mwangi-Powell
11. Exame Físico: Neurologia 81
Paul Kioy and Andreas Kopf
12.Exame Físico Músculo-Esquelético 90
Richard Fisher
13. Avaliação Psicológica do Paciente com Dor Crônica 97
Claudia Schulz-Gibbins

iii
Gestão da Dor Aguda
14. Analgesia Pós-Operatória em Cirurgias Major 108
Frank Boni
15. Traumatismo Agudo e Dor Pré-Operatória 122
O. Aisuodionoe-Shadrach
16. O Tratamento da Dor em Cirurgia Ambulatória/de 24 Horas 127
Andrew Amata
17. Gestão Farmacológica da Dor em Obstetrícia 131
Katarina Jankovic

Gestão da Dor Oncológica


18.Cancro Abdominal, Obstipação e Anorexia 145
Andreas Kopf
19. Metástases Ósseas com Dor Irruptiva 155
M. Omar Tawfik
20. Câncer de Pulmão com Plexopatia 164
Rainer Sabatowski and Hans J. Gerbershagen
21. Câncer de Pulmão com Problemas Respiratórios 172
Th omas Jehser
22. Câncer Hematológico com Náusea e Vômitos 179
Justin Baker, Paul Ribeiro, and Javier Kane

Gestão da Dor Neuropática


23. Neuropatia Diabética Dolorosa 187
Gaman Mohammed
24. Gestão da Nevralgia Pós-Herpética 193
Maged El-Ansary
25. Dor Neuropática Central 201
Maija Haanpää and Aki Hietaharju
26. Gestão da Dor em Adultos e Crianças com VIH/SIDA 208
Glenda E. Gray, Fatima Laher, and Erica Lazarus

Gestão da Dor Crónica Não Oncológica


27. Dor nas Costas Crónica Inespecífica 221
Mathew O.B. Olaogun and Andreas Kopf
28. Cefaleia 229
Arnaud Fumal and Jean Schoenen

iv
29. Dor Reumática 238
Ferydoun Davatchi

Situações Terapêuticas Difíceis e Técnicas


30. Dismenorreia, Dor Pélvica e Endometriose 245
Susan Evans
31. Considerações sobre o Tratamento da dor Durante Gestação e Aleitamento 252
Michael Paech
32. Dor na Anemia Falciforme 263
Paula Tanabe and Knox H. Todd
33. Síndroma Dolorosa Regional Complexa 267
Andreas Schwarzer and Christoph Maier
34. Tratamento da Dor em Crianças 274
Dilip Pawar and Lars Garten
35. Dor na Velhice e Demência 291
Andreas Kopf
36. Dor do Tipo Breakthroug. Emergência da Dor e Dor Incidental 299
Gona Ali and Andreas Kopf
37. Controlo da Dor em Unidades de Cuidados Intensivos 306
Josephine M. Thorp and Sabu James
38. Bloqueios Nervosos Diagnósticos e Prognósticos 317
Steven D. Waldman
39. Cefaleia Pós-Punção da Dura Mater 325
Winfried Meissner
40. Radioterapia Citostática 329
Lutz Moser
41. A Função da Acupuntura na Abordagem da Dor 333
Natalia Samoilova and Andreas Kopf

Planeamento e Organização da Gestão da Dor


42. Como Desenvolver um Plano de Tratamento da Dor 342
M.R. Rajagopal
43. Recursos para Garantir a Disponibilidade de Opioides 347
David E. Joranson
44. Configurando Diretrizes para Necessidades Locais 357
Uriah Guevara-Lopez and and Alfredo Covarrubias-Gomez

v
Pérolas de Sabedoria
45. Técnicas para Bloqueios Nervosos Usados com Frequência 365
Corrie Avenant
46. Princípios Psicológicos do Tratamento da Dor 369
Claudia Schulz-Gibbins
47. Insights da Fisiologia Clínica 372
Rolf-Detlef Treede
48. Suplementos Fitoterápicos e Outros 375
Joel Gagnier
49. Perfil Farmacológico, Doses e Efeitos Adversos de Medicamentos Usados para o Tratamento da Dor 377
Barbara Schlisio

Apêndice
Glossário 387
Andreas Kopf

vi
Prefácio
A convicção de que o tratamento da dor é um profissionais de saúde em geral, era uma barreira
direito humano tem sido aceite por muitos há muito para a disponibilidade e uso desses fármacos,
tempo, mas em 2004, a afirmação de que "o alívio embora, de facto, esse medo seja principalmente
da dor deve ser um direito humano" foi considerada uma consequência da má formação.
tão importante que foi publicada após o lançamento A produção deste manual é oportuna porque irá
da primeira campanha global contra a Dor em 2004, preencher uma lacuna importante no conhecimento
em Genebra, pela IASP International Association for the de quem lida com pessoas com dor nos países em
Study of Pain (Associação Internacional para o desenvolvimento. Abrange a ciência básica da dor, e
Estudo da Dor), a EFIC European Federation of talvez seja o único, a abordar o racional para o uso
Chapters of the IASP (Federação Europeia dos de medicamentos naturais. Também proporciona
Capítulos da IASP), e a WHO World Health conhecimento aprofundado e conselhos sobre a
Organization (Organização Mundial da Saúde). gestão dos principais distúrbios dolorosos que
Infelizmente, um grande número dos doentes que ocorrem nos países em desenvolvimento, incluindo
sofrem com dor e, especialmente, nos países em os dois grandes flagelos do presente, Cancro e
desenvolvimento, não recebem tratamento para a VIH/SIDA.
dor aguda e, mais especialmente, para a dor crónica. Este livro deve estar disponível para todos os
Existem várias razões para este problema, que responsáveis pelo tratamento da dor, seja aguda ou
incluem a falta de profissionais de saúde crónica, trabalhem em cidades, vilas, ou província,
adequadamente treinados, a indisponibilidade de porque seguramente vão considerá-lo uma ajuda
fármacos, especialmente opióides, o receio da inestimável para a sua prática.
utilização de opióides, devido à crença errónea de
que, inevitavelmente, o uso destas substâncias Professor Sir Michael Bond
causam dependência. O primeiro grande passo na Glasgow, Escócia
melhoria do tratamento dos doentes com dor nos Agosto 2009
países em desenvolvimento é proporcionar-lhes,
profissionais treinados, não apenas médicos e
enfermeiros, mas também os demais profissionais
de saúde.
Uma pesquisa realizada pela IASP em 2007 revelou
que entre os seus membros nos países em
desenvolvimento, poucos reconheceram ter
recebido uma educação adequada na compreensão e
tratamento da dor enquanto universitários.
Na maioria das regiões do mundo, menos de
metade receberam formação no tratamento da dor,
mesmo que fosse uma parte significativa do seu
trabalho diário. Não é de estranhar, portanto, que
91% relatassem que a falta de formação tenha sido a
principal barreira para o tratamento da dor no seu
país. É claro que em muitos países em
desenvolvimento, o alívio da dor não é uma
prioridade, e que a preocupação com doenças
infeciosas como a malária, a tuberculose, e acima de
tudo VIH/SIDA tem precedência. De facto, 75%
dos que responderam à pesquisa da IASP,
considerou a não prioridade ao controlo da dor um
falha do governo e o segundo obstáculo mais
comum para a melhoria da qualidade do tratamento.
Quase todos referiram que o medo da dependência
de opióides, entre médicos, enfermeiros e

vii
Introdução
A dor é amplamente subtratada, causando Informações sobre a dor e o seu tratamento são
sofrimento e perdas financeiras aos indivíduos e à cruciais. Todos os profissionais de saúde irão tratar
sociedade. Acredita-se que a saúde de todos os doentes que sofrem de dor.
doentes deve incluir a avaliação da dor e do seu A dor é o principal motivo para procurar ajuda
impacto sobre os doentes, esforços especiais por médica. Assim, qualquer médico, enfermeiro ou
parte dos profissionais de saúde para controlar a outro profissional de saúde necessita conhecimentos
dor, e desenvolvimento de programas de educação básicos sobre a fisiopatologia da dor e deve ser
para especialistas no tratamento da dor. Além disso, capaz de usar, pelo menos, um simples tratamento
a investigação científica clínica e básica deve ser de primeira linha. Ao contrário de "tratamento
incentivada a fornecer melhores cuidados no futuro. especial da dor", que deve ser reservada para
O objetivo desses esforços é assegurar que o médicos especialistas com formação pós-graduada
controle da dor seja alta prioridade no sistema de específica em síndromes dolorosas complexas, o
saúde. conhecimento da "gestão geral da dor" é uma
Este livro, Guia de Tratamento da Dor em Contextos obrigação para todos os outros profissionais de
de Poucos Recursos, tem por objetivo incentivar a saúde que devem estar aptos a tratar a maioria dos
investigação sobre os mecanismos da dor e doentes com dor e síndromes dolorosas comuns.
síndromes dolorosas e ajudar a melhorar o Os editores pretendem que, com a ajuda deste
tratamento de doentes com dor aguda e crónica, guia o leitor saiba identificar os doentes que sofrem
reunindo cientistas, médicos e outros profissionais de dor, compreender a natureza da sua dor e a sua
de saúde de várias especialidades interessados em influência na vida do doente, conhecer os métodos
dor. O público-alvo são cientistas e pessoal pré- de analgesia que podem oferecer um tratamento
clínico, cirúrgico e praticantes de medicina interna eficaz da dor para a maioria dos doentes , saber
de todas as especialidades, anestesistas e como aplicar os métodos e como classificá-los em
anestesiologistas, toda a equipa de enfermagem, esquemas formados incluindo abordagens não
trabalhadores da saúde em geral, bem como farmacológicas, e saber como avaliar a eficácia do
estudantes de medicina, enfermagem e autoridades tratamento da dor. O foco principal do Guia é
da saúde. abordar os seguintes quatro síndromes de dor: dor
Em contextos de poucos recursos, a maioria dos aguda pós-traumática pós-operatória, dor
profissionais de saúde têm pouco ou nenhum oncológica, dor neuropática, e dor crónica não
acesso à informação básica e prática. oncológica.
Na verdade, muitos passaram a confiar na Os editores entendem as barreiras e as
observação, na opinião dos colegas, e na construção necessidades futuras em matéria do bom tratamento
empírica de experiências através dos sucessos e da dor. Estas barreiras incluem a falta de formação
fracassos dos seus próprios tratamentos. A em dor e a falta de ênfase no controle e pesquisa da
disparidade de informações teóricas e práticas deve- dor. Além disso, quando o tratamento da dor se
se a vários fatores, incluindo a distribuição desigual torna numa prioridade governamental, há receios de
de acesso à Internet, e também ao fracasso das dependência de opióides, alto custo de determinadas
políticas de desenvolvimento e iniciativas substâncias e, nalguns casos, baixa adesão do
internacionais, que tendem a concentrar-se em doente. Nos países em desenvolvimento, os
abordagens inovadoras para os profissionais de recursos disponíveis para saúde, concentram-se
saúde de nível superior e cientistas, ignorando, compreensivelmente, na prevenção e tratamento de
relativamente falando, outras abordagens essenciais doenças "assassinas". No entanto, algumas dessas
para a grande maioria dos profissionais de saúde. condições de doença são acompanhadas por dor
A pobreza da informação dos profissionais de saúde não controlada, razão pela qual as questões do
em ambientes de poucos recursos exacerba o que é controle da dor são tão importantes no mundo em
claramente uma emergência de saúde pública. Os desenvolvimento, segundo o Prof. Sir Michael
profissionais de saúde bem como as autoridades Bond.
devem estar no centro dos esforços para resolverem A OMS recomenda que "uma vez que em muitas
esta crise. A disponibilidade de informações sobre a partes do mundo, a maioria dos doentes com cancro
saúde transmite confiança na tomada da decisão apresentam x estadio de doença avançada... a única
clínica, melhora as competências práticas e atitudes opção de tratamento realista é o alívio da dor e
nos cuidados. cuidados paliativos." Devido aos recursos limitados

viii
para a saúde, a OMS propõe ainda que, no futuro, numa estrutura curricular inovadora para o médico
devam ser incentivadas abordagens de tratamento em países do mundo em desenvolvimento. Servirá
paliativas, em vez de curativas. também faculdades de medicina, sugerindo temas
No entanto, é uma triste realidade que os curriculares fundamentais sobre a fisiologia e gestão
medicamentos que são essenciais para aliviar a dor, da dor. Acredita-se que o projeto incentivará escolas
muitas vezes não estão disponíveis ou acessíveis. Há de medicina a integrar estes objetivos educacionais
inúmeros relatos, alguns deles publicados nas nos seus currículos bem como em currículos de
principais revistas médicas e científicas, sobre os enfermagem. Ele irá fornecer ao não-especialista em
deficits do tratamento adequado da dor, dor informação base relevante – de uma forma que
principalmente nos países em desenvolvimento em seja facilmente compreendida, sobre a fisiologia da
todas as regiões do mundo. Acredita-se que, com dor e as diferentes abordagens de gestão e
relativamente menor investimento (referindo-se não tratamento para os diferentes tipos de síndromes
a esforços para mudar a situação, mas à dolorosos. Qualquer profissional que lida com
disponibilidade de medicamentos essenciais e problemas de dor deve estar ciente de toda a gama
técnicas), a qualidade do tratamento analgésico de problemas fisiopatológicos e psicopatológicos,
oncológico e VIH/SIDA em países de poucos comumente encontradas em doentes com dor ,e
recursos pode ser consideravelmente melhorada, deve, portanto, ter acesso a uma gama razoável de
como documentado por iniciativas locais em todo o terapêuticas médicas, físicas e psicológicas de forma
mundo. A IASP produziu recentemente um atlas de a evitar a imposição de quaisquer custos adicionais
treino e estruturas para o tratamento da dor nos financeiros e pessoais sobre os doentes e a
países em desenvolvimento. Mais informação sobre sociedade. O objetivo destes esforços é garantir que
este atlas pode ser encontrada no site da IASP o controlo da dor recebe alta prioridade,
(www.iasp-pain.org). especialmente no tratamento de doentes
Para o especialista em dor nos países oncológicos e de VIH/SIDA, bem como para dor
desenvolvidos, estão disponíveis informações aguda pós-operatória e dor relacionada com uma
detalhadas, mas para o não-especialista em dor e lesão. Portanto, este livro vai incentivar o
outros profissionais de saúde, incluindo enfermeiros tratamento de doentes com dor aguda e crónica,
e pessoal clínico em muitas outras regiões do percebendo-se a partir da literatura que, mesmo a
mundo, que têm de lidar com doentes com dor, não educação básica tem um impacto considerável na
existe um guia básico ou um manual sobre os qualidade do tratamento analgésico para o doente.
mecanismos da dor, gestão e realidades do Os editores agradecem o entusiasmo e esforços
tratamento. Isto é particularmente preocupante nas investidos pelos autores voluntários deste Guia, sem
zonas do mundo onde, fora das principais zonas os quais este livro não teria sido possível. Muitos
urbanas, não há acesso a informações sobre a têm conhecimento dos problemas enfrentados pelos
etiologia ou gestão da dor e não existe acesso a um prestadores de cuidados de saúde no mundo em
especialista em dor. desenvolvimento. Eles tentaram projetar os seus
A IASP Developing Countries Task Force pensamentos em situações particulares e definições,
(agora Developing Countries Working Group) foi tais como: "Posso lidar com o que é esperado de
fundada para incentivar a educação médica mim, trabalhando como médico, enfermeiro ou
continuada e ensino clínico em países com poucos profissional de saúde num país em desenvolvimento
recursos e está a apoiar os esforços locais para e enfrentar uma ampla gama de problemas de dor?"
aumentar a perceção da dor. O programa de Esta questão presumivelmente passou pelas mentes
subvenção educacional, a " Initiative for Improving inquietas de muitos profissionais. O objetivo é
Pain Education ", aborda a necessidade de melhoria fornecer ao leitor várias abordagens para a gestão de
da educação sobre a dor e seu tratamento nos países alguns problemas comuns com o tratamento da dor.
em desenvolvimento, fornecendo bolsas de apoio E de modo nenhum pretende ser uma referência
educativo. Estas bolsas destinam-se a melhorar o definitiva. Os algoritmos de tratamento
alcance e disponibilidade da educação fundamental apresentados são baseados na revisão da literatura
para os médicos de dor de todas as especialidades, disponível e experiência em clínicas de dor, com
tendo em conta as necessidades locais específicas. uma visão específica sobre as potenciais limitações
Na sequência de uma proposta conjunta da em locais no mundo em desenvolvimento. Em vez
University of Nairobi (N. B. Patel) e do Charite de uma abordagem livro com capítulos
University Medicine Berlin (A. Kopf)), a IASP independentes escritos de uma forma sistemática, o
atribuíu um dos subsídios para um projeto de livro Guia tenta seguir um caminho de aprendizagem
sobre o tratamento da dor em países com poucos orientado para o problema. Pretende-se que todos
recursos. O resultado é este Guia, que se destina a os Capítulos desde a Introdução sejam de fácil
fornecer de forma concisa e atualizada informações, compreensão e de grande utilidade para os não-
ix
especialistas. A estrutura, incluindo perguntas e enfermeiros. Portanto, o conhecimento local sobre
respostas, pérolas de sabedoria, e relatos ilustrativos as características da dor e formas de tratamento é
de casos, bem como sugestões valiosas da literatura escassa, o que tornou difícil para nós, determinar a
para leitura posterior, irá, esperamos, fazer do Guia relevância de alguns dos tópicos, mas não vai,
um companheiro útil e de grande ajuda para o esperamos, limitar a utilidade do Guia. Os autores,
tratamento da dor. Todos os leitores são convidados com o seu conhecimento internacional, têm tentado
a contribuir para a melhoria das edições seguintes, fornecer uma visão ubíqua do controle da dor. Os
enviando os seus comentários e sugestões aos editores esperam que o Guia seja útil para os leitores
editores. de várias regiões do mundo e para profissionais de
O Guia tem algumas deficiências. Embora o saúde de várias especialidades. Dependendo do
tratamento da dor tenha sido um tema de crescente feedback dos leitores, os editores pretendem
interesse desde há pelo menos duas décadas, os produzir um segundo volume, com ênfase sobre os
países em desenvolvimento têm poucas iniciativas termos e normas gerais do bom tratamento da dor,
nesse sentido, e pouco se sabe sobre as bem como revisão das edições anteriores, e edições
necessidades, características e modalidades de noutras línguas.
tratamento no que respeita à dor. Cursos de
reciclagem, workshops, escolas médicas e de Andreas Kopf, Berlin, Germany
anestesia geral, conferências, não têm incorporado o Nilesh Patel, Nairobi, Kenya
tratamento da dor nos seus programas de treino Setembro 2009
para estudantes, internos, pessoal clínico e

Este guia é dedicado ao Professor Mohammed Omar Tawfik, Cairo, Egito,


cuja vida profissional foi dedicada ao ensino e
desenvolvimento do tratamento da dor.

Agradecimento
Desde a sua fundação em 1973, a IASP tem consistentemente apoiado a investigação da dor e
os esforços do seu tratamento nos países em desenvolvimento.
Os editores desejam expressar a sua gratidão para com a IASP, que tem apoiado continuamente este projeto
com conselhos e revisão do material bem como com uma bolsa de formação que permite a divulgação deste
Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos.

x
Autores Participantes
Comentários e perguntas aos editores e autores, via e-mail, são bem-vindos
Oseremen Aisuodionoe-Shadrach, MBBS Alfredo Covarrubias-Gomez, MD
Department of Surgery Vasco De Quiroga 15, Col. Seccion XVI
University of Abuja Torelio Guerra, Tlalpan
Abuja, Nigeria Mexico City 14000, Mexico
manshaddie@yahoo.com covarrubiasalfredo@gmail.com

Dr Gona Ali Ferydoun Davatchi, MD


Faculty of Medicine Rheumatology Research Center
University of Sulaymaniyah Division of Rheumatology
Sulaymaniyah, Iraq Tehran University for Medical Sciences
gona7272@yahoo.com Tehran, Iran
fddh@neda.net
Andrew O. Amata, MBBS
Department of Anaesthesia and Intensive Care Dr Henry Ddungu, MD
Georgetown Public Hospital Corporation African Palliative Care Association
Georgetown, Guyana Kampala, Uganda
aoamata@yahoo.com hddungu@gmail.com

Corrie C. Avenant, MB ChB Julia Downing, PhD


Fontainebleau, Randburg African Palliative Care Association
South Africa Kampala, Uganda
corrie@drcavenant.co.za julia.downing@apca.co.ug

Justin N. Baker, MD Maged El-Ansary, MD


Department of Pediatric Medicine Department of Anesthesiology
Division of Palliative and End-of-Life-Care Al-Azhar University, Cairo, Egypt
St. Jude Children’s Research Hospital maged@elansary.com
Memphis, Tennessee, USA
justin.baker@stjude.org Susan Evans, MD
Endometriosis Care Centres of Australia
Dr Frank Boni Adelaide, Australia
Department of Anesthesiology sfe@internode.on.net
University of Ghana Medical School
Accra, Ghana Richard C. Fisher, MD
frank_boni@hotmail.com Orthopedic Overseas Division
Health Volunteers Overseas
Kay Brune, MD Washington, DC, USA
Institute of Pharmacology and Toxicology richard.fi sher@ucdenver.edu
Friedrich-Alexander University of Erlangen-
Nurnberg Arnaud Fumal, MD
Erlangen, Germany Neurology and Headache Research Unit
brune@pharmakologie.med.uni-erlangen.de University of Liege, Liege, Belgium
arnaud.fumal@chu.ulg.ac.be
Barrie Cassileth, PhD Joel Gagnier, ND, MSc, PhD
Integrative Medicine Service Department of Epidemiology
Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre School of Public Health
New York, New York, USA University of Michigan
cassileth@mskcc.org Ann Arbor, Michigan, USA
jgagnier@umich.edu

xi
Dr Lars Garten Katarina Jankovic, MD
Otto Heubner Centre for Pediatric and Adolescent Department of Anesthesiology
Medicine MP Shah Hospital
Charite University Hospitals, Berlin, Germany Nairobi, Kenya
lars.garten@charite.de katarina@krstdesign.com

Hans J. Gerbershagen, MD, PhD Thomas Jehser, MD


Department of Anesthesiology Pain and Palliative Care Department
Division of Perioperative and Emergency Care Havelhohe Hospital
University Medical Center Utrecht Berlin, Germany
Utrecht, The Netherlands tjehser@havelhoehe.de
h.j.gerbershagen-2@umcutrecht.nl
Lucia Jerg-Bretzke, PhD
Glenda E. Gray, MD Medical Psychology
Perinatal HIV Research Unit Department of Psychosomatic Medicine and
University of Witwatersrand, Diepkloof, South Psychotherapy
Africa University of Ulm Ulm, Germany
gray@pixie.co.za lucia.bretzke@uni-ulm.de

Jyothirmai Gubili, MS David E. Joranson, MSSW


Integrative Medicine Service Pain & Policy Studies Group
Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre University of Wisconsin Carbone Cancer Center
New York, New York, USA School of Medicine and Public Health
gubilij@mskcc.org Madison, Wisconsin, USA
dejoranson@uwcarbone.wisc.edu
Uriah Guevara-Lopez, MD, MSc
Department of Pain Medicine and Palliative Care Javier R. Kane, MD
National Institute of Medical Sciences Department of Pediatric Medicine
Mexico City, Mexico Division of Palliative and End-of-Life Care
uriahguevara@yahoo.com.mx St. Jude Children’s Research Hospital
Memphis, Tennessee, USA
Maija Haanpää, MD, PhD javier.kane@stjude.org
Department of Neurosurgery
Helsinki University Hospital, Helsinki, Finland Paul G. Kioy, MBchB, MMed
maija.haanpaa@orton.fi Department of Medical Physiology
University of Nairobi
Aki Hietaharju, MD, PhD Nairobi, Kenya
Pain Clinic medphys@uonbi.ac.ke
Department of Neurology and Rehabilitation
Tampere University Hospital Andreas Kopf, MD
Tampere, Finland Pain Unit, Department of Anesthesiology
aki.hietaharju@pshp.fi Charite University Hospitals
Berlin, Germany
Vladimir Hrabal, Dr phil. Visiting Professor, Department of Medical
Department of Medical Psychology Physiology
University of Ulm, Ulm, Germany University of Nairobi, Kenya
praxis@dr-hrabal.de andreas.kopf@charite.de

Sabu Kumar James, MBBS Fatima Laher, MBBCh


Department of Anaesthesiology Perinatal HIV Research Unit
University ofGlasgow University of Witwatersrand
Glasgow, Scotland Diepkloof, South Africa
United Kingdom laherf@phru.co.za
sabu.james@lanarkshire.scot.nhs.uk

xii
Dr Erica Lazarus Nilesh B. Patel, PhD
Perinatal HIV Research Unit Department of Medical Physiology
University of Witwatersrand University of Nairobi, Nairobi, Kenya
Diepkloof, South Africa npatel@uonbi.ac.ke

Christoph Maier, MD Dilip Pawar, MBBS


Department of Pain Management Department of Anesthesiology
Clinic for Anesthesiology All India Institute of Medical Sciences
University Clinic Bergmannsheil New Delhi, India
Ruhr-University dkpawar@gmail.com
Bochum, Germany
christoph.meier@ruhr-uni-bochum.de Michael Pfi ngsten, PhD
Pain Clinic
Angela Mailis-Gagnon, MD Department of Anaesthesiology
Comprehensive Pain Program University Medicine
Toronto Western Hospital Gottingen, Germany
Toronto, Ontario, Canada michael.pfi ngsten@med.uni-goettingen.de
angela.mailis@uhn.on.ca
Richard A. Powell, MA, MSc
Winfried Meissner, MD African Palliative Care Association
Department of Internal Medicine Kampala, Uganda
University Medical Centre tony.powell@apca.co.ug
Jena, Germany
winfried.meissner@med.uni-jena.de Lukas Radbruch, MD
Palliative Care Unit
Dr Gaman Mohammed University Hospital Aachen
Diabetes Centre Aachen, Germany
Avenue Healthcare, Nairobi, Kenya lradbruch@ukaachen.de
send2gaman@yahoo.com
M.R. Rajagopal, MD
Lutz Moser, MD Pallium India (Trust)
Department of Radiology Trivandrum, Kerala, India
Charite University Hospitals mrraj47@gmail.com
Berlin, Germany
lutz.moser@charite.de Dr. Raul Ribeiro, MD
Department of Oncology
Faith N. Mwangi-Powell, PhD International Outreach Program
African Palliative Care Association St. Jude Children’s Research Hospital
Kampala, Uganda Memphis, Tennesee, USA
faith.mpowell@apca.co.ug raul.ribeiro@stjude.org

Mathew O.B. Olaogun, PT Rainer Sabatowski, MD


Department of Medical Rehabilitation Interdisciplinary Pain Clinic
Obafemi Awolowo University University Hospital Carl-Gustav Carus
Ife-Ife, Nigeria Dresden, Germany
mobolaogun@yahoo.co.uk rainer.sabatowski@uniklinikum-dresden.de

Michael Paech, MBBS, FRCA, FANZCA, Dr Natalia Samoilova


FFPMANZCA Department of Pain Medicine
Division of Anaesthesiology National Research Centre of Surgery B.V. Petrosky
University of Western Australia Russian Academy of Medical Science
Crawley, Western Australia, Australia Moscow, Russia
michael.paech@health.wa.gov.au natalia.samoylova@gmail.com

xiii
Michael Schäfer, MD, PhD Mohamed Omar Tawfi k, MD, MBBCh
Department of Anesthesiology (deceased, June 2009)
Charite University Hospitals Pain Unit
Berlin, Germany National Cancer Institute
micha.schaefer@charite.de Cairo University, Cairo, Egypt

Barbara Schlisio, MD Josephine M. Th orp, MRCP, FFARCS


Department of Anesthesiology Anaesthetic Department, Monklands Hospital
University Medical Centre Airdrie, Lanarkshire
Tubingen, Germany Scotland, United Kingdom
barbara.schlisio@med.uni-tuebingen.de jo_thorp@btinternet.com

Dr Jean Schoenen Knox H. Todd, MD, MPH


Headache Research Unit Department of Emergency Medicine
Department of Neurology and GIGA Beth Israel Medical Center
Neurosciences New York, New York, USA
Liege University ktodd@chpnet.org
Liege, Belgium
jschoenen@ulg.ac.be Dr Harald C. Traue
Medical Psychology
Claudia Schulz-Gibbins, Dipl.-Psych. Department of Psychosomatic Medicine and
Department of Anesthesiology Psychotherapy
Charite University Hospitals University of Ulm, Ulm, Germany
Berlin, Germany harald.traue@uni-ulm.de
claudia.schulz-gibbins@charite.de
Rolf-Detlef Treede, MD
Andreas Schwarzer, MD, PhD Department of Neurophysiology
Department of Pain Management Faculty of Medicine Mannheim, University of
Clinic for Anesthesiology Heidelberg
University Clinic Bergmannsheil Mannheim, Germany
Ruhr-University rolf-detlef.treede@medma.uni-heidelberg.de
Bochum, Germany
andreas.schwarzer@ruhr-uni-bochum.de Steven Waldman, MD
Th e Headache and Pain Centre
Olaitan A Soyannwo, MB BS, MMed Leawood, Kansas, USA
Department of Anesthesia sdwaldman@ptfi rst.org
Ibadan College of Medicine
Ibadan, Nigeria Wilfried Witte, MA
folait2001@yahoo.com Department of Anaesthesiology
Charite University Hospitals
Christoph Stein, MD Free University of Berlin
Department of Anesthesiology Berlin, Germany
Charite University, Berlin, Germany wilfried.witte@charite.de
christoph.stein@charite.de

Paula Tanabe, RN, PhD


Department of Emergency Medicine
Institute for Healthcare Studies
Northwestern University
Chicago, Illinois, USA
ptanabe2@nmff .org

xiv
Bases
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 1
Histórico, Definições e Opiniões Atuais
Wilfried White e Christoph Stein

A experiência dolorosa é fundamental e faz parte do médica permaneceu submetida aos modelos antigos
desenvolvimento cultural de todas as sociedades. Na por séculos. A dor tinha um papel importante. A
história da dor, os poderes “sobrenaturais” tiveram bíblia ilustra a necessidade de suportar catástrofes e
um papel tão importante quanto os fatores naturais. dor na história de Jó. A força da fé é provada pela
Considerar a dor como o resultado de uma humildade de Jó com relação a Deus. A humildade
“comunicação” entre os homens e os poderes ainda é um ideal do cristianismo até hoje. No Novo
divinos é um pressuposto fundamental para muitas Testamento, Jesus Cristo encerra sua vida na terra
sociedades. Quanto mais as sociedades se como um mártir, pregado e morto na cruz. Seu
distanciam da medicina ocidental, ou medicina sofrimento marca o caminho para Deus. É
moderna, mais prevalente é essa visão da dor. Por necessário suportar o sofrimento na vida para ser
outro lado, uma teoria puramente médica baseada absolvido dos pecados. A mensagem da dor é
em fenômenos naturais independentes dos poderes mostrar à humanidade a insuficiência da vida na
divinos foi desenvolvida há muito tempo. terra e a maravilha de estar no paraíso. Portanto, o
Aconteceu muito na China antiga, enquanto que na que quer que a ciência diga sobre a dor, uma
Índia antiga a medicina foi fortemente influenciada abordagem baseada apenas no conceito fisiológico
pelo hinduísmo e pelo budismo. A dor é sentida no não leva em consideração o significado religioso ou
coração – pressuposto comum dos antigos egípcios. espiritual da dor.
Os praticantes da medicina dos tempos faraônicos A teoria científica mais importante e radicalmente
acreditavam que a composição dos fluidos corporais mecânica da dor no início da idade moderna vem do
determinava a saúde ou a doença, e não era possível filósofo francês René Descartes (1596-1650). Em
distinguir entre magia e medicina. seu conceito, o antigo pressuposto de que a dor era
A medicina da Grécia antiga baseou-se fortemente representada no coração foi abandonado. O cérebro
em seus predecessores asiáticos e egípcios. A assumiu o lugar do coração. Apesar (ou por causa)
introdução do conhecimento médico antigo na de sua parcialidade, a teoria de Descartes abriu as
Europa medieval foi mediada principalmente pela portas para que a neurociência explicasse os
medicina árabe que também deu suas contribuições. mecanismos da dor.
O latim era o idioma dos cultos na Europa medieval A pergunta de como a dor deve ser tratada teve
e a ideologia era orientada pelas crenças judáico- respostas diferentes ao longo do tempo. Se os
cristãs. Apesar das várias adaptações, a teoria poderes sobrenaturais tinham que ser agradados
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos, editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel. IASP, Seattle, ® 2010. Todos os direitos reservados. Esse material pode ser usado para
fins educacionais e de treinamento com a citação adequada da fonte. Proibida a venda ou o uso comercial. A IASP não assume qualquer responsabilidade por qualquer lesão e/ou dano a
pessoas ou bens por responsabilidade do produto, negligência, ou por qualquer uso de qualquer método, produto, instrução ou ideias contidos nesse material. Devido aos rápidos avanços das
ciências médicas, o editor recomenda que deve haver verificação independente dos diagnósticos e das doses dos medicamentos. A menção de produtos farmacêuticos específicos e de qualquer
procedimento médico não implica endosso ou recomendação dos editores, autores ou da IASP, em detrimento de outros produtos ou procedimentos médicos não cobertos pelo texto.
2

para a dor desaparecer, era preciso realizar certos médico Carl Koller (1857-1944) descobriu as
rituais mágicos. Se os remédios inventados pela propriedades anestésicas da cocaína em 1884. Mais
ciência não eram utilizados ou não estavam ou menos na mesma época, durante as duas últimas
disponíveis, era preciso usar ingredientes de plantas décadas do século XIX, o neurologista norte-
ou animais para aliviar a dor. Principalmente, o americano James Leonard Corning (1855-1923) e o
conhecimento dos efeitos analgésicos das sementes cirurgião alemão August Bier (1861-1949)
de papoula era amplamente divulgado nas realizaram estudos de raquianestesia com soluções
sociedades antigas como o Egito. O ópio foi usado de cocaína. A anestesia moderna possibilitou
por muito tempo em várias preparações, mas seus procedimentos cirúrgicos mais longos e complexos
constituintes químicos eram desconhecidos. O com desfechos de longo prazo bem sucedidos. Esse
isolamento da morfina, um alcalóide do ópio, foi avanço promoveu o consenso geral de que a dor
realizado pela primeira vez em 1803 pelo somática era boa, mas era secundária à terapia
farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Sertürner curativa: não era possível tratar a dor sem cirurgia!
(1783-1806). A produção industrial da morfina Portanto, no âmbito da prática anestésica, o
começou na Alemanha durante a década de 1820 e tratamento da dor como meta terapêutica não
nos Estados Unidos na década de 1830. Durante o existia na época. A dor crônica não era importante.
final do século XVIII e meados do século XIX, as As primeiras décadas do uso da morfina podem ser
ciências naturais assumiram a liderança da medicina vistas como um período de altas expectativas e
ocidental. Esse período marcou o início da era das otimismo com relação à capacidade de controlar a
teorias fisiopatológicas da dor e o conhecimento dor. O primeiro obstáculo a esse otimismo foi a
científico da dor avançou passo a passo. descoberta feita durante a Guerra Civil Americana
A descoberta de medicamentos e gases médicos foi (1861-1865), quando apareceram casos de
um marco para a medicina moderna porque dependência e abuso da morfina. Como
possibilitou melhoras no tratamento médico. consequência, começaram as restrições quanto à
Particularmente, foi a anestesia moderna que distribuição de opiáceos. A visão negativa do uso da
promoveu o desenvolvimento da cirurgia. A morfina foi aumentada por experiências na Ásia,
anestesia geral com éter foi introduzida com sucesso onde um extenso comércio de ópio e morfina para
em Boston em 16 de outubro de 1846 pelo médico fins não médicos já estava estabelecido no século
William Thomas Morton (1819-1868). A XIX. Portanto, no início do século XX, a ansiedade
importância de sua descoberta, não apenas para a social com relação ao uso da morfina se fortaleceu e
cirurgia, mas também para o entendimento se transformou em opiofobia (isto é, medo de usar
científico da dor em geral, é destacada pela inscrição opióides), que foi um importante passo atrás para o
em seu túmulo: “Inventor e Revelador da Anestesia tratamento da dor nas décadas seguintes.
Inalatória: Antes de Quem, em Todos os Tempos, As guerras estimularam a pesquisa sobre a dor
Cirurgia era Agonia; Por Quem, a Dor da Cirurgia porque os soldados voltavam para casa com
foi Impedida e Anulada; Desde Quem, a Ciência síndromes dolorosas complexas que causavam
Tem o Controle da Dor”. Essa frase sugere que a problemas intransponíveis para o repertório
dor desapareceria da face da terra apenas pela terapêutico disponível. Após sua experiência em
aplicação da anestesia. A própria cirurgia mudou 1915 durante a Primeira Guerra Mundial, o
para procedimentos que não estavam cirurgião francês René Leriche (1879-1955)
necessariamente ligados a um alto nível de dor. começou a se concentrar na “cirurgia da dor”,
Portanto, o papel da cirurgia mudou. Os cirurgiões abordando principalmente o sistema nervoso
tinham mais tempo para fazer os procedimentos e autônomo. Leriche aplicou métodos de anestesia
os pacientes não eram mais obrigados a sentir dor regional (infiltração com procaína, bloqueio
nas mãos dos cirurgiões. ganglionar simpático) além de cirurgia,
Seguiram-se outras inovações. Um ano depois, em principalmente simpatectomia periarterial. Ele não
1847, o clorofórmio foi usado pela primeira vez apenas rejeitou a ideia da dor como um mal
para anestesia ginecológica pelo médico escocês necessário, mas também criticou a abordagem
James Young Simpson (1811-1879). Em Viena, o científica reducionista de que a dor experimental era
3

um fenômeno puramente neurocientífico. Ele via a como “uma experiência sensorial e emocional
dor crônica como uma doença por si só (“douleur- desagradável associada a dano real ou potencial de
maladie”), não apenas um sintoma de doença. tecidos ou descrita em termos de tal dano”, que
A anestesia regional foi o esteio da terapia da dor ainda é válida. Essa definição foi importante porque
aplicada pelo cirurgião francês Victor Pauchet pela primeira vez ficou implícito que dor nem
(1869-1936). Antes de suas experiências durante a sempre é uma consequência de dano tecidual, e
guerra, ele já havia lançado a primeira edição de seu pode ocorrer sem ele. A ciência ocidental então
compêndio L’Anesthésie Regionale (Anestesia começou a perceber que fatores “somáticos” (dano
Regional), em 1912. Através de Louis Gaston Labat tecidual) não podem ser separados de fatores
(1876-1934), um cirurgião parisiense que depois “psicológicos” (aprendizado, lembrança, a alma e
exerceu a medicina nos Estados Unidos, sua processos afetivos). Junto com o reconhecimento
sabedoria ficou conhecida em todo o Novo Mundo das influências sociais na perceção dolorosa, esses
e foi um estímulo importante para a disseminação fatores formam o núcleo do conceito biopsicológico
da anestesia regional nos Estados Unidos entre as da dor.
duas Grandes Guerras. Na década de 1920, a noção Várias teorias da dor surgiram durante o século XX.
de que a anestesia regional poderia ser usada não A mais importante – também aceita por Bonica – é
apenas para cirurgias, mas também para dor crônica do psicólogo canadense Ronald Melzack (1929-) e
espalhou-se por todos os Estados Unidos. do psicólogo britânico Patrick D. Wall (1925-2001).
Após a Segunda Guerra Mundial essas ideias foram Sua teoria foi publicada em 1965 e é conhecida
retomadas por John Joseph Bonica (1914-1994), que como a “teoria de controle da porta da dor”. O
havia emigrado com seus pais da Sicília para os termo “porta” foi adotado para descrever os
Estados Unidos com 11 anos de idade. Como mecanismos da medula espinhal que regulam a
cirurgião do exército com a responsabilidade de transmissão dos impulsos dolorosos entre a periferia
administrar anestesia, ele notou que os cuidados e o cérebro. Essa teoria foi importante porque não
para os soldados feridos eram inadequados. Os mais considerava o sistema nervoso central como
pacientes ficavam sozinhos com sua dor após a um simples meio passivo de transmissão de sinais
cirurgia. Bonica observou que a dor se tornava nervosos. Implicava que o sistema nervoso central
crônica com frequência e que muitos desses alterava “ativamente” a transmissão dos impulsos
pacientes foram vítimas de abuso de álcool ou de nervosos. No entanto, a “teoria de controle da porta
distúrbios depressivos. A resposta de Bonica a esse da dor” enfatizava uma visão estritamente
problema, que também afetava outros pacientes neurofisiológica da dor, ignorando os fatores
com dor, foi estabelecer clínicas de dor onde psicológicos e as influências culturais.
médicos de diferentes disciplinas, psicólogos e A etnologia médica leva em consideração as
outros terapeutas trabalham em equipe para influências culturais na perceção e expressão da dor.
entender a complexidade da dor crônica e tratá-la O estudo mais importante foi publicado em 1952 e
adequadamente. A anestesiologia continuou sendo a foi financiado pelo Serviço de Saúde Pública dos
especialidade de Bonica. Havia apenas poucas Estados Unidos. Baseados nas entrevistas com
clínicas de dor nos Estados Unidos quando ele aproximadamente cem veteranos das duas Guerras
publicou a primeira edição de seu compêndio Pain Mundiais e da Guerra da Coreia, que estavam
Management (Tratamento da Dor) em 1953. Esse internados em um Hospital de Veteranos no Bronx,
marco pode ser considerado a data de nascimento cidade de Nova Iorque, os pesquisadores
de uma nova disciplina médica. verificaram como diferentes antecedentes culturais
No entanto, passaram-se muitos anos até que um influenciam a perceção da dor. Os veteranos foram
grupo maior se interessasse pela terapia da dor. Em divididos em pessoas de origem italiana, irlandesa
1973, para tornar esse tópico mais popular, Bonica ou judia – além do grupo de “Velhos Americanos”,
fundou a Associação Internacional para o Estudo da composto de norte-americanos de nascimento,
Dor (IASP). Nos anos seguintes, foram fundados caucasianos e a maioria de religião protestante. Um
capítulos nacionais da IASP em todo o mundo. Em resultado dessa pesquisa foi que os “Velhos
1979, a IASP cunhou a importante definição da dor Americanos” tiveram o maior estoicismo na
4

experiência dolorosa e sua atitude com relação à dor iguais em todos os países europeus nem o sentido
foi caracterizada como “ansiedade orientada para o da palavra “pallium”; às vezes ela era usada por
futuro”. De acordo com a interpretação dos curandeiros para disfarçar sua incapacidade de tratar
pesquisadores, essa ansiedade demonstrou uma curativamente os pacientes.
tentativa de estar consciente de sua própria saúde. Os cuidados paliativos se tornaram ainda mais
Quanto mais os imigrantes italianos, irlandeses ou importantes quando outra pandemia totalmente
judeus eram assimilados pelo modo de vida inesperada irrompeu em meados da década de 1980
americano, mais os seus comportamentos e atitudes – HIV/AIDS. Principalmente na África, essa nova
se aproximavam daqueles dos “Velhos “praga” se transformou em um enorme problema
Americanos”. No entanto, a dor ainda era vista de saúde que já não podia mais ser ignorado. Câncer
como apenas um sintoma e as culturas não e dor neuropática têm um papel importante na vida
ocidentais não eram foco de interesse. de pacientes com HIV/AIDS. O desenvolvimento
Foi preciso cerca de mais três décadas para mudar da medicina paliativa na África começou no
essa situação. Durante a década de 1990, estudos Zimbábue em 1979, seguido pela África do Sul em
demonstraram que atitudes e crenças diferentes em 1982, pelo Quênia em 1989 e por Uganda em 1993.
grupos étnicos diferentes de todo o mundo tinham As instituições de Uganda se tornaram modelos na
um papel na variação de intensidade, duração e década de 1990, a partir da iniciativa da médica
perceção subjetiva da dor. Como consequência, os Anne Marriman (1935-) que passou a maior parte de
profissionais de saúde tiveram que admitir que os sua vida na Ásia e na África. Uganda tinha um
pacientes com dor (crônica) admiram terapeutas que ambiente favorável para seu projeto “Hospice Africa
reconhecem suas crenças culturais e religiosas. Uganda” porque na época Uganda era o único país
Outro aspeto importante que atraiu o interesse foi o africano cujo governo havia declarado os “cuidados
alívio da dor em pacientes com doença avançada. paliativos para vítimas de câncer e AIDS” uma
Foi a enfermeira, assistente social, e depois médica prioridade do seu “Plano Nacional de Saúde”. A
Cicely Saunders (1918-2005) que desenvolveu o taxa de tratamento curativo de câncer em Uganda é
conceito de “dor total”. A dor crônica na doença baixa, assim como em quase todos os países em
avançada muda totalmente a vida cotidiana e põe desvantagem econômica. Essa situação torna os
em cheque a vontade de viver. Esse problema está problemas associados ao câncer e à AIDS ainda
sempre presente, então Saunders chegou à mais urgentes.
conclusão de que “a dor constante precisa de A ampla aceitação do tratamento da dor crônica no
controle constante”. De acordo com esse conceito, século XX exigiu que a Organização Mundial de
a dor não pode ser separada da personalidade e do Saúde (OMS) assumisse a liderança, estimulada por
ambiente do paciente com doença avançada e fatal. Jan Stjernswärd da Suécia (1936-). Em 1982,
A fundação do St. Christopher’s Hospice em Londres, Stjernswärd convidou um grupo de especialistas em
Inglaterra, em 1967 por Saunders pode ser dor, inclusive Bonica, para ir a Milão, Itália,
considerada o ponto de partida da medicina desenvolver medidas para a integração do
paliativa. Reflete uma mudança de interesse da tratamento da dor ao conhecimento comum e à
medicina de doenças agudas (infeciosas) para câncer prática médica. O câncer foi escolhido como ponto
e outras doenças crônicas na primeira metade do de partida. Naquela época, os especialistas estavam
século XX. O termo “cuidados paliativos” (ou preocupados com a crescente lacuna entre pesquisa
terapia paliativa) vem da palavra latina “pallium” bem-sucedida sobre dor, de um lado, e
(coberta, casaco) e tem como objetivo aliviar a disponibilidade cada vez menor de opióides para os
última fase da vida se a terapia curativa já não for pacientes, principalmente de câncer, de outro.
mais possível. Os cuidados paliativos, a priori, são Houve uma segunda reunião em Genebra em 1984.
dirigidos para a qualidade de vida. Suas raízes estão Como resultado, foi publicada a brochura “Cancer
nas sociedades não cristãs, mas são vistos Pain Relief” (Alívio da Dor Oncológica) em 1986. Ao
principalmente como vindos das instituições distribuir essa brochura, a OMS fechou a lacuna por
medievais de cuidados paliativos. No entanto, os “obrigar” os sistemas de saúde a usarem opióides de
antecedentes históricos dessas instituições não eram acordo com a hoje amplamente conhecida “escada
5

analgésica” de três degraus. Infelizmente, o sucesso dores não oncológicas ainda sejam necessários, a
dessa iniciativa não foi igual em diferentes regiões dor oncológica, a dor aguda e a dor neuropática
do mundo. Embora a disponibilidade e o consumo podem ser aliviadas em um grande número de
de opióides tenha se multiplicado nos países anglo- pacientes com algoritmos fáceis de tratamento e
americanos e na Europa Ocidental, outras regiões analgésicos opióides e não opióides “simples”.
do mundo observaram apenas pequenos aumentos Portanto, o futuro do tratamento da dor em
ou até diminuição no número de prescrições de ambientes com muitos e poucos recursos vai
opióides. É preciso dizer, porém, que nos países depender do acesso aos opióides e da integração dos
anglo-americanos e na Europa Ocidental, o acesso cuidados paliativos como uma prioridade dos
facilitado aos opióides promoveu um aumento do sistemas de saúde. O livro Tratamento da Dor em
uso de opióides para pacientes com dor não Instituições com Poucos Recursos pretende contribuir
oncológica também. Esse uso pode ser justificado para essa meta em instituições onde o baixo
em casos de dor inflamatória neuropática ou financiamento dos sistemas de saúde destaca a
crônica, mas deve ser considerado uma aplicação importância do tratamento da dor nos cuidados
errada em outras síndromes dolorosas não paliativos.
oncológicas. Os opióides não devem ser usados
como a panaceia (um remédio para todos os males), Referências
e a prática atual em alguns países pode ameaçar a
disponibilidade de opióides no futuro se as [1] Bates, MS, Edwards WT, Anderson KO. Ethnocultural
autoridades de saúde decidirem intervir e restringir influences on variation in chronic pain perception. Pain
1993;52:101–12.
o uso de opióides ainda mais do que hoje. [2] Brennan F, Carr DB, Cousins M. Pain management: a
Em conclusão, o entendimento da dor como um fundamental human right. Pain Med 2007;105:205–21.
importante problema de saúde progrediu bastante. [3] El Ansary M, Steigerwald I, Esser S. Egypt: over 5000 years
of pain management—cultural and historic aspects. Pain Pract
Dos tempos antigos, quando a dor costumava ser 2003;3:84–7.
vista como parte inevitável da vida, que os homens [4] Eriksen J, Sjogren P, Bruera E. Critical issues on opioids in
só podiam influenciar parcialmente devido à sua chronic noncancer pain: an epidemiological study. Pain
2006;125:172–9.
etiologia presumivelmente sobrenatural, foi [5] Jagwe J, Merriman A. Uganda: Delivering analgesia in rural
desenvolvido um conceito fisiológico onde o Africa: opioid availability and nurse prescribing. J Pain
Symptom Manage 2007;33:547–51.
controle da dor é agora possível. Nas últimas [6] Karenberg A, Leitz C. Headache in magical and medical
décadas, o conceito de “ciência natural” foi revisto e papyri of Ancient Egypt. Cephalgia 2001;21:545–50.
expandido pela aceitação da influência de fatores [7] Loeser JD, Treede RD. Th e Kyoto protocol of IASP basic
pain terminology. Pain 2008;137:473–7.
etno-culturais. Embora a pesquisa básica tenha [8] Meldrum ML. A capsule history of pain management.
ajudado a desvendar os complexos mecanismos da JAMA 2008;290:2470–5.
[9] Merskey H. Some features of the history of the idea of
dor e facilitado o desenvolvimento de novas pain. Pain 1980;9:3–8.
estratégias para o tratamento da dor, os velhos [10] Stolberg M. “Cura palliativa”: Begriff und Diskussion der
opióides ainda são o esteio do tratamento da dor palliativen Krankheitsbehandlung in der vormodernen Medizin
(ca. 1500–1850). Medizinhist J 2007;42:7–29.
aguda, da dor oncológica e da dor neuropática.
Embora a compreensão e o tratamento de outras
6

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 2
Obstáculos ao Tratamento da Dor em Contextos de
Poucos Recursos
Olaitan A Soyannwo

combate ao HIV/AIDS, malária e outras doenças


Por que o tratamento eficaz graves, sustentabilidade ambiental, e parceria global
para o desenvolvimento. Embora doenças
da dor é difícil em países contagiosas sejam a ênfase, nota-se agora uma
com poucos recursos? transição da epidemiologia das doenças à medida
que doenças não contagiosas, lesões e violência são
As economias de baixa e média renda do mundo tão importantes quanto as doenças contagiosas
são às vezes chamadas de países em como causa de morte e incapacidade. Muitas dessas
desenvolvimento, embora haja grandes diferenças condições vêm acompanhadas de dor (aguda e
em sua situação econômica e de desenvolvimento, crônica), que é abordada e tratada inadequadamente.
na política, na população e na cultura. No entanto, a Embora haja consenso de que sistemas mais sólidos
pobreza é um fator comum na situação da saúde de de saúde sejam o segredo para obter melhores
países com poucos recursos e é a principal resultados de saúde, existe menos concordância
determinante das doenças, porque a maior parte da sobre como fortalecê-los. Em países onde a renda
população vive com menos do que US$ 1 por dia média está abaixo da “linha da miséria”, existe
(abaixo da “linha da miséria”). Desnutrição, pouca prioridade específica para a dor, já que muitas
infecções e doenças parasíticas são prevalentes com pessoas se concentram em trabalhar para ter renda,
altas taxas de morbidade e mortalidade, independentemente de qualquer problema de dor.
principalmente nas áreas rurais e entre mulheres
grávidas e crianças. A maioria dos países, portanto, O tratamento da dor é um
define e implementa um “pacote essencial de saúde” problema em países com
(PES) que é o pacote mínimo econômico de saúde
pública e de intervenções clínicas para lidar com poucos recursos?
fontes importantes de doenças.
Essas prioridades de saúde foram abordadas na A dor é o problema mais comum que leva os
2000 United Nations Millennium Development Goals pacientes a procurar os profissionais de saúde em
(MDG) (Metas de Desenvolvimento para o Milênio países com poucos recursos. Em um estudo da
das Nações Unidas, 2000), que enfatizou a OMS, a dor persistente foi um problema de saúde
erradicação da pobreza e da fome, educação informado com frequência pelos pacientes de
primária universal, igualdade de sexos, redução da cuidados primários e foi consistentemente associada
mortalidade infantil, melhora da saúde materna, a distúrbios psicológicos. A dor aguda ou crônica,
7

oncológica ou não, é subtratada, e os analgésicos porque a dor costuma ser ensinada como um
podem até não estar disponíveis em hospitais rurais. sintoma da doença e não como uma experiência
com dimensões físicas, psicossociais e outras. A
Como os pacientes lidam falta de treinamento e os mitos podem levar a
medos descabidos dos efeitos adversos de
com seus problemas de dor? analgésicos opióides e a crenças errôneas sobre o
risco de dependência, mesmo em pacientes
Em geral, a primeira tentativa de tratar a dor desses oncológicos. Os pacientes também podem não
pacientes é recorrer a remédios caseiros, inclusive entender seus próprios problemas médicos, e
fitoterápicos e remédios sem prescrição médica podem esperar a dor, que eles acham que deve ser
(RSP). Eles podem ser simples analgésicos, suportada como parte inevitável de sua doença.
fitoterápicos ou medicamentos complementares. A Assim, a educação adequada é essencial para todos
automedicação e as recomendações de terceiros os profissionais de saúde envolvidos com o
(amigos, parentes, outros pacientes, fornecedores de tratamento da dor, e uma equipe multidisciplinar é
medicamentos e médicos tradicionais) são comuns. essencial para o tratamento bem sucedido da dor. A
Tais recomendações podem ser eficazes para dor dor deveria ser incluída nos currículos e nos exames
simples, sem complicações, mas quando a dor é de estudantes graduados ou pós-graduados em
forte ou persistente os pacientes vão ao hospital cuidados de saúde, e também incorporada a
como último recurso. No hospital, a maioria dos programas de educação continuada. Várias
problemas de dor é tratada pelo clínico geral, organizações produziram pacotes, protocolos e
médico de família ou especialistas de primeira linha diretrizes educacionais abrangentes para a prática
como cirurgiões ortopédicos, neurologistas e clínica, inclusive a IASP (www.iasp-pain.org). No
oncologistas. Os especialistas em tratamento da dor entanto, esses itens precisam ser adaptados para
e os clínicos dedicados à dor ou equipes de dor serem econômicos e culturalmente adequados.
aguda são poucos e às vezes não existem em países
com poucos recursos. Portanto, embora o alívio da Atitudes inadequadas dos profissionais de
dor seja parte do direito fundamental ao mais alto saúde
padrão possível de saúde, esse alvo é difícil de Em geral, os pacientes não recebem os analgésicos
atingir em países com poucos recursos, onde a adequados quando prescritos porque os
maior parte da população vive na zona rural. profissionais de saúde que deveriam administrá-los
Frequentemente, o serviço de saúde é prestado por estão muito ocupados, não estão interessados, ou se
uma rede de pequenas clínicas – algumas sem recusam a acreditar nas queixas do paciente.
médicos ou analgésicos essenciais. Mesmo quando
existem médicos, por exemplo para cirurgias, os Recursos inadequados
pacientes aguardam a dor como parte inevitável da Devido ao pessoal, equipamentos e restrições
intervenção cirúrgica e, apesar da alta incidência de financeiras, as instalações para os serviços de dor
dor relatada, ainda classificam o “alívio da dor” são manifestamente inadequadas ou não existentes
como satisfatório. em vários países em desenvolvimento. Recursos
inadequados impedem a organização de equipes de
Por que é difícil tratar dor aguda e de clínicas de dor crônica, que são
adequadamente a dor? largamente utilizadas em países desenvolvidos para
oferecer controle eficaz da dor através de métodos
baseados em evidências, educação, aconselhamento
Falta de conhecimento
sobre difíceis problemas de dor, e pesquisa. No
A falta de conhecimento entre os profissionais de
mundo em desenvolvimento, as melhoras no
saúde em países com poucos recursos é um dos
tratamento da dor aguda são mais provavelmente
principais obstáculos para o tratamento eficaz da
resultado de programas eficazes de treinamento, do
dor. A avaliação abrangente da dor e os métodos
uso de analgesia multimodal e do acesso a
multimodais de tratamento não são bem entendidos
suprimento confiável de medicamentos.
8

paliativos, é a melhor para transformar novos


Falta de analgésicos opióides conhecimentos e aptidões em intervenções baseadas
A dor moderada ou grave precisa ser tratada com em evidências e econômicas que possam atingir
analgésicos opióides, conforme proposto pela toda a população.
escada analgésica da OMS, que também foi adotada
pela Federação Mundial de Sociedades de Conclusão
Anestesiologistas (WFSA). Infelizmente, em vários
países com poucos recursos, os medos (opiofobia), A dor não tratada causa muito sofrimento aos
as preocupações e os mitos sobre o uso de opióides indivíduos afetados, sejam ricos ou pobres.
se concentram mais em tolerância, dependência e Portanto, todos os esforços devem ser feitos para
vício, que em geral não deveriam impedir o uso promover o tratamento eficaz da dor, mesmo para
médico adequado de opióides. Em 1996, o pessoas que vivem abaixo da “linha da miséria”.
International Narcotics Control Board (INCB) (Agência
Internacional de Controle de Narcóticos) fez
recomendações que levaram à publicação das
Referências
diretrizes da OMS “Achieving Balance in National
[1] Charlton E. The management of postoperative pain.
Opioid Control Policy (2000)” (Como Obter Equilíbrio Update Anaesth 1997;7:1–7.
na Política Nacional de Controle de Opióides). O [2] Gureje O, Von Korff M, Simon GE, Gater R. Persistent
pain and wellbeing: a World Health Organization study in
manual explica a razão e a urgência do uso de primary health care. JAMA 1998;280:147–51.
analgésicos opióides. [3] Size M, Soyannwo OA, Justins DM. Pain management in
developing countries. Anaesthesia 2007;62:38–43.
[4] Soyannwo OA. Postoperative pain control—prescription
Falta de prioridade do governo pattern and patient experience. West Afr J Med 1999;18:207–
As políticas nacionais são a pedra angular para a 10.
implementação de qualquer programa de saúde, e [5] Stjernsward J, Foley KM, Ferris FD. The public health
strategy for palliative care. J Pain Symptom Manage
tais políticas não existem em vários países com 2007;33:486–93.
poucos recursos. Só é possível tratar eficazmente a [6] Travis P, Bennett S, Haines A, Pang T, Bhutta Z, Hyder
AA, Pielemeier NR, Mills A, Evans T. Overcoming health-
dor se o governo incluir o alívio da dor no plano systems constraints to achieve the Millennium Development
nacional de saúde. Os fazedores de políticas e os Goals. Lancet 2004;364:900–6.
legisladores precisam garantir que as leis e os [7] Trenk J. The public/private mix and human resources for
health. Health Policy Plan 1993;8:315–26.
regulamentos nacionais, embora controlando o uso [8] World Health Organization. Cancer pain relief: with a guide
de opióides, não restrinjam a prescrição em prejuízo to opioid availability. 2nd ed. Geneva: World Health
Organization; 1996. p. 13–36.
dos pacientes necessitados. A estratégia de saúde
pública, que teve como pioneiros os cuidados

Sítios na Web
www.medsch.wisc.edu/painpolicy/publicat/oowhoabi.htm
(INCB Guidelines)
9

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 3
Fisiologia da Dor
Nilesh B. Patel

A dor não é apenas uma sensação desagradável, mas dor, são separados e, tal como descrito na
também uma modalidade sensorial complexa abordagem da modulação da dor, uma pessoa com
essencial à sobrevivência. Existem casos raros de lesões tecidulares que deveriam produzir sensações
pessoas sem sensação de dor. Um caso referido com dolorosas pode não apresentar qualquer
frequência é o de F.C., que não apresentava uma comportamento que indique dor. A nocicepção
resposta normal de dor face a danos tecidulares. pode levar à dor, a qual pode aparecer e
Mordia repetidamente a ponta da língua, queimava- desaparecer, e uma pessoa pode ter uma sensação
se, não mudava de posição na cama nem transferia o de dor sem atividade nociceptiva evidente. Estes
peso do corpo quando estava de pé e não aspetos são abrangidos na definição da IASP:
demonstrava uma resposta autónoma aos estímulos «Experiência sensorial e emocional desagradável
dolorosos. Morreu aos 29 anos. associada a danos nos tecidos, efetivos ou
O mecanismo do sistema nervoso de potenciais, ou descrita em função desses mesmos
deteção de estímulos com potencial para causar danos.»
lesões nos tecidos é muito importante para
desencadear respostas comportamentais que Fisiologia da dor
protegem o organismo de danos atuais ou
posteriores nos tecidos. Estas consistem em reações Nociceptores e a transdução dos estímulos
reflexas e também em ações preventivas contra dolorosos
estímulos que podem causar danos nos tecidos
como, por exemplo, forças mecânicas fortes, O sistema nervoso para a nocicepção que avisa o
temperaturas extremas, falta de oxigénio e cérebro quanto a estímulos sensoriais nocivos é
exposição a determinados químicos. separado do sistema nervoso que informa o cérebro
Este capítulo refere-se aos recetores quanto a estímulos sensoriais inócuos.
neuronais que respondem a vários estímulos Os nociceptores são terminações nervosas
dolorosos, a substâncias que estimulam livres não especializadas, não mielinizadas que
nociceptores, às vias nervosas e à modulação da convertem (transduzem) uma variedade de
perceção da dor. O termo nocicepção (em latim nocere, estímulos em impulsos nervosos que o cérebro
«doer») refere-se ao processo sensorial interpreta para produzir a sensação de dor. Os
desencadeado, e dor refere-se à perceção de um corpos celulares dessas terminações nervosas
sentimento ou sensação que a pessoa designa como situam-se nos gânglios raquidianos, ou no caso do
dor e descreve variavelmente como irritativa, nervo trigeminal nos gânglios trigeminais, e enviam
dolorosa, pungente, persistente, pulsátil ou uma ramificação de fibra nervosa para a periferia e
intolerável. Ambos estes aspetos, a nocicepção e a outra para a medula espinhal ou tronco cerebral.
10

A classificação do nociceptor baseia-se na Para além disto, a libertação local de


classificação da fibra nervosa que constitui a químicos, como a substância P, causa vasodilatação
terminação nervosa desse nociceptor. Existem dois e a tumefação, bem como a libertação de histamina
tipos de fibras nervosas: (1) nervos de pequeno pelos mastócitos, aumentando ainda mais a
diâmetro, não mielinizados, que conduzem vasodilatação. Esta complexa sinalização química
lentamente o impulso nervoso (2 m/seg. = 7,2 protege a zona lesionada, produzindo
km/h), designados fibras C, e (2) nervos de maior comportamentos que mantêm essa área afastada de
diâmetro, ligeiramente mielinizados, que conduzem estímulos mecânicos ou outros.
impulsos nervosos mais rapidamente (20 m/seg. = A promoção da cura e a proteção contra a infeção
72 km/h) designados fibras A. Os nociceptores de são auxiliadas pelo maior fluxo sanguíneo e pela
fibra C respondem de forma polimodal aos inflamação («função protetora da dor»).
estímulos térmicos, mecânicos e químicos; e os
nociceptores de fibra A são de dois tipos e Tabela 1
respondem aos estímulos mecânicos e Substâncias químicas selecionadas libertadas com
estímulos suficientes para causar lesões nos tecidos
mecanotérmicos. É amplamente conhecido o facto
de que a sensação de dor é constituída por duas Substância Fonte
categorias – uma dor inicial rápida e aguda Potássio Células danificadas
(«epicrítica») e uma dor lenta mais retardada, Serotonina Plaquetas
moderada, de longa duração («protopática»). Este Bradicinina Plasma
padrão explica-se pela diferença na velocidade de
Histamina Mastócitos
propagação dos impulsos nervosos nos dois tipos
de fibras nervosas descritos acima. Os impulsos Prostaglandinas Células danificadas
neuronais em nociceptores de fibra A de rápida Leucotrienos Células danificadas
condução produzem uma sensação de dor aguda e Substância P Aferentes nervosos primários
rápida, enquanto os nociceptores de fibra C, mais
lentos, produzem uma sensação de dor moderada e A hipersensibilidade pode ser diagnosticada
retardada. analisando o historial e através de um exame
A ativação periférica dos nociceptores rigoroso. Podem ser distinguidas determinadas
(transdução) é modulada por uma série de condições:
substâncias químicas que são produzidas ou a) Alodinia: dor provocada por um estímulo
libertadas quando existe lesão celular(Tabela 1). que normalmente não provoca dor, por ex. dor
Estes mediadores influenciam o grau de atividade provocada pelo toque de uma peça de vestuário em
nervosa e, por conseguinte, a intensidade da doentes com nevralgia pós-herpética.
sensação de dor. A estimulação repetida causa b) Disestesia: sensação incómoda e anormal,
normalmente uma sensibilização das fibras nervosas seja espontânea ou evocada. (Nota: uma disestesia
periféricas, causando a redução dos limiares de dor e deve ser sempre incómoda, ao passo que a
dor espontânea, um mecanismo que pode ser parestesia não o deve ser; por ex., em doentes com
sentido sob a forma de hipersensibilidade cutânea, polineuropatia diabética ou carência de vitamina B1.)
por exemplo, em zonas da pele que sofreram c) Hiperalgesia: resposta aumentada a um
queimaduras solares. estímulo que é normalmente doloroso. (Nota: a
hiperalgesia reflete dor aumentada mediante
estimulação supra-limiar; por ex., em doentes com
neuropatias na sequência de perturbações do
sistema nociceptivo com sensibilização periférica
e/ou central.)
d) Hiperestesia: maior sensibilidade à
estimulação, exceto dos sentidos especiais, por ex.,
11

sensibilidade cutânea acrescida à sensação térmica Via trigeminal


sem dor. Os estímulos nocivos oriundos da zona do rosto
Com o conhecimento das vias da dor e dos são transmitidos nas fibras nervosas provenientes
mecanismos de sensibilização, é possível das células nervosas do gânglio trigeminal, bem
desenvolver estratégias terapêuticas para interagir como dos núcleos dos nervos cranianos VII, IX e
especificamente com os mecanismos de geração da X. As fibras nervosas entram no tronco cerebral e
dor. descem até ao bolbo raquidiano, onde inervam uma
subdivisão do complexo nuclear trigeminal. A partir
Vias centrais da dor daí, as fibras nervosas que partem destas células
cruzam a linha média neural e ascendem para
A via espinhotalâmica e a via trigeminal são os inervar as células nervosas talâmicas no lado
principais percursos nervosos para a transmissão da contralateral. O disparo espontâneo dos neurónios
dor e da informação de temperatura normal do do gânglio do nervo do trigémio poderá ser a
corpo e do rosto ao encéfalo. Os órgãos viscerais etiologia para a «nevralgia trigeminal» (embora, na
possuem apenas nervos nociceptivos de fibra C, maior parte das vezes, as lesões locais nos nervos
pelo que não há ação reflexa devido à dor nos trigeminais por lesão mecânica através de uma
órgãos viscerais. artéria cerebelar se revelem ser a causa, conforme se
observou pelos resultados positivos da cirurgia de
Via espinhotalâmica descompressão trigeminal de Janetta).
As fibras nervosas dos gânglios raquidianos entram A zona do tálamo que recebe a informação
na medula espinhal através da raiz dorsal e enviam relativa à dor a partir da medula espinhal e dos
ramificações para 1 a 2 segmentos para cima e para núcleos trigeminais é também a zona que recebe a
baixo na medula espinhal (trato dorsolateral de informação acerca dos estímulos sensoriais normais
Lissauer) antes de entrar na substância cinzenta da como, por exemplo, o toque e a pressão. A partir
medula espinhal, onde estabelecem contactos desta zona, as fibras nervosas são enviadas para a
(inervam) com os neurónios na lâmina I (zona camada superficial do encéfalo (zonas corticais que
marginal) e na lâmina II (substância gelatinosa) de lidam com a informação sensorial).
Rexed. As fibras Aδ inervam as células na zona Consequentemente, dado que ambas as
marginal e as fibras C inervam principalmente as informações, nociceptiva e sensorial somática
células na camada de substância gelatinosa da normal, convergem na mesma zona cortical, a
medula espinhal. Estas células nervosas, por sua informação relativa à localização e à intensidade da
vez, inervam as células do nucleus proprius, outra zona dor pode ser processada de modo a tornar-se uma
da substância cinzenta da medula espinhal (camadas «sensação dolorosa localizada». Esta representação
IV, V e VI de Rexed), as quais enviam fibras cortical do corpo – conforme descrita no
nervosas através da linha média espinhal e ascendem homúnculo de Penfield – pode também ser uma
(na parte anterolateral ou ventrolateral da substância fonte de dor. Em determinadas situações, por ex.,
branca da medula espinhal), atravessando o bolbo após amputações de membros, a representação
raquidiano e a ponte, e inervam neurónios situados cortical pode modificar-se, causando sensações
em zonas específicas do tálamo. Isto constituía via dolorosas («dor fantasma») e sensações não
espinhotalâmica para a transmissão de informação dolorosas (por ex. «fenómenos telescópicos»).
sobre a dor e dos estímulos térmicos normais (<45º A análise da complexidade da via da dor
C). As disfunções das vias talâmicas podem, por si pode contribuir para a compreensão da dificuldade
só, ser uma fonte de dor, conforme se observa em em avaliar a origem da dor num doente e em
doentes após um AVC com dor central («dor proporcionar um alívio da dor, em particular na dor
talâmica») na zona paralisada. crónica.
12

perceção da mesma, conforme descrito noutros


Patofisiologia da dor capítulos deste guia.

As sensações de dor podem surgir na sequência de: Inibição segmentar


1) Inflamação dos nervos, por ex. nevrite Em 1965, Melzack e Wall propuseram a «teoria do
temporária. portão de controlo da dor», que foi modificada
2) Lesões nos nervos e terminações nervosas posteriormente, mas que permanece válida na
com formação de cicatriz, por ex. lesões cirúrgicas essência. A teoria propõe que a transmissão da
ou hérnia discal. informação através do ponto de contacto (sinapse)
3) Invasão do plexo nervoso por cancro, por entre as fibras nervosas Aδ e C (que transportam
ex. plexopatia braquial. informação nociva a partir da periferia) e as células
4) Lesões nas estruturas da medula espinhal, do corno dorsal da medula espinhal possa ser
no tálamo ou nas zonas corticais que processam a reduzida ou bloqueada. Assim sendo, a perceção da
informação da dor, que podem causar dor intratável; dor associada ao estímulo diminui ou não é sentida
desaferenciação, por ex. traumatismo da medula de todo. O desenvolvimento da estimulação nervosa
espinhal. elétrica transcutânea (ENET) foi a consequência
5) Atividade anómala nos circuitos nervosos clínica deste fenómeno.
que é apreendida como dor, por ex. dor fantasma A transmissão do impulso nervoso através
com reorganização cortical. da sinapse pode ser descrita como se segue: a
ativação das grandes fibras nervosas mielinizadas
Modulação da perceção da (fibras Aß) está associada aos mecano-recetores de
dor baixo limiar, como o toque, que estimulam um
nervo inibitório na medula espinhal que inibe a
transmissão sináptica. Esta é uma explicação
É amplamente conhecido o facto de que existe uma
possível para o facto de a sensação de dor diminuir
diferença entre a realidade objetiva de um estímulo
quando se fricciona uma zona lesionada (Fig. 2).
doloroso e a resposta subjetiva ao mesmo. Durante
a Segunda Guerra Mundial, Beecher, um
anestesiologista, e os seus colegas realizaram o
primeiro estudo sistemático deste efeito.
Descobriram que, muitas vezes, os soldados que
sofriam de ferimentos de guerra graves sentiam
pouca ou nenhuma dor. Esta dissociação entre
ferimento e dor também foi observada noutras
circunstâncias, como em eventos desportivos, e foi
atribuída ao efeito do contexto no qual ocorre a
lesão. A existência de dissociação indica que o
Sistema opióide endógeno
organismo possui um mecanismo que modula a
Para além do bloquear da transmissão de estímulos
perceção da dor. Acredita-se que este mecanismo
nocivos assumida na teoria do controlo do portão,
endógeno da modulação da dor garante a vantagem
outro sistema modula a perceção da dor. Desde
de uma maior sobrevivência em todas as espécies
4000 a.c., que se sabe que o ópio e seus derivados,
(Überlebensvorteil).
como a morfina, a codeína e a heroína, são
Foram descritos três mecanismos
analgésicos potentes, e continuam a ser atualmente a
importantes: inibição segmentar, o sistema opióide
base da terapêutica de alívio da dor. Nos anos 1960
endógeno e o sistema nervoso inibitório
e 1970, foram descobertos os recetores para os
descendente. Além disso, as estratégias cognitivas e
derivados do ópio, em particular nas células
outras estratégias para lidar com a dor podem
nervosas da substância cinzenta periaquedutal e no
também desempenhar um papel fundamental na
bolbo raquidiano ventral, bem como na medula
espinhal. Esta descoberta significava que o sistema
13

nervoso devia produzir químicos que constituíam Dor referida


ligandos naturais destes recetores. Foram Os órgãos viscerais não têm qualquer inervação
descobertos três grupos de compostos endógenos nervosa Aδ, mas as fibras C que transportam a
(encefalinas, endorfinas e dinorfina) que se ligam informação relativa à dor dos órgãos viscerais
aos recetores opióides e que são referidos como convergem na mesma zona da medula espinhal
constituindo o sistema opióide endógeno. A (substância gelatinosa) onde convergem as fibras
presença deste sistema e o sistema de modulação da nervosas somáticas provenientes da periferia, e o
dor descendente (adrenérgico e serotoninérgico) encéfalo localiza a sensação de dor como se tivesse
fornece uma explicação para o sistema de origem nessa zona periférica somática em vez de no
modulação interna da dor e para a variabilidade órgão visceral. Assim sendo, a dor dos órgãos
subjetiva da dor. internos é sentida numa localização que não
constitui a fonte da dor. Este tipo de dor é chamado
Sistema nervoso inibitório descendente de dor referida.
A atividade nervosa nos nervos descendentes de
determinadas zonas do tronco cerebral (substância Reflexo espinhal autónomo
cinzenta periaquedutal, bolbo raquidiano rostral) Com frequência, a informação de dor proveniente
pode controlar a ascensão da informação dos órgãos viscerais ativa os nervos que provocam a
nociceptiva ao cérebro. A serotonina e a contração dos músculos esqueléticos e a
norepinefrina são os principais neurotransmissores vasodilatação dos vasos sanguíneos cutâneos,
desta via, podendo por conseguinte ser modulados produzindo vermelhidão nessa zona da superfície
farmacologicamente. Os inibidores seletivos de corporal.
recaptação da serotonina (ISRS) e os
antidepressivos tricíclicos (por ex. amitriptilina) Conclusão
podem então apresentar propriedades analgésicas
(Fig. 3). Os estímulos químicos ou mecânicos que ativam os
nociceptores originam sinais nervosos sentidos
como dor pelo cérebro. A investigação e a
compreensão do mecanismo básico da nocicepção e
das perceções da dor oferecem uma fundamentação
lógica para as intervenções terapêuticas e para
potenciais novos alvos de desenvolvimento de
medicamentos.

Referências
[1] Westmoreland BE, Benarroch EE, Daude JR, Reagan TJ,
Sandok BA. Medical neuroscience: an approach to anatomy,
pathology, and physiology by systems and levels. 3rd ed.
Boston: Little, Brown and Co.; 1994. p. 146-54.
[2] Bear MF, Connors BW, Paradiso. Neuroscience: exploring the
brain. 2nd ed. Lippincott Williams & Wilkins; 2011. p. 422-32.
[3] Melzack R, Wall P. The challenge of pain. New York: Basic
Books; 1983.
14

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 4
Fatores Psicológicos na Dor Crónica
Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfingsten e Vladimir Hrabal

Todos sabemos o que é a dor. Afeta poucos casos. Em mais de 80% de todos os quadros
geralmente o corpo, mas também é influenciada por de lombalgia não existe um diagnóstico orgânico
fatores psicológicos e perturba sempre a consciência claro. O diagnóstico nestas circunstâncias acaba,
humana. Esta ligação entre a mente e o corpo é geralmente, por ser de dor lombar «inespecífica».
ilustrada através de muitas metáforas e símbolos, Porém, concluir que a falta de causas somáticas
que procuram resolver problemas e conflitos que indica uma etiologia psicológica é igualmente
nos torturam. Em alemão, o termo popular para a incorreto.
lombalgia (Hexenschuss – «tiro de bruxa») envolve a A Associação Internacional para o Estudo da Dor
crença psicossomática medieval de que um homem (IASP) definiu a dor como «uma experiência
orgulhoso pode ser atingido nas costas pelos sensorial e emocional desagradável associada a uma
poderes mágicos de uma bruxa, sofrendo deste lesão, real ou potencial, ou descrita em termos de tal
modo um tipo de dor agonizante capaz de o tornar lesão». Esta definição é bastante sucinta, mas
inválido. Muitas culturas acreditam que poderes abrange a complexidade do processamento da dor,
desta natureza (muitas vezes malévolos) estão na contradiz as definições excessivamente simplistas,
etiologia da dor. Esta ideia surge porque, nem segundo as quais a dor é um evento meramente
sempre, é fácil determinar a causa da dor. Por vezes, nociceptivo, e ainda chama a atenção para as
as estruturas somáticas estão completamente diversas influências psicológicas.
intactas e não é possível identificar uma lesão ou A dor é frequentemente acompanhada de
uma disfunção fisiológica ou neuronal que possa emoções fortes. É percebida, não apenas como uma
constituir uma potencial fonte de dor. A crença em sensação descrita por palavras como queimante,
poderes mágicos funda-se também na experiência compressiva, penetrante ou cortante, mas também
de que os fatores psicológicos são tão importantes como uma experiência emocional (afetiva),
para o controlo da dor quanto a análise da sua traduzida com recurso a vocábulos como
etiologia física A investigação atual, com recurso ao agonizante, cruel, terrível e excruciante. A
placebo, tem vindo a confirmar a relevância destes associação entre a dor e a sua conotação emocional
fatores de diversas formas. negativa é evolutiva. A aversão dos organismos à
Mesmo algumas teorias leigas, como a lenda dor ajuda-os a aprender rápida e eficazmente a
moderna do «desgaste do disco», só conseguem evitar situações perigosas e a desenvolver
descrever a causa real dos sintomas em muito comportamentos que reduzem a probabilidade de
15

dor e, por consequência, de danos físicos. A melhor dor comporta sempre os dois fatores – o somático e
aprendizagem ocorre quando estamos atentos e o psicológico – e esta dicotomização obsoleta deve
quando os conhecimentos adquiridos se associam a ser ultrapassada através da abordagem holística da
emoções fortes. No que diz respeito à dor aguda – e dor.
em particular quando o perigo provém do exterior –
esta ligação é extremamente útil, uma vez que o Interação entre fatores
comportamento de evitamento aprendido face à dor
reduz drasticamente os riscos para a saúde. Quando
biológicos, psicológicos e
se trata de dor crónica, porém, evitar a atividade e o sociais
contacto social afeta o doente, levando-o a
concentrar-se quase exclusivamente na dor. Esta Uma conceptualização completa da dor
tendência conduz a um círculo vicioso de dor, falta crónica é complexa e deve considerar o máximo de
de atividade, medo, depressão e mais dor. fatores possível. Os profissionais de saúde a
trabalhar em dor não podem assumir uma atitude
Os doentes adotam ingénua, orientando-se apenas para um dos fatores.
frequentemente um modelo Se valorizarem simplesmente os aspetos
psicológicos e negligenciarem a componente
de dor somática somática, os doentes com perturbações mentais
(por exemplo, depressão ou ansiedade) não
Na medicina ocidental, a dor é receberão os cuidados de que necessitam; o facto de
frequentemente encarada como uma reação uma pessoa sofrer de uma perturbação mental não
neurofisiológica à estimulação de nociceptores, cuja significa que esteja imune a perturbações físicas e à
intensidade – à semelhança do calor ou do frio – dor a elas associada. Por oposição, se derem apenas
depende do grau de estimulação. Quanto mais forte atenção aos sintomas somáticos, porque são claros,
for o calor do fogão, mais intensa é, normalmente, a os doentes podem não receber cuidados
perceção da dor. No entanto, este processo psicológicos adequados; a ansiedade associada à dor
neuronal simples só se aplica à dor aguda ou à dor e o humor depressivo, os comportamentos
experimental, sob condições laboratoriais altamente desajustados relacionados com a dor e as
controladas, que duram apenas um breve período de comorbilidades psicopatológicas podem ser
tempo. Devido à forma como a dor é retratada na descurados.
ciência popular, os doentes tendem também a aderir De uma perspetiva psicológica, presume-se
a esta teoria leiga e ingénua. Estes são levados a que as perturbações associadas à dor crónica são
assumir pressupostos desfavoráveis como, por causadas por processos somáticos (patologia física)
exemplo, (1) a dor tem sempre uma causa somática ou por níveis de stresse significativos. Poderá existir
e basta continuar à sua procura, (2) a dor sem uma doença física, mas também um processo
qualquer causa patológica deve ser psicogénica e (3) funcional, como uma reação fisiológica ao stresse
psicogénico significa psicopatológico. sob a forma de tensão muscular, hiperatividade
Os médicos consideram os fatores vegetativa e aumento da sensibilidade dos recetores
psicogénicos como contributivos apenas se a da dor. À medida que a perturbação progride, as
etiologia da dor não puder ser suficientemente causas identificadas originalmente vão perdendo
explicada por causas somáticas. Nestes casos, importância e os mecanismos de cronificação
diriam, por exemplo, que a dor é psicológica vão ganhando prevalência. Os efeitos da
«predominantemente psicológica». Por dor podem então tornar-se fator de manutenção dos
consequência, os doentes têm receio de não ser sintomas.
levados a sério e continuam a insistir junto do As modernas técnicas de ressonância
médico para que encontre a origem física da sua magnética cerebral têm confirmado os pressupostos
dor. Esta situação conduz a uma dicotomia inútil de psicológicos acerca da dor e têm fornecido a base
dor somatogénica versus dor psicogénica. Todavia, a para uma melhor compreensão de como os fatores
16

psicológicos e somáticos atuam em conjunto. Tal abordagem porque os fatores psicossociais


como é referido por Chen, não existe apenas um desempenham um papel fundamental na
centro de dor, mas sim uma matriz neurológica cronicidade da dor e são decisivos na reabilitação
constituída por todas as zonas ativadas pelo para o trabalho.
processamento dos dados sensoriais, afetivos e De seguida, apresentamos uma lista de
cognitivos, envolvendo, em particular, o córtex intervenções psicológicas individuais e de grupo e
sensorial primário, a ínsula, o giro cingulado, a respetivos objetivos. Estas podem ser usadas em
substância cinzenta periaquedutal e a região cortical vários contextos e exigem diferentes níveis de
frontal: «As medidas cerebrais neurofisiológicas e conhecimento especializado (Quadro 1).
neuro-hemodinâmicas da dor experimental podem Devido ao seu enfoque somático,
agora satisfazer amplamente o sonho de qualquer determinados processos, como o biofeedback e a
psicofisiologista; seria inimaginável há apenas alguns ativação física e psicológica, são bem aceites pelos
anos representar num modelo a dualidade corpo- doentes. Um dos principais objetivos das
cérebro, cérebro-mente, mente-matéria numa tríade terapêuticas psicológicas da dor é o de diminuir a
interligada: elementos físico (estímulo), fisiológico sensação subjetiva de desespero do doente. É
(atividade cerebral) e psíquico (perceção). Podemos comum estes sentirem-se incapazes de fazer seja o
também imaginar que a identificação e a projeção, a que for quanto à sua dor, e, devido a inúmeras
partir de um modelo, da rede neuronal estímulo- terapêuticas falhadas, acabam por se tornar passivos
atenção, emoção-motivação e perceção-cognição e por se sentir desesperados e deprimidos. Por
envolvida no processamento da dor no cérebro vezes, o doente procura apenas a eliminação
permitirá uma compreensão mais profunda da completa da dor, não gerindo, por isso, nem
mente humana.» procurando alterar ativamente os acontecimentos. É
Um dos resultados importantes da comum que a desilusão daí resultante, com um
investigação, em estudos que recorreram à RNM enorme impacto em todas as áreas da vida, se torne,
funcional (ressonância magnética funcional do depois, no seu principal problema. Com efeito, um
cérebro), aponta para o facto de os sentimentos dos «fatores de proteção» contra a depressão é a
negativos, como a rejeição e a perda, geralmente flexibilidade do doente para ajustar os seus objetivos
referidos como experiências dolorosas, gerarem pessoais; a falta de flexibilidade resulta em dor
padrões de estimulação neuronal semelhantes aos intensa e depressão. Aceitação não significa
originados pela estimulação nóxica. Esta descoberta resignação, mas permite:
tem um grande significado clínico, dado que as  Não desistir da luta contra a dor,
pessoas marginalizadas e traumatizadas podem não  A confrontação realista da dor e
só sofrer de perturbação de stresse pós-traumático  O interesse em atividades diárias positivas
(PSPT), mas também apresentar níveis elevados de
dor que podem persistir mesmo depois da cura As intervenções psicológicas mais
física. importantes baseiam-se nos princípios da teoria da
aprendizagem e traduzem-se nas seguintes regras:
Intervenção psicológica na  Deixar o doente descobrir os seus limites
dor em atividades como caminhar, sentar-se ou
subir escadas, sem que isso aumente
A intervenção psicológica tem um papel significativamente a dor.
bem estabelecido na terapêutica da dor. Constitui  Planear com o doente aumentos graduais,
uma componente integrativa dos cuidados ao sistemáticos e regulares e definir objetivos
paciente e tem sido usada, com sucesso, em várias intermédios realistas («é preferível avançar
perturbações somáticas. Pode configurar-se como lentamente na direção certa, do que
uma alternativa ou como um complemento aos rapidamente na direção errada»).
procedimentos médicos e cirúrgicos. Os doentes
com dor crónica beneficiam, geralmente, com esta
17

 A medicação deve ser tomada de acordo tangíveis e positivos; os objetivos complexos ou


com um plano e não apenas quando mais difíceis podem ser tratados de forma sucessiva
necessária. e as condições desfavoráveis à sua concretização
 Confrontar, gradualmente, o doente com devem ser cuidadosamente consideradas. Não faz
situações geradoras de ansiedade (por sentido incentivar um doente a regressar ao
exemplo, levantar objetos pesados, fazer trabalho, e fazer disso um objetivo, se for pouco
movimentos de rotação ou movimentos provável a sua concretização devido às condições
repentinos). do mercado de trabalho. Um objetivo preferencial
 As alterações de comportamento não poderá ser conseguir uma melhor qualidade de vida,
devem surgir sob a forma de ordens do através do envolvimento em atividades de lazer
médico, mas devem antes ser veiculadas significativas. A expansão da atividade torna mais
através de informação cuidadosamente provável a reintegração social (com a família, os
formulada (educação). amigos e os colegas). O apoio dado aos doentes ao
longo do processo aumenta a probabilidade de a
 A terapêutica psicológica é combinada com
atividade se manter para além do final da terapia.
procedimentos médicos e fisioterapêuticos.
Para além de incentivar a atividade, o terapeuta deve
também planear as fases de repouso e de
As equipas interdisciplinares, com uma
relaxamento, de modo a garantir que o doente não
abordagem biopsicossocial, não distinguem entre
se esforça demasiado.
fatores somáticos e psicológicos, tratando ambos
Por seu turno, as estratégias de modificação
simultaneamente, dentro das suas especialidades e
cognitivo-emocional focam-se, predominantemente, na
consultando-se mutuamente.
alteração dos processos cognitivos (convicções,
atitudes, expectativas, padrões e pensamentos
Intervenções «automáticos»). Trata-se de ensinar ao doente
comportamentais estratégias de coping face à dor, munindo-o com um
conjunto de novas e mais apropriadas competências
Os métodos psicológicos de controlo da dor cognitivas (e comportamentais) para lidar com a dor
tentam alterar os comportamentos e as cognições de e com a limitação. Por exemplo, este aprende a
dor. identificar pensamentos que desencadeiam ou
As intervenções comportamentais visam a mantêm a dor, a entender as características
alteração de comportamentos óbvios, tais como situacionais e a desenvolver estratégias alternativas
tomar medicação e recorrer ao sistema de saúde ou para lidar com a dor. Conhecendo técnicas
de outros aspetos relacionados com atividades da apropriadas para lidar com a dor, o doente terá
vida profissional, pessoal e de lazer. Focam-se, em maior capacidade para a controlar; a confiança nas
particular, no comportamento passivo de evitamento, um suas capacidades diminuirá a sensação de desespero
comportamento patológico que se traduz no e torná-lo-á mais proactivo. Um dos objetivos
evitamento ansioso de qualquer atividade física e terapêuticos passa por o doente aprender a
social. Por isso, esta abordagem procura aumentar monitorizar a forma como expressa os sintomas
os níveis de atividade. Este passo é acompanhado (um elemento de que os pacientes, geralmente, não
por iniciativas educativas, que ajudam a reduzir a têm consciência) para conseguir gerir e manipular
ansiedade e a aumentar a motivação. melhor o seu ambiente social. O processo
O seu objetivo terapêutico passa pela terapêutico deve ensinar competências sociais
redução do comportamento passivo de dor e pelo adequadas como, por exemplo, ajudar o doente a
estabelecimento de formas de comportamento mais afirmar os seus próprios interesses para prevenir a
ativas. A intervenção inicia-se com a elaboração de utilização dos comportamentos de dor com esta
uma lista de objetivos, onde se especifica o que o função (designada por dor «instrumental»).
doente pretende alcançar, por exemplo, conseguir ir A análise funcional do problema é outra
ao futebol. Estes objetivos devem ser realistas, ferramenta importante na terapêutica
comportamental. No decorrer desta análise, os
18

doentes e seus terapeutas recolhem, informação são um complemento importante da


sistematicamente, informação sobre a forma como atividade terapêutica e a educação do doente é um
os eventos internos ou externos se ligam à elemento de relevo que se pode constituir como
experiência de dor e ao comportamento de dor. base para outras intervenções. Um treino
Recolhem também informação detalhada sobre os informativo bem-sucedido é o alicerce de que os
efeitos e as funções do comportamento (por doentes necessitam para selecionar e desenvolver os
exemplo, no ambiente profissional ou nas relações seus objetivos terapêuticos.
pessoais). Compreendendo estes elementos, é
possível desenvolver uma perspetiva sobre os Técnicas de relaxamento
aspetos situacionais, cognitivo-emocionais e
comportamentais que compõem a experiência de As técnicas de relaxamento são as técnicas
dor e de como estes a podem manter. Tal mais frequentemente usadas na abordagem
observação pode então ser usada para estabelecer psicológica da dor e constituem uma pedra angular
alvos para a intervenção, objetivos e definir atitudes da terapêutica cognitivo-comportamental. São
que permitam quebrar o ciclo de dor e atuar sobre eficazes porque ensinam os doentes a produzir,
as suas condições de manutenção. A auto- intencionalmente, uma resposta de relaxamento,
observação do doente, com a ajuda de diários de processo psicofisiológico que reduz o stresse e a
dor, é particularmente importante para esta análise. dor. Os exercícios de relaxamento executados
Este registo pode também constituir a base para a corretamente podem contrariar as respostas
auto-educação do doente, em particular se a sua fisiológicas de curto prazo (a nível neuronal) e
descrição incluir pressupostos gerais sobre a dor, o prevenir um circuito de feedback positivo entre a dor
prognóstico e o tratamento. e as reações de stresse, por exemplo, criando
intencionalmente um estado afetivo positivo. À
Educar o doente com dor medida que aprendem progressivamente estas
técnicas, os doentes vão tendo mais capacidade de
O medo da dor e a ansiedade ante a ideia de reconhecer a tensão interna, o que também os torna
se poder sofrer de uma doença «grave» são fatores mais conscientes das situações e das fontes de
importantes no processo de cronificação. A stresse pessoais (a nível cognitivo). Algumas
incerteza e a falta de explicações são condições que técnicas (por exemplo, o relaxamento muscular
contribuem para estas preocupações. As fantasias progressivo) criam uma melhor perceção do corpo,
relativas à presença de uma doença grave têm podendo ajudar a identificar situações de stresse.
consequências comportamentais negativas e As técnicas de relaxamento mais conhecidas
alimentam o comportamento passivo de dor. De são o relaxamento muscular progressivo de
modo a diminuir esta dúvida, os doentes devem Jacobson (RMP), o treino autogénico (TA) e outras
receber informação, utilizando-se para isso materiais técnicas que envolvem imaginação guiada,
escritos ou gráficos, ou ainda vídeos. É respiração controlada e meditação. Todas estas
particularmente importante que não seja criticado o técnicas devem ser praticadas durante algum tempo
conceito, muitas vezes simplista, de dor somática, até serem dominadas. O sucesso duradouro só
mas antes que se ampliem as conceptualizações poderá ser alcançado através de um esforço
subjetivas do doente, abrindo novas possibilidades prolongado. As técnicas de relaxamento são menos
de o envolver ativamente. Com base em informação bem-sucedidas em situações de dor aguda, sendo
de fácil compreensão acerca da fisiologia e da mais frequentemente usadas para controlar a dor
psicologia da dor, da medicina psicossomática e da crónica.
gestão do stresse, os doentes devem poder
apreender que a dor não é um fenómeno puramente Biofeedback
somático, mas que é também influenciada por
aspetos psicológicos (perceção, atenção, O biofeedback envolve a aprendizagem
pensamentos e sentimentos). Os materiais de fisiológica, medindo componentes fisiológicas da
19

dor, como a atividade muscular, as respostas biofeedback, passível de ser usado em condições
vasculares ou a ativação do sistema nervoso normais do dia-a-dia.
autónomo, e fornecendo um feedback visual ou
sonoro ao doente. Esta técnica é útil em situações Processos multimodais
de enxaqueca, cefaleia de tensão e dor lombar. São
usados vários métodos para a enxaqueca como, por A abordagem multimodal da dor baseia-se
exemplo, as técnicas de aquecimento das mãos e o em dois pressupostos:
treino de constrição vascular (visando a artéria 1) A dor crónica não tem uma etiologia
temporal). única, resultando antes de várias causas e fatores de
Mediante a técnica de aquecimento das influência.
mãos ou biofeedback térmico, o doente recebe 2) Uma combinação de várias intervenções
informação acerca do fluxo sanguíneo para um terapêuticas demonstrou ser eficaz no tratamento da
dedo, medindo geralmente a temperatura da pele dor crónica (independentemente do síndrome de
com um sensor. Pede-se ao doente que aumente o dor).
fluxo sanguíneo em direção à mão (e, por Na moderna terapêutica da dor, a
conseguinte, que reduza a vasodilatação nas artérias intervenção não é realizada de forma isolada, mas
da cabeça). inscreve-se antes num contexto conceptual mais
No treino de feedback autogénico, o abrangente. O processo centra-se na redução da
aquecimento das mãos é auxiliado pelo incapacidade (subjetivamente percebida), alterando
desenvolvimento de intenções formulares as condições situacionais e os processos cognitivos
provenientes do treino autogénico (exercícios do doente. Estes programas podem ser aplicados de
térmicos). Os processos são demonstrados e usados acordo com o “princípio da espingarda”, por
apenas durante os períodos sem dor. Em primeiro exemplo, todos os módulos podem ser usados
lugar, o doente pratica com feedback e imagens tendo na “mira” as áreas mais importantes, ou o
térmicas. Em seguida, as condições do exercício são terapeuta pode usar o diagnóstico para elaborar um
dificultadas e pede-se-lhe, com o auxílio do feedback plano de tratamento modular específico. Este
térmico, que permaneça descontraído enquanto último método só pode ser aplicado se for possível
imagina uma situação de stresse. Por fim, sugere-se realizar um diagnóstico individual. Num contexto de
que aumente a temperatura da mão sem qualquer grupo, o processo estandardizado funciona melhor
feedback direto, sendo-lhe depois dito se conseguiu devido às diferenças esperadas entre os doentes.
ou não.
No biofeedback com eletromiografia (EMG)
para cefaleias de tensão ou dor lombar, o feedback é
Programas de recuperação
dado, geralmente, a partir do nível de tensão na funcional
testa, nos músculos do pescoço ou na região lombar
e é usado para ensinar os doentes a reduzir a tensão. Estes programas caracterizam-se pelo claro
Os doentes com dores no aparelho locomotor enfoque na medicina desportiva e nos princípios da
podem também praticar determinados padrões de terapêutica comportamental que lhe subjazem. A
movimento, não apenas em posição reclinada ou redução da dor, enquanto objetivo de tratamento,
durante o período de repouso, mas também noutras tem uma função menor. Partindo de considerações
posições corporais e durante a atividade física relacionadas com a teoria da aprendizagem que
dinâmica. É importante que os grupos musculares validam o «carácter cumulativo» do comportamento
sejam selecionados com base nas anomalias de dor, a dor em si mesma é, basicamente, excluída
fisiológicas – a partir da atividade muscular avaliada do foco terapêutico. Estes programas tentam ajudar
pela EMG de superfície ou dos parâmetros de os doentes a funcionar novamente nas suas vidas
diagnóstico físico, como as miogeloses ativas pessoal e profissional (recuperação funcional). O
(tensão muscular dolorosa localizada ao toque). Para principal objetivo desta intervenção passa por
isso pode ser utilizado um dispositivo portátil de reduzir o efeito adverso subjetivo e os consequentes
medo e ansiedade.
20

O tratamento integra desporto, terapia controlados num processo de treino gradual que
ocupacional, exercício físico e intervenção reproduza o comportamento, tanto quanto possível.
psicoterapêutica. A componente de terapia física Podem ser usadas máquinas durante o treino
procura melhorar a resistência física, a capacidade (o doente sente-se seguro devido aos movimentos
cardiovascular e pulmonar, a coordenação e a guiados e limitados), mas estas constituem
perceção do corpo, bem como permitir uma maior condições «artificiais», pelo que dificultam a
capacidade para gerir o stresse. A intervenção necessária transição para o dia-a-dia. Deste modo, o
psicoterapêutica tenta alterar os efeitos emocionais plano deve incluir atividades da rotina diária logo
adversos (terapia antidepressiva). O comportamento que possível.
do doente cinge-se, muitas vezes, ao descanso e ao Existindo uma estreita ligação entre a dor
relaxamento, associando-se a atitudes ou ansiedades lombar e o trabalho, a intervenção deve ser
representadas cognitivamente em relação à atividade complementada com abordagens sócio-terapêuticas
e à capacidade de trabalhar. (ajuste das capacidades do indivíduo ao seu perfil
O foco desta abordagem psicológica profissional - prevenção comportamental) e com a
(cognitivo-comportamental) é semelhante ao dos alteração das variáveis do ambiente profissional (por
métodos descritos acima. Trata-se de uma exemplo, mudança das funções laborais ou
intervenção altamente orientada para os aspetos reconversão profissional - prevenção condicional).
somáticos, embora os efeitos psicológicos do treino
sejam tão importantes quanto as alterações Eficácia das terapêuticas
alcançadas em termos de força muscular, resistência
e coordenação. A atividade física intensa É incluída
psicológicas
de modo a:
1) Diminuir a ansiedade relacionada com o A eficácia da intervenção psicológica em
movimento e os bloqueios motores doentes com dor crónica encontra-se
funcionais. suficientemente documentada. Vários estudos meta-
2) Quebrar a ligação aprendida entre dor e analíticos demonstraram que cerca de dois em cada
atividade. três destes pacientes conseguem regressar ao
3) Treinar formas para lidar com o stresse. trabalho depois de se terem submetido a uma
4) Propiciar diversão e prazer, geralmente terapia cognitivo-comportamental.
sentidos durante os momentos lúdicos da Comparativamente com a intervenção
intervenção e que podem levar a novas exclusivamente baseada em medicação, as técnicas
experiências emocionais. cognitivo-comportamentais são mais eficazes na
redução da experiência da dor, na melhoria da
Os pressupostos da teoria da aprendizagem capacidade para lidar com a dor, na redução do
indicam que a dor deve perder a sua função comportamento de dor e no aumento da capacidade
discriminante para que os doentes consigam gerir o funcional. A maior parte dos efeitos mantêm-se ao
seu comportamento de dor. Assim, o treino físico longo do tempo.
não pode ser limitado pela dor que causa, mas antes A terapia comportamental não é uma
orientado para objetivos pessoais pré-definidos. A abordagem homogénea, sendo antes constituída por
definição de objetivos reforça a perceção de vários métodos de intervenção, cada um orientado
controlo e de auto-eficácia face à dor. O fracasso para um objetivo de modificação específico. Esta
sentido no início do processo (por exemplo, se as vantagem multidimensional também constitui uma
metas não forem alcançadas) pode diminuir, de desvantagem, já que nem sempre é possível
forma significativa, a motivação do doente, pelo que esclarecer qual o tipo de conteúdo necessário. Quer
os objetivos iniciais devem ser muito simples (peso, isto dizer que, embora o efeito em si mesmo tenha
número de repetições). As crenças dos doentes sido comprovado, sem margem para dúvida, é
acerca da sua doença, em particular o medo do muito menos claro por que motivo, e em que
movimento, devem ser consideradas com especial combinação, as intervenções são eficazes.
atenção. Estes medos devem ser registados e
21

Pérolas de sabedoria  Até à data, nem os opióides, nem o


desenvolvimento de medicação ou de
cirurgia específica para determinados tipos
 Os processos psicológicos desempenham de dor conduziram às soluções esperadas
uma função importante no complexo para acabar com a dor crónica.
processamento da informação da dor. A dor
afeta não apenas o corpo, mas o ser humano
como um todo. Esta presença torna-se mais
Referências
pronunciada se o doente não conhecer as
[1] Chen ACN. New perspectives in EEG/MEG brain mapping and
causas ou não construir um significado para PET/fMRI neuroimaging of human pain. Int J Psychophysiol 2001;
a dor, o que, por sua vez, provoca ansiedade 42:147-59.
e aumento da dor. [2] Enck P, Benedetti F, Schedlowski M. New insights into the
placebo and nocebo responses. Neuron 2008; 59:195-206.
 Existem vários fatores que podem ter um [3] Haldorsen EMH, Grasdal AL, Skouen JS, Risa AE, Kronholm K,
efeito adicional no desenvolvimento das Ursin H. Is there a right treatment for a particular patient group? Pain
2002; 95:49-63.
perturbações crónicas. Por isso, um modelo
[4] Le Breton D. Anthropologie de la douleur. Paris: Éditions
explicativo pode ajudar a determinar a Métaillié; 2000.
melhor abordagem terapêutica, que deve [5] Linto SJ, Nordin E. A 5-year follow-up evaluation of the health
and economic consequences of an early cognitive behavioral
considerar, as componentes biológica
intervention for back pain: a randomized, controlled trial. Spine 2006;
(somática), psicológica e social. Este modelo 31:853-858.
não se foca nos elementos individuais, que [6] McCracken LM, Turk DC. Behavioral and cognitive-behavioral
treatment for chronic pain. Spine 2002; 15:2564-73.
deixaram de ser identificáveis, mas sim no
[7] Nilges P, Traue HC. Psychologische Aspekte des Schmerzes,
todo interativo. Verhaltenstherapie Verhaltensmedizin 2007; 28:302-22.
 O próprio doente é um dos integrantes do [8] Schmutz U, Saile H, Nilges P. Coping with chronic pain: flexible
goal adjustment as an interactive buffer against pain-related distress.
processo, caso consinta em participar Pain 1996; 67:41-51.
ativamente nas alterações necessárias e em [9] Sharp TJ, Harvey AG. Chronic pain and posttraumatic
assumir mais responsabilidade por si stress disorder: mutual maintenance? Clin Psychol Rev 2001;
próprio, pela sua doença e pelo decurso 21:857-77.
desta. Os resultados de numerosos anos de
investigação no âmbito da Psicologia da Dor
têm revelado dados importantes para este Sítios na Web
processo.
 Não se trata de substituir a terapêutica IASP: www.iasp-pain.org
médica pela intervenção psicológica, mas
sim de usar os conhecimentos de diversas
especialidades, de uma forma integrada, para
tratar, da melhor forma possível, este
complexo grupo de doentes.
 É comum os doentes crónicos sentirem-se
impressionados com intervenções médicas,
como as cirurgias, as injeções ou a
medicação, tendo expectativas elevadas de
uma rápida eliminação da dor, sem que seja
necessário o seu próprio envolvimento. Mas,
também é comum, o sistema médico
alimentar esperanças elevadas de cura da
dor, que acabam por ser, geralmente,
goradas.
22

Quadro 1
Intervenções psicológicas e objetivos terapêuticos
Intervenção Objetivos Contexto do Necessidade de conhecimentos
terapêuticos tratamento especializados de psicologia*
Formação do doente Educar, isto é, expandir as Clínico geral +
conceptualizações subjetivas de dor do
doente (integração de aspetos
psicossociais)
Gestão dos medicamentos Reduzir a medicação, usar a medicação Clínico geral ++
correta e prevenir o uso indevido
Treino de relaxamento Aprender a usar o relaxamento para lidar Psicólogo + +
com a dor e o stresse fisioterapeuta
Otimização de recursos Analisar e reforçar os próprios recursos Clínico geral +
para lidar com a dor
Regulação da atividade Otimizar os níveis de atividade (equilíbrio Médico + ++
entre descanso e atividade): reduzir o psicólogo/psiquiatra
evitamento motivado pelo medo e
aumentar o nível de atividade
Dor e coping Otimizar a capacidade de lidar com a dor Psicólogo/psiquiatra ++
Envolvimento dos Envolver os cuidadores do doente na Clínico geral +
cuidadores concretização dos objetivos terapêuticos
Melhoria da auto- Encontrar uma ligação pessoal entre a dor Psicólogo/psiquiatra +++
observação e os acontecimentos internos ou externos,
o que pode ajudar a estabelecer formas de
controlar a dor. Analisar as condições que
aumentam a dor e o stresse
Gestão do stresse Aprender técnicas de resolução de Psicólogo/psiquiatra +++
problemas e para lidar com o stresse
Aprender a desfrutar das Reforçar as atividades que o doente Clínico +
atividades aprecia e que gosta de praticar geral/fisioterapeuta
Comunicação Modificar a comunicação inadequada da Clínico geral +
dor e a interação /psicólogo
Desenvolver perspetivas Desenvolver perspetivas realistas para o Clínico geral +
para o futuro futuro (profissional, pessoal) e iniciar
planos de ação
Intervenções terapêuticas especiais
Reestruturação cognitiva Modificar as cognições catastróficas e Psicólogo/psiquiatra +++
depressivas
Biofeedback Aprender a ativar funções motoras e Psicólogo ++++
neuronais específicas (sistemas vegetativo
e nervoso central) e a melhor auto-regulá-
las
Recuperação funcional Restaurar a funcionalidade na vida pessoal Interdisciplinar: ++++
e profissional; reduzir a perceção ortopedista +
subjetiva de disfunção e a ansiedade fisiologista
relacionada com o movimento
* De baixo (+) a elevado (++++).
23

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 5
Influências Etnoculturais e de Género na Dor
Angela Mailis-Gagnon

Descrição de casos cuidados de saúde. Maryann Bates [1], professora na


School of Education and Human Development da State
University of New York, estudou doentes que sofriam
de dor, provenientes de vários contextos étnicos.
Um doente de 40 anos, do sexo masculino, vem a Bates sugeriu que a cultura reflecte as formas
uma consulta. É chinês e vive há 2 anos num país ocidental. padronizadas de o ser humano aprender a pensar sobre, e a
O seu inglês é meramente funcional. Enquanto tenta obter agir, no seu mundo. A cultura envolve estilos de
informação sobre a dor cervical que o levou até si, o doente pensamento e comportamento aprendidos e
olha constantemente para o chão e tenta evitar o contacto partilhados dentro da estrutura social do nosso
visual. Está deprimido ou a desrespeitá-lo? mundo pessoal. Neste contexto, cultura é diferente
Uma mulher de 25 anos com um hijab e vestuário de etnicidade. Esta última refere-se,
tradicional muçulmano é trazida pelo marido por dores especificamente, ao sentido de pertencer a um grupo social
corporais difusas. Parece desconfortável ao constatar que o particular dentro de um ambiente cultural mais alargado. Os
médico que a vai examinar é um homem. Uma vez que o membros de um grupo étnico podem partilhar
médico em causa é o único disponível no momento, como irá traços comuns como a religião, o idioma, a
ele gerir a situação? ascendência e outros.
Um agricultor de 75 anos, que completou apenas o
ensino primário, vai a uma consulta devido a uma artrite
grave no joelho. Não tolera a medicação anti-inflamatória
Porque é importante
não esteróide e recusa ser operado ao joelho. A sua dor compreender a etnicidade e
responde muito bem a pequenas doses de morfina de a cultura quando se faz um
libertação prolongada. No entanto, sente náuseas fortes e
vomita sempre. Fica claramente irritado quando lhe propõe diagnóstico de dor e se
supositórios de Dimenidrinato e depois de lhe explicar como procura o seu controlo?
usá-los. Porque acha que ficou zangado e como pensa resolver
este problema?
A cultura e a etnicidade afetam a perceção e
Estes são problemas clínicos comuns que se
a expressão da dor e têm sido objecto de
colocaram quer a médicos dos cuidados de saúde
investigação desde a década de 50. Os estudos
primários, quer a médicos a trabalhar em Unidades
realizados com gémeos adultos sustentam que são
de Dor, e são exemplos de como as raízes culturais
os padrões de comportamento culturais, e não os
e étnicas afectam a percepção da dor, a sua
nossos genes, que determinam a forma como
expressão e a interacção com os prestadores de
reagimos à dor. São numerosos os exemplos de
24

como a cultura e a etnicidade afetam a perceção e a sendo moldada e remoldada pela cultura em que os
expressão da dor, tanto em laboratório, como em grupos vivem ou para a qual se mudam.
contexto clínico. Em estudos com doentes oncológicos, os
Em laboratório, num estudo clássico, já com hispânicos apresentavam resultados de dor e de
alguns anos, foi demonstrado que enquanto pessoas qualidade de vida muito piores do que os dos
de origem mediterrânica descreviam uma forma de caucasianos ou os dos afro-americanos. Os doentes
calor radiante como «dolorosa», indivíduos do oncológicos hispânicos referiam usar a religiosidade
Norte da Europa designavam-na simplesmente como forte recurso para lidar com a dor.
como «quente». Ao aplicar choques eléctricos a Os afro-americanos queixavam-se de mais
indivíduos de vários contextos étnicos, as mulheres dor durante a cirurgia da escoliose do que os
de descendência italiana toleravam menos choques caucasianos, enquanto que os mexicanos-
do que as mulheres da «velha» América ou de americanos evocavam mais dor no peito e na parte
origem hebraica. Noutro estudo experimental, superior das costas do que os indivíduos de raça
quando era comunicado a mulheres hebraicas e branca não hispânicos durante um enfarte do
protestantes que o seu grupo religioso tinha um miocárdio.
desempenho inferior ao de outros grupos, numa Outro exemplo, da vida real, de como a
experiência com choques eléctricos, as mulheres cultura molda as reacções das pessoas perante os
hebraicas conseguiam tolerar um nível de choques eventos dolorosos, é o facto de numa consulta de
mais elevado. Antes de ser dada esta informação, Medicina Dentária, apenas 10% dos doentes adultos
estas mulheres haviam sido as que tinham tolerado na China, contra 99% dos doentes adultos na
os níveis de choques mais baixos. As suas origens América do Norte, receberem regularmente
culturais levavam-nas a queixar-se facilmente da dor, anestesia local para tratamentos de obturação.
pelo que tinham mais «margem de manobra» face a Todos estes estudos, e os descritos em
estímulos adicionais. seguida, foram resumidos por Mailis Gagnon e
Num estudo clínico com seis grupos étnicos Israelson no seu popular livro científico, Beyond Pain
(incluindo doentes com dor provenientes da «velha» [3].
América, hispânicos, irlandeses, italianos,
canadianos franceses e polacos), os hispânicos As influências culturais
relatavam os níveis de dor mais elevados. Estes
doentes caracterizavam-se por apresentar um locus
podem aumentar e diminuir
de controlo externo (a crença de que os a percepção da dor?
acontecimentos da vida estão fora do controlo da
pessoa e nas mãos do destino, do acaso ou de outras Por oposição, o que poderemos dizer das
pessoas). Noutro estudo clínico, os doentes de uma influências culturais que diminuem, em vez de
Unidade de Dor em Nova Inglaterra, nos Estados aumentar, a percepção da dor? Em determinadas
Unidos, foram comparados com os de uma unidade partes do mundo, como a Índia, o Médio e o
de ambulatório em Porto Rico. Os porto-riquenhos Extremo Oriente, a África, alguns países da Europa
(hispânicos ou latinos) apresentavam, no geral, e nas Primeiras Nações Norte-Americanas, a
níveis de dor mais elevados (resultado concordante capacidade de resistir à dor é considerada uma
com o obtido no estudo antes mencionado). Este prova de acesso ou de relação especial com os
dado apoia a crença, já antiga, de que as culturas deuses, uma prova de fé ou um sinal de que se está
latinas são mais reactivas à dor. No entanto, quando pronto para «se ser adulto» através de «iniciações»
os investigadores estudaram porto-riquenhos que ou de «rituais». Durante muitos anos, estes rituais
haviam imigrado vários anos antes para Nova foram um enigma e causaram estupefacção aos
Inglaterra, nos Estados Unidos, as suas reacções cientistas ocidentais.
assemelharam-se mais às do grupo de Nova Um exemplo deste tipo de ritual é o
Inglaterra do que às do seu grupo original de Porto fenómeno de «suspensão por ganchos», praticado
Rico. Tal descoberta aponta para que a resposta à essencialmente por devotos de Skanda, o deus de
dor de diferentes grupos étnicos pode modificar-se,
25

Kataragama, no Sri Lanka. A Dra. Doreen Browne, imaginário, e estava sem piscar os olhos durante
uma anestesista britânica, visitou o Sri Lanka, em mais de 5 minutos (as pessoas normais piscam os
1983, e descreveu as suas observações. A pele das olhos várias vezes por minuto). Na realidade, o
costas dos devotos era perfurada por vários ganchos faquir estava «noutro sítio», no espaço e no tempo,
e os indivíduos eram suspensos e balançados a sem ter consciência do que o rodeava. Mas, quando
partir de armações puxadas por animais e visitavam concluía a sua actuação, depressa voltava a um
as aldeias para abençoar as crianças e as colheitas. estado de consciência normal. As análises ao sangue
Os indivíduos pareciam fixar o horizonte e não demonstravam que, no final do espectáculo, os
demonstravam qualquer sinal de dor. De facto, níveis de epinefrina (adrenalina) do faquir eram
encontravam-se num «estado de exaltação». O elevados (semelhantes ao «pico» de adrenalina que
treino destes devotos começava na infância e sentem os apreciadores de sensações fortes).
pareciam desenvolver progressivamente a Contudo, os seus opióides endógenos (os
capacidade de passar para um estado de consciência analgésicos do próprio organismo) não
diferente que podia bloquear a dor. apresentavam alterações. Os registos do EEG
Efectivamente, um psiquiatra alemão, o Dr. demonstravam que as ondas cerebrais do faquir
Larbig, demonstrou, através de estudos alternavam entre o ritmo alfa e as ondas teta, mais
electroencefalográficos (EEG), que as ondas lentas. Espantosamente, embora o faquir não
cerebrais dos devotos mudavam ao longo de todas sentisse qualquer dor durante a actuação, queixava-
as fases do processo. É bem conhecido o facto de se amargamente (quando voltava ao estado de
os nossos cérebros emitirem frequências de onda consciência normal) enquanto a enfermeira lhe
diferentes durante a actividade ou o sono. São espetava uma agulha para colher sangue para análise
emitidas ondas alfa bastante rápidas (8-13 ciclos por após o espectáculo!
segundo) durante a nossa actividade regular Outro exemplo extremo das influências
consciente. Outro tipo de ondas cerebrais, culturais na redução da percepção e da expressão da
designadas por ondas teta, mais lentas (4-7 ciclos dor é o procedimento de «trepanação» (ou
por segundo), ocorrem durante o sono leve ou perfuração de orifício de trepanação) na África
quando o indivíduo se “desliga” da realidade e está Oriental. Durante o procedimento, realizado até ao
imerso em pensamentos profundos. De facto, os início do século XXI por uma série de razões, os
devotos suspensos por ganchos apresentavam ondas doentes não recebiam qualquer tipo de analgésico
teta ao longo de todas as fases do processo (isto é, ou anestesia. O doktari ou daktari (médico tribal)
durante a inserção dos ganchos, o balanço e a cortava os músculos da cabeça para revelar a
remoção dos ganchos). estrutura óssea do crânio, a fim de perfurar um
O Dr. Larbig também sentiu um enorme um orifício e expor a dura-máter. A trepanação (cujas
fascínio pelos feitos espantosos dos faquires e evidências remontam ao neolítico) era efectuada por
investigou um faquir da Mongólia, de 48 anos, que razões médicas, por exemplo devido a patologias
conseguia espetar punhais no próprio pescoço, furar intracranianas, e por motivos místicos. Durante o
a língua com uma espada ou perfurar os braços com procedimento, o doente sentava-se calmamente,
agulhas compridas, sem manifestar qualquer sinal de totalmente acordado, sem quaisquer sinais de
dor ou apresentar quaisquer ferimentos na pele. Os sofrimento, e segurava num recipiente para recolher
cientistas registaram o comportamento do faquir o sangue que escorria! Não tenho conhecimento de
passo a passo, durante um dos seus espectáculos, e qualquer estudo científico que se tenha dedicado a
colheram sangue do braço e líquido este fenómeno, tão arrepiante para os ocidentais,
cefalorraquidiano da coluna vertebral através de mas não me surpreenderia que os «doentes»
uma «punção lombar» (procedimento especial que recorressem a um qualquer tipo de método para
consiste em inserir uma agulha na parte posterior da alterar o seu estado de consciência e bloquear a dor
coluna vertebral, na superfície da espinal medula). (podendo ser a alteração das ondas cerebrais,
Também registaram as ondas cerebrais do faquir descrita anteriormente, ou a hipnose).
com um EEG. Durante a sua actuação, o faquir Actualmente, os cientistas têm um melhor
olhava fixamente para a frente, para um ponto conhecimento de alguns estados de consciência
26

alterados. Por exemplo, a hipnose é considerada um na realidade a «dor emocional») é mais


«estado alterado da consciência» e foi devidamente frequentemente observada no decurso de
investigada através de estudos de ressonância acontecimentos stressantes, como a imigração para
magnética funcional (um método que permite um novo país, a separação da família, as alterações
registar a actividade das células cerebrais quando as nos papéis tradicionais de géneros, as dificuldades
pessoas estão a desempenhar determinadas financeiras e a depressão.
actividades mentais ou quando passam por Os profissionais de saúde devem ser capazes
determinado tipo de sensações). A hipnose torna o de reconhecer que as diferentes culturas têm crenças
indivíduo mais vulnerável à sugestão, modifica a e atitudes distintas perante: (a) a autoridade, como o
percepção e a memória e pode produzir alterações médico ou as pessoas que assumem uma posição de
nas funções que habitualmente não se encontram poder; (b) o contacto físico, como durante a
sob controlo consciente, como a transpiração ou o observação médica; (c) o estilo de comunicação, em
tónus dos vasos sanguíneos. termos da linguagem verbal e corporal usada pelas
Mais uma vez, estes estudos encontram-se pessoas para transmitirem os seus sentimentos; (d)
resumidos no popular livro científico, Beyond Pain [3]. os profissionais de saúde de sexo masculino ou
feminino; e (d) a expressão de assuntos de natureza
Como explicar as diferenças sexual ou outros.
na percepção e na expressão Quais são os benefícios de
da dor entre grupos étnicos? se compreenderem as
Os grupos étnicos podem ter respostas diferenças culturais?
genéticas diferentes e apresentar características
fisiológicas e morfológicas distintas (por exemplo, As minorias raciais e étnicas correm o risco
na forma como alguns medicamentos são de ser alvo de uma má avaliação da dor e de um pior
metabolizados ou nas enzimas musculares após o controlo da dor aguda, crónica e oncológica. Estas
exercício). No entanto, as diferenças físicas entre as diferenças no tratamento podem derivar do próprio
pessoas de diversas culturas são menos importantes sistema de saúde (possibilidades para aceder e para
do que as crenças e os comportamentos receber cuidados) ou da interacção entre os doentes
estabelecidos, que influenciam os pensamentos e as e os profissionais de saúde, uma vez que as crenças,
acções dos membros de um determinado grupo as expectativas e os preconceitos de ambas as partes
cultural/étnico. podem interferir com o tratamento.
No que diz respeito aos cuidados médicos, Os doentes podem ser tratados por
os doentes têm determinadas crenças ou explicações profissionais de saúde provenientes de outro meio
para os seus sintomas. Tais convicções resultam da racial ou étnico. As disparidades entre doentes e
interacção entre o contexto cultural, o estatuto profissionais de saúde podem ser «visíveis», como
socioeconómico, o nível de educação e o género. acontece com a idade, o género, a classe social, a
Estas crenças afectam as ideias dos doentes acerca etnicidade, a raça ou a linguagem, ou «invisíveis»,
do que se passa com o seu corpo e do que devem como é o caso das características que se encontram
esperar dos profissionais de saúde. Além disso, a abaixo da ponta do «icebergue cultural», como as
forma como os doentes relatam a dor é moldada, atitudes, as crenças, os valores ou as preferências
até certo ponto, pelo que é suposto ser a norma na [2]. As perigosas consequências decorrentes das
sua própria cultura. Por exemplo, alguns grupos diferenças étnicas entre doentes e profissionais de
etnoculturais usam determinadas expressões aceites saúde foram demonstradas em diversos estudos.
na sua cultura para descrever a dor somática, Estes têm apontado para o facto de doentes de
quando na realidade estão a transmitir a sua angústia determinados meios étnicos (mexicanos-americanos
e sofrimento emocional. A investigação demonstrou ou asiáticos, africanos e hispânicos) terem uma
que este tipo de descrição da dor física (que reflecte menor probabilidade de receber analgesia adequada
27

no serviço de urgência ou de lhes serem prescritas experimental, apresentando limiares mais baixos,
determinadas dosagens de analgésicos potentes, discriminação da dor mais elevada e menos
como os opióides, do que os caucasianos. Contudo, tolerância aos estímulos dolorosos do que os
as diferenças mundiais na administração de homens. Inúmeros estudos demonstraram que as
opióides, em nações de raça não branca, não se hormonas femininas e as respectivas flutuações, ao
devem apenas à interacção profissional de longo das várias fases da vida ou durante o mês,
saúde/doente, mas podem estar relacionadas com as desempenham um papel importante na percepção
políticas locais. Um exemplo disso é a campanha da dor. Acresce a isto, o facto de determinados
norte-americana contra o tráfico de drogas, que factores genéticos exclusivos das mulheres poderem
prejudica o acesso dos doentes oncológicos aos afectar a sensibilidade à dor e/ou o metabolismo de
opióides no México. determinadas substâncias.
É, de facto, um desafio tentar compreender Psicologicamente, as mulheres também são
tanto as diferenças como as semelhanças em diferentes dos homens, quer em termos das
pessoas de contextos etnoculturais distintos. Este estratégias utilizadas para lidar com a dor, quer na
tipo de conhecimento é necessário para melhorar o expressão da própria dor. Por exemplo, num estudo
diagnóstico e o controlo dos síndromes álgicos. realizado com mulheres com artrite, estas
reportavam 40% mais dor e dor mais intensa do que
Qual é o efeito do género na os homens, mas eram capazes de utilizar estratégias
de coping mais ativas para lidar com a dor como, por
percepção e na expressão da exemplo, falar sobre a dor, apresentar mais
dor, bem como no recurso indicadores não verbais de dor, tais como
aos cuidados médicos? expressões faciais de dor, comportamentos como
conter ou massajar a zona dolorosa ou mover-se na
cadeira, procurar ajuda espiritual e colocar mais
Existem inúmeras diferenças na percepção e questões acerca da dor. Uma das explicações
na expressão da dor entre homens e mulheres. De encontradas para as diferenças observadas na
um modo geral, as diferenças entre géneros podem capacidade para lidar com este problema relaciona-
ser atribuídas a uma combinação de factores se com o maior relevo do papel desempenhado
biológicos, psicológicos e socioculturais, tais como a pelas mulheres nos cuidados prestados à família.
família, o local de trabalho ou o contexto cultural do Crê-se que essa função leva as mulheres a fazerem
grupo em geral (resumido por Mailis Gagnon et al. perguntas ou a procurar ajuda na tentativa de se
[4]). manterem a si e à sua família em boas condições.
O género feminino é associado a uma maior Os fatores etnoculturais e ambientais
utilização dos serviços de saúde e a uma maior também têm uma influência parcial nas diferenças
prevalência de determinados quadros de dor, de percepção e de relato da dor ou de outros
servindo também como elemento preditor da sintomas. Por exemplo, alguns estudos
perceção de dor e das estratégias de coping utilizadas demonstraram uma percepção e expressão da dor
para lidar com esta. A investigação indica que as mais elevadas nos grupos do Sul (Centro) da Ásia
mulheres apresentam um índice per capita de (incluindo doentes da Índia e do Paquistão). Assim:
utilização dos serviços de saúde muito superior ao a) Um estudo que avaliou a resposta à dor
dos homens, para todos os tipos de morbilidades, e térmica em indivíduos do sexo masculino britânicos
apresentam uma maior probabilidade de relatar dor e do Sul (Centro) da Ásia não revelou quaisquer
e outros sintomas e de expressar maior sofrimento diferenças fisiológicas quando estes foram testados
do que os homens. Além disso, as mulheres em quanto à percepção do calor e do frio (isto é, no
situação socioeconómica mais precária correm nível em que um estímulo foi sentido como quente
maior risco de experienciar dor. Como se explicam ou frio). No entanto, os sul-asiáticos apresentaram
estes fenómenos? limiares de dor inferiores ao calor e, de um modo
Do ponto de vista biológico, as mulheres geral, foram mais sensíveis à dor. Os autores do
são mais vulneráveis à dor induzida de forma estudo concluíram que a etnicidade tem um papel
28

importante, mesmo não tendo a certeza sobre que examinar as diferenças raciais e étnicas na
determinantes comportamentais, genéticos ou percepção da dor, nas crenças, nas atitudes e
outros da etnicidade estarão envolvidos. nos comportamentos que possam estar na
b) No Women’s Health Surveillance Report do base das dissemelhanças encontradas na
Statistics Canada, que realizou um inquérito a cerca experiência de dor e nos quadros de dor,
de 100.000 agregados familiares, a proporção de desenvolver modelos culturalmente
pessoas do Sul (Centro) da Ásia que indicaram dor sensíveis para avaliar e tratar a dor, bem
crónica foi muito superior à de qualquer outro como métodos para disseminar essa
grupo étnico da população canadiana com idade informação e documentar o progresso no
superior a 65 anos (com 38,2% dos homens e sentido da eliminação das disparidades face
55,7% das mulheres sul-asiáticas a referirem dor ao controlo da dor, avaliando os resultados
crónica). obtidos a esse nível.
c) Num estudo transversal extenso realizado  Um alerta: a investigação etnocultural não
por uma Unidade de Dor canadiana[4], as mulheres deixa de apresentar as suas limitações. Por
eram significativamente mais numerosas do que os exemplo, a simples organização dos
homens, mas apresentavam níveis mais baixos de americanos em indivíduos de raça negra,
patologia física em quase todos os grupos (de hispânicos e da «velha» América (anglo-
naturalidade canadiana ou estrangeira). De forma saxões de raça branca, cujas famílias vivem
relevante, cerca de uma em cada duas mulheres sul- nos Estados Unidos há várias gerações) não
asiáticas foi classificada como sofrendo de elevada permite avaliar as substanciais diferenças
incapacidade causada pela dor, na ausência de sociais, culturais e económicas existentes
patologia física, sendo esta a percentagem mais entre os descendentes de pessoas que
elevada observada em todos os subgrupos vieram para a América há dois ou três
femininos. Os investigadores deduziram que estas séculos e os milhões de imigrantes recentes
doentes podiam ter sido enviadas para a Unidade de provenientes de várias partes do mundo,
Dor pelos respectivos médicos por apresentarem que podem ter adoptado, em níveis
queixas físicas, quando na realidade sofriam de mal- variados, a cultura do grupo para o qual se
estar emocional. Tal poderá, de facto, fazer sentido, mudaram ou ser de origem mista por
uma vez que os sul e centro-asiáticos integram a descenderem de casamentos inter-raciais.
mais recente vaga de imigrantes para o Canadá,  Assim, os futuros estudos deverão ter em
podendo o stresse da imigração ser substancial. conta inúmeros factores, de modo a reflectir
a complexa realidade da cultura e etnicidade
Pérolas de sabedoria e a sua influência, não apenas na percepção
e na expressão da dor, mas também no
 A investigação etnocultural encontra-se recurso aos cuidados de saúde e nos
ainda na infância. Williams [5] ressaltou que resultados obtidos com o tratamento.
os identificadores raciais e étnicos (como a
língua falada em casa, o país de nascimento, Referências
a raça, etc.) são necessários para documentar
as disparidades observadas na dor em [1] Bates MS. Biocultural dimensions of chronic pain. SUNY
Series in Medical Anthropology. Albany, NY: State University of New
situações clínicas; por isso, é importante
York Press; 1996.
planear e implementar estudos prospectivos [2] Cooper LA, Beach MC, Johnson RL, Inui TS. Delving
para detectar estas disparidades, desenvolver below the surface. Understanding how race and ethnicity influence
relationships in health care. J Gen Intern Med 2006; 21:S21-7.
e aferir ferramentas de avaliação da dor que
[3] Mailis-Gagnon A, Israelson D. Beyond pain: making the
reflictam as diferenças culturais, étnicas e body-mind connection. Viking Canada; 2003.
linguísticas, esclarecer a função da [4] Mailis-Gagnon A, Yegneswaran B, Lakha SF, Nicholson K,
Steiman AJ, Ng D, Papagapiou M, Umana M, Cohodarevic T,
etnicidade, tanto nos doentes como nos
Zurowski M. Ethno-cultural and gender characteristics of patients
médicos, no que toca ao controlo da dor,
29

attending a tertiary care pain clinic in Toronto, Canada. Pain Res health policy. American Pain Society; 2004. Disponível em:
Manage 2007; 12:100-6. hhttp//ampainsoc.org/advocacy/ethnoracial.htm.
[5] Williams DA. Racial and ethnic identifiers in pain
management: the importance to research, clinical practice and public
30

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 6
Farmacologia dos Analgésicos (Exceto Opioides)
Kay Brune

As classes de analgésicos mencionadas abaixo estão cicloxigenase (COX) podem ser mais adequados.
disponíveis em todo o mundo e são constantemente Um medicamento como o diclofenaco
substituídas por novos compostos que em geral são (medicamento do tipo aspirina) costuma fazer um
muito caros para serem vendidos em todos os efeito melhor. Adiante faremos um comentário mais
países. No entanto, a terapia da dor não precisa detalhado desse caso.
sofrer com essa limitação porque os medicamentos
essenciais, inclusive inibidores da cicloxigenase, Como funciona o diclofenaco, um membro da
anticonvulsivantes, opiáceos opioides e cetamina classe dos inibidores a COX?
estão disponíveis em quase todos os países e o valor Os inibidores da COX inibem a hiperalgesia
dos novos compostos ainda não está claro. periférica e central. Como todos os analgésicos
comumente usados, inclusive morfina (opióide),
Relato de Caso 1: Como pregabalina (antiepilético), ziconotide (bloqueador
de canais de cálcio tipo N) e cetamina (bloqueador
escolher o analgésico do canal de sódio ligado ao recetor NMDA), os
correto inibidores da COX têm seu principal efeito no
corno dorsal da medula espinhal (e portanto é
Recentemente, um grande amigo meu estava indo inadequado chamá-los de “analgésicos periféricos”).
para casa de moto. Foi atingido por um carro e caiu Comparados às classes de medicamentos acima, os
no chão. Daí para frente, ele começou a sentir dor inibidores da COX têm um modo de ação bastante
no peito e pediu ajuda a seu médico. Recebeu 10 mg diferente. Um trauma periférico desencadeia
de morfina s.c. Ele me ligou no meio da noite e hiperalgesia periférica que resulta de um aumento na
disse que a dor ainda estava muito forte,mas além sensibilidade do nociceptor induzida por
disso ele estava se sentindo mal, com náusea e prostaglandina. A hiperalgesia central é
vômitos. Sugeri que tomasse 75 mg de diclofenaco desencadeada pelo bloqueio da atividade dos
resinato. Ligou na manhã seguinte dizendo que interneurônios devido à produção de prostaglandina
tinha dormido logo após ter tomado o diclofenaco. E2 (PGE2). Após um trauma periférico, a enzima
Esse exemplo demonstra que os chamados COX-2 é expressa nas células do corno dorsal
analgésicos potentes como a morfina e outros através da ação de citocinas hormonais e de
Opioides, nem sempre são eficazes. Em dor aguda mensagens neuronais. A PGE2 ativa a proteína
musculoesquelética ou traumática, os inibidores da cinase A (pKA). A ativação resulta em fosforilação
do canal de cloro associado ao recetor de glicina.
31

Isso, por sua vez, reduz a possibilidade de abertura As diferenças, no entanto, resultam de suas
do canal de cloro. O bloqueio do canal de cloro características farmacocinéticas (Tabela 1).
reduz a hiperpolarização do segundo neurônio da  Alguns agentes (não acídicos), como
dor e portanto o torna mais excitável aos estímulos acetaminofeno, dipirona e metamizol são
transmitidos pela liberação do glutamato. Em outras distribuídos de forma homogênea por todo
palavras, trauma, inflamação e dano tissular ativam a o corpo. São analgésicos mas não anti-
produção da enzima COX-2 nas células do corno inflamatórios.
dorsal da medula espinhal, o que reduz a  Outros agentes (acídicos) atingem altas
hiperpolarização do segundo neurônio e facilita a concentrações no tecido inflamado, mas
transmissão de sinais relativos à nocicepção para o também nos rins, parede estomacal, sangue
sistema nervoso central, resultando na sensação de e fígado. Têm efeito analgésico e anti-
dor. A inibição da produção de prostaglandina pela inflamatório, mas a toxicidade gastrintestinal
COX-2 induzida reduz (normaliza) a excitabilidade (GI) e renal é alta (para todos exceto
do segundo neurônio por transmissão mediada por acetaminofeno e dipirona).
glutamato e portanto exerce um efeito anti-  Os inibidores seletivos da COX têm menos
hiperalgésico. toxicidade GI, não interferem com a
Da mesma forma, na periferia, no local do trauma coagulação sanguínea e produzem menos
ou inflamação, a COX-2 também é induzida. asma induzida por aspirina. Exemplos são
Produz prostaglandina E2 e aumenta a sensibilidade acetaminofeno, celecoxibe e etoricoxibe.
de recetores TRPV1, permitindo a ativação de
 Alguns desses compostos são absorvidos
recetores multimodais (nociceptores) por
rapidamente e outros lentamente. Essa
temperatura, pressão e proteínas. Novamente, o
diferença é importante se o que se busca é
bloqueio da produção de prostaglandina reduz a
alívio da dor aguda.
hiperalgesia periférica.
 Alguns compostos são eliminados
Voltando ao relato de caso, o trauma agudo causou
rapidamente e outros lentamente. Os
hiperalgesia periférica e central em meia hora. Essa
eliminados rapidamente tem ação curta e são
dor pode ser reduzida de maneira eficaz com os
em geral menos tóxicos em baixas doses. A
inibidores das COXs. O uso generalizado de
eliminação lenta cursa com ação analgésica
inibidores da COX demonstra a importância dessa
prolongada mas pode levar a efeitos
classe de compostos analgésicos. Diferente do que
colaterais indesejados, inclusive retenção de
se acreditava no passado, esse grupo de
água e fluidos, hipertensão e piora da
medicamentos é composto de substâncias antigas e
insuficiência cardíaca.
novas, inclusive acetaminofeno/paracetamol (antes
considerados como tendo um modo de ação
Então, por que recomendei diclofenaco para
exclusivo), aspirina, dipirona, ibuprofeno,
meu amigo no relato de caso 1?
indometacina e piroxicam. Em outras palavras, esse
As razões para eu ter recomendado diclofenaco a
grupo abrange compostos relativamente fracos além
meu amigo foram:
de outros altamente eficazes. Diferem no
1) Absorção rápida
comportamento farmacocinético e em alguns efeitos
2) Inibição muito potente das COXs, com
adversos que não são relacionados a seu modo de
mais inibição da COX-2 do que da
ação. Uma superdose de acetaminofeno, por
COX-1.
exemplo, leva a insuficiência hepática grave, que
O rápido início da absorção do diclofenaco resinato
quase nunca é vista com ibuprofeno.
é melhor do que as preparações habituais do
diclofenaco porque o ingrediente ativo recebe, em
Qual é a diferença farmacocinética entre os
geral, um revestimento resistente ao ácido. Isso
vários inibidores da COX?
pode retardar a absorção, e consequentemente não
Esse grupo de medicamentos induz analgesia
aliviar a dor. Por outro lado, o diclofenaco uma vez
através da inibição da produção de prostaglandinas.
absorvido é rapidamente metabolizado e eliminado.
32

Desse modo, para ter um efeito prolongado, é consideravelmente a dor. No entanto, fez com que a paciente
necessário que sua absorção seja lenta. ficasse sonolenta e tonta o tempo todo ao ponto de não
permitir que ela visse TV como gostava.
Relato de caso 2: Como
Como a gabapentina funciona no combate à
escolher a combinação certa dor?
A dor neuropática é causada por dano aos
Um homem de 71 anos se queixava de dor lancinante na neurônios aferentes e mudanças na transmissão da
coluna. A razão era metástase de um carcinoma de próstata, dor no corno dorsal da medula espinhal e ao longo
cujo crescimento não estava totalmente controlado. Todas as do sistema nervoso central.. Envolve um crescente
noites o paciente tomava 100 mg de tramadol líquido que não problema terapêutico. Em dor pós-traumática ou
diminuia sua dor. Em desespero, ele incluiu 3 g (6 em neuralgia pós-herpética, os anticonvulsivantes
comprimidos) de aspirina e, apesar do desconforto GI, ele ou os opioides podem ser utilizados. A dose de
conseguiu descansar. Seu médico mudou essa combinação e ambos os agentes deve ser relativamente baixa . A
prescreveu morfina (liberação sustentada) e naproxeno mais adição de inibidores da COX não melhora a eficácia
um inibidor da bomba de prótons (PPI). O paciente ficou desses medicamentos. Mais ainda, como a maioria
satisfeito com essa terapia. das células neuronais de nosso corpo possui canais
de sódio voltagem-dependentes, o uso terapêutico
Por que a combinação de morfina e naprofeno de bloqueadores desses canais cursa com vários
foi a melhor opção? efeitos colaterais no sistema nervoso central (SNC)
As metástases tumorais são circundadas por uma como tontura, sonolência, falta de atenção e
cápsula de tecido inflamatório com vários vigilância. Esses compostos, portanto, devem ter a
nociceptores ativados. Essa camada de células dose titulada cuidadosamente para produzir os
inflamatórias produz várias prostaglandinas que efeitos terapêuticos sem depressão inaceitável do
levam a hiperalgesia periférica e central. A SNC.
combinação da inibição da COX-2 com opiáceos
(Opioides) produziu o efeito máximo. Foi escolhido Existem opções para bloquear mais
o naprofeno porque é eliminado lentamente e, na eficazmente os canais de cálcio?
dose certa, é suficiente para toda uma noite sem As células neuronais têm canais específicos de cálcio
dor. (canais de cálcio tipo N) que têm uma função na
comunicação entre as células. Durante a nocicepção,
Relato de caso 3: Como a liberação de glutamato pelo primeiro neurônio
escolher analgésicos que para a ativação do segundo neurônio também é
regulada pelos canais de cálcio tipo N. O bloqueio
não sejam Opioides ou desses canais diminui o fluxo de cálcio para as
inibidores da COX células de glutamato, reduzindo a liberação de
glutamato e a ativação dos receptores NMDA. No
entanto, como esses canais tipo N estão presentes
Uma mulher de 78 anos caiu da escada de sua casa e sofreu
na maioria das células neuronais, um bloqueio geral
uma compressão completa da medula espinhal entre C4 e C5.
seria incompatível com a vida. Mas, recentemente,
Ficou tetraplégica instantaneamente. Não havia cirurgia de
foi descoberto que o ziconotide, toxina de um
emergência na vizinhança. Mais ainda, ela havia tomado
caramujo marinho, bloqueia esses canais quando
analgésico com aspirina na véspera. Isso significava inibição
administrada por via espinal, com efeitos colaterais
da coagulação sanguínea por até 5 dias, e consequentemente
toleráveis. Infelizmente, a administração intratecal
sérios riscos para a neurocirurgia. Permaneceu tetraplégica por
de medicamentos é uma opção sofisticada e
2 anos e então desenvolveu dor em queimação intratável nas
dispendiosa para o controle da dor e atualmente é
pernas. Dipirona, sua medicação normal, não foi eficaz.
apenas realizada em poucos centros de dor
Baixas doses de morfina não foram satisfatórias, mas a
altamente especializados em casos excepcionais.
inclusão de gabapentina à baixa dose de morfina reduziu
33

Quais as outras opções mais práticas quando os totalmente suprimida. O aumento da dose
anticonvulsivantes não ajudam? não vai aumentar o efeito.
Outra opção para o tratamento clínico da dor é a  A inibição constante das COXs na parede
cetamina, que bloqueia os canais de sódio uso- vascular (seletivamente ou não
dependentes do receptor NMDA para glutamato. seletivamente) leva a bloqueio constante da
Tais receptores não estão limitados as vias de produção do fator vasoprotetor
transmissão da dor, mas estão envolvidos na prostaciclina (PGI2). Essa parece ser a razão
comunicação neuronal. Consequentemente, o principal para o aumento de incidência de
bloqueio desse canal de sódio não pode estar eventos cardiovasculares (ataque cardíaco,
limitado às vias da dor, mas consegue-se um certo AVE, aterosclerose) com o uso de
grau de seletividade pela uso-dependência. Em inibidores da COX, inclusive o
outras palavras, os estímulos dolorosos levam a uma acetaminofeno (paracetamol).
maior probabilidade de abertura desse canal, que  Comparando-se os efeitos colaterais de
pode ser acessado apenas na posição aberta pela todos os compostos analgésicos, inclusive os
cetamina, que então consegue bloqueá-lo. Mas a opioides, chega-se à conclusão de que todos
especificidade relativamente baixa da ação da têm problemas. Devem ser usados para dor
cetamina provoca efeitos indesejados, desde intensa, mas não como um meio para
sensações desagradáveis (disforia) até falta de reduzir o desconforto diário; somente assim
raciocínio coerente e atenção. Consequentemente, o seu uso é significativo e justificável.
uso da cetamina é restrito ao ambiente da clínica,
especialmente sedação analgésica. Referências
Não obstante, baixas doses de cetamina (< 0,2
mg/kg/h S-cetamina ou < 0,4 mg/kg/h cetamina) [1] Brune K, Hinz B, Otterness I. Aspirin and acetaminophen: should
podem ser úteis como medicação de resgate para they be available over the counter? Curr Rheumatol Rep 2009;11:36–
dor incontrolável, por exemplo, a causada por 40.
[2] Hinz B, Brune K. Can drug removals involving cyclooxygenase-2
infiltração do plexo nervoso no câncer.
inhibitors be avoided? A plea for human pharmacology. Trends
Infelizmente, como a biodisponibilidade oral é Pharmacol Sci 2008;8:391–7.
imprevisível, apenas a via intravenosa deve ser [3] Brune K, Katus HA, Moecks J, Spanuth E, Jaff e AS, Giannitsis
utilizada. E. Nterminal pro-B-type natriuretic Peptide concentrations predict
the risk of cardiovascular adverse events from antiinflammatory
drugs: a pilot trial. Clin Chem 2008;54:1149–57.
Pérolas de sabedoria [4] Knabl J, Witschi R, Hosl K, Reinold H, Zeilhofer UB, Ahmadi S,
Brockhaus J, Sergejeva M, Hess A, Brune K, Fritschy JM, Rudolph U,
Mohler H, Zeilhofer HU. Reversal of pathological pain through
 Os medicamentos discutidos neste capítulo specific spinal GABAA receptor subtypes. Nature 2008;451:330–4.
tratam com eficácia a maioria das condições [5] Hinz B, Renner B, Brune K. Drug insight: cyclo-oxygenase-2
dolorosas, mas não todas. inhibitors—a critical appraisal. Nat Clin Pract Rheumatol 2007;3:552–
60.
 Devemos ter em mente que os protótipos [6] Zeilhofer HU, Brune K. Analgesic strategies beyond the inhibition
mais importantes dos analgésicos não of cyclooxygenases. Trends Pharmacol Sci 2006;27:467–74.
Opioides são os inibidores da COX, que são [7] Croff ord LJ, Breyer MD, Strand CV, Rushitzka F, Brune K,
Farkouh ME,and Simon LS. Cardiovascular eff ects of selective
os medicamentos mais comumente usados COX-2 inhibition: is there a class effect? Th e International COX-2
em todo o mundo porque também são Study Group. J Rheumatol 2006;33:1403–8.
administrados contra febre, inflamação e [8] Brune K, Hinz B. The discovery and development of
vários estados de desconforto, inclusive antiinflammatory drugs. Arthritis Rheumatol 2004;50:2391–9.
[9] Brune K, Hinz B. Selective cyclooxygenase-2 inhibitors:
enxaqueca, devido a seu modo de ação e similarities and differences. Scandinavian Journal of Rheumatol
seus platôs de efeito. Em outras palavras, a 2004;33:1–6.
normalização da hiperalgesia termina
quando a produção de prostaglandina E2 é
34

Tabela 1
Dados fisicoquímicos e farmacológicos de inibidores acídicos, não seletivos da COX
Subclasse Farmacocinética/ PKA Liga-se à Biodisponibilidade tmax t50 Dose única (dose diária máx.)
Química proteína oral para Adultos
plasmática
Curta Meia-Vida de Eliminação
Aspirina* (ácido acetil- 3,5 50-70% 50%,dose- 15 min 15 min 0,05-1 g (6 g) (fora de uso)
salicílico) (3,0) (~80%) dependente (1-5 h, (15-60 min)
dose-dependente)
Ibuprofeno 4,4 99% 100% 0,5-2 h 2h 200-800 mg (2,4 g)
Flurbiprofeno 4,2 >99% ~90% 1,5-3 h 2,5-4 50-100 mg (200 mg)
(8) h
Cetoprofeno 5,3 99% 90% 1-2 h 2-4 h 25-100 mg (200 mg)
Diclofenaco 3,9 99,7% 50%, dose- 1-12 h 1-2 h 25-75 mg (150mg)
dependente
Longa Meia-Vida de Eliminação
Naproxeno 4,2 99% 90-100% 2-4 h 12-15 250-500 mg (1,25 g)
h
Ácido acético 6-metoxi-2- 4,2 99% 20-50% 3-6 h 20-24 0,5-1 g (1,5 g)
naftil (metabólito ativo da h
nabumetona)
Piroxicam 5,9 99% 100% 3-5 h 14-160 20-40 mg; dose inicial; 40 mg
h
Meloxicam 4,08 99,5% 89% 7-8 h 20 h 7,5-15 mg
* A aspirina libera ácido salicílico (AS) antes, durante e após a absorção. Os valores entre parênteses referem-se ao AS ativo (fraco)
inibidor de COX-1/COX-2.

Tabela 2
Dados fisicoquímicos e farmacológicos dos inibidores não seletivos da COX-2
Subclasse Relação Liga-se à VD Biodisponi tmax T50 Metabolismo primário Dose única (Dose
farmacocinética/ COX- proteína bilidade (enzimas do citocromo máx. diária) para
química 1/COX-2 plasmática oral P-450) Adultos
Acetaminofeno ~20% ~70 L ~90% 1h 1-3 h Oxidação (sulfatação 1 g (4 g)
(paracetamol) direta)
Celecoxibe 30 91% 400 L 20-60% 2-4 h 6-12 h Oxidação (CUP2C9, 100-200 mg (400
CYP3A4) mg) para
osteoartrose e
artrite reumatóide.
Etoricoxibe 344 92% 120 L 100% 1h 20-26 h Oxidação para 6’- 60 mg (60 mg)
hidroximetil- para osteoartrose,
etoricoxibe (principal 90 mg (90 mg)
função: CYP3A4; para artrite
função auxiliar: reumatóide, 120
CYP2C9, CYP2D6, mg (120 mg) para
CYP1A2) artrite gotosa
aguda.
35

Tabela 3
Principais efeitos colaterais, interações medicamentosas e contra-indicações de inibidores da COX
Medicamento Reações adversas* Interações Contra-indicações (absolutas e relativas)
medicamentosas
Medicamentos acídicos não seletivos
Aspirina Inibição da agregação Antagonistas da vitamina Hipersensibilidade à substância ativa ou a
plaquetária por dias, asma K qualquer dos excipientes, distúrbios de
induzida por aspirina, coagulação sanguínea, gravidez e todas as
ulcerações, sangramentos contra-indicações relacionadas abaixo.
Diclofenaco Ulcerações GI, dispepsia, Inibidores da ECA, Asma, rinite aguda, pólipos nasais, angioedema,
Ibuprofeno aumento de PA, retenção de glicocorticoides, urticária ou outras reações alérgicas após tomar
Indometacina líquidos, reações alérgicas diuréticos, lítio,SSRIs, AAS ou AINES; ulceração péptica ativa ou
Cetoprofeno (asmáticas),vertigem, ibuprofeno: redução de sangramentos GI; doença inflamatória
Cetorolaco zumbido baixa dose de aspirina intestinal; cardiopatia isquêmica estabelecida,
Naproxeno para cardioproteção doença arterial periférica e/ou doença
Meloxicam cerebrovascular; insuficiência renal.
Inibidores seletivos (preferenciais) da COX-2
Acetaminofeno Lesão hepática Não proeminente Lesão hepática, abuso de álcool
(paracetamol)
Celecoxibe Reações alérgicas Bloqueia CYP2D6; Aterosclerose pronunciada, insuficiência renal.
(sulfonamida) interações com SSRIs e
betabloqueadores
Etoricoxibe Retenção de líquidos, Reduz o metabolismo Como o celecoxibe, mais controle insuficiente
aumento de PA estrógeno da pressão arterial; insuficiência cardíaca.
* Mais pronunciadas em medicamentos altamente potentes e/ou eliminados lentamente (todos exceto ibuprofeno).

Tabela 4
Dados farmacocinéticos de analgésico não Opioides não COX
Tipo (medicamento) t50 Dose comum Reações adversas
Anticonvulsivantes
Carbamazepina ~2 dias ~0,5 g 2 vezes/dia.1 Diplopia, ataxia (anemia aplásica)
Gabapentina ~6 horas ~1 g 2 vezes/dia. Sonolência, tontura, ataxia, cefaléia, tremor
Pregabalina ~5 horas ~200 g 3 vezes/dia. Sonolência, tontura, ataxia, cefaléia, tremor
+
Bloqueadores dos canais de Na dos recetores NMDA
Cetamina (racêmica) Rápida2 ~50 mg/d 0,5 mg/kg/h Hipersalivação, hipertensão, taquicardia e
pesadelos
S+Cetamina Como a racêmica, comp. Hipersalivação, hipertensão, taquicardia e
S+-Cetamina, duas vezes pesadelos
mais ativa
Bloqueadores de canais de Ca Tipo N3
Ziconotide Administração intratecal Distúrbios do SNC de náusea a coma
permanente dependendo da dose e da distribuição da toxina,
formação de granuloma.
1 Não há evidências sólidas de efeitos analgésicos a não ser na neuralgia do trigêmeo; não existe recomendação de dose para dor

neuropática.
2 A cetamina é altamente lipofílica e é sequestrada para o tecido adiposo (t , distribuição ~20 min); a infusão contínua requer
50
atenção (para evitar sobredose).
3 Apenas em pacientes desesperados se for possível a administração intratecal.
36

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 7
Os Opioides na Medicina da Dor
Michael Schäfer

Classificação dos Opioides francês Charles Pravaz (1844), foi possível o


manuseio bem mais fácil dessa substância opioide
com menos efeitos colaterais.
O tratamento da dor atinge seus limites muito Hoje distinguimos os opioides que ocorrem
rapidamente. Qualquer um que tenha sofrido uma naturalmente, como morfina, codeína e noscapina,
lesão grave, uma cólica renal ou de vesícula, um de opioides semi-sintéticos como hidromorfona,
parto, uma intervenção cirúrgica ou um câncer oxicodona, diacetilmorfina (heroína) e de opioides
infiltrativo já teve essa experiência terrível e pode ter totalmente sintéticos como nalbufina, metadona,
sentido a tranquilidade do alívio gradual da dor pentazocina, fentanil, alfentanil, sufentanil e
assim que um opioide é administrado. Diferentes remifentanil. Todas essas substâncias são
dos outros analgésicos, os opioides ainda são os classificadas como opioides, inclusive os peptídios
analgésicos mais potentes para controlar estados de opioides endógenos, como endorfina, encefalina e
dor intensa. Essa qualidade dos opioides já era dinorfina, que são peptídeos curtos secretados pelo
conhecida na antiguidade e o ópio, o suco leitoso sistema nervoso central em momentos de dor ou
seco da papoula, Papaver somniferum, era preparado estresse grave ou ambos.
não só por seu efeito eufórico, mas também por seu
poderoso efeito analgésico. Originalmente plantada
em vários países da Arábia, a planta foi introduzida
Recetores opioides e
por comerciantes em outros lugares como Índia, mecanismos de ação
China e Europa no início do século XIV.
Naquela época, o uso do ópio para tratamento da Os opioides exercem seus efeitos através da ligação
dor tinha várias limitações: era uma mistura de pelo a receptores opioides que são proteínas complexas
menos vinte alcalóides diferentes do ópio (isto é, embutidas na membrana celular dos neurônios.
substâncias isoladas da planta), com modos muito Esses receptores de opioides foram descobertos
diferentes de ação. A sobredose ocorria com pela primeira vez em áreas cerebrais específicas
frequência com muitos efeitos colaterais relacionadas à dor, como o tálamo, o mesencéfalo, a
indesejados, inclusive depressão respiratória e, medula espinhal e os neurônios sensoriais primários.
devido ao uso irregular, os efeitos eufóricos Portanto, os opioides produzem analgesia potente
transformavam-se rapidamente em vício. quando administrados sistemicamente (por ex., via
Com o isolamento de um único alcalóide, a morfina, oral, intravenosa, subcutânea, transcutânea ou
do suco da papoula pelo farmacêutico alemão intramuscular), por via espinal (intratecal ou
Friedrich Wilhelm Sertürner (1806) e a introdução peridural) e por via periférica ( intra-articular ou
da seringa de vidro pelo cirurgião ortopedista tópica).
37

Hoje, são conhecidos três recetores opioides entanto, pacientes em uso regular de opioides não
diferentes, os recetores opioides µ, δ, e k. No costumam ter esses problemas, mas todos os
entanto, o mais importante é o recetor opioide µ, pacientes precisam ser informados sobre a
porque quase todos os opioides de uso clínico ocorrência e possível tratamento desses efeitos
extraem seus efeitos de sua ativação. A estrutura colaterais para evitar a interrupção arbitrária da
tridimensional dos recetores opioides na membrana medicação. Obstipação é um efeito colateral típico
celular forma uma bolsa onde os opioides se ligam e dos opioides que não desaparece, mas persiste
subsequentemente ativam eventos de sinalização durante todo o tratamento. Pode causar problemas
intracelular que levam à redução da excitabilidade clínicos graves como íleo e deve ser tratada
dos neurônios e, portanto, à inibição da dor. De regularmente com laxantes ou antagonistas opioides
acordo com sua capacidade de iniciar tais eventos, orais (veja abaixo).
os opioides são divididos em agonistas opioides
completos (por ex., fentanil, sufentanil) que são Sedação
altamente potentes e requerem pouca ocupação do A redução da atividade do sistema nervoso central
recetor para resposta máxima, agonistas opioides induzida por opioides varia de sedação leve a coma
parciais (por ex., buprenorfina) que requerem maior profundo dependendo do opioide, da dose, da via
ocupação dos recetores para uma resposta mais de administração e da duração do medicamento. Em
baixa, e os antagonistas (por ex., naloxona, doses clinicamente importantes, os opioides não
naltrexona) que não extraem nenhuma resposta. têm um efeito narcótico puro, mas também levam à
Agonistas/antagonistas (por ex., pentazocina, redução considerável da concentração alveolar
nalbufina, butorfanol) combinam duas ações: ligam- máxima (CAM) do anestésico volátil usado para
se ao recetor k como agonistas e ao recetor µ como induzir inconsciência durante procedimentos
antagonistas. cirúrgicos.

Rigidez muscular
Efeitos colaterais dos Dependendo da velocidade de administração, os
opioides opioides podem causar rigidez muscular,
principalmente no tronco, abdômen e laringe. Esse
A primeira vez que recebem opioides, os pacientes problema é reconhecido pelo prejuízo da ventilação
costumam relatar efeitos colaterais agudos, como adequada, seguido de hipóxia e hipercabia. O
sedação, tontura, náusea e vômitos. No entanto, mecanismo não é bem entendido. Essa dificuldade
depois de alguns dias esses sintomas desaparecem e da ventilação assistida que põe em risco a vida pode
não interferem mais com o uso regular de opioides. ser tratada com relaxantes musculares (por ex., 50-
Os opioides devem ser titulados lentamente até 100 mg succinilcolina i.v., i.m.).
atingir a dose eficaz do reduzindo a gravidade dos
efeitos colaterais. Além disso, tratamentos Depressão respiratória
A depressão respiratória é um fenômeno comum de
sintomáticos como anti-eméticos ajudam a superar a
todos os agonistas opioides µ em uso clínico. Esses
sensação desagradável imediata. Depressão
medicamentos reduzem a frequência ventilatória,
respiratória também pode ser um problema no
retardam a expiração e promovem um ritmo
início, especialmente quando altas doses são
respiratório irregular. Os opioides reduzem a
administradas sem a avaliação adequada da
resposta ao aumento de CO2 por elevar o limiar da
intensidade da dor. Recomenda-se a titulação da
pressão expiratória final de CO2 e atenuar a resposta
dose e a avaliação regular da intensidade da dor e da
da ventilação hipóxica. O acionador fundamental da
frequência respiratória. Durante a administração
respiração está localizado nos centros respiratórios
prolongada e regular de opioides, a depressão
do tronco cerebral que consiste em diferentes
respiratória não costuma ser um problema. O
grupos de redes neuronais com alta densidade de
prejuízo cognitivo é um problema importante no
receptores Opioides µ. A parada respiratória que
início, especialmente ao dirigir um carro ou operar
põe em risco a vida pode ser revertida por titulação
máquinas perigosas, como serras elétricas. No
38

com o antagonista opioide naloxona i.v. (por ex., mg oral) ou, com menos impacto no efeito
0,4-0,8-1,2 mg). analgésico, por agonistas mistos, como nalbufina
(por ex., 4 mg i.v.).
Efeitos antitussígenos
Além da depressão respiratória, os opioides Vias de administração dos
suprimem o reflexo da tosse, que é produzido
terapeuticamente por antitussígenos como codeína, opioides
noscapina e dextrometorfan (por ex., 5-10-30 mg de
codeína oral). O principal efeito antitussígeno dos Oral
opioides é regulado pelos receptores opioides na A maioria dos opioides é absorvida facilmente pelo
medula. trato gastrintestinal com biodisponibilidade oral de
35% (por ex., morfina) a 80% (por ex., oxicodona)
Efeitos gastrintestinais entrando na circulação. No entanto, eles sofrem um
Os efeitos colaterais dos opioides no sistema alto grau (40-80%) de metabolismo imediato de
gastrintestinal são bem conhecidos. Em geral, os primeira passagem no fígado, onde a ligação ao
opioides evocam náusea e vômitos, reduzem a ácido glucorônico torna o medicamento inativo e
mobilidade gastrintestinal, aumentam as contrações pronto para excreção renal. Exceções são os
circulares, reduzem a secreção gastrintestinal de metabólitos da morfina, por ex., morfina-6-
muco e aumentam a absorção de fluidos, que glucuronídeo, que é em si analgésica, ou morfina-3-
eventualmente resulta em obstipação. Além disso, glucuronídeo, que é neurotóxica e pode se acumular
causam espasmos de músculos lisos da vesícula, do durante dano renal além de causar graves efeitos
trato biliar e da bexiga, resultando em aumento de colaterais como depressão respiratória ou
pressão e retenção de bile ou retenção urinária. neurotoxicidade. Os opioides orais estão disponíveis
Esses efeitos gastrintestinais dos opioides são em duas preparações galênicas, uma fórmula de
causados principalmente pelo envolvimento dos liberação imediata (início: dentro de 30 min, duração
receptores opioides periféricos no plexo 4-6 horas) e uma fórmula de liberação lenta (início:
mesentérico e submucoso, e são causados em 30-60 min, duração: 8-12 horas). Existem evidências
menor grau pelos receptores opioides centrais. preliminares de diferenças étnicas, por ex., entre
Portanto, a titulação com metilnaltrexona (100-150- caucasianos e africanos, com relação ao
300 mg oral), que não penetra no sistema nervoso metabolismo hepático dos opioides, por ex., os
central, atenua com sucesso a obstipação induzida opioides tem duração de ação mais longa nos
por opioides. A prática mais comum, porém, é a africanos. Isso pode ser parcialmente devido a
coadministração de laxantes como lactulose (3 x 10 subtipos genéticos específicos do citocromo P-450
mg a 3 x 40 mg/dia oralmente), que são da enzima hepática, e parcialmente devido aos
obrigatórios durante o uso crônico de opioides. diferentes estilos de vida e hábitos dos pacientes.

Prurido Intravenosa / intramuscular / subcutânea


O prurido induzido por opioides (coceira) ocorre As diferentes formas de administração parenteral
com frequência após administração sistêmica e dos opioides têm o mesmo objetivo: uma forma
ainda mais frequentemente após administração conveniente e confiável de administração, início
intratecal/peridural de opioides. Embora o prurido rápido de ação, e desviar do metabolismo hepático.
possa ser causado pela liberação generalizada de Enquanto a administração intravenosa promove
histamina após a administração de morfina, ele uma resposta imediata sobre o efeito analgésico, a
também é causado por fentanil, que libera pouca administração intramuscular e subcutânea demora
histamina. Acredita-se que o mecanismo principal um pouco (cerca de 15-20 min) e deve ser dada em
seja mediado centralmente e que a inibição da dor esquema fixo para evitar grandes flutuações nas
desmascare a atividade subjacente de neurônios concentrações plasmáticas. O aumento mais rápido
pruritorreceptivos. O prurido induzido por opioides das concentrações plasmáticas com administração
pode ser atenuado com sucesso com naltrexona (6 parenteral versus enteral permite um controle
39

melhor e mais direto dos efeitos dos opioides; no


entanto, aumenta o risco de sobredose súbita com
Morfina
sedação, depressão respiratória, hipotensão e parada
cardíaca. Após a administração parenteral, a A morfina, forte agonista opioide µ recomendada
primeira fase de distribuição no sistema nervoso no degrau 3 da escada da OMS, é comumente usada
central, mas também em outros tecidos como como referência para todos os outros opioides.
gordura e músculos, é seguida de uma segunda fase Pode ser aplicada por todas as vias de
mais lenta de redistribuição da gordura e dos administração. Os metabólitos ativos da morfina,
músculos para a circulação com a possibilidade de morfina-6-glicuronídeo e morfina-3-glicuronídeo,
recorrência de alguns efeitos dos opioides. Esse podem aumentar os efeitos colaterais como
fenômeno é particularmente importante após depressão respiratória e neurotoxicidade (síndrome
administrações repetidas. da excitação: hiperalgesia, mioclonia, epilepsia),
principalmente quando há acúmulo devido a
Sublingual / nasal prejuízo da função renal. Suas principais indicações
Apenas substâncias altamente lipofílicas como são para dor pós-operatória e de câncer; no entanto,
fentanil e buprenorfina podem ser administradas também é usada para outras condições dolorosas
por essas vias, porque penetram facilmente na graves (por ex., cólica, angina pectoris). Em estados
mucosa e são absorvidas pela circulação. O início da de dor aguda, a morfina pode ser rapidamente
analgesia é rapido com fentanil (0,05-0,3 mg; 5 min), titulada para alívio ideal da dor pela via parenteral
mas mais lento com buprenorfina (0,2-0,4 mg; 30- (por ex., bolus i.v. de 2,5-5 mg de morfina),
60 min). No entanto, a duração da analgesia é bem mediante o que a concentração plasmática da
mais longa com buprenorfina (6-8 horas) do que morfina deve ser mantida constante por intervalos
com fentanil (15-45 min). Semelhante a outras regulares de tempo de administrações subsequentes
aplicações parenterais, não há metabolismo hepático (por ex., 6-12 mg de morfina i.v./h). Em condições
de primeira passagem. de dor crônica, as doses diárias de morfina devem
ser administradas em fórmula de liberação lenta, e a
Intratecal / peridural dor súbita é mais bem tratada com a administração
Os opioides administrados por via intratecal ou de um quinto da dose diária de morfina em fórmula
peridural penetram nas estruturas do sistema de liberação imediata. É recomendado o
nervoso central dependendo de suas propriedades monitoramento regular da intensidade da dor e do
químicas: menos ionizados, isto é, mais lipofílicos, consumo de morfina.
compostos como fentanil ou alfentanil penetram
muito mais facilmente (800 vezes) do que Oxicodona
compostos mais ionizados, isto é, hidrofílicos, como
morfina. Enquanto os opioides lipofílicos são
A oxicodona é um forte agonista opioide µ oral
rapidamente capturados não apenas pelo tecido
pertecente ao degrau 3 da escada da OMS, com 1,5
neuronal, mas também por gordura e vasos
vezes a potência analgésica da morfina. A oxicodona
peridurais, uma quantidade substancial de morfina
tem uma alta biodisponibilidade oral de 60-80%. É
permanece no líquor por um longo período de
metabolizada em várias etapas em diferentes
tempo (até 12-24 horas) e é transportada através de
metabólitos, dos quais a oximorfona é o mais ativo
seu fluxo rostral para os centros respiratórios do
e 8 vezes mais potente do que a morfina. A
mesencéfalo, levando a depressão respiratória tardia.
oxicodona tem perfil terapêutico semelhante à
Os efeitos dos opioides no sistema nervoso central
morfina; no entanto só está disponível em
terminam com sua redistribuição para a circulação e
formulação oral de liberação lenta (comprimidos de
não por seu metabolismo, que é insignificante.
10-80 mg). Como esses comprimidos têm uma dose
Doses de morfina peridural, por exemplo, são um
relativamente alta, podem ser pulverizados e
bolus de 1,0-3,0 mg, e uma dose de 24 horas de 3,0-
transformados em solução aquosa, que tem sido
10 mg; para morfina intratecal um bolus de 0,1-0,3
usada incorretamente por viciados por seus efeitos
mg e uma dose de 24 horas de 0,3-1,0-5,0 mg.
eufóricos.
40

arritmia potencialmente fatal causada pelo aumento


Hidromorfona do intervalo QT no ECG.

A hidromorfona é um agonista opioide µ


pertencente ao degrau 3 da escada da OMS
Tramadol
(opioides fortes) com 4-5 vezes a potência
analgésica da morfina. Após a administração oral O tramadol, um opioide fraco, pertence ao degrau 2
(dose única de 4 mg), o início da analgesia ocorre da escada da OMS. O tramadol se liga aos inibidores
após 30 minutos e dura até 4-6 horas. Devido à sua de recaptação de noradrenalina e serotonina o que
alta solubilidade em água, está disponível em aumenta as concentrações de noradrenalina e
formulações orais e parenterais (2 mg/1 amp) que serotonina, levando à inibição subsequente da dor.
podem ser administradas i.v. ou s.c. A Além disso, um de seus metabólitos (M1) se liga ao
hidromorfona é bastante metabolizada no fígado, receptor opioide µ que produz analgesia adicional.
com metabolismo de aproximadamente 60% da O tramadol tem uma alta biodisponibilidade de 60%
dose oral. O metabólito hidromorfona-3- e tem 0,2 vezes a potência analgésica da morfina.
glicuronídeo pode causar efeitos neurotóxicos Como o componente opioide é dependente do
(síndrome da excitação: hiperalgesia, mioclonia, metabolismo hepático para o composto M1, as
epilepsia), semelhante à morfina-3-glicuronídeo. variações genéticas podem diferenciar
metabolizadores ruins dos excelentes e portanto as
Metadona respectivas diferenças em efeitos analgésicos. O
tramadol existe em formulações orais (comprimidos
de 50-100-150-200 mg) e parenterais (50-100 mg).
A metadona é um agonista do receptor opioide µ Como com todos os opioides, o dano hepático e
com 0,3 vezes a potência analgésica da morfina. renal pode levar ao acúmulo do medicamento com
Além de sua atividade como receptor opioide, ela é risco maior de depressão respiratória. Devido a
também antagonista do receptor N-metil-D- interações potenciais, o tramadol não deve ser
aspartato (NMDA), o que pode ser vantajoso em administrado junto com inibidores da monoamina
estados de dor crônica como a dor neuropática, oxidase porque a combinação pode produzir
onde o receptor NMDA parece ser responsável pela depressão respiratória grave, hiperpirexia, excitação
hipersensibilidade da dor persistente. A metadona é do sistema nervoso central delírio e convulsões.
um medicamento lipofílico com boa penetrabilidade
no SNC e alta biodisponibilidade (40-80%). Existe
em formulação oral (comprimidos de 5-40 mg) e
Meperidina
parenteral (levometadona: 5 mg/mL). A metadona é
metabolizada sem metabólitos ativos por várias A meperidina, um agonista opioide µ fraco, pertence
enzimas diferentes do fígado de maneira altamente ao degrau 2 da escada da OMS com 0,13 vezes a
variável, o que explica sua grande variação de meia potência analgésica da morfina e importantes
vida (até 150 h) e torna a dose regular bastante propriedades anticolinérgicas e de anestesia local. A
difícil para os pacientes. Em geral, o alívio da dor é meperidina é usada mais frequentemente no pós-
melhor com doses de metadona que são 10% das operatório porque, além de seus efeitos analgésicos,
doses equianalgésicas calculadas para opioides tem propriedades anti-tremores. A meperidina
convencionais. A excreção ocorre quase que existe em formulações orais (solução de 50 mg/mL)
inteiramente nas fezes, o que a torna um bom e parenterais (5-100 mg/2 mL). É metabolizada no
candidato para pacientes com insuficiência renal. A fígado em normeperidina com meia vida de 15-30
metadona tem propensão muito menor para efeitos horas, e tem importantes propriedades neurotóxicas.
eufóricos e portanto é usada em programas de A meperidina não deve ser administrada a pacientes
manutenção para viciados em drogas. Além disso, sendo tratados com inibidores da monoamina
existe uma tolerância cruzada incompleta para oxidase (IMAO) porque a combinação pode
outros opioides. Infelizmente, a metadona tem produzir depressão respiratória grave, hiperpirexia,
potencial para iniciar Torsade de Pointes, uma
41

excitação do sistema nervoso central, delírio e horas) e uma longa duração de ação (8-10 horas). A
convulsões. buprenorfina está disponível em formulações
sublinguais (s.l.) (cápsulas de 0,2-0,4 mg) e
Fentanil parenterais (0,3 mg/mL). Seus metabólitos são
inativos e excretados principalmente pelo duto
O fentanil, forte agonista opioide µ, pertence ao biliar. A biodisponibilidade oral é de 20-30% e a
degrau 3 da escada da OMS com 80-100 vezes a biodisponibilidade sublingual é de 30-60%. Para dor
potência analgésica da morfina. A principal aguda, aplica-se 0,2-0,4 mg s.l. ou 0,15 mg i.v. de
formulação do fentanil é parenteral (0,1 mg/2 mL), buprenorfina a cada 4-6 horas. Devido à sua
mas a administração sublingual é às vezes usada. O duração de ação muito estável e longa, a
sistema transdérmico é amplamente utilizado em buprenorfina é usada como terapia de substituição
países industrializados, mas devido aos custos e ao para viciados em drogas (4-32 mg/dia). Semelhante
sistema de administração lento com riscos adicionais ao fentanil, existe um sistema de administração
(depressão respiratória tardia), só pode ser usado em transdérmica. A depressão respiratória causada pela
casos raros. O fentanil é metabolizado no fígado em buprenorfina só é revertida por doses relativamente
metabólitos inativos. O rápido início de ação, a alta altas e repetidas de naloxona (2-4 mg).
potência e a curta duração do fentanil são vantagens
para a titulação e a controle da dor pós-operatória. Naloxona/naltrexona
No entanto, o uso incorreto pode levar a grandes
flutuações na concentração plasmática e aumentar o As duas substâncias são antagonistas clássicos de
risco de dependência psicológica e vício. É receptores opioides com preferência por receptores
importante lembrar que a administração repetida de opioides µ. A naloxona só existe em formulação
fentanil pode levar ao acúmulo de medicamento parenteral (0,4 mg/1 mL), tem início rápido de ação
devido à redistribuição da gordura e dos músculos (dentro de 5 min) e curta duração (30-60-90 min).
para a circulação com risco aumentado de depressão Costuma ser usada no pré-operatório para tratar
respiratória. sobredose de opioides e precisa ser titulada e
administrada repetidamente sob monitoramento
Sufentanil constante. A naltrexona só existe em formulação
oral (comprimido de 50 mg) com início lento de
O sufentanil, forte agonista opioide µ, com 800- ação (dentro de 60 min) e longa duração (12-24 h).
1.000 vezes a potência analgésica da morfina, só A naltrexona é usada principalmente para
existe na formulação parenteral (0,25 mg/5 mL) e tratamento de manutenção de dependência de
pode ser administrado por via intravenosa (bolus de álcool e drogas. As duas substâncias podem
10-100 µg) e peridural (inicialmente: 5-10 µg, bolus precipitar sintomas de abstinência agudas e com
repetido: 0,5-1 µg). Devido à sua potência muito risco de vida quando usadas inadequadamente,
alta, o sufentanil é usado principalmente no como hiperexcitabilidade, delírio, alucinações,
perioperatório. Comparado ao fentanil, ele é muito hiperalgesia, hipertensão, arritmia e aumento da
menos propenso ao acúmulo de medicamento sudorese.
devido à sua baixa distribuição tecidual, pouca
ligação às proteínas e alta taxa de metabolização Pérolas de sabedoria
hepática em metabólitos inativos.
 Embora existam por quase 200 anos, os
Buprenorfina opioides ainda são o esteio do tratamento da
dor. Embora os opioides sejam eficazes para
A buprenorfina pertence aos opioides mistos o pós-operatório e para pacientes
agonistas/antagonistas que se ligam aos receptores oncológicos, e para alguns pacientes com
opioides µ e k. Em geral tem um início de ação dor neuropática, quase todas as outras dores
lento (45-90 min), um efeito máximo retardado (3
42

não oncológicas dificilmente respondem ao [5] Pergolizzi J, Boger RH, Budd K, Dahan A, Erdine S,
Hans G, Kress HG, Langford R, Likar R, Raff a RB,
tratamento com opioides. Sacerdote P. Opioids and the management of chronic
 Embora os opioides sejam vistos com muito severe pain in the elderly: consensus statement of an
International Expert Panel with focus on the six clinically
preconceito devido a seus efeitos colaterais e
most often used World Health Organization Step III
potencial de abuso, a prática clínica e a opioids (buprenorphine, fentanyl, hydromorphone,
pesquisa demonstraram nas últimas décadas methadone, morphine, oxycodone). Pain Pract
2008;8:287–313.
que os opioides para tratamento de curto e
longo prazo podem ser usados com
segurança. Não existem evidências sobre
uma indicação diferencial dos opioides
disponíveis. Consequentemente,
disponibilidade, custos e experiência pessoal
devem ser os princípios orientadores da
escolha do opioide.
 Porque não existe – como na maioria dos
medicamentos usados na medicina –
toxicidade orgânica, mesmo em altas doses e
com tratamento de longo prazo, e porque
alguns efeitos colaterais importantes
diminuem com o tempo e outros efeitos
colaterais nocivos podem ser evitados com
o uso correto, pode ser que os opioides
permaneçam o esteio do tratamento da dor
para a maioria dos pacientes ainda por
algum tempo.

Referências
[1] Kaszor A, Matosiuk D. Non-peptide opioid receptor
ligands—recent advances. Part I: Agonists. Curr Med
Chem 2002;9:1567.
[2] Kurz A, Sessler DI. Opioid-induced bowel
dysfunction. Drugs 2003;63:649–71.
[3] Massotte D, Kieff er BL. A molecular basis for opiate
action. Essays Biochem 1998;33:65–77.
[4] Trescot AM, Datta S, Lee M, Hansen H. Opioid
pharmacology. Pain Physician 2008;11:S133–53.
43

Tabela 1
Lista dos diferentes Opioides que ativam receptores Opioides
no sistema nervoso central
Alcalóides Opioides semi- Opioides Peptídios
opiáceos sintéticos sintéticos opioides
Morfina Hidromorfona Nalbufina Endorfina
Codeína Oxicodona Levorfanol Encefalina
Tebaína Diacetilmorfina Butorfanol Dinorfina
Noscapina (heroína) Pentazocina
Papaverina Etorfina Metadona
Naloxona Tramadol
(antagonista) Meperidina
Naltrexona Fentanil
(antagonista) Alfentanil
Sufentanil
Remifentanil

Tabela 2
Doses equianalgésicas de diferentes vias
de administração dos Opioides
Medicamento Dose Fator de
(mg) conversão
Morfina oral 30 1
Morfina i.v., i.m., s.c. 10 0,3
Morfina peridural 3 0,1
Morfina intratecal 0,3 0,01
Oxicodona oral 20 1,5
Hidromorfona oral 8 3,75
Metadona oral 10 0,3
Tramadol oral 150 0,2
Tramadol i.v. 100 0,1
Meperidina i.v. 75 0,13
Fentanil i.v. 0,1 100
Sufentanil i.v. 0,01 1.000
Buprenorfina s.l. 0,3 100
44

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 8
Princípios dos Cuidados Paliativos
Lukas Radbruch and Julia Downing

O que são os cuidados ampla abordagem multidisciplinar que inclui a


família e utiliza os recursos disponíveis na
paliativos? comunidade. Podem ser implementados com
sucesso em instalações de cuidados terciários, em
Os cuidados paliativos são uma abordagem que centros de saúde da comunidade e em qualquer
melhora a qualidade de vida dos doentes e das suas lugar que as crianças se sintam como em casa.
famílias que enfrentam problemas associados a uma
doença potencialmente fatal, através da prevenção e Quais são os princípios dos
do alívio do sofrimento e mediante a identificação
precoce, avaliação e tratamento rigorosos da dor e
cuidados paliativos?
de outros problemas, físicos, psicossociais e
espirituais. Esta definição, da Organização Mundial Os cuidados paliativos são uma filosofia de
de Saúde, de 2002, é amplamente aceite, e inclui cuidados aplicável desde o diagnóstico (ou mesmo
algumas alterações comparativamente com uma antes, se apropriado) até à morte e, seguida pelo
definição mais antiga da OMS, de 1990. A definição acompanhamento do luto da família. Os cuidados
explica e reforça a abordagem holística que abrange paliativos são frequentemente vistos como cuidados
não só os sintomas físicos, mas que se estende que se concentram apenas no fim da vida e, embora
também a outras dimensões e objetivos de este seja um aspeto importante dos cuidados
tratamento dos doentes que atualmente sofrem paliativos, trata-se apenas de um componente dos
devido à sua doença, com a sua história pessoal e o cuidados contínuos que devem ser providenciados.
seu ambiente e no seu contexto social reais. Coloca o enfoque nas necessidades do doente, das
A OMS propõe uma definição semelhante para os suas famílias e dos cuidadores. Trata-se da prestação
cuidados paliativos a crianças – cuidados ativos de cuidados holísticos, abrangentes, centrados no
totais ao corpo, mente e espírito da criança – e doente e baseada em atitudes, experiência e
também envolve o apoio à família. Têm inicio compreensão. É uma filosofia que pode ser aplicada
quando é diagnosticada a doença e prosseguem em qualquer lugar – no âmbito de uma vasta gama
independentemente de a criança receber ou não de competências, contextos e doenças. A OMS
tratamento direcionado para a doença. Os definiu vários princípios que fundamentam a
profissionais de saúde devem avaliar e aliviar o prestação de cuidados paliativos, incluindo
sofrimento físico, psicológico e social da criança. Os declarações segundo as quais os cuidados paliativos:
cuidados paliativos eficazes às crianças exigem uma  Oferecem alívio da dor e de outros
sintomas, do sofrimento;
45

 Afirmam a vida e encaram a morte como conjunto com o doente e a sua família. Em muitos
um processo normal; países com fracos recursos, a equipa de cuidados
 Não tencionam antecipar nem adiar a morte; multidisciplinar inclui trabalhadores comunitários e
 Integram os aspetos psicológicos e curandeiros tradicionais, assim como enfermeiros,
espirituais dos cuidados aos doentes; médicos e outros profissionais de saúde. Os
enfermeiros desempenham uma função essencial na
 Oferecem um sistema de apoio para ajudar
prestação de cuidados paliativos, devido à sua
os doentes a viver tão ativamente quanto
disponibilidade em contextos de poucos recursos e
possível até à sua morte,
podendo tornam-se muitas vezes nos
 Oferecem um sistema de apoio para ajudar
coordenadores da equipa multidisciplinar. O
as famílias a lidar com a situação durante a
profissional de saúde pode trabalhar sozinho com
doença e no luto;
muito pouco apoio de outras pessoas, em particular
 Usam uma abordagem de equipa para tratar em ambientes rurais. Os trabalhadores comunitários
as necessidades dos doentes e das suas da área da saúde e os voluntários podem oferecer
famílias, incluindo o aconselhamento na fase apoio aos profissionais de saúde se tiverem a devida
de luto, se indicado; formação para prestar apoio nos cuidados médicos
 Melhoram a qualidade de vida e podem básicos. Em muitos contextos de recursos limitados,
também influenciar positivamente o decurso os trabalhadores comunitários e os voluntários são
da doença; indispensáveis para o fornecimento de cuidados
 Aplicam-se numa fase precoce da doença, paliativos, em particular no que diz respeito ao
juntamente com outras terapêuticas apoio social aos doentes.
destinadas a prolongar a vida, como a Existem, no entanto, situações específicas em que é
quimioterapia, a radioterapia ou a necessário o apoio de profissionais ou de uma
terapêutica anti-retroviral, e incluem as equipa. A tomada de decisões éticas em situações
investigações necessárias para melhor complexas, doentes ou famílias desagradáveis,
compreender e gerir as complicações sistemas familiares com conflitos complexos podem
clínicas que causem sofrimento. criar a necessidade de tal apoio. Para os
profissionais de saúde que trabalham sozinhos, é
Como são prestados os muito útil identificar os pares ou uma equipa de
cuidados paliativos? apoio com os quais possam contar, se necessário,
para debater problemas, partilhar responsabilidades
ou mesmo obter apoio emocional. Este apoio
Os cuidados paliativos podem ser prestados numa permitir-lhes-á prosseguir o seu trabalho em
vasta gama de ambientes e modelos, incluindo benefício dos doentes.
cuidados prestados em casa, em instalações
próprias, em regime de internamento e em centros
de dia. Os cuidados podem ser prestados em
Descrição de casos
ambientes especializados ou gerais e devem, sempre
que possível, ser integrados nas estruturas de saúde Grace é viúva e tem 43 anos. O marido morreu de «causa
existentes. O conceito de cuidados paliativos deve desconhecida» há 4 anos e, desde então, tem educado sozinha
ser adaptado de modo a refletir as tradições, as os dois filhos, de 12 e 14 anos. Há um ano, notou que
crenças e as culturas locais – sendo que todas começava a sentir dor durante a micção, que a menstruação se
variam de comunidade para comunidade e de país havia tornado irregular e que tinha hemorragias a meio do
para país. ciclo. Inicialmente, não procurou assistência médica, uma vez
Os cuidados paliativos são holísticos e abrangentes, que pensou que fazia parte do processo de envelhecimento e,
pelo que, idealmente, deverão ser prestados por uma culturalmente, não era apropriado falar deste tipo de
equipa multidisciplinar de profissionais que problemas com ninguém. Seis meses mais tarde, depois de ter
trabalhem em estreita colaboração e definam consultado primeiro um curandeiro tradicional e sem que o
objetivos do tratamento e planos de cuidados em tratamento recomendado surtisse qualquer efeito, acabou por
46

marcar consulta no centro de saúde local, pois a dor estava a oral para controlar a dor. Foi-lhe concedida alta 10 dias
tornar-se muito forte. Sangrava e descobriu que não conseguia depois de ter sido internada. Foi apoiada pela equipa de
manter-se limpa e sem odores. Após observação no centro de cuidados em casa, pela comunidade e pelos líderes espirituais
saúde local, foi encaminhada para o centro oncológico até morrer, 5 semanas mais tarde, com os sintomas
nacional, onde lhe foi diagnosticado um tumor cervical controlados e depois de ter tomado as devidas medidas para o
fungoso. O diagnóstico inicial foi de um carcinoma cervical de sustento dos filhos.
fase IV que se havia disseminado pelos nódulos linfáticos,
pélvis e fígado. O tratamento cirúrgico já não era opção e a Este exemplo permite perceber o cerne do conceito
quimioterapia não estava disponível, pelo que lhe foram de cuidados paliativos. Trata-se de controlar a dor e
aplicadas cinco frações de radioterapia paliativa para tentar outros sintomas, mas também os problemas
reduzir a dor e a hemorragia. Tinha perdido peso nos últimos psicológicos, sociais e espirituais. Trata-se da
6 meses e sofria de fadiga. Enquanto esteve internada na coordenação e da continuidade dos cuidados em
unidade oncológica, foi observada pela equipa de cuidados diferentes contextos e ao longo da trajetória da
paliativos local quanto teve uma forte dor na pélvis e na zona doença. Implica um trabalho de equipa
lombar. O processo de controlo da dor incluiu radioterapia de interdisciplinar e transversal que envolve pessoal de
baixa intensidade e começou a tomar 5 mg de morfina oral a diferentes profissões da área da saúde, bem como
cada 4 horas. Esta dose foi aumentada gradualmente para serviços voluntários, incluindo cuidadores no seu
35 mg de morfina oral a cada 4 horas, com uma dose de papel de parceiros da equipa, assim como na sua
resgate, conforme necessário. Este regime foi combinado com função de familiares que necessitam de apoio e
12,5 mg de amitriptilina à noite para a dor neuropática, e atenção.
resultou num alívio significativo da dor. Foi-lhe também
prescrito um antiemético para as náuseas e um laxante para Qual a importância da
evitar a obstipação provocada pela morfina e para amolecer as
fezes, a fim de reduzir o desconforto causado pela lesão
avaliação do doente?
fúngica aquando da defecação. Com a radioterapia associada
a um regime de limpeza e o uso de metronidazol tópico, o Uma avaliação inicial aprofundada antes do início
odor desapareceu e Grace sentiu-se mais confortável. das intervenções no âmbito dos cuidados paliativos,
A unidade oncológica nacional estava sedeada na capital, a bem como avaliações regulares de acompanhamento
mais de 250 km da sua aldeia e, depois de controlada a dor e são fundamentais para garantir um alívio adequado
terminada a radioterapia, quis voltar para casa. Para além dos sintomas e do sofrimento e para adaptar o
de querer estar mais próxima dos filhos, não tinha meios tratamento ao doente individual. A avaliação inicial
financeiros suficientes para assumir uma hospitalização e descreve as necessidades do doente e constitui a
receava que a sogra, já idosa, não conseguisse tomar conta dos base, não apenas de um regime farmacológico, mas
filhos. Tinha consciência do seu diagnóstico de cancro e os também de um plano de cuidados paliativos
médicos receavam que sofresse de uma patologia subjacente de adaptado às necessidades individuais, à situação e ao
VIH, em particular porque o marido havia falecido de contexto do doente. Também é importante tentar
«causas desconhecidas». No entanto, Grace mostrava-se avaliar a causa de qualquer dor ou sintoma, que o
relutante em efetuar um teste ao VIH devido à vergonha que indivíduo possa sentir e se a causa em questão pode
poderia sentir caso se revelasse positivo e devido à fase ser tratada, por ex. uma infeção oportunista, sendo
avançada da sua doença, pelo que era pouco provável que um então importante tratar a causa e para gerir o
diagnóstico de VIH alterasse o curso do tratamento. sintoma.
Preocupava-se com o futuro dos dois filhos de 12 e 14 anos e
receava que a sogra não conseguisse sustentá-los caso falecesse. O que deve incluir a
Estes problemas foram abordados através de repetidas avaliação de base?
conversas com Grace acerca de questões relacionadas com a
saúde dos filhos, ambos aparentando estar de boa saúde.
A avaliação de base deve incluir um conjunto
Grace foi encaminhada para uma equipa de cuidados local
mínimo de informação recolhida pelo profissional
que a acompanhava em casa e foi-lhe prestado
de saúde para ajudar a obter informação acerca do
aconselhamento relativo a como manter o acesso à morfina
47

contexto de administração dos cuidados, por ex. doenças avançadas e com as funções cognitivas e
idade, sexo, doença subjacente, condições de física em declínio não conseguem preencher
prestação dos cuidados, terapêutica em curso documentos de auto-avaliação, ainda que breves. A
(terapêuticas médicas, bem como tradicionais e avaliação pelos prestadores de cuidados ou pelo
complementares) e tratamentos anteriores. A pessoal constitui geralmente uma solução de
descrição das condições de prestação dos cuidados substituição aproximada para a auto-avaliação do
deve incluir a residência do doente, quem presta os doente e deve ser implementada para os doentes em
cuidados, quantas pessoas vivem em casa e um questão.
panorama dos recursos financeiros e emocionais, A avaliação de problemas psicológicos, espirituais e
bem como das necessidades do doente e da família. sociais pode ser mais complexa, dado que está
Um sociograma pode oferecer um breve panorama disponível um leque apenas limitado de ferramentas
das relações familiares e os acontecimentos que auxiliem os profissionais de saúde. No entanto,
importantes na história da família, incluindo podem ser usadas ferramentas simples para este
qualquer caso de doença. efeito como, por exemplo, o FICA para avaliar as
necessidades espirituais, isto é, a Fé ou as crenças, a
Importância e a influência, a Comunidade e o a
forma de Abordar os problemas.
O estado funcional é um parâmetro importante,
uma vez que prediz necessidades. O estado
funcional também é indicado para a avaliação e
monitorização de serviços, pois descreve a
população tratada. A escala do Eastern Cooperative
Oncology Group (ECOG) é uma escala fácil de
categorias com quatro passos que também é
implementada no POS (Fig. 2).

Juntamente com a informação acerca do contexto


de administração dos cuidados, a avaliação inicial
não se deve restringir aos sintomas físicos, mas deve
incluir várias dimensões: défices e recursos físicos,
psicológicos, sociais e espirituais. Muitos dos
sintomas, como a dor, a dispneia (dificuldade
respiratória), as náuseas ou a fadiga são sensações
subjetivas, mais do que de parâmetros objetivos
mensuráveis, pelo que é preferível a auto-avaliação
pelo doente. A auto-avaliação pode ser efetuada
através de curtas listas de verificação de sintomas, Que avaliações de
como a Escala de Avaliação de Sintomas de acompanhamento são
Edmonton (ESAS), que utiliza escalas numéricas de
avaliação (ENA) ou escalas visuais analógicas necessárias para a
(EVA) para avaliar a intensidade dos sintomas mais reavaliação?
importantes. A escala de avaliação dos resultados
dos cuidados paliativos (POS, Palliative Outcome Score)
A avaliação é um processo contínuo, pelo que, após
é um instrumento mais abrangente que tenta incluir
o início do tratamento, é muito importante efetuar
todas as dimensões dos cuidados através de 12
reavaliações regulares. A eficácia de qualquer
perguntas. Foi desenvolvida uma versão africana,
tratamento administrado para o alívio dos sintomas
utilizada com bons resultados em contextos de
deve ser monitorizado e o tratamento, incluindo o
escassos recursos. No entanto, muitos doentes com
regime farmacológico, deve ser adaptado de acordo
48

com o seu efeito. Após a fase inicial, com o alívio como a tuberculose, podem resultar numa grande
dos sintomas estabilizado, deve ser mantida uma quantidade de sintomas, com incapacidade grave
reavaliação regular, uma vez que é de esperar maior provocada pela dor, dispneia, náuseas e vómitos,
deterioração provocada pela doença subjacente. Os obstipação ou confusão. A maior parte dos doentes
doentes oncológicos ou com VIH/SIDA que com doença avançada e esperança de vida limitada
recebem cuidados paliativos devem ser examinados sofrem de debilidade e cansaço (fadiga) causados
pelo profissional de saúde semanalmente, ou no pela doença ou pelo próprio tratamento. Lidar com
mínimo mensalmente, se a situação estiver o diagnóstico e prognóstico pode causar angústia
estabilizada. As avaliações de acompanhamento espiritual e psicológica, ansiedade e depressão. Estes
pode ser curtas mas devem incluir breves listas de sintomas podem ser tratados e, com o alívio dos
verificação de sintomas, a fim de controlar se sintomas, a qualidade de vida é melhorada.
apareceram novos sintomas. Deve ser iniciado o A secção seguinte apresenta um panorama da gestão
tratamento dos novos sintomas e problemas. O dos sintomas mais importantes e frequentes
POS pode ser usado regularmente para avaliar o (Quadro 1). Poderá encontrar informação mais
estado do doente e as terapêuticas em curso detalhada acerca da avaliação e do tratamento dos
também devem ser reavaliadas de forma regular, a sintomas e acerca de outras áreas dos cuidados
fim de verificar se continuam indicadas ou se é paliativos no guia clínico dos cuidados de apoio e
recomendável uma redução cuidadosa da dose ou paliativos para o VIH/SIDA na África subsaariana e
mesmo a supressão do tratamento. No entanto, no módulo Integrated Management of Adult Illnesses
deve notar-se que, frequentemente, os Palliative Care (Gestão Integrada das Doenças nos
medicamentos para o alívio da dor, da dispneia e de Adultos – Cuidados Paliativos) da OMS e em
outros sintomas devem ser mantidos até ao documentos relacionados.
momento da morte. O tratamento sintomático pode O controlo da dor nos cuidados paliativos segue as
ser interrompido se for possível o tratamento de orientações de controlo da dor no cancro, estando
uma causa subjacente dos sintomas (por exemplo, no centro desta abordagem a medicação analgésica
uma infeção oportunista em doentes com de acordo com os princípios da Organização
VIH/SIDA). Mundial de Saúde. Os opióides, como a morfina
Na sequência da morte do doente, é útil proceder a oral, continuam a constituir a base do controlo da
uma avaliação da eficácia global dos cuidados dor nos cuidados paliativos em contextos de baixos
paliativos prestados para efeitos de garantia da recursos, uma vez que são relativamente baratos e
qualidade. A forma mais fácil consiste em solicitar porque não é possível prestar cuidados paliativos
aos prestadores de cuidados e aos familiares uma eficazes sem a disponibilidade de um opióide
avaliação global dos cuidados prestados ao doente potente. O Capítulo 6 apresenta informações
algumas semanas ou meses após a sua morte, detalhadas sobre esta questão.
usando uma escala de categorias simples (satisfação
geral com os cuidados: muito insatisfeito, O tratamento de outros sintomas é semelhante
insatisfeito, nem satisfeito nem insatisfeito, satisfeito ao controlo da dor?
ou muito satisfeito).
Embora não exista qualquer ferramenta semelhante
Alívio dos sintomas à escala analgésica da OMS para ajudar a tratar
outros sintomas, muitos dos princípios aplicados ao
Porque é tão importante o alívio dos sintomas? controlo da dor podem também ser aplicados a
outros sintomas. Por exemplo: inverter o que é
O controlo da dor e de outros sintomas constitui possível inverter e tratar a causa subjacente, sem
uma parte essencial dos cuidados paliativos. Com a aumentar os sintomas; recorrer a intervenções com
progressão da doença subjacente, a maioria dos substâncias não farmacológicas – conjunta ou
doentes sofre de sintomas físicos e psicológicos. O isoladamente, conforme apropriado; utilizar
cancro, o VIH/SIDA e outras infeções crónicas, medicamentos específicos dos tipos de sintomas; e
tratar o sofrimento psicossocial associado. A
49

medicação para o controlo dos sintomas também até os valores de hemoglobina voltarem a diminuir.
deve ser administrada a horas certas, de acordo com O oxigénio ajuda a controlar a dispneia apenas
as diferentes dosagens disponíveis e, sempre que numa minoria de doentes. No entanto, outras
possível, por via oral, fazendo assim que seja mais intervenções não farmacológicas podem revelar-se
fácil as pessoas continuarem a tomar a medicação úteis, como o reposicionamento dos doentes,
em casa, onde não existe qualquer tipo de sentando-os, por exemplo, numa posição mais
profissional de saúde para lhes administrar vertical.
injetáveis. Na maior parte dos doentes, medidas simples, como
cuidados de conforto, permitir o livre fluxo de ar,
Como tratar a dispneia? abrindo por exemplo uma janela ou
disponibilizando uma pequena ventoinha, são muito
Embora os opióides estejam bem estabelecidos eficazes no tratamento da dispneia.
enquanto base para o controlo da dor, é menos
conhecido o facto de que os opióides também são Como tratar as náuseas?
muito eficazes para o tratamento da dispneia. Em
doentes naive a opióides, a morfina oral (5-10 mg) As náuseas e os vómitos podem ser tratados com
ou a morfina subcutânea (2,5-5 mg) oferece um antieméticos, como a metoclopramida ou
alívio rápido e pode ser repetida conforme neurolépticos em baixa dose, como o haloperidol.
necessário. Também podem ser usados outros Os coricosteróides podem ser muito eficazes se os
opióides para esta indicação, com dosagem sintomas gastrointestinais forem causados por
equipotente. Nos doentes que já recebem opióides obstrução mecânica derivada de inflamação ou
para a dor, deve ser aumentada a dose para aliviar a cancro. As intervenções não farmacológicas incluem
dispneia. A dispneia contínua deve ser tratada com o aconselhamento nutricional. A Acupuntura ou a
medicação opióide contínua, seguindo regras de acupressão na parte interior do antebraço (ponto de
determinação da dose semelhantes às respeitantes Acupuntura «Neiguan») é muito eficaz em alguns
ao controlo da dor, embora à maior parte se doentes e comprovou ser tão eficaz como os
apliquem dosagens iniciais inferiores. fármacos antieméticos utilizados em ensaios
A depressão respiratória é um efeito secundário dos clínicos.
opióides, mas não impede o seu uso para a dispneia.
Em grande parte dos casos, a dispneia está Como tratar a obstipação?
frequentemente associada a níveis elevados de
dióxido de carbono no sangue, e não tanto ao nível A obstipação pode ser causada pela doença
reduzido de oxigénio. Os opióides diminuem o intestinal subjacente, por medicamentos como
estímulo de regulação causado pelos elevados níveis opióides ou antidepressivos, mas também por falta
de dióxido de carbono e, por conseguinte, os de atividade física, uma dieta pobre em fibras e/ou a
doentes sentem-se menos ofegantes, mesmo que a ingestão insuficiente de líquidos. O tratamento
respiração não tenha melhorado. Os opióides profilático com laxantes deve ser prescrito para
também reduzem a dor e a ansiedade, aliviando todos os doentes crónicos a fazer tratamento com
assim a dispneia induzida pelo stress. opióides. Contrariamente a outros efeitos adversos,
A dispneia em doentes oncológicos também pode como a sedação, que a maior parte dos doentes
ser causada por uma disfunção mecânica, por comunica apenas durante os primeiros dias após o
exemplo, derrame pleural. A libertação mecânica início do tratamento com opióides ou de um
através da drenagem do derrame pleural aumento da dose, os doentes não desenvolvem
proporciona um alívio rápido. A dispneia também tolerância à obstipação. A metilnaltrexona, um
pode estar associada a anemia grave, causando a antagonista opióide periférico, oferece uma opção
diminuição da capacidade de transporte do oxigénio seletiva e eficaz para o tratamento da obstipação
no sangue, e as transfusões de sangue aliviam a induzida por opióides, mas o seu elevado custo leva
dispneia em doentes com anemia extrema, embora a a que não seja usado em contextos de baixos
maior parte das vezes apenas durante alguns dias, recursos. As intervenções não farmacológicas, como
50

o aumento da atividade física, a maior ingestão de adaptada ou reduzida de acordo com o estado
líquidos ou a alteração do regime alimentar funcional e a função cognitiva.
costumam ser muito eficazes, se forem apropriados
para o estado de saúde do doente. Como tratar a ansiedade e a depressão?

Como tratar a fadiga? A ansiedade e a depressão encontram-se entre os


principais problemas psicológicos, em cuidados
A fadiga foi considerada o sintoma mais frequente paliativos. Os doentes que enfrentam um
nos doentes oncológicos e é também sintoma diagnóstico de doença incurável e um prognóstico
predominante em doentes paliativos, não limitado têm todo o direito de se sentirem ansiosos
oncológicos. Dado o conceito de fadiga não ser e deprimidos. Contudo, estes sintomas podem
plenamente entendido pelos doentes, nem mesmo sobrecarregar o doente, exigindo então o tratamento
por todos os profissionais de saúde, recomenda-se que permita repor a qualidade de vida durante o
que sejam considerados os sintomas de cansaço e tempo que ainda lhes resta.
debilidade, em vez de fadiga. Existem poucas A ansiedade pode ser mais pronunciada à noite,
intervenções médicas para estes sintomas. O prejudicando o sono e aumentando o cansaço
tratamento com eritropoietina, quando disponível, durante o dia. As benzodiazepinas à noite permitem
tem sido usado com resultados positivos em descansar adequadamente à noite e prevenir as
doentes oncológicos, mas, no contexto de cuidados perturbações noturnas.****** O lorazepam permite
paliativos com esperança de vida reduzida, parece obter um efeito rápido e menor sensação de
não existir indicação para a eritropoietina. Fármacos «ressaca» no dia seguinte, mas outros sedativos
como o metilfenidato e o modafinil estão também resultarão. O tratamento com
atualmente a ser investigados. Contudo, a benzodiazepinas também ajuda a tratar a dispneia e
medicação mais eficaz parece ser a dexametasona ou outros sintomas, uma vez que os mesmos poderão
outros corticosteróides. O seu efeito tem tendência aumentar devido à ansiedade.
a desaparecer ao fim de alguns dias ou semanas e é Alguns doentes com doença avançada sofrem de
frequentemente acompanhado de efeitos adversos, depressão profunda e necessitam de tratamento
pelo que estes fármacos devem ser reservados para com antidepressivos. A mirtazapina está incluída na
situações em que seja definido um objectivo claro, lista da IAHPC de medicamentos essenciais para
num curto período, como, por exemplo, uma festa utilização em cuidados paliativos. A mirtazapina
de família. também está indicada no tratamento da ansiedade e
A redução de outros medicamentos pode aliviar nos ataques de pânico e no alívio do prurido.
consideravelmente o cansaço e preconiza-se uma Contudo, para o tratamento da depressão, também
revisão do regime farmacológico nos doentes com podem ser usados outros antidepressivos. Devem
um estado funcional reduzido, uma vez que muitos ser usados preferencialmente inibidores seletivos da
medicamentos poderão deixar de ser necessários. recaptação da serotonina (ISRSN), uma vez que
Em doentes selecionados, com anemia grave, as produzem menos efeitos secundários
transfusões de sangue são muitas vezes uma opção comparativamente com os antidepressivos
para reduzir o cansaço e a debilidade, podendo ser tricíclicos, mais antigos. A terapêutica antidepressiva
repetidas, mesmo ao longo de um período demora geralmente 2-3 semanas a produzir efeito e,
prolongado. dado que o tratamento deve ser iniciado com uma
No entanto, para a maioria dos doentes, as dose baixa, com titulação progressiva até produzir
intervenções não farmacológicas revelam-se efeitos eficazes, muitos doentes com uma menor
eficazes, tais como o aconselhamento, as estratégias esperança de vida não conseguem viver tempo
de recuperação e preservação de energias e manter suficiente para beneficiarem dos antidepressivos.
um diário das atividades diárias. O treino físico tem Para estes doentes, o metilfenidato representa uma
demonstrado conseguir reduzir eficazmente a alternativa, uma vez que começa a surtir efeito
fadiga. A atividade física é possível mesmo para apenas em poucas horas.
doentes com doença avançada, embora tenha de ser
51

Embora muitos doentes não sofram de uma emergências, o início do alívio dos sintomas não
depressão profunda, sentem-se no entanto, deve ser adiado indevidamente por avaliação ou um
deprimidos, o que não é a mesma coisa. Um diagnóstico diferencial, prolongados. No entanto, os
sentimento de tristeza e pesar pode ser totalmente procedimentos médicos de emergência habituais
apropriado e pode até ajudar a lidar com a doença. também podem ser prejudiciais, por exemplo,
O tratamento com antidepressivos nestes doentes quando a exacerbação da dor leva a um
pode impedir de “gestão” da situação e acrescentar internamento hospitalar, incluindo tempo de
efeitos secundários desagradáveis, como boca seca transporte e ainda investigações radiográficas e
ou obstipação. A decisão de tratar a depressão exige laboratoriais, mas sem utilização de analgésicos ou
portanto uma ponderação cuidada da eficácia e dos cuidados de conforto.
efeitos secundários. As emergências que têm de ser tratadas rápida e
adequadamente são as exacerbações de sintomas
Como tratar a agitação e a confusão? pré-existentes, os novos sintomas de início súbito e
intenso ou as complicações raras, como uma
Na fase final da vida, a agitação e a confusão são hemorragia abundante. Os planos de tratamento
sintomas frequentes que podem causar bastante individualizados, em cuidados paliativos, devem
tensão, não apenas no doente, mas também nos tentar prever este tipo de emergências e
prestadores de cuidados e nos profissionais. As proporcionar intervenções adequadas. A prescrição
causas neurológicas podem incluir convulsões (ou, melhor ainda, o fornecimento) de medicação de
focais, alterações isquémicas, hemorragia cerebral recurso para casos de emergência é particularmente
ou metástases cerebrais. Muitos fármacos, assim importante quando os profissionais de saúde não
como a abstinência de outros, ou, mais estão disponíveis fora das horas de expediente e o
frequentemente, de álcool, podem causar delírio, pessoal auxiliar ou familiares têm de tomar as
geralmente com sintomatologia flutuante, após uma medidas necessárias.
crise súbita. Febre, infeções, alterações eletrolíticas
como a hipercalcémia, ou a desidratação também O que é a medicação de resgate ou de alívio de
podem desencadear ou agravar o delírio. Pode ser ação rápida?
necessária medicação neuroléptica, sendo o
haloperidol a abordagem de primeira linha. Podem A medicação de resgate/SOS ou de ação rápida
ser necessárias dosagens elevadas, com doses de 20- deve ser prescrita a doentes em estado avançado da
30 mg por dia. Outros fármacos, como a doença, nos quais exista a possibilidade de
levomepromazina, têm propriedades mais sedativas exacerbação da dor ou outros sintomas e é
e podem ser benéficos, em doentes muito agitados. obrigatório um tratamento rápido dos sintomas em
Em doentes com doença por VIH, a disfunção questão. Dos medicamentos de resgate/SOS podem
cerebral associada ao VIH pode causar agitação e fazer parte vários fármacos, mas, na maior parte dos
confusão mais precocemente na evolução da doentes, devem incluir pelo menos um opióide de
doença, pelo que poderá ser necessário controlar ação rápida para o tratamento da dor, da dispneia e
sintomas semelhantes antes da fase final da vida. da ansiedade, bem como uma benzodiazepina,
como o lorazepam para o tratamento da dispneia, da
Intervenções de emergência ansiedade e da agitação (Quadro 2).
As secreções respiratórias podem causar uma
O que é uma emergência nos cuidados respiração “esforçada” em doentes moribundos e
paliativos? provocar angústia nos doentes e nos cuidadores. Os
fármacos anticolinérgicos, como o butilbrometo de
A exacerbação da dor e outros sintomas, bem como hioscina, podem aliviar rapidamente estes
sofrimento psicológico grave, com ansiedade ou «estertores» pré morte.
mesmo pânico, podem conduzir a situações de Para todas as intervenções farmacológicas, deve ser
emergência que necessitam de ação imediata. Nestas tida em conta a via de administração. A via oral
pode ser muito mais fácil, na falta de auxílio
52

profissional, mas, para alguns doentes, a frequência e pode ser facilmente titulado até
administração oral é impossível. Os opióides, assim produzir efeitos eficazes.
como inúmeros outros fármacos usados em Deve ter-se em conta que a sedação paliativa é o
cuidados paliativos, podem ser injetados por via último recurso, caso o tratamento sintomático falhe.
subcutânea, com reduzido risco de complicações e Antes de iniciar este tratamento, devem ser
uma ação mais rápida, do que a aplicação oral. A consideradas outras opções de tratamento, e as
aplicação por via intravenosa oferece a possibilidade prioridades do doente devem ser esclarecidas.
de uma titulação rápida com pequenas Alguns doentes preferem sofrer os sintomas físicos
administrações em bólus se estiver disponível em vez de perder a capacidade cognitiva e a sedação
pessoal treinado. deve ser iniciada apenas com o consentimento do
doente ou dos seus representantes. Os serviços mais
O que fazer em caso de hemorragia abundante?
eficientes encontrarão uma indicação para sedação
O crescimento do cancro na pele ou nas membranas em apenas alguns doentes selecionados com
mucosas pode causar hemorragia abundante se sintomas muito graves.
ocorrer a rutura dos principais vasos sanguíneos. Tal
pode manifestar-se rapidamente ou com intensidade Cuidados psicológicos e
crescente, ou ainda através de hematemeses, vómito espirituais
de sangue coagulado, proveniente de hemorragias
gastrointestinais. Por vezes, quando a hemorragia é
Qual o impacto dos problemas psicossociais
reduzida, podem ser ainda indicadas transfusões de
sobre os cuidados médicos?
sangue ou derivados. Para os casos de hemorragia
mais graves, podem ser indicadas as
Os problemas psicossociais são frequentemente
benzodiazepinas ou morfina, administradas em
negligenciados pelo pessoal médico, embora sejam
bólus subcutâneos, mas muitas vezes não atuam
essenciais para muitos doentes. Os receios acerca da
com a rapidez suficiente. Com uma hemorragia
progressão da doença, da morte e de morrer, dos
abundante, o doente perde rapidamente a
problemas financeiros ou da estigmatização no caso
consciência e morre com pouco sofrimento, pelo
de doenças como o VIH/SIDA podem ser uma
que o tratamento deverá restringir-se a medidas de
experiência avassaladora para os doentes, aliená-los
conforto. Devem ser disponibilizadas toalhas
da família e amigos e, muitas vezes, agravar o
escuras suficientes ou material semelhante para
impacto sobre os sintomas físicos. Para a maior
cobrir o sangue.
parte dos doentes em países de baixos recursos, a
perda de apoio é um resultado imediato de uma
O que é a sedação paliativa?
doença potencialmente fatal, colocando
frequentemente em perigo a sobrevivência do
Em casos raros, em doentes com sofrimento
doente, bem como a da família. O apoio social que
extremo causado pela dor, dispneia, agitação ou
garante os meios para sustentar as necessidades
outros sintomas resistentes ao tratamento paliativo,
básicas é tão essencial quanto o tratamento médico
ou que não respondem suficientemente depressa às
dos sintomas.
intervenções adequadas, deve ser proposta sedação
A maior parte dos doentes com doenças
paliativa. Isto significa que as benzodiazepinas são
ameaçadoras, potencialmente fatais têm também
usadas para reduzir o nível de consciência até aliviar
necessidades espirituais, que variam com a sua
o sofrimento. Em alguns doentes, é necessário o
religiosidade e o contexto cultural. O apoio
recurso a sedação profunda, tornando assim o
espiritual prestado pelos seus cuidadores, pelos
doente inconsciente. No entanto, para outros
profissionais e por líderes religiosos, pode ter muita
doentes, a sedação ligeira pode ser suficiente, de
utilidade.
modo a que possam estar despertáveis e interagir
com os familiares e o pessoal. O midazolam
intravenoso ou subcutâneo é usado com maior
53

Como comunicar más notícias? seja reconhecida e que seja fornecido o apoio
adequado.
Todo o pessoal que trabalha em cuidados paliativos
devem possuir competências de comunicação Tomada de decisões éticas
especiais. Os profissionais de saúde devem
conseguir colaborar com outros profissionais e Embora estejam disponíveis diretrizes e
voluntários encarregues de cuidar o doente e recomendações para a maior parte das áreas de
acordar regimes de tratamento e objetivos comuns controlo dos sintomas, algumas destas questões nos
para o doente. Devem também conseguir cuidados paliativos têm implicações éticas.
comunicar com os doentes e as famílias sobre
tópicos difíceis, por exemplo, decisões éticas como É necessário hidratar e alimentar os doentes
a suspensão de medidas ou tratamentos. Existem quando a ingestão oral já não é possível?
modelos especiais, por exemplo, o modelo SPIKES
para a comunicação de más notícias (Quadro 3). Os doentes e, mais frequentemente, os cuidadores e
os profissionais de saúde insistem na nutrição
Como oferecer apoio na fase de luto? entérica ou parentérica, ou pelo menos na
hidratação quando os doentes já não conseguem
O apoio na fase de luto é uma parte importante, comer ou beber. Se o médico não aceder a este
embora por vezes esquecida, na prestação de desejo, é frequentemente considerado desumano,
cuidados paliativos, que não deveria terminar com a pois pensa-se que o doente irá morrer de forme ou
morte do doente. O luto e a perda são expressos sede. A nutrição assume muitas vezes um
através de uma multiplicidade de palavras e línguas significado simbólico avassalador e, para os
por povos diferentes. A riqueza dos inúmeros rituais cuidadores enquanto o doente estiver nutrido,
ajuda a orientar as pessoas nas sociedades através do entendem que existe uma hipótese de que o doente
processo de luto e é importante para os melhore. Esta significância pode ser clarificada pelo
profissionais de saúde terem consciência desses pessoal médico que explica que a suspensão da
mesmos rituais. O luto afeta não só os familiares, medicação oncológica está já associada a um estado
mas também os próprios doentes, que podem sentir de fraca nutrição do doente. No entanto, deve-se
um luto antecipado, antes da sua morte, à medida entender que os doentes caquéticos, com cancro ou
que vão sofrendo várias perdas, como a perda do VIH/SIDA, na maior parte dos casos não
futuro e a perda de não poder ver os filhos crescer. beneficiam da nutrição. Um metabolismo catabólico
Os doentes precisam de apoio para lidarem com é a principal razão para a sua caquexia, e o
estas questões antes da morte e para planearem o fornecimento de calorias adicionais não altera esta
futuro dos seus entes queridos, quanto tal é situação. O estado de saúde dos doentes na fase
possível. final da doença pode mesmo deteriorar-se com a
Existem inúmeros fatores diferentes que podem administração de fluidos por via parentérica, pois
afetar o processo de luto para os familiares, podem aumentar os edemas e as secreções
incluindo a sua relação com a pessoa que morreu, a respiratórias. Por outro lado, a sede e a fome não
forma como esta morreu, se tinha sintomas e foi aumentam quando se reduzem os líquidos e os
vista a sofrer, os estigmas, a falta de divulgação da alimentos. Em muitos casos, e quase sempre em
sua doença, as práticas e crenças culturais locais, os doentes moribundos, os suplementos nutricionais, a
traços de personalidade, outras tensões que possam nutrição parentérica e a substituição dos líquidos
também estar a sentir e a sobrecarga do luto se não estão indicados e devem ser retirados ou
tiverem perdido vários amigos e familiares num eliminados. Se necessário, podem ser administradas
curto espaço de tempo. O apoio contínuo na fase de pequenas quantidades de líquidos (500-1000 mL)
luto pode ser garantido aos familiares através da por via subcutânea.
equipa de cuidados paliativos ou encaminhando-os
para redes comunitárias e sistemas de apoio locais.
É importante que a necessidade de apoio no luto
54

Como reagir caso o doente peça para acelerar a resource-limited settings. In: Gwyther L, Merriman A,
morte? Mpanga Sebuyira L, Schietinger H, editores. A clinical
guide to supportive and palliative care for HIV/AIDS in
Sub-Saharan Africa. Kampala: African Palliative Care
Os cuidados paliativos, por definição, não aceleram Association; 2006.
nem adiam a morte. A eutanásia ativa não é um [6] Gwyther L, Merriman A, Mpanga Sebuyira L, Schietinger
tratamento médico, pelo que não pode fazer parte H. A clinical guide to supportive and palliative care for
dos cuidados paliativos. No entanto, existem alguns HIV/AIDS in Sub-Saharan Africa. Kampala: African
Palliative Care Association; 2006.
doentes em cuidados paliativos, que solicitam o [7] Hearn J, Higginson IJ. Development and validation of a
suicídio assistido ou a eutanásia ativa ou ainda core outcome measure for palliative care: the palliative
outras formas de acelerar a morte. care outcome scale. Palliative Care Core Audit Project
Na maior parte dos países, suspender ou retirar um Advisory Group. Qual Health Care 1999;8:219-27.
tratamento de suporte de vida é legal e eticamente [8] Materstvedt LJ, Clark D, Ellershaw J, Forde R,
Gravgaard AM, Muller-Busch HC, Porta i Sales J, Rapin
aceitável, pelo que a redução do tratamento pode CH. Euthanasia and physician-assisted suicide: a view
representar uma opção. Em casos selecionados, de from an EAPC Ethics Task Force. Palliat Med
sofrimento intolerável, a sedação paliativa pode 2003;17:97-101; discussion 102-79.
estar indicada. À maior parte dos doentes que [9] Nieuwmeyer SM, Defilippi K, Marcus; C., Nasaba R.
solicitam uma morte rápida, deve ser oferecida uma Loss, grief and bereavement. In: Gwyther L, Merriman
A, Mpanga Seguyira L, Schietinger H, editores. A clinical
exploração mais detalhada e cuidados ainda mais guide to supportive and palliative care for HIV/AIDS in
empáticos. Muitas vezes a afirmação «Já não quero Sub-Saharan Africa. Kampala: African Palliative Care
viver mais» significa «Já não quero viver mais, Association;2006.
assim», e a comunicação sobre os problemas ou os [10] Powell RA, Downing J, Harding R, Mwangi-Powell F,
medos pode ajudar a aliviar o desejo de acelerar a Connor S. Development of the APCA African Palliative
Outcome Scale. J Pain Symptom Manage 2007;33:229-
morte. Para a maioria dos doentes, é possível 32.
encontrar uma solução que lhes permita passar o [11] Puchalski C, Romer AL. Taking a spiritual history allows
resto dos seus dias com uma qualidade de vida clinicians to understand patients more fully. J Palliat Med
aceitável. 2000;3:129-37.
[12] Sepulveda C, Marlin A, Yoshida T, Ullrich A, Palliative

Referências care: the World Health Organization’s global perspective.


J Pain Symptom Manage 2002;24:91-6.
[13] World Health Organization. Cancer pain relief and
[1] Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale EA, palliative care – report of a WHO expert committee.
Kudelka AP. SPIKES: a six-step protocol for delivering WHO Technical Report Series No. 804. Geneva: World
bad news: application to the cancer patient. Oncologist Health Organization; 1990.
2000;5:302-11.
[2] Buccheri G, Ferrigno D, Tamburini M. Karnofsky and
ECOG performance status scoring in lung cancer: a Sítios na Web
prospective, longitudinal study of 536 patients from a
single institution. Eur J Cancer 1996;32:1135-41.
[3] Chang VT, Hwang SS, Feuerman M. Validation of the World Health Organization (2004) Integrated Management of
Edmontont Symptom Assessment Scale. Cancer Adult Illnesses, palliative care: symptom management and end
2000;88:2164-71. of life care,
[4] Conill C, Verger E, Salamero M. Performance status http://www.who.int/3by5/publications/documents/imai/en/
assessment in cancer patients. Cancer 1990:65:1864-6. (Acedido em 25 de Novembro de 2008).
[5] Downing J, Finsch L, Garanganga E, Kiwanuka R,
McGilvary M, Pawinski R, Willis N. Role of the nurse in
55

Quadro 1
A essência do controlo dos sintomas:
medicamentos de primeira linha para os sintomas predominantes
Medicação Dosagem Classe farmacológica Observações
Dispneia
Morfina Conforme necessário, ou 10-30 Opióide (agonista ) EA: obstipação, náuseas, sedação, disfunção
mg/dia inicialmente, por via cognitiva
oral, titular até obter o efeito, a
dose máxima pode exceder
600 mg/d
Hidromorfona Conforme necessário, Opióide (agonista ) EA: obstipação, náuseas, sedação, disfunção
ou 4-8 mg/dia inicialmente, cognitiva
por via oral, titular até obter o
efeito, a dose máxima pode
exceder 100 mg/dia
Lorazepam Conforme necessário, ou 1-5 Benzodiazepina Acumulação com a utilização repetida
mg/dia, sublingual
Secreções do trato respiratório
Butilbrometo de hioscina Conforme necessário, 20-40 Fármaco antimuscarínico Sem efeito antiemético
(butilescopolamina) mg, via s.c. (a cada 4 horas) (ação periférica)
Hidrobrometo de hioscina Conforme necessário, 400g, Fármaco antimuscarínico Efeito antiemético;
(escopolamina) via s.c. (ação central e periférica) EA: sedação
Náuseas e vómitos
Metoclopramida 30 mg/dia; dose máxima até 5-HT4, antagonista EA extrapiramidais; não administrar a doentes com
180 mg/dia obstrução gastrointestinal
Haloperidol 2 mg/dia até 5 mg/dia Fármaco neuroléptico EA extrapiramidais
Obstipação
Macrogol 1 saqueta, por via oral
Picossulfato de sódio 10-40 gotas, por via oral
Octreótido 0,3-0,6 mg/dia, Reduz eficazmente as secreções gastrointestinais,
via s.c. indicado para doentes com obstrução
gastrointestinal
Metilnaltrexona 0,8-1,2 mg/dia Antagonista opióide Eficaz na obstipação induzida por opióides
(ação periférica)
Fadiga, debilidade
Dexametasona 12-24 mg/dia inicialmente, Corticosteróide Úlceras gástricas, alucinações, pesadelos, aumento
redução progressiva após dois de peso, eficaz apenas durante um curto período de
dias tempo
Ansiedade
Lorazepam 1-5 mg/dia Benzodiazepina EA: efeitos paradoxais
Mirtazapina 15 mg inicialmente, aumento Antidepressivo (ISRSN) Eficaz também no tratamento de ataques de
progressivo após 2-3 semanas pânico, prurido; EA: sedação, aumento do apetite,
até 45 mg/dia disfunção hepática
Depressão
Mirtazapina 15 mg inicialmente, aumento Antidepressivo (ISRSN) Eficaz também no tratamento da ansiedade,
progressivo após 2-3 semanas ataques de pânico, prurido; EA: sedação, aumento
até 45 mg/dia do apetite, disfunção hepática
Metilfenidato 5 mg de manhã inicialmente, Estimulante EA: agitação, inquietação, efeitos extrapiramidais,
aumento progressivo até 30 taquicardia, arritmia
(40) mg/dia
Agitação, confusão
Haloperidol 2 x 1 mg até 20 mg/dia Fármaco neuroléptico EA: efeitos extrapiramidais
Levomepromazina 25-50 mg até 200 mg/dia Fármaco neuroléptico EA: sedação, efeitos anticolinérgicos
(metotrimeprazina)
Abreviaturas: EA = evento adverso; ISRSN = inibidor seletivo da recaptação de serotonina e da norepinefrina.
56

Quadro 2
A essência do controlo dos sintomas: intervenção de emergência
Medicação Dosagem Classe farmacológica Observações
Medicação de recurso (administrada conforme necessário)
Morfina 10 mg 10-20 mg por via oral Opióide Indicação: dor, dispneia
10 mg, via s.c. (ou i.v. com (agonista )
pequenos incrementos)
Hidromorfona 1,3-2,6 mg por via oral Opióide Indicação: dor, dispneia
2-4 mg por via s.c. (agonista )
Butilbrometo de hioscina 40 20 mg, via s.c. Fármaco antimuscarinico Indicação: secreções do trato
mg respiratório
Lorazepam 1 mg 1 mg, sublingual Benzodiazepina Indicação: agitação,
ansiedade
Sedação paliativa
Midazolam 3-5 mg/h, via s.c., i.v. Benzodiazepina Efeito paradoxal/ efeito
ou 3-5 mg em bólus, inadequado
conforme necessário

Quadro 3
Modelo SPIKES para comunicar más notícias
Ambiente Escolher o ambiente para a conversa, falar ao nível dos olhos do doente, evitar perturbações e
interrupções, permitir que os familiares estejam presentes.
Percepção Verificar a capacidade do doente, incapacidades causadas pela medicação ou pela doença, ou ainda pela
interação com familiares, utilizar estímulos verbais e não-verbais para a perceção.
Motivação Perguntar ao doente qual o nível de informação que possui, o que sabe sobre a doença e o assunto da
conversa e perguntar ao doente o que deseja saber.
Conhecimento Informar o doente acerca das más notícias de forma estruturada, com terminologia clara, permitir que
faça perguntas e fornecer os detalhes que o doente solicitar.
Empatia Conceder algum tempo para deixar o doente manifestar as suas reações emocionais, explorar as reações
emocionais e reagir com empatia.
Resumo Elaborar um resumo conciso, se possível escrito, e propor uma conversa de acompanhamento, se
possível.
57

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 9
Terapêuticas Complementares para a Gestão da Dor
Barrie Cassileth e Jyothirmai Gubili

A farmacoterapia não controlada. No entanto, as intervenções


farmacológicas, embora sejam eficazes, nem sempre
convencional será sempre a respondem às necessidades dos doentes, e podem
melhor opção para o produzir efeitos secundários problemáticos. Além
disso, são dispendiosas e podem ser difíceis de
controlo da dor? obter. Estas questões constituem um grande desafio
para os doentes que necessitam de tratamento de
Tanto a dor aguda como a dor crónica podem ser longa duração, obrigando-os frequentemente a
tratadas com fármacos de prescrição médica, mas escolher entre viver com dor ou com os efeitos
podem também ser controladas através de secundários indesejáveis. As terapêuticas
terapêuticas complementares como a Acupuntura, complementares desempenham uma função
as massagens terapêuticas e outras modalidades importante em todos os contextos, especialmente
referidas neste capítulo, por um custo menor e, pela nos de baixos recursos.
sua natureza, com menos efeitos secundários.
Todos os anos, no mundo inteiro cerca de nove Com que frequência os
milhões de doentes oncológicos sentem dor
moderada a grave na maior parte do tempo. Trinta
doentes usam terapêuticas
por cento dos doentes oncológicos em fase inicial e complementares ?
70-90% dos doentes em fase avançada sofrem de
dores intensas. A dor sentida pelos doentes As terapêuticas complementares são cada vez mais
oncológicos pode ser crónica, causada diretamente usadas para aliviar a dor e outros sintomas, como as
pela invasão do tumor ou pelo próprio tratamento náuseas e a fadiga. A nível internacional, entre 7% e
do cancro ou dor aguda, como a que se sente a mais de 60% dos doentes oncológicos recorrem a
seguir a uma cirurgia. A dor oncológica em fase terapêuticas complementares, consoante as
terminal tem características próprias e coloca definições usadas em inúmeros estudos. Estas
questões especiais. A Organização Mundial de terapêuticas são também frequentemente usadas
Saúde (OMS) recomenda o uso de analgésicos para para a dor não oncológica.
a dor, iniciando com fármacos não opióides,
seguindo para opióides, quando a dor é persistente e
58

Como atuam as terapêuticas Por inúmeras razões, é importante distinguir


entre terapêuticas baseadas na evidência e que são
complementares? úteis, das que não têm qualquer valor. As promessas
não fundamentadas podem provir de pessoas bem-
As terapêuticas complementares podem atuar intencionadas, ou podem ser promovidas por
através de efeitos analgésicos diretos (por ex. vendedores sem escrúpulos, tal como já foi
Acupuntura), de uma ação anti-inflamatória (por ex. reconhecido em muitas partes do globo, em
plantas) ou por distração (por ex. musicoterapia), a particular na Europa Ocidental, na Austrália e nos
fim de alterar a perceção da dor, ajudar a relaxar, Estados Unidos. No início do século XXI, a OMS
melhorar o sono ou reduzir sintomas como náuseas, designou a década de 2001 a 2010 como a década da
neuropatia, vómitos, ansiedade ou depressão, assim modernização da medicina tradicional africana. Os
como a dor. Estas terapêuticas isoladamente estados de África juntaram-se assim às nações
resultam com frequência, mas também quando ocidentais, à China e a outras zonas do mundo, num
associadas a fármacos, reduzindo, muitas vezes, as esforço genuíno de modernizar as práticas médicas
dosagens necessárias, e com isso os efeitos tradicionais. A OMS recomendou aos países
secundários e o custo. Quando as terapêuticas africanos que estabelecessem normas e sistemas de
complementares funcionam em sinergia com um proteção de direitos de propriedade intelectual, que
regime farmacêutico para a dor, é possível melhorar investigassem os compostos de certas plantas para
a eficácia e reduzir os custos. determinar o seu valor, que sistematizassem a
formação dos médicos tradicionais e lidassem com
As terapêuticas o charlatanismo. O charlatanismo em África pode
assemelhar-se ao de outros continentes,
complementares realmente representando um negócio rentável que visa as
funcionam? pessoas vulneráveis que enfrentam a dor, o cancro
ou outros problemas de saúde graves. Robert L.
Ao longo do tempo e em qualquer canto do mundo, Park, da Universidade de Maryland, escreveu acerca
todas as culturas desenvolveram remédios à base de do charlatanismo em diversas publicações, incluindo
plantas. Quando submetidos a estudo, alguns destes o seu livro Voodoo Science: The Road from Foolishness to
remédios revelaram-se úteis, mas muitas vezes Fraud. Aqui, evoca os sete «Sinais de alarme para
outros revelaram ser ineficazes. Além disso, em fraudes em ciência e em medicina». Esses sinais são:
todo o mundo o cidadão comum é confrontado 1) O descobridor divulga a sua descoberta
com remédios mágicos ou assentes em superstições. diretamente nos meios de comunicação social ou ao
Estes podem parecer muito atrativos por serem público. A integridade da ciência assenta sobre a
baratos, por estarem disponíveis imediatamente e vontade de os cientistas exporem novas ideias e
por serem considerados seguros e eficazes, pelo descobertas à apreciação de outros cientistas. Uma
facto de serem reconhecidos como «naturais». Há tentativa de contornar a análise pelos pares,
que ter em conta que, em todo o mundo, existem divulgando um novo resultado diretamente junto da
duas falsas crenças sobre os produtos «naturais»: a comunicação social ou do público, sugere que é
de que os remédios «naturais» são inofensivos, e a pouco provável que o trabalho resista ao escrutínio
crença de que os remédios usados há décadas ou de outros cientistas. Exemplo: uma empresa do
séculos terão que ser eficazes. Ambos os mitos sector da alimentação saudável comercializou um
estão errados. Este problema coloca-se muito suplemento alimentar designado Vitamina O,
especialmente quando, pela utilização de remédios ocupando páginas inteiras de publicidade nos
inúteis, doenças curáveis não estão a ser tratadas jornais. Afinal, a vitamina O era apenas água
devidamente. As vítimas têm as suas patologias salgada.
agravadas e podem até ter a sua morte precipitada, 2) O descobridor afirma que pessoas
por estarem a perder um tempo precioso com poderosas estão a tentar ocultar o seu trabalho.
“remédios” inúteis. Muitas vezes, afirma que a medicina dominante faz
59

parte de uma conspiração em grande escala que 5) Os fármacos de administração oral foram
inclui a indústria e o governo. normalizados e os ingredientes ativos
3) O efeito científico em causa é difícil de documentados.
detetar. 6) Pode ser útil, mas não necessário, obter
4) A evidência é incidental. A principal informação acerca dos mecanismos de ação. Em
aprendizagem alcançada pela medicina moderna no primeiro lugar, determina-se que algo resulta e, em
último século é que não se pode confiar em casos seguida, o seu mecanismo (como resulta).
isolados. Dado que estes casos têm um forte 7) A relação risco/benefício é um aspeto
impacto emocional, fazem com que, numa era de importante a considerar. A maior parte das
ciência, se mantenham vivas certas crenças terapêuticas complementares não orais são de baixo
supersticiosas. A descoberta mais importante da risco e benéficas.
medicina moderna não são as vacinas nem os
antibióticos – é o ensaio randomizado, que distingue Qual o primeiro passo na
o que resulta do que não resulta. O plural de
“episódios” não é “dados”.
escolha da medicina
5) O descobridor afirma que o achado é complementar?
credível porque perdurou ao longo dos séculos.
Persiste um mito de que, há muito tempo, antes de Ao selecionar uma terapêutica particular tradicional
se saber que o sangue circula pelo corpo ou que os ou complementar, devem ser consideradas as
germes causam doenças, os nossos antepassados preferências do doente pelo uso de uma terapêutica
possuíam remédios milagrosos que a ciência passiva (por ex. massagens ou Acupuntura) ou de
moderna não consegue compreender. Na verdade, uma terapêutica ativa (por ex. meditação ou auto-
grande parte do que é antigo não consegue alcançar hipnose) – cada uma destas terapêuticas é eficaz no
resultados em estudos científicos modernos. alívio da dor. Os medicamentos à base de plantas
6) O descobridor trabalha isolado. Na devem ser considerados tendo em conta qualquer
verdade, as descobertas científicas são quase sempre medicamento receitado por um médico que o
fruto do trabalho de vários cientistas. doente esteja a tomar.
7) O descobridor propõe novas leis da
natureza para explicar como funciona. Uma nova A acupuntura será uma
«Lei da Natureza» invocada para explicar um
resultado extraordinário, não deve entrar em escolha acertada?
conflito com o que já é conhecido. Se forem
propostas novas leis para justificar uma observação, As origens da Acupuntura, uma componente
é quase certo que a observação estará errada. importante da Medicina Chinesa Tradicional,
Os sete «sinais» evocados acima distinguem remontam a mais de 2 000 anos. Esta técnica
o charlatanismo das terapêuticas verdadeiramente envolve a estimulação de pontos pré-determinados
eficazes. Para as identificar, incluindo métodos do corpo com agulhas esterilizadas, filiformes e
complementares e tradicionais, podem ser usados descartáveis, sendo por vezes usado calor
outros sete sinais: (moxibustão), pressão (acupressão) ou eletricidade
1) A terapêutica foi estudada e mostrou ser para aumentar o efeito terapêutico. A teoria antiga
útil para um determinado problema. subjacente à Acupuntura pressupunha que o “qi”,
2) O estudo incluiu um ensaio ou a energia da vida, flui pelos meridianos, que se
metodologicamente consistente em humanos, por pensava estabelecerem a ligação entre os órgãos do
exemplo um ensaio clínico randomizado. corpo. Acreditava-se que a doença ocorria quando
3) A segurança e a eficácia foram os meridianos ficavam bloqueados. Pensava-se que
comprovadas. a Acupuntura aliviava o bloqueio e permitia o fluxo
4) Os resultados foram publicados, de normal do qi, devolvendo assim a saúde. A ideia de
preferência através duma publicação médica revista «energia da vida» ou «energia vital» nunca foi
pelos seus pares. demonstrada pela via científica. Em vez disso,
60

estudos fisiológicos e por imagiologia indicam que a medida pelo aumento dos níveis de células natural
Acupuntura induz a analgesia e ativa o sistema killer, a diminuição dos níveis de cortisol e
nervoso central. Encontram-se em curso estudos adrenalina, e a melhoria das circulações sanguínea e
adicionais sobre os mecanismos da Acupuntura. linfática, além das sensações relatadas pelos doentes.
A OMS apoia o recurso à Acupuntura Em estudos, a massagem reduziu a dor e outros
enquanto intervenção eficaz para as dores lombares, sintomas de forma eficaz, incluindo náuseas, fadiga,
pós-operatórias e as reações adversas à radioterapia depressão, stress e ansiedade associados a
e à quimioterapia. Em 1997, uma Conferência de tratamentos oncológicos.
Consenso no National Institutes of Health (NIH),
nos Estados Unidos, concluiu que a Acupuntura é E sobre as terapêuticas
eficaz no alívio da dor, das náuseas e da
osteoartrose. Desde esta conferência, uma vasta
mente-corpo?
documentação de investigação veio aumentar as
evidências de benefícios adicionais e o NIH A medicina mente-corpo inclui ensinar aos doentes
continua a apoiar ensaios clínicos sobre a como controlar aspetos da sua fisiologia para ajudar
Acupuntura, bem como estudos sobre os seus a reduzir a dor, a ansiedade, a tensão e o medo. Esta
mecanismos. Existem dados substanciais que categoria abrange o ioga e a hipnose, nas quais um
confirmam a capacidade da Acupuntura em aliviar a terapeuta sugere alterações da perceção das
dor. sensações, dos pensamentos e dos comportamentos.
A imagiologia guiada e as técnicas de relaxamento,
E o que dizer sobre as como o relaxamento muscular progressivo e a
respiração profunda controlada, também são tipos
massagens terapêuticas? de medicina mente-corpo. Os doentes podem
aprender e utilizar estas terapêuticas. Este treino
As massagens terapêuticas são milenares e são pode ser facultado por terapeutas, mas encontra-se
praticadas em culturas de todo o mundo. Esta muitas vezes disponível em CD.
técnica envolve a manipulação, a aplicação de
pressão, a fricção ou movimentos de deslizamento E sobre a hipnose?
entre os tecidos moles e a pele para promover a
circulação, o relaxamento e aliviar a dor. As técnicas A hipnose é um estado de concentração ou de
e graus particulares de pressão podem variar em consciência alterada no qual as distrações são
cada um dos inúmeros tipos de massagem bloqueadas, permitindo à pessoa concentrar-se
terapêutica. A massagem sueca é o tipo de atentamente num assunto, recordação, sensação ou
massagem usado predominantemente no mundo problema específico. Ajuda as pessoas a relaxarem e
ocidental. As massagens desportivas, o shiatsu e as a tornarem-se recetivas à sugestão. Um CD
massagens dos tecidos profundos são modalidades desenvolvido no Memorial Sloan Kettering ensina
que envolvem uma maior pressão, enquanto o reiki aos doentes a auto-hipnose, para que a possam usar
(terapêutica com toque muito ligeiro) envolve a leve antes da cirurgia ou em qualquer altura para
passagem das mãos sobre o corpo. O grau de controlar a dor.
pressão utilizado deve ser ajustado para garantir que A hipnose foi estudada extensivamente e a
não agravam feridas, fraturas e outras. A sua eficácia foi comprovada para uma vasta gama de
reflexologia (massagem dos pés, das mãos ou do sintomas, incluindo dor aguda e crónica, pânico,
couro cabeludo) é particularmente útil para pessoas cirurgia, queimaduras, perturbação de stress pós-
debilitadas ou a recuperar de uma cirurgia. Todos os traumático (SPT), síndrome do intestino irritável
tipos de massagem terapêutica aliviam e relaxam (SII), alergias e certos tipos de doenças da pele, bem
músculos doridos, dado que o próprio toque como para controlar hábitos indesejados. Em 1996,
humano costuma ser benéfico e pode reduzir a dor. o National Institutes of Health dos Estados Unidos
Os muitos efeitos fisiológicos da massagem incluem considerou a hipnose uma intervenção eficaz no
a melhoria da função imunológica, conforme alívio da dor devida ao cancro e a outras patologias
61

crónicas. A investigação sugere que a analgesia


sensorial por hipnose é pelo menos parcialmente
A atividade ou o exercício
mediada pelo aumento dos mecanismos físico reduzem a dor
antinocicetivos da espinal medula em resposta à oncológica?
sugestão hipnótica. A analgesia por hipnose também
pode estar associada aos mecanismos cerebrais que
Comprovou-se que o exercício proporciona
impedem a consciência da dor depois de a
múltiplos benefícios e as suas vantagens para os
nocicepção ter alcançado centros mais elevados.
doentes encontram-se devidamente documentadas
Pode também reduzir a dimensão afetiva, talvez à
no que diz respeito tanto à dor não oncológica
medida que o indivíduo reinterpreta os significados
como à dor oncológica. Para além de reduzir a dor,
associados à sensação de dor.
tem efeitos positivos sobre o humor, bem como
sobre a função muscular, pulmonar e cardiovascular.
E sobre o ioga? Estudos demonstraram que os doentes oncológicos
podem obter uma redução dos sintomas de fadiga
O ioga é um exercício físico e mental que combina através do exercício.
posturas e meditação para acalmar a mente, o corpo
e o espírito. A sua prática promove o relaxamento e Plantas e outros
o fluxo sanguíneo, mantendo a coluna vertebral ágil
e os músculos flexíveis. As sessões, geralmente suplementos alimentares: o
facultadas a pequenos grupos, são adaptadas às que deve ser tido em
capacidades individuais, através de aulas suaves e
meditativas para doentes oncológicos e outros que consideração?
sofram de dores fortes. Os aspetos combinados do
ioga – as suas posturas suaves, a respiração As plantas são usadas na prática médica em todo o
profunda, a meditação e a interação no grupo – mundo. Alguns dos fármacos mais potentes da
reduzem a perceção da dor e ajudam a lidar com ela atualidade derivam das plantas. As plantas e os
e a recuperar. Por exemplo, num pequeno estudo componentes à base de plantas devem ser encarados
com mulheres que sofriam de cancro da mama como fármacos diluídos e não refinados. Podem
metastático, as participantes indicaram níveis produzir efeitos fisiológicos, os quais podem ser
significativamente mais baixos de dor e cansaço no positivos ou negativos, consoante a situação clínica
dia a seguir a terem praticado ioga. específica do doente. Os agentes à base de plantas
podem também conter ingredientes nocivos e, nos
E sobre a musicoterapia? doentes a tomar medicação prescrita, podem
ocorrer efeitos adversos graves provocados pela
interação planta-medicamento. Diz-se de muitos
A música consegue alcançar níveis emocionais
agentes à base de plantas que possuem propriedades
profundos e certos tipos de música podem ter
para o alívio da dor. Quando estudados, alguns
significados especiais para cada pessoa. A
revelam-se eficazes e outros não.
musicoterapia é particularmente eficaz no contexto
dos cuidados paliativos, melhorando a qualidade de
vida e aumentando o conforto e o relaxamento. A Dúvidas acerca dos agentes
música pode envolver a participação ativa dos tópicos
doentes, por exemplo cantando, escrevendo
músicas, tocando instrumentos musicais ou ainda Reações alérgicas
ouvindo música em privado. O recurso à música
para aliviar a dor, a ansiedade e a depressão é cada Alguns óleos essenciais comuns, como a árvore de
vez mais popular e os seus efeitos sobre a chá, a alfazema, a bergamota e o ylang-ylang podem
intensidade da dor e da angústia associada à dor têm causar dermatite de contacto.
sido documentados em estudos.
62

Absorção transdérmica de fitoestrogénios também ser eficaz no tratamento da lombalgia


baixa.
Inúmeros produtos para a pele à base de plantas, Os preparados à base de boswellia, usados
como o óleo de alfazema ou de árvore de chá têm para tratar a inflamação, provêm da goma da árvore
efeitos estrogénicos moderados. Quando aplicados do incenso indiano ( Boswellia serrata). Ensaios
em grandes quantidades durante períodos randomizados controlados demonstraram que os
prolongados, podem ser absorvidas quantidades reduzem a dor e o edema articular dos joelhos com
significativas através da pele. Os doentes com osteoartrite. Estudos em animais sugerem que estes
cancro sensível aos recetores de estrogénio devem efeitos podem resultar da supressão das citocinas
evitar estes produtos. pro-inflamatórias pelo agente.
O rizoma corydalis foi estudado em apenas
Toxicidade direta na pele um ensaio. Os resultados, obtidos junto de doentes
Algumas plantas podem causar necrose dos tecidos humanos, mostraram que após uma administração
da pele. A sanguinária-do-canadá, que contém oral única de extratos de C. yanhusuo ou A. dahuricae,
sanguinarina é um exemplo deste tipo de plantas. O os scores de dor diminuíam de forma significativa.
uso tópico da sanguinária-do-canadá pode causar A análise dos produtos comerciais de
efeitos adversos graves, incluindo desfiguração. Os Arpagophytum procumbens revelam uma ampla
doentes devem ser aconselhados a não utilizarem variação nos componentes químicos. Foram
este produto. observados efeitos secundários limitados. Um
estudo clínico sugere que pode ser benéfico em
Plantas e outros doentes com osteoartrite da anca ou do joelho.
O meimendro-negro (Hyoscyamus niger) pode
suplementos alimentares: o ser tóxico, ou até mesmo fatal, mesmo em doses
que usar? reduzidas. Os efeitos comuns da ingestão de
meimendro-negro nos humanos incluem
alucinações, dilatação das pupilas e agitação. Foram
O salgueiro branco (Salix alba), também conhecido
também observados problemas menos comuns
como vimeiro branco ou sinceiro, é usado
(taquicardia, convulsões, vómitos, hipertensão,
regularmente em África. O preparado ativo provém
hiperpirexia e ataxia). O meimendro-negro é uma
da casca da árvore. O vimeiro-branco contém
planta tóxica, pelo que não deve ser ingerida!
salicina, o precursor fitoterapêutico da aspirina
A passiflora (Passiflora incarnata) é usada
(ácido acetilsalicílico). Os produtos devem ser
principalmente para tratar a insónia, a ansiedade, a
normalizados quanto ao teor de salicina, com doses
epilepsia, a nevralgia e as síndromes de privação dos
diárias entre 60 e 120 mg. Deve administrar-se com
opióides ou das benzodiazepinas. Não foi estudada
cuidado em doentes com alergia ou intolerância
em humanos quanto ao controlo da dor.
conhecida à aspirina ou a medicamentos anti-
Aparentemente, a cicuta (Conium maculatum)
inflamatórios não esteróides (AINE). O vimeiro-
é usada em zonas de África para a dor causada por
branco não deve ser administrado a crianças com
nevralgia ou cancro, mas a sua eficácia para este
febre, devido ao risco de síndrome de Reye. As
efeito não foi demonstrada. Ao invés, a sua função
reações adversas são semelhantes às observadas
histórica como causador de morte é corroborada em
com a aspirina, incluindo hemorragia
relatórios presentes na literatura.
gastrointestinal, náuseas e vómitos. O vimeiro-
A ameixoeira africana (Prunus africana, Pygeum
branco pode ter um efeito aditivo com a aspirina e
africanum) é uma árvore que se encontra na África
os AINE, pelo que não devem ser administrados
tropical e é amplamente usada na Europa e nos
concomitantemente. Estudos clínicos
Estados Unidos para tratar a hipertrofia benigna da
demonstraram a eficácia do vimeiro-branco na
próstata (HBP). Ratinhos alimentados com Pygeum
gestão da dor lombar e da osteoartrite. Uma revisão
africanum revelaram uma redução significativa da
sistemática dos ensaios clínicos sugere que pode
incidência de cancro da próstata, no entanto, não
63

foram realizados estudos ao cancro da próstata em As plantas podem estar contra-indicadas em


humanos. doentes tratados com medicamentos de
Quando estudada, a valeriana (Valeriana prescrição médica.
officinalis), embora se trate de um remédio popular
em África, não apresentou qualquer vantagem Referências
relativamente ao placebo.
A verbena (Verbena officinalis) foi estudada [1] Alfano CM, Smith AW, Irwin ML, Bowen DJ, Sorensen B,
apenas para o tratamento da inflamação tópica. A Reeve BB, Meeske KA, Bernstein L, Baumgartner KB,
Ballard-Barbash R, Malone KE, McTiernan A. Physical
sua atividade analgésica tópica foi inferior à activity, long-term symptoms, and physical health-related
atividade analgésica da pomada de salicilato de quality of life among breast cancer survivors: a prospective
analysis. J Cancer Surv 2007;1:116-28.
metilo. [2] Alimi D, Rubino C, Pichard-Léandri E, Fermand-Brulé S.,
Dubreuil-Lemaire ML, Hill C. Analgesic effect of auricular
acupuncture for cancer pain: a randomized, blinded,
Pérolas de sabedoria [3]
controlled trial. J Clin Oncol 2003;21:4120-6.
Cassileth BR and Vickers AJ. Massage therapy for symptom
control: outcome study at a major cancer center. J Pain
Symptom Manage 2004;28:244-9.
 As terapêuticas complementares servem de [4] Ernst E. Cassileth BR. The prevalence of
complemento aos cuidados oncológicos complementary/alternative medicine in cancer: a systematic
review. Cancer 1998;83:777-82.
correntes e podem aliviar sintomas físicos e [5] Good M, Stanton-Hicks M, Grass JA, Anderseon GC, Lai
mentais em doentes com dor e outros HL, Roykulcharoen V, Adler PA. Relaxation and music to
reduce postsurgical pain. J Adv Nurs 2001;33:208-15.
sintomas. [6] Liossi C, White P. Efficacy of clinical hypnosis in the
enhancement of quality of life of terminally ill cancer patients.
 Tratam o corpo, a mente e o espírito e Contemporary Hypn 2001;18:145-50.
melhoram a qualidade de vida do doente. [7] Park RL. Voodoo science: the road from foolishness to
fraud. Oxford University Press; 2002.
 São económicos, minimamente ou não
invasivos, tranquilizantes e permitem aos
doentes escolher um tratamento.
Sítios na Web
 A sua relação risco-benefício amplamente Um CD desenvolvido no Memorial Sloan-Kettering ensina aos
favorável sugere que as terapêuticas doentes a auto-hipnose, para que a possam usar antes da cirurgia ou
em qualquer altura para controlar a dor:
complementares podem desempenhar um www.mskcc.org/mskcc/html/5707.cfm
papel importante na reabilitação física e
Dado que é essencial dispor de informação precisa, o Integrative
emocional e que podem ser especialmente Medicine Service do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center
úteis na gestão da dor. desenvolveu e mantém um sítio na web gratuito com dados objectivos
regularmente actualizados em mais de 240 registos:
 É necessário determinar em primeiro lugar a www.mskcc.org/mskcc/html/11570.cfm
segurança dos agentes orais. Algumas Para obter informações sobre medicina tradicional, consulte o
plantas usadas para fins medicinais não têm seguinte sítio na web: www.who.int/mediacentrefactsheets/fs134/en/
qualquer benefício e são perigosas; os
médicos e os doentes devem ser alertados
para os efeitos negativos graves, incluindo a
morte, que estes agentes podem produzir.
64

Avaliação Física e Psicológica do Doente


65

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 10
Antecedentes de Dor e Avaliação da Dor
Richard A. Powell, Julia Downing, Henry Ddungu e Faith N. Mwangi-Powell

A gestão clínica eficaz da dor depende, em última com as opções de tratamento farmacológico e não
instância, de uma avaliação precisa. Isto implica uma farmacológico disponíveis para gerir a dor.
avaliação abrangente da dor, dos sintomas, do
estado funcional e dos antecedentes clínicos do A avaliação da dor é um
doente numa série de avaliações, dependendo das
necessidades apresentadas pelo doente. Estas
processo pontual?
avaliações baseiam-se em parte no uso de
ferramentas de avaliação. Em níveis variados, estas Mais do que um evento isolado, a avaliação da dor é
ferramentas tentam localizar e quantificar de forma um processo contínuo. Na sequência da avaliação inicial,
válida e fiável a gravidade e a duração da experiência pode ser administrado um tratamento para gerir a
de dor subjetiva do doente, a fim de facilitar, dor. No entanto, é importante que esta intervenção
estruturar e normalizar a comunicação da dor entre terapêutica seja avaliada através de avaliações
o doente e profissionais de saúde potencialmente subsequentes da dor, a fim de determinar a sua
diferentes. eficácia. Por conseguinte, a dor do doente deve ser
avaliada regularmente e as opções de tratamento
Como saber mais sobre a resultantes devem ser modificadas conforme
necessário, a fim de garantir um alívio efetivo da
dor do doente? O que é o dor.
processo de avaliação da
dor? Existem elementos-chave
no processo de avaliação da
Sempre que os níveis de dor o permitam (isto é, dor?
sempre que necessidades clínicas graves não exijam
uma intervenção imediata), o processo de avaliação Bates (1991) sugere que os componentes críticos do
consiste essencialmente num diálogo entre o doente processo de avaliação da dor incluem uma
e o profissional de saúde, orientado para a natureza, determinação da: localização; descrição; intensidade;
a localização e a extensão da dor, que analisa o seu duração; fatores de alívio e agravamento (por ex., os
impacto sobre a vida diária do doente e termina fatores de alívio podem incluir medicamentos à base
66

de plantas, álcool ou incenso); quaisquer fatores  Qual o diagnóstico e os antecedentes


associados (por ex., náuseas, vómitos, obstipação, médicos do doente (por ex. diabetes,
confusão ou depressão), a fim de garantir que a dor artrite)?
não é tratada independentemente de  Existem antecedentes de intervenções
comorbilidades; e o seu impacto sobre a vida do cirúrgicas ou perturbações clínicas?
doente.  Houve algum traumatismo recente?
Estes componentes são mais comummente
 Existem antecedentes de doença cardíaca,
concretizados na abordagem «PQRST»: O que
problemas pulmonares, AVC ou
Provoca e Palia, Qualidade, Região e Radiação,
hipertensão?
Severidade e Tempo (ou Temporal). Nesta
 O doente toma qualquer tipo de medicação
abordagem, as perguntas típicas feitas por um
(por ex. para reduzir a dor)? Em caso
profissional de saúde incluem:
afirmativo, proporcionou algum tipo de
ajuda ao doente?
P = O que Provoca e Palia
 O doente tem alergias (por ex. a alimentos
 O que causa a dor?
ou medicamentos)?
 O que alivia a dor?
 O doente sente dor aquando da inalação
 O que agrava a dor?
profunda?
 Qual é o estado psicológico do doente (por
Q = Qualidade
ex., depressão, demência, ansiedade)?
 Qual é a sensação da dor?
 Qual é o estado funcional do doente,
 É fina? Surda? Lancinante? Ardente? Que
incluindo atividades diárias?
esmaga?

R = Região e Radiação
O que pode ser feito para
 Onde se situa a dor? garantir um processo eficaz
 Está confinada a um sítio? de avaliação da dor?
 A dor irradia? Em caso afirmativo, para
onde? Em primeiro lugar, de um modo geral, aceitar a dor
 Teve início noutra localização e está agora comunicada pelo doente como sendo precisa e
situada num determinado ponto? primeira fonte de informação. A dor é uma
experiência intrinsecamente subjetiva e a expressão
S = Severidade pelo doente desta experiência (seja ela
 Qual a gravidade da dor? comportamental ou verbal) pode ser influenciada
por múltiplos fatores (por ex., diferenças de género,
T = Tempo (ou Temporal) limiares de dor socialmente aceitáveis, níveis
 Quando começou a dor? culturalmente aceitáveis de «queixa», a sensação de
 Está sempre presente? desespero, uma diminuição do ânimo, capacidades
 Está sem dor durante a noite ou durante o de lidar e de se adaptar, e o significado atribuído à
dia? dor sentida). Consequentemente, o profissional de
 Não sente dor quando se movimenta? saúde deve aceitar o doente como um perito do seu
próprio corpo e aceitar que, embora alguns doentes
 Quanto tempo dura a dor?
possam exagerar a sua dor (por ex., para serem
observados mais depressa no hospital), trata-se
Na primeira avaliação do doente, o processo
geralmente da exceção e não da norma. Além disso,
de avaliação da dor deve fazer parte de uma
evidências sugerem que os elementos de observação
avaliação mais abrangente do doente que pode
da dor relatados pelos profissionais de saúde não
incluir as seguintes perguntas adicionais:
 Existem antecedentes de dor?
67

podem ser considerado um indicador preciso da dor


do doente.
Quanto tempo deve
Em segundo lugar, na medida do possível demorar uma avaliação?
dentro de um contexto com tempo limitado,
permitir que os doentes descrevam a sua dor com as O tempo necessário para uma avaliação varia de
suas próprias palavras (o facto de os doentes poderem doente para doente, consoante os problemas que
fornecer respostas socialmente aceitáveis ao apresentam e o tempo clínico especificamente
profissional de saúde exige uma exploração sensível exigido. Por exemplo, o doente pode sentir uma dor
do que está a ser comunicado). Para doentes que se tão forte que não consegue fornecer informação
sentem pouco à vontade para se exprimirem, o significativa que permita realizar um histórico
profissional de saúde pode propor um conjunto de abrangente da dor. De igual modo, haverá ocasiões
palavras relevantes escritas em cartões a partir do em que a avaliação terá de ser relativamente breve
qual o doente pode escolher os descritores mais (investigar a intensidade, a qualidade e a localização
apropriados. A principal intenção consiste em ouvir o da dor) para que possa ser proporcionada
doente e não retirar conclusões potencialmente falsas rapidamente uma gestão eficaz da dor.
e decisões clínicas erróneas. Também é importante lembrar que, em
Em terceiro lugar, escutar ativamente o que termos gerais, é a qualidade da avaliação da dor que
o doente diz. Em vez de interagir com o doente de resulta numa gestão da dor eficaz e não a quantidade
forma distraída, o profissional de saúde deve de tempo dedicada à mesma.
concentrar-se no doente, observar a sua linguagem
comportamental e corporal e parafrasear palavras, A avaliação da dor difere em
quando necessário, para garantir que compreende de
forma clara o que está a ser comunicado. Em crianças e jovens?
interações caracterizadas por fortes emoções, o
profissional de saúde deve também escutar A resposta a esta pergunta é mista. Por um lado,
ativamente os descritores não verbais. não, não difere, já que, apesar de antigamente se ter
Em quarto lugar, a localização da dor no pensado, incorretamente, que as crianças não
corpo pode ser determinada apresentando ao sentiam dor por possuírem um sistema neurológico
doente uma imagem do corpo humano (pelo menos subdesenvolvido, a verdade é que as crianças sentem
frente e costas) (ver exemplo de diagrama corporal dor. Por conseguinte, um processo de avaliação
no Anexo 1), solicitando que indique as zonas de eficaz da dor é tão importante nas crianças como
dor principais e múltiplas (se aplicável) e que mostre nos adultos.
a direção de uma eventual dor irradiada. Por outro lado, sim, difere, dado que a
Em quinto lugar, podem ser usadas escalas expressão e a deteção da dor nas crianças pode ser
de dor (com uma complexidade e um rigor mais exigente do que nos adultos (ver adiante).
metodológico variados) para determinar a gravidade
da dor manifestada (ver mais exemplos adiante). Existe um processo de
Em sexto lugar, embora seja importante
gerir a dor do doente o mais rapidamente possível
avaliação específico para
(isto é, o doente não tem de esperar que seja crianças e jovens?
elaborado um diagnóstico), no processo de
avaliação da dor, o profissional de saúde deve As características específicas da avaliação da dor nas
também diagnosticar a causa da dor e tratá-la, se crianças deram origem à abordagem «QUESTT»:
possível, garantindo assim uma resolução a mais Questionar a criança se esta falar e os pais ou
longo prazo para o problema de dor que se tutores legais de crianças que já falem ou não
apresenta. (Question).
Usar escalas de classificação da dor, se apropriado.
(Use)
68

Avaliar as alterações comportamentais e fisiológicas. hipersensibilidade ou irritabilidade, diminuição da


(Evaluate) ingestão ou incapacidade de adormecer. As questões
Garantir o envolvimento dos pais. (Secure) levantadas acima para recém-nascidos também se
Ter em consideração a causa da dor. (Take into aplicam aos bebés.
account)
Tomar medidas e avaliar os resultados (Take action) Crianças que começam a andar (1-2 anos)
(Baker e Wong 1987).
As crianças nesta idade podem ficar verbalmente
Quais os desafios da agressivas, chorar intensamente, apresentar um
comportamento regressivo ou fechar-se, exibir
avaliação da dor nos jovens? resistência física, proteger a zona dolorosa do corpo
ou não conseguir dormir. Embora estas crianças
O termo «jovens» refere-se a crianças de idades e ainda não consigam comunicar os sentimentos
desenvolvimento cognitivo variados: recém- verbalmente, o seu comportamento pode expressar
nascidos (0-1 mês); bebés (1 mês a 1 ano); crianças a sua disposição emocional e física. Nesta fase, a
que começam a andar (1-2 anos); crianças em idade elaboração de uma avaliação correta da localização e
pré-escolar (3-5 anos); crianças em idade escolar (6- da gravidade da dor da criança pode exigir o recurso
12 anos); e adolescentes (13-18 anos). As crianças a jogos e desenhos, oferecendo à criança meios não
colocam desafios distintos na avaliação eficaz da dor verbais de expressar o que sente e pensa. Contudo,
em cada fase de desenvolvimento. mesmo nesta idade, algumas crianças conseguem
expressar a sua dor usando linguagem simples. Os
Recém-nascidos (0-1 mês) profissionais de saúde devem estar sensibilizados
para este tipo de diferenças no desenvolvimento.
Nesta idade, a observação comportamental é a única
forma de avaliar uma criança. A observação pode Crianças em idade pré-escolar (3-5 anos)
ser realizada com o envolvimento da família ou do
tutor legal da criança, que podem indicar os padrões As crianças em idade pré-escolar podem verbalizar a
de comportamento «normais» e «anormais» (por ex., intensidade da sua dor, encarar a dor como um
se a criança costuma estar tensa ou descontraída). É castigo, agitar os braços e as pernas, tentar afastar os
importante, para todas as crianças, que o estímulos antes de serem aplicados, não se mostrar
profissional de saúde siga as diretrizes éticas cooperantes, necessitar de imobilização física,
nacionais no que diz respeito à presença de um dos agarrar-se aos pais ou tutores, solicitar apoio
pais ou tutor legal no processo de avaliação e a emocional (por ex. abraços e beijos) ou não
quaisquer questões relacionadas (por ex., conseguir dormir.
consentimento informado). Além disso, é Nesta idade, à semelhança das crianças em idade
importante recordar que o comportamento não é escolar (ver adiante), a criança precisa de poder
necessariamente um indicador exato do nível de dor confiar no profissional de saúde, que necessita de
do doente e que a ausência de respostas ultrapassar as potenciais reservas da criança no que
comportamentais (por ex., expressões faciais, como diz respeito a estranhos e pessoas que sentem como
gritos e movimentos que indiquem desconforto) figuras de autoridade. Este objetivo pode ser
nem sempre indica a ausência de dor. alcançado realizando o processo de avaliação a um
ritmo, uma linguagem e um comportamento
Bebés (1 mês a 1 ano) adequados à criança (por ex., demorar mais tempo,
sempre que possível, usando perguntas abertas para
Nesta fase, a criança pode apresentar rigidez ou incentivar as crianças a falarem do que sentem, e
agitação corporal, expressões faciais de dor (por ex., usando linguagem corporal de apoio e incentivo).
sobrancelhas rebaixadas e juntas, olhos fechados
com força, boca aberta e quadrada), choro intenso e
alto, estado inconsolável, joelhos juntos ao peito,
69

Crianças em idade escolar (6-12 anos) problema (por ex. fazendo perguntas informais
sobre os amigos, a escola, os passatempos, a família)
As crianças em idade escolar podem verbalizar a e evitando momentos deliberados de silêncio que se
dor, usar uma medida objetiva de dor, ser revelam geralmente improdutivos.
influenciadas por crenças culturais, ter pesadelos Como consequência desta diversidade entre
relacionados com a dor, exibir comportamentos de grupos etários (especialmente na capacidades
adiamento (por ex. «Espere um pouco» ou «Não cognitivas das crianças para compreender o que está
estou pronto»), apresentar rigidez muscular (por ex., a ser perguntado e nas capacidades verbais para
punhos fechados, nós dos dedos brancos, dentes articular o que está a ser pensado ou sentido), a
cerrados, membros contraídos, rigidez corporal, ferramenta de avaliação selecionada para o processo
olhos fechados ou testa enrugada), ter de avaliação deve ser apropriada especificamente
comportamentos de crianças mais novas ou não para cada criança. Além disso, dado que o
conseguir dormir. Nesta idade, a criança pode ficar comportamento em si pode não ser um indicador
mais reservada, sentindo medos e ansiedades fiável da dor sentida e que os auto-relatos têm
genuínos (por ex., podem negar a presença da dor potenciais limitações, o ideal será usar uma escala de
por terem receio das consequências, como o exame classificação da dor em conjunto com uma
físico ou uma injeção). investigação dos indicadores fisiológicos de dor,
No entanto, as crianças em idade escolar são como as mudanças na pressão arterial, e na
verbal e cognitivamente avançadas. Como tal, são frequência cardíaca e respiratória do doente (para
mais curiosas acerca do seu corpo e da sua saúde e mais informações ver Capítulo 26 sobre a Gestão da
podem fazer perguntas espontâneas ao profissional Dor em Crianças).
de saúde (por ex. «O que está a acontecer comigo?»
«Porque me dói a barriga?»). Podem também A avaliação da dor difere
começar a compreender as questões de causa e
efeito, o que permite ao profissional de saúde
nas pessoas idosas?
fornecer-lhes explicações adaptadas à sua idade (por
ex. «Dói-te o estômago porque tens lá um caroço Os doentes idosos apresentam desafios adicionais
que te está a provocar dor»). Podem também querer pelo facto de poderem sofrer de perturbações
ser envolvidos nos seus próprios cuidados clínicos visuais, cognitivas ou auditivas, ou ser influenciados
e, se possível, fazer escolhas sobre o que lhes vai por normas socialmente determinadas quanto à
acontecer. comunicação de sentimentos negativos (por ex., não
querer ser um fardo social). Os doentes geriátricos
Adolescentes (13-18 anos) (isto é, doentes com idade biológica avançada,
morbilidades múltiplas e – potencialmente –
Os adolescentes podem verbalizar a sua dor, negar a múltiplas medicações) são especialmente
dor na presença de outros adolescentes, sofrer problemáticos quando sofrem de demência.
alterações nos padrões de sono ou no apetite, ser Normalmente, estes doentes recebem analgesia
influenciados por crenças culturais, exibir tensão inadequada devido à sua incapacidade de comunicar
muscular, apresentar comportamento regressivo na a necessidade da mesma. (Definir «os idosos» em
presença da família ou não conseguir dormir. contextos de baixos recursos pode ser problemático.
Nesta idade, a criança pode parecer A definição das Nações Unidas de «idosos» está
relativamente pouco comunicativa ou manifestar comummente associada a um direito legal a
uma disposição desdenhosa. Esta tendência pode benefícios de pensões específicos da idade que
ser parcialmente contrariada se o profissional de emergem do sector de emprego formal, mas, em
saúde expressar interesse genuíno pelo que o regiões como a África subsaariana, este tipo de
adolescente tem a dizer, evitando a confrontação ou definição cronológica é problemática e muitas vezes
sentimentos geralmente negativos (que podem substituída por outras definições multidimensionais
causar ansiedade e evitação), concentrando a e socioculturais mais complexas, como o estatuto de
conversa mais no adolescente e não tanto no
70

antiguidade na sua comunidade e o número de netos Inventário Multidimensional da Dor de West


que têm.) Haven-Yale, o Inventário Multifásico de
Consequentemente, a principal regra, Personalidade de Minnesota, o Inventário de
especialmente para os doentes geriátricos, é perguntar Ansiedade Estado-Traço, o Inventário de
pela dor. Com aqueles que possuem funções Depressão de Beck, a Escala de Auto-Avaliação da
cognitivas suficientes para se expressarem, o Depressão, a Escala de Depressividade, a Escala
profissional de saúde pode aumentar o tamanho da Comportamental da Dor da Universidade do
letra dos descritores para os deficientes visuais, Alabama, em Birmingham (UAB), a Escala de Dor
incluir familiares no processo de avaliação da dor em Recém-nascidos/Bebés e a Escala de Dor do
sempre que seja considerado apropriado e útil, e Children’s Hospital Eastern Ontario). Importa
evitar a «sobrecarga mental» (isto é, discutir referir que é essencial que o profissional de saúde
múltiplos tópicos e fornecer orientação explicativa selecione a ferramenta mais adequada (dependendo
insuficiente durante a avaliação da dor). dos objetivos da avaliação da dor e da
Contudo, em doentes que não comunicam, exequibilidade, aplicabilidade e aceitabilidade do
as avaliações da extensão da dor sentida basear-se- instrumento para as populações de doentes em
ão principalmente em elementos de substituição particular) e que a use de forma coerente ao longo
baseados no comportamento (por ex. expressão do tempo.
facial, atividade diária, reações emocionais, o efeito As ferramentas mais comummente usadas
causado pelo consolo e as reações vegetativas) em para avaliar a dor em adultos com perturbações
vez de confiar numa escala cujo uso se baseia na cognitivas e nos idosos são a escala visual analógica
comunicação (para mais informações, ver o (EVA), a escala numérica de avaliação (ENA), a
Capítulo 27 sobre a Dor nos Idosos e na escala de descritores verbais (EDV). Uma
Demência). ferramenta foi avaliada em ambiente de baixos
recursos, a Palliative Outcome Scale (POS) para África
Como medir a dor de um da APCA (African Palliative Care Association). Uma
ferramenta usada para adultos com perturbações
doente? cognitivas é a escala Pain Assessment in Advanced
Dementia (PAINAD). As ferramentas mais
Existem inúmeras ferramentas unidimensionais e comummente usadas para avaliar a dor das crianças,
multidimensionais que, em graus variáveis, se para além da EVA, da ENA e da EDV (para
prestam ao uso diário. As ferramentas de avaliação algumas crianças com mais de sete anos de idade),
unidimensionais simplificam a experiência da dor, incluem a escala comportamental da dor FLACC
concentrando-se num aspeto ou dimensão (isto é, face, pernas, atividade, choro e
particular, e, num contexto clínico de baixos consolabilidade), a escala de dor visual e táctil
recursos difícil e não sujeito a investigação, a sua (EDVT), a escala de faces de Escala de Faces de
aplicação demora menos tempo e requer uma Wong-Baker para avaliação da dor e o termómetro
funcionalidade cognitiva menor dos doentes do que de dor. Estas ferramentas, e a forma como são
os instrumentos multidimensionais. Muitas vezes, usadas, encontram-se descritas adiante, juntamente
estas ferramentas foram validadas em ambientes com uma noção geral das vantagens e desvantagens
linguística e culturalmente diversificados. Além comparativas de cada uma.
disso, não são habitualmente usadas isoladamente
(por ex., um diagrama do corpo pode ser usado Ferramentas para a dor nos
juntamente com uma escala que indique a gravidade
da dor sentida). (Exemplos de ferramentas adultos
multidimensionais não abordadas neste capítulo,
que poderiam ser usadas para fins clínicos e de i) Escala visual analógica (EVA)
investigação, incluem o Questionário da Dor de
McGill (versão curta e longa), o inventário breve da A escala EVA de avaliação da dor utiliza uma linha
dor, o Questionário da Dor de Dartmouth, o horizontal de 10 cm de comprimento ancorada nos
71

descritores verbais «Sem dor» e «Pior dor iv) Palliative Outcome Scale (POS) para África
imaginável», na qual os doentes devem assinalar um
ponto que para eles melhor represente a sua A POS para África da APCA é uma medida de
percepção de intensidade da sua dor atual (Fig. 1). resultados multidimensional simples e breve,
específica para os cuidados paliativos, que usa
indicadores ao nível do doente que incluem a dor,
mas não se concentram exclusivamente nela. O
Sem dor Pior dor profissional de saúde entrevista os doentes e
imaginável
respetivos cuidadores utilizando uma escala de 10
Fig. 1. Escala visual analógica itens durante quatro períodos de tempo, numa
escala de 0 a 5, que pode também ser preenchida
ii) Escala numérica de avaliação usando a «escala das mãos». Promovida pela OMS, a
escala das mãos vai desde o punho fechado (que
Utilizando esta escala, o profissional de saúde pede representa «Sem dor») a cinco dedos esticados (que
aos doentes que classifiquem a intensidade da sua representa «A pior dor»), sendo que cada dedo
dor numa escala numérica geralmente de 0 (que esticado indica níveis superiores de dor. Está
indica «Sem dor») a 10 (que indica a «Pior dor atualmente a ser desenvolvida uma versão pediátrica
imaginável»). da POS para África da APCA.

v) Escala Pain Assessment in Advanced


Dementia (PAINAD)
Sem dor Pior dor
imaginável A PAINAD é uma ferramenta de observação que
avalia a dor em doentes com perturbações
Fig. 2. Escala numérica de avaliação cognitivas com demência avançada, e que, como
consequência da sua doença, podem sentir mais dor
iii) Escala de descritores verbais ou dor prolongada devido à falta de tratamento.
A ferramenta é constituída por cinco itens
Ao usar esta escala, o profissional de saúde descreve (isto é, respiração, vocalizações negativas,
ao doente o significado da dor (por ex. sentimentos expressões faciais, linguagem corporal e
significativos de algo desagradável, desconforto e consolabilidade), sendo cada item avaliado com uma
sofrimento, bem como a importância da experiência pontuação de três pontos com intensidades entre 0
para o indivíduo). e 2, resultando assim numa pontuação total de 0
Em seguida, quer verbal, quer visualmente, é (que significa «Sem dor») a 10 (que significa «Dor
pedido ao doente que escolha um de seis descritores forte»).
(isto é, «Sem dor», «Dor ligeira», «Dor moderada»,
«Dor forte», «Dor muito forte» e «Pior dor
possível»), consoante o que melhor descreva o nível
de intensidade da dor que está a sentir. Por vezes
(como na Fig. 3), são também usados números para
facilitar o registo dos resultados.

Sem Dor Dor moderada Dor Dor muito Pior dor


dor ligeira (desconforto) Forte forte (atroz)
(ligeira) aflitiva (horrível)

Fig.3. Escala verbal descritiva


72

PALLIATIVE OUTCOME SCALE PARA ÁFRICA DA APCA

DOENTE N.º _________ DATA DATA DATA DATA


RESPOSTAS
Consulta Consulta Consulta Consulta
POSSÍVEIS
1 2 3 4
PERGUNTAR AO DOENTE
P1. Classifique a sua dor (de 0 =
0 (sem dor)
sem dor a 5 = pior dor/dor
a 5 (pior dor/dor
intolerável) durante os
intolerável)
últimos 3 dias
P2. Sofreu outros sintomas (por
ex. náuseas, tosse ou
0 (nenhum)
obstipação) que afetassem o
a 5 (intoleravelmente)
seu estado nos últimos 3
dias?
P3. Tem-se sentido preocupado 0 (não, de todo)
com a sua doença nos a 5 (extremamente
últimos 3 dias? preocupado)
P4. Nos últimos 3 dias, tem
0 (não, de todo)
conseguido partilhar os seus
a 5 (sim, tenho falado
sentimentos com familiares e
livremente)
amigos?
P5. Nos últimos 3 dias, tem
0 (não, de todo)
sentido que a vida vale a pena
a 5 (sim, sempre)
ser vivida?
P6. Nos últimos 3 dias, tem-se 0 (não, de todo)
sentido em paz? a 5 (sim, sempre)
P7. Tem recebido ajuda e
0 (não, de todo)
aconselhamento suficiente
a 5 (tanto quanto
por parte da sua família para
necessito)
planear o futuro?
PERGUNTAR AO CUIDADOR
P8. Quanta informação tem 0 (nenhuma)
recebido a sua família? a 5 (tanta quanto
necessário)
N/A
P9. A família sente-se confiante 0 (não, de todo)
a cuidar de ____________? a 5 (muito confiante)
N/A
P10. A família tem-se sentido 0 (não, de todo)
preocupada com o doente a 5 (extremamente
nos últimos 3 dias? preocupada)
N/A
Fig. 4. Palliative Outcome Scale para África da APCA (utilizada com autorização). © 2008, African Palliative Care
Association.
73

Itens* 0 1 2 Pontuação
Respiração Normal Respiração laboriosa Respiração laboriosa
independentemente ocasionalmente. Curto e ruidosa. Longo
da vocalização período de período de
hiperventilação hiperventilação.
Respiração Cheyne-
Stokes.
Vocalização negativa Nenhuma Gemido ou queixa Chamamento
ocasionais. Discurso de repetido e
baixo nível com perturbado.
qualidade negativa ou Gemidos ou queixas
reprovadora. altos.
Choro.
Expressão facial Sorridente ou Triste, assustado. Caretas.
sem expressão Sobrolhos franzidos.
Linguagem corporal Descontraído Tenso. Caminha Rígido. Punhos
angustiado. cerrados. Joelhos
Impaciente. para cima. Dá
empurrões,
pancadas.
Consolabilidade Não precisa de Distraído ou Incapaz de ser
ser consolado tranquilizado pela voz consolado, distraído
ou pelo toque. ou tranquilizado
Total**

Fig. 5. Escala Pain Assessment in Advanced Dementia. Utilizada com autorização. © Elsevier.

Ferramentas para a dor nas


crianças
observa o doente durante pelo menos 2-5 minutos,
Crianças com idades inferiores a 3 anos
com as pernas e o corpo descobertos. O
profissional de saúde volta depois a posicionar o
i) Escala comportamental da dor FLACC
doente ou observa a sua atividade, avaliando o seu
corpo quanto a tensões e tonicidade. São aplicadas
A escala comportamental da dor FLACC (Fig. 6) é
intervenções de consolo, se necessário. No que
um instrumento de avaliação da dor para utilização
respeita a doentes adormecidos, o profissional de
em doentes verbalmente incapazes de comunicar a
saúde deve observá-los durante pelo menos 5
sua dor. Cada uma das cinco categorias de medição
minutos, com o corpo e as pernas do doente
da escala – face, pernas, Atividade, Choro e
descobertos. Se possível, o doente é reposicionado,
Consolabilidade – é classificada de 0 a 2, o que
sendo que o profissional de saúde deve tocar o seu
resulta numa pontuação total por doente de 0 a 10
corpo para avaliar o estado de tensão e a tonicidade.
(Merkel et al, 1997). Os resultados podem ser
agrupados da seguinte forma: 0 = Descontraído e
confortável; 1-3 = Ligeiro desconforto; 4-6 = Dor
moderada; 7-10 = Forte desconforto/dor.
Antes de decidir atribuir uma pontuação,
para doentes conscientes, o profissional de saúde
74

DATA/HORA
Face
0 – Sem expressão ou sorriso particulares
1 – Careta ou sobrolhos franzidos ocasionalmente, ausente, desinteressado
2 – Queixo trémulo frequente a constantemente, maxilares cerrados
Pernas
0 – Posição normal ou descontraída
1 – Inquietas, agitadas, tensas
2 – Aos pontapés ou esticadas
Atividade
0 – Deitado tranquilamente, em posição normal, move-se facilmente
1 – A contorcer-se, a balançar-se para trás e para a frente, tenso
2 – Arqueado, rígido, ou com movimentos bruscos
Choro
0 – Sem choro (acordado ou adormecido)
1 – Geme ou choraminga, queixa-se ocasionalmente
2 – Chora em permanência, grita ou soluça, queixa-se com frequência
Consolabilidade
0 – Satisfeito, descontraído
1–Tranquilizado por toque, abraços ou conversa ocasionais, pode ser distraído
2 – Difícil de consolar ou reconfortar
PONTUAÇÃO TOTAL
Fig. 6. Escala comportamental da dor FLACC (utilizada com autorização). © 2002, The Regents of the
University of Michigan.

ii) Escala de dor visual e tátil (EDVT)

A escala EDVT, com 10 pontos, que usa o toque e qualquer alteração positiva nestes sinais, pode ser
a observação para avaliar, não apenas a dor das considerada uma abordagem diferente para gerir a
crianças, mas também qualquer ansiedade ou dor da criança. Importa notar que, embora ainda
desconforto que possam sentir, baseia-se na procura tenha de ser validada de forma rigorosa, a EDVT
de sinais de dor e ansiedade que podem ser está atualmente a ser usada em contextos de baixos
avaliados observando ou tocando uma criança recursos.
doente. Os sinais de dor e ansiedade incluem a
cabeça assimétrica, verbalizações da dor, tensão
facial, punhos cerrados, pernas cruzadas, respiração
pouco profunda e um ritmo cardíaco acelerado ou
irregular.
Aquando da primeira avaliação, o
profissional de saúde atribui uma pontuação de 1
(para «existente») e 0 (para «não existente») ao longo
de 10 itens, a fim de estabelecer uma pontuação de
base. Dependendo do grau de dor e ansiedade, são
administrados medicamentos quando necessário. Após
20-30 minutos, a criança é avaliada novamente,
recorrendo à escala EDVT. Caso não exista
75

Pontuação táctil e visual Presente


1. Dedos dos pés dobrados para baixo ou para cima e tensão nas solas dos pés, tornozelos
firmemente cruzados
2. Joelhos firmemente juntos ou cruzados
3. Uma perna a proteger a zona da fralda
4. Respiração torácica e/ou irregular, e/ou respiração pela boca e/ou com os músculos
intercostais e/ou adejo nasal e/ou crepitações
5. Ritmo cardíaco acelerado e/ou irregular
6. Braços posicionados firmemente contra o corpo ou cruzados ou a proteger o rosto, o
peito ou o estômago
7. Punhos (difíceis ou impossíveis de abrir com um dedo)
8. Pescoço posicionado de forma assimétrica sobre os ombros, ombros puxados para
cima
9. Cabeça assimétrica
10. Tensão facial (expressão de medo ou dor), boca tensa, olhos tensos ou de angústia,
olhar de aflição

Fig. 7 Escala de dor visual e táctil (utilizada com autorização © Dr. Rene Albertyn, School of Child and
Adolescent Health, Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul).

Crianças acima dos 3 anos Crianças acima dos 7 anos

i) Escala de faces de Wong-Baker para i) Termómetro de dor


avaliação da dor
Adaptação da EDV (Fig. 9), esta ferramenta alinha
Esta escala (Fig. 8) é composta por seis rostos de um termómetro face a uma série de palavras que
desenho animado, com expressões desde um largo descrevem vários níveis de intensidade da dor. Esta
sorriso (que representa «Sem dor») a muito triste e a escala foi desenvolvida para doentes com limitações
chorar (que representa «A pior dor») (Wilson e cognitivas moderadas a graves, ou com dificuldade
Hockberry 2008), com cada rosto a tornar-se em comunicar verbalmente. No entanto,
progressivamente mais triste. O profissional de demonstrou-se que uma versão subsequente revista
saúde aponta para cada rosto, utilizando as palavras (Termómetro de Dor de Iowa) também pode ser
para descrever a intensidade da dor, e pede ao usada para as crianças. A ferramenta é mostrada aos
doente que escolha o rosto que melhor descreve a doentes e é-lhes pedido que imaginem que, tal como
dor que sente, sendo que o pessoal regista o número a temperatura aumenta num termómetro, a dor
atribuído ao rosto. também aumenta à medida que nos deslocamos em
direção ao topo da escala. Os doentes devem então
indicar os descritores que melhor representam a
intensidade da sua dor, realizando uma marca no
termómetro ou um círculo à volta das palavras
relevantes.
Sem Dói um Dói um Dói ainda Dói A pior O profissional de saúde regista o descritor
dor pouco pouco mais mais muito dor relevante e avalia as alterações na dor ao longo do
tempo, comparando os diferentes descritores
Fig. 8. Escala de Faces de Wong-Baker para escolhidos. Alguns investigadores converteram os
avaliação da dor. Utilizada com autorização. (Wilson descritores indicados numa pontuação da dor,
e Hockberry 2008). atribuindo pontuações a cada um dos mesmos.
76

A dor mais intensa que


dor da menina enquanto espera pelo tutor para que
se possa imaginar comece a sentir-se confortável.
Dor muito forte
Caso 2
Dor forte

Está a trabalhar numa equipa domiciliária que visita as


Dor moderada
pessoas num contexto rural. Chegou a uma casa onde
Dor branda Dor ligeira encontrou uma senhora idosa com cancro em fase final
enrolada na cama e a chorar, passando periodicamente por
Dor ligeira Dor muito ligeira
estados de semi-consciência. Como pode avaliar a sua dor?
Sem dor
Resposta: A partir do comportamento inicial da
doente (choro e posição fetal), ela parece estar a
Fig. 9. Termómetro de dor (utilizado com sofrer. A gravidade do seu estado significa que não
autorização. ©, Dr Keela Herr, Phd, RN, FAAN, consegue responder verbalmente a um gráfico ou
College of Nursing. The University of Iowa, 2008.) escala de dor. Logo, o profissional de saúde precisa
de estabelecer um historial junto de um dos
Casos de estudo cuidadores da doente (presumindo que se encontra
presente), perguntando-lhe o que diminui ou
Caso 1 acentua a dor, há quanto tempo sente dores, onde
pensa que está localizada a dor e se pensa que é
Está a trabalhar num pequeno hospital rural, quando entra localizada ou referida, e usando uma ferramenta de
uma menina de 7 anos que foi trazida pelo irmão de 13 observação como a PAINAD. Deve colocar-se
anos. Tem SIDA e não recebe terapêutica anti-retroviral. perguntas adicionais destinadas a descobrir há
Parece sentir bastante dor. Como avalia essa dor? quanto tempo a doente se encontra em posição
enrolada e a chorar, se está a tomar medicação
Resposta: O essencial nesta situação é controlar a dor (incluindo analgésicos) e se a dor está a piorar. Em
do doente o mais rapidamente possível. Para tal, o momentos de consciência, mesmo que a doente não
profissional de saúde deve avaliar a dor. Uma vez consiga verbalizar as respostas a perguntas baseadas
que tem 7 anos, a doente deve conseguir verbalizar numa escala de dor, poderá conseguir responder
a sua dor. Assim sendo, pode combinar-se a apertando a mão do profissional de saúde ou
utilização do diagrama do corpo e da Escala de acenando. Neste caso, o profissional de saúde deve
Faces de Wong-Baker para avaliação da dor para fazer perguntas fechadas ao doente (por ex., com
conseguir uma avaliação inicial da localização, da respostas simples «Sim» ou «Não»), fornecendo
irradiação e da gravidade da dor. Dependendo da instruções muito claras como, por exemplo, apertar
gravidade da dor do doente, o profissional de saúde a sua mão se a resposta for «Sim». Estas perguntas
poderá não conseguir realizar uma avaliação podem ser complementadas por um exame físico
completa até a dor ser controlada. O processo de rápido para determinar o que pode estar a causar a
avaliação deve, mediante acordo da doente, dor do doente. Consequentemente, a avaliação do
envolver a menina e o irmão mais velho. Seria ainda profissional de saúde basear-se-á na observação,
importante explorar um breve historial familiar para num exame físico, em perguntas simples para o
determinar se a criança tem um cuidador adulto ou doente e num historial mais abrangente junto do
se é exclusivamente o irmão mais velho que toma deu cuidador
conta dela, a fim de garantir que é obtido o
consentimento apropriado para realizar possíveis Caso 3
intervenções terapêuticas junto da criança. Se um
cuidador adulto não puder ser localizado Está a trabalhar num hospital regional. Um bebé de sexo
rapidamente, poderá ser necessário avaliar e tratar a masculino de uma semana dá entrada com a mãe. Tem
vómitos em jacto (um sintoma típico de estenose pilórica
77

hipertrófica congénita, uma doença com que nasce 1 em cada 10 que a terapêutica analgésica deve ser
500 bebés) e necessita de cirurgia. O bebé parece tenso e modificada imediatamente (emergência de
agitado e suspeita de que está a sofrer. Como avalia a sua dor).
dor?  Qualidade da dor: ajuda a diferenciar a
etiologia da dor («ardente», «penetrante»,
Resposta: A escala FLACC pode ser usada para «elétrica», etc. são indicadores de dor
avaliar a dor do bebé. Qual é a expressão do rosto neuropática; «surda», «persistente», etc. são
do bebé? Está deitado com as pernas numa posição indicadores de dor nociceptiva, e «terrível»,
relaxada, ou as pernas estão agitadas e tensas, ou dá «intolerável», etc. sugerem uma valoração
pontapés? Está deitado tranquilamente, contorce-se afetiva da dor).
ou está tenso? Chora inconsolavelmente?  Aumento da dor: o aumento da dor após
A par da pontuação FLACC, o profissional determinados movimentos ou em certas
de saúde deve falar com a mãe do bebé para alturas do dia ajuda a identificar a etiologia
determinar há quanto tempo se encontra neste da dor (por ex., a dor causada por
estado, se tem outros sintomas, se tem alguma inflamação é frequentemente pior nas
doença conhecida, quando começou a dor e o que primeiras horas da manhã, enquanto níveis
faz com que aumente ou diminua. Embora seja elevados de dor constantes podem sugerir
possível que a causa subjacente da dor possa ser dor crónica).
tratada (e é importante determinar qual a causa  Diminuição da dor: as posições ou situações
subjacente), é fundamental controlar a dor nas quais a dor diminui também são úteis
rapidamente, o que deverá permitir-lhe descontrair para a avaliação; por ex. se apenas o
mais, tornando assim mais fácil determinar a causa descanso – e nenhuma outra estratégia para
da dor. lidar com a dor – for considerado útil para o
doente, esta constitui uma indicação
Pérolas de sabedoria importante para o terapeuta de que pode
estar presente dor crónica e que a
 Compreensão da necessidade de realizar reestruturação cognitiva pode ser indicada.
uma avaliação da dor específica para o Outro exemplo seria uma diminuição da dor
doente (por ex. idade, capacidade cognitiva e através do movimento, quando pode estar
literacia). presente uma osteoartrite.
 Apreciação do valor potencial das escalas de  Localização: provavelmente a questão mais
avaliação da dor normalizadas. importante. A localização da dor pode fazer
 Capacidade de usar ferramentas de avaliação a diferença entre uma etiologia radicular e
da dor e de decidir dentro do contexto não radicular da dor.
clínico, quais as mais apropriadas para  Os elementos mencionados são meramente
situações diferentes indicadores aproximados de algumas
 A avaliação da dor não é um exercício etiologias. Devem ser feitas mais perguntas e
académico! Todas as perguntas fornecem realizados exames adicionais a fim de
potencialmente ao terapeuta informação confirmar as suspeitas.
essencial sobre a etiologia da dor e
determinados primeiros passos a dar para a Referências
tratar.
 Intensidade da dor: perguntar sobre a [1] Baker CM, Wong Dl. QUEST: a process of pain
intensidade da dor ajuda a avaliar a assessment in children. Orthop Nurs 1987;6:11-21.
[2] Breivik H, Borchgrevink PC, Allen SM, Rosseland LA,
necessidade de tratamento: 0-3 significa Romundstad L, Breivik Hals EK, Kvarstein G, Stubhaug
geralmente que não é necessária qualquer A. Assessment of pain. Br J Anaesth 2008;101:17-24.
alteração na terapêutica, 4-7 significa que a
terapêutica analgésica deve ser alterada e 8-
78

[3] Carlsson AM. Assessment of chronic pain: I. Aspects of people: national guidelines. Concise guidance to good
the reliability and validity of the visual analogue scale. practice series, No.8. Londres: Royal College of
Pain 1983;16:87-101. Physicians; 2007.
[4] Eland JM, Coy JA. Assessing pain in the critically ill [12] Schofield P. Assessment and management of pain in
child. Focus Crit Care 1990;17:469-75. older adults with dementia: a review of current practice
[5] Gracely RH, Dubner R. Reliability and validity of verbal and future directions. Curr Opin Support Palliat Care
descriptor scales of painfulness. Pain 1987;29:175-85. 2008;2:128-32.
[6] Herr KA, Mobily PR. Comparison of selected pain [13] Wilson D, Hockberry MI. Wong’s Clinical Manual of
assessment tools for use with the elderly. Appl Nurs Res Pediatric Nursing, 7th ed. St. Louis: Mosby; 2008.
1993;6:39-46. [14] Organização Mundial de Saúde. Palliative care: symptom
[7] Herr K, Bjoro K, Decker S. Tools for assessment of pain management and end-of-life care. Integrated
in nonverbal older adults with dementia: a state-of-the- management of adolescent and adult illness. Genebra:
science review. J Pain Symptom Manage 2006;31:170-92. Organização Mundial de Saúde; 2004.
[8] McLafferty E, Farley A. Assessing pain in patients. Nurs
Stand 2008;22:42-6.
[9] Norval DA, Adams V, Downing J, Gwyther L, Merriman
Sítios na Web
A. Pain management. In: Gwyther L, Merriman A,
Mpanga Sebuyira L, Schietinger H, editores. A clinical International Association for Hospice and Palliative Care:
guide to supportive and palliative care for HIV/AIDS in www.hospicecare.com/resources/pain-research.htm
Sub-Saharan Africa. Kampala, Uganda: African Palliative
Care Association; 2006. pp.43-64. National Institute of Health Pain Consortium:
[10] Powell RA, Downing J, Harding R, Mwangi-Powell F, http://painconsortium.nih.gov/pain_scales/index.html
Connor S; APCA. Development of the APCA Africa
Palliative Outcome Scale. J Pain Symptom Manage Initiative on Methods, Measurement, and Pain Assessment in
2007;33:229-32. Clinical Trials (IMMPACT) www.immpact.org
[11] Royal College of Physicians, British Geriatrics Society,
and British Pain Society. The assessment of pain in older
Anexo 1
Ao utilizar o diagrama do corpo (em crianças, um
equivalente aproximado da Escala de Cores de Eland), é
pedido aos doentes que indiquem, com um marcador, a
localização da sua dor (que pode incluir vários pontos),
sombreando as zonas relevantes. A gravidade da dor
sentida pode ser determinada usando uma das ferramentas
de avaliação da dor para adultos (Anexo 2).
Fig. 10. Diagrama do corpo

Anexo 2: Escalas de intensidade da dor

Escalas de intensidade da dor em crianças

Escala Vantagens Desvantagens


(i) Escala de face, pernas, Esta ferramenta é útil em crianças que Não foi validada em crianças com
atividade, choro e não conseguem ou não querem necessidades especiais, em recém-
consolabilidade comunicar a sua dor; é de utilização nascidos, nem em crianças
rápida e pode ser reproduzida ventiladas.
facilmente.
(ii) Escala de dor visual e táctil Esta ferramenta é útil em crianças que É necessária investigação adicional
não conseguem ou não querem para validar a ferramenta em
comunicar a sua dor; é de utilização populações e contextos diferentes.
rápida e pode ser reproduzida
facilmente.
(iii) Escala de Faces de Wong- Esta ferramenta é simples e de rápida Esta ferramenta é por vezes descrita
Baker para avaliação da dor administração, é fácil atribuir como medição do humor mais do
pontuação, não exige quaisquer que da dor, e os rostos tristes ou que
capacidades de leitura ou verbais, não é choram são culturalmente universais.
afectada por questões de género ou
etnicidade, e proporciona três escalas
numa só (isto é, expressões faciais,
números e palavras).
(iv) Termómetro de dor A ferramenta é simples e de utilização Embora ultrapasse algumas das
rápida e é intuitivamente favorecida limitações da EDV por ser
por alguns doentes que preferem acompanhada de uma ilustração da
expressar a intensidade da sua dor de intensidade da dor, a ferramenta
outro modo que não numericamente. pode ser problemática em crianças
com perturbações cognitivas ou
visuais.
80

Escalas de intensidade da dor em adultos

Escala Vantagens Desvantagens


Doentes sem perturbações cognitivas
(i) Escala visual analógica Esta ferramenta é de administração rápida Esta ferramenta é altamente sensível às alterações nos
e simples, é fácil atribuir uma pontuação e níveis da dor, o que pode entravar a sua utilização. Alguns
estabelecer uma comparação com adultos poderão considerar a ferramenta demasiado
classificações anteriores, pode ser traduzida abstrata e difícil de entender, em particular os doentes com
facilmente noutras línguas, foi perturbações cognitivas, doentes que não falam a língua,
extensamente validada e é considerada uma doentes em pós-operatório (cujos níveis de consciência e
das melhores ferramentas para avaliar as atenção podem estar alterados após administração de
variações da intensidade da dor. anestesia geral ou de alguns analgésicos) e doentes com
incapacidade física, como acuidade visual ou destreza
manual reduzidas (é possível que, ao efetuar a marcação na
escala, o profissional de saúde introduza elementos
subjetivos).
(ii) Escala numérica de Esta ferramenta é de utilização rápida e Alguns doentes não conseguem usar a ferramenta apenas
avaliação simples, e é fácil atribuir uma pontuação, através de instruções verbais. Por conseguinte, é menos
documentar os resultados e compará-los fiável nos extremos etários, nos doentes que não
com classificações anteriores. Esta comunicam verbalmente e nos que têm perturbações
ferramenta foi devidamente validada, pode cognitivas.
ser traduzida noutras línguas e utilizada
para detetar efeitos de tratamento.

É fácil ensinar os doentes a utilizá-la


corretamente. Ao contrário da EVA, esta
escala pode ser usada oralmente, o que
permite ultrapassar os problemas colocados
com doentes com perturbações físicas ou
visuais e permite aos doentes com
incapacidades físicas e visuais quantificar a
intensidade da dor pelo telefone.
(iii) Escala de descritores Esta ferramenta é de utilização rápida e Baseada no uso da linguagem para descrever a dor, esta
verbais simples, é facilmente compreendida, foi ferramenta depende da interpretação e da compreensão
devidamente validada, é sensível aos efeitos dos descritores pela pessoa, o que pode revelar-se um
do tratamento e é intuitivamente alvo da desafio em diferentes culturas. Esta ferramenta é
preferência de alguns doentes que preferem problemática para o uso em doentes muito jovens ou
não expressar a intensidade da dor de idosos, com perturbações cognitivas e analfabetos.
forma numérica.
(iv) Palliative Outcome Scale Esta ferramenta é de utilização rápida e Esta ferramenta, que trata a dor apenas como apenas um
para África da APCA fácil e oferece três escalas numa só (isto é, domínio entre outros que afetam a vida dos doentes, exige
números, palavras e a mão). um certo nível de formação do pessoal, a fim de garantir a
sua aplicação coerente. Encontra-se em curso um processo
de investigação adicional para validar esta ferramenta em
diferentes populações e contextos.
Doentes com perturbações cognitivas
(v) Escala Pain Assessment Esta ferramenta é útil em adultos que não Assenta em indicadores indiretos da dor em vez do auto-
in Advanced Dementia Scale conseguem comunicar a sua dor. É de relato verbal.
utilização rápida e pode ser facilmente
reproduzida.
Nota: O Quadro acima foi extraído de McLafferty e Farley (2008).
81

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 11
Exame Físico: Neurologia
Paul Kioy e Andreas Kopf

Porquê efetuar um exame felizmente, a causa só raramente seja neurológica.


No entanto, as cefaleias continuam a justificar a
neurológico? realização de um exame neurológico aprofundado,
dado que ignorar as cefaleias neurológicas pouco
comuns (aumento da pressão intracraniana,
O principal objetivo de um exame neurológico num
meningite, tumores, etc.) pode ter consequências
doente com dor consiste em identificar a anomalia
catastróficas.
no sistema nervoso que possa estar associada à
É preciso descobrir o tipo de cefaleia, o seu
experiência de dor e separar as lesões nervosas
carácter, a localização anatómica, a gravidade, a
centrais das lesões nervosas periféricas. Também é
frequência e a duração; a natureza, o momento e a
importante, não apenas para estabelecer um
periodicidade das crises; os fatores que causam a sua
diagnóstico clínico, mas também para o seu
precipitação (tensão, tosse, postura, sexo, etc.); os
acompanhamento, se possível, através de
fatores de alívio; e as associações (associações
diagnósticos anatómicos, fisiopatológicos,
visuais, auditivas, tácteis e disautonómicas, etc.).
etiológicos e, possivelmente, patológicos. A dor é o
Outros sintomas podem ser amplamente avaliados
motivo mais comum pelo qual os doentes procuram
com base nos mesmos critérios, com algumas
consultas médicas e é preciso não esquecer que a
variações, se necessário, uma vez que nem todos os
dor pode não ser neurológica. De facto, na origem,
aspetos se aplicam a todos os sintomas. Sempre que
muitas vezes não o é. Numa visão de conjunto, deve
possível, e usando os mesmos critérios, deve ser
ser incluída uma avaliação rápida do estado mental e
obtida a história de sintomas neurológicos comuns,
psicológico do doente como parte do exame
como a perda ou perturbações da consciência,
neurológico, uma vez que estes fatores podem ter
perturbações visuais, da fala e da linguagem,
um impacto significativo no comportamento de dor.
perturbações sensoriais e motoras (incluindo
Na história clínica, os sintomas apresentados
esfíncteres). Quando são efetuadas perguntas
são avaliados segundo a forma habitual, que
diretas, podem ser acrescentados pormenores
exemplificamos aqui utilizando um dos sintomas
relativos a sintomas individuais, conforme
mais comuns nos doentes com dor – as cefaleias. As
apropriado, a fim de estabelecer potenciais fatores
cefaleias são importantes por serem um tipo muito
etiológicos, incluindo exposição a estupefacientes
comum de dor que alerta os doentes para um
potencial problema neurológico, embora,
82

(incluindo álcool), toxinas ambientais, lesões


passadas e doenças sistémicas.
Como preparar o doente
Em conclusão, são indicados pelo menos os para o exame?
exames neurológicos básicos para cada doente, a
fim de detetar etiologias somáticas da dor,
Da forma clínica habitual, estabelecer um relatório
principalmente lesões do cérebro, da espinal medula
com o doente e explicar a natureza e o propósito do
e dos nervos periféricos, incluindo miopatias.
exame, a fim de o tranquilizar. Faça o possível para
Embora na gestão da dor se dedique particular
ganhar a confiança do doente e alcançar o nível de
atenção aos fatores psicológicos e às opções de
cooperação essencial para a interpretação das
tratamento sintomático, é fundamental efetuar um
informações. O doente deve sentir-se confortável
levantamento rigoroso da história clínica e realizar
quando estiver deitado na marquesa de exame, bem
um exame físico aprofundado para a compreensão
como devida mas decentemente exposto.
adequada da dor do doente. Seria prejudicial para os
nossos doentes não considerar com atenção as
etiologias da dor que poderiam ser tratadas nas suas Como retirar conclusões a
causas! Logo, um exame neurológico básico é partir do exame
inevitável para todos profissionais que lidam com
doentes afetados pela dor (juntamente com uma neurológico?
avaliação ortopédica e psicossocial).
Para conseguir retirar conclusões a partir do exame
O que é um procedimento neurológico, é aconselhável seguir uma abordagem
de diagnóstico sistemático passo-a-passo específica, a fim de evitar falhas. No
entanto, seguir uma abordagem passo-a-passo não
no âmbito de um exame significa ser demasiado esquemático!
É importante explicar o exame ao doente
neurológico? antes de iniciar, uma vez que a cooperação e o
estado de vigilância do doente são necessários para
O médico deve usar uma determinada abordagem averiguar o estado neurológico. Se a cooperação for
sistemática ao examinar o doente. Começando pelos comprometida, é necessário incluir essa indicação
sintomas apresentados pelo doente, é aconselhável nas notas de progresso (por ex. «informação
continuar a tentar identificar uma síndrome, o que inesperada/inadequada»). Assim, as indicações
inclui todos os sintomas. Pode então ser efetuado objetivas, por exemplo, de atrofia muscular,
um diagnóstico tópico (o «nível» de disfunção assumem um valor ainda maior, já que não podem
neurológica) que deverá conduzir ao diagnóstico ser influenciadas voluntariamente!
etiológico final. Os exames paraclínicos, como a Todos os médicos são por vezes
eletrofisiologia e técnicas de imagiologia, ajudam, confrontados com resultados «inadequados» ou
confirmando ou excluindo um determinado «inesperados» durante o exame. No entanto, para
diagnóstico etiológico. No entanto, em muitos diagnosticar uma etiologia «psicogénica», é
casos, a disponibilidade deste tipo de exames necessária uma vasta experiência. O doente nunca
técnicos não constitui pré-requisito para elaborar deve ser confrontado com a suspeita de exagero ou
um diagnóstico. Logo, em ambientes sem simulação dos sintomas, a fim de evitar uma perda
possibilidade de realizar mais exames, uma história irreversível da confiança mútua; no entanto, a
clínica e um exame físico cuidados e rigorosos suspeita deve ser integrada no quadro geral da
permitirão recolher informações relevantes e, na avaliação do doente.
maioria das vezes, suficientes, para estabelecer um
diagnóstico, ajudando assim o profissional de saúde
a compreender e possivelmente a tratar as doenças
neurológicas causadoras da dor.
83

Qual o apoio técnico neurologistas que ainda careçam de experiência.


Para muitos, é fácil efetuar o exame no sentido
necessário para realizar o rostral-caudal, mas cada um pode encontrar outros
métodos igualmente eficazes. No mínimo, em
exame físico neurológico? doentes adultos, devem ser avaliadas as zonas
indicadas em seguida.
Tudo o que é necessário para um exame
neurológico de orientação deve estar facilmente Que elementos procurar no
disponível. Deve dispor de um pequeno conjunto
de instrumentos. Com um martelo de reflexos, um
exame neurológico?
instrumento contundente (por ex. uma haste de
madeira ou cânulas estéreis), uma escova macia ou  Funções mais elevadas e exame geral:
um pedaço de algodão, um depressor de língua em (procurar nível de consciência, talvez usar o
madeira, uma pequena lanterna, um diapasão (128 mini- exame do estado mental [MEEM] para
Hz), espátulas e um par de tubos de ensaio em testar a função cognitiva e verificar as
vidro, deverá ser possível detetar perturbações funções vitais)
motoras, de coordenação, tróficas e vegetativas do  Exame da cabeça e do pescoço: (procurar
sistema nervoso. Se disponível, um oftalmoscópio irritação meníngea, como rigidez no pescoço
poderia completar o conjunto de instrumentos de ou um teste de Kernig positivo, verificar a
testes. Não esquecer que, numa clínica muito função muscular do pescoço e os
movimentada, poderá não ser possível efetuar um movimentos do pescoço)
exame aprofundado a todos os doentes. Mas, com a  Exame dos nervos cranianos
experiência, cada um desenvolve um protocolo de
 Exame do sistema motor e músculo-
exame pessoal rápido e eficaz.
esquelético (procurar deformações, massas,
tonicidade muscular e força bilateral)
Qual é a abordagem passo-  Exame do sistema sensorial (distinguir
a-passo para realizar um défices radiculares e não radiculares ou
irradiação da dor; verificar os reflexos
exame neurológico? profundos dos tendões e os reflexos
«primitivos»)
Normalmente, o médico inicia o exame de qualquer  As funções cerebelares (testar a coordenação
doente examinando a sua aparência em geral, a pele com rápidos movimentos alternados com a
e as membranas mucosas, ao que se segue uma mão, prova dedo-nariz, prova calcanhar-
palpação procurando caroços, examinando os joelho, exame de caminhar em linha reta,
gânglios linfáticos, os pulsos e quaisquer pontos posição de pé sobre uma perna e teste de
superficiais sensíveis. Nesta fase, deve normalmente Romberg)
ser efetuada uma avaliação das funções vitais,  Apenas para questões especiais relacionadas
incluindo a pressão arterial, o batimento cardíaco, a com o diagnóstico, alguns testes «técnicos»
respiração e a temperatura. Deve obviamente podem ser úteis (análises laboratoriais,
proceder-se com cuidado durante a palpação, a fim análises sanguíneas, líquido
de evitar os pontos evidentes de dor forte e cefalorraquidiano, eletrofisiologia,
sensibilidade nesta fase precoce do exame e de eletroencefalografia, eletroneuromiografia,
modo a manter a cooperação do doente. testes às funções autónomas e imagiologia)
O médico desenvolve um plano rápido da
sequência de passos de exame que devem ser
seguidos, caso contrário, poderão ser esquecidos
aspetos importantes. É muitas vezes útil elaborar
uma lista de verificação das atividades para não
84

Como avaliar «funções mais Como examinar a cabeça e


elevadas»? o pescoço?
O grau de consciência do doente deve ser avaliado e Observar e palpar deformidades e pontos sensíveis
estabelecido, uma vez que este é provavelmente o no couro cabeludo e nos músculos – especialmente
ponto mais importante da avaliação neurológica de nos músculos temporais. Podem ser detetados
um doente. A maior parte dos doentes examinados pontos sensíveis sobre a inserção dos músculos
fora do serviço de urgências e que se apresentam paraespinhais e mastóides no crânio em doentes
com dor não se encontra em coma, pelo que uma com espasmos musculares no pescoço, ao passo que
descrição elaborada de como avaliar um doente em podem ser encontrados pontos sensíveis ocasionais
coma pode não ser necessária. No entanto, pode ser no vértice em doentes com cefaleias causadas por
útil familiarizar-se de um modo geral com uma tensão e depressão.
escala de coma (como a famosa Escala de Coma de Verificar a existência de irritação meníngea
Glasgow). ao dobrar o pescoço e observar uma eventual
Confirmar se o doente está perfeitamente rigidez e dor ao longo da coluna vertebral,
consciente, se é capaz de compreender e seguir prosseguindo com o teste de Kernig. O sinal de
instruções e se está totalmente orientado no tempo, Brudzinski é raramente observado em adultos. A
no espaço e na sua pessoa. Devem ser avaliados o palpação do pulso carotídeo estabelece a presença e
humor e estado emocional do doente (nível de a simetria das pulsações. A palpação superficial e
ansiedade, depressão, apatia, desinteresse, postura e profunda dos músculos do pescoço podem ajudar a
comportamento). Se for observada qualquer encontrar espasticidade e pontos sensíveis, a que se
perturbação, deve ser registada uma descrição deve então seguir uma avaliação dos movimentos
completa tão precisa quanto possível. do pescoço em todas as direções, que podem estar
As capacidades cognitivas podem ser limitados pela dor, espasmos e/ou osteoartrite na
avaliadas rapidamente utilizando observações coluna vertebral. Pode ser detetado ocasionalmente
simples durante o levantamento da história clínica e o sinal de Lhermitte em doentes com esclerose
podem depois ser complementadas através de um múltipla e estenose do canal raquidiano, entre outras
exame direto de capacidades específicas. A avaliação patologias.
do padrão de linguagem e da fluência permite
detetar facilmente doentes com disfasia motora, O que revela o exame dos
enquanto a capacidade de seguir instruções durante
o exame geral pode levantar a suspeita de disfasia nervos cranianos?
recetiva.
O exame MEEM de Folstein et al (mini- O primeiro nervo craniano é geralmente examinado
exame do estado mental) é um teste formal rápido recorrendo a materiais aromáticos não irritantes ou
constituído por 30 elementos que podem ser não cáusticos, com sabão, que se encontra
executados em menos de 10 minutos, caso seja facilmente. Cada narina deve ser examinada
levantada suspeita de défice cognitivo. Esta separadamente, tapando a outra, pedindo ao doente
ferramenta permite avaliar a capacidade de que determine o odor através do olfato. As
orientação, memória e recordação, abstração, anomalias do olfato indicam mais comummente
compreensão, leitura, desenho e escrita. Sempre que patologias locais no domínio da
seja assinalada uma disfasia, é difícil, senão otorrinolaringologia, mas podem ocorrer com
impossível, testar outros elementos de cognição. patologias da base do crânio e da fossa anterior,
como as fraturas e os tumores.
Um exame ao segundo nervo craniano é o
mais interventivo, mas constitui a melhor fonte de
informação acerca de uma eventual patologia
85

intracraniana. As vias óticas atravessam por dos músculos da mastigação (fecho e abertura dos
completo o cérebro, desde o pólo frontal até ao maxilares contra resistência). As sensações rápidas
pólo occipital, com a radiação ótica a abrir para (toque) e lentas (picada) são tratadas separadamente,
atravessar os lobos parietais e os lobos temporais. uma vez que seguem vias diferentes e podem ser
Avaliar aproximadamente a acuidade visual comprometidas de formas diferentes. O reflexo
utilizando um jornal, uma ferramenta adequada, córneo tem o seu braço aferente na divisão
uma vez que contém letras de vários tamanhos. oftálmica do nervo trigémeo e seria normalmente
Podem ser efetuadas medições mais exatas da incluído como parte da sua avaliação.
acuidade visual utilizando tabelas de Snellen O sétimo nervo é examinado observando a
portáteis (isto é, tabelas optométricas). simetria facial em repouso e quando o doente tenta
Os campos visuais podem ser examinados enrugar a testa (levantar os sobrolhos), fechar os
usando o método da confrontação nos quatro olhos, mostrar os dentes ou esvaziar o ar das
quadrantes, separadamente para cada olho. Este bochechas. O paladar, que também é uma função
método compara os campos visuais do doente com do sétimo nervo, é raramente sujeito a testes de
os do examinador, utilizando um objeto colorido – rotina, mas pode ser testado nos dois terços
geralmente, avança-se uma cabeça de alfinete a anteriores da língua, colocando açúcar ou sal na
partir da periferia de cada quadrante. Pode ser língua esticada.
realizada uma avaliação mais exata utilizando ecrãs A função do oitavo nervo pode ser testada
de perimetria ou de Bjerrum. grosseiramente utilizando o tiquetaque de um
O exame do fundo ocular pode revelar relógio ou friccionando os dedos perto do ouvido.
informação valiosa relativamente ao aumento da Se se suspeitar de uma falha auditiva, deve certificar-
pressão intracraniana e ao estado das artérias. Todos se da desobstrução do meato auditivo externo e
os doentes com cefaleias devem realizar uma realizar testes mais elaborados, como o teste de
fundoscopia. O estado as artérias, o reflexo Weber ou o teste de Rinne, para distinguir se se
prateado, as pulsações venosas, a coloração do disco trata de surdez de condução ou de surdez nervosa,
ótico e as margens devem ser examinados e ou encaminhar o doente para uma audiometria mais
registados juntamente com hemorragias e sofisticada.
exsudados, se presentes. Os nono, décimo e décimo segundo nervos
O exame das reações papilares e dos são examinados em conjunto. Deve ser registada a
movimentos oculares oferece informação adicional presença de disfonia, de simetria dos movimentos
sobre os segundo, terceiro, quarto e sexto nervos palatais (quando o doente diz «aaaaa»), o reflexo de
cranianos. O tamanho, a forma e a reação das engasgamento e a simetria dos movimentos da
pupilas devem ser verificados utilizando uma luz língua. A sensação faríngea pode ser testada usando
intensa, a fim de obter reações diretas, consensuais e uma sonda de madeira com algodão na extremidade,
de adaptação e observando a simetria e prontidão testando cada lado separadamente, normalmente no
das respostas. Verificar a existência de ptose âmbito do reflexo de engasgamento.
(pálpebra caída) e observar se é parcial ou total. Os O décimo primeiro nervo ou o nervo espinal
movimentos oculares devem ser testados em todas acessório é geralmente examinado com o restante
as direções e incluir testes de conjugação. A do sistema motor. O movimento que consiste em
presença de nistagmo deve ser registada e descrita, encolher os ombros e rodar o pescoço contra
não esquecendo que nistagmos nos extremos na resistência aplicada na parte lateral dos maxilares
lateral do olhar fixo podem ser normais. As poderá indicar uma eventual fraqueza no trapézio
anomalias dos nistagmos refletem anomalias no ou nos músculos esternocleidomastóideos,
sistema vestibular (8.º nervo) e, ocasionalmente, respetivamente.
lesões cerebelares, embora sejam aqui mencionadas
com os nervos motores oculares.
O quinto nervo é examinado avaliando a
sensação no rosto e em parte do couro cabeludo, à
frente da orelha, juntamente com a atividade motora
86

Como examinar o sistema da patologia (espinal medula, raízes, nervo periférico


específico ou neuropatia difusa). Poderá ser
motor e músculo- ocasionalmente detetada uma debilidade subtil nos
membros inferiores, solicitando aos doentes que se
esquelético? levantem de uma posição agachada, que caminhem
sobre as pontas dos pés ou sobre os calcanhares,
Deve realizar-se uma observação geral quanto ao enquanto nos membros superiores é possível
desgaste ou hipertrofia musculares, deformidades, procurar uma eventual tendência para a pronação.
postura e presença de movimentos involuntários Podem ser realizados outros testes para
(fasciculações, tremores, coreia ou atetose). Quando averiguar deficiências específicas, como a elevação
necessário, as alterações da massa muscular podem da perna estendida para identificar protrusão dos
ser avaliadas mais aprofundadamente, palpando as discos lombares ou o alongamento do fémur, caso
contrações musculares e/ou medindo o perímetro se suspeite de uma patologia dos discos superiores.
dos membros. A atrofia localizada pode dever-se a Existem inúmeras manobras na prática clínica
desuso causado pela dor crónica e deve ser tida em destinadas a averiguar patologias estruturais ou
consideração enquanto causa não neurológica das específicas das articulações que podem ser obtidas a
alterações na massa muscular. Certificar-se de que o partir de livros sobre neurologia e cirurgia
doente está calmo e se sente confortável antes de ortopédica, se necessário.
testar a tonicidade e a mobilidade dos membros.
Uma diminuição da tonicidade é geralmente Como examinar o sistema
característica de uma patologia neuronal do sistema
motor inferior, ao passo que o seu aumento
sensorial?
(espasticidade, rigidez) se integra numa patologia
neuronal do sistema motor superior. A mobilidade A base de orientação para examinar o sistema
dos membros nas articulações deve ser testada em sensorial é a função e a anatomia. Fisiologicamente,
todas as direções permitidas pela articulação e existem dois tipos de sensações:
devem ser registadas as eventuais limitações. Deve Sensações rápidas (da coluna posterior, do
ter-se consciência de que poderá haver algumas lemnisco ou discriminatórias) que incluem o toque
modificações na tonicidade e na mobilidade dos ligeiro (testado com um pedaço de algodão), a
membros causadas pela dor. propriocepção articular, a discriminação de dois
A força muscular é então testada por grupos pontos e a vibração.
musculares à volta das articulações e na musculatura Sensações lentas (talâmicas espinais),
axial. Um bom conhecimento da inervação nervosa tradicionalmente representadas por sensações de
segmentar e periférica dos vários músculos ou dor (picada) e temperatura.
grupos musculares é essencial para avaliar a Solicita-se geralmente ao doente que feche
etiopatologia de qualquer debilidade. Se for notada os olhos durante os testes. O estímulo é aplicado
uma debilidade relacionada com os nervos, é inicialmente num lado e, em seguida, em ambos os
imperativo que seja classificada de acordo com um lados simultaneamente, em partes correspondentes
sistema de escalas estabelecido, como a escala do do corpo. Este último estímulo testa a extinção
Medical Research Council (MRC). Além disso, sensorial quando o doente não reage à estimulação
determinar se a debilidade afeta os neurónios do num lado (geralmente o lado esquerdo) em lesões
sistema motor superior ou do sistema motor do hemisfério não dominante. Se forem detetadas
inferior e se a sua distribuição é segmentar, difusa, quaisquer anomalias, deve então tentar-se mapear a
distal ou periférica. A debilidade miopática não zona do défice e estabelecer o local anatómico da
respeita as demarcações nervosas periféricas ou lesão ou da estrutura envolvida.
segmentares e é geralmente mais acentuada Os testes de dor e de temperatura fornecem
proximalmente. A debilidade neuropática tem de ser informação sobre os mesmos sistemas, pelo que
delineada e avaliada quanto à localização anatómica poderá não ser necessário efetuar ambos num
87

doente de rotina sem dor neuropática. No entanto, Antes de registar um reflexo como ausente, deve ser
um aumento positivo ou patológico das sensações experimentada uma técnica de reforço (como
(como a disestesia) que possa ter sido parcialmente contrair os músculos noutros membros ou cerrar os
detetado durante o levantamento da história clínica maxilares). O traço distintivo do défice neuronal
terá de ser aprofundado. A regiões de hiperestesia e motor superior continua a ser o aumento dos
alodinia têm de ser mapeadas de forma exata, tendo reflexos dos tendões profundos, o desaparecimento
em conta que a hipersensibilidade cutânea a diversos dos reflexos superficiais e o aparecimento de
estímulos (toque, frio e calor) pode ser diferente, reflexos patológicos.
pelo que deve ser testada separadamente. Os reflexos patológicos incluem o reflexo de
Embora estejam fisiologicamente Hoffman, o reflexo de Trömner, os reflexos
associados, deve testar-se o toque ligeiro, a abdominais e as respostas plantares, úteis para
propriocepção articular e a vibração, já que todos identificar défices neuronais motores superiores. Os
são sensações rápidas, uma vez que podem ser chamados reflexos primitivos do lobo frontal
afetados diferencialmente em determinadas (preensão, sucção, procura, etc.) só raramente fazem
situações clínicas. parte de um exame clínico de rotina (com a possível
Normalmente, as funções sensoriais mais exceção dos recém-nascidos), mas podem ser
elevadas, como a discriminação de dois pontos, a realizados se a situação clínica assim o exigir.
grafestesia (reconhecimento de números ou letras O cerebelo coordena as contrações e os
desenhados na pele) e a estereognose (capacidade de movimentos de todos os músculos voluntários e
reconhecer objetos familiares colocados na mão) uma disfunção cerebelar resulta em sintomas de
não fazem parte de um exame neurológico de ataxia, que pode ser troncular se o lobo
rotina, mas podem ser realizados sempre que se floculonodular for afetado, ou ataxia dos membros
suspeitar de uma lesão cerebral. se a falha residir nos hemisférios. A ataxia troncular
está associada a perturbações da marcha, que
O que revela um exame aos costuma ser ampla e hesitante e não piora com os
olhos fechados. Tal pode observar-se quando o
reflexos? doente entra na sala de exame ou quando lhe é
pedido que caminhe naturalmente pela sala.
Os reflexos dos tendões profundos são geralmente Também podem realizados os testes de caminhar
testados após o exame aos sistemas sensoriais. O em linha reta (10 passos), caminhar sobre os
reflexo dos maxilares, o supinador, os reflexos dos calcanhares e posição de pé sobre uma perna
bicípites e dos tricípites nos membros superiores e (mantendo a posição mais de 10 segundos). O teste
no joelho, bem como os reflexos nos tornozelos de Romberg é habitualmente incluído nos testes de
nos membros inferiores, são sujeitos a testes de coordenação, embora avalie sobretudo as funções
rotina. Outros reflexos, como a flexão dos dedos e da coluna posterior e a propriocepção articular, mais
os reflexos adutores nos membros superiores e do que a função cerebelar.
inferiores, respetivamente, não são sujeitos a testes O processo neurofisiológico da coordenação
de rotina. As suas respostas são geralmente dos movimentos é complexo e exige um sistema
classificadas de acordo com um sistema simples de sensorial ascendente intacto, gânglios da base, o
cinco pontos, de 0 a 4: 0 = ausente, 1 = diminuído, sistema piramidal e o aparelho vestibular. As lesões
2 = normal, 3 = aumentado, 4 = aumentado com numa destas estruturas podem comprometer um ou
clónus. Reveste-se de particular interesse a simetria outro aspeto da coordenação. Felizmente, este tipo
das respostas e a menor força necessária para extrair de lesões é geralmente acompanhado por outras
as respostas, que podem representar uma medida manifestações neurológicas que ajudam a diferenciar
mais sensível do que o sistema referido as lesões. A coordenação dos membros para avaliar
anteriormente. A comparação entre membros a função cerebelar pode ser testada através de uma
superiores e membros inferiores pode fornecer variedade de testes: a prova dedo-nariz, o teste de
informação relativa a lesões na espinal medula. bater rapidamente o dedo indicador, movimentos
rápidos e alternados com as mãos, no caso dos
88

membros superiores, e a prova calcanhar-joelho e  Teste de Babinski: escovagem forçada da


bater com os pés, no caso dos membros inferiores. sola do pé, positivo quando se observa a
extensão lenta do dedo grande do pé (indica
Pérolas de sabedoria mielopatia com lesão piramidal)
 Teste de Brudzinski: flexão refletiva na anca
Exames neurológicos sugeridos em doentes com e nas articulações dos joelhos ao inclinar a
dor, efetuados por médicos não neurologistas: cabeça
Teste de Trendelenburg: descida da anca até  Teste de Jackknife: sem espasticidade em
ao local não afetado pela dor ao caminhar em repouso, mas, após movimento passivo das
distâncias mais longas (insuficiência dos glúteos). articulações, aumento da espasticidade
Testes de «alongamento dos nervos»: o teste seguido de súbito relaxamento muscular
de Lasègue realiza-se na posição sentada e em  Teste de classificação da paresia: a gravidade
supino e é positivo se for sentida dor nas costas a da paresia é classificada em seis níveis, de
irradiar para a perna, ao elevar a perna esticada a acordo com Janda (0 = sem contração
<70º, em particular se a flexão do pé no local muscular, 1 = <10%, 2 = <25%, 3 = <50%,
ipsilateral aumentar a dor (teste de Bragard), que 4 = <75%, 5 = força normal)
será altamente positivo se a dor começar a <35º
e/ou se for provocada por testes contralaterais
(deve suspeitar-se de simulação de doença se o teste
produzir resultados diferentes na posição sentada e
em supino, ou se a flexão da cabeça não aumentar a
dor).
 Distribuição das raízes dos nervos
Flexão da anca (posição sentada) e reflexo
patelar negativo (L2)
Extensão do joelho (posição sentada) e
reflexo patelar negativo (L3)
Supinação nas articulações dos tornozelos
(em supino) e posição de pé sobre os
calcanhares negativo (L4)
Extensão do dedo grande do pé (em supino)
e posição de pé sobre os calcanhares
negativo (L5)
Atrofia dos glúteos e posição sobre uma
perna negativo (L5/S1/S2)
 Teste dos pontos de pressão Valleix:
provocar dor irradiante na perna, palpando
ao longo da via do nervo ciático, na zona
dorsal das coxas
 Teste de elevação da perna: elevar a perna
esticada a 20º em supino durante >30
segundos (se <30 segundos, pode suspeitar-  Testes aos reflexos: bicípites = C5-6,
se mielopatia, em particular se o teste de tricípites = C6-7, flexão dos dedos II + III
Babinski for positivo) («Trömner») = C7-T1, ligamento patelar =
 Teste do diapasão: sensibilidade à vibração L2-4 e tendão de Aquiles = L5-S2
(um resultado negativo indica  Prova dedo-nariz: teste de coordenação. O
polineuropatia) doente deve tentar tocar no nariz com o
89

indicador num movimento amplo e neuropathic pain assessment. Eur J Neurol 2004;3:153-
ininterrupto, com os olhos fechados 62.
[3] Weisberg LA, Garcia C, Stub R. Essentials of clinical
 Teste de Romberg: o doente deve conseguir neurology: neurology history and examination.
manter-se em pé estável, com os olhos Disponível em: www.psychneuro.tulane.edu/neurolect.
fechados, os pés juntos e os braços esticados
a 90º para a frente Sítios na Web
 Usar um esquema corporal simples para
registar a dor manifestada pelo doente e os
http://www.brooksidepress.org/Products/OperationalMedici
dados observados (ver Fig. 1) ne/DATA/operationalmed/Manuals/SeaBee/clinicalsection/
Neurology.pdf
Referências http://library.med.utah.edu/neurologicexam/html/home_exa
m.html

[1] Campbell WW. Pocket guide and toolkit to Dejong’s http://www.neuroexam.com


neurologic examination. Lippincott, Williams and
Wilkins; 2007. http://edinfo.med.nyu.edu/courseware/neurosurgery
[2] Cruccu G, Anand P, Attal N, Garcia-Larrea L, Haanpää
http://meded.ucsd.edu/clinicalmed/neuro2.htm
M, Jørum E, Serra J, Jensen TS. EFNS guidelines on
90

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 12
Exame Físico Músculo-Esquelético
Richard Fisher

Caso clínico 1 (membros) Decide que a fratura deve ser «reduzida» [colocada
no alinhamento correto], pelo que contacta o anestesista de
serviço e dá indicação ao bloco operatório para realizar uma
Foi-lhe pedido que examinasse um doente no serviço de manipulação fechada da fratura e aplicar uma tala de gesso
urgência do seu hospital. O doente é um homem de 46 anos na perna. O pessoal do bloco operatório avisa-o de que
que ficou preso entre uma plataforma de carga e o pára- estarão prontos dentro de 2 horas.
choques de um camião há várias horas. No membro inferior A manipulação parece resultar, pelo que aplica uma
esquerdo foi colocada uma tala de cartão provisória e, após tala de gesso em três lados do membro – deixando o lado
uma avaliação primária, parece não apresentar outros anterior aberto para deixar espaço para a tumefação. O
ferimentos significativos. Está consciente e fala consigo. doente sente-se confortável com a medicação analgésica oral ou
O exame inicial ao membro inferior esquerdo revela intramuscular e tudo parece correr bem. O estado vascular e
tumefação na “barriga” da perna com uma ligeira deformação neurológico do pé e tornozelo esquerdos parece melhorar na
angular e a pele contusa, mas sem soluções de continuidade. O sequência da redução, embora não se apresentem totalmente
exame ao joelho não revela efusão, mas não é possível testar a normais.
amplitude de movimento e os ligamentos devido a dor na No dia seguinte, mesmo antes de iniciar o serviço, a
“barriga” da perna. De igual modo, não é possível verificar a enfermeira telefona-lhe porque o doente está a sentir muitas
amplitude de movimento da anca. dores na “barriga” da perna esquerda. Afirma que
O doente consegue movimentar os dedos do pé e o administrou toda a medicação analgésica prescrita, mas que
tornozelo em ambas as direções. Afirma que consegue sentir o não está a ajudar. Desloca-se rapidamente para examinar o
seu toque nos dedos e no pé, mas que sente uma sensação de doente e descobre que a tala está intacta, mas que a perna
formigueiro, ligeiramente diferente da do lado direito. O pé esquerda está inchada e tensa abaixo do joelho. O doente não
esquerdo está ligeiramente mais frio e parece mais pálido. consegue esticar ou fletir os dedos dos pés. Consegue esticá-los
Você não consegue sentir o pulso pedioso nem o pulso tibial passivamente causando algum desconforto, mas, se tentar fleti-
posterior. O preenchimento capilar nos dedos dos pés parece los passivamente, o doente grita com dor. Existe uma
mais lento do que no lado direito, mas ainda assim intacto. diminuição difusa da sensação na zona do pé e da “barriga”
Tem disponível o raio X, pelo que solicita uma da perna e há ausência de sensação entre o primeiro e segundo
radiografia á perna esquerda. O raio X revela fraturas dedo, na superfície dorsal do pé. Ontem conseguia sentir o
transversais nas metáfises de ambos os ossos com alguma pulso pedioso e tibial posterior débeis, mas agora não os sente
angulação e uma deslocação mínima – mas pouca cominuição. de todo através da palpação. O preenchimento capilar
91

apresenta-se mais lento e o pé está mais frio e pálido do que extrema. Neste caso, é a flexão plantar que causa
no dia anterior. esse efeito.
Paralisia – os músculos envolvidos
Pensa que este padrão de dor é típico de uma apresentam-se fracos ou deixam de funcionar.
fratura da tíbia ou deve procurar outra causa? Ausência de pulso – não é possível sentir o
pulso se a pressão estiver suficientemente alta, mas
Depois de examinar o doente, suspeita que o este é um sinal avançado, pelo que não é um fator
problema está localizado: fiável para o diagnóstico precoce.
 no compartimento posterior profundo?
 no sistema venoso, provavelmente na Porque é que a dor
sequência de uma trombose venosa
profunda?
músculo-esquelética
 no compartimento anterior? constitui um problema
 na distribuição do nervo tibial?
clínico tão importante?
Como estabelecer um diagnóstico?
A dor é um componente essencial da função
Os músculos da “barriga” da perna estão músculo-esquelética. É o sinal usado para limitar as
organizados em quatro compartimentos e atividades que, se continuadas, causam danos nos
encontram-se no interior de bainhas fasciais de elementos funcionais do sistema – músculos,
dimensões substanciais. Quando os músculos ficam nervos, vasos sanguíneos, tendões, ligamentos,
isquémicos, incham, aumentando assim a pressão ossos e cartilagem articular. O valor deste circuito
dentro do compartimento. À medida que a pressão de retorno pode ser mais devidamente apreciado em
aumenta, acaba por exceder a pressão de perfusão situações em que a perceção da dor está
capilar e o sangue não consegue chegar até aos comprometida e se segue uma rápida desintegração
músculos – e assim continua o ciclo. Se a pressão de elementos músculo-esqueléticos. Esta situação é
não for diminuída dividindo a fáscia envolvente, o observada em síndromes congénitos, em condições
músculo perde definitivamente a sua funcionalidade. neuropáticas adquiridas (neuropatia diabética) e em
Um síndrome de compartimento é uma das poucas situações de uso de anestésicos para melhorar o
emergências cirúrgicas que afetam o sistema desempenho durante atividades desportivas. A dor
músculo-esquelético. A bainha fascial do produzida por uma patologia músculo-esquelética,
compartimento deve ser libertada o mais um traumatismo, uma infeção ou tumores deve ser
rapidamente possível. tratada como componente do tratamento destes
Os tecidos que manifestam os sintomas do problemas. A dor associada a determinadas
doente incluem artérias, nervos, músculos, veias, síndromes de dor crónica apresenta-se
ligamentos e articulações Os sintomas são causados desproporcionada ao estímulo inicial. A história
principalmente pelo músculo isquémico. Os clínica e o exame físico são essenciais para
sintomas a ter em atenção são os 7 seguintes: estabelecer um diagnóstico diferencial funcional.
Palidez – diminuição do fluxo sanguíneo, A dor é o sintoma mais comum nos doentes
preenchimento capilar lento com problemas músculo-esqueléticos que procuram
Dor – causada por pressão no músculo ajuda clínica. É frequentemente acompanhada de
Parestesia – causada por isquémia nervosa outras queixas, como tumefação, descoloração ou
precoce provocando uma diminuição da incapacidade de realizar determinadas tarefas, como
sensibilidade ou sensações anómalas subir escadas, levantar o braço acima da cabeça ou
Pressão – o compartimento envolvido segurar um garfo ou uma colher, mas há geralmente
apresenta tensão e pressão alta dor envolvida. Assim, a dor é uma ferramenta útil
Alongamento passivo – o alongamento dos para o diagnóstico e o tratamento e também é uma
músculos do compartimento envolvido causa dor forma de medir a evolução e a cura à medida que as
92

funções são restauradas. Nos doentes em igual modo, a pele pode apresentar rubor, aumento
tratamento, estamos sempre a trabalhar neste limiar de temperatura, induração, fragilidade moderada ou
do conforto versus funcionalidade. extrema, alguma tumefação ou tensão, sendo que
A dor proporciona o ponto de partida de todos indicam o grau de patologia subjacente, desde
um exame ortopédico, tanto no que toca à história uma ligeira contusão a uma infeção grave. Também
clínica como ao exame físico. Onde é sentida a dor? devem ser considerados os sinais sistémicos como
Durante quanto tempo? Como começou? O que faz febre, perda de peso ou fadiga crónica, juntamente
que piore? O que faz que melhore? As respostas a com as análises laboratoriais básicas.
estas perguntas permitem obter as pistas necessárias
para dar início ao exame físico. Felizmente, o exame Quadro 1
ortopédico básico não é complexo. Consiste numa Avaliação dos membros
série limitada de manobras conjuntamente com Pele Procurar tumefação, rubor, induração,
algum conhecimento de anatomia. O objetivo lesões abertas; palpar para averiguar
consiste em compreender a anomalia e fragilidade cutânea
Sistema Palpar os pulsos principais, avaliar o
proporcionar o aconselhamento ou tratamento
vascular preenchimento capilar, a temperatura e a
necessário para que o doente deixe de ter dor ou
cor
para que se sinta confortável. Este é um conceito
Nervos Avaliar a sensibilidade da pele, a função
importante porque, se tivesse continuado a muscular e os principais reflexos dos
aumentar a medicação analgésica do doente do caso tendões profundos; tentar determinar se
referido acima sem compreender o significado dos existe perda num dermátomo ou na
dados físicos apurados, o resultado mais provável distribuição nervosa periférica
teria sido a perda da perna. Afinal de contas, as Músculos Palpar para verificar se existe tensão
fraturas tibiais são dolorosas. Porque não tratar muscular e tumefação; testar a força
apenas a dor? O exame físico é importante e não é Articulações Avaliar o nível de tumefação (líquido nos
difícil de realizar, mas examinar um membro pode tecidos em redor da articulação), de
ser mais fácil do que examinar a coluna vertebral, efusão (líquido dentro da articulação), de
amplitude de movimentos (ativa/passiva),
por isso comecemos por aí.
de estabilidade (testar os principais
grupos de ligamentos), de tensão (em
Como realizar um exame redor da articulação e das ligações dos
aos membros Ossos
ligamentos e tendões)
Observar o alinhamento: normal,
angulado ou rodado. Procurar tumefação
O exame aos membros deve incluir uma avaliação e pontos sensíveis localizados.
cuidada dos tecidos importantes. Por ordem de
importância geral, estes incluem a pele, o Em seguida apresentamos uma lista de verificação
fornecimento vascular, as funções nervosa, simples a seguir durante a realização do exame
muscular e articular, incluindo a estabilidade dos básico ao membro. Sempre que possível, é mais fácil
ligamentos, e os ossos. Os parâmetros a examinar realizá-lo com o doente sentado.
encontram-se indicados no Quadro 1.
O bom senso é uma habilidade que é Ombro:
importante praticar. Se um osso estiver 1) Palpar a superfície da clavícula, a
manifestamente fraturado, poderá não ser prudente articulação acromioclavicular, o espaço subacromial,
tentar avaliar a amplitude dos movimentos ou a o processo coracóide e a inserção do músculo
estabilidade dos ligamentos numa articulação deltóide.
próxima. No entanto, é possível examinar a 2) Testar ativa ou passivamente a amplitude
articulação quanto a tumefação, efusão, de movimento da articulação do ombro:
sensibilidade e deformidade e compreender se é flexão/extensão, abdução e rotação interna e
provável o envolvimento da articulação na lesão. De externa.
93

3) Testar o conflito da coifa de rotadores 3) Palpar os pulsos – femoral, poplíteo e


(flexão do ombro/abdução contra resistência). tibial anterior e posterior.
4) Avaliar a função sensorial nervosa dos 4) Testar a força dos abdutores da anca –
nervos axilar, mediano, cubital e radial. Sugestão: com o doente de pé, pedir-lhe que levante uma
extremidade palmar do dedo indicador = mediano, perna do chão. Normalmente, a crista ilíaca
extremidade do dedo mínimo = cubital, primeiro ipsilateral deve elevar-se. Se os músculos abdutores
interósseo dorsal = radial, extremidade do ombro = estiverem fracos ou se existir um problema
axilar. doloroso da anca, a pélvis descai e o doente inclina a
parte superior do corpo na direção oposta.
Cotovelos:
1) Palpar a localização dos epicôndilos Joelho:
medial e lateral, a cabeça radial, o olecraneo e a O joelho pode ser examinado com o doente sentado
bolsa olecraniana. ou em decúbito supino.
2) Verificar a amplitude de movimentos do 1) Palpar a localização da rótula, o tendão
cotovelo: flexão/extensão e pronação/supinação. rotuliano, a cabeça do perónio e as linhas medianas
3) Testar a força dos bicípites braquiais e laterais das articulações. ´
através da flexão e supinação do cotovelo. 2) Verificar a amplitude de movimentos do
4) Percutir levemente sobre o nervo cubital, joelho – flexão/extensão.
por baixo do epicôndilo medial – um aumento da 3) Testar a estabilidade dos ligamentos
sensibilidade significa compressão. colaterais medianos e laterais com o joelho em
5) Verificar os reflexos dos bicípites e extensão completa e fletido a 30º.
tricípites braquiais. 4) Testar a integridade dos ligamentos
cruzados anteriores e posteriores com o joelho
Mãos e punhos: fletido a 30º e a 90º.
1) Palpar a localização superficial das 5) Avaliar a integridade dos meniscos.
apófises estilóides radial e cubital, os tendões 6) Verificar se existe dor na articulação do
abdutores do polegar e a «tabaqueira» anatómica. joelho enquanto flete, estende e roda a articulação.
2) Palpar os pulsos radial e cubital. 7) Verificar se existem pontos de
3) Avaliar a amplitude de movimentos da sensibilidade ao longo da inserção do menisco, na
articulação do punho: flexão/extensão, linha da articulação.
pronação/supinação, desvio radial/cubital. 8) Verificar se existe qualquer entrave à
4) Avaliar sinais de síndrome de túnel extensão completa.
cárpico: percutir levemente sobre o nervo mediano 9) Verificar o reflexo rotuliano.
no punho (teste de Tinel), testar a sensibilidade
como descrito em cima, fletir o punho e mantê-lo Tornozelo e pé:
fletido para criar sensação de formigueiro, e palpar a 1) Palpar a localização de :
eminência tenar. a. os maléolos mediais e laterais e os
ligamentos colaterais.
Anca e pélvis: b. a inserção da fáscia plantar
É mais fácil realizar os testes 1-3 com o doente em c. os tendões principais (de Aquiles, tibial
decúbito supino e o teste 4 com o doente em anterior/posterior, peronial e extensores dos dedos
ortostatismo. dos pés)
1) Palpar a localização do tubérculo púbico, 2) Verificar a amplitude de movimentos das
as espinhas ilíacas antero-superiores, os trocânteres articulações do tornozelo, do pé central e retro-pé.
maiores e as tuberosidades isquiáticas. 3) Avaliar o reflexo aquiliano.
2) Verificar a amplitude dos movimentos da
anca (é mais fácil avaliar passivamente):
flexão/extensão, rotação interna e externa e
adução/abdução.
94

Caso clínico 2 (coluna  Disco intervertebral entre os últimos corpos


vertebrais e os primeiros sagrados?
vertebral)  Articulações do joelho e do tornozelo?
 Disco intervertebral entre os corpos
Na clínica, um doente diz-lhe que, no último ano, tem vertebrais L4 e L5?
percorrido cerca de 20 km de bicicleta todos os dias para ir
para a escola. Refere que, no mês passado, quando o tempo Como estabelecer um diagnóstico?
começou a arrefecer, notou um aperto nos músculos lombares e
tinha dificuldade em pôr-se de pé quando chegava à escola. Potencialmente, as anomalias dos músculos da
Durante algum tempo a dor era apenas lombar, mas “barriga” da perna (em especial os do
recentemente desenvolveu dor na parte posterior da coxa e na compartimento anterior) ou do nervo ciático na
barriga da perna direitas, que aumenta quando está sentado coxa podem produzir alguns destes sintomas. No
na sala de aula, quando se inclina para a frente ou espirra. entanto, o doente indica que a dor começou nas
Na semana passada, tropeçou várias vezes quando costas e que se alastrou para a coxa e a “barriga” da
os dedos do pé direito ficaram presos na ponta de um tapete e perna. Além disso, o teste de elevação da perna
afirma que se tem sentido envergonhado com o “bater” do pé estendida indica uma irritação ao nível da raiz do
quando vai a andar pelos corredores da escola. Por vezes, nervo quando esta é alongada sobre um disco
sente formigueiro no pé direito, mas não notou qualquer saliente.
problema de controlo intestinal ou urinário, e a perna Os sintomas e sinais neurológicos do doente
esquerda parece estar bem. Quando sente dores fortes nas sugerem um padrão de perda de funções que pode
costas, toma anti-inflamatórios, mas geralmente isso não localizar. A perda sensorial envolve a barriga da
acontece todos os dias. perna lateral e a raiz L5 do dorso do pé – ver mapa
Você repara que o doente se levanta lentamente para de dermátomos. De um modo semelhante, o
se deslocar até à marquesa de exame, mas que consegue “bater” do pé e a fraqueza do extensor dos dedos
manter-se direito em pé. O alinhamento da coluna vertebral dos pés envolvem músculos do compartimento
parece satisfatório, mas a amplitude dos movimentos é anterior – o que pode resultar de compressão do
limitada, com apenas alguns graus de flexão e inclinação compartimento anterior, de uma lesão no nervo
lateral, até 20º. Sente apenas uma tensão moderada durante peronial, ou da raiz L5. Os reflexos no joelho (L4) e
a palpação dos músculos lombares. no tornozelo (S1) estão intactos (existe um reflexo
A sensibilidade táctil e álgica está intacta exceto na associado à raiz L5, mas é difícil de avaliar).
parte lateral da barriga da perna direita e no dorso do pé Geralmente – embora existam exceções – a
direito. Pede-lhe que caminhe sobre os calcanhares e os dedos raiz L5 é comprimida por um disco L4-L5 anómalo
dos pés, o que faz sem qualquer dificuldade, à exceção de que e a raiz S1 por um disco L5-S1 anómalo. Esta
não consegue caminhar sobre o calcanhar direito mantendo os relação pode ser observada anatomicamente.
dedos dos pés afastados do chão. A extensão do dedo grande
do pé está limitada durante os testes manuais. Os reflexos Qual é a causa do “bater” do pé?
rotuliano e aquiliano são normais e simétricos. O teste de
elevação da perna estendida (teste de alongamento do nervo  Descoordenação da marcha causada pela
ciático) não é doloroso no lado esquerdo até 80º, mas, no lado dor?
direito, provoca dor na barriga da perna a 40º.  Fraqueza dos músculos no compartimento
anterior da perna?
Onde suspeita que se encontra o problema  Compressão do nervo peronial comum no
principal? joelho?
 Fraqueza dos músculos flexores plantares do
 Músculos da “barriga” da perna? tornozelo?
 Nervo ciático posterior à articulação da  Fraqueza dos músculos peroneais?
anca?
95

Como estabelecer um diagnóstico? Como examinar a coluna vertebral

Este é um sintoma comum e um problema  Procurar sinais sistémicos, tais como febre,
significativo para os doentes, uma vez que a arrepios/calafrios, perda de peso.
fraqueza na extensão do tornozelo tem tendência a  Observar o doente quando entra na sala:
levá-los a tropeçar nos passeios e nas pontas dos procurar anomalias na marcha, observar a
tapetes e provoca um ruído embaraçoso quando se resposta ao seu acolhimento e estado geral.
caminha em pavimento ladrilhado. Conforme  Avaliar o alinhamento e a simetria frontal,
indicado anteriormente, pode resultar de uma lesão posterior e lateral. Verificar se existe
na raiz L5, como é o caso deste doente, de um escoliose, observando a simetria torácica,
compartimento anterior tenso (como no caso 3) ou pedindo ao doente que se incline para a
da compressão do nervo peronial. A localização frente, ou cifose manifestada por uma
mais comum deste tipo de compressão é o colo do interrupção na curva regular da coluna
perónio e pode resultar de um gesso ou tala vertebral, na vista lateral.
apertado(a) ou do posicionamento na mesa de
 Palpar pontos de referência: articulações
operações – olhar para esta zona durante a
sacro-ilíacas, apófises espinhosas, músculos
dissecção.
paravertebrais, sacro.
 Verificar a amplitude de movimentos com a
Sequencialmente, os nervos mais
flexão anterior, extensão, inclinação e
provavelmente envolvidos são os seguintes:
rotação laterais.
 Averiguar os reflexos rotuliano e aquiliano.
 Raiz L4: nervo femoral: nervo tibial
posterior  Realizar o testes de elevação da perna
estendida: com o doente em decúbito
 Raiz L5: nervo ciático: nervo tibial posterior
supino, elevar uma perna de cada vez com o
 Raiz S1: nervo ciático: nervo peronial
joelho estendido. A dor sentida na “barriga”
comum
da perna é um teste positivo que indica
 Raiz L5: nervo ciático: nervo peronial tensão no nervo envolvido.
comum De um modo geral, a dor de costas
mecânica apresenta apenas uma perda de
Como examinar as costas movimento vertebral normal. Uma doença discal
com envolvimento das raízes nervosas apresenta os
As dores nas costas são um problema universal que sinais referidos acima, para além de alterações
deve ser tratado com cuidado, a fim de separar sensoriais, motoras ou reflexas e um teste de
desconforto mecânico músculo-ligamentar nas elevação da perna estendida positivo, como no Caso
costas de outros problemas significativos que 2. As infeções tuberculosas apresentam sinais
exigem um tratamento mais agressivo, como sistémicos, deformidade vertebral, geralmente
infeções, fraturas, tumores ou envolvimento cifose, e podem provocar alterações neurológicas. O
neurológico causado por doença discal, conforme envolvimento neurológico da tuberculose envolve a
ilustrado neste caso. Felizmente, a avaliação inicial espinal medula, mais do que raízes nervosas, e os
pode ser realizada de forma simples e ainda assim sinais físicos podem incluir reflexos hiperativos,
fornecer inúmeras informações. clónus e espasticidade. Os tumores espinais causam
A avaliação radiográfica é útil na avaliação frequentemente as mesmas anomalias neurológicas.
de deformidade ou destruição de osso. A Os doentes adolescentes podem apresentar cifose
ressonância magnética pode ajudar a avaliar ou escoliose isolada. Estes são geralmente de causa
problemas de tecidos moles, como tumores, desconhecida, idiopática, e embora possam
infeções e impacto nas raízes nervosas. A progredir, não causam dor grave, apenas algum
tomografia axial computadorizada permite avaliar desconforto ligeiro. Se a dor for significativa, devem
fraturas e deslocações vertebrais.
96

ser consideradas outras causas, como tumor ou  Os estudos radiográficos e de imagiologia


infeção. especiais são úteis, mas deve tentar-se
efetuar o diagnóstico sem o recurso aos
Pérolas de sabedoria mesmos, caso não estejam disponíveis.
 Existem apenas alguns síndromes de dor
crónica comuns que envolvem o sistema
 Existem alguns problemas particulares que
músculo-esquelético, e um exame físico é
envolvem a dor músculo-esquelética, para os
essencial para o seu diagnóstico.
quais é útil realizar um exame físico. A dor
lombar crónica ou recorrente é  Se o exame físico determinar uma
especialmente difícil de tratar, a menos que deformidade ou anomalia significativa, com
seja estabelecido um diagnóstico claro, por pouca dor associada, considerar uma
exemplo de tuberculose, infeção piogénica, neuropatia subjacente.
tumor ou doença discal.
 A dor é frequentemente o sintoma Referências
manifestado em doentes com anomalia
músculo-esquelética. Registar uma história [1] Alpert SW, Koval KJ, Zuckerman JD. Neuropathic
clínica rigorosa do início dos sintomas e da arthropathy: review of current knowledge. J Am Acad
Orthop Surg 1996;4:100-8.
qualidade do desconforto.
[2] American Society for Surgery of the Hand. The hand:
 O exame físico é de fácil realização, mas é examination and diagnosis, 3.ª edição. Nova Iorque:
necessário certificar-se de que inclui a Churchill Livingstone; 1990. [2] Bernstein J.
avaliação de todas as estruturas importantes: Musculoskeletal medicine. Rosemont, IL: American
nervos, vasos, pele, músculos, tendões, Academy of Orthopaedic Surgeons; 2003.
[3] Olson SA, Glasgow RR. Acute compartment syndrome
articulações, ligamentos e ossos. in lower extremity musculoskeletal trauma. J Am Acad
 Os sinais sistémicos (febre, perda de peso, Orthop Surg 2005;13:436-44.
fadiga) constituem um indício de uma
possível infeção ou de um tumor.
97

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 13
Avaliação Psicológica do Paciente com Dor Crônica
Claudia Schulz-Gibbins

Por que a avaliação A doença pode ser vista como o efeito da interação
complexa de fatores biológicos, psicológicos e
psicológica da dor é sociais [2]. Os aspetos emocionais e cognitivos,
como ansiedade e desamparo ao lidar com a dor
importante? crônica são correlatos que podem reforçar
significativamente a perceção e a intensidade da dor.
As pessoas com condições dolorosas ou lesões A causa do aumento da perceção da dor pode
costumam ser afetadas também por sofrimento incluir componentes emocionais, como desespero,
emocional, depressão e ansiedade. A dor crônica tristeza, raiva ou medo, mas também pode ser uma
envolve mais do que a experiência subjetiva da reação ao prejuízo causado pela dor. Em correlação
intensidade da dor. Nos últimos 30 anos, foi com esses processos, o componente cognitivo é a
desenvolvido um modelo biopsicossocial para o crença de que não é possível ter nenhum alívio da
entendimento da dor crônica. De acordo com esse dor após tratamentos malsucedidos. Acreditar nisso
modelo, a dor crônica é uma síndrome com pode, por exemplo, aumentar o sentimento de
consequências como prejuízo físico e psicossocial. desamparo. A perda da crença na funcionalidade do
Esse modelo tem variáveis, como os processos próprio corpo é sentida como um estresse
centrais na dimensão biológica e nas dimensões psicológico. Os pensamentos vão se concentrar
psicológicas, inclusive dimensões somáticas, cada vez mais no problema aparentemente imutável
cognitivas e afetivas. da dor. Com frequência, o resultado é a restrição de
Além dos processos de atenção, a dimensão toda a perspetiva de vida através do foco na dor. A
cognitiva envolve tentativas de entrar em acordo consequência é que a pessoa preocupada costuma se
com a dor sentida. Por exemplo, pensamentos afastar das atividades físicas e sociais. Surgem
como “a dor é insuportável” ou “a dor não vai conflitos familiares devido ao sentimento de ser
acabar nunca” podem ter um efeito na dimensão mal-entendida. A auto-estima é afetada pela
afetiva e intensificar reações como ansiedade. subsequente incapacidade para trabalhar. O
Sofrer de dor crônica tem consequências sociais, principal foco é consultar um médico e ser curada.
como por exemplo, nas atividades diárias, no O aumento no consumo de medicamentos é
ambiente familiar, e fatores culturais, ou pode ser acompanhado de medo e apreensão com os efeitos
afetada por experiências de tratamentos anteriores. adversos. A inatividade devida à dor e a toda a
98

sintomatologia pode causar e intensificar reações


depressivas como passividade, mais meditação, falta
Quais são as dimensões do
de sono e diminuição da auto-estima. Em um conceito biopsicossocial
círculo vicioso, a dor crônica pode levar a reações nesse relato de caso?
depressivas que influenciam a perceção e a reação à
dor. Por exemplo, processos biológicos, como
Dimensões biológicas:
tensão muscular, podem causar dor, mas também
Talvez alguma degeneração precoce da coluna
podem ser causados pelo aumento da depressão. A
vertebral e disfunção muscular, piorada por
depressão pode levar a mais passividade física, e a
inatividade física.
redução da atividade leva a um aumento da dor
devido à degeneração muscular. O resultado pode
Dimensões psicológicas:
ser dor crônica. Os principais objetivos do
a) Dimensão afetiva: aumento de tristeza e
tratamento dependem da complexidade da dor
ansiedade.
crônica e demandam consideração de todos os
b) Dimensão cognitiva: sentimento de
fatores envolvidos.
desamparo, “a dor e o dano vão continuar e
ninguém pode me ajudar”, e diminuição da
Relato de caso 1 auto-estima, “não consigo cuidar da minha
família”, “a atividade física machuca meu
Trabalhador rural de 40 anos de idade sofrendo há corpo”.
anos de lombalgia. Todas as tentativas de
tratamento fracassaram até o momento. Contou que Dimensões sociais:
o médico lhe disse que não conseguia encontrar a Possível perda de emprego, conflitos com seus
causa exata da dor, mas que provavelmente era uma colegas e seu patrão, e conflitos familiares.
coluna “desmoronada” e que não via como tratá-lo Começa o “círculo vicioso da dor”: A dor leva à
ou aliviar sua dor. Devido à dor, ele não podia inatividade física por medo de que a dor possa
trabalhar e ganhar o suficiente para manter sua piorar com o esforço. O medo do futuro leva a mais
família. Raramente tinha dinheiro suficiente para rigidez muscular constante e aumento de agitação à
comprar analgésicos. Ele se sentia cada vez mais noite, resultando em distúrbios do sono, que
desamparado, não conseguia dormir à noite devido enfraquecem o corpo ainda mais. O paciente se
à dor e se preocupava com o futuro. No último ano retrai devido à depressão e evita o contato social.
ele tentou o máximo possível evitar movimentos Tentativas de resolver o problema são evitadas o
vigorosos e assim que chegava em casa ia para a que aumenta a ansiedade e o desamparo.
cama. Diz que já não tem mais forças e sua mulher
se sente abandonada. Ele fica ainda mais triste em Quais são as consequências para a avaliação do
ver como sua mulher sofre porque não pode ajudá- paciente?
lo. Ele não sabe como prosseguir e tem medo que As interações complexas de processos somáticos e
se suas restrições físicas e dor aumentarem ainda psicológicos tornam muito difícil para qualquer
mais, ele não consiga cuidar de sua família. Seu pessoa ter consciência de todas as informações
patrão lhe disse que ele não pode ser “mole” no relevantes e avaliar essa relevância. A avaliação
trabalho e ele teme perder o emprego. Ainda não psicológica deve ser uma parte integrante da
contou à mulher sobre seus problemas no trabalho pesquisa diagnóstica da dor, em um ambiente
com medo que ela o abandone. Seus colegas se multidisciplinar [9]. O exame médico completo é
queixaram ao patrão que eles precisam assumir parte uma parte importante de qualquer protocolo de
de seu trabalho. Sua vida social é ruim por causa da tratamento da dor crônica, mas a entrevista
dor. psicológica deve ser integrada o mais rapidamente
possível. Os pacientes não devem sentir que estão
sendo enviados a um psicólogo porque nada foi
diagnosticado em nível somático que possa explicar
99

a dor e sua intensidade. Os pacientes podem paciente inclui informações sobre redução de
interpretar essa indicação como sendo atividades e evitar atividades diárias, inclusive
“descartados” ou estigmatizados. atividades físicas, devido ao medo de a dor piorar.
Como já mencionado, a dor afeta todo o “corpo e Também é importante avaliar o uso / sobreuso de
alma” de nossos pacientes. Como a perceção da dor medicação e obediência ao tratamento [16] para
é sempre mais do que um sinal de nossos nervos, detectar possíveis dicas de abuso de drogas. As
todos os pacientes com dor crônica devem ser perguntas podem ser:
cuidadosamente examinados. Para tanto, os aspetos  “Quando você precisa tomar a medicação?”
“somáticos” e “psicológicos” devem ser incluídos  “Com que frequência você a toma?”
no processo diagnóstico desde o início. O médico  “Quanto você precisa tomar para aliviar a
terá então um quadro completo do paciente e dor?”
poderá entender melhor várias coisas: a natureza da
 “Quais outros medicamentos você tentou?”
dor, como a dor é percebida pelo paciente, e como
A avaliação de possíveis comorbidades, como
ela afeta a vida do paciente. Por outro lado, o
depressão, ansiedade, transtornos somatoformes e
paciente pode aprender desde o início que sua dor
transtornos de estresse pós-traumático (TEPT) é
pode ser mais do que apenas um sinal de alarme de
outro objetivo importante da entrevista psicológica,
uma lesão. Desde o início, a dor e suas implicações
junto com a avaliação dos riscos de cronificação.
psicológicas devem fazer parte das conversas entre
médico e paciente: o paciente nunca deve sentir que
Quais são outros possíveis riscos de
o médico duvida de sua dor e de seus efeitos na sua
cronificação?
vida.
Um sistema útil para identificar fatores psicológicos
de risco, conhecido como “Bandeiras Amarelas”, foi
Qual seria uma técnica adequada para obter a
desenvolvido por Kendall e col. [4] principalmente
história de um paciente?
para pacientes com lombalgia, mas também pode
A avaliação psicológica inclui a entrevista clínica, o
ser aplicado a outras síndromes dolorosas:
uso de questionários psicológicos padronizados e a
supervisão precoce do comportamento do paciente.
Cognição/crenças
Na prática clínica, a entrevista é uma maneira
 Exercício / esforço é prejudicial.
importante de detectar as queixas e atitudes do
paciente. Não é possível obter todas as informações  A dor deve desaparecer completamente
em uma única entrevista, devido às diferentes antes de retomar qualquer atividade.
questões que envolvem a resposta à dor. Existem  Catastrofização.
métodos altamente estruturados no campo da  Convicção de que a dor é incontrolável.
pesquisa, que costumam não ser práticos no dia-a-  Ideias fixas sobre o desenvolvimento do
dia devido a limitações de tempo. Formatos não tratamento.
padronizados facilitam o foco em tópicos que
surgem como essenciais durante a discussão. É mais Emoções
fácil diagnosticar ações não verbais, tais como evitar  Medo muito grande da dor e da
movimentos ou fazer expressões faciais de emoções incapacitação.
durante a entrevista, junto com emoções como  Reações depressivas.
tristeza ou raiva.  Maior conscientização dos sintomas físicos.
 Desamparo / resignação.
Qual é o formato de uma entrevista específica para dor
crônica com aspectos psicológicos subjacentes?
Comportamento:
A entrevista deve conter perguntas sobre
 Comportamento claramente precavido.
experiências dolorosas anteriores e sobre o
desenvolvimento da dor, explicações individuais  Abandono das atividades diárias normais.
sobre a origem da dor, e os objetivos do tratamento  Comportamento claramente preventivo.
para o paciente. A avaliação do comportamento do
100

 Comportamento doloroso extremo estranho”, onde a dor que não tinha uma causa
(inclusive intensidade). identificável, como cefaléia, era tida como ligada a
 Distúrbios do sono. poderes sobrenaturais. Imaginava-se que objetos
 Abuso de medicação. mágicos entravam por orifícios e eram responsáveis
pela dor. Nas culturas antigas sofisticadas, as
Família: crenças mágicas eram diretamente ligadas à punição
por insulto aos deuses. A percepção da dor como
 Um parceiro que é superprotetor e
“punição de Deus” dentro das estruturas religiosas
carinhoso demais.
ainda é popular; por exemplo, os pacientes com dor
 Histórico de dependência (medicação /
sentem “menos desejo de aliviar a dor e sentem-se
drogas).
mais abandonados por Deus” [14]. Lovering [7]
 Um membro da família também é um pesquisou as crenças culturais relativas às causas da
“paciente com dor”. dor em várias culturas e em relatórios de referências
 Conflitos graves com o parceiro ou a de pacientes ao “olho do mal” (culturas filipina,
família. saudi e asiáticas) ou ao poder dos ancestrais (cultura
tswana). O tratamento da dor é influenciado não
Ambiente de trabalho: apenas pela atitude do paciente com relação à dor,
 Convicção de que o trabalho prejudica o mas também pela atitude do profissional de saúde.
corpo. Em um modelo explanatório, “pacientes e
 Pouco suporte no trabalho. profissionais de saúde trazem suas próprias atitudes
 Falta de interesse do patrão ou dos colegas. culturais para a comunicação e interpretação da
 Descontentamento com o trabalho. experiência dolorosa do paciente”. Nessa interação,
 Motivação para aliviar o esforço. são o conhecimento e a atitude do profissional de
saúde que dominam a reposta à experiência
Diagnóstico / tratamento: dolorosa do paciente [7]. A consideração dos
pressupostos subjetivos com relação ao
 Comportamento precavido / incapacitação
desenvolvimento da dor – como crenças em
respaldados pelo médico.
abordagens mágicas, biomédicas ou biopsicossociais
 Vários diagnósticos (parcialmente
para a dor – possibilita o desenvolvimento de
contraditórios).
conceitos terapêuticos relevantes ao incorporar os
 Medo de doença maligna. desejos e objetivos dos pacientes. Entender a
 Prescrição de tratamento passivo. narrativa da experiência pessoal significa entender o
 Alto nível de utilização do serviço de saúde. desfecho.
 Convicção de que apenas o tratamento
somático vai trazer alívio. Consequentemente, quais são as funções da
 Descontentamento com o tratamento avaliação psicológica?
anterior. O principal objetivo da avaliação psicológica é obter
um quadro completo da síndrome dolorosa em
Por que é importante avaliar modelos todas as dimensões afetadas: afetiva, cognitiva,
individuais para explicar a dor e sua expressão? comportamental e, acima de tudo, as consequências
Os modelos individuais para explicar o individuais para o paciente. As informações
desenvolvimento da dor dependem dos aspectos completas e a análise das condições da manutenção
socioculturais e étnicos. O significado e a expressão da dor nos permitem estabelecer metas de
da dor e do sofrimento são determinados pelo tratamento. Por exemplo, um paciente com
aprendizado social. A resposta e a expressão da dor diagnóstico de lombalgia e comportamento de
são determinadas pela cultura como uma influência abstenção precisa de educação para entender por
condicionante. Uma antiga crença sobre o que faz sentido minimizar tal comportamento. Um
desenvolvimento da dor era a “teoria do corpo paciente com lombalgia, comportamento de
abstenção e reações depressivas precisa de uma boa
101

explicação do modelo biopsicossocial. Por exemplo, resultado de consequências psicossociais. Quanto


quais são as consequências da depressão no mais a dor persiste, maior a probabilidade de a
contexto da dor? Um melhor entendimento pode experiência dolorosa ser influenciada principalmente
ajudar o paciente a desenvolver estratégias melhores por reações ao meio ambiente. Muito
para lidar com o desamparo e minimizá-lo. provavelmente vão surgir atitudes comportamentais
quando forem diretamente reforçadas positivamente
Quais são os modelos psicológicos para ou quando efeitos negativos puderem ser evitados.
explicar as condições do desenvolvimento e da A consciência da dor pode portanto ser afetada por
manutenção da dor? reforço positivo, por exemplo, pelo aumento de
Os fatores cognitivos e comportamentais, além do carinho e atenção por parte de terceiros. Um
condicionamento clássico, são fatores nos quais reforço negativo da consciência da dor pode ser
temos que pensar. No entendimento teórico da dor, causado pela ausência de atividades desagradáveis
o condicionamento clássico, de acordo com Pavlov, ou por evitar conflitos como resultado da dor. Esse
baseado em estímulo e reação, forma o alicerce para comportamento pode ser mantido mesmo após o
futuras considerações. O sentimento da dor é alívio da dor e portanto levar a uma sustentação
principalmente uma reação a um estímulo doloroso renovada do círculo vicioso, por exemplo, evitando
e portanto tem uma resposta. Nesse caso, um constantemente comportamentos benéficos como a
estímulo primário neutro, por exemplo, a rotação do atividade.
corpo com evidência de disfunção muscular
importante, é relacionado a sentir uma reação Quais são os fatores cognitivos típicos que
psicofisiológica desagradável, como aumento da influenciam a dor?
frequência cardíaca ou aumento doloroso da tensão Os modelos de condicionamento clássico e de
muscular. A consequência é evitar esse tipo de condicionamento operante pressupõem a existência
rotação do corpo, que pode fazer sentido quando a da dor. A falha dos dois modelos é que eles não
dor é sentida pela primeira vez. No entanto, se esse levam em consideração os fatores cognitivo-
comportamento é mantido, o aumento da disfunção emocionais. Mais ainda, os processos fisiológicos
muscular leva ao fortalecimento do mecanismo. Se não são considerados no modelo operante. Existe
os dois estímulos costumam ser sentidos juntos, uma extensão na teoria da abordagem cognitiva-
então o corpo reage para o estímulo neutro original. comportamental. Nesse modelo, a interação entre
A receptividade para um determinado estímulo é dor e fatores cognitivos, afetivos e comportamentais
determinada pelo histórico de vida e doença do é o ponto central. O pressuposto central aqui é que
paciente. Por exemplo, estímulos de tensão, que níveis afetivos e comportamentais são determinados
costumam ser acompanhados de dor, podem ser a decisivamente pelas convicções e atitudes da pessoa
causa de dor subsequente. com relação à dor. Na estrutura cognitiva da dor, é
necessário diferenciar entre autoverbalização, que
O condicionamento operante também tem um diz respeito ao momento, e metacognição, que se
papel importante? refere a um longo período de tempo. A tendência a
O condicionamento operante foi explorado no uma única cognição leva a consequências
trabalho de B.F. Skinner nas décadas de 1930 e comportamentais. A autoverbalização chamada de
1940. Nesse paradigma, existe a hipótese de que o catastrofização, como “a dor não vai acabar nunca”
comportamento aumenta em frequência se for ou “ninguém pode me ajudar” leva a uma
reforçado. Existe uma redução se esse superestimação da dor. Hipoteticamente, pode
comportamento não for recompensado ou punido. surgir uma tendência à abstenção como
No final da década de 1960, Fordyce explorou pela consequência da superestimação do nível de dor e
primeira vez os princípios da terapia operante- como consequência outros estímulos dolorosos não
comportamental (TOC) para o tratamento de são novamente avaliados e as estratégias para lidar
pacientes com dor crônica. com a dor não são adotadas. Metacognições
O modelo operante assume que a reação à dor não é maladaptativas, como crenças de evitar medo são
determinada por fatores somáticos, mas é o acompanhadas do pressuposto que o quadro da dor
102

definitivamente não vai progredir favoravelmente e influenciar a educação do paciente para respaldar
pelo pressuposto que qualquer esforço do corpo vai estratégias adaptativas. Por exemplo, “é melhor
afetar negativamente a situação. Na há mais crença fazer o trabalho do dia em períodos curtos de
no restabelecimento da funcionalidade física [13]. tempo e descansar um pouco, do que fazer todo o
trabalho em duas horas e descansar o restante do
O que significa aprendizado observacional? dia”.
O conceito de aprendizado do modelo vem da Existem diferenças culturais nessa área que
teoria do aprendizado social. Nesse conceito, a dependem, entre outros fatores, do acesso ao
abordagem da dor pela família da pessoa é de sistema de saúde. Murray e col. [12] examinaram as
importância central. O aprendizado não ocorre diferenças culturais entre pacientes com diagnóstico
apenas como resultado da imitação dos modelos de câncer e a dor envolvida através de entrevistas
comportamentais, por exemplo, que a pessoa deve qualitativas. Os pacientes da Escócia relataram a
deitar assim que a cefaléia aparece. Ainda assim, são perspectiva da morte como o principal problema
adotadas expectativas e atitudes, como a dizendo que o sofrimento da dor é incomum e as
superinterpretação de todos os sintomas somáticos necessidades espirituais são evidentes. Em
como perigosos e necessitando de tratamento. contrapartida, os pacientes do Quênia relataram o
sofrimento físico como o principal problema,
Quais as possíveis influências das estratégias principalmente porque os analgésicos são
de enfrentamento? inacessíveis. Sentem-se confortados e inspirados
Desde o desenvolvimento do conceito do pela crença em Deus. Levando em consideração
enfrentamento multidimensional de Lazarus e esses achados, é necessário observar de perto os
Folkman [6], tem havido interesse crescente pelo recursos dos pacientes e seus problemas para
conceito, principalmente no desenvolvimento de enfrentar a dor.
intervenções psicológicas, como a terapia cognitivo- No campo da pesquisa, os instrumentos comuns
comportamental. para avaliar estratégias de enfrentamento de
Enfrentar a dor inclui todas as tentativas feitas por pacientes com dor musculoesquelética crônica são o
uma pessoa para influenciar a dor, seja por Coping Strategy Questionnaire (Questionário de
pensamento ou ação. As estratégias de Estratégia de Enfrentamento) [15] ou o Chronic Pain
enfrentamento podem ser positivas (adaptativas) ou Coping Inventory (Inventário de Enfrentamento da
negativas (maladaptativas). As estratégias de Dor Crônica) [3].
pensamento adaptativo incluem: “sei que a dor
estará melhor amanhã” ou “vou tentar pensar em Quais os possíveis impactos sociais que podem
algo agradável para desviar minha mente da dor”. influenciar negativamente a cura?
Exemplos de estratégias de pensamento A dor crônica constante não apenas leva a prejuízos
maladaptativo são: “não consigo mais suportar a dor físicos e psicológicos, como também pode causar
– não há nada que eu possa fazer” ou “não tenho vários problemas na vida social diária, e às vezes o
futuro se a dor não passar”. Os pensamentos paciente tem que enfrentar a dor sozinho. Os
também afetam o comportamento doloroso do problemas sociais combinados a más estratégias de
paciente. As estratégias comportamentais enfrentamento também podem intensificar o risco
adaptativas incluem: “depois de terminar o trabalho de a dor se tornar crônica.
vou fazer uma pequena pausa e depois disso posso Com muita frequência, podem surgir conflitos de
fazer algo que queira fazer” ou “após uma breve objetivos; problemas psicossociais existentes e
caminhada ao sol vou me sentir melhor”. As resultantes podem entrar em conflito com o
estratégias maladaptativas de enfrentamento podem objetivo de uma possível cura. Em geral o paciente
ser comportamentos problemáticos: “beber álcool não sabe, ou não tem capacidade para enfrentar as
vai diminuir minha dor”; ou comportamentos de falhas físicas existentes no funcionamento diário. Os
abstenção: “após apenas uma hora de atividade problemas não podem ser compensados por conta
preciso descansar pelo menos duas horas”. A própria. O paciente está sob extremo estresse
avaliação das estratégias de enfrentamento permite psicológico e físico. Se há conflito de objetivos, é
103

útil discutir com o paciente esses conflitos e cirurgia em si havia sido tecnicamente difícil. Isso foi
qualquer consequência negativa possível durante o explicado com a ajuda de imagens e modelos. Em seguida, o
curso do tratamento e explorar possíveis soluções. Sr. Andrews disse que não iria mais processar porque ele
agora estava mais bem informado. A dor ainda existe, mas o
A recompensa financeira e as questões legais Sr. Andrew sabe agora que terá que viver com ela e tem uma
influenciam a cura da dor crônica? perspectiva mais otimista.
Possíveis fatores de risco que tornam o tratamento e
a recuperação mais difíceis são acidentes do Qual seria um caso típico de estresse intenso na
trabalho, acidentes causados por terceiros, ou família?
tratamento médico malsucedido. Os resultados Na estrutura biopsicossocial, o ambiente social
podem ser transtornos de estresse pós-traumático imediato, como a família do paciente, precisa ser
ou transtornos de ajuste com reação depressiva levado em consideração. Nessa estrutura, existem
duradoura. Os problemas legais, como processos vários problemas que têm efeito adicional na
longos, compensação por acidente do trabalho ou síndrome dolorosa. A literatura contém três
lesão causada por terceiros, podem prolongar o abordagens teóricas principais para avaliar a
processo de cura. O desejo de compensação, no importância da família na co-criação e manutenção
sentido da aprovação do dano sofrido, pode ter da dor crônica. Na abordagem psicanalítica, existe
aspectos psíquicos e financeiros. Em geral, um ênfase nos processos e conflitos intrapsíquicos e nas
acordo financeiro é considerado compensação experiências do início da infância que possam
parcial pela dor e pela perda de trabalho. Se não influenciar e perpetuar a experiência dolorosa. Aqui,
houver acordo, há mais problemas psicológicos que pressupõe-se que agressões e sentimentos
resultam em raiva, desespero e mais dor. O paciente suprimidos, além de experiências precoces de
sente que sua dor não é reconhecida. violência, tanto sexual quanto física, junto com
privação, podem levar a conflitos psicossomáticos.
Relato de caso 2
Relato de caso 3
Representante de vendas de 62 anos de idade, o Sr. Andrew
relata piora da lombalgia após cirurgia da coluna. No mesmo Contadora bancária de 32 anos, a Sra. Agbori descreve dor
quarto, ele diz, havia outro paciente que tinha feito a mesma abdominal há muitos anos. Seu diagnóstico foi endometriose e
cirurgia. Seu colega de quarto estava se movendo dois dias passou por várias cirurgias que não tiveram sucesso no alívio
após a cirurgia e estava praticamente sem dor no dia da alta. da dor. A única medida que tem algum efeito sobre sua dor,
O Sr. Andrew acredita que durante sua cirurgia, deve ter sempre e por vários meses, é o tratamento com uma
ocorrido um erro. Ele acha que isso não é surpresa dado o “preparação hormonal”, que no entanto a tornou “estéril”.
número de procedimentos que são feitos diariamente e o Isso a aborrece muito porque ela e o marido queriam filhos.
estresse dos médicos. Ele tentou falar com seu cirurgião várias Fora a dor, ela não tem nenhum outro problema físico, diz
vezes, apenas para ouvir que a dor passaria logo. O cirurgião, ela. O relacionamento com o marido é estável e a Sra. Agbori
ele pensou, parecia bastante áspero com ele e realmente não está muito feliz no trabalho. Toda sua família é carinhosa e
dedicou tempo para explicar as coisas. Ele não consegue amorosa e dá apoio a ela.
entender as explicações do cirurgião porque seu colega de Durante outras entrevistas, a Sra. Agbori informou
quarto no hospital estava bem imediatamente após o lombalgia por vários anos. Aos 10 anos de idade ela teve que
procedimento. Ele conversou com muitas pessoas com usar um colete de gesso por quase seis meses. Ela sabe que
problemas semelhantes e a maioria teve resultados melhores. sua coluna é “instável e corre perigo”, mas ela consegue lidar
Ele agora está pensando em processar o cirurgião. com isso; só a dor abdominal é um ônus para ela e também
Durante sua permanência, foram organizadas outras prejudica seu relacionamento sexual com o marido. Há
conversas entre ele e o cirurgião. O cirurgião pediu desculpas aproximadamente um ano ela vem tentando evitar sexo,
porque a cirurgia nesse caso não tinha trazido o resultado devido ao aumento subsequente da dor abdominal. Em outra
desejado. Embora a cirurgia fosse bastante semelhante, o Sr. entrevista, a Sra. Agbori disse que tem muito medo de
Andrew tinha uma doença muito mais progressiva e a engravidar. Ela não pode falar com ninguém sobre esse medo
104

porque todos da família querem que ela tenha filhos. Ela tem Normalmente ele cuidava de tudo; mas agora sua auto-estima
medo de não poder suportar a gravidez e de não poder cuidar está começando a ser afetada. Além disso, ele se tornou muito
adequadamente da criança. Em outras palavras, ela não irritável devido às cefaléias. Começou a implicar com coisas
seria uma boa mãe. Ela também tem medo que suas costas pequenas e depois se arrepender.
“quebrem” e ela fique confinada a uma cadeira de rodas. Outra análise psicológica revelou que o paciente sofria de
cefaléia desde a infância. Sua mãe solteira era muito doente e
O que esse relato de caso nos mostra? ele teve que assumir a responsabilidade pela família desde
Esse relato de caso mostra como um conflito muito jovem. Desde a gravidez, sua mulher tinha parado de
psicológico inato pode contribuir para tornar a dor trabalhar. Isso conflitou com seu desejo de oferecer à criança
crônica. A paciente tem um medo pronunciado da uma infância melhor do que a sua. Dar apoio financeiro à
gravidez embora ela, e sua família, queiram muito família sozinho seria muito estressante; criava sentimentos de
que ela tenha filhos. Ao mesmo tempo, ela cultiva estar sobrecarregado e ele costumava achar que não estava à
sentimentos de culpa porque não pode atender a altura de suas tarefas. Durante o aconselhamento, foram
esse desejo. A dor nesse contexto é provavelmente discutidas questões de como compartilhar responsabilidades e
intensificada pelo sentimento de culpa. sentimentos de culpa.
No contexto de uma abordagem terapêutica baseada
na família, a família é considerada um sistema de Quais conflitos podem impedir a cura?
relacionamentos em que o bem-estar de cada Um conflito importante de objetivos que pode
membro depende do bem-estar dos outros. Esse impedir o tratamento da dor crônica é o desejo de
sistema luta por homoestasia. Um membro doente se aposentar. Em geral, a incapacidade constante
da família pode, por exemplo, ter um efeito leva a longos períodos de ausência do trabalho. Se a
estabilizante quando a doença é distração de outros pessoa é forçada a voltar para o trabalho, existem
problemas, como problemas conjugais ou de mais períodos de absenteísmo. Isso pode causar
gravidez. O conflito de objetivos, aqui, pode ser que uma mudança de atitude com relação ao trabalho e
não é tão fácil para a pessoa doente “desistir da ao ambiente de trabalho, inclusive os colegas. A
doença” sem arriscar a estabilidade da família. Na restauração de uma atitude agradável com relação ao
teoria comportamental, mecanismos de trabalho parece agora impossível. Os pacientes
aprendizados operante, respondente e de modelo costumam começar a pensar que continuar a
podem ter função na cronicidade da dor. Um trabalhar vai afetar sua saúde e a aposentadoria é a
aumento no comportamento da doença, por única possibilidade para uma existência saudável. Às
exemplo, pode acontecer quando o parceiro dá vezes, empregadores e seguradoras exigem uma
suporte emocional exagerado. O comportamento da solução diferente, ou seja, se submeter a mais
doença portanto garante também a atenção e o tratamentos, o que é dispendioso para eles.
suporte emocional de terceiros, o que pode não
acontecer sem a doença. É melhor que o parceiro Como implementar um tratamento psicológico?
ajude a enfrentar a dor, por exemplo, ajudando nas De acordo com o conhecimento atual, os conceitos
atividades diárias. de tratamentos multimodais devem ser considerados
o mais rápido possível quando os riscos de
Relato de caso 4 cronificação se tornam evidentes. Uma pré-
condição para a terapia da dor psicológica são os
resultados do exame somático e do diagnóstico
Um homem de 38 anos relata piora da cefaléia desde que sua
psicológico. O objetivo é obter uma descrição
mulher engravidou. Ele não consegue entender isso, ele diz,
adequada da síndrome da dor crônica e uma análise
porque a expectativa de se tornar pai tornou-o muito feliz. O
das condições persistentes do processo da doença,
aumento da intensidade e da frequência de suas cefaléias pode
para que se possa traçar e discutir com o paciente
interferir com a vida diária, o que o deixa muito tenso. Sua
um plano individual de tratamento, junto com um
mulher se preocupa muito com ele e tenta o mais possível não
parente, se possível.
estressá-lo e assumiu mais trabalhos domésticos. Ele se
preocupa que isso possa causar problemas no relacionamento.
105

Quais são as indicações específicas para uma Zanoli G; COST B13 Working Group on Guidelines for
terapia psicológica e intervenções? Chronic Low Back Pain. European
guidelines for the management of chronic non-specific low
 Evidência de um transtorno psiquiátrico back pain. Eur Spine J 2006;15(Suppl 2):192–300.
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 Alto risco de cronificação (bandeiras [4] Kendall NA, Linton SJ, Main CJ. Guide to assessing
amarelas). psychosocial yellow flags in acute low back pain. Accident
Rehabilitation and Compensation Insurance Corporation of
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primary care: an international comparison. Spine
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Pérolas de sabedoria [7] Lovering S. Cultural attitudes and beliefs about pain. J
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[8] Magni G, Caldieron C, Rigatti-Luchini S. Chronic
 Depois do desenvolvimento de um musculoskeletal pain and depressive symptoms in the general
relacionamento de confiança, a population: an analysis of the 1st National Health and
Nutrition Examination Survey data. Pain
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ou psicológico deve ser discutida com o [9] Main CJ, Spanswick C. Pain management: an
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[12] Murray SA, Grant E, Grant A, Kendall M. Dying from
permitir que o paciente enfrente a dor.
cancer in developed and developing countries: lessons from
 As diretrizes para o tratamento de two qualitative interview studies of patients and their carers.
lombalgia crônica oferecem conselho BMJ 2003;326:368.
semelhante: manter a atividade física e as [13] Pfi ngsten M, Leibing E, Harter W, Kroner-Herwig B,
Hempel D, Kronshage U, Hildebrandt J. Fear avoidance
atividades diárias, voltar ao trabalho de
behaviour and anticipation of pain in patients with chronic low
forma permanente e evitar o back pain: a randomized controlled
comportamento cuidadoso passivo study. Pain Med 2001;2:259–66.
[1,5,17]. [14] Rippentrop EA, Altmaier EM, Chen JJ, Found EM, Keff
 O objetivo não é se livrar da dor mas al VJ. The relationship between religion/spirituality and
physical health, mental health, and pain in a chronic pain
sim dar suporte para desenvolver population. Pain 2005;116:311–21.
melhor qualidade de vida e enfrentar a [15] Rosenstiel AK, Keefe FJ. The use of coping strategies in
dor. chronic low back pain patients: relationship to patient’s
characteristics and current adjustment. Pain 1983;17:33–44.
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assessment of chronic pain patients. In: Loeser JD, Egan KJ,
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106

[17] van Tulder M, Becker A, Bekkering T, Breen A, del Real


MT, Hutchinson A, Koes B, Laerum E, Malmivaara A; COST Sítios na Web
B13 Working Group on Guidelines for the Management of
Acute Low Back Pain in Primary Care. European guidelines
http://www.fi nd-health-articles.com/msh-pain-
for the management of acute non-specific low back pain in
psychology.htm
primary care. Eur Spine J 2006;15(Suppl 2):169–91.
107

Gestão da Dor Aguda


108

Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 14
Analgesia Pós-Operatória em Cirurgias Major
Frank Boni

A que tipos de cirurgia nos Seis horas após a cirurgia, ainda não estava totalmente
consciente.
referimos?
Necessita de medicação para aliviar a dor?
Como tratar a sua dor, se a sentir? Quais os
A cirurgia pode ser agrupada em quatro categorias:
objetivos do nosso tratamento analgésico?
Categoria 1: Menor: alguns exemplos incluem
Nós devemos promover analgesia a todos os
excisão de lesões cutâneas e o aborto induzido;
doentes cirúrgicos no pós-operatório imediato, pois
Categoria 2: Intermédia: alguns exemplos
na maioria das vezes a comunicação com o doente
incluem reparação de hérnia inguinal e
não é possível e o mesmo, apesar de sentir, não
amigdalectomia;
pode queixar-se das dores. O doente deve conseguir
Categoria 3: Major: alguns exemplos incluem
tolerar procedimentos terapêuticos e de diagnóstico
tiroidectomia, histerectomia e ressecção intestinal; e
durante o período pós-operatório e ter momentos
Categoria 4: Muito invasiva: alguns exemplos
calmos de vigilância ou sono. A medicação
incluem cirurgia cardiotorácica e substituição de
analgésica não deve ter qualquer efeito prejudicial
articulações.
sobre os órgãos vitais já fragilizados.
Esta categorização baseia-se na extensão e
na complexidade da intervenção cirúrgica. Podem
Com que problemas nos deparamos durante o
existir problemas com a classificação quando são
planeamento analgésico?
usadas endoscopias e algumas novas técnicas
O doente pode não apresentar resposta ou ficar
cirúrgicas. Neste capítulo, iremos exemplificar o
confuso e não cooperar devido ao seu estado de
tratamento das categorias 3 e 4.
consciência alterado pois esteve doente durante
provavelmente 2-3 semanas e foi sujeito a vários
Descrição de caso - 1 tipos de tratamento.
A septicemia causa disfunções do trato
Um homem de 18 anos foi submetido a uma pequena gastrointestinal, disfunções cardíacas, respiratórias,
ressecção intestinal devido a perfurações tifóides múltiplas. renais e outras complicações como o choque
hipovolémico, cardiogénico ou séptico.
109

Desequilíbrios no volume de líquidos e eletrólitos recursos têm uma exposição limitada a opióides e
bem como os problemas nutricionais são muito podem ser muito sensíveis aos mesmos. Isto aplica-
comuns nestes doentes. se em particular a doentes muito afetados, como o
do presente caso. As insuficiências renal e hepática
Efeito da cirurgia e da anestesia podem causar uma redução do metabolismo e da
O sistema nervoso simpático pode ter sido excreção, aumentando assim os efeitos cumulativos
estimulado ao extremo pela doença, pelo que dos medicamentos.
qualquer tensão adicional pode causar uma
descompensação no doente, podendo este piorar Que outras medidas especiais podem ser
temporariamente no período pós-operatório devido tomadas para tratar esta dor?
ao stresse adicional da cirurgia e mesmo da Idealmente, os doentes de risco como este
anestesia. necessitam de suporte respiratório e cardiovascular
numa unidade de cuidados intensivos. Uma vez que
Opções de métodos para o alívio da dor a maioria dos hospitais em países de baixos recursos
A gestão pós-operatória da dor deve começar com não dispõem destas instalações, deve proceder-se
medicamentos administrados durante o com extremo cuidado ao administrar qualquer
procedimento cirúrgico. analgésico e deve ser efetuada regularmente uma
No entanto, a infiltração anestésica local não está monitorização rigorosa das componentes
indicada para todos os doentes. Infiltrações cardiovascular, respiratória e urinária. As
anestésicas na própria lesão estão contraindicadas manifestações do sistema nervoso central, como a
pois aumentam o risco de infeção , além do que agitação ou o coma, tornam difícil a interpretação
apresenta uma eficácia analgésica reduzida com dos resultados da sedação. A recuperação adiada da
maior probabilidade de efeitos indesejáveis. consciência pode também dever-se aos efeitos
Para efeitos analgésicos e antipiréticos após cumulativos de sedativos e opióides de ação
a cirurgia, é preferível administrar paracetamol prolongada utilizados para sedação e ventilação.
(acetaminofeno) por via intravenosa, intramuscular A mensagem neste caso seria: o débil estado
ou rectal do que anti-inflamatórios não esteróides geral do doente e o receio de hipotensão não devem
(AINE) ou dipirona, devido ao elevado risco de ser motivos suficientes para evitar o uso de
falência multiorgânica por estes últimos fármacos. opióides. O facto de o doente não se queixar não
Estes doentes necessitam de pequenas doses significa que não sente dor! Utilizar doses
intermitentes e regulares ou perfusões contínuas de analgésicas mais baixas inicialmente e aumentar as
tramadol, fentanil, morfina ou de quaisquer outros mesmas de acordo com a necessidade, o recurso a
opióides adequados disponíveis em combinação associação entre analgésicos e uma boa
com os analgésicos não-opióides mencionados monitorização do doente são os elementos chave
acima. Existem poucas evidências de que um para uma gestão segura e bem-sucedida da dor.
opióide seja superior a outro no contexto do pós-
operatório desde que sejam usadas doses Descrição de caso - 2
equipotentes e a aplicação seja realizada de acordo
com farmacocinética específica. Se o médico estiver
Um homem de 75 anos será submetido a uma cirurgia de
muito preocupado com a hipotensão ou a depressão
substituição por prótese total em ambos os joelhos. Como gerir
respiratória, podem ser administradas pequenas
a sua dor no período perioperatório?
doses de cetamina de forma intermitente, sob a
forma de perfusão contínua, gota a gota ou com
Quais os objetivos do nosso tratamento
bombas de perfusão. Pequenas doses de analgésicos
analgésico?
deverão reduzir os efeitos indesejáveis e os efeitos
Este doente não deve sentir dores, nem mesmo ao
simpáticos poderão até ser benéficos. Deve
movimento, para que possa ser submetido o mais
salientar-se que todos os medicamentos têm de ser
rápido possível a fisioterapia no período pós-
cuidadosamente titulados, de acordo com a
operatório. Eventuais comorbilidades pré-existentes
resposta. Muitos doentes em países de baixos
110

devem ser consideradas . Devem ser evitadas as Quais são as melhores opções analgésicas para
complicações derivadas da interação farmacológica e este doente?
da administração de diversos medicamentos. Para o alívio da dor durante e imediatamente após a
cirurgia, a anestesia regional é provavelmente a
Qual a incidência e a gravidade da dor pós- melhor opção para este grupo de doentes. A
operatória em doentes submetidos a uma duração da cirurgia, a cooperação dos doentes e as
substituição articular? dificuldades técnicas, assim com uma terapêutica
As substituições de articulações são muito invasivas anticoagulante, podem exigir uma anestesia geral. A
e portanto costumam ser muito dolorosas. A maior anestesia espinal com medicamentos anestésicos
parte destes doentes sentiu muita dor, mesmo antes locais de longa duração, juntamente com
da cirurgia e já está sob muitos tratamentos medicamentos intratecais, constitui uma forma de
incluindo diversas medicações. A sua dor costuma a anestesia simples e eficaz, e ainda um bom método
ser moderada (Categoria 3) ou forte (Categoria 4) e analgésico para o pós-operatório. Este método
suficientemente forte para limitar os movimentos e adapta-se perfeitamente a qualquer país de baixos
as atividades normais. Existem outros problemas recursos, uma vez que os doentes que recebem este
associados como a idade avançada e a falta de tipo de anestesia necessitam de menos recursos e
mobilidade. Muitos doentes são submetidos a cuidados do que os doentes que recebem anestesia
cirurgia como último recurso para deixarem de geral. Pequenas doses de diamorfina administradas
sentir dor. Logo, podemos prever que, quando não por via intratecal associada aos medicamentos
tratados corretamente, a maioria irá sofre dores anestésicos locais podem constituir uma boa
insuportáveis após a cirurgia, em particular quando analgesia durante as primeiras 24 horas do período
os fisioterapeutas começam a mobilizá-los passados pós-operatório. No entanto, a diamorfina pode não
um ou dois dias após a cirurgia. estar disponível e a morfina pode ser uma
alternativa. Contudo, o profissional de saúde deve
Que outros problemas devemos considerar no usar apenas morfina sem conservantes no espaço
que diz respeito ao tratamento analgésico? intratecal ou epidural e deve ter conhecimento dos
Geralmente, estes doentes estão a tomar analgésicos problemas associados ao uso da morfina, que
que podem incluir combinações de acetaminofeno incluem depressão respiratória de efeito retardado,
(paracetamol), AINE e opióides. Alguns podem prurido, náuseas, vómitos e retenção urinária.
estar a tomar esteróides e outros medicamentos para Os doentes que tomam aspirina e alguns
a artrite reumatóide e outras doenças. Estes anticoagulantes profiláticos podem receber anestesia
medicamentos podem estar a ser tomados há muito espinal, desde que os perfis hematológicos sejam
tempo, pelo que é comum ocorrerem efeitos mantidos dentro de intervalos normais e se proceda
secundários ou interações medicamentosas durante com cautela relativamente ao momento e ao uso de
o período perioperatório. Os doentes, heparinas profiláticas. O clopidogrel e alguns
principalmente os idosos, podem ainda sofrer de fármacos mais recentes usados em países mais ricos
patologias multi-sistémicas consideráveis, pelo que causam mais problemas e têm de ser interrompidos
podem já estar a tomar medicamentos para os no mínimo 7 dias antes da cirurgia e da anestesia
sistemas cardiovascular, nervoso, respiratório e regional. A punção dural não deve ser aplicada nas
urogenital. Podem tomar, por exemplo, duas horas que se seguem à administração de
anticoagulantes, como a varfarina, a aspirina e heparina de baixo peso molecular (HBPM), como a
qualquer uma das heparinas, os quais podem afetar enoxaparina. A heparina não fracionada é mais
os bloqueios anestésicos regionais e locais. acessível mas não é tão eficaz quanto a HBPM na
A posição socioeconómica destes doentes é prevenção de trombose venosa profunda nestes
muito importante pois estes doentes podem não ter doentes.
apoio familiar ou financeiro. Se sofrerem de No entanto, a anestesia espinal de dose
demência e não conseguirem comunicar única pode não ser apropriada para uma
adequadamente, a prescrição analgésica pode tornar- substituição bilateral de joelho neste doente, pelo
se muito difícil. que pode ser administrada uma anestesia combinada
111

espinal-epidural (CSE). Este tratamento é mais Estes são apenas dois exemplos de cirurgias
dispendioso e as incidências de complicações com invasivas com que nos podemos deparar em países
anticoagulantes são mais elevadas. Se a duração da de baixos recursos. Existem muitas outras
cirurgia ou o estado do doente não favorecerem intervenções cirúrgicas, tipos de doentes e
uma técnica regional, deve ser cuidadosamente problemas que poderão surgir no contexto da
aplicada uma anestesia geral. Nesta situação, cirurgia major analgesia pós-operatória nestes países.
opióides fortes combinados com AINE podem Passamos a expor alguns desses problemas.
proporcionar uma boa analgesia intra-operatória e
pós-operatória. Porque que motivo a
As bombas de infusão de seringa e
volumétricas são dispendiosas e de difícil analgesia pós-operatória
manutenção, mas os hospitais de grandes dimensões
deverão dispor das mesmas para analgesia
deve ser alvo de reflexão?
controlada pelo doente (PCA) ou perfusões
contínuas em cirurgias como as de substituição Normalmente, as grandes intervenções cirúrgicas
articular. O acetaminofeno deve ser administrado causam dor e danos consideráveis nos tecidos.
regularmente, quer por via intravenosa, quer por via Tornou-se possível realizar grandes cirurgias de
oral, juntamente com analgésicos orais como a forma segura e sem dor apenas após a introdução da
codeína, o tramadol ou AINE, logo que o doente anestesia moderna, há cerca de um século. No
puder ingerir medicação oral. Podem ser prescritos período perioperatório, algumas mudanças
antieméticos, antiácidos e laxantes ligeiros, fisiopatológicas causadas pela dor ameaçam o bem-
conforme necessário. Atualmente, o acetaminofeno estar e a reabilitação do doente. A dor faz parte do
intravenoso é mais acessível e conveniente do que o «complexo de resposta à agressão» destinado a
acetaminofeno rectal e deve ser usado com maior preparar o doente para a «luta ou fuga». A analgesia
frequência, mesmo em países de baixos recursos. administrada de forma insuficiente pode ter alguns
Neste momento, é provavelmente o analgésico mais efeitos indesejáveis. Quando decidimos tratar a dor,
seguro para fins múltiplos. temos de considerar as implicações financeiras
envolvidas. Assim, é preciso compreender o
Quais as funções do doente, dos familiares e do processo da dor e usar os recursos disponíveis de
pessoal clínico tratamento analgésico deste forma adequada e sensata, onde quer que se
doente? trabalhe.
Planos perioperatórios de gestão da dor devem ser
cuidadosamente implementados, com bastante Algumas perguntas
antecedência, principalmente para cirurgias invasivas
como as relatadas. O cirurgião, o anestesista e a
frequentes relativas à dor
equipa especializada na dor aguda (se disponível) após uma cirurgia major:
devem envolver o doente e os familiares no
processo pré-operatório, a fim de analisarem as
opções. Formulários especiais, instruções escritas e  É comum a dor após uma cirurgia major?
diretrizes facilitam o processo para os doentes e a  Qual a natureza da dor e como medir a sua
equipa hospitalar. Os sistemas de classificação intensidade?
apropriados e o uso de equipamento, como as  Quais as consequências de uma analgesia
bombas PCA, devem ser experimentados com o inadequada após uma cirurgia major?
doente antes da cirurgia. Em doentes não  Quais os objetivos da analgesia no pós-
cooperativos ou com demência e que não tenham operatório?
apoio familiar, devem ser usadas as técnicas mais  De que forma os doentes e o tipo de
seguras e apropriadas e proceder-se com a máxima cirurgia afetam a nossa gestão da dor?
precaução durante a sua monitorização.
112

 Os doentes recém-nascidos e inconscientes permitindo deliberadamente que alguns doentes


sentem dor após uma cirurgia? sentissem dor após uma cirurgia major.
 Quais os métodos de terapêutica da dor
disponíveis após uma cirurgia major? Que tipo de dor é causada
 Quais as funções do doente, familiares e
equipas médicas?
por um traumatismo
 Justificam-se os custos e riscos acarretados cirúrgico?
pelo tratamento analgésico da dor?
 O uso de opióides no pós-operatório causa Todos os doentes (à exceção de alguns com
dependência mais tarde? fisiologia anómala) sentem dor aguda devido a
 Deve evitar-se o uso de opióides fortes em danos reais nos tecidos. A maioria dos peritos
doentes de risco e muito comprometidos ? designa esta dor como «dor nociceptiva». Os danos
 O limiar de dor é mais elevado nos doentes nos tecidos provocam estímulos químicos e
que vivem em países menos ricos? nervosos aos níveis local e sistémico, o que pode
causar várias respostas complexas.
Existem muitas mais perguntas, algumas das A dor pode dever-se a incisões cirúrgicas,
quais foram parcialmente respondidas nos dois manipulação dos tecidos, lesões durante as cirurgias
cenários apresentados anteriormente. No entanto, ou ao posicionamento do doente. Por outro lado, a
estas perguntas podem ser generalizadas de modo a dor pode não ter nada que ver com a cirurgia ou o
abranger uma maior gama de doentes e problemas posicionamento na mesa cirúrgica. Pode, por
que se colocam em países de baixos recursos. exemplo, dever-se a artrite pré-existente, dor
torácica ou cefaleia causadas por qualquer outro
Qual é a incidência da dor motivo.
Seja qual for a causa ou a natureza da dor, é
após uma cirurgia major? a sua intensidade que mais interessa ao doente. Uma
classificação simples e frequentemente usada inclui
Estimou-se a presença de dor moderada em cerca quatro níveis de dor:
de 33% dos doentes e de dor forte em 10% dos Sem dor Categoria 0
doentes após uma cirurgia major. Se todos os Dor ligeira Categoria 1
doentes com dor moderada e forte necessitarem de Dor moderada Categoria 2
tratamento, estes valores sugerem que apenas cerca Dor forte Categoria 3
de metade dos doentes necessitam de analgesia pós- É geralmente aceite que as categorias 0 e 1 podem
operatória após uma cirurgia major. Uma análise não exigir tratamento, mas que as categorias 2 e 3
mais atenta às publicações, que provêm na maior devem ser tratadas, uma vez que podem causar
parte de países desenvolvidos, revela que estes morbilidade significativa.
valores dizem respeito a doentes que haviam
recebido analgesia durante e após as cirurgias e que, Que consequências da dor
ainda assim, sentiam dor. Uma grande proporção
dos doentes em países desenvolvidos não se queixa são de esperar após uma
da dor – embora possam estar em sofrimento – por cirurgia major?
diversos motivos como por exemplo culturais.
Na ausência de dados fiáveis relativamente
aos países de baixos recursos, podemos apenas A dor, como parte da chamada «síndrome de stresse
presumir que a maior parte dos doentes sente dor pós-operatório», pode causar uma morbilidade
moderada a forte após uma cirurgia major. A considerável ou até mesmo mortalidade. A dor é
incidência real da dor pós-operatória não tratada geralmente acompanhada de respostas hormonais,
pode nunca vir a ser conhecida, uma vez que não metabólicas e psicológicas ao traumatismo. Alguns
seria ético realizar estudos devidamente controlados exemplos incluem as alterações neuroendócrinas
113

que envolvem respostas hipofisárias-adrenais, o que


pode ter profundos efeitos no organismo. Alguns
É necessário medir a dor no
destes efeitos prejudiciais encontram-se resumidos pós-operatório, e como
em seguida.
fazê-lo?
Sistema cardiovascular
A dor pode causar diferentes tipos de arritmias, É muito útil, mas nem sempre possível, avaliar a dor
hipertensão causadora de isquémia miocárdica, e no período pós-operatório. Os métodos simples e
insuficiência cardíaca congestiva, em particular nos fiáveis de avaliação da dor, como as escalas
doentes idosos e naqueles com doença cardíaca. analógicas verbais, visuais ou numéricas, não
deverão ser difíceis de usar de modo regular, mesmo
Sistema respiratório nos ambientes mais pobres. A avaliação deve
A taquipneia e um baixo débito respiratório devidos permitir determinar a natureza e a intensidade da
a esforços respiratórios dolorosos, a amplitude dor e ajudar-nos a iniciar e posteriormente avaliar o
torácica diminuída e a retenção de expetoração tratamento.
podem causar atelectasia ou infeções torácicas. No entanto, poderá ser difícil quantificar a
dor, uma vez que é subjetiva e única em cada
Sistema gastrointestinal indivíduo. É preciso conseguir comunicar com os
O esvaziamento gástrico retardado pode causar doentes e medir as suas respostas, pelo que os
náuseas, vómitos e distensão intestinal. fatores avaliador e doente são importantes. A fim de
melhorar a exatidão dos vários métodos de
Efeitos metabólicos avaliação disponíveis, é preciso educar os doentes e
A estimulação simpática pode causar hiperglicemia e as equipas médicas quanto à sua utilização. De
anomalias ácido-base, como acidose respiratória ou preferência, a educação e a prática do doente no uso
alcalose, que podem causar desequilíbrios destes métodos deve ocorrer no período pré-
eletrolíticos e retenção de líquidos. operatório.

SNC e efeitos socioeconómicos A avaliação da dor com uma


A dor pode fazer que os doentes não cooperem e
pode causar ansiedade, depressão ou agitação. Um escala analógica é suficiente
internamento prolongado no hospital pode criar
tensão nos indivíduos, nas famílias e nas instituições
em todas as situações?
de saúde.
Por vezes, não é possível utilizar os métodos de
Consequências secundárias da dor avaliação mais comuns, como a escala visual
Existem também alguns efeitos que, inicialmente, analógica, ou estes podem não ser suficientes em
podem não parecer estar associados à dor. A dor determinadas situações. Nos bebés e com doentes
retarda a mobilização dos doentes para deixarem de inconscientes ou que não cooperam, não pode ser
estar acamados, aumentando assim o risco de usada a escala analógica. Em crianças em idade pré-
complicações pós-operatórias, como o escolar e escolar, podem ser usadas escalas
tromboembolismo, as escaras (úlceras de pressão) e modificadas, mas é preciso confiar em parâmetros
diversas infeções, como infeções torácicas, do trato fisiológicos, como as pulsações, a respiração, o
gastrointestinal e das feridas. Estas podem ser choro, o suor, as limitações nos movimentos e
denominadas consequências secundárias. muitos outros. Infelizmente, a dor não é a única
causa destas alterações, pelo que devem ser
interpretadas com precaução.
Em contextos como o das unidades de
cuidados intensivos, os dados fisiológicos podem
ser os únicos métodos que poderão ser usados. A
114

compra, a manutenção e o funcionamento do É preferível recorrer a mais de uma técnica ou


equipamento necessário podem ser muito fármaco para alcançar os objetivos pretendidos.
dispendiosos.
O controlo eficaz da dor
Quais são os nossos
aguda tem efeitos a longo
objetivos no tratamento da
prazo?
dor pós-operatória?
Embora ainda não se compreenda integralmente o
Os profissionais de saúde querem tratar a dor de desenvolvimento da dor crónica após a cirurgia, já
modo a prevenir os efeitos prejudiciais dispomos de muitos dados sobre a incidência da dor
mencionados anteriormente. É desejável que os crónica após uma cirurgia e sobre formas de
doentes se consigam mobilizar rapidamente, de prevenir a sua ocorrência. Embora os números
modo a deixarem de estar acamados. Os doentes tenham tendência para variar após a maioria dos
devem conseguir tolerar a fisioterapia, a sucção tipos de cirurgia, cerca de um em cada 10-20
traqueal e a tosse, bem como procedimentos doentes sofre dor crónica após a cirurgia e, para
terapêuticos e de diagnóstico potencialmente metade destes, a dor é suficientemente forte para
dolorosos. que necessitem de tratamento. Sabemos agora que o
Os doentes querem respirar, falar, caminhar controlo eficaz da dor, seja qual for o modo como é
e desempenhar outras funções tão rápida e alcançado, reduz o número de doentes que sentem
confortavelmente quanto possível. Também querem dor crónica após uma cirurgia major.
desfrutar de períodos calmos e ininterruptos de Quando os fármacos são usados de forma
descanso e sono. Quando se encontram sob correta, está comprovado que apenas uma parcela
tratamento para a dor, não querem sentir-se insignificante de doentes a receber opióides para a
demasiado sonolentos, nem ter náuseas, vómitos ou dor aguda pós-operatória desenvolverá algum tipo
sofrer incómodos como a obstipação. de dependência a esta medicação.. Assim sendo, não
Seja qual for o método analgésico escolhido, existe qualquer motivo para negar opióides fortes
este deve ser: aos doentes devido ao receio de dependência,
 Eficaz, conforme acontece em muitos países desenvolvidos.
 Seguro e Ironicamente, muitos doentes nestes países pouco
 Económico. toleram a euforia, a sonolência e outros efeitos
Deve tentar-se iniciar a analgesia antes de a secundários causados pelos opióides. Alguns
dor se tornar intolerável e mesmo de estar instalada, doentes em países de baixos recursos também não
pois é muito mais difícil tratar a dor uma vez que o aceitariam os opióides no pós-operatório quando
ciclo álgico esteja instalado. Depois de conseguir lhes dada essa opção.
uma boa analgesia, esta deve ser mantida enquanto
o doente dela necessitar. Após uma cirurgia major, Como monitorizar os efeitos
as primeiras 48 horas são críticas, mas alguns
doentes necessitam de analgesia durante semanas. A
secundários dos analgésicos
analgesia pode ser iniciada com opióides fortes administrados?
administrados por via intravenosa, com ou sem
técnicas anestésicas regionais e locais, e diminuída
Ao administrar analgesia sistémica, preocupa-nos
gradualmente para medicamentos mais fracos, por
em primeiro lugar o uso de opióides. Os efeitos
via oral ou rectal, durante vários dias. Desaconselha-
secundários com que nos devemos preocupar mais
se a administração intramuscular de medicamentos
são os efeitos respiratórios. Nas fases iniciais, a
imediatamente após as cirurgias, uma vez que os
depressão respiratória pode ser difícil de detetar de
resultados são imprevisíveis e difíceis de controlar.
forma fiável. Uma vez que a sedação excessiva
115

acontece geralmente antes da depressão respiratória, problemática após um uso prolongado de opióides,
se monitorizarmos rigorosa e regularmente a pelo que podem ser usados laxantes ligeiros, como a
sedação, devemos conseguir prevenir a depressão lactulose.
respiratória. Um nível de sedação simples como o Os problemas renais, hemorrágicos e outros
descrito em seguida deve ser usado em todos os podem piorar com o uso de anti-inflamatórios não
doentes a tomar opióides: esteroides e outros analgésicos. Os doentes devem
Categoria 0 doente bem acordado ser monitorizados mais rigorosamente caso exista
Categoria 1 ligeira sonolência, fácil de algum motivo de suspeita com base na história
despertar clínica e nos exames.
Categoria 2 sonolência moderada, fácil
de despertar Quais as opções de
Categoria 3 forte sonolência, difícil de
despertar tratamento da dor
despertar
Categoria 4 adormecido, mas fácil de
disponíveis?
Por conseguinte, a chave para a utilização segura de opióides
em países de baixos recursos consiste em monitorizar muito Analgésicos periféricos
atentamente o nível de sedação e evitar a sedação de Categoria Os analgésicos periféricos são por vezes descritos
3. A monitorização regular, por exemplo por um enfermeiro, como analgésicos fracos a moderados e podem ser
pode ser considerada tão segura quanto a monitorização com usados por via intravenosa, intramuscular, rectal ou
equipamento técnico! oral. Alguns exemplos são o acetaminofeno
(paracetamol), o ibuprofeno e o diclofenac. Embora
Que outros parâmetros possam não conseguir controlar a dor por si só após
uma cirurgia major, são muito úteis combinados
devem ser medidos nas entre si ou com opióides e outras técnicas
analgésicas. Um dos principais progressos na gestão
enfermarias após uma da dor no pós-operatório é a utilização regular de
cirurgia major? analgésicos periféricos após todas as categorias de
cirurgia.

Após todas as cirurgias major, deve ser Anestésicos locais e regionais


monitorizado o seguinte em todos os doentes: Estes incluem infiltrações nos locais da abordagem
 Nível de consciência cirúrgica, bloqueios de campo, bloqueios nervosos e
 Posição e postura do doente bloqueios regionais dos membros e do tronco. Estes
 Ritmo e profundidade da respiração são particularmente úteis nas primeiras 12 a 24
 Tensão arterial, pulso e pressão venosa horas, quando existe uma séria preocupação
central, quando indicado relativamente às complicações cardiovasculares e
 Estado de hidratação e produção de urina respiratórias.
 Todos os medicamentos administrados
juntamente com os analgésicos Analgésicos «centrais»
Os opióides são os mais úteis deste grupo, mas, em
 Atividade e satisfação dos doentes
determinadas situações, os anestésicos gerais, como
 A história clínica, os exames e uma boa
a cetamina intravenosa em doses «sub-anestésicas»
manutenção dos registos revelam eventuais
podem ser usados para o alívio da dor sem colocar
problemas.
os doentes em estado de inconsciência.

Complicações como as náuseas e os vómitos


podem ser perturbadoras e devem ser controladas
com antieméticos. A obstipação pode ser
116

«Co-analgésicos» A dor forte provoca uma elevada estimulação


Fármacos como os antidepressivos e adrenérgica, o que tem tendência para manter a
anticonvulsivos são usados frequentemente na dor pressão arterial temporariamente elevada. Esta
crónica, mas não são muito úteis na dor aguda. Os ocorrência tem efeitos negativos sobre o doente
esteroides intravenosos, como a dexametasona, devido à consequente taquicardia e ao aumento do
estão a tornar-se mais populares para o uso consumo de oxigénio, bem como ao bloqueio da
antiemético após uma cirurgia, mas ainda não foi circulação periférica e renal. Quando a dor
comprovado se reduzem de forma significativa a desaparece, estes doentes podem revelar a sua
dor pós-operatória. pressão arterial «real» e tornar-se hipotensos. Por
este motivo, algumas equipas médicas evitam os
Métodos não farmacológicos
opióides neste tipo de doentes. A hipotensão deverá
O cuidado e afeto, as aplicações de calor e frio, as
levar os profissionais de saúde a tratar o doente de
massagens e o bom posicionamento do doente
forma mais agressiva e a corrigir as causas reais. A
podem reduzir a dor após uma cirurgia e não
morfina causa libertação de histamina, o que pode
representam um custo acrescido no tratamento.
causar vasodilatação, mas esta é geralmente ligeira e
Estes métodos devem ser mais usados, sempre que
benéfica para o coração.
possível. Atualmente, a estimulação nervosa elétrica
Algumas equipas hospitalares que cuidam de
transcutânea (TENS), a Acupuntura e outros
doentes muito comprometidos preferem observar
métodos não são considerados clinicamente
um doente a reagir e a manifestar sinais de vida do
vantajosos após uma cirurgia major.
que sem dor e a dormir tranquilamente. Alguns
Invariavelmente, os seguintes elementos amarram os doentes às camas quando estes
determinarão o tipo de métodos a escolher começam a debater-se. Outros recorrem a sedativos
 Tipo e estado do doente e hipnóticos, como o diazepam ou mesmo a
 Tipo de cirurgia e período de recuperação clorpromazina. Muitos doentes ficam agitados
 Formação e experiência do anestesista e porque sentem dor ou têm a bexiga cheia. Sedar ou
demais profissionais amarrar estes doentes pode ser mais prejudicial do
que benéfico e não deve substituir um alívio
 Recursos disponíveis para tratar e
adequado da dor.
monitorizar o doente

Quais as alternativas farmacológicas O limiar de dor é superior


disponíveis? em doentes de países mais
Os fármacos incluídos no quadro são, na sua
maioria, os fármacos da mais recente lista de pobres?
medicamentos essenciais proposta pela Organização
Mundial de Saúde (OMS). Os fármacos assinalados
Não existem evidências concretas desta suposição.
com asterisco não estão incluídos nesta lista, mas Embora as expressões e as reações à dor possam
podem ser muito úteis. Isto aplica-se à diamorfina e
diferir de uma região para outra, não se pode
a alguns outros fármacos mencionados no texto.
recorrer a estas generalizações acerca da dor após
uma cirurgia major. Muitos doentes nos países
Os doentes mais desenvolvidos podem estar mais expostos aos
comprometidos devem analgésicos, pelo que as suas expectativas
relativamente ao alívio da dor podem ser mais
receber analgésicos fortes elevadas comparativamente com doentes de países
em desenvolvimento. Por conseguinte, podem
no pós-operatório? solicitar mais medicamentos e conseguem tolerá-los
melhor. No entanto, a dor não respeita raças nem
Muitos doentes não são devidamente reanimados e classes, e cada indivíduo deve ser tratado com um
podem sofrer hipovolemia após uma cirurgia major. ser único. A definição moderna de dor reconhece a
117

função do ambiente, da cultura e da educação de


cada pessoa e estes elementos devem ser tidos em
consideração durante a avaliação ou gestão da dor,
independentemente do que a causa.

Fármaco Dose Via de administração Frequência


Acetaminofeno 0,5-1 g i.m., i.v., rectal 3 ou 4x/dia
Diclofenac* 50-100 mg i.m., rectal 2 ou 3x/dia
Ketorolac* 10-30 mg i.m. ou i.v.
Morfina 2,5-15 mg i.m A cada 4-6 horas
0,5-2 mg i.v. Titular
2 mg Epidural 1 x/dia
0,1-0,2 mg, preferível Intratecal Apenas uma dose
recomendar titulação
Petidina (meperidina) 25-150 mg i.m. A cada 3-4 horas
5-10 mg i.v. Titular
10-25 mg Intratecal Apenas uma dose
Dipirona* 10-15 mg/kg i.m., i.v. 3x/dia
Cetamina 0,25-0,5 mg/kg i.m., i.v., epidural Titular dose i.v.
Bupivacaína 1 mg/kg Infiltração na lesão Fim da cirurgia
1-2 mg/kg Epidural ou caudal
Tramadol 50-100 mg Oral/i.v. A cada 8 horas,
conforme necessário
Hioscina butilbrometo 20-40 mg, como Oral/i.v. A cada 8 horas,
antiespasmódico conforme necessário
gastrointestinal ou
urogenital
Abreviaturas: i.m., intramuscular; i.v., intravenoso; * Não incluído na lista de medicamentos essenciais da
OMS, mas pode ser útil em países de baixos recursos

Como organizar a gestão da


dor após uma cirurgia major Os serviços de dor aguda podem variar, mas
partilham algumas estruturas básicas:
Serviços mínimos para o máximo efeito  Os doentes e o público em geral precisam de
Cada hospital, independentemente do seu tamanho ser instruídos quanto à dor aguda e à sua
ou da distância a que se encontra, deve esforçar-se gestão no período perioperatório.
por oferecer um alívio eficaz da dor após cada Geralmente, não é necessário o respetivo
cirurgia major. O alívio da dor pode exigir uma consentimento, exceto para efeitos
quantidade mínima de pessoal, medicamentos e experimentais e de investigação.
equipamento. O tipo de serviço especializado na dor  Têm de ser desenvolvidos protocolos e
aguda difere consoante as circunstâncias. A OMS e diretrizes para toda a equipa de saúde
outros organismos mundiais reconhecem a  Deve ser incentivado ao máximo o recurso a
necessidade de diretrizes mundiais como as analgésicos ligeiros a moderados, como o
desenvolvidas para a dor crónica oncológica. Estas acetaminofeno, os AINE e a dipirona. As
diretrizes ajudam os países, em particular aqueles vias intravenosa, rectal ou oral podem ser
com menos recursos, a realizar auditorias e a usadas de forma gradual, mediante aumento
comparar os resultados com outros países. ou redução, dependendo das circunstâncias.
118

 A infiltração anestésica intraoperativa local artificialmente a tensão arterial do doente


realizada pelo cirurgião é geralmente eficaz pois é mais prejudicial do que benéfico.
no período imediatamente após a cirurgia e  Devem existir programas de gestão de
deve ser usada sempre que exequível. pessoal que ofereçam formação para tratar a
 As técnicas locais e regionais de alívio da dor dor de forma segura, a todos os níveis, e
têm uma função importante em qualquer especialmente em doentes de elevado risco
serviço especializado na dor aguda e devem após uma cirurgia major.
ser incentivadas.
 Os analgésicos opióides devem estar Quais os equipamentos e
disponíveis e prontos a usar e devem ser
administrados regularmente.
medicamentos necessários
 Os antagonistas dos fármacos, os para o tratamento da dor no
medicamentos, o equipamento de
reanimação e uma boa monitorização são pós-operatório?
essenciais em todas as instituições onde seja
realizada uma cirurgia major.  Simples agulhas hipodérmicas, ou de
 O serviço especializado na dor aguda deve preferência cânulas e seringas, ou ainda
organizar visitas regulares às enfermarias, tubos de perfusão intravenosa podem ser os
assegurar serviços de emergência em caso de únicos materiais necessários para tratar a
complicações, realizar investigação e efetuar maioria dos doentes. As bombas de seringa
auditorias quanto à gestão da dor. e de perfusão são cada vez mais usadas para
a analgesia contínua controlada pelo doente
Serviços de gestão avançada da dor em ou por um enfermeiro. Mais cedo ou mais
hospitais de ensino e outras unidades tarde, os preços e a disponibilidade destas
especializadas bombas deverão melhorar e fazer que os
 Estes serviços devem ter como objetivo países de baixos recursos consigam obtê-las.
dispor de uma unidade especializada na dor  Deverá existir uma vasta gama de
aguda, com diretrizes e protocolos, para medicamentos que reflita a variedade de
abranger crianças e adultos nos cuidados de doentes e intervenções executadas. A lista de
emergência e de acidentados, em blocos medicamentos essenciais da OMS pode não
operatórios e em salas de recobro, para além ser suficiente para gerir a dor após cirurgias
das enfermarias gerais. major, mesmo em países de baixos recursos.
 Pelo menos um ou dois médicos e um  A correta monitorização do doente deve
enfermeiro identificado especializado na dor incluir equipamento de monitorização
devem conseguir acompanhar casos pós- respiratória, incluindo oximetria de pulso,
operatórios difíceis e problemáticos, bem monitorização cardiovascular e gráficos de
como gerir eventuais complicações entradas/saídas de líquidos.
emergentes da dor pós-operatória ou do  No entanto, deve realçar-se que os melhores
respetivo tratamento. monitores são os médicos, os enfermeiros e
 Para algumas das cirurgias major ou para outros profissionais de saúde, com a ajuda
doentes muito afetados, são necessárias uma dos familiares e de outras pessoas próximas.
sala de recobro, uma unidade para doentes Simples gráficos de observação da sedação e
altamente dependentes e, se possível, uma de alerta precoce para eventos adversos
unidade de cuidados intensivos, de modo a ajudam a gerir até os doentes mais difíceis
tratar a dor de forma eficaz no pós- nas áreas dotadas de menos recursos.
operatório imediato. Não é aceitável
basearmo-nos nas respostas simpáticas
causadas pela dor para aumentar
119

Que considerações há a ter em usar opióides, mas estes podem ser


usados de forma segura.
sobre a dor após  Abdómen agudo. Os analgésicos podem
ocultar sinais abdominais no período
determinadas grandes perioperatório.
intervenções cirúrgicas?  Os bloqueios regionais e nervosos podem
ser usados em inúmeras situações clínicas.
 A falência multiorgânica deve ser
Cirurgia geral (por ex. tiroidectomia, ressecções
considerada ao selecionar e titular as
gástricas e intestinais, grandes queimaduras e
dosagens.
traumatismo abdominal)
Cirurgias pediátricas invasivas (por ex. reparação de
Os doentes sofrem dor moderada a forte
lábio leporino com dor forte, cirurgia pilórica e
(Categoria 2-3). Não interessa se são casos de
intestinal com dor moderada a forte, reparação de
emergência ou eletivos. Deve proceder-se com
malformações anais e urogenitais com dor forte,
maior precaução nos casos de emergência, uma vez
exonfalia e gastrosquise com dor forte, e cirurgia
que os medicamentos analgésicos sistémicos podem
torácica, como hérnia diafragmática e fistulas
ocultar sintomas e sinais de doenças.
traqueoesofágicas com dor forte)
 Os antiespasmódicos, como o butilbrometo Os problemas associados à gestão dos
de hioscina, são eficazes nas dores doentes pediátricos incluem:
provocadas por cólicas.
 Diferenças técnicas, fisiológicas e
 A cirurgia geral abrange um vasto conjunto bioquímicas relativamente aos doentes
de intervenções e técnicas de alívio da dor. adultos.
Os bloqueios anestésicos locais e regionais
 As doses farmacológicas e os sistemas de
são muito pouco aproveitados.
administração exigem formação específica.
Obstetrícia e ginecologia (por ex. histerectomia
 As funções dos pais e da equipa médica são
abdominal, cesarianas, exenterações pélvicas por
mais importantes do que nos adultos.
cancro)
Os doentes sofrem dor moderada a forte  A suposição segundo a qual os recém-
(Categoria 2-3). As considerações a ter incluem: nascidos não necessitam de receber alívio
para a dor deixou de ser válida.
 Primeiro trimestre: selecionar
Intervenções cardiotorácicas (geralmente, não existem
cuidadosamente os medicamentos e evitar
instalações para bypass cardiopulmonar nos países de
aqueles com efeitos indesejáveis ao feto.
baixos recursos, mas, ainda assim, pode ser
 Antes do parto por cesariana, evitar a
necessário efetuar toracotomias e ressecção
utilização de opióides, para proteger o feto.
pulmonar devido a tuberculose ou tumores
 A trombose venosa profunda, hemorragias e torácicos. Os traumatismos torácicos, a reparação
outros problemas hematológicos interferem de aneurismas, a cirurgia esofágica, bem como
com o tratamento analgésico. algumas reparações valvulares e de malformações
 Talvez as mulheres tolerem melhor a dor do congénitas podem ser muito dolorosos, em
que os homens, mas esta não é uma regra particular quando é necessário reposicionar o
geral. esterno e as costelas).
 As náuseas e vómitos são muito comuns e Alguns dos problemas especiais são os
devem ser tratados adequadamente. seguintes:
Traumatismos e intervenções ortopédicas (por ex. fraturas  Uso de anticoagulantes e problemas com
do colo do fémur com dor moderada, ou bloqueios anestésicos regionais e locais.
reconstrução de ombro, joelho ou anca com dor  Idealmente, a forte sedação e ventilação
muito forte) exigem unidades de cuidados intensivos.
 Traumatismos cranianos. Alguns
profissionais de saúde mostram relutância
120

 As funções cardíaca e pulmonar podem ser muito dolorosas, mas, felizmente, são fáceis de gerir
comprometidas, mas uma boa gestão da dor com técnicas regionais)
pode prevenir ou controlar grandes  Os doentes são geralmente idosos e têm
complicações e ajudar na fisioterapia. grandes problemas geriátricos e médicos.
Intervenções neurocirúrgicas (por ex. cirurgia major  São comummente usados anestésicos locais
espinal com dor forte, craniotomia e ressecção de intratecais e epidurais com opióides.
tumores cerebrais com dor moderada, traumatismo  Suposições teóricas são muito raras, como
e fraturas cranianas com dor moderada) espasmos dos esfíncteres causados pela
 Quando sob opióides, deve proceder-se com morfina.
precaução ao interpretar a Escala de Coma
de Glasgow. Septicémia
 Doses elevadas de opióides podem causar Os doentes septicémicos são comuns nos países
hipoventilação e aumentar a pressão pobres. Muitos destes doentes poderão não ser
intracraniana. elegíveis para anestesia regional e local com
 Pode ser aconselhável evitar anti- analgesia se a septicémia for pronunciada.
inflamatórios não esteróides. Podem também produzir-se efeitos
 O bloqueio nervoso pode ser muito útil nas farmacológicos imprevisíveis com opióides, anti-
zonas do epicrânio, da cabeça e do pescoço. inflamatórios não esteróides e outros fármacos
 As náuseas e vómitos podem ser um potentes devido a falência multiorgânica. Se não
problema. estiverem contra-indicados, o acetaminofeno e a
dipirona ajudam a combater a dor e a febre
 Alguns profissionais de saúde preferem a
observadas nos doentes septicémicos.
dihidrocodeína ou outros opióides «fracos»
relativamente aos opióides fortes devido à
suposição de que causam menos depressão Pérolas de sabedoria
respiratória. No entanto, se as doses forem
cuidadosamente tituladas para o efeito  A dor aguda após cirurgias major
pretendido e adequadamente monitorizadas, proporciona poucos benefícios e inúmeros
qualquer opióide pode ser usado de forma problemas para os doentes e deve ser tratada
segura. sempre que possível.
Intervenções aos ouvidos, nariz, garganta, dentais e  No entanto, o tratamento para a dor pode,
maxilofaciais (por ex. fixação de fratura maxilar com em si, causar problemas e deve ser planeado
dor moderada, amigdalectomias com dor moderada e praticado com diretrizes e protocolos
mas, por vezes, forte) escritos claros.
Os problemas comuns incluem:  A educação e o envolvimento do doente, da
 Preocupações relativas às vias aéreas, família e de toda a equipa médica são fatores
especialmente no que diz respeito a importantes para que qualquer programa de
hemorragias, aumento de secreções e uso de gestão da dor seja bem-sucedido.
opióides.  Os protocolos e as diretrizes universais
 Perigo de apneia do sono, agitação ou sobre a gestão da dor aguda devem ser
estados de consciência diminuídos. incentivados pela OMS e por outros
 Na medida do possível, deve evitar-se as organismos profissionais e de
náuseas, o vómito e o vómito seco. regulamentação. Serão necessárias alterações
 A petidina (meperidina) pode apresentar regionais e locais que reflitam o tipo de
efeitos benéficos anticolinérgicos doentes e o tipo de cirurgia, bem como os
relativamente a outros opióides. recursos disponíveis.
Intervenções urogenitais (por ex. prostatectomia,  Mesmo em países de baixos recursos, devem
reconstrução uretral e nefrectomia, que podem ser ser envidados esforços para fornecer fundos
121

suficientes e melhorar os padrões dos


cuidados pós-operatórios, em especial a
Referências
gestão da dor.
[1] Allman KG, Wilson I, editores. Oxford handbook of
 Todos os profissionais de saúde devem
anaesthesia, 2.ª ed. Nova Iorque: Oxford Univerisity
receber formação a fim de ultrapassar o Press; 2006.
receio da utilização de analgésicos baseados [2] Amata AO, Samaroo LN, Monplaisir SN. Pain control
em opióides fortes e de outros métodos de after major surgery. East Afr Med J 1999;76:269-71.
alívio da dor, bem como para desenvolver [3] Matta JA, Cornett PM, Miyares RL, Abe K, Sahibzada N,
Ahern GP. General anesthetics activate a nociceptive ion
uma atitude positiva perante todos os
channel to enhance pain and inflammation. Proc Natl
doentes que foram submetidos a uma Acad Sci USA 2008;105:8784-9.
cirurgia major. [4] Scott NB, Hodson M. Public perceptions of
 Deve ser incentivado o maior recurso a postoperative pain and its relief. Anaesthesia
fármacos e a técnicas de anestesia local, e 1997;52:438-42.
[5] Wheatley RG, Madej TH, Jackson IJ, Hunter D. The first
também a anestésicos periféricos, após year’s experience of an acute pain service. Br J Anaesth
todos os tipos de cirurgia. 1991;67:353-9.
 Os organismos nacionais e internacionais de
regulamentação dos fármacos devem, em Sítios na Web
parceria com os governos e fornecedores
locais, disponibilizar mais opióides e reduzir
www.anaesthesia-az.com
as restrições relativas à sua utilização para a Gestão da anestesia, da dor e dos cuidados intensivos
gestão da dor em países desenvolvidos.
www.postoppain.org
Sítio interessante sobre a gestão da dor em situações ideais

www.nda.ox.ac.uk/wfsa
Atualizações destinadas a países de baixos recursos

www.who.int/medicines
Políticas e controlo de medicamentos, incluindo a lista de
medicamentos essenciais
122

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 15
Traumatismo Agudo e Dor Pré-Operatória
O. Aisuodionoe-Shadrach

Quando ocorre um traumatismo agudo, o obtém uma breve descrição da natureza do acidente e começa
diagnóstico e o controlo da dor revestem-se de uma a avaliar especificamente eventuais lesões secundárias, como
importância capital. lesões abdominais não penetrantes ou fraturas da parede
torácica ou pélvicas. A vantagem desta avaliação é a
Descrição de caso identificação de lesões que possam constituir potencial perigo
de vida, para além da lesão evidente do tornozelo esquerdo.
Obtém-se o acesso intravenoso para administração de
Um homem de 38 anos, John Bakor, entra no serviço de
líquidos e/ou medicação, e o Dr. Omoyemen realiza então
urgência/ traumatologia depois de ter sido derrubado por um
uma avaliação rigorosa da dor do doente, utilizando uma
veículo ligeiro. Foi transportado no banco traseiro de um
ferramenta de avaliação normalizada, a Escala Numérica
automóvel ligeiro sem qualquer imobilização na perna ferida,
(EN). A EN de John = 7/10, sugerindo uma dor aguda
sentindo surtos de dor sempre que o carro parava durante a
grave. O médico administra 50 mg de petidina (meperidina)
sua turbulenta viagem até ao hospital.
por via intramuscular (i.m.) como analgésico preliminar antes
John é recebido pelo Dr. Omoyemen, o médico de
de analisar formalmente a lesão e de mudar os pensos, e é
serviço que, depois de colocar uma tala de alumínio em toda a
administrado toxóide do tétano por via i.m. a fim de prevenir
extensão da perna esquerda para a imobilizar, pediu ajuda
o tétano.
para colocar o doente sobre uma maca. A imobilização da
Após terminar a aplicação dos pensos, é dado início
fratura minimiza, por si só, a dor causada pelo ferimento,
a uma analgesia adequada e regular (petidina 50 mg por via
reduzindo o movimento das partes afetadas. Uma rápida
i.m., a cada 6 horas). Por fim, enquanto John aguarda uma
observação revela que John tinha sofrido uma fratura exposta
análise cirúrgica ortopédica formal, a sua dor é reavaliada
com luxação do tornozelo esquerdo e que tinha múltiplas
regularmente, a fim de determinar a eficácia do regime
contusões no antebraço e coxa esquerdos. Está plenamente
analgésico, que é também revisto periodicamente, conforme
consciente, sabe quem é e está bem orientado no tempo e
necessário.
espaço. Verifica-se então se existem outras lesões que possam
ter sido ignoradas pelo doente por este achar que não tinham
importância ou de que possa não ter conhecimento como, por
exemplo, outras contusões ou lacerações. O Dr. Omoyemen
Perguntas que deve colocar Como deve ser avaliada a dor?
Devido à sua subjetividade complexa, a dor é difícil
a si próprio e respostas de quantificar, dificultando assim o estabelecimento
prováveis de uma avaliação exata. No entanto, foram
desenvolvidas e normalizadas inúmeras ferramentas
de avaliação destinadas a identificar o tipo de dor, a
O que é a dor? quantificar a intensidade da dor e a avaliar o efeito e
A dor aguda resulta de danos nos tecidos, os quais medir o impacto psicológico da dor sentida por um
podem ser causados por infeção, lesão ou pela doente.
progressão de uma disfunção metabólica ou de uma Uma escala de dor pode ser unidimensional
doença degenerativa. A dor aguda tem tendência a ou multidimensional. No contexto de um
melhorar à medida que os tecidos se regeneram e traumatismo agudo/pré-operatório, quando a causa
responde bem aos analgésicos e outros tratamentos da dor é óbvia e se prevê que a dor seja resolvida
para a dor. Sabemos que a dor é uma sensação mais ou menos rapidamente, são recomendadas as
subjetiva, e por isso, foram concebidas várias escalas unidimensionais. Alguns exemplos:
ferramentas destinadas a avaliá-la de forma objetiva.  Escala Numérica (EN), na qual o doente
A dor apresenta várias dimensões possibilitando classifica a dor de 0 a 10, por ordem
diversas descrições das suas qualidades e a sua crescente de intensidade
perceção pode ser subjetivamente modificada por  Escala Visual Analógica (EVA), na qual o
experiências passadas. doente marca a intensidade da dor numa
A dor aguda provoca uma resposta de linha
stresse, que consiste no aumento da pressão arterial
 Escala Verbal (EV)
e do ritmo cardíaco, resistência vascular sistémica,
 Escalas ilustrativas, como a Escala de Faces
disfunção da função imunológica e na libertação
da Dor, que consiste em desenhos de
alterada de hormonas pituitárias, neuroendócrinas e
expressões faciais. Este tipo de escala é útil
outras. Esta resposta pode limitar a recuperação de
em crianças, doentes com perturbações
uma cirurgia ou lesão. Demonstrou-se que o
cognitivas e pessoas com barreiras
adequado alívio ou prevenção da dor na sequência
linguísticas.
de uma cirurgia ortopédica melhoram os resultados
clínicos, aumentam a probabilidade de um regresso
Embora a escala multidimensional da dor
aos níveis de atividade anteriores à lesão e previnem
tenha sido desenvolvida para a investigação da dor,
o desenvolvimento da dor crónica. O tratamento
pode ser adaptada para a utilização em clínica. Uma
insuficiente da dor aguda pode causar um aumento
versão adaptada do “ Brief Pain Inventory”
da sensibilidade à dor em futuras ocorrências.
questiona os doentes relativamente à localização da
Além disso, as fontes da dor em contextos
dor, à intensidade da mesma ao longo do tempo,
de traumatismo agudo e no pré-operatório são
aos tratamentos anteriores e ao efeito da dor sobre
principalmente de origem somática e visceral
o humor, a função física e a capacidade de
profundas, tal como pode ocorrer em acidentes
desempenhar as várias funções do dia-a-dia.
rodoviários, quedas, ferimentos por bala ou
apendicite aguda. A dor nos contextos de
Existe uma obrigação de controlar a dor no
traumatismo agudo e no pré-operatório é
contexto da dor aguda e no pré-operatório?
geralmente causada por uma combinação de vários
A responsabilidade de controlar a dor de um doente
estímulos: mecânicos, térmicos e químicos. Estes
e de aliviar o sofrimento é a pedra angular da
estímulos provocam a libertação de substâncias
obrigação de um profissional de saúde. Os
nociceptivas, por ex. a histamina, a bradiquinina, a
benefícios para o doente incluem a redução do t
serotonina e a substância P, que ativam os recetores
internamento hospitalar, a mobilização precoce e a
da dor (nociceptores) e iniciam os sinais da dor.
diminuição dos custos hospitalares.
124

A dor não é apenas um sintoma clínico, mas Qual é a atitude do doente face à dor?
também a manifestação de uma patologia Muitas vezes o doente não conhece o diagnóstico,
subjacente. No contexto de um traumatismo agudo mas sim apenas os sintomas – a dor, sendo o
e do pré-operatório, existe a tentação de se ignorar a controlo da dor frequentemente insuficiente, exceto
dor e o seu controlo específico, orientando todos os quando a causa é muito evidente, como no caso de
esforços no sentido de tratar a patologia subjacente. um membro fraturado.
O desafio consiste em ajudar o profissional de saúde
a perceber que o controlo, tanto dos sintomas (dor), Quando ou com que antecedência deve o
com da patologia subjacente (apendicite aguda) deve controlo ativo da dor ser instituído no contexto
ser considerado em conjunto. Utilizando a escala de um traumatismo agudo/pré-operatório?
analgésica da OMS, é possível desenvolver e Imediatamente após o diagnóstico, devem ser
implementar uma abordagem racional sistemática adotados os princípios de uma eficaz gestão da dor
do controlo da dor no contexto de um traumatismo aguda e o controlo da dor deve ser instituído
agudo ou do pré-operatório. imediatamente (Fig. 1). Os objetivos do tratamento
consistem em aliviar a dor o mais rapidamente
A dor é uma questão importante para um possível e em prevenir eventuais respostas físicas e
doente no contexto de um traumatismo psicológicas adversas à dor aguda.
agudo/pré-operatório?
Sim. O controlo da dor pode ser considerada um Os princípios gerais do alívio da dor aguda
direito humano. Embora possa parecer incluem os seguintes:
extravagante, deve realçar-se que a dor é um  Seleção analgésica baseada no mecanismo
acompanhante natural das lesões agudas dos fisiopatológico da dor e na sua intensidade.
tecidos, pelo que a sua presença é esperada no  Tanto os analgésicos opióides como não
contexto de um traumatismo agudo. Neste cenário, opióides são altamente eficazes na dor
o objetivo do médico consiste em garantir que a dor nociceptiva.
do doente seja tolerável.  É dada preferência aos agentes não opióides
Num estudo realizado num serviço de urgência e para a dor ligeira.
traumatologia de um hospital universitário da África
 Pode ser necessário o recurso a opióides
Subsaariana, 77% dos doentes aos quais foi
para a dor moderada a intensa.
administrada analgesia no pré-operatório
 O tratamento combinado com opióides e
consideraram a dosagem analgésica inadequada, e
não opióides é muitas vezes adequado e
93% destes doentes atribuía esta insuficiência do
podem ser administrados não opióides para
alívio da dor a uma prescrição analgésica inadequada
reduzir a dosagem dos primeiros.
pelos médicos. Os 77% dos doentes que receberam
analgesia no pré-operatório admitiram que teriam  Os tratamentos não farmacológicos podem
preferido receber uma quantidade bastante superior ser úteis mas não devem substituir o
à que lhes foi administrada. tratamento farmacológico.

Qual deve ser a atitude do médico de serviço Quais são os princípios de um controlo eficaz
relativamente ao especifico controlo da dor da dor aguda?
neste cenário?  A dor não aliviada pode ter consequências
Preocupação. Muitas vezes, a atenção que deve ser físicas e psicológicas negativas.
prestada a uma cobertura analgésica adequada dos  A prevenção e o controlo ativos da dor
doentes é ultrapassada a favor da rapidez na antes, durante e após a cirurgia e
preparação para a cirurgia. Uma analgesia adequada procedimentos médicos resultam em
facilita a avaliação e o tratamento subsequente da benefícios a curto e longo prazo.
lesão ou doença subjacente.  A avaliação e o controlo eficazes da dor
dependem parcialmente de uma relação
positiva entre o doente e os familiares, por
125

um lado, e o médico e enfermeiros, por  Lembrar sempre que a dor não pode ser
outro. ignorada.
 Os doentes devem ser envolvidos  Não acreditar que a capacidade de tolerar a
ativamente na avaliação e no controlo da dor é proporcional à «virilidade».
dor.  A verdade é que a dor não existe para ser
 O controlo da dor deve ser avaliado e tolerada.
reavaliado em intervalos regulares  Poderá não ser possível esperar que os
específicos. doentes no contexto de um traumatismo
 Os médicos e enfermeiros de serviço devem agudo/pré-operatório estejam
ser sensíveis à avaliação da dor. completamente isentos de dor.
 Na prática pode não ser possível eliminar  No entanto, a dor pode ser reduzida para
todo o tipo de dor. níveis toleráveis, utilizando técnicas
amplamente disponíveis.
Que funções específicas devem desempenhar  Desenvolver um algoritmo de controlo da
médicos e enfermeiros para garantir que, neste dor no contexto de um traumatismo
cenário, os doentes não têm dores? agudo/perioperatório, conforme ilustrado
O pessoal clínico deve proceder de forma a na Fig. 1.
quantificar o grau de dor do doente, recorrendo às
seguintes abordagens metódicas: Referências
 Registar uma breve história da dor
(veiculada oralmente) na altura da admissão.
[1] Aisuodionoe-Shadrach IO, Olapade-Olaopa EO,
 Avaliação da dor do doente utilizando um Soyanwo OA. Preoperative analgesia in emergency
instrumento de auto-relato por ex. as escala surgical care in Ibadan. Tropical Doctor 2006;36:35-6.
EVA ou EN. [2] Reube SS, Ekman EF. The effect of initiating a
preventive multi-modal analgesic regimen on long-term
 Observação comportamental como auxiliar
patient outcomes for outpatient anterior cruciate
dos instrumentos de auto-relato. ligament reconstruction surgery. Anesth Analg
 Monitorização dos sinais vitais do doente 2007;105:228-32.
(embora não se trate de um teste específico [3] Reuben SS, Buvanendran A. Preventing the
development of chronic pain after orthopedic surgery
ou sensível à dor).
with preventive multimodal analgesic techniques. J
Estes procedimentos devem ser repetidos Bone Joint Surg 2007;89:1343-58.
em intervalos periódicos pelo profissional de saúde
presente, com vista a avaliar a eficácia do regime
analgésico. Outras medidas incluem garantir um
Sítios na Web
bom posicionamento do doente, usando almofadas
Pain: current understanding of assessment, management, and
e cobertores, para além da aplicação de compressas
treatments. (2001) National Pharmaceutical Council and Joint
frias ou quentes, conforme necessário. Commission on Accreditation of Heathcare Organizations.
Disponível em:
Pérolas de sabedoria http://www.npcnow.org/resources/PDFs/painmonograph.p
df

 Evitar conceitos errados e reconhecer


crenças culturais relativas à dor.
126
127

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 16
O Tratamento da Dor em Cirurgia Ambulatória/
de 24 Horas
Frank Boni

Descrição de caso medicação cerca de 1 hora antes da cirurgia ou sob a forma de


supositório após a indução da anestesia. É realizado um
bloqueio caudal ou regional ou uma infiltração local com um
John, um menino de 5 anos, é submetido a uma orquidopexia anestésico com bupivacaína ou ropivacaína após a indução da
realizada sob anestesia geral. O período perioperatório decorre anestesia. No pós-operatório, devem ser administrados
sem incidentes e é dada alta hospitalar à criança paracetamol oral e/ou um AINE em intervalos regulares
(acompanhada pela mãe), que se encontra absolutamente durante as primeiras 48 horas, bem como tramadol ou
desperto e confortável cerca de 5 horas após a operação, com codeína oral, conforme necessário (analgesia de recurso) para a
prescrição de paracetamol (acetaminofeno) oral. Os problemas dor moderada a intensa não aliviada.
começam mais tarde, nessa noite, quando a criança acorda
queixando-se de dor significativa em redor do local da Porque vale a pena ler
operação. A mãe administra-lhe o analgésico prescrito mas a
dor persiste e torna-se impossível tranquilizar a criança ou acerca da analgesia para
esta voltar a adormecer, mantendo assim os pais e irmãos
acordados.
pequenas intervenções
Infelizmente, este tipo de cenário é muito comum e cirúrgicas?
causa dor, angústia e sofrimento desnecessários, não apenas ao
doente, mas também frequentemente a todo o agregado
familiar. A boa notícia é que este tipo de situação pode ser Nesta secção, explicarei porque a dor pode ser um
facilmente evitado, ou pelo menos tratado de forma eficaz na problema comum e significativo em intervenções
maior parte dos casos, aplicando métodos simples e seguros de cirúrgicas aparentemente pequenas e como tratar de
alívio da dor. forma eficaz este tipo de dor. A dor no pós-
Para este caso ilustrativo, um exemplo de uma operatório deve ser considerada uma complicação
terapêutica analgésica farmacológica típica pode ser a seguinte: da cirurgia com efeitos adversos significativos, pelo
paracetamol e/ou um medicamento anti-inflamatório não que devem ser efetuados todos os esforços para
esteróide (AINE) administrado oralmente como pré- evitá-la ou minimizá-la. Obviamente, existem várias
opções que permitem assegurar uma analgesia eficaz
e segura após pequenas intervenções cirúrgicas.
Deve ser possível garantir uma analgesia satisfatória
128

a todos os doentes, independentemente da sua semelhantes podem sentir a dor de forma muito
localização geográfica ou nível de recursos. diferente, e até no mesmo indivíduo, a intensidade
da dor causada por uma intervenção pode variar
O que é uma pequena com o tempo e a atividade. Vários estudos têm
demonstrado que mais de 50% das crianças e uma
cirurgia? proporção semelhante de adultos sujeitos a uma
experiência cirúrgica em ambulatório sofrem dor
A cirurgia é comummente classificada como clinicamente significativa após receberem alta.
pequena ou grande, consoante a gravidade da
doença, as partes afetadas do corpo, a complexidade Que fatores conduzem a um
da operação e o tempo de recuperação previsto.
Atualmente, as pequenas cirurgias representam a
controlo insuficiente da dor
maioria das intervenções realizadas em unidades de após uma pequena cirurgia?
cuidados de saúde devido a uma maior
consciencialização e apresentação mais precoce dos
doentes, bem como à cada vez maior Os fatores que contribuem para um controlo
disponibilidade e acessibilidade aos cuidados de insuficiente da dor no pós-operatório em pequenas
saúde. De um modo geral, mais de metade ou cirurgias incluem:
mesmo dois terços de todas as cirurgias em  A suposição de que uma pequena cirurgia
unidades de saúde costumam ser consideradas está associada a pouca ou nenhuma dor,
pequenas e são frequentemente realizadas como pelo que são administrados poucos ou
cirurgia do próprio dia ou «de 24 horas», ou ainda nenhuns analgésicos no período pós-
«externa» ou «ambulatória», em que o doente se operatório.
desloca até às devidas unidades de cuidados de  As pressões das atuais práticas cirúrgicas
saúde, sendo submetido à intervenção e regressa a ambulatórias, que dão importância a um
casa no próprio dia. Esta tendência tem aumentado rápido recobro uma rápida recuperação e o
recentemente e deve-se principalmente a fatores regresso a um estado clínico que possibilite
económicos, à preferências dos doentes, a técnicas uma alta precoce, resultando assim no facto
anestésicas e cirúrgicas melhoradas e à cada vez de os anestesistas e cirurgiões evitarem ou
maior disponibilidade de intervenções cirúrgicas minimizarem o recurso a analgésicos e
minimamente invasivas. sedativos potentes ou de longa duração no
período perioperatório que possam atrasar a
Qual é a prevalência da dor recuperação e a alta hospitalar.
 Receio entre os profissionais de saúde dos
após uma pequena cirurgia? efeitos depressores respiratórios e sedativos
dos opióides num ambiente sem vigilância
Presume-se de um modo geral que uma pequena médica imediata.
cirurgia está associada a menos dor do que uma  Suposição de que os doentes ou respetivos
grande cirurgia. Um dos critérios de seleção de uma familiares podem desconhecer os riscos dos
cirurgia em ambulatório é que a dor deve ser medicamentos e usá-los em demasia, com
mínima ou facilmente tratável. No entanto, pode ser consequências significativas em casa.
difícil prever de forma exata a intensidade da dor  Políticas legislativas restritivas em algumas
num determinado indivíduo, uma vez que uma regiões que tornam difícil o acesso a
cirurgia aparentemente pequena pode provocar uma analgésicos potentes.
dor moderada a intensa por diversas razões,
incluindo a variabilidade inter-individual na
perceção e na resposta à dor. Para o mesmo tipo de
procedimento cirúrgico, dois indivíduos
129

Estratégias para garantir está em desenvolvimento. Assim sendo, é necessário


prevenir a dor, se possível, ou tratar proactivamente
uma analgesia eficaz no a dor o mais rapidamente possível.

pós-operatório Evitar pausas analgésicas


As pausas analgésicas provocam ao doente a dor
Ser proactivo recorrente e a analgesia insuficiente. Estas pausas
O tratamento eficaz da dor no pós-operatório têm tendência para ocorrer quando se permite que o
começa no período pré-operatório. Os doentes efeito de uma dose ou técnica analgésica anterior
sentem-se frequentemente preocupados e diminua antes de ser administrada a dose
angustiados no hospital devido ao procedimento subsequente. É importante assegurar um intervalo
cirúrgico, sendo que esta angústia pode exacerbar a de dosagem apropriado, com base no conhecimento
dor no período pós-operatório. Foi comprovado da farmacologia do agente, a fim de minimizar este
que a informação e educação no pós-operatório intervalo.
relativas ao controlo da dor reduzem de forma
significativa a ansiedade dos doentes e seus Aplicar uma estratégia analgésica multimodal
familiares, assim como o consumo de analgésicos. A A analgesia multimodal implica o recurso a vários
educação melhora a compreensão e o cumprimento analgésicos ou modalidades que atuam em
do regime de administração de analgésicos. Poderá combinação, através de diversos mecanismos, para
ser necessário repetir a informação importante ou maximizar a eficácia analgésica e minimizar os
providenciar a mesma sob a forma escrita, uma vez efeitos secundários. Esta estratégia permite uma
que os doentes ou familiares poderão não se redução das doses totais e dos efeitos secundários
recordar de tudo o que lhes foi dito durante o dos analgésicos.
período perioperatório. Devem ser administrados por rotina
A maior parte dos doentes, ao recuperarem paracetamol, um medicamento anti-inflamatório
de uma anestesia na sala de recobro, sentem-se não esteróide (AINE), e analgesia local como
confortáveis graças ao tratamento proactivo e componentes de uma estratégia analgésica
agressivo da dor pelo anestesista. Infelizmente, multimodal, a menos que exista um motivo
quando é dada alta hospitalar ao doente, a específico para não administrar um destes agentes,
intensidade ou continuidade dos cuidados uma vez que os mesmos são sinérgicos ou aditivos.
direcionados para o tratamento da dor é Por outras palavras, a combinação oferece uma
interrompido. Muitas vezes, a dor decorrente da melhor analgesia do que qualquer um dos fármacos
cirurgia prolonga-se além da medicação analgésica usados individualmente. Os opióides potentes, em
ou da anestesia local administrada no período particular os de longa ação, como a morfina e a
perioperatório. Para evitar este problema, metadona, devem ser preferencialmente evitados ou
administrar a primeira dose analgésica pós- usados com moderação, enquanto analgésicos no
operatória antes de os efeitos dos analgésicos intra- pós-operatório de pequenas cirurgias, devido aos
operatórios desaparecerem por completo. efeitos secundários a eles associados, em particular
náuseas e vómitos, depressão respiratória e sedação.
Usar analgesia preventiva As náuseas e os vómitos no pós-operatório
Uma analgesia preventiva significa que administrar a (NVPO) podem ser bastante incómodos e alguns
analgesia antes do estímulo doloroso é mais eficaz do doentes podem preferir tolerar a dor do que tomar
que administrar a mesma analgesia após o estímulo. opióides. As NVPO e a dor são as duas causas mais
Embora este conceito não tenha sido comuns de adiamento da alta hospitalar e também
suficientemente comprovado em todos os estudos de admissão não prevista em cirurgia de 24 horas.
clínicos, tornou-se evidente que é frequentemente Contudo, se a intensidade da dor justificar a
necessário usar mais analgesia para tratar a dor já administração de opióides, devem ser usados
instalada do que prevenir ou atenuar a dor que ainda preferencialmente os agentes de ação mais curta,
como o fentanil, efetuando uma titulação cuidadosa,
130

a fim de produzirem efeito no período pós- Esta estratégia reduz as necessidades


operatório imediato. anestésicas no período intra-operatório e
Em alternativa, devem ser usados os facilita uma recuperação e alta hospitalar
opióides «mais fracos», como o tramadol ou a mais rápida.
codeína. Os opióides «mais fracos» apresentam a  Administrar analgesia preventiva. Mais vale
vantagem de causar efeitos sedativos e depressores prevenir do que remediar. São necessárias
respiratórios mínimos, um baixo potencial de toma quantidades de analgésico muito superiores
abusiva e de não estarem sujeitos às rígidas para tratar a dor instalada do que para
restrições sobre os opióides, pelo que podem ser preveni-la.
mais facilmente fornecidos aos doentes adequados.  Usar uma abordagem multimodal no
Por conseguinte, preenchem um espaço importante tratamento da dor, incorporando tanto os
na escala analgésica, entre os analgésicos não métodos farmacológicos como os não
opióides ligeiros e os opióides mais potentes, em farmacológicos.
particular em cirurgias de 24 horas.  Fornecer um suplemento de analgésicos
Uma parte frequentemente esquecida ou eficazes e a informação relativa ao seu uso
negligenciada da abordagem multimodal é o uso de antes de conceder alta hospitalar.
terapêuticas não farmacológicas. A fisio e a
 Administrar frequentemente analgésicos
psicoterapia complementam a medicação e devem
apropriados e eficazes (24 horas por dia) e
ser usadas sempre que possível. As fisioterapias
não em SOS ou «conforme necessário»
incluem o uso de talas e a imobilização das zonas
durante as primeiras 24 a 48 horas após a
dolorosas, a aplicação de compressas frias ou
operação, quando a intensidade da dor está
quentes, a Acupuntura, a massagem e a estimulação
provavelmente no nível mais elevado.
nervosa elétrica transcutânea (ENET). As
Fornecer fármacos para o tratamento da dor
psicoterapias incluem estratégias comportamentais e
irruptiva (analgésicos de recurso).
cognitivas para lidar com a dor, como o apoio e a
 Disponibilizar sempre um número de
escuta ativa, a imagiologia orientada, técnicas de
contacto ao doente ou familiar, para que
relaxamento, biofeedback, informação processual e
este possa contactar, se necessário.
sensorial e a musicoterapia. Estudos sugerem que
estas terapêuticas não farmacológicas melhoram a
intensidade da dor e reduzem o consumo de Referências
analgésicos.
[1] Finley GA, McGrath PJ. Parents’ management of
Pérolas de sabedoria children’s pain following minor surgery. Pain
1996;64:83-7.
[2] Rawal N. Analgesia for day-case surgery. Br. J. Anaesth
2001;87:73-87
 No período pré-operatório, debater as
[3] Shnaider I, Chung F. Outcomes in day surgery. Current
opções e planear o método de tratamento da Opinion in Anesthesiology. 2006;19:622-629.
dor no pós-operatório com o doente e/ou [4] Wolf AR. Tears at bedtime: a pitfall of extending
seu familiar. paediatric day-case surgery without extending analgesia.
 Ser proactivo; iniciar o tratamento da dor Br J Anaesth 1999;82:319-20.
pós-operatória no período pré-operatório.
131

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 17
Gestão Farmacológica da Dor em Obstetrícia

Katarina Jankovic

Descrição de caso
Uma noite, Charity, secretária de 28 anos residente em que uma em cada quatro mulheres em trabalho de
Nyeri, chega ao Hospital de Consolata era já noite avançada. parto necessita de analgesia.
É a sua primeira gravidez e está acompanhada pela mãe
Jane, mãe experiente que achou que seria boa altura para Quais são as vias de
consultar o obstetra, uma vez que as contrações de Charity se
haviam tornado cada vez mais regulares. Ao dar entrada no aplicação da analgesia, se
hospital, Charity afirma que gostaria de tentar realizar o
parto sem analgésicos, mas, à medida que as contrações se
necessária?
tornam mais fortes, começa a pedir ajuda. O que pode fazer
para lhe aliviar a dor? As abordagens farmacológicas para gerir a dor de
parto podem ser classificadas de um modo geral
Todas as mulheres sentem como sistémicas ou regionais. A administração
sistémica inclui as vias intravenosa, intramuscular e
dores de parto que exigem inalação. As técnicas regionais são compostas por
um tratamento com anestesia espinhal e epidural. A anestesia epidural
ganhou popularidade na última década e quase
analgésicos? substituiu a analgesia sistémica em muitos serviços
de obstetrícia, principalmente em países
desenvolvidos. As técnicas regionais são
A dor do trabalho de parto e no período expulsivo
amplamente reconhecidas como sendo o único
varia de mulher para mulher e, até mesmo numa
meio verdadeiramente eficaz de alívio da dor do
mesma mulher, cada parto pode ser bastante
trabalho de parto e do parto, com uma analgesia
diferente. Por exemplo, uma apresentação fetal
significativamente superior quando comparada
anómala, como a posição occipital posterior, está
com os opióides sistémicos.
associada a dor mais intensa e pode produzir-se
numa gravidez e não na seguinte. Pode estimar-se
132

Que vantagens apresentam complicações para a mãe e para o recém-nascido.


Devem ser estritamente evitadas doses mais
os analgésicos sistémicos? elevadas, uma vez que a petidina pode provocar
convulsões. Tal deve-se à estrutura farmacológica
única do medicamento, o que lhe confere um lugar
Os analgésicos sistémicos podem ser administrados
especial entre os opióides.
por indivíduos não qualificados para realizar
bloqueios epidurais ou espinais, pelo que são
algumas vezes usados em situações em que não está
Qual a relevância clínica de
disponível nenhum anestesista. São também úteis os opióides atravessarem a
para doentes para os quais estão contra-indicadas as
técnicas regionais. Os agentes mais populares são os barreira da placenta?
opióides (por ex. morfina, fentanil, butorfanol,
petidina [meperidina] e tramadol). Embora os Os opióides atravessam a placenta e podem afetar o
efeitos secundários dos opióides sejam geralmente feto. Tal manifesta-se in utero através de alterações
indesejáveis e causem irritação no doente, em dos padrões do ritmo cardíaco fetal (por ex.,
mulheres em trabalho de parto a sedação induz diminuição da variabilidade do ritmo cardíaco 25
alívio e relaxamento geral. Por vezes, os efeitos minutos após a administração i.v. e 40 minutos após
analgésicos parecem ser secundários. a administração i.m. de petidina) e no recém-nascido
Uma análise sistemática de ensaios através de depressão do sistema nervoso central
randomizados de opióides parentéricos para o alívio (por ex. lentificação do ritmo respiratório e
da dor de parto conseguiu demonstrou que a alterações no tónus muscular).
satisfação com o alívio da dor produzido pelos Os efeitos adversos sobre o feto, da petidina
opióides durante o parto era reduzida e que a e seu metabolito, a norpetidina, podem – em raras
analgesia fornecida pelos opióides era apenas ocasiões – necessitar de serem revertidos por um
ligeiramente superior à do placebo. Foi interessante antagonista opióide. A dose i.m. apropriada de
o facto de as parteiras terem atribuído à petidina
naloxona seria de 10 g/kg de peso. No entanto,
uma classificação muito superior à atribuída pelas
idealmente, a naloxona – como a maior parte dos
parturientes, provavelmente devido a uma confusão
fármacos utilizados no tratamento da dor – deve
entre sedação e analgesia.
ser titulada por via intravenosa até alcançar o seu
efeito (a dose cumulativa seria, como para a
Qual a via de administração administração i.m., 10 g/kg).
preferencial para a analgesia Se existirem vários opióides disponíveis,
qual devo escolher e porquê?
sistémica e por que motivo? O tempo de início de ação e a semi-vida dos
opióides disponíveis são comparáveis, pelo que o
Se não estiver disponível um anestesista, a petidina potencial para induzir depressão respiratória no
(meperidina) é geralmente o fármaco de eleição. recém-nascido é a principal razão para selecionar
Continua a ser o opióide mais investigado e o mais um opióide particular. Relativamente a este
frequentemente utilizado durante o trabalho de potencial, a petidina (meperidina) pode ser preferida
parto. A dose de petidina geralmente prescrita é de entre outras, desde que sejam respeitadas as doses
1 mg/kg, por via i.m., até à dose máxima de 150 diárias máximas (500 mg). A petidina é o único
mg/kg. A via intramuscular não é recomendada, opióide com neurotoxicidade dependente da dose.
uma vez que não é fiável – a taxa de absorção do Não existe qualquer evidência na literatura científica
medicamento pode variar. A administração de que qualquer outro opióide seja
intravenosa é mais fiável e constatou-se que a dose significativamente mais eficaz do que a petidina.
máxima total de 200 mg produz scores de dor , Além disso, esta encontra-se amplamente disponível
significativamente menores, sem diferença nas e é económica. Se disponíveis, também podem ser
133

usados a nalbufina, o butorfanol ou o tramadol. adequa à analgesia sistémica durante o trabalho de


Estes opióides não são agonistas puros do recetor parto seria o remifentanil, que é metabolizado por
mu, mas sim agonistas e antagonistas mistos, o que esterases plasmáticas e tecidulares inespecíficas. Por
explica a sua segurança única no que diz respeito à conseguinte, embora o remifentanil seja
depressão respiratória. rapidamente transferido através da placenta, as
No entanto, tal como acontece com outros esterases fetais desativam este novo opióide. Porém,
opióides, a depressão respiratória pode ser evitada os dados relativos à administração de remifentanil
com a petidina. Para conseguir este resultado no nas parturientes são limitados, pelo que este
recém-nascido, recomenda-se o cumprimento de fármaco ainda não pode ser amplamente
uma determinada janela de tempo para a recomendado.
administração da petidina à parturiente. É mais Contudo, deve notar-se que apenas alguns
provável que ocorram efeitos secundários se o parto medicamentos são considerados «seguros» no que
se realizar entre 1 e 4 horas após a administração de diz respeito à passagem pela placenta e à
petidina. Consequentemente, segundo o preceito amamentação, mas que a falta de dados faz que seja
clássico, o recém-nascido deverá nascer até 1 hora aconselhável confiar no bom senso individual, se
após ou mais de 4 horas após a última aplicação de estiver disponível apenas um número limitado de
petidina. Contudo, é difícil prever precisamente o medicamentos.
momento do nascimento. Além disso, o metabolito A amamentação durante o tratamento
norpetidina é farmacologicamente ativo, com uma materno com paracetamol (acetaminofeno) deve ser
semi-vida prolongada no recém-nascido de até 2 encarada como segura. A administração a curto
dias e meio. Assim, o comportamento do recém- prazo de medicamentos anti-inflamatórios não
nascido pode ficar afetado e é possível que ocorram esteróides (AINE) parece compatível com a
dificuldades na amamentação, independentemente amamentação. Para o tratamento a longo prazo
da hora de administração à mãe. deverá provavelmente ser dada preferência a agentes
A pentazocina não deve ser usada devido ao de curta ação sem metabolitos ativos, como o
seu potencial para causar disforia e estimulação ibuprofeno.
simpática. Teoricamente, o opióide que melhor se
Quadro 1
Dose relativa nos bebés e relevância clínica dos agentes analgésicos selecionados
Fármaco Dose relativa nos Relevância clínica Aprovação da AAP*
bebés (%)
Ibuprofeno 0,6 Nenhuma detetada em bebés; sem eventos adversos Sim
Cetorolac 0,16 a 0,4 As concentrações no leite são muito reduzidas; não foram Sim
observados quaisquer efeitos indesejáveis.
Naproxeno 3,0 Semi-vida longa; pode acumular-se nos bebés. Hemorragia e Sim
diarreia observados num bebé. Administração a curto prazo
aceitável; evitar a administração crónica.
Indometacina 0,4 Concentrações no leite reduzidas; concentrações no plasma Sim
baixas a indetetáveis nos bebés; precaução na administração
crónica.
Morfina 5,8 Biodisponibilidade oral baixa; concentrações no leite Sim
geralmente baixas; considerada segura; vigiar a sedação.
Metadona 2,6 / 5,6 / 2,4 / 1,0 Concentrações no leite reduzidas; aprovada para a Sim
administração a lactantes; não previne a síndrome de
abstinência neonatal.
Meperidina 1 Atraso neurocomportamental, sedação observada no Sim
(petidina) metabolito de semi-vida longa, evitar
Fentanil <3 Concentrações no leite baixas; sem efeitos indesejáveis Sim
derivados da exposição no leite.
* Academia Americana de Pediatria. Transferência de fármacos e outros químicos para o leite materno. Pediatrics 2001.
A administração de aspirina (ácido colocar qualquer tipo de risco significativo para o
acetilsalicílico) em doses individuais não deve lactente.. Devido à sua associação causal à síndrome
134

de Reye, geralmente a aspirina não é recomendada  Os supositórios de diclofenac estão


em lactantes. No entanto, a transferência absoluta disponíveis em alguns países e são
de aspirina para o leite é negligenciável (< 2,4%), comummente usados para analgesia no pós-
cerca de 1 mg/L de leite, se as doses clínicas forem parto. Os níveis no leite materno são
respeitadas. É pouco provável que exista aspirina extremamente baixos.
suficiente no leite após a toma de um comprimido  Os inibidores da COX-2, como o celecoxib,
de 82 mg pela mãe para causar uma predisposição podem apresentar algumas vantagens
na criança para a síndrome de Reye, mas tal teóricas se existir o receio de hemorragia
permanece incerto. materna. As possíveis vantagens devem ser
A administração de petidina (meperidina) no ponderadas relativamente ao maior custo e
período pré-natal é cada vez mais controversa. aos potenciais riscos cardiovasculares, que
Embora o medicamento seja comummente usado deverão ser mínimos com a administração a
em obstetrícia, a sua administração é cada vez mais curto prazo em jovens mulheres saudáveis.
desaprovada, uma vez que tem sido observada Tanto a dor como a analgesia com opióides
sedação nos recém-nascidos. Quando administrado podem ter um impacto negativo sobre os resultados
às mães, constatou-se que o medicamento causava da amamentação. Por conseguinte, as mães devem
depressão respiratória neonatal, índices de Apgar ser incentivadas a controlar a dor com a dose mais
inferiores, saturação de oxigénio mais baixa, acidose baixa de medicação possível totalmente eficaz. A
respiratória e resultados neurocomportamentais analgesia pós-parto com opióides pode afetar o
anómalos. A petidina é metabolizada em estado de vigilância dos bebés, bem como a força de
norpetidina, que é ativa e tem uma semi-vida de sucção. Porém, quando a dor da mãe é
aproximadamente 62 a 73 horas nos recém- adequadamente tratada, os resultados da
nascidos. Devido a esta semi-vida prolongada, a amamentação melhoram. Especialmente após um
depressão neonatal após a exposição à petidina pode nascimento por cesariana ou após traumatismo
ser profunda e prolongada. A transferência de perineal grave que exija reparação, as mães devem
fentanil para o leite materno é reduzida. Em ser incentivadas a controlar adequadamente a sua
mulheres que recebem doses que variam dos 50 aos dor.
400 g por via intravenosa durante o trabalho de
parto, a quantidade encontrada no leite era Medicamentos administrados por via
geralmente inferior ao limite de deteção (<0,05 intravenosa
g/L).  Deve evitar-se a petidina, devido a sedação
neonatal registada quando administrada a
Anestesia pós-parto lactentes no pós-parto, para além dos riscos
de cianose, bradicardia e de apneia
observados na administração durante o
Analgésicos não opióides
parto.
Geralmente, os analgésicos não opióides deverão ser
a primeira escolha para o tratamento da dor em  A administração de doses moderadas a
mulheres a amamentar no pós-parto, uma vez que baixas de morfina por via intravenosa (i.v.)
não afetam o estado der alerta da mãe ou do bebé. ou intramuscular (i.v.) é preferida, uma vez
que a transferência para o leite materno e a
 O acetaminofeno e o ibuprofeno são
biodisponibilidade oral nos bebés são mais
seguros e eficazes para a analgesia das mães
reduzidas com este agente.
no pós-parto.
 Quando é escolhida uma analgesia por via
 O cetorolac parentérico pode ser usado nas
i.v. controlada pelo doente (PCA) após uma
mães sem hemorragias e sem antecedentes
cesariana, são preferidas a morfina ou o
de gastrite, alergia à aspirina ou insuficiência
fentanil relativamente à meperidina.
renal.
 Embora não existam dados sobre a
transferência de nalbufina, butorfanol ou
135

pentazocina para o leite, houve vários revelou que o grupo com administração
registos incidentais de um efeito contínua apresentava scores de dor menores e
psicotomimético quando estes agentes são um maior volume de leite na amamentação.
usados no trabalho de parto. Podem ser De um modo geral, se for considerado
adequados em indivíduos com determinadas necessário o tratamento de uma mãe que está a
alergias aos opióides ou outras doenças amamentar com um analgésico, deve ser
descritas na secção anterior sobre o trabalho administrada a menor dose eficaz. Além disso, a
de parto. exposição dos bebés pode ser ainda mais reduzida
 A hidromorfona (cerca de 7 a 11 vezes mais se for evitada a amamentação em momentos de
potente do que a morfina) é por vezes usada picos de concentração do fármaco no leite. Uma vez
para a dor extrema na analgesia controlada que o leite materno tem vantagens nutricionais,
pelo doente, por via i.m., i.v. ou oral. Na imunológicas e outras consideráveis relativamente
sequência de uma dose intranasal de 2 mg, ao leite de fórmula, os possíveis riscos para o bebé
os níveis no leite eram bastante baixos, com devem ser sempre ponderados individualmente
uma dose relativa nos bebés de cerca de tendo em conta os benefícios de continuar a
0,67%, o que se correlaciona com cerca de amamentação.
2,2 g/dia através do leite. Esta dose é
provavelmente demasiado baixa para afetar Se não estiverem
um lactente, mas este medicamento é um
opióide forte, pelo que se recomenda
disponíveis opióides,
precaução. existem opções
Medicamentos orais farmacológicas para aliviar
 A hidrocodona e a codeína têm sido usadas
no mundo inteiro em milhões de mulheres
o desconforto do parto nas
lactantes. Esta informação sugere que são parturientes?
escolhas adequadas, embora não existam
dados que informem acerca da sua
Em obstetrícia, são usadas diferentes classes de
transferência para o leite materno. As doses
fármacos quando não estão disponíveis técnicas
mais elevadas (10 mg de hidrocodona) e o
regionais ou opióides. Embora os neurolépticos
uso frequente podem causar alguma sedação
(prometazina) e anti-os histamínicos (hidroxizina)
na criança.
estejam especificamente indicados para as náuseas e
os vómitos, outras classes de fármacos têm um
Medicamentos epidurais/espinais
efeito direto sobre o sofrimento no parto através da
sua atividade ansiolítica, sedativa e dissociativa.
 Os medicamentos opióides de dose única Acima de tudo, pode ser usada uma pequena dose
(por ex. morfina neuraxial) devem ter efeitos única de benzodiazepinas (principalmente
mínimos sobre a amamentação, devido aos midazolam ou diazepam). Na fase prodromal e nas
níveis negligenciáveis alcançados no plasma primeiras fases do parto, os barbitúricos
materno. Doses extremamente baixas de (secobarbital ou pentobarbital) podem ser uma
morfina são eficazes. opção e, em mãos experientes, a cetamina ou a S-
 A perfusão epidural contínua pós-cesariana cetamina podem revelar-se úteis. Com as «doses
pode ser uma forma eficaz de alívio da dor analgésicas», que são apenas uma fração da dose
que minimiza a exposição aos opióides. Um anestésica, os efeitos colinérgicos e no sistema
ensaio randomizado que comparou a nervoso central estão geralmente ausentes. O
anestesia espinhal para cesariana eletiva com tramadol, cujos efeitos se assemelham aos dos
ou sem administração de bupivacaína opióides, mas que age principalmente através de um
extradural contínua no pós-operatório mecanismo único, pode ser outra alternativa
136

analgésica. O tramadol é recomendado numa fácil de administrar e seguro, tanto para a mãe como
dosagem de 50-100 mg por via i.m. ou i.v. Com uma para o feto. A analgesia é considerada superior à
eficácia semelhante à da petidina ou da morfina, tem proporcionada pelos opióides, mas menos eficaz do
menos efeitos secundários na mãe e não provoca que uma analgesia epidural. Embora existam dados
depressão neonatal. Todos estes fármacos relativos a dessaturação materna, estudos recentes
atravessam a barreira placentar e podem produzir não demonstraram quaisquer eventos adversos nas
sedação («criança mole») no recém-nascido. Por mães ou nos recém-nascidos. Os agentes de
conseguinte, se a administração destes fármacos for inalação, como 0,25-1% de enflurano e 0,2-0,25%
inevitável, é necessário proceder à observação do de isoflurano no óxido nitroso ofereceram uma
recém-nascido no pós-parto (durante cerca de 8-12 analgesia superior no trabalho de parto do que o
horas). óxido nitroso isolado. Tem sido usado 1-4,5% de
desflurano em oxigénio na segunda fase do trabalho
Qual o método de analgesia de parto, no entanto, 23% das mulheres referiram
amnésia indesejada durante o período da utilização.
mais antigo ainda utilizado?
E ainda pode continuar a Existe um método
ser recomendado? anestésico regional simples
e eficaz para a segunda fase
A pedido da Rainha Vitória, no seu oitavo parto
(Príncipe Leopoldo) o Dr. John Snow administrou-
do trabalho de parto que
lhe a anestesia à base de clorofórmio que havia sido seja de fácil aprendizagem e
recentemente desenvolvida com um método gota a
gota em máscara aberta. «Sua Majestade é uma possa ser aplicado por
doente modelo», declarou o Dr. Snow. Recusou-se a
divulgar mais informações, apesar das inúmeras
alguém que não seja
perguntas importunas dos leais súbditos da Rainha. anestesista?
A elite social de Londres rapidamente seguiu o
exemplo da Rainha, acrescentando ainda mais
credibilidade ao uso da anestesia. O The Lancet O bloqueio do nervo pudendo é útil no alívio da
deplorou o recurso a esta «novidade anti-natural dor decorrente de distensão vaginal e perineal
para o trabalho de parto natural». No entanto, a durante a segunda fase do trabalho de parto. Pode
aprovação real ajudou a tornar a anestesia ser usado como complemento da analgesia epidural
respeitável nos meios da obstetrícia e da cirurgia. O se os nervos sagrados não estiverem suficientemente
clorofórmio deixou de ser usado, mas o método anestesiados, e como suplemento à analgesia
resistiu ao teste do tempo. Atualmente, o método de sistémica. Os bloqueios do nervo pudendo também
inalação de analgesia durante o trabalho de parto podem ser realizados para proporcionar analgesia
utiliza 50% de óxido nitroso em oxigénio. Foi em partos por fórceps baixo, mas são inadequados
introduzido na prática clínica há mais de 100 anos e nos partos por fórceps médio (ver parágrafo sobre
permanece um método analgésico standard nos «bloqueio do nervo pudendo e paracervical»).
serviços de obstetrícia («anestesia de la reine»). Mais
tarde, passaram também a ser usados outros agentes Se estiver disponível
de inalação («voláteis»), como o halotano. A
parturiente administra-se a si própria o gás
analgesia epidural, que
anestésico, segurando uma máscara facial. A doentes mais beneficiarão?
segurança desta técnica é que a parturiente não
consegue segurar a máscara se estiver demasiado
As indicações para a analgesia epidural incluem o
sonolenta, deixando assim de inalar o anestésico. É
pedido pela mãe, a previsão de dificuldades na
137

entubação para parto cirúrgico, antecedentes de


hipertermia maligna, algumas perturbações
Se for administrada
cardiovasculares e respiratórias, malformações analgesia epidural, pode ser
arteriovenosas, tumores cerebrais e obesidade
mórbida, bem como pré-eclâmpsia e síndrome de com a técnica de
HELLP (anemia hemolítica, enzimas hepáticas
elevadas e trombocitopenia).
administração única? Que
As contra-indicações absolutas incluem a fármacos devem ser
recusa da doente, alergia (embora as alergias «reais»
a anestésicos locais sejam raras), coagulopatia (para selecionados e onde colocar
evitar hematomas
antecedentes negativos
espinais/epidurais;
são
os
considerados
o cateter?
suficientemente eficazes na identificação dos
doentes que apresentam risco), infeções cutâneas no Para a analgesia durante o trabalho de parto, os
local de introdução da agulha (para evitar a cateteres epidurais são geralmente inseridos ao nível
formação de abcesso epidural), hipovolémia (para de L2-3 ou L3-4. Os principais fármacos utilizados
evitar hipotensão profunda do bloqueio simpático neste método são os anestésicos locais e opióides.
causada pela analgesia epidural dos segmentos
lombar e sagrado) e aumento da pressão
intracraniana (malformação do conteúdo cerebral
através do forame magno com perda de pressão
distal após a punção dural).
Quadro 3
Características químicas dos anestésicos locais frequentemente usados durante o trabalho de parto
Lidocaína Ropivacaína Bupivacaína L-bupivacaína
Peso molecular 234 274 288 325
pKa 7,7 8,0 8,2 8,1
Lipossolubilidade 2,9 3 28 25
Relação de captação média pelos tecidos 1 1,8 3,3 ?
Relação Uv/Mvtot* 0,6 0,28 0,3 0,3
Ligação às proteínas (%) 65 98 95 98
* A relação Uv/Mvtot representa a relação da concentração fetal/materna da concentração total do fármaco no
plasma (ligado * não ligado às proteínas) do plasma venoso materno e umbilical.

Quadro 4
Características dos opióides comummente usados no trabalho de parto
Morfina Fentanil Sufentanil Petidina Diamorfina
Lipossolubilidade 816 1727 39 1,4 280
Doses epidurais normais 50-100 g 5-10g 25-50 mg 3-5 mg 2,5-5 mg
Tempo de início de reacção (min.) 5-10 5-10 5-10 30-60 9-15
Duração (h) 1-2 1-3 2-4 4-12 6-12

As necessidades de analgesia epidural diferem na popular. É preciso proceder com cuidado, a fim de
gravidez e a injeção de uma dose de anestésico local evitar níveis séricos elevados por sobredosagem
resulta num aumento de 35% da difusão segmentar ou injeção i.v. ou intra-arterial acidental
comparativamente com o estado de não gravidez. A (concentrações elevadas no sangue podem causar
bupivacaína é o anestésico local utilizado e mais arritmias por reentrada). Continua a debater-se se
138

outros anestésicos locais (por ex. levobupivacaína parto, para além de uma redução dos efeitos
ou ropivacaína) apresentam menos toxicidade ou secundários, em particular do bloqueio motor.
um potencial menor para provocar bloqueio das A analgesia controlada pela doente é uma
fibras motoras, ou ambos. opção para um serviço de obstetrícia tecnicamente
Os opióides epidurais mais comummente sofisticado. A parturiente pode auto-administrar
usados são o fentanil e o sufentanil. Por vezes, são bólus, premindo um botão. É necessária uma
eficazes na fase inicial do trabalho de parto, mas bomba eletrónica e deve ser explicado à doente o
necessitam geralmente de ser complementados com seu funcionamento . Para uma perfusão de base, é
um anestésico local, à medida que o trabalho de geralmente usada uma dose de 10mL/h, com um
parto avança. A principal vantagem dos opióides intervalo de bloqueio predefinido de cerca de 15-30
epidurais é o facto de melhorarem a qualidade da minutos. As parturientes têm apreciado a redução
analgesia e de reduzirem a dose de anestésico local do bloqueio motor com este método e algumas
necessário: esta redução é considerada uma decidem levantar-se para ir à casa de banho e para
vantagem, uma vez que os anestésicos locais podem se sentarem numa cadeira confortável ao lado da
causar um bloqueio motor indesejável. Por cama. Embora, na maior parte dos casos, não seja
conseguinte, a maior parte dos anestesistas necessário, seria preferível encontrar-se alguém ao
obstétricos combinam uma mistura diluída de um lado da parturiente para lhe oferecer apoio sempre
anestésico local com uma pequena dose de opióides que precisar, para o caso de se desenvolver
para conseguir uma «epidural com mobilidade». hipotensão ortostática. A mobilização é segura se a
A combinação mais vulgarmente usada é mãe puder realizar uma elevação lateral da perna
uma mistura de pequenas doses de fentanil (2-2,5 estendida enquanto está de pé, desde que se sinta
g/mL) e bupivacaína (0,0625-0,1%). Perfusões estável. Infelizmente, não existe qualquer evidência
contínuas ou bólus intermitentes, destes dois de que a mobilização ativa reduza o risco de parto
agentes, podem ser administrados durante todo o instrumentado. A cardiotocografia (CTG)
trabalho de parto, mas a dose de carga inicial de 10- (monitorização do ritmo cardíaco do feto e das
30 mL da mistura deve ser administrada contrações uterinas) pode ser realizada de forma
inicialmente em doses divididas. intermitente. Se estiver indicada a monitorização
As soluções epidurais para o trabalho de contínua por motivos obstétricos, a parturiente
parto pode ser administradas continuamente pode ficar sentada numa cadeira ou de pé ao lado da
durante 12 horas ou mais. Os fármacos podem ser cama.
administrados através de um cateter e a analgesia As complicações da analgesia durante o
pode ser mantida, variando a taxa de perfusão para trabalho de parto incluem hipotensão (atualmente,
proporcionar um nível sensitivo superior em T10. com uma incidência muito menor, graças à baixa
As misturas anestésico local/opióide de baixa dose concentração de anestésico local), injeção i.v.
são geralmente iniciadas a 8-15 mL/h com aumento acidental, bloqueio elevado não previsto (bloqueio
da taxa ou bólus de 5-10 mL administrados para a espinhal/subdural total), retenção urinária, prurido,
dor irruptiva (tempo mínimo entre bólus: 45-60 punção dural acidental (o problema mais incómodo
min.). Em alternativa, pode ser usada uma mistura e comum), migração do cateter, bloqueio
de 0,0625% de bupivacaína e sufentanil 0,25 unilateral/parcial e arrepios .
A injeção intravascular acidental ocorre
As parteiras podem ser formadas para a geralmente na sequência de posicionamento
administração de reforços intermitentes de acidental do cateter epidural numa veia epidural.
pequenas doses, conforme a mãe necessitar. A Assim, mesmo uma pequena dose pode produzir
analgesia resultante é excelente, sem necessidade de efeitos no sistema nervoso central. Deve proceder-
dispor de dispositivos caros. O principal benefício se com cuidado a fim de evitar a colocação
da técnica intermitente – comparativamente com a acidental, através de testes de aspiração repetidos e
perfusão contínua – é a redução da administração de utilizando apenas doses fracionadas de anestésico
bupivacaína e fentanil durante todo o trabalho de local (evitando grandes volumes. Um bloqueio alto
imprevisto é frequentemente a consequência de uma
139

colocação inadvertida no espaço subaracnóide. Em locais poderão não ser adequadas para aliviar a dor
caso de administração intratecal acidental, as intensa na segunda fase. A adição de 3 mL 0,25% de
misturas de anestésico local/opióide em pequenas bupivacaína na formulação de elevado volume (20
doses não produzem um bloqueio espinal total com mL) e baixa concentração de bupivacaína/fentanil
depressão respiratória, mas podem causar bloqueio constituirá um bom início de anestesia. Doses
motor e disestesias e assustar a parturiente (e o adicionais de 3 mL são administradas se a dor
médico). Para a aplicação intratecal («espinhal») de persistir após 15 minutos. Outra opção razoável
anestésicos locais, a dose total de medicação injetada para proporcionar analgesia no 2º estadio é a
é mais importante do que o volume total realização de uma anestesia espinal ou espinal e
administrado. Muito raramente, um bloqueio epidural combinada (CSE) utilizando uma
elevado pode também resultar de um bloqueio combinação de anestésico local-opióide (por ex. 2
subdural. O espaço subdural situa-se entre a dura- mg de bupivacaína isobárica intratecalmente). Este
máter e a aracnoideia. Embora o espaço epidural se método oferece um início de reação rápido para que
estenda apenas até ao forame magno, o espaço a doente se sinta confortável e possa até estar
subdural estende-se para cima. É possível entrar preparada para uma cesariana em 5 minutos.
neste espaço inadvertidamente em qualquer fase do
trabalho de parto. O bloqueio subdural deve ser Se o parto vaginal não for
reconhecido por um aumento inesperado do nível
de anestesia , uma apresentação com início de ação bem-sucedido e for
lento, bloqueio parcial, analgesia sagrada l mínima,
paralisia de nervos cranianos e uma ausência relativa
necessária uma cesariana,
de bloqueio simpático . A injeção subsequente de como proceder com a
grandes volumes de anestésico local na espaço
subdural pode romper a aracnoideia e produzir analgesia intra e pós-
efeitos intratecais designadamente um bloqueio alto
operatória?
Existe uma «altura ideal»
O ritmo cardíaco fetal na doente referida no início do capítulo
para iniciar uma analgesia foi monitorizado e o obstetra considerou cesariana urgente
devido a sofrimento fetal. Nessa altura, pode considerar usar
epidural? anestesia espinhal em vez de geral, uma vez que é fácil,
económica, segura e oferece uma analgesia prolongada.
Ocasionalmente, uma parturiente atinge o segundo Ao longo dos últimos 15 anos, tem havido
estadio do trabalho de parto antes de necessitar de um grande aumento do número de cesarianas
analgesia neuraxial. A doente pode não ter solicitado realizadas sob anestesia regional. Por conseguinte, é
um cateter epidural mais cedo ou alterações do tentador afirmar que a anestesia geral deixou de
ritmo cardíaco ou posição do feto determinarem estar indicada, mas devem ser considerados alguns
uma instrumentação (por ex. utilizando fórceps ou fatores ao alterar a técnica anestésica padrão, de
ventosa). A iniciação da analgesia epidural continua anestesia geral para espinhal. É importante lembrar
a ser possível nesta altura, mas a latência prolongada que, quando é usada anestesia espinhal, os padrões
entre a posição do cateter e o início de uma de cuidados não podem ser inferiores aos da
analgesia adequada podem tornar esta opção menos anestesia geral.
desejável do que a técnica espinhal. Por outro lado, A avaliação clínica da mãe sujeita a cesariana
a introdução de um cateter epidural não pode ser eletiva ou de emergência é a mesma,
iniciada demasiado cedo. O argumento segundo o independentemente do plano de anestesia. Deve
qual a colocação prematura de um cateter pode incluir jejum pré-operatório, se possível, e
prolongar o 1ºestadio do trabalho de parto não foi preparação do conteúdo gástrico com antiácidos
confirmada pelos estudos. Se for usada analgesia apropriados. O anestesista deve ter acesso a todo o
epidural, concentrações muito baixas de anestésicos equipamento (incluindo equipamento para via aérea
140

difícil) e às instalações de recobro necessários para doentes obstétricos e não obstétricos, talvez devido
ambas as técnicas. a uma redução da dor centralmente transmitida,
A anestesia espinhal é provavelmente mais conforme sugerido em trabalhos laboratoriais. A
segura (segundo um estudo, 16 vezes mais segura) recuperação no pós-operatório melhora e as mães
do que a anestesia geral, desde que seja realizada de conseguem criar laços mais rapidamente com os
forma cuidadosa e com bom conhecimento da bebés. A ausência de efeitos farmacológicos no
fisiologia materna. As vias aéreas difíceis e os recém-nascido, observada quando é usada anestesia
edemas associados à obesidade tornam-se menos regional, implica menos intervenção para o bebé. A
problemáticos, mas lembrar que uma mulher má condição do recém-nascido após uma técnica
grávida deitada pode tornar-se hipotensa, mesmo regional está associado a um tempo prolongado
não aumentando o problema com a administração desde a incisão uterina até ao parto, bem como à
de anestésico por via intratecal. Uma gestão hipotensão materna, acidose fetal e asfixia, ao
insuficiente deste problema pode causar hipotensão contrário de uma anestesia geral, em que o baixo
grave, vómitos e perda de consciência, o que pode índice de Apgar se deve provavelmente à sedação.
causar a aspiração do conteúdo gástrico. Sempre que o recém-nascido já se encontrar
Devem ser respeitadas as diferenças em sofrimento e estiver acidótico, deve prestar-se
fundamentais entre uma mulher grávida e uma atenção de modo a evitar a compressão aortocava e
mulher não grávida no que toca à propagação do hipotensão materna. Deve ser adotada a posição
anestésico local, visto que um bloqueio lateral total em todas as mães para as quais se
inaceitavelmente elevado pode resultar em anestesia preveja o desenvolvimento de hipotensão grave. Foi
espinhal (ou epidural). Algumas situações clínicas demonstrado que a perfusão de cristalóides por via
podem causar problemas adicionais, todos elas i.v. usada tradicionalmente não é fiável na
relacionadas com uma fraca resposta compensatória eliminação da hipotensão. A rápida perfusão de um
à alteração rápida na pós-carga, em estados de grande volume de líquido pode causar um aumento
baixo débito cardíaco, por ex., estenose aórtica, súbito da pressão venosa central e causar edema
doença cardíaca congénita cianótica e agravamento pulmonar nas parturientes com predisposição para
de shunt venoso. tal. O preenchimento intravenoso com cristalóides
não reduz a necessidade de vasopressores e a
Quais são as restantes perfusão deve conter uma quantidade muito grande,
por ex. 40-59 mL/kg, e deve afetar
vantagens e desvantagens significativamente o volume celular da mãe. Um
de uma anestesia regional preenchimento mínimo de 200-500 mL combinado
com um vasopressor é suficiente. Foi comprovado
na cesariana? que uma combinação de perfusão i.v. de colóides e
cristalóides pode diminuir a incidência de
hipotensão. Os agentes vasopressores
Relativamente ao risco de hemorragia, parece que se
comummente usados para corrigir a hipotensão são
pode esperar menos hemorragia na cesariana com
a efedrina (bólus i.v. ou perfusão de 6-10 mg) e a
bloqueios regionais. Pelo contrário, ao utilizar
fenilefrina (bólus i.v. intermitentes de 25-100 µg). A
agentes de inalação, a anestesia geral comporta o
fenilefrina é um medicamento de eleição quando é
risco de relaxamento uterino e aumento de
indesejável a ocorrência de taquicardia.
hemorragia venosa dos plexos venosos pélvicos.
Existem determinadas situações nas quais
Embora existe a perceção tradicional de que a
será mais apropriada uma anestesia geral do que
anestesia regional deve ser evitada sempre que se
uma anestesia regional. Estas situações incluem a
espera hemorragia na gestose, a influência favorável
recusa do bloqueio regional pela parturiente,
dos bloqueios regionais nesta doença podem, pelo
coagulopatia, trombocitopenia, hemorragia grave
contrário, jogar a favor da anestesia regional.
prevista ou efetiva, infeção local no ponto de
A dor pós-operatória é mais eficazmente
inserção da agulha espinal ou epidural, problemas
manuseada depois de uma anestesia regional em
anatómicos e determinados estados clínicos. A falta
141

de tempo é o motivo mais comum para a escolha da aumento da dose para além desta dose recomendada
anestesia geral, embora, para um médico não parece oferecer uma analgesia mais eficaz no
especializado, o tempo não seja um problema. Se período intra ou pós-operatório. O posicionamento
estiver colocado um cateter epidural, a avaliação e o da parturiente não parece influenciar o nível ou a
reforço não devem demorar mais de 10 minutos, altura final do bloqueio, mas interfere com a taxa de
geralmente mais do que suficiente para a maioria das início de ação e a difusão do anestésico local. A
situações. posição sentada é frequentemente adotada por
A hipotensão materna é uma complicação muitos anestesistas, mas também se pode usar a
comum do bloqueio simpático em particular das posição deitada.
fibras simpáticas cardíacas. Esta complicação pode O bloqueio sensitivo ( ao toque ligeiro) até
causar uma diminuição repentina do ritmo cardíaco T5 é suficiente para este tipo de cirurgia, utilizando
com baixo débito cardíaco e, se não for evitada a a técnica epidural ou espinhal. A única diferença
compressão aortocava, ocorrerá hipotensão pode ser o facto de, mais facilmente, se conseguir
persistente que poderá colocar o bebé em risco. O um bloqueio mais profundo com o bloqueio
nível do do bloqueio simpático poderá estar alguns intratecal.
dermatomas acima do nível sensitivo medido. Esta
complicação é observada com maior frequência em Como testar o bloqueio
mulheres propostas para uma cesariana eletiva do
que naquelas que já se encontram em trabalho de
Descobriu-se que a ausência de sensação ao frio se
parto, uma vez que a quantidade reduzida de
encontra dois dermatomas acima da sensação de
líquidos após o rompimento das membranas causa
picada, que, por sua vez, se encontra dois
menos compressão aortocava e porque já se
dermatomas acima da sensação ao toque ligeiro. Isto
iniciaram os ajustes fisiológicos maternos.
significa que o toque ligeiro é o melhor método para
Podem ser usados suplementos à analgesia
testar o nível do bloqueio. Se a sensação ao toque
intra-operatória, desde que se vigie o nível de
ligeiro se perder ao nível de S1 a T8-6 (o nível dos
sedação. Demonstrou-se que cinquenta por cento
mamilos encontra-se aproximadamente em T5), a
de protóxido de azoto em oxigénio, 0,25 mg/kg de
anestesia é adequada para a cirurgia. A extensão do
cetamina por via i.v., e 1 µg/kg de fentanil são
bloqueio motor reflete o bloqueio do toque ligeiro
seguros e eficazes. As benzodiazepinas por via
(com uma ponta de tecido ou um fio de nylon) e é
intravenosa, como o diazepam, podem ajudar uma
principalmente adequado com a total ausência de
mãe muito angustiada.
flexão da anca e dorsiflexão do tornozelo. O
anestesista deve usar sempre a mesma técnica de
Existe uma abordagem avaliação do bloqueio e é importante que o faça de
definida para a anestesia forma bilateral. A medição dos dermatomas
torácicos deve ser realizada cerca de 5 cm
espinal na cesariana? lateralmente até à linha mediana.

Com as agulhas mais pequenas e as respetivas Se já tiver sido aplicada uma


extremidades em ponta de lápis atraumáticas, a taxa
de cefaleias é inferior a 1%, a menos que a mãe seja
epidural para um parto
de estatura muito baixa ou muito alta. Fatores como vaginal mas for necessário
o posicionamento da parturiente e o tamanho da
barriga podem influenciar a difusão e extensão do efetuar uma cesariana,
bloqueio. A redução da dose de anestésico local
para menos de 10 mg de bupivacaína hiperbárica a
como proceder?
0,5%, sem qualquer adição de opióides, pode
proporcionar um bloqueio inadequado. Pode ser O volume de reforço epidural par converter uma
acrescentado fentanil numa dose de 12,5- analgesia epidural para o trabalho de parto em
142

anestesia epidural para uma cesariana é variável. Se a da dor de parto. Outra vantagem da técnica epidural
cirurgia for urgente, é necessário um grande bólus é o facto de poder ser usado um cateter epidural in
inicial de anestésico local para um início rápido e situ para administrar os anestésicos e oferecer um
fiável da anestesia. Inicialmente, o bloqueio alívio da dor no parto instrumentado ou por
existente deve ser avaliado e o anestesista deve ser cesariana, se necessário. Se não estiver ainda
envolvido numa fase precoce, se se revelar provável colocado nenhum cateter epidural, a anestesia
o recurso a cirurgia. A epidural deve ser reforçada o espinhal – uma técnica segura e fácil – pode ser uma
mais rapidamente possível, a menos que tenha sido boa alternativa e talvez até uma alternativa preferível
administrado um reforço muito recente durante o à anestesia geral.
trabalho de parto, e 20 mL de bupivacaína simples a Para o parto por cesariana sob anestesia
0,5% parece ser a melhor escolha. Depois de o neuraxial, o principal fármaco usado é um
reforço ter sido administrado, o anestesista devem anestésico local. Se for adotada uma abordagem
permanecer o tempo todo com a parturiente, epidural, 2% de lidocaína com epinefrina, 5 µg/mL,
verificar a sua pressão arterial e dispor de efedrina é uma escolha razoável, uma vez que é muito pouco
pronta para ser utilizada. A posição mais segura para provável que ocorram efeitos cardiotóxicos
a parturiente durante o transporte até à sala de sistémicos. Em alternativa, também pode ser usada
operação é a posição lateral total. Se se revelar que 0,5% de bupivacaína ou ropivacaína. Se for adotada
existe uma desigualdade na difusão do bloqueio uma abordagem espinal, 10 a 15 mg de bupivacaína
aquando da avaliação inicial, colocar a mãe na hiperbárica proporcionarão uma anestesia fiável. A
posição lateral total, do lado em que o bloqueio está lidocaína hiperbárica tem vindo a ser contestada
mais fraco e administrar o reforço. O tempo médio devido a uma elevada incidência de efeitos
para que este bloqueio surta efeito é de cerca de 15 neurotóxicos, embora estes efeitos tenham sido
minutos. registados principalmente em doentes não grávidas.

Pérolas de sabedoria Referências


Existe uma variedade de opções farmacológicas [1] American College of Obstetricians and Gynecologists
para o manuseamento da dor de parto. Os opióides and American Academy of Pediatrics. Guidelines for
perinatal care, 6.ª ed. 2007.
administrados sistemicamente atuam primariamente [2] Larsson C, Saltvedt S, Wiklund I, Pahlen S, Andolf E.
através da indução de sonolência, e não tanto da Estimation of blood loss after cesarean section and
produção de analgesia. Além disso, a transferência vaginal delivery has low validity with a tendency to
placentária de opióides para o feto pode provocar exaggeration. Acta Obstet Gynecol Scand
depressão respiratória neonatal. A vantagem da 2006;85:1448.
[3] Penn Z, Ghaem-Maghami S. Indications for caesarean
analgesia sistémica reside na sua simplicidade. As section. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol
técnicas elaboradas, como a analgesia intravenosa 2001;15:1.
controlada pelo doente (PCA), são interessantes
mas não são necessárias para conseguir uma boa Sítios na Web
analgesia. Uma parteira ou um obstetra devidamente
formados conseguem proporcionar uma excelente
www.oaa-anaes.ac.uk
analgesia controlada pelo enfermeiro ou médico em Obstetric Anaesthetics Association
locais onde não está disponível um anestesista ou se
www.rcoa.ac.uk
a analgesia regional (epidural e/ou espinal) estiver Royal College of Anaesthetics
contra-indicada. www.aagbi.org
As técnicas analgésicas regionais são a forma Association of Anaesthetics of Great Britain and Ireland
mais fiável de aliviar a dor do trabalho de parto e da www.eguidelines.co.uk
expulsão. Além disso, ao bloquear a resposta Directrizes em formato electrónico
fisiológica à dor a analgesia epidural e espinhal http://bnfc.org
conseguem inverter as consequências indesejáveis BNF for Children
143

www.bnf.org www.britishpainsociety.org
British National Formulary (BNF) British Pain Society

www.world-anaesthesia.org
World Anaesthesia Society

Quadro 2
Administração de analgésicos na gravidez
Medicação Risco Observações
Opióides e agonistas opióides
Meperidina 1 Foi observada síndrome de abstinência neonatal dos narcóticos em
Morfina 1 mulheres que tomaram opióides a longo prazo
Fentanil 2 Quase todos causam depressão respiratória no recém-nascido
Hidrocodona 1 quando usados próximos do parto
Oxicodona 2 Usados para o tratamento da dor aguda: nefrolitíase, colelitíase,
Propoxifeno 2 apendicite, lesões, dor no pós-operatório
Codeína 1
Hidromorfona 2
Metadona 3
Não esteróides
Diclofenac 4 Associado a complicações no terceiro trimestre de gravidez (após
as 32 semanas): oligohidramnios, oclusão prematura do canal
arterial
Etodolac 4
Ibuprofeno 2/4 Tanto o ibuprofeno como a indometacina têm sido utilizados
Indometacina 2/4 durante breves períodos antes das 32 semanas de gestação sem
causar quaisquer danos. A indometacina é frequentemente usada
para conter um parto prematuro.
Cetoprofeno 4
Cetorolac 4
Naproxeno 4
Sulindac 4
Aspirina
Aspirina para adulto 4 A aspirina para adulto pode causar constrição do canal arterial
Aspirina de baixa dosagem 1 A aspirina de baixa dosagem (para bebés) é segura durante toda a
(para bebés) gravidez
Salicilatos
Acetaminofeno 1 Amplamente usado
Combinações de opióides-salicilatos
Acetaminofeno-codeína 1 Amplamente usado para o tratamento da dor aguda
Acetaminofeno- 1
hidrocodona
Acetaminofeno-oxicodona 1
Acetaminofeno- 2
propoxifeno
1 = Agente principal recomendado
2 = Recomendado se estiver a tomar atualmente ou se o agente principal estiver contra-indicado
3 = Dados limitados para apoiar ou prescrever o uso
4 = Não recomendado
144

Gestão da Dor Oncológica


145

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 18
Cancro Abdominal, Obstipação e Anorexia
Andreas Kopf

Caso Clínico:
Yohannes Kassette, 52 anos, nascido em Addis Abab, é aliviar grande parte da dor por algum tempo; assim, o Sr.
casado, pai de quatro filhos (12, 15, 21 e 23 anos), Kassete retomou o seu trabalho em Nazret.
cozinheiro no restaurante dos caminhos-de-ferro de Nazret. Sendo cozinheiro, Yohannes tinha algum excesso de peso, pelo
Viaja de comboio até Djibouti-Addis Ababa, cerca de que não se incomodou com a perda ponderal que sofreu nos 3
quatro vezes por ano, para visitar a família. meses seguintes, já que a atribuiu a alguma falta de apetite.
Na altura em que começou a sofrer de epigastralgias Quando começou a sentir náuseas reduziu espontaneamente o
pensou que já não tolerava a comida tão bem como quando aporte hídrico. Por volta dessa altura, começou também a
era jovem. Atribuiu alguma responsabilidade ao desânimo sofrer de obstipação. Sabia que as sementes de papaia
pela deterioração do seu negócio. As queixas aliviavam poderiam ajudar, mas não lhe retiraram a dor abdominal que
parcialmente com recurso à Aspirina e ao fumo ocasional de atribuía à obstipação.Com a perda progressiva de peso, a dor
“bhanghi” (Marijuana). Na visita seguinte à família em epigástrica crescente e náuseas recorrentes, acabou por ser
AddisAbaba sentia-se praticamente recuperado, quando encaminhado ao Centro de Saúde local.
experimentou a dor mais intensa que alguma vez sentira na Como a dor irradiava para as costas, suspeitaram de algum
vida. No dia seguinte, como a dor não regrediu, o irmão (que problema da coluna dorsal, secundário a abaixamentos
trabalhava no Bar Ambassador, bar que fazia serviço e frequentes inerentes ao seu trabalho na cozinha; pediram um
catering para o pessoal médico do Hospital Tikur Ambessa) raio-X da coluna que não mostrou qualquer alteração.
procurou uma consulta “informal” com um internista. Mesmo assim, medicaram com 50mg de Codeína quando
Apesar da relutância de Yohannes em ser observado necessário. O Sr. Kassete sentia-se cada vez mais fraco e com
pelo médico, o seu irmão convenceu-o. Ao exame objetivo, o mais dor, pelo que foi aumentando a dose de codeína. Dada a
médico suspeitou da presença de uma massa no quadrante preocupação crescente com o seu estado de saúde, na visita
superior esquerdo do abdómen e programou a realização de seguinte à família, em AddisAbaba, optou por procurar
uma ecografia abdominal. Os resultados foram devastadores: novamente o médico conhecido do irmão, que o vira antes.
elevada probabilidade de cancro da cabeça do pâncreas. O Por indisponibilidade desse médico, acabou por ser
médico não revelou o diagnóstico ao Sr. Kassete, falando-lhe observado por um outro colega do Departamento de Medicina
de uma “inflamação” que necessitaria apenas de repouso, Interna que o internou imediatamente por constatar distensão
tendo-o medicado com Diclofenac (75mg tid) para analgesia. abdominal extrema, sem ruídos hidroaéreos percetíveis à
A toma regular de uma dose adequada de Diclofenac, auscultação. Ao toque rectal verificou a existência de fecaloma
em vez da toma irregular de Aspirina 500mg, acabou por na ampola rectal, com necessidade de remoção manual nos
146

três dias seguintes. Após os enemas, o Bisacodilo e o Sene, para recuperar o trânsito. Através do seu contacto, uma
conseguiram regularizar a consistência das fezes. O Sr. enfermeira de Addis Hospice veio ver o Sr. Kassete e
Kassete foi aconselhado a tomar Sene diariamente, bem como conversou com a família. Demorou algum tempo até que
acrescentar uma colher de sopa de óleo vegetal ou margarina convencesse a família do Sr. Kassete a aumentar a dose de
líquida à sua dieta diária. Foi assumido que a obstipação morfina para 30 mg qid. Para melhorar o sono, a dose ao
seria, pelo menos em parte, secundária à Codeína, pelo que o deitar foi duplicada. Aparentemente, as medidas surtiram
médico recomendou a toma regular de Sene com reforço do efeito. Apesar do seu abdómen se manter muito distendido, o
aporte hídrico. Além disso, dado que a toma diária de Sr. Kassete conseguia descansar e encontrava-se sem dor, sem
Codeína atingia já os 100 mg qid, o médico optou por vómitos e com redução significativa das náuseas. A família foi
mudar/rodar o opióide para morfina, na tentativa de obter aconselhada a não forçar a alimentação ou o aporte hídrico e
maior eficácia. De acordo com as tabelas de equivalência de o Sr. Kassete não o pedia por iniciativa própria. Ao 4º dia,
opióides, calculou a dose equivalente de morfina diária em 10 começou a ficar mais sonolento e acabou por falecer na noite
mg qid, o que também acabaria por ser mais económico para do 6º dia após o inicio da deterioração.
o Sr. Kassete.
A família de Yohannes ficou chocada por saber que o Porquê um capítulo sobre
seu primogénito tomava morfina diariamente pelo que
decidiram acompanhá-lo na consulta seguinte. Foi necessária cancro abdominal,
paciência para o médico conseguir explicar ao doente e à sua
família a necessidade de recurso aos opióides bem como o
obstipação e anorexia?
previsível consumo continuado a longo prazo. Nesta mesma
consulta o doente e a família foram pela primeira vez A dor tem início precoce no cancro abdominal. No
colocados perante o diagnóstico de cancro do pâncreas do Sr. cancro do pâncreas, por exemplo, o controlo
Kassete, e da não possibilidade de tratamento cirúrgico. Um sintomático e a cirurgia são as únicas opções
médico cubano presente no departamento sugeriu um bloqueio terapêuticas realistas, mesmo em países
do plexo celíaco para controlo da dor, mas o Sr. Kassete não desenvolvidos, uma vez que a radioquimioterapia
confiou na sua opinião e recusou. pouco ou nada altera o curso natural da doença. A
A família decidiu não permitir o regresso do Sr. Kassete ao obstipação, apesar de parecer um problema simples,
trabalho em Nazret e ele acabou por se mudar para casa da frequentemente complica a terapêutica e diminui a
família, que lhe disponibilizou um pequeno quarto. A qualidade de vida dos doentes. Anorexia, caquexia,
farmácia hospitalar não tinha morfina de libertação má-absorção e dor podem agravar ainda mais o
prolongada disponível, pelo que dispensou ao Sr. Kassete curso do cancro abdominal. Apesar da informação
xarope de morfina a 0,1% (1 mg/ml) para tomas de 10cc crescente, nas últimas décadas, acerca da
qid, dose esta que provou ser eficaz. necessidade de controlar os sintomas relacionados
Por esta altura, o Sr. Kassete passava grande parte do seu com o cancro, o controlo da dor ainda se mantém,
tempo na cama; a higiene pessoal e a mobilização para se muitas vezes, inadequado.
alimentar aumentavam de tal forma a dor, que esta se
tornava insuportável. No entanto, descobriu que se fumasse Quais os problemas
regularmente "bhanghi" a náusea reduzia, permitindo-lhe,
pelo menos, a alimentação. Por sugestão do irmão, aumentou-
particulares dos doentes
se a dose de morfina. Nas semanas seguintes, o seu estado com cancro digestivo?
decaiu, mas com 15 mg de morfina quatro vezes por dia e,
por vezes, até seis vezes por dia, o Sr. Kassete passava bem,
até que, desenvolveu novamente grande distensão abdominal A incidência média de dor no cancro é de 33%
com náuseas e dor. numa fase inicial e ronda os 70% nos estádios
Como se encontrava demasiado fraco para se deslocar ao avançados da doença. No cancro digestivo, estes
hospital, chamaram uma vizinha enfermeira para o ver. Ao números são consideravelmente mais elevados; por
constatar a natureza fecalóide dos vómitos de Yohannes, a exemplo, no cancro do pâncreas, quase todos os
enfermeira não teve dúvidas de estar perante um quadro de doentes desenvolvem dor nos estádios mais
oclusão intestinal e que mais nenhum esforço poderia ser feito avançados da doença. No que respeita à intensidade
147

da dor, cerca de metade dos doentes refere dor celíaco. Esta é uma das poucas terapêuticas
moderada a intensa, com tendência para que a dor “neurodestrutivas” cuja utilização ainda é
intensa seja mais elevada no cancro do pâncreas, considerada útil atualmente. A destruição nervosa
esófago e estômago. noutras localizações demonstrou comportar maior
Causas típicas de dor no cancro digestivo incluem dano do que benefício para os doentes, tal como
estenose do delgado ou cólon, distensão da cápsula por exemplo a anestesia dolorosa, isto é dor no local
hepática por doença metastática do fígado e da desaferenciação nervosa.
obstrução do canal biliar ou do ureter por infiltração
de tecido neoplásico. Esta dor visceral é difícil de Como é que o doente
localizar, dadas as particularidades da inervação dos
órgãos abdominais e pode surgir como dor referida, tipicamente descreve a dor
por exemplo, dor na coluna dorsolombar, dada a
distribuição dos nervos intercostais e outros.
intra-abdominal?

Porque é tão difícil para o Geralmente, a dor dos órgãos intra-abdominais tem
origem na estimulação das terminações nervosas e é
doente com dor visceral conhecida por dor somato-visceral, em oposição à
dor neuropática das lesões nervosas. A característica
identificar o local exato da da dor mais frequentemente referida pelos doentes é
dor? não ser bem localizada. Tipicamente descrevem-na
como sendo uma dor incomodativa ou pressão mas
por vezes em cólica. A intensidade da dor é avaliada
As fibras aferentes viscerais (fibras C nociceptivas) da mesma forma que para outros tipos etiológicos
convergem ao nível da medula, nos cornos dorsais; de dor, recorrendo à escala visual ou numérica
assim, a discriminação do local exato de origem do analógica.
estímulo doloroso é impossível. Um doente com
cancro do pâncreas seria, então, incapaz de dizer ao
seu médico que tem dor no pâncreas; referir-se-ia a
Qual a taxa de sucesso
esta dor como dor na parte superior da barriga, com expectável com os métodos
irradiação em cinturão para as costas. À irradiação
da dor dá-se o nome de “dor referida”. de analgesia mais
“simples”?
Porque é importante
conhecer o percurso das A abordagem da dor em doentes com cancro
digestivo é relativamente fácil. De acordo com a
fibras nociceptivas dos literatura disponível, em mais de 90% dos doentes, a
órgãos viscerais? dor poderá ser controlada seguindo os algoritmos
mais simples de abordagem da dor. Estudos
observacionais de instituições de cuidados
As fibras nervosas aferentes que conduzem o paliativos, como o Nairobi Hospice no Quénia,
estímulo nociceptivo dos órgãos viscerais relatam uma taxa de sucesso que ronda os 100%,
encontram as fibras eferentes simpáticas antes de com um simples algoritmo de terapêutica da dor.
atingirem a espinal medula em nós chamados Tal como para toda a dor oncológica, o protocolo
“plexos nervosos”. Daqui, as fibras condutoras da de abordagem da dor segue as recomendações da
dor continuam, através dos nervos esplénicos pré- OMS e baseia-se na combinação de analgésicos
ganglionares, para a espinal medula (T5 a T12). Este opióides e não opióides, tal como o paracetamol,
percurso permite colocar uma interessante opção metamizol ou anti-inflamatórios não esteróides
terapêutica: interromper o percurso nociceptivo (AINEs). Co-analgésicos e terapêuticas invasivas
com um bloqueio neuroléptico ao nível do plexo
148

raramente estão indicados (ver outros capítulos rápida progressão da doença e a sua fraca
sobre regras gerais para abordagem da dor sensibilidade à radio ou quimioterapia. De acordo
oncológica e dos opiáceos). Se a fluoroscopia estiver com a literatura, 85% dos doentes beneficiaram de
disponível, bem como médicos adequadamente um bloqueio neuroléptico, sendo que, alguns
treinados nesta prática, a neurólise do plexo celíaco doentes podem mesmo suspender a terapêutica
pode ser utilizada para reduzir a dose opióide opióide.
necessária a melhorar o controlo da dor no cancro Os efeitos laterais do bloqueio neuroléptico do
hepático ou do pâncreas. plexo celíaco, apesar de raros, devem ser explicados
ao doente, que deve assinar um consentimento
Porque se mantém alguma informado.

relutância no recurso à No cancro digestivo, que


morfina ou outros opióides outros sintomas, além de
no doente com cancro dor, causam sofrimento?
digestivo?
A dor não é o único problema do doente
Desde os primeiros estudos que se sabe que um dos oncológico. Aliás, as queixas mais frequentes são
efeitos indesejáveis da morfina é a indução de mesmo o cansaço, seguido de anorexia. O
espasticidade do esfíncter de Oddi e do ducto biliar. desconforto, como consequência da obstipação, é
Este efeito lateral dos opióides é mediado pela ação também uma queixa frequente. Infelizmente, a
colinérgica dos opióides, bem como pela sua obstipação é frequentemente desvalorizada pelo
interação direta com os recetores opióides um; daí terapeuta, chegando a ser menosprezada ou
existir alguma relutância em relação ao uso da ignorada. Na verdade, a obstipação pode tornar-se,
morfina. Estudos mais recentes não confirmaram frequentemente, na causa de anorexia, náuseas e dor
estes aspetos, pelo que a morfina poderá ser abdominal. Portanto, uma avaliação regular da
utilizada sem reservas. existência de obstipação deve fazer parte do
acompanhamento destes doentes e devem ser
Onde e como poderão ser empregues os esforços necessários para o seu alívio
ou pelo menos diminuição.
usadas técnicas
Todos parecem saber o que
neurodestrutivas?
é a obstipação mas não há
Para a dor do cancro abdominal superior, a acordo em relação a quando
estrutura alvo deve ser o plexo celíaco. Para cancro a diagnosticar. Afinal qual é
do cólon ou de órgãos pélvicos, o alvo é o plexo
mioentérico, e para cancro da bexiga e a definição?
rectossigmoideu, o plexo hipogástrico. Geralmente
estas estruturas são fáceis de identificar utilizando Obstipação define-se por trânsito intestinal
referências anatómicas e fluoroscopia. Se estiver lentificado, com uma frequência inferior a duas
disponível, a tomografia computorizada (TC) seria o dejeções por semana, acompanhado por dor à
método standard para identificar o plexo alvo. No defecação, distensão abdominal e irregularidade.
entanto, estas técnicas devem ser aplicadas apenas Náuseas, vómitos, desorientação, cólicas e diarreia
por terapeutas experientes, sendo o conhecimento paradoxal podem também surgir. Os critérios de
literário francamente insuficiente. Roma para o diagnóstico de obstipação são
A indicação para bloqueio neuroléptico no cancro utilizados para a definir. Infelizmente, o doente
do pâncreas é sobejamente reconhecida, dada a pode “não concordar” e sentir-se obstipado com
149

menos ou com outros sintomas. O diagnóstico tem distinguir disfunções de problemas morfológicos do
por base apenas a história clínica. tubo digestivo terminal ou de estruturas mais
proximais.
Quais são os critérios de
Quais as conclusões que se
Roma?
podem retirar a partir do
De acordo com os critérios de Roma, pelo menos toque rectal?
dois dos seguintes sintomas têm que estar presentes
durante, pelo menos, 3 meses no último ano:
- Duas ou menos dejeções semanais Quando a ampola rectal se encontra preenchida de
- Fezes duras na ampola rectal material fecal endurecido, não é recomendada a
- Sensação de dejeção incompleta administração de expansores do volume fecal, já que
- Manobras manuais para evacuar poderiam agravar o problema pré-existente,
tornando a sua resolução mais complicada – está
As queixas de obstipação indicada a remoção manual do fecaloma. Na doença
terminal, quando há formação recorrente de
serão idênticas em todo o fecalomas, a família deverá ser instruída no sentido
de os remover. Quando a ampola rectal se encontra
mundo? vazia mas distendida, laxantes com efeito emoliente
e propulsor são indicados. Após descida das fezes
Estima-se que a nível mundial, um em cada 8 para a ampola rectal, os enemas podem ajudar na
indivíduos sofra, pelo menos ocasionalmente, de sua eliminação. Se o reto se encontrar vazio e
obstipação. Estão descritas variações de prevalência colapsado, é pouco provável que se trate de um
entre a América Latina e a América do Norte, bem quadro de impactação fecal, pelo que os expansores
como com as ilhas do Pacífico, onde a prevalência é do volume fecal orais devem ser usados
aproximadamente o dobro do resto do mundo. A (combinados com estimuladores do peristaltismo).
prevalência aumenta para 20-30% com a idade
avançada e no sexo feminino. Nos cancros Que etiologias além do
abdominais em estádios avançados, especialmente
nas situações que se encontram em tratamento
cancro devem ser
paliativo, a incidência pode ser superior a 60%. consideradas?
Que exames devem ser Vários fatores influenciam a mobilidade do cólon.
realizados? O fator “extrínseco” mais importante é a
farmacoterapia (por exemplo, opióides e
anticolinérgicos como os antidepressivos ou os anti-
O diagnóstico de obstipação é, essencialmente,
ácidos contendo cálcio e alumínio) e os fatores
baseado na história clínica. Se, de acordo com os
“intrínsecos” mais importantes são as plexopatias
critérios acima descritos, for feito o diagnóstico de
(por exemplo, neuropatia autonómica na diabetes
obstipação e estivermos na presença de cancro
ou na doença de Parkinson). Desidratação,
abdominal, a etiologia da obstipação poderá ser
imobilização, hipocaliémia (por exemplo, secundária
óbvia. O toque rectal e, se disponível, a
à terapêutica diurética) e fraqueza muscular, são
proctoscopia estão indicados. O toque rectal deverá
fatores adicionais. As últimas são as principais
ser realizado, com o consentimento do doente, na
causas de obstipação em doentes com cancro
avaliação inicial de todos os doentes. Em casos
digestivo, combinadas com o efeito direto do
particulares, testes manométricos e avaliação do
crescimento tumoral (obstrução e inflamação). Por
tempo de trânsito oro-anal, poderão ser feitos para
vezes negligenciados, a depressão e os distúrbios de
150

ansiedade, que têm maior incidência no doente fezes. Pode ainda acrescer um efeito redutor dos
oncológico, podem ser outros fatores opióides sobre o peristaltismo a nível central.
predisponentes. Apesar da terapêutica com opióides ser uma das
causas mais frequentes de obstipação, e apesar de
Quais são os fatores de risco não existir nenhum protocolo de tratamento ou de
profilaxia baseado em evidência, é aconselhável que
para obstipação específicos se faça sempre profilaxia para prevenir a obstipação
do doente oncológico? induzida pelos opióides, esteja ela já presente ou
não.

- Desidratação, por exemplo, após vómitos Todos os doentes com


recorrentes
- Aporte nutricional reduzido por anorexia obstipação requerem
secundária ao processo neoplásico terapêutica laxante
- Múltiplos procedimentos cirúrgicos ou
diagnósticos (por exemplo, o contraste baritado
especial? Qual o algoritmo
usado na Radiologia é um potente agente terapêutico mais simples?
obstipante)
- Metástases gastrintestinais Como é frequente, as soluções mais simples acabam
- Terapêutica prolongada com opióides por ser as mais eficazes. Terapêutica laxante
- Co-analgesia com agentes com efeitos específica está indicada apenas para casos
anticolinérgicos (por exemplo, antidepressivos particulares, sendo um deles a profilaxia da
tricíclicos e anticonvulsivantes) obstipação induzida por opióides.
- Quimioterapia (por exemplo, alcalóides da vinca) Técnicas “inespecíficas” para reduzir a obstipação
- Hipercalcemia (frequente na metastização óssea) podem ser eficazes quando combinadas, por
- Imobilização intra-hospitalar (associada à perda de exemplo, nutrição rica em fibras, atividade física
privacidade, causam inibição psicológica da diária, massagem intestinal e hidratação oral
defecação normal) adequada. Infelizmente, a eficácia deste esquema
- Dor não controlada (cirúrgica ou oncológica), profilático é limitada quando a causa de obstipação
patologia depressiva e ansiosa (causam aumento da é medicamentosa, nomeadamente secundária a
estimulação simpática e, consequentemente, redução opióides. Além disso, a maioria dos doentes seria
da motilidade intestinal). incapaz de cumprir com regularidade a dieta e o
exercício necessários. Assim sendo, a prescrição de
Porque é que os opiáceos fármacos com efeito obstipante deve limitar-se
aqueles doentes para quem sejam indispensáveis. Se
provocam obstipação? não se puder prescindir destes fármacos, devem ser
adotados esquemas laxantes adaptados ao doente e
Para compreender a obstipação secundária aos que prevejam uma abordagem por etapas. O
opiáceos, é importante lembrar que o peristaltismo é primeiro passo será o recurso a laxantes de uso
consequência de contrações longitudinais do comum e de fácil acesso, por exemplo, sementes
músculo liso proximal, do bolo alimentar e da moídas de papaia (1 a 5 colheres de chá por dia, ao
compliance intestinal. Os neurónios motores deitar) juntamente com uma colher de óleo vegetal
excitatórios intestinais, responsáveis pelas (1 colher de chá por dia) ou terapêuticas alternativas
contrações longitudinais, têm inervação colinérgica. que o doente já tenha experimentado com sucesso.
Uma vez que os opióides têm efeito anticolinérgico, Se esta abordagem se mostrar insuficiente, o
inibem este peristaltismo. Além disso, os opióides segundo passo adiciona às medidas prévias ou sene
aumentam a concentração local de 5-HT e ou bisacodilo (comprimidos). Os comprimidos
norepinefrina, reduzindo as secreções da parede também devem ser tomados ao deitar e deve-se
intestinal e limitando ainda mais a progressão das
151

aumentar a dose em um comprimido por dia até que Macrogol mais sene associado a bisacodilo
existam movimentos intestinais eficazes. A dose (propulsor)
permanente estabelece-se através de uma cuidadosa Supositórios (glicerina ou bisacodilo)
titulação no início da terapêutica laxante. O terceiro Enemas (sabão e água)
passo será combinar laxantes com terapêutica local: Remoção manual das fezes
supositórios de bisacodilo ou glicerina. Se os Em caso de emergência: óleo de rícino, agente de
supositórios não se encontrarem disponíveis, um radiocontraste ou naloxona/metilnaltrexona
preparado de geleia de petróleo pode ser uma opção
(o doente deve reter um pedaço do preparado Quais os mecanismos de
durante cerca de 20 minutos). O uso de arrastadeiras
deve ser evitado sempre que possível e o doente ação dos laxantes típicos?
deve ter liberdade para se sentar de forma a
proporcionar uma contração mais eficaz da O mecanismo mais simples de ação dos laxantes é
musculatura abdominal. através do amolecimento das fezes, o que,
normalmente, é suficiente para permitir a
Quando os laxantes estão regularização do trânsito intestinal em doentes não
oncológicos com atividades de vida diária normal e
indicados, qual é o com aporte hídrico adequado. A lactulose é
algoritmo de tratamento económica e acessível, atua atraindo água ao espaço
intraluminal do intestino, sendo, portanto, não
ideal? reabsorvível. Ao aumentar o volume intraluminal e
dilatar a parede intestinal desencadeia um
Deve ser sempre ponderado o recurso a laxantes mecanismo propulsivo. Infelizmente, a fermentação
naturais ou comidas que o doente confirme terem já é um efeito secundário da lactulose, resultando na
sido bem sucedidas, tal como, sementes de papaia formação de gases. O macrogol é um
ou grãos de café da árvore de café e sene triturados. polietilenoglicol artificial com efeito osmótico
Desta forma, será sempre importante a colaboração semelhante mas não requer um aporte hídrico tão
do doente e o ajuste personalizado da terapêutica. grande, pelo que poderá ser mais adequado ao
Doentes com terapêutica opióide fixa, requerem doente com cancro abdominal, cuja hidratação oral
sempre prescrição simultânea de laxantes está, provavelmente, reduzida. O macrogol tem um
profiláticos. A exceção a esta regra são os doentes efeito salino e não é metabolizado, pelo que não há
com diarreia crónica, entre os quais muitos são fermentação ou aumento da produção de gases.
doentes com VIH/SIDA em fases avançadas, que A lactulose e o macrogol têm um efeito laxante
fazem opióides para controlo da dor neuropática e dose-dependente e geram mecanismos de tolerância.
que podem beneficiar simultaneamente do efeito Outra classe de laxantes é os óleos não reabsorvíveis
obstipante dos opióides. (parafinas), que combinam o efeito de
Alguns laxantes não estão indicados para uso amolecimento das fezes com a lubrificação. Como
prolongado, principalmente antireabsorventes e podem ser irritantes para a mucosa intestinal, causar
secretores, uma vez que podem levar a perdas lesão pulmonar grave se aspirados e interferir na
consideráveis de potássio e fluidos, acabando por absorção de vitaminas lipofílicas, devem ser
agravar a obstipação a longo prazo. Doentes com utilizados por curtos períodos de tempo, apenas em
cancro em fase avançada e/ou em terapêutica quadros de obstipação complicada.
continuada com opióides, não devem fazer uso Uma terceira classe de laxantes tem um mecanismo
desses medicamentos, mas sim, seguir o seguinte maioritariamente estimulante (propulsivo) na parede
algoritmo: intestinal, causando inibição da reabsorção de
Macrogol ou lactulose fluidos no cólon e aumento da secreção de fluidos e
Macrogol mais picossulfato de sódio ou sene eletrólitos para o espaço intraluminal. Entre os
(emolientes) laxantes que se incluem nesta classe constam:
152

glicosideos de antraquinonas (aloe, folha de sene),


difenóis (bisacolido e picossulfato de sódio), bem
Se o doente se queixa de
como ácidos gordos (óleo de rícino). Em alguns fadiga e perda de apetite, o
doentes, o efeito estimulante – principalmente do
óleo de rícino – pode causar desconforto que lhe devo dizer?
importante, com cólicas abdominais dolorosas.
A quarta classe de laxantes é os “pró-cinéticos”, cuja O doente deve ser instruído em relação às alterações
utilização é rara. Aqui incluem-se o agonista do que o processo neoplásico provoca na regulação
recetor 5-HT4 tegaserod, o macrólido eritromicina, e central do apetite. No cancro abdominal, cerca de
o análogo da prostaglandina misoprostol. três quartos dos doentes sofrem uma perda
ponderal de mais de 5% por mês nas fases mais
Existe alguma forma de avançadas da doença (o cancro da mama e da
próstata são exceções, causando apenas moderada
antagonizar diretamente os perda ponderal). É sabido que as citoquinas, que
efeitos intestinais dos desempenham um papel preponderante nas
infeções, são libertadas das células neoplásicas e
opióides? estão envolvidas nos mecanismos de alteração do
apetite. Influenciam o sistema de melanocortina do
A utilização de antagonista opióide seletivo para sistema nervoso central (hipotálamo), reduzindo,
bloquear os efeitos laterais intestinais dos opióides, assim, o apetite. Mesmo a ingestão de alimentos
seria a opção mais sensata para tratar a obstipação hipercalóricos é incapaz de evitar a perda ponderal.
em doentes com indicação para terapêutica opióide Assim sendo, os doentes devem ser aconselhados a
de longa duração. Na verdade, esta abordagem continuar a comer aquilo de que mais gostam, mas
baseia-se num mecanismo hepático interessante: é não devem ser encorajados a forçar a alimentação.
na metabolização hepática da morfina que se geram A família do doente deve receber instruções no
os seus produtos ativos, a naloxona, antagonista mesmo sentido, uma vez que podem sentir
opióide, é completamente metabolizada e inativada necessidade de pressionar o doente a comer mais,
na primeira passagem pelo fígado. Assim sendo, o uma vez que observam uma perda ponderal
antagonista só se encontra ativo nos recetores contínua.
opióides intestinais, antagonizando especificamente
o efeito obstipante da morfina ou de outros Há alguma coisa a fazer em
opióides.
Existem já algumas combinações de agonista com
relação à perda ponderal?
antagonista. Infelizmente, a sua comercialização
encontra-se limitada a poucos países, devido a Apesar de ser tentadora a opção de fazer nutrição
limitações de patentes, e com custo elevado. Uma parentérica a estes doentes, quando disponível, é do
alternativa mais económica passa pela prescrição de conhecimento geral que não iria influenciar o curso
naloxona oral que, se estiver disponível, é natural da perda ponderal e poderia, inclusive,
significativamente mais barata e, nas doses entre 2 e comportar risco acrescido (por exemplo, síndrome
4 mg qid, tem efeito antiobstipante. Recentemente de realimentação , infeção associada a catéter). A
surgiu também a metilnaltrexona, um antagonista exceção abre-se para os doentes que requerem
opióide seletivo. A sua administração é subcutânea e cirurgia, em que a nutrição parentérica peri-
atinge o efeito previsto em cerca de 120 minutos operatória está indicada para evitar perdas de peso
para mais de 80% dos doentes. Dada a sua via de adicionais. De uma forma geral, o objetivo primário
administração e o seu custo elevado, é utilizada é instruir o doente e, se possível, ajudá-lo com
apenas em situações de “emergência”, quando a terapêutica sintomática, a aumentar o apetite. Esta
paralisia intestinal se encontra eminente, e não ajuda pode ser muito importante para o doente, já
apenas na obstrução. que a alimentação é uma das principais atividades
153

“sociais”. Mesmo sem um ganho ponderal - A via de administração preferencial é a oral.


significativo, o aumento do apetite terá um impacto - Em doentes com necessidade de terapêutica
significativo no bem-estar geral do doente. Duas opióide parentérica de longa duração deve dar-se
substâncias comprovaram ter efeito no aumento do preferência à via subcutânea.
apetite e podem ser testadas, quando disponíveis. - Os opióides devem ser iniciados prontamente e
Como primeira opção, o doente deve ser não ser protelados para terapêutica de último
incentivado a fumar ou comer cannabis, se recurso.
disponível e legal. Uma formula artificial da - Não existe benefício na utilização de opióides
cannabis está disponível no mercado farmacêutico “fracos”, como a codeína ou o tramadol, pelo que,
(delta-9-tetrahidrocanabinol), mas é incomportável se só a morfina se encontrar disponível, a morfina
para a maioria das pessoas se não estiver abrangida ou outro opióide “forte” devem ser utilizados de
por seguro de saúde, como se verifica na maioria início.
dos países do mundo. A segunda opção será o uso - Os opióides devem ser associados a AINEs,
de corticóides. Uma dose baixa de dexametasona (2 metamizol ou paracetamol (acetaminofeno) para
– 4mg, uma vez por dia), prednisolona (20mg, uma reduzir a dose e evitar efeitos laterais dos opióides.
vez por dia) ou outros corticóides em dose - Se a queixa principal for de dor neuropática, co-
equipotente poderá melhorar a anorexia. analgesia, com amitriptilina ou gabapentina, deve ser
adicionada, quando disponível.
Há alguma recomendação - A terapêutica com opióides deve consistir de um
esquema de dose fixa, acrescido de doses de resgate.
para o doente com queixa Se disponível, a dose fixa deve ser de libertação
de fadiga? prolongada e a dose de resgate um opióide de ação
imediata.
- A dose de resgate deve ser calculada a partir do
Fadiga é o termo que descreve um estado de esquema de dose fixa (cerca de 10% da dose total de
exaustão major e não deve ser confundido com opióide diária).
depressão ou sedação. A depressão geralmente - A dose de resgate pode ser utilizada tantas vezes
associa-se a perturbações do sono, pensamento quantas necessário, com intervalo mínimo de 30-45
repetitivo, falta de motivação, sobretudo durante a minutos entre tomas.
manhã, e desinteresse geral; enquanto a sedação - Se forem necessárias mais de quatro doses de
envolve adormecer repetidamente por curtos resgate por dia, em média, a dose fixa diária deve ser
períodos de tempo (poderá ser secundária a aumentada em 75%.
sobredosagem de opióides). Se o diagnóstico de - Se a sedação e a náusea, enquanto efeitos
fadiga se confirma, é importante admitir perante o secundários do primeiro opióide introduzido, se
doente que dificilmente pode ser alterável e que se mantiverem por mais de duas semanas e a dose
trata de um mecanismo de “proteção” do corpo diária de opióide não poder ser reduzida por
para poupar energia, causado pelo cancro. Opções necessidade de analgesia, deve rodar-se entre
farmacológicas, como o metilfenidato, verificou-se opióides, podendo um outro opióide ter um perfil
estarem muito aquém das expectativas, no entanto, em termos de efeitos laterais mais favorável.
alguns doentes manifestaram diminuição da fadiga - Vias alternativas de administração dos opióides
com recurso a elevado consumo de café ou por (por exemplo, parentérica ou intratecal) nunca são
mascarem folhas de coca (nas montanhas dos necessárias no curso natural da doença oncológica e
Andes na América Latina) ou khat (na península raramente nos doentes submetidos a esquemas
Arábica e Este de África). sofisticados de quimioradioterapia e nos doentes em
fases muito avançadas de doença.
Pérolas de sabedoria: - Os opióides devem ser prescritos sempre pelo
mesmo médico.
- A morfina é o opióide de primeira linha. - Os doentes e os seus familiares devem receber
informação adequada, antes de iniciarem a
154

terapêutica opióide, acerca das vantagens (não


tóxicas, uso prolongado) e desvantagens (não
Referências
interrupção de terapêutica ou alteração de dose sem
supervisão do médico prescritor) dos opióides. [1] Agency for Health Care Policy and Research. Clinical
practice guideline. Management of cancer pain. Available at:
- Quando a dor inicial é muito intensa, pode ser
http://www.painresearch.utah.edu/cancerpain/guidelineF.ht
necessário fazer titulação endovenosa da morfina ml.
para estimar a dose opióide (adicional) diária [2] Klaschik E, Nauck F, Ostgathe C. Constipation—modern
necessária para o doente (isto só se aplica a doentes laxative therapy. Support Care Cancer 2003;11:679–85.
oncológicos). A dose total de morfina i.v. necessária [3] Kulke MH. Metastatic pancreatic cancer. Curr Treat
para controlar a dor aguda, quando multiplicada por Options Oncol 2002;3:449–57.
[4] Mercadante S. Opioid rotation for cancer pain: rationale
12, dá-nos a dose oral de morfina necessária para os
and clinical aspects. Cancer 1999;86:1856–66.
dias seguintes. A consulta seguinte deve ser dentro [5] Mercadante S, Nicosia F.Celiac plexus block: a reappraisal.
de poucos dias, para reavaliar o doente. Reg Anaesth Pain Med 1998;23:37–48.
- Quando a dor inicial é intensa mas não [6] Muller-Lissner S. The difficult patient with constipation.
insuportável, um aumento de cerca de 25-50% da Best Pract Res Clin Gastroenterol 2007;21:473–84.
[7] Nersesyan H, Slavin KV. Current approach to cancer pain
dose será, provavelmente, adequado e a próxima
management: availability and implications of different
consulta deve ser dentro de poucos dias, para treatment options. Ther Clin Risk Manag 2007;3 381–400.
reavaliar o doente. [8] Portenoy RK. Pharmacologic management of cancer pain.
- Doentes que nunca utilizaram opióides, devem Semin Oncol 1995;22:112–20.
esperar efeitos de sedação e náusea. Deve ser feito [9] Rao SS. Constipation: evaluation and treatment.
Gastroenterol Clin North Am 2003;32:659–83.
tratamento profilático da náusea durante a primeira
[10] Walker VA. Evaluation of WHO analgesic guidelines for
semana (por exemplo, com metoclopramida, se cancer pain in a hospital-based palliative care unit. J Pain
disponível). Symptom Manage 1998;3:145–9.
- Todos os doentes devem ser informados acerca do [11] Wiff en P, Edwards J, Barden J, McQuay H. Oral
efeito obstipante dos opióides e instruídos a tomar morphine for cancer pain. Cochrane Database Syst Rev
2003;4:CD003868.
laxantes.
- Adesivos transdérmicos de opióides, se
disponíveis, só são indicados em doentes com doses
Sítios na Web
estáveis de opióides e devem ser combinados com
doses de resgate. www.cancercare.ns.ca: a provincial educational cancer program
(from Nova Scotia in Canada) with a lot of useful information
on different cancer types and their management

http://aspi.wisc.edu (Alliance of State Pain Initiatives with


downloadable educational material on cancer pain)
155

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 19
Metástases Ósseas com Dor Irruptiva

M.Omar Tawfik

O que é?
As características da dor irruptiva, tais como o
inicio, a duração e a frequência são variáveis. A
Dor incidental é um aumento episódico da
duração pode variar desde minutos a horas, numa
intensidade da dor. Alguns autores consideram Dor
média de 15-30 minutos e uma frequência de 4-
incidental como um subtipo de dor irruptiva
7episódios dolorosos por dia.
(breakthrough pain), enquanto outros definem dor
irruptiva como um subtipo de Dor incidental.
Dor irruptiva Dor Incidental
Define-se dor irruptiva (breakthrough pain ou BTP)
No mesmo local que dor Em qualquer localização
como “aumento transitório da dor para intensidade
habitual
moderada a forte, num doente com uma dor crónica
Espontânea, não Relacionada com atos
basal de intensidade ligeira ou moderada”. O termo
associada a atos voluntários
“dor irruptiva” só pode ser utilizado se a dor basal
voluntários
está controlada com analgésicos. No entanto, a
definição de dor irruptiva não é consensual. No Tem uma duração e Ocorre com um
Reino Unido a definição de dor irruptiva é utilizada frequência incidente e necessita
como sinónimo de falência de dose analgésica. No uma intervenção
entanto, é consensual que a dor irruptiva no doente terapêutica específica
oncológico pode ocorrer espontaneamente. Quando Tabela 1. Diferenças entre dor irruptiva e dor
é precipitada por um evento determinado, pode ser incidental.
chamada Dor incidental. Eventos precipitantes
podem ser voluntários e relacionados com Qual a frequência da
movimentos como marcha, tosse, sentar ou levantar
ou mesmo com o toque. A dor irruptiva ocorre
metastização óssea?
habitualmente no mesmo local da dor basal,
enquanto a dor incidental pode ocorrer no mesmo As metástases ósseas são frequentes no doente
local ou em localização diferente quando há oncológico, sendo o osso o terceiro local mais
metastização óssea difusa. comum de metastização, depois do pulmão e do
fígado. O mieloma é a doença hematológica que
mais frequentemente se associa a lesões osteolíticas.
156

As metástases ósseas são mais frequentes no cancro está alterado. Apresentam-se assim como um
do pulmão e próstata, no homem, e no cancro da quadro misto de lesões líticas e escleróticas,
mama na mulher; em cerca de 85% das autópsias de ocorrendo as fraturas em áreas osteolíticas.
doentes que morreram com cancro de mama, Estes diferentes mecanismos correspondem a
próstata ou pulmão foi demonstrado envolvimento manifestações radiológicas diferentes, com lesões
ósseo. É no cancro da mama que as metástases osteolíticas, escleróticas ou osteolíticas e escleróticas
ósseas se associam com maior frequência a dor, mistas (Tabela 3).
sendo os corpos vertebrais a sua localização
preferencial (tabela 2). Vinte e cinco por cento das Mieloma Mama Próstata
pacientes apresentam múltiplos focos dolorosos e Hipercalcemia 30% 30% Rara
em 10% das doentes à dor na coluna vertebral Exames de - + ++
associa-se compressão medular. imagem
(Cintigrafia,
Localização do tumor Localização da dor na TC e RMN)
primário metastização Fosfatase - + ++
alcalina
Cancro da mama (24%) Coluna lombar (34%)
Cancro da próstata (19%) Coluna dorsal (33%) Histologia Osteoclástica Mista Osteoblástica
Primário desconhecido Pélvis (27%) Raio X Osteolítico Misto Esclerótico
(22%) Tabela 3. Características do estudo do esqueleto nos
Cancro renal (13%) Anca (27%) tumores que mais se associam com metástases
Melanoma maligno (7%) Sacro (17%) ósseas
Cancro do pulmão (6%) Úmero (19%)
Outro (8%) Fémur (14%) Como ocorre a destruição
Tabela 2. Metástases ósseas e sua localização
óssea?
As metástases ósseas são
A destruição óssea resulta da interação entre as
todas iguais? células tumorais e as células responsáveis pela
manutenção da integridade óssea. O aumento da
A doença osteolítica é a que origina maior dor. É reabsorção óssea osteoclástica, estimulada pelos
causa de défices de mobilidade ou mesmo fatores de reabsorção óssea, é um grande
imobilização, défices neurológicos e fraturas responsável pelo desenvolvimento de metástases
patológicas. Fraturas patológicas devido ao aumento ósseas. A imobilização e os efeitos secundários da
de fragilidade óssea estão descritas em 8 a 30% dos osteoporose contribuem para a diminuição da
doentes com metástases ósseas. As fraturas são função osteoblástica.
comuns nos doentes com mieloma e com cancro da Os osteoclastos podem ser ativados por produtos
mama, sendo os ossos longos mais frequentemente tumorais ou indiretamente através da influência de
envolvidos. outras células. As células tumorais promovem a
As células do cancro da próstata produzem fatores ativação do sistema imunitário, que liberta potentes
estimulantes dos osteoblastos, provavelmente fatores estimuladores dos osteoclastos,
fatores de crescimento específicos ou fosfatase nomeadamente o fator de necrose tumoral (TNF) e
ácida. Neste caso, novo osso é depositado as interleucinas 1 e 6. Os produtos tumorais podem
diretamente na superfície trabecular do osso antes ainda atuar diretamente no osso. Nos estados
da reabsorção osteoclástica. As metástases tardios da doença metastática, as células malignas
escleróticas resultantes são menos propensas a parecem causar diretamente destruição óssea.
fraturas devido ao aumento local de massa óssea. A atividade osteoblástica reativa que ocorre nas
As metástases ósseas de cancro da mama metástases ósseas, pode ser detetada em cintigrafias
promovem a atividade osteoclástica. No entanto, o e através da fosfatase alcalina sérica. A atividade
equilíbrio normal entre reabsorção e formação óssea osteoclástica produz fragmentos de colagénio como
157

a piridolina e deoxipiridolina que podem ser


medidos na urina. Os pacientes apresentam uma dor
Caso clínico
fina, localizada, agravada pelo movimento ou
levantamento de pesos. Doente sexo feminino, 63 anos. Recorre á consulta de dor por
lombalgia difusa com duração de 3 meses, acompanhada por
Todas as metástases ósseas dor “cortante” na coxa, que agravava ao levantar-se e ao
caminhar. A doente classificava a dor, numa linha de 10cm,
produzem dor? como um 4 em repouso e um 6 ao caminhar. A lombalgia
tinha vindo a agravar-se progressivamente, obrigando-a a
Nem todas as metástases ósseas são dolorosas. No manter-se em repouso no leito. Esta dor era atenuada por
entanto, um estudo realizado numa consulta AINEs. Como antecedentes destaca-se uma mastectomia
multidisciplinar revela que 57% dos pacientes com radical esquerda, seguida de radioterapia por cancro da
metastização óssea descreve uma dor severa (7-10) e mama. Ao exame objetivo, apresentava dor á palpação da
22% já experimentaram dor intolerável. O coluna lombar e do terço inferior da coxa direita.
mecanismo fisiopatológico da dor na metastização
óssea sem fratura está ainda mal esclarecido. A A dor pode ser mal definida ou ausente porque as
presença de dor não se relaciona com o tipo de metástases ósseas podem ser indolores. No entanto,
tumor, a localização, número ou tamanho das qualquer dor difusa num paciente com antecedentes
metástases, nem com sexo ou idade dos pacientes. de cancro deve ser cuidadosamente investigada. A
Enquanto cerca de 80% das pacientes com cancro dor pode ser resultante de metástases ósseas
da mama irão desenvolver metástases osteolíticas ou osteolíticas. A dor como sintoma está presente em
osteoblásticas, cerca de dois terços de todas as cerca de 50% dos doentes. Os locais de
localizações demonstradas de metastização óssea envolvimento mais frequente são a coluna vertebral
são indolores. A inervação óssea faz-se no periósteo (vértebras), pélvis, costelas, fémur e calote craniana.
ou através de nervos que penetram o osso com os A dor desenvolve-se gradualmente durante semanas
vasos sanguíneos. ou meses, tornando-se progressivamente mais
Nas trabéculas ósseas dos locais de metastização, intensa. A dor é habitualmente localizada numa área
ocorrem micro-fraturas, resultando em distorção em particular, tal como a região lombar e o terço
óssea. O estiramento do periósteo pela expansão do inferior do fémur, e agrava durante a noite ou com
tumor, o stress mecânico sobre o osso fragilizado, o o esforço (como o levantamento de pesos). A dor é
sequestro de nervos pelo tumor ou a destruição caracteristicamente descrita como difusa, em
direta do osso com o consequente colapso são moedeira, constante na sua apresentação, crescendo
possíveis mecanismos associados à dor. O gradualmente em intensidade. A dor aumenta com a
enfraquecimento das trabéculas ósseas e a libertação pressão na área envolvida. Estas características são
de citoquinas, que medeiam a destruição descritas pelo paciente, pelo que estes quadros
osteoclástica do osso, podem ativar recetores devem ser investigados como prováveis metástases
dolorosos. ósseas com dor.
A libertação de mediadores álgicos pela medula A dor “cortante”, ou em “fisgada” descrita pelo
óssea provavelmente contribui para que a dor paciente é um sinal típico que sugere características
produzida pelos tumores seja frequentemente neuropáticas. Tem uma distribuição radicular
desproporcionada ao tamanho ou grau de (L2/L3) e unilateral, sugerindo origem lombo-
envolvimento ósseo. A contractura muscular reativa sagrada. A dor é habitualmente bilateral quando tem
pode ser uma causa secundária de dor. A infiltração origem na coluna dorsal e exacerbada em
de raízes nervosas ou a compressão nervosa pelo determinadas posições, que o paciente evita. Fatores
colapso de vértebras osteolíticas são outras causas agravantes da dor podem ser o ato de levantar com
de dor. as pernas esticadas, a tosse ou a pressão local,
contando-se como fatores de alívio o sentar-se ou
deitar-se absolutamente imóvel. A perda de força
muscular, alteração da função de esfíncteres ou
158

alterações de sensibilidade são pouco comuns na doença avançada, lesões líticas extensas,
apresentação, mas podem ocorrer com a progressão hipercalcémia frequente e pior prognóstico.
da doença na fase de compressão, devendo ser
prevenidas. Caso clínico (continuação)
Na metastização óssea, a hipercalcémia (elevados
níveis séricos de cálcio ionizado) é inevitável. Como Na realização da história é importante questionar acerca de
metade do cálcio circula ligado a albumina, o valor sintomas indicativos de hipercalcémia. Estes sintomas são
total do cálcio deve ser ajustado à albumina para náusea e vómito, anorexia, epigastralgia, obstipação, sede
uma avaliação correta. A função renal, incluindo excessiva, boca seca, fadiga, letargia, fraqueza muscular,
ureia e eletrólitos deve ser avaliada. Os sintomas só irritabilidade, alterações de humor, confusão
ocorrem com valores de cálcio sérico acima dos mental/desorientação, pulso arrítmico e poliúria.
3mmol/L e a sua severidade é proporcional ao valor Hipercalcémia pode ser uma situação ameaçadora da vida.
sérico. Nos pacientes idosos e muito nos Na investigação relacionada com hipercalcémia deve constar a
severamente debilitados, discretas elevações dos medição do nível sérico de cálcio ionizado corrigido para a
níveis séricos de cálcio ionizado podem ser albumina, o ECG, a hidroxiprolina urinária/creatinina e
sintomáticas. fosfatase alcalina sérica. A investigação radiológica é
necessária, devendo passar por radiografias, cintigrafia óssea,
 Intervalo QT curto pode ser evidente no
tomografia computorizada (TC) e ressonância magnética
ECG. Elevações nos níveis de cálcio
(RMN), que foram requisitadas nesta paciente.
urinário, são causados pela libertação de
cálcio na circulação, secundária à reabsorção
óssea aumentada. Como escolher o exame de
 A excreção urinária de hidroxiprolina, um imagem mais adequado?
constituinte major do colagénio tipo I, é
uma medida indireta do aumento do
As metástases ósseas podem ser diagnosticadas por
metabolismo ósseo. A razão hidroxiprolina
diversos métodos de imagem, incluindo radiografia
urinária/creatinina e cálcio/creatinina, tem
convencional, cintigrafia, tomografia computorizada
sido usada para monitorizar os efeitos da
(TC) e ressonância magnética (RMN). Com a
terapêutica com bifosfonatos.
radiografia convencional, é necessária uma alteração
 A hipercalcémia está associada a dor,
de cerca de 40% na densidade óssea antes que a
náusea, vómitos, anorexia, obstipação,
metástase possa ser identificada, e lesões pequenas
fraqueza muscular, poliúria, alteração do
permanecem indetetáveis. Uma alteração de 5-10%
estado de consciência/confusão. O
é suficiente quando se utiliza cintigrafia óssea. A
diagnóstico diferencial com outros quadros
cintigrafia óssea é positiva em 14-34% dos pacientes
clínicos é necessário. Os sintomas
que não apresentavam evidência radiológica de
gastrointestinais são muitas vezes
metástases. No entanto, este método é menos
confundidos com efeitos secundários da
sensível na deteção de metástases osteolíticas puras.
terapêutica opióide ou potenciados por esta
As alterações demonstradas pelo exame não são
terapêutica. Os sintomas neurológicos são
específicas, podendo haver lesões benignas que
muitas vezes atribuídos a metastização
condicionam falsos positivos. O exame pode ser
cerebral. A hipercalcémia surge no decurso
negativo quando as lesões são predominantemente
da doença em cerca de 10-20% dos doentes
osteolíticas, após radioterapia, e quando o osso
com cancro de mama ou pulmão.
circundante está difusamente envolvido por tumor.
 Os níveis séricos de fosfatase alcalina e O TC permite a identificação do tipo de metástase e
osteocalcina refletem a atividade tem uma maior sensibilidade que os exames
osteoblástica. Os pacientes com mieloma anteriores.
que apresentam baixos níveis séricos de A RMN pode avaliar todo o “eixo vertebral”,
osteocalcina, um marcador sensível e identifica múltiplos locais de envolvimento espinal e
especifico de atividade osteoblástica, têm vertebral, mostra a extensão epidural, paravertebral
159

e a integridade da medula espinal. Permite a fraturas patológicas ou promoção da sua


diferenciação entre fraturas ou compressões consolidação.
traumáticas, osteoporóticas ou patológicas, sem A radioterapia é eficaz no alívio da dor em 60-70%
necessidade de recurso a métodos invasivos como o dos doentes, mas demora até 3 semanas até ao seu
medulograma. No entanto a RMN é cara. Todos os efeito completo ser sentido.
dados resultantes destes estudos radiológicos devem As complicações potenciais da radioterapia incluem
ser interpretados no contexto dos achados clínicos. sintomas sistémicos como náuseas, vómitos,
anorexia e fadiga, assim como efeitos diretamente
Como fazer um plano de relacionados com o campo de irradiação incluindo
lesões cutâneas, sintomas gastrointestinais,
tratamento? mielossupressão e alopécia.
O melhor tratamento para a hipercalcemia
O plano terapêutico deve incluir: secundária ao cancro é o tratamento do próprio
 Tratamento das metástases ósseas cancro. No entanto, uma vez que a hipercalcemia
ocorre em pacientes cuja doença oncológica é
 Tratamento da dor
avançada ou não responde á terapêutica, o
 Tratamento da hipercalcémia
tratamento da hipercalcémia pode ser necessário.
 Prevenção de fratura ou colapso vertebral.

Caso clínico (continuação) Radionuclídeos


Os exames complementares (cintigrafia óssea e radiologia Os radionuclídeos, que são absorvidos em áreas de
convencional) revelaram metástases ósseas no terço médio- alto metabolismo ósseo têm sido alvo de
inferior do fémur, assim como na coluna vertebral, em especial investigação como potenciais terapêuticas para a dor
L2. Algumas vértebras torácicas revelam sinais precoces na óssea metastática. O cloreto de estrôncio-89 e o
SPET/CT (tomografia computorizada de emissão de fotão samario-153 estão disponíveis nos Estados Unidos
único/CT). A hipercalcémia foi verificada em medição sérica. da América (EUA).

Como se tratam as Como se trata a dor óssea?


metástases ósseas? Analgesia
Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) e os
Uma vez diagnosticada a metastização óssea, a inibidores da COX-2 têm sido apontados como
primeira prioridade deve ser o tratamento dirigido à medicamentos anti-neoplásicos promissores por
doença oncológica, uma vez que todas as outras provocarem a inibição da angiogénese tumoral e
complicações, incluindo a dor e a hipercalcémia induzirem a apoptose celular. Os AINEs têm um
poderão então ser melhoradas. papel central no primeiro degrau da escada
analgésica da OMS (Organização Mundial de Saúde)
Radioterapia para o tratamento da dor oncológica. Cerca de 90%
A radioterapia é eficaz em 60-90% dos doentes, dos doentes com metastização óssea tem dor ao
com aplicação de 60Gy em 30 frações ao longo de 6 diagnóstico. Os AINEs são os agentes mais eficazes
semanas, em sessões diárias. A radioterapia deve ser no tratamento da dor neste estádio porque as
o primeiro passo no tratamento da dor secundária a prostaglandinas parecem desempenhar um papel
metastização óssea. A radioterapia pode ser importante. O perfil de eficácia e segurança é
complementar a uma cirurgia ortopédica, para semelhante entre os AINEs e não foram
diminuir o risco de complicações ósseas. Uma demonstradas diferenças significativas quando
fratura, ativa ou em consolidação, pode necessitar comparados com combinações de opióides.
de um esquema curto fracionado de 20-30Gy ao A dor óssea contínua responde bem aos opióides. A
longo de 1 semana. A radioterapia está indicada na maioria dos doentes terminais com dor incidental
metastização óssea para alívio da dor e prevenção de consideram a dor o fator mais limitante para a
160

atividade. A maior limitação da dor incidental não óssea pelas suas propriedades anti-inflamatórias,
está na falta de resposta aos opióides, mas nas doses bloqueando a síntese de citoquinas, que contribuem
necessárias para o controle da dor, que produzem para a inflamação e para a nocicepção. O seu efeito
efeitos secundários inaceitáveis quando o paciente é geralmente de curta duração. A sua utilização deve
está em repouso. A morfina oral é o opióide ser privilegiada nos casos de compressão medular
utilizado em primeira linha nos EUA para os ou cerebral, pelo seu papel central na redução do
doentes com doença oncológica avançada e dor edema peri-tumoral. São eficazes e por vezes podem
severa. No Reino Unido, a diamorfina (heroína) é temporariamente estabilizar ou melhorar os défices
utilizado em segunda linha pela sua maior neurológicos. Embora os corticoides sejam parte
solubilidade, não apresentando, no entanto, integrante do tratamento dos doentes com doença
vantagem clínica em relação á morfina. A metadona oncológica avançada, apresentando ação benéfica
(hidroclorido de metadona), medicamento utilizado no aumento do apetite, redução da fadiga e sensação
habitualmente para prevenção da síndrome de de bem-estar, o seu uso prolongado deve ser
privação nas desintoxicações de toxicodependentes, ponderado em relação aos possíveis efeitos
é utilizado em unidades de Cuidados Paliativos no secundários. As complicações graves relacionadas
Canadá e Reino Unido. Também é utilizada nos com o uso prolongado de corticoides incluem
EUA para tratamento de pacientes com dor imunossupressão, fraturas patológicas, edemas e
refratária ou neuropática. delírio.
Atualmente estão disponíveis numerosas A calcitonina, um agente hipocalcemiante, pode ser
combinações de opióides. Para um rápido inicio de útil como adjuvante na analgesia. A calcitonina inibe
ação existem fórmulas de libertação imediata de a reabsorção de sódio e cálcio pelos túbulos renais e
morfina, oxicodona e hidromorfona. Fórmulas de reduz a reabsorção osteoclástica. No entanto, apesar
libertação prolongada (morfina, oxicodona ou do seu rápido efeito, o papel da calcitonina parece
hidromorfona) são eficazes com administrações ser limitado pela sua curta duração de ação e a sua
cada 12 ou 24, por vezes cada 8horas. São baixa eficácia devido ao rápido desenvolvimento de
geralmente utilizadas após uma titulação de dose taquifilaxia (rápida diminuição da resposta do
para definir a dose diária basal eficaz para a dor organismo a um medicamento após repetidas
contínua. O Fentanilo também está agora disponível administrações num curto espaço de tempo). A
em duas formulações de libertação rápida: a fórmula calcitonina é habitualmente administrada por via
transmucosa e os sistemas transdérmicos de subcutânea ou intranasal. A dose inicial é 200UI,
libertação sustentada. administrado 1vez por dia numa narina. A
A utilização prolongada de opióides está associada e administração deve ser feita de forma alternada nas
dependência física e (raramente) a tolerância. duas narinas. Para além de raras reações de
Tolerância é definida como o fenómeno fisiológico hipersensibilidade associadas à administração
de diminuição da potência de um opióide com o uso subcutânea, o efeito secundário mais importante é a
continuado, manifestada pela necessidade de náusea.
aumento da dose de opióide para obter o mesmo Os bisfosfonatos podem atrasar a instalação de
efeito terapêutico. O aumento progressivo de dose fraturas, reduzir a necessidade de radioterapia no
pode continuar a providenciar adequada analgesia, tratamento de metástases ósseas, reduzir a
pois parece não haver dose limite (dose teto). No hipercalcémia e reduzir a necessidade de cirurgia
entanto, a escalada de dose pode aumentar os ortopédica. Os bisfosfonatos são o alendronato,
efeitos secundários (náusea, vómito, prurido, etidronato, ibandronato, pamidronato, risendronato
obstipação, dor abdominal e prurido) e limitar a sua ou tiludronato. Os bifosfonatos disponíveis para
utilização. Neste ponto, é necessário proceder à uso clínico incluem o ácido zoledrónico e o
rotação de opioides. pamidronato. O ácido zoledrónico tem
demonstrado maior potência de ação e uma maior
Co-analgésicos conveniência de administração (tempo de
Os esteroides, incluindo os corticosteroides, têm administração mais reduzido).
efeitos benéficos na redução de dor da metastização
161

Os anti-depressivos são os agentes mais desidratação e na capacidade do paciente de tolerar


frequentemente utilizados como co-analgésicos a hidratação.
quando a dor neuropática acompanha a dor óssea, Por vezes a hipercalcémia é tratada com um
como ocorre em lesões radiógenas. Dentro dos anti- diurético. O mais utilizado é a furosemida, que
depressivos tricíclicos, a amitriptilina é utilizada causa perda de cálcio, sódio e potássio. A
numa dose inicial diária de 10-25mg, podendo ser furosemida é bem tolerada, mas não está isenta de
titulada para o efeito desejado: potencia a analgesia efeitos secundários que podem incluir desidratação,
e aumentar a serotonina e epinefrina centrais, e para hipocalémia ou hiponatrémia. A furosemida está
o efeito de bloqueador de canais de sódio disponível para administração oral ou endovenosa.
(analgésico local). Também promovem o sono A administração endovenosa é utilizada em situação
natural. de urgência para obter um rápido efeito. A
Os anticonvulsivantes, como a carbamazepina ou o formulação oral e utilizada para manutenção (um ou
clonazepam, são particularmente úteis em duas administrações por dia).
nevralgias, como em situações em que existe
compressão da raiz nervosa pelo colapso de corpos É possível prevenir uma
vertebrais. A dose utilizada é de 600-1200mg diários
e 0,5mg, respetivamente. Embora a carbamazepina fratura ou o colapso
seja eficaz na nevralgia do trigémeo, o seu efeito nas
nevralgias secundárias é menos convincente. A
vertebral?
Gabapentina pode ser uma alternativa para doentes
com diminuição da função renal ou que apresentem A previsão de uma possível fratura e o seu
efeitos secundários intoleráveis com a tratamento profilático são muito importantes,
carbamazepina. embora essa previsão permaneça, ela própria,
controversa, sendo atribuídos papéis de relevo quer
Como se trata a aos métodos imagiológicos quer aos funcionais. O
sistema de Healy and Brown inclui:
hipercalcémia?  Lesões dolorosas que envolvem mais de
50% da espessura cortical
O tratamento da hipercalcémia é baseado numa  Uma lesão lítica maior que o diâmetro do
série de fatores como o estado geral do paciente e a osso
severidade da hipercalcémia. O aumento do aporte  Uma lesão cortical mais extensa que 2,5cm
hídrico e a utilização de diuréticos tem sido a prática  Uma lesão que produz dor mecânica após
corrente. Mais recentemente, os bisfosfonatos radioterapia
tornaram-se uma abordagem eficaz. Os
bisfosfonatos podem prevenir eficazmente a perda Caso clínico (continuação)
óssea que ocorre nas lesões metastáticas, reduzir o Com base nos dados expostos, o plano de tratamento incluiu
risco de fratura e diminuir a dor. a referenciação da doente para a unidade de Radioterapia
Um dos primeiros tratamentos para a hipercalcémia para iniciar tratamento. O tratamento da dor foi iniciado de
de origem oncológica consiste em aumentar o acordo com a escada analgésica da OMS e incluía um
aporte oral de água ou na administração endovenosa AINE, celecoxib, 200mg, duas vezes por dia. Quando isto
de fluidos. A hidratação ajuda a baixar o nível de se tornou insuficiente para o controle da dor, foi adicionado
cálcio pela diluição e permite ao organismo eliminar tramadol, em formulação de libertação prolongada, numa dose
o excesso de cálcio na urina. Em hipercalcémias de 100mg duas vezes por dia.
leves ou moderadas, os pacientes são habitualmente Foram prescritos bisfosfonatos (ácido zoledrónico), numa dose
aconselhados a aumentar a ingestão hídrica. Na de 4mg mensalmente, em simultâneo com hidratação, o
hipercalcémia aguda a hidratação parentérica é aconselhamento de elevada ingestão hídrica e furosemida (um
mandatória. O ritmo da hidratação é baseado na comprimido por dia, com suplemento de potássio), para
severidade da hipercalcémia, na severidade da prevenção de hipercalcémia.
162

Foi realizada vertebroplastia percutânea em T12 e L2, sendo Caso clínico (continuação)
o procedimento seguido de um rápido alívio sintomático. Foi instituída analgesia com morfina em dose controlada pela
A dor neuropática do membro inferior direito foi tratada com doente para alívio da dor intensa. Foi transferida para uma
gabapentina, iniciando-se com 100mg, 3 vezes por dia. A unidade de ortopedia para realizar procedimentos de fixação
dose foi gradualmente aumentada até ser atingida a dose que permitissem alívio da dor e recuperação da mobilidade.
diária de 1200mg, que foi mantida. Após a vertebroplastia,
a dor neuropática desapareceu e a gabapentina foi O que pode ser feito por um
gradualmente retirada.
A doente manteve-se satisfeita com o tratamento durante ortopedista especializado?
9meses, durante os quais o tramadol foi alterado para
morfina de libertação prolongada (90mg diários). Cerca de 10-30% dos doentes com metástases
Nove meses mais tarde, a doente sofreu uma queda acidental; ósseas desenvolvem fraturas nos ossos longos, com
desenvolveu então uma violenta dor no terço inferior da coxa necessidade de tratamento ortopédico. O fémur é o
direita. O Rx simples demonstrou uma fratura no local da local mais frequente. A extensa perda de massa
metástase femoral prévia. óssea causada pelos efeitos locais da quimioterapia e
da radiação deve ser suportada durante a
Quais as opções para este recuperação. O uso de aparelhos ortopédicos de
proteção tais como braçadeiras de repouso pode ser
caso? útil em lesões do membro superior. Os membros
inferiores não são bons candidatos para este
As guidelines (normas de orientação clínica) foram método, uma vez que estão sujeitos a cargas
desenvolvidas com base em critérios radiológicos, intensas. Consequentemente, o tratamento
embora a fiabilidade da avaliação radiológica possa conservador para fraturas ou locais de fratura
ser questionável porque uma metástase óssea só é iminente / sintomática dos membros inferiores
aparente após uma grande perda de massa óssea. raramente é bem sucedido.
Em alguns cancros, como a próstata, não estão Está indicado o encavilhamento profilático que
caracterizadas por uma destruição óssea evidente. pode prevenir um longo período de imobilização. O
Além disso, não está demonstrado que a dor óssea tratamento conservador das fraturas do esqueleto
que não responde à radioterapia se relacione com o axial é habitualmente bem sucedido porque estes
risco de fratura. ossos têm um melhor aporte sanguíneo e uma
O tratamento da dor óssea pode necessitar cicatrização mais rápida. O colete de contenção
diferentes abordagens, dependendo da avaliação (lombostato), em combinação com radioterapia,
inicial. A cirurgia deve ser considerada quando é pode ser uma estratégia terapêutica eficaz para
diagnosticada uma fratura iminente, e a radioterapia fraturas vertebrais patológicas.
deve ser considerada nas metástases dolorosas. A É importante garantir que as fraturas patológicas
terapêutica médica com AINEs e opióides, assim são estabilizadas para prevenir a dor e facilitar a
como a medicação para as exacerbações, é o centro fisioterapia e radioterapia. Há diversas abordagens
da terapêutica sintomática. Adicionalmente são cirúrgicas de acordo com o tipo de fratura, a
recomendadas várias terapêuticas adjuvantes como a situação clínica e a esperança de vida do doente. O
calcitonina, os bisfosfonatos ou os radionuclídeos. tratamento ortopédico inclui fixação interna e
Nas metástases vertebrais com colapso, a osteosíntese, ressecção da articulação e sua
vertebroplastia pode ser um procedimento substituição, ressecção segmentar de osso, com
importante, tal como a cimentoplastia para outras substituição protésica, artroplastia. O tratamento
metástases ósseas, em particular quando há dor em cirúrgico deve ser realizado quando a fratura ocorre.
carga (e levantamento de pesos), dependendo da Os potenciais benefícios da cirurgia devem ser
disponibilidade. ponderados com a sobrevida esperada do doente.
A estabilização cirúrgica da coluna vertebral e
membros pode melhorar dramaticamente a
163

qualidade de vida, diminuir a dor e o sofrimento a dor com a mobilização será sempre difícil de
destes doentes e prevenir complicações relacionadas controlar sem a estabilização mecânica.
com imobilização, permitindo aos doentes
permanecer no seu domicílio. A recuperação de Referências
uma cirurgia preventiva é mais rápida e necessita de
menos procedimentos invasivos. [1] Bruera E. Bone pain due to cancer. In: Refresher course
syllabus. Seattle:IASP; 1993. p. 237–44.
Pérolas de sabedoria [2] Clavel M. Management of breast cancer with bone
metastases. Bone 1991;12(Suppl 1):S11–2.
[3] Demers LM, Costa L, Lipton A. Biochemical markers and
As metástases ósseas devem ser despistadas quando
skeletal metastases. Cancer 2000;88: 2919–26.
se começa a desenvolver uma dor óssea mal [4] Koltzenburg M. Neural mechanisms of cutaneous
definida em doente com doença oncológica prévia, nociceptive pain.Clin J Pain 2000;16:S131–8.
tratada ou não. [5] Mercadante S. Malignant bone pain: pathophysiology and
Exames como cintigrafia óssea e a tomografia treatment.Pain 1997;69:1–18.
computorizada (TC) podem detetar metástases [5] Mercadante S, Radbruch L, Caraceni A, Cherny N, Kaasa
ósseas mais precocemente que as radiografias S, Nauck F, Ripamonti C, De Conno F; Steering Committee
of the European Association for Palliative Care (EAPC)
convencionais. Research Network. Episodic (breakthrough) pain: consensus
Deve ser sempre investigada a possibilidade de conference of an expert working group of the European
hipercalcémia. O seu tratamento deve ser iniciado Association for Palliative Care. Cancer 2002;94:832–9.
de forma precoce e eficaz, sendo os bisfosfonatos o [6] Mundy GR. Mechanisms of osteolytic bone destruction.
melhor tratamento. Bone 1991;12(Suppl 1):S1–6.
Está descrito um alto nível de sucesso após [8] Portenoy RK, Hagen NA. Breakthrough pain: definition,
intervenção cirúrgica, levando a aumento de prevalence and characteristics. Pain 1990;41:273–81.
[9] Tubiana-Hulin, M. Incidence, prevalence and distribution
sobrevida do doente. Mais de 60% dos doentes
of bone metastases. Bone 1991;12(Suppl 1):S9–10.
beneficiam de descompressão cirúrgica, obtendo
recuperação neurológica, embora os pacientes com
compromisso neurológico tenham pior prognóstico.
Sítios na Web.
Se só está disponível o tratamento sintomático, os
AINEs e os opióides, associados ou não a co http://patient.cancerconsultants.com/cancertreatment_bone_
analgésicos, podem melhorar a dor em repouso, mas cancer.aspx?linkid=53855
164

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 20
Câncer de Pulmão com Plexopatia
Rainer Sabatowski e Hans J. Gerbershagen

Uma TC inicial, que pode ter sido realizada no hospital, mostrou


Estudo de caso uma massa tumoral na região apical do pulmão esquerdo. Foram
confirmadas invasão e destruição parcial dos corpos vertebrais
torácicos superiores e cervicais inferiores. Devido ao progresso da
Ruben Perez é um trabalhador rural de 52 anos que doença e à co-morbidade, os médicos do hospital não viram
vive na província de Iucatán, no México. Perdeu seu indicação para tratamento paliativo, como cirurgia, radioterapia ou
emprego em uma fazenda alguns anos atrás e mesmo quimioterapia. Assim, começaram a terapia com morfina,
trabalhou como assalariado desde então. Ele, sua com dose inicial de 2,5 mg de morfina de liberação imediata a cada
mulher, seus filhos e dois netos vivem em uma quatro horas. Instruíram o Sr. Perez para usar mais 2,5 mg em
pequena cabana na vila de Yaxcopil. O Sr. Perez caso de recidiva da dor, como episódios de dor súbita. Foi
aconselhado a aumentar seu consumo diário de líquidos para um
fumou a vida inteira. Durante o último ano ele
mínimo de 1,5 L de água por dia para evitar obstipação induzida
notou alguns problemas de saúde, sentiu exaustão e
por opióides. Além disso, os médicos prescreveram gabapentina
percebeu que a tosse estava piorando. Quando para melhorar a eficácia da morfina na presença de dor
sentiu uma dor lancinante no braço esquerdo neuropática. Foi dito ao Sr. Perez para começar com uma dose de
associada a fraqueza constante desse braço, ele e sua 100 mg e aumentar a dose no dia 4 para 100 mg 3 vezes ao dia.
família decidiram ir ao médico em um grande Se a dor não fosse adequadamente aliviada, pediram que
hospital municipal de Mérida. Na apresentação consultasse o médico local novamente.
inicial, o Sr. Perez relatou sua dor lancinante, Nas semanas seguintes, a dor foi adequadamente aliviada, embora
envolvendo predominantemente os segmentos não tenha desaparecido. Mas com essa melhora e o suporte da
inferiores do plexo braquial. Foram confirmadas família, o Sr. Perez pôde enfrentar a situação. Várias semanas
fraqueza e perda sensitiva, além da síndrome de depois ele teve que ir ao hospital em Mérida porque sua dor
aumentou drasticamente. Embora a dose diária de morfina tenha
Horner. A dor era intensa e o pré-tratamento com
sido aumentada para 120 mg e a gabapentina tenha sido
acetaminofeno, quando necessário, e codeína, que
aumentada para 900 mg, a intensidade da dor piorou e o Sr.
havia sido prescrito por um médico local não Perez relatou uma nova sensação de dor. Um leve toque no braço
aliviava a dor. O Sr. Perez também relatou perda esquerdo causava muita dor. O Dr. Rodriguez decidiu mudar de
drástica de peso, tosse forte com pontos vermelhos morfina para metadona. O tratamento com morfina foi
no escarro e falta de ar. interrompido imediatamente e a metadona foi iniciada com uma
dose de 5 mg a cada 4 horas. Para episódios de dor súbita ou alívio
inadequado da dor ou ambos, 5 mg de metadona poderiam ser
administrados em um intervalo mínimo de 1 hora. Além disso, 16
mg/d de metadona foram introduzidos para melhorar a dor e
estimular o apetite. (O Sr. Perez havia dito que já não conseguia
comer Milho com Rajashe que sua mulher costumava preparar
165

como seu prato favorito). A dose de metadona precisou ser e no tratamento, 80-90% dos pacientes morrem um
aumentada no dia 2 para até 7,5 mg a cada 4 horas. No dia 4, os ano depois do diagnóstico. O câncer de pulmão é
tempos de administração tiveram que ser prolongados para associado a um grande ônus para os pacientes e seus
intervalos de 8 horas (3 ve4zes ao dia), o intervalo da medicação de familiares. Entre os sintomas associados ao câncer
dor súbita foi prolongado para 3 horas e a dexametasona foi
de pulmão, a dor é um dos mais temidos, além de
reduzida para 2 mg/dia. Foi um grande problema convencer a
ser muito comum. Aproximadamente 40-90% dos
família e seu médico local que a metadona, embora frequentemente
usada em pacientes dependentes de narcóticos, era o melhor
pacientes que sofrem de doença maligna sentem dor
medicamento para sua situação. A obstipação foi controlada oncológica. A paliação dos sintomas e
satisfatoriamente com ingestão de mais água e algumas frutas secas. especialmente da dor do câncer de pulmão é crucial
Não foi necessário prescrever laxantes. Uma paresia do braço para melhorar a situação dos pacientes e a qualidade
esquerdo foi tratada com bandagens elásticas para manter o braço de vida dos pacientes e dos familiares.
em posição confortável.
Havia duas opções de tratamento da dor para os médicos cuidando Existem fatores associados
do Sr. Perez. Na opção 1, poderiam começar com 3 x 100 mg de
carbamazepina. Se o alívio da dor não fosse suficiente, essa dose à dor no câncer de pulmão?
poderia ser titulada lentamente até o máximo de 1.000-1.200
mg/dia. A morfina poderia ser incluída se a monoterapia com
carbamazepina fosse insuficiente ou se o limite da dose fosse Não há evidência clara do relacionamento entre um
atingido devido a efeitos colaterais intoleráveis. A morfina poderia subtipo histológico de câncer de pulmão e a
ser titulada em etapas de 5 mg com comprimidos ou solução de prevalência da dor. O fator mais importante
liberação imediata. Os intervalos entre as doses deveriam ser de 4-6 associado à dor é o estágio da doença, que em geral
horas. No caso de requisitos de dose estável, a morfina de liberação é avançado – mesmo à época do primeiro
imediata deveria ser substituída por uma formulação de liberação diagnóstico – porque os pacientes com câncer de
lenta, se disponível. Para o tratamento de episódios de dor súbita, pulmão em geral procuram assistência tarde e a dor
uma dose única de aproximadamente 1/6 da dose diária de costuma ser o primeiro sintoma que leva os
morfina deveria ser administrada.
pacientes a consultarem seus médicos.
A opção 2 seria começar com um anticonvulsivante como a
gabapentina ou a carbamazepina. É necessário titular lentamente
para cima para evitar efeitos colaterais graves (por ex., sedação, Que tipo de dor se deve
sonolência). A dose máxima de gabapentina não deveria exceder
2.100 mg (ou 1.200 mg para a carbamazepina). Em casos de dor
esperar no câncer de
severa, um opióide poderia ser adicionado imediatamente. O opióide
poderia ser tramadol (dose máxima de 400 mg/d) ou morfina.
pulmão?
Lembre-se que os pacientes devem ter acesso ao uso de formulações
imediatas, não apenas no período de titulação mas também para o A dor do câncer de pulmão costuma ter
tratamento de dor súbita. Se a dor é descrita como em queimação, fisiopatologia mista. A maioria dos pacientes sente
pode-se incluir tratamento com antidepressivos como a dor nociceptiva, mas aproximadamente um terço
amitriptilina. Comece com 25 mg à noite; a dose máxima deve ser dos pacientes têm dor neuropática.
75 mg. Quando essa combinação não é satisfatória (e em caso de
infiltração tumoral do plexo), deve-se incluir 16-24 mg/d de
dexametasona. Após a estabilização da dor, a dose pode ser
O que é dor neuropática, e
reduzida lentamente até 4-8 mg/d. Em situações refratárias ao quais são as possíveis
tratamento, a morfina pode ser substituída por metadona (os
detalhes estão descritos na seção acima). razões para ela ocorrer no
câncer de pulmão?
Qual é o escopo do
problema? A IASP define a dor neuropática como dor iniciada
ou causada por uma lesão ou disfunção primária do
sistema nervoso (por ex., compressão ou infiltração
O câncer de pulmão é o tumor mais comum em do tumor para dentro do plexo braquial, ou
todo o mundo. Apesar do progresso no diagnóstico compressão de uma raiz nervosa). No entanto, a dor
166

neuropática também pode ser gerada por


anormalidade que se processam nos nociceptores.
Como é possível
As razões mais comuns para a dor neuropática no diagnosticar a dor
câncer de pulmão são:
 Compressão ou infiltração de estruturas neuropática?
neurológicas, como o plexo braquial, a
parede torácica ou os nervos intercostais. Um histórico médico e um exame completo são
Embora os tumores de Pancoast estejam essenciais. A descrição do paciente sobre a
associados a apenas 3% dos cânceres de qualidade da dor costuma dar uma primeira
pulmão, mais de 30% de todas as indicação da presença de dor neuropática. Os
síndromes dolorosas oncológicas no câncer descritores verbais comuns da dor sensitiva são
de pulmão são atribuídas a tumores de pulsante, formigamento, doída, sensível,
Pancoast. Em geral, a dor da plexopatia é insensível e enervante. No entanto, descritores
sentida como uma sensação de queimação como queimação, lancinante ou quente também
no lado ulnar da mão, devido ao podem ser usados. Outras características são
envolvimento das raízes nervosas C7-T1. projeção da dor e irradiação da dor ao longo de
Outro sinal típico da plexopatia é a um feixe de nervos com distribuição segmentar
ocorrência da síndrome de Horner (miose, ou periférica, quando a dor tem uma
ptose e enoftalmo), e a dor é mais intensa distribuição em forma de luva, ou é atribuída a
do que a dor causada por radioterapia. um dermátomo. O aumento da dor quando
 Síndromes de dor neuropática relacionadas deitado, localizada na linha média das costas,
ao tratamento podem ser consequência de com ou sem irradiação, e dor no ombro
cirurgias importantes (por ex., toracotomia, escapular medial ou bilateral também podem ser
instalação de um dreno torácico associados à dor neuropática. Paresia ou
terapêutico) e podem causar uma síndrome fraqueza muscular e dor na extremidade
pós-toracotomia ou uma neuralgia superior são fortes evidências de plexopatia.
intercostal. A quimioterapia, principalmente Instrumentos de avaliação, como o
após tratamento com alcalóides da vinca painDETECT, um questionário fácil de usar e de
como a vincristina, é outra razão comum auto-relatório com nove itens que não requerem
para a dor neuropática associada ao exame clínico, também podem ser usados. Os
tratamento. A plexopatia induzida por pacientes precisam responder a sete perguntas
radiação deve ser também considerada. No relacionadas à presença de sensações de
entanto, em geral os sintomas causados pela queimação, sensações de formigamento ou
radiação ocorrem com uma latência de ferroada, toque leve doloroso, presença de
aproximadamente 6 meses ou até mais. ataques súbitos de dor ou choques elétricos, dor
 Síndromes paraneoplásicas podem se quente ou fria, dormência e leve pressão
apresentar com neuropatia sensitivo-motora dolorosa. As respostas variam de nunca, quase
subaguda ou crônica. Essas síndromes são desapercebido, moderado, forte a muito forte e
raras. A neuropatia sensitiva subaguda recebem uma pontuação de 0 a 5. Além disso,
comprometendo todas as modalidades dor persistente com ataques de dor reduz a
sensitivas antes do diagnóstico do câncer é pontuação total (menos 1 ponto), ataques de
em geral associada a câncer de pulmão de dor sem dor nos intervalos somam 1 ponto,
pequenas células. Os sintomas das ataques de dor com dor nos intervalos somam 1
síndromes paraneoplásicas se desenvolvem ponto e, finalmente, a presença de dor irradiada
por dias ou semanas e podem afetar os soma mais 2 pontos. A soma final de 19 ou mais
quatro membros, o tronco, e às vezes até a sugere fortemente a presença de dor
face. neuropática. O painDETECT tem especificidade
e sensibilidade de mais de 80%.
167

Alternativamente, a Leeds Assessment of


Neuropathic Symptoms and Signs (LANSS)
Como a dor da plexopatia
(Avaliação Leeds de Sintomas e Sinais no câncer de pulmão pode
Neuropáticos) também pode ser utilizada. Essa
ferramenta de avaliação contém 5 itens de ser tratada?
sintomas e 2 itens de exame clínico (é necessário
exame clínico para alodinia e limiar de picada de O tratamento inicial da plexopatia dolorosa deve
agulha). Sensibilidade e especificidade são seguir as diretrizes da Organização Mundial de
também de mais de 80%. Esse instrumento Saúde (OMS). No entanto, adjuvantes (por ex.,
também pode ser usado para demonstrar os anticonvulsivantes, antidepressivos e esteróides)
efeitos do tratamento. são de particular importância. Esses adjuvantes
Esses primeiros sinais da presença de dor são recomendados em todos degraus da escada
neuropática devem ser seguidos de um exame da OMS e às vezes podem ser até medicamentos
neurológico completo. Os médicos devem de primeira linha antes de iniciar com
observar anomalias somatosensitivas, como analgésicos não opióides ou opióides.
disestesias, hiperalgesias, hipoestesia e alodinia.
A maioria dessas características pode ser Quais são as barreiras para
diagnosticada com simples testes à beira do
leito. A disestesia é uma sensação dolorosa o tratamento eficaz da dor?
anormal (por ex., dor em queimação,
lancinante). Usando uma agulha de ponta Do ponto de vista do médico as barreiras
romba, pode-se diagnosticar a hiperalgesia – comuns são:
percepção aumentada do estímulo doloroso.
 Falta de familiaridade com o
Hipoestesia é a sensação diminuída ou o
diagnóstico da dor neuropática.
aumento do limiar da dor (anestesia significa a
 Confiança apenas em analgésicos não
não percepção de um estímulo). A alodinia é
opióides como diclofenaco ou
definida como dor induzida por um estímulo
acetaminofeno (paracetamol) (esses
normalmente não doloroso.
analgésicos não são recomendados nos
Alodinia térmica (dor causada por calor ou frio
algoritmos para tratar dor neuropática).
moderado; pode-se usar um garfo ou faca,
quente ou frio) e alodinia dinâmica (por ex., dor  Evitar opióides devido a equívocos ou
induzida pelo contato com roupas; pode-se usar mitos sobre os opióides (por ex., medo
um cotonete para o exame) são diferentes. do vício ou crenças de que a dor
Pode-se usar um diapasão para buscar anomalias neuropática não reage, de que os
na percepção de vibração. Testes elaborados opióides só devem ser usados em
como neurografia ou teste sensitivo-quantitativo pacientes moribundos e de que a
(TSQ) podem ser usados, mas em geral não depressão respiratória é um efeito
estão disponíveis ou, no caso do TSQ, o colateral comum dos opióides). Existem
impacto no diagnóstico e / ou tratamento ainda evidências de que os opióides aliviam a
não estão claros. Exames radiográficos, como dor neuropática e estão incluídos nos
ressonância magnética, podem ser empregados algoritmos de tratamento da dor
em casos onde se consideram tratamentos mais neuropática.
invasivos.  Indisponibilidade de opióides.
 Medo de consequências legais por
prescrever “drogas ilícitas”.
 Falta de conhecimento sobre o uso e a
indicação de não analgésicos (por ex.,
anticonvulsivantes) na presença de dor
neuropática.
168

Da perspectiva dos pacientes, as barreiras disponível, deve ser usada como medicação de
comuns são: primeira linha. A gabapentina é um químico análogo
 Falta de informações satisfatórias sobre ao ácido γ-aminobutírico (GABA) que não age
a dor e os medicamentos usados (por como agonista do recetor GABA, mas se liga à
ex., antidepressivo foi prescrito, ou subunidade α2-δ do canal de cálcio voltagem-
nenhuma informação foi prestada sobre dependente na medula espinhal. A ligação desses
a razão para o uso de opióides). recetores inibe a liberação de neurotransmissores
 Medo ou experiência prévia com efeitos excitatórios. A gabapentina é administrada duas a
colaterais (por ex., dependência, boca quatro vezes ao dia. A dose inicial é 3 x 100 mg e a
seca, disfunção erétil e sonolência). dose máxima é cerca de 2.400 mg/dia. Devido aos
 Não foi oferecido nenhum tratamento efeitos colaterais comuns do medicamento, como
para os efeitos colaterais. sonolência e sedação, é necessária uma titulação
lenta.
 Os medicamentos costumam não estar
disponíveis em ambientes rurais, ou os
Antidepressivos
medicamentos prescritos pelo centro
Entre os antidepressivos, os antidepressivos
médico são caros demais.
tricíclicos (ADTs), como a amitriptilina, são os mais
frequentemente usados na dor neuropática. Os
Quais são as estratégias ADTs foram extensamente estudados em pacientes
para tratar plexopatia com dor não oncológica. Melhoram as vias
inibitórias endógenas por inibir a recaptação pré-
dolorosa? sináptica de serotonina e noradrenalina nas vias da
dor espinhal. Os ADTs também têm efeitos
Em primeiro lugar, deve-se considerar estratégias de agonistas nos receptores histamínicos e
redução tumoral, como quimioterapia ou muscarínicos, que contribuem para efeitos colaterais
radioterapia, para reduzir ou minimizar o impacto como sedação e boca seca. Além disso, pode haver
direto do tumor no plexo. No entanto, se isso não ligação com canais de sódio e inibição de canais de
for possível, pode-se iniciar estratégias cálcio voltagem-dependentes. Devido a seus efeitos
farmacológicas paliativas. Os tratamentos paliativos sedativos, a amitriptilina deve ser administrada à
envolvem várias opções farmacológicas e não noite e deve ser titulada lentamente. Especialmente
farmacológicas. para pacientes mais idosos, a dose inicial não deve
exceder 25 mg. A dose máxima para dor oncológica
Anticonvulsivantes é aproximadamente 75-100 mg/dia. Pode haver
Esses medicamentos são usados principalmente contraindicações resultantes de doenças cardíacas
para tratar neuralgia do trigêmeo, mas estudos pré-existentes como arritmia e defeitos de
recentes dão evidência de eficácia para várias condução. Antidepressivos secundários, como
condições de dor neuropática. A carbamazepina age nortriptilina e desipramina são tão eficazes quanto
pelo bloqueio dos canais de sódio voltagem- os ADTs e costumam ser mais bem tolerados
dependentes. A dose inicial é 100 mg duas vezes ao devido a menos efeitos colaterais. Os inibidores
dia até o máximo de 1.200-1.600 mg/dia. Efeitos seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs), como
colaterais, como sedação, são comuns, a fluoxetina, são mais bem tolerados, mas são
principalmente quando a dose inicial é alta demais também menos eficazes no alívio da dor
ou a titulação é muito rápida. Hoje em dia, seu uso neuropática. Novos antidepressivos com
para a dor oncológica é limitado devido a riscos mecanismo de ação misto, como venlafaxina,
potenciais como supressão de medula óssea, paroxetina ou duloxetina, parecem ser eficazes, mas
leucopenia, hiponatremia e interação com o para o tratamento da dor oncológica as evidências
metabolismo hepático e portanto interação de são poucas e não estão disponíveis em vários países.
múltiplos medicamentos. A gabapentina, se
169

Opióides formulações de liberação imediata e três vezes ao


As inverdades comuns sobre os opióides incluem a dia para formulações de liberação lenta. Ao passar
falta de eficácia para dor neuropática. Essa crença se de tramadol, que é às vezes classificado como
mostrou falsa. Existem muitas evidências que “opióide fraco”, para morfina, deve-se considerar a
demonstram a eficácia desses medicamentos. No taxa de conversão (por ex., 100 mg de tramadol oral
entanto, a dor neuropática pode responder menos são equivalentes a aproximadamente 10 mg de
aos opióides se comparada à dor nociceptiva. Os morfina oral). A dose máxima de tramadol não deve
opióides devem ser titulados individual e exceder 400-600 mg/dia. Entre os efeitos colaterais,
cuidadosamente para encontrar o equilíbrio ideal existe uma alta prevalência de náusea e vômitos. Na
entre benefícios e efeitos colaterais. A combinação insuficiência renal, deve-se aumentar o intervalo
dos opióides com adjuvantes como a gabapentina entre as doses. A dose recomendada no caso de
pode reduzir a dose das duas medicações e o efeito cirrose hepática é 50 mg a cada 12 horas.
no alívio da dor é em geral maior do que com o uso A oxicodona é um opióide semi-sintético que ativa o
de uma só delas. Portanto, deve-se considerar uma recetor mu e o recetor kappa. Sua duração de ação é
terapia combinada para tratar a dor neuropática. de 4 horas. Devido à melhor biodisponibilidade
Entre os opióides, a morfina é o medicamento mais oral, a taxa de conversão para a morfina é 1:2 (por
estudado. É um agonista do recetor mu. A morfina ex., 5 mg de oxicodona oral equivalem a 10 mg de
está disponível em formulações de liberação morfina oral). A oxicodona deve ser usada com
imediata e (em alguns países) em formulações de muito cuidado em situações de disfunção renal ou
liberação lenta. Como a duração da ação da hepática devido ao aumento da meia vida de
formulação de liberação imediata é de eliminação.
aproximadamente 4 horas, é necessária uma O fentanil transdérmico, agonista sintético do receptor
administração frequente. A titulação deve começar mu, administra o fentanil através de um adesivo
com 5-10 mg a cada 4 horas. Na ocorrência de dor com membrana limitante de taxa. Devido à
súbita, deve-se administrar mais 1/6 a 1/10 da dose administração lenta, os adesivos devem ser trocados
diária de morfina como uma etapa inicial. Depois, a a cada 72 horas (em 20% dos pacientes é preciso
dose adequada para tratar dor súbita precisa ser aplicar um novo adesivo a cada 48 horas devido à
ajustada de acordo com as necessidades individuais falha de final de dose). A taxa de conversão para a
e as respostas dos pacientes. No caso de morfina é 100:1 (por ex., 120 mg de morfina por dia
procedimentos dolorosos, a morfina de liberação equivalem a 50 μg de fentanil/hora). A vantagem
imediata pode ser administrada aproximadamente sobre a morfina é a ausência de metabólitos ativos.
meia hora antes do procedimento (como tratamento No entanto, na presença de disfunção renal, a
de ferimentos). Os efeitos colaterais mais comuns sensibilidade aos efeitos do medicamento aumenta.
são sedação, obstipação, náusea e vômitos. É A cirrose hepática não parece afetar a farmacologia
essencial cuidar dos efeitos colaterais (para do fentanil, mas fluxo sanguíneo hepático
obstipação prescrever laxantes e informar o paciente prejudicado afeta. A obstipação é menos
sobre ingestão de líquidos; para náusea, prescrever pronunciada se comparada à morfina. As
antieméticos e informar o paciente de que a náusea desvantagens são problemas com o adesivo e início
costuma ser autolimitante). Em casos de disfunção lento de ação (quando o adesivo é aplicado pela
hepática (por ex., cirrose hepática), a duração da primeira vez, é preciso levar em consideração um
ação pode ser prolongada, portanto os intervalos intervalo de 12 horas para o início da ação).
entre as doses devem ser aumentados. Quando há A metadona pode ser considerada uma alternativa
dano renal, recomenda-se a redução da dose e a importante e, em casos de plexopatia grave, pode
manutenção dos intervalos de administração. até ser considerada um opióide de primeira linha. A
Outros opióides que podem ser usados incluem o metadona é um opióide sintético que age como
tramadol, que é um opióide sintético que não apenas agonista do recetor μ, um bloqueador do recetor
estimula os recetores mu, mas também inibe a NMDA e inibidor da recaptação pré-sináptica de
recaptação pré-sináptica de serotonina e serotonina. Devido à sua longa meia vida de
noradrenalina. A dose é a cada 4 horas para eliminação de 24 horas (até 130 horas), a titulação às
170

vezes é difícil, mas a metadona também pode ser seguida de 60 mg divididos em três doses. Deve-se
vista como um opióide de longa duração que continuar com os esteróides até que outras
necessita de apenas três a quatro doses diárias. A abordagens terapêuticas (radioterapia, terapia
dose normal começa com 5 mg 4 vezes ao dia por medicamentosa) sejam iniciadas, quando a
2-3 dias. Para alívio inadequado da dor ou dor dexametasona poderá ser gradualmente reduzida. A
súbita, pode-se administrar mais 5 mg. Trocar para, dexametasona tem outros dois efeitos colaterais que
ou iniciar o tratamento com metadona pode ser podem ser úteis para o tratamento paliativo. Tem
difícil. Por essa razão, recomenda-se um algoritmo. efeito antiemético e pode melhorar o apetite. Para
No dia 1 deve-se interromper o tratamento com melhorar o apetite, a dexametasona pode ser
outros opióides. Deve-se administrar 2,5-5 mg de prescrita continuamente em uma dose diária de 2
metadona oral a cada 4 horas. Para dor súbita, pode- mg.
se adicionar mais 2,5-5 mg de metadona (com
intervalo entre doses de 1 hora). Nos dias 2-3, pode Antagonistas do recetor NMDA
ser necessário um aumento máximo de dose de 30% Neurotransmissores excitatórios, como o glutamato,
se o alívio da dor no dia 1 não foi suficiente. No dia têm papel importante na transmissão da dor no
4, 72 horas após o início da terapia com metadona, nível da medula espinhal. O glutamato ativa o
o intervalo entre as doses deve ser mudado para 3 recetor NMDA que é associado a fenômenos como
vezes ao dia (cada 8 horas), e os intervalos para sensibilização central. A cetamina, antagonista do
medicação da dor súbita devem ser prolongados recetor NMDA, e medicamento usado
para 3 horas. Se o alívio da dor ainda não for extensivamente na anestesia, deve ser considerada
adequado, ou se a dor aumentar devido à progressão principalmente em situações onde a analgesia com
do tumor, é preciso fazer ajustes de dose. Os opióides não é suficientemente eficaz. A inclusão de
pacientes recebendo doses muito altas de morfina aproximadamente 1-25 mg de cetamina oral 3 vezes
oral (>100 mg/dia) devem começar no dia 1 com ao dia pode ser combinada com baixas doses de
50 mg de metadona 4 vezes ao dia. Ao longo dos diazepam (por ex., 5 mg) para evitar sintomas
próximos dias, deve-se fazer os ajustes de dose psicóticos associados ao uso de cetamina.
conforme descrito acima. Devido a seu
metabolismo via citocromo P-450 deve-se tomar Canabinóides
precauções para evitar interação medicamentosa. As classes mais novas de medicamentos para tratar
Cetoconazole, inibidores da protease HIV, e suco dor neuropática são os canabinóides. Existem
de toranja (grapefruit) são responsáveis por evidências de que delta-9-tetra-hidrocanabinol
exacerbar os efeitos da metadona, enquanto os (THC) oral e outros canabinóides podem aliviar a
esteróides, erva de São João, carbamazepina e dor neuropática, melhorar o apetite e diminuir
rifampina podem amenizar esses efeitos. A náusea e vômitos. No entanto, esses medicamentos
metadona pode prolongar o intervalo QT e pode não podem ser recomendados em geral devido à
causar taquicardia ventricular torsade de pointes. falta de estudos bem desenhados na área de dor
Portanto, em pacientes com risco de hipocalemia, neuropática oncológica.
doenças cardíacas ou abuso de cocaína, a metadona
deve ser usada com cuidado e deve-se fazer um Métodos não farmacológicos
eletrocardiograma, se houver. Os tratamentos não farmacológicos incluem a
administração peridural de opióides e infusões
Esteróides contínuas de anestésicos locais via cateter no plexo
Os esteróides, principalmente a dexametasona, são braquial. No entanto, a deslocação do cateter e as
úteis quando há evidência clínica de compressão de infecções podem ser vistas como grandes
estrutura nervosa ou dor devida a edema em torno obstáculos para essa forma de terapia,
das metástases. Em casos de dor aguda, deve-se principalmente nas zonas rurais onde não existem
prescrever inicialmente doses de 16-24 mg ao dia. anestesiologistas.
Em casos de emergência (compressão da medula A cordotomia é um processo neurodestrutivo no
espinhal) a dose intravenosa inicial é de até 100 mg, qual o trato espinotalâmico anterolateral é destruído
171

para produzir analgesia contralateral. A dor tem que


ser estritamente unilateral e, devido à frequência da
Sítios na Web
recidiva da dor, a expectativa de vida do paciente
deve ser limitada. Importantes complicações National Cancer Institute: www.cancer.gov
World Health Organization: www.who.int
neurológicas são paresia, ataxia, paralisia do nervo
European Association for Palliative Care:
frênico e, em sobreviventes de longo prazo, um www.eapcnet.org
início tardio de dor disestésica. Non-Small Cell Lung Cancer Treatment (PDQR):
www.meb.uni-onn.de/cancer.gov/CDR0000062932.html
Pérolas de sabedoria
 Na avaliação clínica, alguns descritores de
dor (por ex., dor em queimação ou
lancinante) usados pelos pacientes, em
combinação com sinais neurológicos (por
ex., hipoestesia, alodinia ou limiares
patológicos de quente/frio) obtidos ao pé
do leito com instrumentos simples (por ex.,
cotonete, agulha ou colher fria) dão sólidas
evidências de dor neuropática.
 Em casos de dor neuropática, a combinação
de anticonvulsivantes, antidepressivos e
opióides costuma ser mais eficaz do que a
monoterapia com opióides.
 Considerar o uso de metadona em casos de
síndromes “intratáveis” de dor neuropática.

Referências
[1] Dworkin RH, O’Connor AB, Backonja M, Farrar JT,
Finnerup NB, Jensen TS, Kalso EA, Loeser JD,
Miaskowski C, Nurmikko TJ, Portenoy RK, Rice AS,
Stacey BR, Treede RD, Turk DC, Wallace MS.
Pharmacologic management of neuropathic pain:
evidence-based recommendations. Pain 2007;132:237–51.
[2] Jaeckle KA. Neurological manifestations of neoplastic
and radiationinduced plexopathies. Semin Neurol
2004;24:385–93.
[3] Shen KR, Meyers BF, Larner JM, Jones DR. American
College of Chest Physicians. Special treatment issues in
lung cancer: ACCP evidencebased clinical practice
guidelines, 2nd edition. Chest 2007;32(Suppl):
290–305.
[4] Vecht CJ. Cancer pain: a neurological perspective.
Curr Opin Neurol 2000;13:649–53.
172

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 21
Câncer de Pulmão com Problemas Respiratórios
Thomas Jehser

Por que é importante


tíbia. Com 63 anos, recebeu um diagnóstico de
conhecer a dor do câncer de enfisema pulmonar e diabetes mellitus. Nove meses
pulmão? atrás ele teve uma hérnia de disco e foi submetido a
cirurgia devido à fraqueza muscular da coxa direita.
Mais ainda, ele ficou com uma síndrome dolorosa
O câncer de pulmão é o tumor pulmonar mais mista de costas, quadril direito e joelho direito com
comum e a doença maligna mais comum. A um componente neuropático dominante (dor em
incidência na Europa é estimada pela Organização queimação). O Sr. K. consultou seu médico que
Mundial de Saúde (OMS) em 38/100.000 habitantes estabeleceu um regime bem sucedido de medicação
(na África 9/100.000). Provoca cerca de 1,2 milhões com a combinação de tramadol e carbamazepina.
de mortes por ano em todo o mundo. Desde 1953, Podendo se mover bem melhor, o Sr. K. pôde
é a causa mais comum de morte por câncer entre a perceber melhor sua dispnéia e exaustão após andar
população masculina, e desde 1985 entre a distâncias relativamente curtas. Sua mulher também
população feminina. notou que ele emagreceu muito e tossia
constantemente nos últimos dois meses. Uma
Relato de caso – parte 1 radiografia do tórax revelou uma proeminência no
hilo pulmonar esquerdo. Foi enviado para Atbara
O Sr. Tarik Al-Khater é um homem de 65 anos com para mais exames. Infelizmente, a TC detectou um
constituição atlética. Trabalhava como carteiro em tumor central do sistema brônquico direito, que foi
Barbar, ao norte do Sudão, e permaneceu ativo classificado histologicamente através da
fazendo exercícios de condicionamento físico até broncoscopia como câncer de pulmão não-
um ano atrás. Vinte anos atrás ele parou de fumar pequenas células. Além disso, cintilografia e raios-X
tendo acumulado 10 “anos maços” (um “ano maço” revelaram metástases ósseas difusas, como na
significa fumar 20 cigarros por dia durante 1 ano). coluna lombar e no joelho direito.
Até dois anos atrás nunca tinha ficado doente,
embora tenha se submetido a uma apendicectomia e
a uma osteossíntese para corrigir uma fratura da
173

Quais são as causas e os Os carcinomas brônquicos costumam começar na


região central das vias aéreas e com menos
fatores de risco para o frequência nos brônquios periféricos menores. O
primeiro e mais visível sintoma é uma tosse
câncer de pulmão? persistente improdutiva (suspeita quando durar mais
de 6 semanas). Outros sintomas primários são
Existem fatores endógenos para o aparecimento do hemoptise, dispnéia ou dor no peito, e sintomas
câncer de pulmão (disposição genética, infecção mais raros são rouquidão, ansiedade, febre e
HIV ativa, fibrose pulmonar e cicatriz após lesão expectoração mucóide, ou síndromes ou sinais
parenquimal ou tuberculose). As condições paraneoplásicos após qualquer tipo de metástase
exógenas consideradas fatores de risco são precoce (Quadro 1). A análise histológica faz a
tabagismo em primeiro lugar (parcialmente diferença entre carcinomas de pequenas células
responsável por 90% das mortes por câncer de (13%) e de não-pequenas células (81%). Seis por
pulmão), e exposição a poeira e partículas como cento das análises não apresentam resultado
amianto, cromatos e aromáticos policíclicos, ou conclusivo (carcinoma anaplásico). Outras
radiação de urânio, radão ou mesmo radioterapia malignidades ou processos que ocupam o espaço do
médica. tórax são mesoteliomas pleurais, timomas,
metástases de tumores extratorácicos ou doenças
Como começa o câncer de infecciosas (Quadro 2). Portanto, o diagnóstico
diferencial preciso do mal-estar torácico deve
pulmão? considerar as doenças tumorais.

Quadro 1 . Sintomas comuns no inicio Quadro 2 . As doenças e infeções


de câncer de pulmão extratorácicas com manifestação
pulmonar
-Tosse persistente
-Hemoptise -O câncer de mama
-Dispnéia -Retal câncer
-Dor no peito -Renal câncer
-Rouquidão -Melanoma maligno
-Febre, impactação mucóide -sarcomas
de outros locais de dor -Aspergilose
-A perda de apetite, peso, e força -Tuberculose
-Paraneoplatic síndromes -Helmintíase
-Síndrome de Cushing
-Herpes zoster
-Neuropatia periférica
-Trombose venosa

Relato de caso – parte 2


impossível. Para tratamento sintomático, o Sr. K. recebeu
Infelizmente, a metástase foi detetada no momento do
radioterapia na região do tumor (dose cumulativa de 46 Gy)
diagnóstico inicial e o crescimento primário foi localizado em
seguida de radiação da metástase óssea da espinha (36 Gy) e
uma posição muito central. A capacidade respiratória –
do joelho (8 Gy). Durante o tratamento, o hemograma
quando testada – foi limitada a um VEF1 de 1,1 L.
revelou transaminase hepática elevada. Como não foi
Portanto, foi decidido que a ressecção cirúrgica seria
174

encontrada nenhuma metástase hepática, houve suspeita de cabeça e do pescoço; infiltração do mediastino, axila
que a carbamazepina usada para o controle da dor fosse a e parede torácica com dor mista no braço, ombro,
responsável. Ao final da radioterapia, o Sr. K. conseguia tórax e coluna cervical; disfagia; ou transtornos
respirar muito melhor e quase não sentia dor, embora a neurológicos (paralisia do braço, síndrome de
medicação tenha sido reduzida para metamizole 4 vezes ao Horner ou paraplegia). A disseminação sistêmica
dia e tramadol conforme necessário. dos tumores primários de pulmão através da
corrente sanguínea ou das vias linfáticas causa
Qual é a trajetória da sintomas e anormalidades de acordo com a
quantidade e localização das metástases. Os
doença e quais são as pacientes podem ter anormalidades neurológicas,
opções de tratamento? metabólicas, cardiovasculares ou gastrintestinais
(Quadro 3). Os locais comuns de disseminação do
câncer de pulmão são nódulos linfáticos torácicos e
As doenças tumorais podem causar anormalidades, cervicais, ossos, pleura, cérebro e seus
sintomas e complicações locais, regionais e revestimentos, fígado e glândulas supra-renais.
sistêmicas. Os efeitos locais do câncer de pulmão Baço, coração, pele, olhos (membrana coróide), rins
são obstrução e infiltração dos tecidos vizinhos. ou pâncreas são raramente afetados.
Isso pode levar a impactação mucóide, pneumonia
retroestenótica, hemorragia ou derrame pleural. A
disseminação regional do tumor acompanha a
infiltração contínua do mediastino, da pleura ou da
axila ou se dissemina por vasos linfáticos.
Os sintomas da disseminação regional são fraqueza;
perda de apetite e peso; congestão dos vasos da
Quadro 3
Comuns entre os transtornos gerais em pacientes com câncer de pulmão
-Neurológicas: paralisia do membro, hemiparesia, paraparesia, dor, delírio,
convulsões epilépticas
-Metabólica: diabetes mellitus, SIADH (síndrome de hipersecreção inapropriada
do hormônio antidiurético), anemia, trombocitose, trombocitopenia hipercalcêmia,
-Cardiovascular: hipotensão, trombose, superior (ou inferior) da veia cava
congestionamento
Gastrointestinais: náuseas, vômitos, obstrução intestinal, insuficiência hepática

Relato de caso – parte 3 dor abdominal alta. O exame físico revelou uma
massa abdominal alta e a ultrassonografia detectou
metástases múltiplas no fígado e também nas duas
O Sr. K. tem câncer de pulmão já há 7 meses.
glândulas supra-renais.
Quatro semanas atrás ele perdeu o apetite e se sente
mal com muita frequência. Perdeu peso
O oncologista recomendou quimioterapia, que deveria ser feita
consistentemente (cerca de 30% de seu peso inicial
no hospital regional. O Sr. K. está relutante em voltar para o
em um ano e meio). Embora a carbamazepina tenha
hospital em Atbara, a capital, e pediu informações a parentes
sido suspensa, os hemogramas revelaram altos
e amigos sobre opções ao tratamento tradicional de que
valores de transaminase hepática, acompanhados de
tenham ouvido falar.
175

Quais são as opções de metástases de nódulos linfáticos do mediastino), ou


anormalidades neurológicas (SNC).
tratamento para o câncer As terapias farmacológicas sistêmicas
(quimioterapia, terapia anti-hormônios e outras) são
avançado de pulmão? paliativas para reduzir a massa ou a taxa de
crescimento do tumor, permitindo o prolongamento
As opções de tratamento são: da sobrevida. Sua aplicação costuma enfraquecer a
 Terapia cirúrgica (curativa ou paliativa). condição geral do paciente. Portanto, é necessário
considerar a qualidade de vida dos pacientes
 Radioterapia (neoadjuvante, paliativa ou
individuais de acordo com suas perspectivas
dirigida aos sintomas).
pessoais.
 Quimioterapia e outras terapias
farmacológicas (paliativas).
 Naturopatia (paliativa).
Existem alternativas
 Cuidados paliativos (adjuvantes). terapêuticas para cirurgia,
É claro que a melhor terapia seria a prevenção dos quimioterapia e
fatores de risco, mas não existem procedimentos radioterapia?
para prevenção primária. A avaliação diagnóstica o
mais cedo possível é crucial para o curso da doença.
A cirurgia curativa requer o diagnóstico de um As estratégias alternativas (ou complementares) de
estágio baixo da doença (0-IIIa) para tornar possível tratamento são baseadas em conceitos tradicionais e
a erradicação do tumor por ressecção. Possíveis empíricos. Podem ser vistas como paliativas e não
técnicas incluem ressecção lobar (pleuro-), devem substituir os esforços científicos médicos.
pneumonectomia ou reconstrução brônquica. Adotando uma perspectiva paliativa, essas
Outras opções são dissecação dos nódulos linfáticos estratégias podem muito bem ser importantes e
e reconstrução do pericárdio e dos vasos eficazes na trajetória da doença individual. Em geral,
sanguíneos. O grau de restrição ventilatória depende é impressionante como ajudam o paciente e seus
da magnitude da ressecção. Os tratamentos familiares a encarar a doença com mais
cirúrgicos precisam ser realizados em um compreensão e a lidar melhor com os sentimentos
departamento clínico especializado. A reabilitação de desamparo o que, por sua vez, pode ajudar a
pós-operatória é possível no ambulatório e não deve dirigir o curso da doença até certo ponto.
ser descartada. A cirurgia paliativa é feita para retirar De acordo com a OMS, “Cuidados paliativos são
metástases de tumores extratorácicos ou recidivas uma abordagem que melhora a qualidade de vida
locais e para drenar infecções secundárias como o dos pacientes e das famílias que enfrentam
empiema. As intervenções endoscópicas ou problemas associados à doença com risco de vida,
vasculares ajudam com a reabertura das vias aéreas e através da prevenção e do alívio do sofrimento pela
vasos por stent, laser ou crioextração. identificação precoce, avaliação impecável e
A radioterapia isolada não pode ser usada para fins tratamento da dor e de outros problemas físicos,
curativos. Em combinação com a quimioterapia, psicossociais e espirituais”. A fundadora dos
pode reduzir o tamanho do tumor (redução do cuidados paliativos modernos, Cicely Saunders
estágio), que pode abrir caminho para uma cirurgia (1918-2005), desenvolveu suas idéias fundamentais
bem sucedida (estratégia neoadjuvante) e para o quando estava tentando aliviar e diminuir a dor
prolongamento da sobrevida. A radioterapia oncológica encarando-a de uma perspectiva mais do
paliativa pretende reduzir a atividade das metástases, que “física”. Assim, ela inaugurou as estratégias de
o que pode resultar em diminuição da dor (ossos, tratamento para as necessidades psicológicas, sociais
fígado, SNC e pleura), congestão sanguínea e espirituais dos pacientes, além de cuidar de sua
(síndrome da veia cava superior causada por condição física, de acordo com o conceito de “dor
176

total”. Os cuidados paliativos, portanto, aliviam o


sofrimento físico e fornecem informações e
Quais são as consequências
entendimentos dentro do contexto social do da dispnéia, e como ela é
paciente. Da mesma forma, oferecem consolo e
assistência para ajudar com a ansiedade e a dor tratada?
emocional causada pela ameaça da perda de amigos
e da vida. A dispnéia é definida como uma experiência
subjetiva de desconforto respiratório, consistente de
Relato de caso – parte 4 diferentes condições que levam ao aumento do
esforço respiratório, precisando de mais força ou de
O Sr. K. finalmente concordou em fazer uma frequência respiratória mais alta. Essa
quimioterapia. Após conseguir transporte, ele vai ao experiência também é influenciada por interações
hospital regional de Atbara regularmente para entre condições físicas e emocionais. A dispnéia
tratamento e para os exames necessários e se sente pode ser causada por, mas não é de forma alguma
de certa forma seguro e estabilizado, embora precise igual a, insuficiência respiratória. Enquanto a
tomar antibióticos para uma bronquite piogênica de dispnéia é uma sensação subjetiva do paciente, a
curto prazo. Ele encontra outros pacientes – que lhe insuficiência respiratória é um fenômeno
contam sobre efeitos colaterais, que ele considera “fisiológico” que pode ser quantificado exatamente
irrelevantes para ele nesse ponto. Sente-se muito com exames. Existem várias causas para a
aliviado quando se reúne com um grupo insuficiência respiratória que se originam nos
supervisionado por um profissional de saúde em sua sistemas pulmonar, cardíaco, vascular, ósseo,
cidade natal onde praticam técnicas de respiração e muscular e nervoso. A gravidade da dispnéia
relaxamento. Com a ajuda da família e dos amigos resultante depende muito do curso de
ele também recebe aconselhamento de um curador desenvolvimento da insuficiência respiratória e de
tradicional que recomenda uma medicação adicional sua profundidade. Portanto, alguns pacientes
composta de substâncias minerais e ervas. Nas suas conseguem viver com uma capacidade respiratória
reuniões pessoais com seu conselheiro espiritual muito reduzida sem sentir dispnéia em repouso,
Sheikh Farshi, ele aprende a conversar com sua enquanto outros com insuficiência respiratória leve
mulher e seus três filhos sobre as possíveis podem sofrer de falta de ar intensa. A dispnéia
consequências de uma doença fatal para a família e causa facilmente ansiedade, e vice versa. Portanto, a
para sua situação financeira. diferenciação da falta de ar requer que o clínico
avalie não apenas a capacidade vital e o VEF1, mas
Depois do curso seguinte de quimioterapia ele teve vômitos e também as condições gerais do paciente para não
fraqueza pela primeira vez após tal tratamento. Novamente subestimar o problema.
ele sente dores abdominais e nas costas além de um pouco de Para que a terapia da dispnéia seja eficaz, é útil
dispnéia em repouso. Logo depois começou uma icterícia conhecer sua fisiologia. No caso de um possível
escleral e o Sr. K. tem períodos de desorientação e depressão. tratamento das causas subjacentes, como
Sua família o levou novamente ao hospital de Atbara para broncoespasmo ou anemia, deve-se dar prioridade a
exames. O resultado foi que ele havia desenvolvido uma esse tipo de terapia. Como um dos sintomas da
insuficiência medular grave a ponto de não poder mais receber dispnéia é um pouco de agitação, o tratamento com
quimioterapia. Agora ele foi mandado para casa para sedativos propicia o controle bem sucedido do
conversar com seu médico de família sobre outras medidas que sintoma e pode até ajudar o sistema respiratório a
possam ser tomadas. funcionar de forma mais eficiente.
Além de sedativos, como os benzodiazepínicos, a
morfina é provavelmente o remédio disponível mais
importante para essa grave situação clínica. A
morfina reduz significativamente “a fome por ar”
177

subjetiva, independentemente da necessidade de terapias receptivas e imaginativas (massagem,


fisiológica real de O2 e de transporte e troca de CO2. musicoterapia, e técnicas ativas de relaxamento).
Outros medicamentos, como haloperidol, canabinol Um grande número de pacientes com câncer
e doxepina ajudam a reduzir o sofrimento progressivo de pulmão morre de complicações de
psicológico e a agitação. Além da farmacoterapia, o sua doença, e não do câncer de pulmão em si.
tratamento de zonas desencadeantes na pele com Durante o período final da vida, o mais importante
massagem, distração cognitiva e comportamental e é apoiar e confortar o paciente baixando sua
mesmo direcionando ar fresco para o rosto ansiedade, agitação, fraqueza, dor e dispnéia.
estimulando os receptores trigeminais com Quando os clínicos já deram instruções abrangentes
influência direta na frequência respiratória, são e estão disponíveis como suporte quando for
meios que levam a alívio reprodutível do necessário, esse suporte pode ser oferecido em casa
sofrimento. A disponibilidade de morfina, oxigênio pelos parentes.
e um ventilador pode ser o meio mais importante e,
na maioria das vezes, é suficiente para controlar até Relato de caso- parte 5
estágios avançados da dispnéia.
O Sr. K. voltou para casa e passa a maior parte do
Além da dispnéia, o que tempo descansando em uma cadeira confortável na
mais pode ser considerado sala de visitas. Sua mulher e dois de seus três filhos
moram com ele. Vizinhos e alguns parentes o
no tratamento do câncer de visitam regularmente para que o paciente participe
um pouco mais do que acontece à sua volta. O Sr.
pulmão? K. voltou a fumar (cerca de três cigarros em um
bom dia) que ele alega “não fazer nenhuma
Em geral, o câncer de pulmão é uma doença diferença” a essa altura e o lembra dos “velhos bons
progressiva acompanhada de complicações causadas tempos” quando era um carteiro jovem em sua
por metástases e de exaustão física geral. Essas cidade natal. Fumar também o obriga a dar alguns
complicações costumam ser acompanhadas de dor e passos porque sua família insiste que só é permitido
dispnéia e levam a enorme sofrimento psicológico fumar fora de casa. O médico de família visita
que precisa de tratamento adequado e de regularmente o paciente duas vezes por semana. Ele
informações honestas sobre as opções terapêuticas. ensinou o Sr. K. e um de seus filhos a administrar
Dessa forma, é possível influenciar a perspectiva do morfina subcutânea usando doses tituladas em caso
paciente com relação à sua qualidade de vida. de dor ou dispnéia, que ocorrem com frequência
 A vasta gama de tratamentos para as durante os fins de tarde e à noite. Um dia, o Sr. K.
possíveis complicações inclui: tropeçou ao voltar para sua cadeira e ficou com
 Medicamentos (por ex., analgésicos, medo de cair novamente após esse incidente. No dia
antibióticos, broncodilatadores, esteróides). seguinte ele não saiu da cama e parece mais
 Substituição de albumina, eritrócitos, desorientado do que nunca. A enfermeira da
eletrólitos, fluidos e agentes calóricos. comunidade administra sedativos a um Sr. K. cada
vez mais agitado. Quando o médico chegou no dia
 Radioterapia (para tratar lesões ósseas líticas,
seguinte, as condições gerais do Sr. K. haviam
obstrução das vias aéreas centrais pelo
piorado. Ele sonha muito, está febril, e apresenta
tumor, síndrome da veia cava superior ou
convulsões do braço direito e face. O médico decide
pressão intracraniana).
deixar o Sr. K. em Barbar, já que não vê opções de
 Intervenções cirúrgicas, endoscópicas e
tratamentos específicos e explica pacientemente isso
intravasculares.
para a família ansiosa. O paciente recebe novamente
O tratamento complementar oferece exercícios
sedativo subcutâneo e a agitação desaparece, o que
(fisioterapia), suporte psicológico ou espiritual, além
ajuda a família a permanecer constantemente a seu
178

lado, embora chorando muito. Ao final desse dia o de ação em situações agudas de dispnéia, se
Sr. K. morreu sem recuperar a consciência ou a via intravenosa não estiver disponível.
mostrar sinais de agitação ou sofrimento,  Os pacientes com dispnéia no estágio final
principalmente dispnéia. do câncer de pulmão não necessitam de
farmacoterapia, mas sim de uma equipe
Pérolas de sabedoria dedicada de familiares, profissionais de
saúde, amigos e conselheiros espirituais.
Entenda que:  Deve-se usar qualquer coisa que ajude o
paciente, porque nos cuidados paliativos as
 O câncer de pulmão é uma doença que
reservas com relação à medicina
ameaça a vida.
complementar, alternativa ou tradicional não
 O caráter dos problemas respiratórios ajuda
se justificam.
você a decidir sobre o tratamento.
 O câncer de pulmão provoca dor, que pode
ser tratada.
Referências
 Pode-se oferecer cuidados paliativos aos
[1] Alberg AJ, Samet JM Epidemiology of lung cancer. Chest
pacientes com câncer de pulmão. 2003;123:21.
 Morfina e um ventilador podem, na maioria [2] American Thoracic Society. Dyspnea: mechanisms, assessment
dos casos, ser suficientes para impedir que o and management, a consensus statement. Am J Respir Crit Care Med
1999;159:321.
paciente sufoque. [3] Bruera E, MacEachern T, Ripamonti C, Hanson J. Subcutaneous
 A dose necessária de morfina não é dada em morphine for dyspnea in cancer patients. Ann Intern Med
1993;119:906.
miligramas por quilograma de peso corporal,
[4] Colice GL. Detecting lung cancer as a cause of hemoptysis in
mas é calculada por titulação em pequenas patients with a normal chest radiograph: bronchoscopy vs. CT. Chest
doses repetidas até atingir uma dose eficaz. 1997;111:877.
[5] Harrington SE, Smith TJ. The role of chemotherapy at the end of
 Os efeitos positivos da morfina mais do que life: “when is enough, enough?” JAMA 2008;299:2667.
superam os riscos de depressão respiratória [6] Holty JEC, Gould MK. When in doubt should we cut it out? The
por opióides, visto que a titulação permite role of surgery in non-small cell lung cancer. Thorax 2006;61:554.
[7] Silvestri GA, Spiro SG. Carcinoma of the bronchus 60 years later.
que se encontre um equilíbrio entre a Thorax 2006;61:1023.
redução da dispnéia e o efeito colateral [8] Toloza EM, Harpole L, McCrory DC. Noninvasive stating of non-
típico de depressão respiratória. small cell lung cancer: a review of current evidence. Chest
2003;123:137.
 A morfina pode ser administrada por via
subcutânea para permitir um início rápido
179

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 22
Câncer Hematológico com Náusea e Vômitos
Justin Baker, Raul Ribeiro e Javier Kane

Relato de caso cuidados paliativos) ou de complicações ligadas


direta ou indiretamente à doença. Mais de metade
dos pacientes oncológicos terminais têm náusea
Michael é um rapaz de 23 anos com linfoma linfoblástico grave e um terço vomitam. O quadro clínico de
recidivante na medula espinhal e no sistema nervoso central N/V costuma ser multifatorial. Independentemente
(SNC) que está recebendo cuidados terminais com da etiologia, os sintomas de N/V podem interferir
quimioterapia. Cinco dias atrás, Michael iniciou um curso de com o estado nutricional do paciente e com seu
ciclofosfamida oral (vide Tabela 1 para as propriedades prazer de comer e beber e podem afetar de maneira
emetogênicas da quimioterapia) com a intenção de prolongar a importante sua qualidade de vida e a qualidade de
vida com qualidade. A principal queixa de Michael é náusea sua morte. Quando não tratados adequadamente,
grave seguida de vômitos duas a três vezes ao dia. A principal N/V interferem com o estado nutricional, a
preocupação dos pais de Michael é sua impossibilidade de homeostasia hidroeletrolítica, o estado mental, o
comer ou beber algo considerável. Atualmente, Michael está desempenho clínico e a obediência ao tratamento
recebendo 30 mg de morfina oral a cada quatro horas, do paciente. Os clínicos, portanto, têm um
principalmente para controlar a cefaléia. Não recebe qualquer imperativo ético de prevenir, avaliar, tratar e fazer o
outra medicação. Seu histórico revela que as náuseas e acompanhamento de N/V para assegurar o melhor
vômitos pioraram nos últimos três dias (começou a tratamento possível para pacientes oncológicos
ciclofosfamida três dias atrás). Não tem movimentos terminais.
peristálticos há sete dias.
Quais são as principais vias
Por que é tão importante
envolvidas com a
tratar náusea e vômitos?
fisiopatologia de náusea e
A náusea é definida como um sentimento de mal- vômitos?
estar no estômago e é caracterizada por vontade de
vomitar. Vômito é a expulsão forçada do conteúdo
A fisiopatologia de náusea e vômitos é bastante bem
estomacal e do intestino delgado proximal. Náusea e
caracterizada. O centro do vômito recebe
vômitos (N/V) são sintomas comuns em pacientes
informações aferentes das vias neuronais que
terminais e são resultado de toxicidade relativa ao
transportam sinais emetogênicos:
tratamento (tratamento específico da doença ou
180

Vias periféricas do trato gastrintestinal (GI) através dos A serotonina é liberada das células enterocromafinas
nervos esplênico e vago. O trato GI pode provocar do intestino delgado e ativa os receptores 5-TH3 nas
náusea através de sensações de irritação por fibras vagais periféricas e nas estruturas centrais. A
medicamentos, infiltração tumoral, obstrução, emese tardia ocorre 24 horas após a exposição ao
distensão ou obstipação ou impactação fecal. emetógeno e persiste por até 4-6 dias. Além da
Vias neuronais da zona desencadeante do químio-receptor serotonina, a substância P, junto com outros
(ZDQ). A ZDQ está localizada no assoalho do neurotransmissores, parece ter uma importante
quarto ventrículo e não tem uma verdadeira barreira função na manutenção de N/V aguda e tardia. N/V
hemato-encefálica. Isso permite que a zona sinta antecipatório é definido como uma resposta
flutuações na concentração de certas substâncias na condicionada “aprendida”, em geral presente
corrente sanguínea. A ZDQ também pode ser quando episódios de N/V não foram
estimulada por tumores da fossa posterior. adequadamente controlados em exposições
Vias vestibulares do labirinto. As vias vestibulares anteriores. Ocorre antes, durante ou depois da
podem ser estimuladas por doença vestibular como exposição ao emetógeno, mas não no momento em
vertigem, infecções da orelha média ou cinetose. que N/V relacionado ao emetógeno deveria
Vias corticais em resposta a estímulo sensitivo ou psicogênico. ocorrer. Nessa situação, uma série de estímulos,
O estímulo cortical pode vir de um tumor do SNC como odor, visão ou som, provoca emese.
ou da meninge, de pressão intracranial aumentada,
de ansiedade ou de dor incontrolável. Qual é o diagnóstico
Como são classificados diferencial de náusea e
náusea e vômitos? vômitos?

Náusea e vômitos costumam ser classificados como O caso de Michael ajudou a demonstrar que náusea
agudos, tardios, refratários, antecipatórios ou e vômitos são, em geral, multifatoriais. A Fig. 1
súbitos. A emese aguda, que parece ser mediada pela detalha o diagnóstico diferencial e as etiologias de
serotonina, ocorre 3 a 4 horas após exposição a um náusea e vômitos, além de oferecer um mnemônico
emetógeno como a quimioterapia (vide Tabela 1). útil para lembrar do desenho:
181

Quais os agentes quimioterápicos que causam os maiores


problemas de náusea e vômitos?
Tabela 1
Risco de emese na ausência de tratamento antiemético profilático com os quimioterápicos mais
comuns [adaptado de Perry (2001)]
Medicamento (dose)
Alto risco (>90%) Risco moderado (>30-90%) Baixo risco (<30%)
Carmustina (>250 mg/m2) Carboplatina Asparaginase
Cisplatina Carmustina (<250 mg/m2) Bleomicina
Ciclofosfamida (1.500 mg/m )
2 Cisplatina (<50 mg/m )2 Citarabina (<1 g/m2)
Dacarbazina (>500 mg/m )2 Ciclofosfamida (<1.500 mg/m )
2 Doxetacel
Dactinomicina Citarabina (>1 g/m2) Doxorubicina (<20 mg/m2)
Lomustina (>60 mg/m ) 2 Doxorubicina Etoposide (oral ou i.v.)
Mecloretamina Epirubicina Fluorouracil (<1 g/m2)
Estreptozocina Idarubicina Gemcitabina
Ifosfamida Interleucina-2
Irinotecan Metotrexate (<100 mg/m2)
Melfalan Metotrexate (>100 mg/m2)
Mitoxandrona (>12 mg/m ) 2 Mitomicina
Procarbazina Mitoxantrona (<12 mg/m2)
Paclitacel
Rituximab
Temozolomida
Teniposido
Tiotepa
Topotecan
Trastuzumab
Vinblastina
Vincristina

Como posso avaliar náusea  Componente vestibular (anti-histamínicos


podem ser úteis).
e vômitos?  Ansiedade ou dor não aliviada (em geral
negligenciadas como causa de náusea).
A avaliação deve incluir o histórico e o exame físico Ao fazer o exame clínico procure:
do paciente. Para obter o histórico, faça perguntas  Caquexia ou desnutrição, perda de massa
sobre as características de N/V: muscular, redução da espessura da prega
 Início (para identificar um desencadeante cutânea (indicadores de mal-absorção).
específico).  Distensão abdominal, ruídos intestinais
 Relacionamento com refeições (N/V pós- aumentados, massas abdominais ou ascite
prandial pode ser causado por obstrução). (indicadores de obstrução intestinal).
 Revisão da medicação (mudar a medicação  Volume abdominal, inclusive exame de reto
pode ajudar). (obstipação causada por hipomobilidade).
 Histórico de movimentos peristálticos  Papiledema (aumento da pressão
(existem indicações de intestino intracraniana).
disfuncional?)  Pressão arterial deitado e de pé e manobra
de Valsalva (disfunção autonômica).
182

Como náusea e vômitos podem ser tratados farmacologicamente?

O tratamento farmacológico de N/V é o esteio da terapia. A Tabela 2 traz os medicamentos usados com
frequência para tratar N/V. A tabela-resumo ao final deste capítulo também contém algoritmos úteis de
tratamento, inclusive terapia farmacológica. Como com todos os sintomas, os clínicos precisam reavaliar
constantemente a eficácia do tratamento e prever fatores exacerbantes. O tratamento adequado e a prevenção de
náusea e vômitos recorrentes ou prolongados são críticos.
Tabela 2
Agentes farmacológicos comuns usados para tratar náusea e vômitos (adaptado de Policzer e Sobel [3])
Classe de medicamento Dose Comentários
Agentes procinéticos
Metoclopramida 5-15 mg antes das refeições e ao deitar; s.c./i.v. = Para náusea e estase gástrica de várias causas. Use metoclopramida
p.o. com cuidado; pode causar distonia, que é reversível com 1 mg/kg de
difenidramina. A dose antiemética é mais alta do que a dose
procinética em 0,1-0,2 mg/kg/dose. Bem tolerada com
administração s.c.
Domperidona 0,3-0,6 mg/kg antes das refeições e ao deitar até o Use domperidona com cuidado; pode causar distonia que é
máximo de 80 mg/dia. reversível com 1 mg/kg de difenidramina.
Anti-histamínicos (Úteis para náusea e vômitos de receptores vestibulares e intestinais, mas relativamente contraindicados devido a obstipação porque tornam
o intestino ainda mais lento).
Difenidramina 1 mg/kg/dose oral a cada 4 horas até o máximo de
100 mg/dose; s.c./i.v. = p.o.
Hidroxina 0,5-1 mg/kg/dose a cada 4 horas até o máximo de
600 mg/dia; s.c./i.v. = p.o.
Prometazina 0,25-1 mg/kg a cada 4 horas; s.c./i.v. = p.o. Use prometazina com cuidado; pode causar distonia. Risco de
parada respiratória em bebês.
Agonistas da dopamina (Úteis para medicação de náusea e vômitos relativos ao metabolismo. Podem causar distonia, reversível com 1 mg/kg de difenidramina
ou 0,02-0,05 mg/kg/dose de benzetropina até o máximo de 4 mg i.v. O uso intravenoso pode causar hipotensão postural; portanto i.v. deve ser
administrado lentamente.
Haloperidol 0,5-5 mg/dose a cada 8 horas até 30 mg/dia; s.c./i.v. Use com cuidado; só algumas preparações podem ser administradas
= ½ p.o. i.v. Use dextrose a 5% em água para diluir. Bem tolerado com
administração s.c.
Clorpromazina 0,5-1 mg/kg a cada 8 horas; i.v. = p.o. Mais sedativa. Irritante aos tecidos com administração s.c.
Proclorperazina 0,15 mg/dose a cada 4 horas até o máximo de 10 Irritante aos tecidos com administração s.c.
mg/dose; i.v.
Antagonistas do Receptor de Serotonina 5-HT3 (Também úteis para náusea e vômitos pós-operatórios e como agentes de segunda ou terceira linha após outros
tipos de antieméticos terem demonstrado utilidade limitada).
Ondansetron 0,5 mg/kg/dose a cada 6 horas até o máximo de 8 Particularmente útil em náusea e vômitos induzidos por
mg; i.v. = p.o. quimioterapia. O custo alto poder prejudicar seu uso.
Benzodiazepínicos
Diazepam 0,05-0,2 mg/kg/dose a cada 6 horas; i.v. = p.o./s.l. Útil para náusea e vômitos antecipatórios. O diazepam arde durante
administração i.v.; use uma veia grande e dilua a solução. Para
pacientes abaixo de 5 anos de idade a dose máxima é 5 mg/dose.
Para pacientes acima de 5 anos a dose máxima é 10 mg/dose.
Lorazepam 0,03-0,05 mg/kg/dose a cada 5 horas até o máximo
de 4 mg/dose; i.v. = p.o./s.l.
Corticosteróides
Dexametasona 6-10 mg dose de ataque e depois 2-4 mg 2-4 vezes ao Útil para distensão capsular hepática, anorexia e aumento da pressão
dia para manutenção; i.m./i.v. = p.o. intracraniana. Se o paciente pesar menos de 10 kg, 1 mg/kg de dose
de ataque e depois 0,1-0,2 mg/kg 2-4 vezes ao dia para manutenção.
Efeito agonista quando usada em combinação com antagonistas da
serotonina.
Prednisona 1,5 mg de dexametasona = 10 mg de prednisona
Canabinóides
Dronabinol 2,5 mg duas vezes ao dia (apenas para adultos) até o Pode causar disforia, sonolência ou alucinação. Estimulante do
máximo de 20 mg/dia. apetite.
Outros Anticolinérgicos
Escopolamina Preparação transdérmica: 0,5 mg trocada a cada 72 Útil para náusea e vômitos relacionados a movimento. Bem tolerada
horas; i.v./s.c.: 0,006 mg/kg a cada 6 horas. em tecidos s.c. Em geral causa boca seca e visão turva, e às vezes
causa confusão.
183

usam agulhas, estimulação elétrica, ímãs ou


Podemos tratar náusea e acupressão. Evidências respaldam o uso de
eletroacupuntura por clínicos competentes para
vômitos com opções não náusea induzida por quimioterapia. Outras
farmacológicas (medicina modalidades ainda não foram bem estudadas, mas
oferecemos detalhes para uma análise abrangente. A
complementar e Tabela 3 dá os detalhes de todas as modalidades não
farmacológicas, complementares e alternativas e dá
alternativa)? exemplos de possíveis benefícios antieméticos.

As modalidades não farmacológicas ainda não


foram adotadas e incorporadas às diretrizes da
medicina baseada em evidências. No entanto, várias
técnicas de estimulação de pontos por acupuntura
estão sendo examinadas para tratar náusea, vômitos,
ou ambos. Essas técnicas incluem métodos que
Tabela 3
Modalidades não farmacológicas e alternativas usadas para tratar náusea e vômitos (adaptado da National Comprehensive
Cancer Network 2005 [Rede Nacional Abrangente do Câncer 2005]
Modalidade Definição Exemplos de benefícios em náusea e vômitos
Massagem terapêutica Conjunto de manipulações Reiki, toque terapêutico.
sistemáticas e científicas com as
mãos para afetar os sistemas
nervoso e muscular e a circulação
em geral.
Mente-corpo; outras técnicas de Métodos que enfatizam as Meditação – transcendental e atenção, ioga, orações,
relaxamento interações mente-corpo com imagens guiadas, treinamento em relaxamento.
benefícios pretendidos, inclusive
relaxamento e bem-estar
emocional.
Musicoterapia Uso da música para ajudar a tratar Eficaz para náusea/vômitos pós-operatórios
distúrbios neurológicos, mentais e
comportamentais.
Acupuntura terapêutica Tratamento de sintomas pela Acupuntura ou acupressão no ponto Nei Guan ou P6.
inserção de agulhas ao longo de
vias específicas.
Suplementos alimentares Produtos em cápsulas, Gengibre, decocções huangqi, aromaterapia
comprimidos, líquidos ou secos,
inclusive vitaminas, proteínas,
ervas e outras substâncias vendidas
sem prescrição médica com a
intenção de reduzir náusea e
vômitos

Quais são os efeitos


principalmente com base na etiologia de N/V e no
colaterais da terapia? mecanismo da medicação. No entanto, os efeitos
colaterais podem prejudicar o uso de certos
Todos os medicamentos têm um efeito primário e medicamentos. A Tabela 4 traz os efeitos colaterais
efeitos colaterais. Deve-se escolher os antieméticos comuns dos antieméticos por categoria de
medicamentos.
184

Tabela 4
Efeitos colaterais de medicamentos comumente usados para tratar náusea e vômitos
Medicamento Efeitos adversos*
Anti-histamínicos Mais comuns: sedação, boca seca, obstipação.
Difenidramina Menos comuns: confusão, visão turva, retenção urinária.
Hidroxizina
Alcalóide da beladona Mais comuns: boca seca, sonolência, acomodação ocular prejudicada.
Escopolamina Raros: desorientação, distúrbios de memória, tontura, alucinações.
Benzamidas Mais comuns: sedação, inquietação, diarréia (metoclopramida), agitação, depressão do SNC.
Benzquinamida Menos comuns: efeitos extrapiramidais (mais frequentes com altas doses), hipotensão, síndrome
Metoclopramida neuroléptica, taquicardia supraventricular (com administração i.v.)
Trimetobenzamida
Benzodiazepínicos Mais comuns: sedação, amnésia
Lorazepam Raros: depressão respiratória, ataxia, visão turva, alucinações, reações paradoxais (chorar, reações
emocionais).
Butirofenonas Mais comuns: sedação, hipotensão, taquicardia.
Droperidol Menos comuns: efeitos extrapiramidais, tontura, aumento da pressão arterial, calafrios, alucinações.
Haloperidol
Canabinóides Mais comuns: sonolência, euforia, torpor, vasodilatação, dificuldades visuais, raciocínio anormal,
Dronabinol disforia.
Menos comuns: diarréia, rubor, tremor, mialgia.
Esteróides Mais comuns: problemas gastrintestinais, ansiedade, insônia.
Dexametasona Menos comuns: hiperglicemia, miopatias, osteonecrose, rubor facial, mudanças de humor, prurido ou
Metilprednisolona queimação perineal.
Fenotiazinas Mais comuns: sedação, letargia, sensibilização cutânea.
Proclorperazina Menos comuns: efeitos cardiovasculares, efeitos extrapiramidais, icterícia colestática,
Prometazina hiperprolactinemia.
Clorpromazina Raros: síndrome neuroléptica, anomalias hematológicas.
Tietilperazina
Antagonistas do receptor 5-HT3 Mais comuns: cefaléia, prolongamento assintomático de intervalo de ECG.
Granisetron Menos comuns: obstipação, astenia, sonolência, diarréia, febre, tremor ou contrações, ataxia, sensação
Dolasetron de cabeça vazia, tontura, nervosismo, sede, dor muscular, sensação de calor ou de rubor em
Ondasetron administração i.v.
Raros: elevação transitória das transaminases séricas.
* Mais comuns: > 10%; menos comuns, 1%-10%; raros, < 1%. Baseado na rotulagem da Food and Drug Administration dos EUA e
generalizado para a classe de medicamento.

Pérolas de sabedoria
A Tabela 5 traz os algoritmos de tratamento
(adaptados de Policzer e Sobel [3]).

Referências
[2] Naeim A, Dy SM, Lorenz KA, Sanati H, Walling A, Asch
[1] Dalal S, Palat G, Bruera E. Chronic nausea and vomiting. SM. Evidencebased recommendations for cancer nausea and
In: Berger AM, Shuster JL, Von Roenn, Jamie H, editors. vomiting. J Clin Oncol 2008;26:3903–10.
Principles and practice of palliative care and supportive [3] Policzer JS, Sobel J. Management of selected nonpain
oncology, 3rd edition. New York: Lippincott Williams & symptoms of lifelimiting illness. Hospice and palliative care
Wilkins; 2007. training for physicians—a self-study program, 3rd edition, vol.
4. Glenview, IL: American Academy of Hospice and Palliative
Medicine; 2008.
185

Tabela 5
Algoritmos de tratamento
Causa Sintomas Alternativas de Tratamento
Cortical
Tumor do SNC / irritação Sinais neurológicos focais ou Esteróides
menígea mudanças de estado mental Considerar radiação paliativa
Aumento da pressão intracraniana Vômitos em jato e cefaléia Esteróides
Ansiedade ou sintomas Náusea antecipatória, respostas Aconselhamento
psicogênicos condicionadas. Técnicas de relaxamento
Benzodiazepínicos
Dor incontrolável Dor e náusea Aumentar dose de analgésicos
Usar adjuvantes.
Vestibular
Doença vestibular Vertigem ou vômito após mover a Anti-histamínicos (meclizina)
cabeça
Infecções da orelha média Dor na orelha ou abaulamento da Antibióticos e outros cuidados de suporte.
membrana timpânica
Cinetose Náusea relacionada com viagens Anticolinérgicos (escopolamina)
Zona Desencadeante do Químio-receptor
Medicamentos Náusea pior após medicação ou Reduzir a dose ou interromper a medicação
exacerbada com aumento da dose.
Metabólico (insuficiência hepática Aumento da uréia (BUN), Antagonista da dopamina
ou renal) creatinina, bilirrubina, etc. no
sangue
Hipercalcemia Sonolência, delírio, alto teor de Hidratação
cálcio Esteróides
Bisfosfonatos
Trato gastrintestinal
Irritação por medicamentos Uso de antiinflamatórios não Interromper o medicamento, se possível
esteróides (AINEs), ferro, álcool, Incluir bloqueador de histamina (H2), inibidor da
antibióticos. bomba de prótons, ou misoprostol
Infiltração tumoral ou infecção Evidência de tumor abdominal, Anti-histamínicos
esofagite por cândida, colite Tratar a infecção
Anticolinérgicos
Obstipação ou impactação Distensão abdominal, sem Laxantes
movimentos peristálticos por Desimpactação manual
vários dias Enema
Obstrução por tumor ou pouca Obstipação não aliviada por Agentes procinéticos
mobilidade tratamento
Obstrução intestinal maligna Dor forte, distensão abdominal, Analgésicos (opióides)
peristaltismo visível Anticolinérgicos
Antagonistas da dopamina
Esteróides
Considerar octreotídeos
186

Gestão da Dor Neuropática


187

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 23
Neuropatia Diabética Dolorosa
Gaman Mohammed

Descrição de caso 1
(«neuroartropatia») reduzidas em ambos os pés. Os raios X sugeriam destruição
do talo e do calcâneo nos pés.
Zipporah, uma mulher de 54 anos, com diabetes de tipo 2 há Numa conversa com Zipporah, esta foi informada
12 anos e a tomar agentes hipoglicémicos orais, entra no de que, considerando o seu atual controlo glicémico insuficiente
consultório a queixar-se de uma história de dores nas pernas, e as infeções nos pés, tinha de ser recomendada uma
em particular à noite. Caminha regularmente até ao mercado terapêutica com insulina a fim de controlar a glicémia. Iniciou
local, onde vende legumes. Nos últimos meses, notou alguma a terapêutica com a administração de insulina duas vezes ao
tumefação nas pernas, mas não tem história de dor ou dia, que também podia obter no hospital local, e foi-lhe dado
traumatismo nos pés. O marido, Tom, reparou na presença um antibiótico com um bom efeito gram-positivo e gram-
de bolhas nos pés um dia depois de ter usado um par de negativo. Foi lhe aconselhado que se dirigisse à clínica local
sandálias novas compradas no mercado local. Zipporah não para lá realizar o penso diário e que não usasse água
tinha sentido desconforto enquanto tinha as sandálias oxigenada sobre as lesões. Começou com analgésicos simples
calçadas. As bolhas rebentaram, revelando cortes nos pés e o (paracetamol/acetaminofeno) em combinação com um opióide
marido convenceu-a a procurar tratamento médico depois de fraco, o tramadol. Durante a consulta de acompanhamento,
ela ter experimentado, sem sucesso, vários remédios caseiros, foi-lhe prescrita uma dose reduzida de amitriptilina (25 mg)
como a aplicação de ligaduras nos ferimentos com um pano depois de se ter queixado de sensações de ardor, em particular
velho e limpar a lesão com uma solução salina. à noite. Foram-lhe também fornecidas muletas e instruções
As análises revelaram um nível de glicemia ocasional para se mobilizar, com suporte parcial de carga, durante um
elevada de 15 mmol, com HbA a 11%. O exame visual mês, uma vez que referiu que tinha de assumir as suas
revelou a presença de edema bilateral no pé, com uma lesão funções no mercado.
séptica em ambos os pés. Os pulsos do pé estavam presentes,
mas eram muito fracos, provavelmente devido ao edema.
Apresentava uma perceção das vibrações e sensação à pressão
188
Descrição de caso 2 Por que razão a dor
(homem diabético de 60 representa um problema
anos a tomar medicação nos doentes diabéticos?
hipoglicémica oral)
Nos doentes com diabetes, a neuropatia é a
complicação mais comum e a maior causa de
Yusuf, um homem de 60 anos, de uma cidade costeira, sofre
morbilidade e mortalidade, com uma prevalência
de diabetes há 6 anos. Referiu uma história de sensações de
global estimada de cerca de 20%, sendo que os
ardor fortes nos pés durante a noite, que conseguia aliviar
números mais elevados se verificam em países
colocando os pés num balde com água. Não procurou
africanos: Tanzânia (25-30%), Zâmbia (31%) e
tratamento médico para esta dor até notar uma tumefação
África do Sul (28-42%). A neuropatia diabética está
dolorosa nos dedos do pé direito, embora não se lembrasse de
associada a 50-75% das amputações não traumáticas
ter sofrido qualquer ferimento no pé. O exame revelou que o
realizadas em países africanos.
pé direito estava infetado e que a infeção se havia estendido
aos espaços interdigitais. Também apresentava uma
sensibilidade reduzida à vibração e à pressão, testada com um Porque os doentes com
monofilamento de 10 g e um diapasão. diabetes desenvolvem
Iniciou terapia com insulina, antibióticos, analgésicos
e um antidepressivo tricíclico e foi rigorosamente instruído
neuropatia?
quando à importância de um bom controlo da glicose e ao uso
de calçado adequado. Foram assegurados cuidados locais. Existem quatro fatores:
Quando regressou ao consultório, cerca de 3 semanas depois,  Doença microvascular
Yusuf referiu que a dor havia diminuído à noite e que o  Produtos finais de glicosilação avançada
estado de recuperação no local da lesão havia melhorado.  Proteína quinase C
 Via dos polióis
Qual é o âmbito do
problema? O que é a doença
microvascular?
Atualmente, a diabetes afeta 246 milhões de pessoas
no mundo inteiro e prevê-se que afete 380 milhões Os vasos sanguíneos dependem de uma função
de pessoas em 2025, altura em que se darão os nervosa normal e os nervos dependem de um fluxo
maiores aumentos da prevalência de diabetes nos sanguíneo adequado. A primeira alteração
países em desenvolvimento. Infelizmente, estes patológica na microvasculatura é a vasoconstrição.
países sofrem encargos económicos e limitações. À medida que a doença evolui, a disfunção neuronal
Mais de 80% da despesa em cuidados de saúde para correlaciona-se estreitamente com o
a diabetes ocorre nos países economicamente mais desenvolvimento de anomalias vasculares, como o
ricos do mundo, e menos de 20% nos países de espessamento da membrana basal dos capilares e a
médios e baixos rendimentos, onde residem 80% hiperplasia (espessamento) endotelial, que
dos diabéticos. A OMS estima que a diabetes, as contribuem para a diminuição do fornecimento de
doenças cardíacas e o AVC, em conjunto, irão oxigénio e para a hipoxia. A isquémia neuronal é
custar milhares de milhões de dólares, mesmo em uma característica bem estabelecida da neuropatia
países de baixos recursos, como a Tanzânia. diabética. Os agentes vasodilatadores (por ex.
inibidores da enzima conversora da angiotensina)
podem permitir obter melhorias substanciais no
fluxo sanguíneo neuronal, com as correspondentes
melhorias nas velocidades de condução nervosa.
189

Consequentemente, a disfunção microvascular que durante um período prolongado têm mais


ocorre numa fase precoce da diabetes acompanha a probabilidade de sofrer de neuropatia crónica
progressão da disfunção neuronal e pode ser dolorosa. Os sintomas dolorosos podem ser
suficiente para promover a gravidade de alterações transitórios e costumam durar menos de 12 meses.
estruturais, funcionais e clínicas na neuropatia Estes sintomas estão frequentemente associados a
diabética. Além disso, níveis intracelulares elevados períodos de elevados níveis de glicose no sangue ou
de glicose conduzem a uma ligação da glicose a podem ocorrer, paradoxalmente, quando os níveis
proteínas, alterando assim a sua estrutura e de glicose no sangue melhoram rapidamente. Nestas
destruindo a sua função. Algumas destas proteínas situações agudas, quando a glicose no sangue
glicosiladas estão envolvidas na patologia da estabiliza durante uns meses, é frequente os
neuropatia diabética e de outras complicações a sintomas dolorosos desaparecerem
longo prazo associadas à diabetes. espontaneamente. Se os sintomas persistirem
durante mais de 12 meses, é menos provável que
Os analgésicos são a única desapareçam por si só.
opção de tratamento na De que forma os doentes
polineuropatia diabética? referidos descreveram a dor,
Bem pelo contrário! O controlo da glicémia tem um e o que seria típico?
efeito favorável sobre cada uma das complicações
microvasculares da diabetes mellitus, tanto na A dor associada à neuropatia diabética dolorosa é
prevenção do começo de novas complicações como muitas vezes descrita como uma dor que causa
no abrandamento da progressão de complicações sensação de formigueiro, entorpecimento ou dor
instaladas. O controlo glicémico deve ser uma pedra intensa com estímulos que normalmente não
angular importante do controlo da dor, uma vez que causam dor («alodínia»). Pode também ser descrita
a dor associada à neuropatia diabética diminui com como penetrante, profunda, ardente, elétrica ou
a melhoria do controlo glicémico. penetrante com parestesia ou hiperestesia. A dor
desenvolve-se tipicamente nos pés e na parte
Porque existe dor mesmo inferior das pernas, mas pode também desenvolver-
se nas mãos e aumenta geralmente à noite. A
que o doente não «sinta» neuropatia diabética afeta as atividades diárias do
nada, como acontece na doente: sono, independência, capacidade de
neuropatia diabética típica? trabalhar, relações interpessoais e humor. Embora
os doentes com neuropatia diabética dolorosa
geralmente refiram verbalmente os seus sintomas,
Nos diabéticos, a neuropatia pode apresentar-se muitos doentes poderão não os mencionar até a dor
como neuropatia com perda sensorial (sem se tornar intensa. Em África ou noutros países em
sensibilidade) ou neuropatia dolorosa. A maioria das desenvolvimento, onde as pessoas muitas vezes
pessoas sofre do tipo sem sensibilidade. No entanto, caminham descalças ou possuem calçado
cerca de 4-7% dos doentes com diabetes sofrem desajustado ou inadequado, os diabéticos com
sintomas de dor crónicos, muitas vezes neuropatia podem sofrer com frequência lesões nos
extremamente incómodos («alfinetes e agulhas») ou pés, que podem ser dolorosas. Podem ter história de
entorpecimento nos pés. O motivo pelo qual os lesões menores ou por vezes não ter conhecimento
doentes com diabetes podem desenvolver de quaisquer lesões, apesar das evidências de
neuropatia dolorosa não é totalmente traumatismos nos pés que se revelam aquando do
compreendido, embora seja conhecido que os exame. Cerca de 40-60% de todas as amputações
doentes com diabetes insuficientemente controlada não traumáticas são efetuadas em doentes com
190
diabetes e 85% das amputações dos membros  O doente não deve conseguir ver se e
inferiores associadas à diabetes são antecedidas de quando o examinador aplica o diapasão.
úlceras nos pés. Quatro em cada cinco úlceras nos Este é aplicado numa zona óssea do lado
diabéticos são desencadeadas por um traumatismo dorsal da falange distal do dedo grande do
externo. pé.
 O diapasão deve ser aplicado
Se permanecerem dúvidas perpendicularmente com pressão constante.
depois do levantamento da  Repetir esta aplicação duas vezes, mas
alternando no mínimo com uma aplicação
história clínica, o que fazer «fictícia» em que o diapasão não vibra.
para confirmar o  O teste é positivo se o doente responder
diagnóstico de corretamente em duas de três aplicações. É
negativo («em risco de ulceração») com duas
polineuropatia diabética? respostas incorretas em três.
 Se o doente não conseguir sentir as
O rastreio de neuropatia deve ser efetuado vibrações no dedo grande do pé, o teste
anualmente para a maioria dos diabéticos. Para deve ser repetido mais proximalmente
qualquer doente diabético com úlcera indolor é (maléolo, tuberosidade tibial).
possível confirmar uma polineuropatia diabética.  Incentivar o doente durante os testes.
Testes simples, com diapasão de 128 Hz, algodão,
monofilamentos de 10 g e um martelo de reflexos Como testar a sensação de
podem revelar uma redução da pressão ou da
sensação vibratória ou uma dor superficial e pressão ao toque com um
sensação de temperatura alteradas. A perda sensorial monofilamento?
causada por polineuropatia diabética pode ser
avaliada utilizando as seguintes técnicas: Pressiona-se um filamento normalizado contra uma
parte do pé. Quando o filamento se dobra, a ponta
Perceção da O risco de futura ulceração exerce uma pressão de 10 gramas (razão pela qual
pressão pode ser determinado com um este monofilamento é muitas vezes referido como
monofilamento de 10 gramas monofilamento de 10 gramas). Se o doente não
Perceção da Diapasão de 128 Hz colocado conseguir sentir o monofilamento em determinados
vibração no dedo grande do pé pontos do pé, significa que perdeu sensação
Discriminação Formigueiro (no dorso do pé suficiente para se considerar que está em risco de
sem penetrar na pele) desenvolver uma úlcera neuropática. O
Sensação táctil Algodão (no dorso do pé) monofilamento apresenta a vantagem de ser mais
Reflexos Reflexos do tendão de Aquiles barato do que um biotesiómetro, mas, para obter
resultados passíveis de comparação, o
Como é realizado o exame monofilamento tem de ser calibrado de modo a
físico? garantir que esteja a exercer uma força de 10
gramas.

 O exame sensorial deve ser efetuado num


ambiente calmo e relaxado. Em primeiro
lugar, aplicar o diapasão nos pulsos (ou no
cotovelo ou clavícula) do doente de modo a
que este saiba o que esperar.
191

 Colocar os pés sobre um chão de cimento


frio
 Embrulhar os pés numa toalha embebida
em água fria
 Uma massagem suave aos pés
 Estimulação nervosa eletromagnética ou
outras técnicas locais de contra-irritação
Podem ser realizados testes avançados (por ex. creme de capsaicina)
utilizando um biotesiómetro. É aplicada uma sonda
numa determinada parte do pé, geralmente no dedo Pérolas de sabedoria
grande. A sonda pode ser concebida de forma a
vibrar com intensidade crescente, rodando um  A gestão da neuropatia diabética dolorosa
botão. A pessoa submetida ao teste indica assim que continua a ser um desafio em países em
consegue sentir a vibração e, nessa altura, regista-se desenvolvimento onde os recursos são
a leitura do botão. O biotesiómetro pode indicar escassos e o acesso a instalações de saúde é
uma leitura de 0 a 50 volts. É conhecido o facto de limitado.
que o risco de desenvolver uma úlcera neuropática é  Os doentes diabéticos beneficiam
muito mais elevado se uma pessoa produzir uma frequentemente de um acompanhamento
leitura no biotesiómetro superior a 30-40 volts, se a insuficiente ou procuram tratamento numa
leitura elevada não se explicar pela idade. fase tardia, quando as complicações
associadas à neuropatia já estão instaladas.
Quais as opções  Por outro lado, os médicos que trabalham
farmacológicas para a em cuidados primários podem não ter
conhecimento e competências adequados
neuropatia diabética? para rastrear e tratar a neuropatia diabética.
 No entanto, com um conhecimento básico
Consultar o Capítulo 24 sobre Gestão da Nevralgia acerca da neuropatia diabética, uma gestão
Pós-Herpética para conhecer as opções de tratamento apropriada da diabetes e com a ajuda de
analgésico, uma vez que se aplicam os mesmos ferramentas de rastreio simples, como um
princípios para o tratamento da dor neuropática. diapasão e monofilamentos, é possível
estabelecer um diagnóstico precoce e
Quais as abordagens conseguir uma melhor gestão da neuropatia
complementares na gestão diabética.
 Dado que um vasto conjunto de
da neuropatia diabética mecanismos causam dor na neuropatia
dolorosa? diabética, os princípios de tratamento devem
incluir uma abordagem multifacetada
Por vezes, as soluções mais simples podem ser destinada a melhorar o controlo da glicose,
muito eficazes. Por vezes, os doentes descobrem o visar os fatores patológicos subjacentes e
que melhor resulta para eles e podem até ser tratar os sintomas.
bastante inventivos. As técnicas frequentemente  Os analgésicos são selecionados de acordo
referidas pelos doentes como sendo muito eficazes com os princípios de tratamento da dor
são: neuropática.
 Imergir os pés num balde com água fria  Uma vez que a dor apresenta
frequentemente uma qualidade de ardor
192
contínuo, a gabapentina ou a amitriptilina –
possivelmente combinadas com um opióide
fraco – são escolhas típicas para a gestão
farmacológica da dor.
 A eficácia das opções de tratamento não
farmacológicas não deve ser subestimada.

Referências
[1] Sorensen L, Wu M, Constantin D, Yue K. Diabetic
foot disease: an interactive guide. International
Consensus on the Diabetic Foot.
[2] Zachary T, Bloomgarden MD. Clinical diabetic
neuropathy. Diabetes Care 2005;28:2868-74.
193

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 24
Gestão da Nevralgia Pós-Herpética
Maged El-Ansary

Descrição de caso Quando é que a dor após


Enquanto médico de clínica geral, recebe um doente de 75 herpes zóster é denominada
anos com uma história de diabetes mellitus. O doente sofre de nevralgia pós-herpética?
de carcinoma broncogênico e está atualmente a ser sujeito a
quimioterapia. Sente dor no lado esquerdo do peito, ao longo
A maioria dos especialistas concorda que uma dor
da distribuição dos 5.º, 6.º e 7.º nervos intercostais. Qual é o
que dure mais de 3 meses após uma infeção
seu diagnóstico possível?
herpética aguda («zona») deva ser designada de
As possibilidades são miosite, isquemia coronária,
nevralgia pós-herpética. Este facto tem uma
pleurisia à esquerda, fractura de costelas, prurido causado por
consequência terapêutica, uma vez que a remissão
alergia cutânea ou erupção medicamentosa ou outras causas,
espontânea da dor se torna mais improvável após
como fase pré-eruptiva de herpes zóster agudo.
este período de tempo. Os esforços terapêuticos
devem ser redobrados se a dor durar mais de duas
Porque será difícil tratar a semanas.
nevralgia pós-herpética?
Será a dor aguda um fator
A nevralgia pós-herpética (NPH) é conhecida por preditivo para nevralgia
ser um dos problemas de dor crónica mais
resistentes. É classificada como um estado de dor pós-herpética?
neuropática, o que significa que a dor provém da
lesão de nervos por infeções virais ao nível das Infelizmente, não existem fatores aceites e validados
raízes dos nervos espinhais. para predizer a intensidade e a duração da dor após
Podem estar envolvidas nesta síndrome, não infeções por herpes. A dor pode estar quase ou
apenas fibras que veiculam a dor, mas também totalmente ausente em doentes que desenvolvem
fibras simpáticas e de sensibilidade táctil e, em raras NPH. Mas, para o idoso, dado que a dor pode-se
ocasiões, fibras motoras. Lembre-se: só pode iniciar antes das alterações cutâneas, uma
estabelecer um diagnóstico se o doente estiver eflorescência hemorrágica e a localização fora
despido e observar o local da dor. do tronco pode indicar um doente de elevado risco.
194
A gestão da dor e a Raça
As raças de pele mais escura (índiana, africana e
terapêutica antiviral serão latino-americana) são mais resistentes do que outras
suficientes para tratar um com pele mais clara (caucasiana). O motivo é
desconhecido.
doente com herpes zoster?
Fatores sociais e psicológicos
É sensato resumir um herpes zóster agudo a um sinal A incidência de zona está associada à exposição a
de alarmante baixa imunidade. Deve-se saber que o condições de stresse severo, como guerra, perda de
herpes zoster e a NPH podem indicar uma grande emprego ou morte de familiares próximos.
variedade de doenças subjacentes. Em muitas
regiões do mundo, as primeiras doenças a Quais são os sintomas úteis no diagnóstico de
considerar na origem da zona são as doenças de zona e nevralgia pós-herpética?
imunodeficiência como o VIH/SIDA e/ou a O clínico deve conhecer os sintomas de herpes zóster
malnutrição. A utilização precoce de medicamentos agudo e as diferentes fases da doença, que
antivirais e de tratamento analgésico nos primeiros costumam ser as seguintes:
estadios do herpes zoster agudo terá um impacto na  Dor cortante e penetrante, ardente, ou
evolução de uma crise aguda e na possibilidade de profunda e persistente
diminuir a incidência de NPH, mas não existem  Extrema sensibilidade ao toque e às
estudos baseados na evidência que permitam variações de temperatura (os sintomas 1 e 2
comprovar este ponto de vista. podem conduzir a diagnósticos incorretos
como miosite, pleurisia ou cardiopatia
Diagnóstico isquémica)
 Prurido e adormecimento (que podem levar
Que outras condições devem ser consideradas a um diagnóstico incorreto de alergia
aquando do diagnóstico de herpes zóster? cutânea)
 Cefaleias (presentes como resposta sistémica
Ao registar a história clínica, a idade, o sexo e a raça à viremia)
do doente e ainda determinados fatores  Aparecimento de áreas com eritema (2-3
psicossociais, irão guiá-lo até ao diagnóstico dias mais tarde)
adequado. Grupos etários diferentes poderão  O doente não consegue tolerar a roupa
indicar determinadas causas prováveis. Devemos
devido a hipersensibilidade cutânea (que
estar cientes que outras causas possíveis podem
pode levar a um diagnóstico incorreto de
estar presentes dependendo do grupo etário. urticária com libertação de histamina)
 Aparecem vesículas (bolhas) dolorosas
Idade Causa possível
0-18 anos SIDA/VIH, leucemia, doença de Hodgkin, típicas, cheias de líquido seroso (3-5 dias
tuberculose mais tarde)
20-40 anos Terapêutica com esteróides, SIDA/VIH,  Bolhas cheias de pus rompem-se e começam
diabetes mellitus, cirurgias major (transplante de a formar crostas (2-3 semanas mais tarde)
órgão), infeção (viral, bacteriana, fúngica ou
parasitária)  As crostas melhoram e o prurido pára, mas
60-80 anos As doenças malignas devem ser a primeira a dor persiste ao longo da distribuição do
possibilidade, e a maior parte dos factores nervo (após mais 3-4 semanas)
supracitados também podem estar presentes. Em raros casos, os sintomas acima descritos
serão acompanhados de fraqueza muscular ou de
Sexo paralisia se os nervos envolvidos também
Homens e mulheres podem desenvolver herpes zóster. controlarem o movimento muscular.
195

Quais são os nervos mais comummente  A maioria dos doentes encontra-se num
afetados pelo herpes zóster? estado de depressão ou esgotamento devido
à falta de sono.
Nervo trigémio  O grau de cicatrização pós-herpética da pele
Nevralgia do trigémio (os três ramos, infeção do é indicador do prognóstico da nevralgia. A
ramo oftálmico: pode desenvolver-se uma úlcera cicatrização intensa da pele está associada a
dendrítica da córnea como complicação grave, uma destruição grave do nervo
podendo causar possível opacidade da córnea). (desmielinização) e correspondente lesão
grave dos neurónios do corno dorsal e do
VII nervo craniano gânglio da raiz nervosa. Estes doentes
Com tinido grave, o doente queixa-se de ouvir sinos apresentam um maior risco de nevralgia
estrondosos ou um zumbido na cabeça, que pode pós-herpética grave e de longa duração,
levar alguns doentes ao suicídio. sendo esta difícil de tratar.

Nervo glossofaríngeo Que outros exames podem ajudar a garantir o


Nevralgia com dor na garganta que aumenta com a correto diagnóstico ou excluir determinadas
deglutição. patologias?
 Estudo analítico completo (triagem de sinais
Nervos intercostais ou evidência de infeção crónica, por ex.
Dor com início na parte posterior da parede torácica SIDA/VIH).
disparando ao longo da distribuição do nervo
 Glicémia em jejum e glicémia 2 horas após
intercostal correspondente, produzindo uma
uma refeição para rastreio de diabetes.
sensação de tensão no peito e, possivelmente, se
 Raio-X simples para rastreio de neoplasia
situada do lado esquerdo, confundida com enfarte
óssea ou fraturas.
do miocárdio.
 TAC e RMN, se disponíveis, para rastreio
Plexos e nervos lombares e sagrados de neoplasias de tecidos moles.
A dor no tracto genital (em homens e mulheres)  Estudo de coagulação, caso esteja planeada
pode ser confundida com o diagnóstico de herpes uma terapêutica invasiva.
simplex genital. No entanto, o facto da NPH ser
mais dolorosa e geralmente não recorrente, como o A NPH é uma condição
vírus simplex, deverá conduzir ao diagnóstico dolorosa que pode
correto.
comprometer a qualidade
Que observações são geralmente realizadas de vida dos doentes
durante o exame ao doente?
Sinais observados: afetados. Poderá realmente
 A pele apresenta-se descorada, com zonas tornar-se potencialmente
de hiper e hipopigmentação denominadas de
manchas «café au lait».
fatal?
 São despertadas sensações de dor forte tipo
Na fase aguda de herpes zóster, a maior parte dos
choque elétrico ao tocar ligeiramente ou ao
doentes prefere despir a roupa devido ao aumento
roçar na área cutânea afetada com um fino
de sensibilidade da pele ao toque (alodinia), o que os
filamento de algodão ou uma escova de
pode tornar vulneráveis à pneumonia, sobretudo
crina de cavalo.
durante o Inverno.
196
Uma reação psicológica é comum na NPH; foi introduzida recentemente (Zostavax, aprovada
a maioria dos doentes é idosa e solitária, e pode pela U.S. Food and Drug Administration para
sofrer de diferentes graus de depressão, podendo doentes em risco, com idades superiores a 60 anos)
conduzir ao suicídio. Além disso, o elevado nível de e não está ainda amplamente disponível. Os
dor pode representar uma ameaça direta para o esforços terapêuticos ainda devem ser concentrados
doente devido à estimulação simpática acentuada, o no tratamento da infeção aguda. Infelizmente,
que pode causar taquicardia ou hipertensão, ou mesmo um tratamento agudo adequado não altera a
ambas, e resultar em «stress induzido pela dor». Um evolução da NPH, embora reduza a dor aguda e o
doente com uma comorbilidade, como doença risco de complicações secundárias causadas pela
cardíaca isquémica, pode apresentar maior risco de infeção por herpes zóster.
complicações miocárdicas ou cerebrovasculares.
A afeção do VIII nervo craniano (nervo O que pode ser feito por um doente com
vestíbulo-coclear) pode resultar em graves sensações infeção por herpes zóster numa fase precoce?
sonoras anómalas com a subsequente falta de sono, Com um diagnóstico precoce e adequado de herpes
seguida de depressão ou mesmo tentativas de zóster, devem ser administrados fármacos antivirais
suicídio. logo que possível e num prazo de 72 horas após o
Outra complicação da NPH poderão ser as aparecimento das vesículas, durante 5 dias. O
alterações secundárias do sistema músculo- fármaco standard é o aciclovir, na dose de 200 mg
esquelético devido às tentativas por parte do doente quatro vezes ao dia. Os doentes com idade mais
de corrigir ou imobilizar a parte do corpo afetada, avançada e os que apresentem fatores de risco, mas
como o ombro, cotovelo, pulso, articulações dos sem qualquer indicação de infeção generalizada,
joelhos ou dedos. Numa idade mais avançada, a podem ainda ser medicados com corticóides. Os
imobilidade a longo prazo destas articulações resulta corticóides só devem ser utilizados em
em rigidez dolorosa e grave. A realização de concomitância com um medicamento antiviral, de
fisioterapia leve numa fase precoce é altamente modo a evitar uma exacerbação da infeção. A fim de
recomendada nestas condições. Outra consequência evitar úlceras dendríticas no herpes zóster oftálmico,
da imobilidade é a atrofia por inatividade e o devem ser aplicadas localmente pomadas de
aumento da osteoporose, particularmente em aciclovir, se disponíveis. Em países com recursos
doentes idosos. Estes doentes têm maior limitados, o aciclovir não estará disponível ou será
probabilidade de sofrer fraturas ósseas em resposta demasiado dispendioso para a maior parte dos
a um traumatismo simples. A mais elevada doentes, mas tal facto não implica necessariamente
incidência de fraturas ósseas deve ser esperada um prognóstico mais desfavorável relativamente à
durante a fisioterapia realizada por um fisioterapeuta NPH comparativamente com doentes tratados com
inexperiente. aciclovir.
Em conclusão, embora o herpes zoster e a Devem ser utilizadas pomadas antibióticas
NPH não sejam considerados doenças fatais, as se começarem a aparecer infeções secundárias. Por
alterações secundárias podem comprometer a vezes, o permanganato de potássio poderá ser usado
qualidade de vida, aumentar a morbilidade e ter como antiséptico tópico e a loção de calamina para
consequências letais em alguns doentes. Por o prurido. Uma terapêutica local simples e
conseguinte, o tratamento destas síndromes de dor implica económica será a aplicação tópica de comprimidos
mais do que simplesmente aliviar a dor. de aspirina moídos misturados com éter ou com
uma solução antiséptica (1000 mg de aspirina
Quais são os princípios do misturados em 20 cc de solução).
Outro tratamento local, que poderá ser
tratamento? repetido, é a injeção subcutânea de anestésicos
locais sob a forma de bloqueio de campo na zona
A melhor abordagem consiste em prevenir a infeção dolorosa. Todos os anestésicos locais disponíveis
por herpes zóster. A vacinação contra o herpes zóster só
197

podem ser usados, mas têm de ser respeitadas as três vezes ao dia). Os efeitos secundários típicos de
doses diárias máximas. náuseas e vómitos deverão tornar-se menos
frequentes com a nova formulação de libertação
Os fármacos antivirais, esteróides e tópicos retardada. As alternativas ao tramadol são a codeína
podem reduzir os sintomas de herpes zoster e o dextropropoxifeno.
agudo mas são muitas vezes insuficientes para
controlar a dor. Quais os melhores analgésicos Se estiverem disponíveis coanalgésicos, como
a utilizar? escolher o mais adequado para um doente com
Como regra geral na gestão da dor, os fármacos herpes zóster agudo?
devem ser titulados gradualmente relativamente à Em termos gerais, para o herpes zóster, os
dor até serem eficazes. Uma vez que a maioria dos coanalgésicos devem ser escolhidos de acordo com
doentes afetados é idosa ou possui uma as diretrizes publicadas sobre dor neuropática, uma
comorbilidade, o que compromete o seu estado vez que o herpes zóster agudo causa sobretudo dor
geral, é recomendável começar com doses reduzidas neuropática. Por conseguinte, o fármaco de primeira
e avançar lentamente. escolha seria a amitriptilina ou a gabapentina (ou
O herpes zóster traduz-se por inflamação do uma alternativa comparável, como a nortriptilina ou
tecido junto à raiz nervosa. Os analgésicos anti- pregabalina). A decisão entre um antidepressivo
inflamatórios, como o ibuprofeno ou o diclofenac, tricíclico e um anticonvulsivante deve ser tomada de
estão indicados como fármacos de primeira linha. Se acordo com o perfil típico de efeitos secundários.
existirem contra-indicações, tais como Os doentes com patologia hepática, estado geral
corticoterapia, desidratação, história de úlcera reduzido, arritmias cardíacas, obstipação ou
gástrica ou idade avançada com função renal glaucoma devem receber gabapentina ou
comprometida, estará indicado o uso de pregabalina. Estes serão presumivelmente
paracetamol / acetaminofeno (1 g quatro vezes ao analgésicos mais fracos, mas apresentam a grande
dia) ou de dipirona (na mesma dose). vantagem de não serem de esperar efeitos
Se estes fármacos se revelarem inadequados, secundários graves. Além disso, não é necessário
as diretrizes atuais para o tratamento da dor ECG nem análises ao sangue. Ambos os grupos
neuropática recomendam os coanalgésicos. Se estes farmacológicos apresentam o seu melhor nível de
fármacos não estiverem disponíveis, deverão ser eficácia com a dor tipo “queimor”, mas podem ser
administrados analgésicos opióides (geralmente insuficientes para exacerbações de dor tipo “choque
recomendados como medicamentos de segunda elétrico” ou disparo. Para conhecer outras opções
linha após o uso de coanalgésicos). Na dor causada farmacológicas, remeter para os capítulos
por herpes zóster, não é necessário utilizar opióides correspondentes neste manual.
«fortes», para os quais possam existir restrições
governamentais. O tramadol, um analgésico opióide Experimentei opções terapêuticas locais e
fraco, que devido ao seu modo de ação específico, sistémicas, mas o doente continua a sentir uma
não é considerado um opióide em muitos países não dor atroz. Existem outras opções?
estando portanto sujeito a restrições, será suficiente Infelizmente, não existe nenhum «medicamento
para a maioria dos doentes. O tramadol deve ser milagroso» disponível. Se as estratégias terapêuticas
iniciado com comprimidos de 50 mg, duas vezes ao indicadas anteriormente falharem, poderá valer a
dia, e a sua dose poderá ser aumentada diariamente pena enviar o doente para um hospital de referência
em 50-100 mg até alcançar uma analgesia suficiente. que disponha de terapeutas especializados na dor.
A dose máxima é de 150 mg quatro vezes ao dia, Caso contrário, os opióides fortes, se disponíveis,
mas a maior parte dos doentes obtém bons serão uma alternativa. Se não se aplicar nenhuma
resultados com 50-100 mg quatro vezes ao dia. Se destas alternativas, será aconselhável orientar o
estiverem disponíveis formulações de libertação doente com dedicação e afeto e explicar-lhe a
retardada, a dose diária deverá ser dividida (duas a
198
limitação temporal da dor intensa. Nunca se deve Que fármacos devem ser escolhidos para a
dizer ao doente que nada pode ser feito por ele. nevralgia pós-herpética?
De um modo geral, os fármacos de primeira opção
O que podem então um terapeuta ou para a NPH são os mesmos que para o tratamento
anestesista experientes oferecer ao doente? da dor no herpes zóster agudo. Logo, a primeira coisa
A terapêutica de eleição neste tipo de incidências é a a fazer é aumentar a dose do antidepressivo
anestesia locorregional recorrendo a cateteres tricíclico (por ex. amitriptilina 25 mg à noite), do
epidurais. Esta técnica é habitualmente aplicada em anticonvulsivante (por ex. gabapentina 100 mg à
grandes cirurgias ou determinados procedimentos noite) ou do opióide fraco (por ex. tramadol) de
cirúrgicos, quando não é possível ou necessário a forma gradual, tentando alcançar o objetivo de
anestesia geral. Os cateteres epidurais podem ser redução em 50% da dor. Se tal não for possível
inseridos em quase todos os níveis (cervical, devido a efeitos laterais, o antidepressivo tricíclico
torácico ou lombo-sacro). Se a cabeça ou a região ou o anticonvulsivante deve ser combinado com um
cervical superior estiverem afetadas, a analgesia opióide fraco. O passo seguinte consiste em
epidural não irá resultar. Não existe qualquer experimentar um opióide forte, como a morfina,
evidência de que a anestesia regional encurte a para substituir o tramadol, titulando-a até conseguir
evolução do zóster agudo ou diminua a probabilidade reduzir a dor. Se ocorrerem surtos de dor, como
de NPH. Consequentemente, este tipo de “choque elétrico” ou disparos, a gabapentina ou
tratamento invasivo só se justifica para a dor pregabalina devem ser substituídas por um
refractária intolerável, de modo a controlar a dor anticonvulsivante bloqueador dos canais de sódio,
durante um período de tempo limitado, até que esta como a carbamazepina, que é muitas vezes mais
diminua espontaneamente. eficaz neste tipo específico de dor neuropática.
Os bloqueios regionais da cadeia simpática,
por exemplo, no gânglio estrelado ou na cadeia Se os fármacos standard não estiverem a reduzir
simpática torácica ou lombar, são geralmente a dor adequadamente ou não forem tolerados
possíveis apenas sob a forma de injeções únicas, e devido a efeitos secundários persistentes, quais
portanto, não controlam a dor durante mais de duas são as opções disponíveis, em particular em
horas. Estas técnicas são utilizadas na NPH, em caso de alodinia?
clínicas especializadas de dor, quando existe Quando os fármacos standard não reduzem
evidência de que a dor se mantenha induzida pelo adequadamente a dor, em especial nos casos de
sistema simpático. alodinia (dor em resposta ao toque ligeiro no
dermatomo afetado), devem ser experimentadas
O que fazer quando o herpes zóster agudo está opções terapêuticas tópicas locais. Uma ótima
curado e persiste a nevralgia pós-herpética com opção seriam os anestésicos locais de aplicação
dor intolerável? tópica, como o Creme EMLA (que poderá estar
A experiência clínica demonstrou que é difícil disponível no serviço de anestesia), o qual poderá
conseguir um tratamento bem-sucedido na NPH revelar-se muito eficaz se for utilizado 3-4 vezes por
instalada. A razão principal para este facto são os dia.
danos nervosos consideráveis e a improbabilidade Os “patch” de lidocaína são pequenos
de os mecanismos de reparação restaurarem as pensos, semelhantes a uma ligadura, que contêm um
raízes nervosas. Por conseguinte, o doente deve ser fármaco tópico para o alívio da dor, a lidocaína. Os
instruído no sentido de não ter expectativas pensos, sujeitos a prescrição, devem ser aplicados
demasiado elevadas. Assim sendo, o objetivo da diretamente sobre a área dolorosa, de modo a
terapêutica não consiste em «curar» com fornecer um alívio de até 12 horas (de preferência à
recuperação total do défice sensorial nem no noite). Os pensos que contêm lidocaína também
completo desaparecimento da dor, mas apenas na podem ser usados no rosto, tendo o cuidado de
redução da dor, e geralmente uma redução de 50% é evitar as mucosas, incluindo os olhos, o nariz e a
encarada como um «tratamento bem-sucedido». boca. A vantagem do Creme EMLA e dos pensos
199

de lidocaína é o facto de o anestésico local que corrente elétrica em zonas da pele, com uma
contêm ser absorvido pela corrente sanguínea determinada corrente e frequência, produzindo uma
apenas em quantidades muito baixas, evitando-se disestesia não dolorosa. Com este tratamento, o
assim eventuais efeitos secundários sistémicos, mas doente pode obter uma redução da dor a curto ou
causando possivelmente irritação cutânea local. até mesmo a longo prazo. O mecanismo da TENS
O Creme EMLA e os pensos de lidocaína consiste no bloqueio da transmissão da dor através
são caros e ainda não estão disponíveis na maior das fibras nervosas responsáveis pelo toque (fibras
parte dos países em desenvolvimento. Uma A-beta). Infelizmente, embora o mecanismo
alternativa económica disponível é o uso local de gel necessário para aplicar a estimulação elétrica seja
de lidocaína a 5%. Uma fina camada espalhada simples, os dispositivos TENS disponíveis no
sobre o local de dor e coberta com uma fina película mercado são caros, pelo que devem ser fornecidos
de polietileno durante 1 hora revela-se eficaz na aos doentes sob a forma de aluguer. Alguns doentes
maioria dos doentes. É importante remover os respondem positivamente e outro não, mas dado
resíduos de gel do vestuário do doente. que o TENS é simples e barato, pode ser usado em
países em desenvolvimento e também por
De que outras opções disponho quando tenho a especialistas de outras áreas que não a dor, como,
possibilidade de encaminhar o doente para um por exemplo, clínicos gerais. Não pode ser usado na
colega especializado em procedimentos cabeça ou no pescoço, nem em mulheres grávidas.
invasivos para a dor? A utilização bem-sucedida da TENS ajudou
Os doentes com dor que não respondem ao a desenvolver elétrodos implantáveis para uma
tratamento farmacológico sistémico podem ser estimulação direta da espinal medula, para uma
submetidos a repetidos bloqueios de nervo nas áreas terapêutica conhecida como estimulação da espinal
correspondentes de dor, como os nervos medula (EEM). Mesmo em países de elevados
intercostais. Além de visar os nervos periféricos, o recursos, esta técnica é usada apenas em doentes
espaço epidural ou intratecal pode ser utilizado para com NPH selecionados. O mesmo se aplica à
aplicação de analgésicos. Os cateteres epidurais que crioanalgesia e à radiofrequência. Todas estas
usam, por exemplo, 5 mL de bupivacaína 0,125%, 2 técnicas encontram-se fora do âmbito deste manual
por serem altamente sofisticadas, muito caras e por
eficazes no controlo da dor. Infelizmente, esta exigirem uma vasta experiência na gestão da dor.
técnica por cateter não consegue reduzir a dor a Outra opção simples, que pode ser utilizada
longo prazo. Por conseguinte, após interrupção da por um terapeuta especializado em técnicas de
analgesia por cateter, a dor costuma regressar e bloqueio, mais provavelmente um anestesista, é a
permanecer. Mesmo em grandes centros de gestão ablação de nervos (por ex. dos nervos intercostais)
da dor, esta técnica é usada apenas para controlar com fenol em água (6%) ou álcool (60%). Este
exacerbações de dor aguda, dado que um tratamento é eficaz para períodos prolongados de
tratamento a longo prazo implicaria implantação tempo mas não é permanente. Por conseguinte, é
cirúrgica de um cateter (intratecalmente). Os usado apenas em casos de NPH associada ao
cateteres implantados devem ser sujeitos a cuidados cancro, sempre que a esperança de vida seja inferior
altamente especializados e têm frequentemente a 6 meses. Com uma utilização cuidada desta
tendência a falhar, pelo que são indicados apenas técnica, a taxa de complicações para este grupo de
em circunstâncias muito especiais. A maior parte doentes pode tornar-se aceitável. Esta taxa depende
das situações respondem passados 3-6 meses de do local de ablação.
tratamento.
Outra opção bastante simples é a contra-
irritação do dermatomo afetado com estimulação
nervosa eléctrica transcutânea (TENS). Utilizando
um dispositivo pequeno e simples, aplica-se uma
200
esperar que o médico ou outro profissional
Pérolas de sabedoria de saúde a prestar cuidados produza um
diagnóstico e tratamento adequado para o
 A nevralgia pós-herpética é um problema herpes zóster agudo e a nevralgia pós-
multifactorial. herpética, o que, numa certa medida, é
 A prevenção, um diagnóstico precoce e um possível para a maior parte dos doentes.
tratamento agressivo são de extrema
importância. Referências
 A nevralgia pós-herpética é uma doença
preocupante que oculta por vezes um [1] Baron R, Saguer M. Mechanical allodynia in
problema de saúde mais complicado, pelo postherpetic neuralgia: evidence for central
que é fundamental realizar um diagnóstico mechanisms depending on nociceptive C-fiber
diferencial. A gestão da NPH deve andar a degeneration. Neurology 1995;45(12 Suppl 8):S63-5.
[2] Haanpää M, Dastidar P, Weinberg A, Levin M,
par da busca de outra patologia responsável Miettinen A, Lapinlampi A, Laippala P, Nurmikko T.
por atenuar o sistema de defesa imunitária. CSF and MRI findings in patients with acute herpes
 Devem ser utilizadas diferentes modalidades zoster. Neurology 1998;51:1405-11.
para tratar a doença, uma vez que, na maior [3] He L, Zhang D, Zhou M, Zhu C. Corticosteroids for
preventing postherpetic neuralgia. Cochrane Database
parte das vezes, nenhum tratamento isolado
Syst Rev 2008;1:CD005582.
consegue ser eficaz. [4] Nurmikko T. Clinical features and pathophisiologic
 Depois de estar instalada, a NPH causa mechanisms of postherpetic neuralgia. Neurology
algumas complicações próprias, que podem 1995;45(12 Suppl 8):S54-5.
[5] Rice AS, Maton S. Gabapentin in postherpetic
ir desde falta de sono, rigidez articular,
neuralgia: a randomised, double blind, placebo
infecções secundárias e AVC, e mesmo controlled study. Pain 2001;94:215-22.
tentativas de suicídio. Assim sendo, é de
201

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 25
Dor Neuropática Central

Maija Haanpää e Aki Hietaharju

Descrição de caso 1
A mulher de Abdul Shamsuddin, um comerciante de 35 continuidade da espinal medula estava intacta sem sinais de
anos de Gulshan, em Dhaka, encontrou-o estendido no chão hematoma.
do apartamento. Foi levado ao hospital numa maca Este caso demonstra que podem ocorrer lesões neurológicas e
improvisada transportada por quatro familiares, todos dor na espinhal medula mesmo que um projéctil não tenha
fazendo afirmações diferentes quanto ao que se tinha passado. penetrado no canal espinhal. A contusão medular deveu-se
No serviço de urgência, estava consciente mas não conseguia provavelmente à energia cinética transmitida pela bala. A
movimentar as pernas nem o braço esquerdo. Queixava-se de medicação analgésica do doente incluía amitriptilina e
dor ardente intensa na mão direita e de dor persistente gabapentina. No espaço de 4 horas, a dor neuropática
profunda em ambos os membros superiores. O homem começou a diminuir gradualmente e a gabapentina foi
explicou, de forma incoerente, que um grupo de ladrões havia progressivamente reduzida com sucesso.
entrado em sua casa e que a última coisa de que se recordava
era de um tiro estrondoso. Ao examinar o pescoço, observou- Descrição de caso 2
se uma laceração de 1 cm de diâmetro. O exame neurológico
revelou uma total perda de sensação debaixo de T2, assim Shabana, uma dona de casa afegã de Jalalabad com perto de
como hiperestesia grave, hiperalgesia e alodinia dinâmica, quarenta anos, dirigiu-se a uma policlínica psiquiátrica,
bem como sensação ao frio comprometida nos 4.º e 5.º dedos e acompanhada do marido. Sofria há mais de dois anos de
no lado ulnar da mão direita. A mão esquerda apresentava uma dor ardente contínua na mão esquerda e no lado direito
alodinia dinâmica ligeira e observou-se hiperalgesia no 3.º do rosto. Havia sido encaminhada para o psiquiatra por um
dedo. O doente conseguia flectir o braço direito e elevar a mão médico de clínica geral que, devido ao problema de
contrariando a gravidade. Uma radiografia da coluna cervical infertilidade de Shabana, havia presumido que a causa da
evidenciou uma fratura do arco posterior de C7 e uma bala sua dor se baseava em fatores psicogénicos. O registo da sua
de 9 mm alojada perto da escápula, no lado direito. Uma história clínica revelou que, três anos antes, havia sofrido uma
RM da coluna cervical revelou uma contusão na espinhal súbita crise de vertigens, perturbações da fala e fraqueza
medula que se estendia desde o nível de C4 a T2. A motora nos membros esquerdos. Na altura, não consultou um
médico. A maior parte dos sintomas haviam abrandado em 2
dias, mas a fraqueza motora persistiu durante semanas.
202
Referiu que os sintomas dolorosos apareceram cerca de 2 Quadro 1
meses após esta crise. O exame neurológico relevou uma Causas da dor neuropática central
ligeira inépcia e ataxia no braço esquerdo, mas a força Espinhal medula Cérebro
muscular foi considerada normal. Observou-se uma Traumatismo Traumatismo
diminuição flagrante da sensibilidade ao frio e à dor na Esclerose múltipla Esclerose múltipla
bochecha direita e nos dois terços inferiores do braço esquerdo Lesão vascular (enfarte, Lesão vascular (enfarte,
comparativamente com o lado contralateral. A auscultação hemorragia, malformação hemorragia,
cardíaca não revelou qualquer ritmo ou som patológico. arteriovenosa) malformação
Devido à falta de recursos, não foi possível realizar uma RM arteriovenosa)
cranioencefálica. Com base na história e nos resultados Doenças infeciosas Doenças infeciosas
clínicos, elaborou-se um diagnóstico preliminar de dor (tuberculose espinhal, (tuberculomas, abcessos
neuropática central causada por enfarte da secção inferior do VIH, mielite sifilítica, cerebrais)
tronco cerebral. Iniciou o tratamento com amitriptilina e ácido abcessos epidurais com
acetilsalicílico profilático (100 mg/dia). compressão da espinhal
medula)
O que significa «dor Tumores Tumores
neuropática central»? Degenerescência
subaguda combinada da
espinhal medula devido a
Por definição, a dor neuropática emerge como
deficiência de vitamina
consequência direta de uma lesão ou doença que
B12
afeta o sistema somatossensorial. Na dor
Disrafismo
neuropática central, a lesão pode estar situada em
Siringomielia
qualquer local da espinhal medula ou do cérebro,
afetando as vias espino-tálamo-corticais. Por
conseguinte, o conceito mais antigo de «dor Com que frequência ocorre
talâmica» está incorreto: a lesão pode encontrar-se a dor neuropática central?
em qualquer nível do sistema nervoso central
(SNC). As dores músculo-esqueléticas e viscerais A doença cerebral que mais comummente causa dor
também são comuns em doentes com patologias do central é o acidente vascular cerebral ( AVC). Cerca
SNC causadas por problemas como a espasticidade de 8% dos doentes que sofreram um AVC
ou a disfunção vesical, mas estas dores não estão desenvolvem dor central pós-AVC. Com uma
incluídas no conceito de dor neuropática central. As incidência anual de 117-219 por 100 000 na
cefaleias agudas causadas por um AVC ou população europeia, e de 83-329 por 100 000 nas
traumatismo craniano também não são consideradas populações japonesa e chinesa, o AVC representa
dor neuropática. São classificadas como cefaleias um dos maiores problemas de saúde pública do
secundárias e devem-se a uma distensão ou irritação mundo.
das meninges. A causa mais comum de dor medular é o
traumatismo. Cerca de 70% dos doentes com lesões
Que doenças podem causar na espinhal medula são afetados pela dor
dor neuropática central? neuropática central. Estima-se que a incidência
anual de lesões da espinhal medula em diferentes
As possíveis causas de dor neuropática central estão países do mundo varia entre 15 e 40 casos por
milhão.
indicadas no Quadro 1.
A prevalência de dor neuropática não é
conhecida em doenças mais raras, como a
siringomielia ou a tuberculose espinhal. Embora a
dor neuropática central seja relativamente pouco
203

comum, o seu impacto não deve ser subestimado, A dor neuropática central pode estar
uma vez que é difícil de tratar e que causa presente desde o início dos sintomas neurológicos
incapacidade e sofrimento às pessoas afetadas. ou aparece com um atraso de dias, meses ou mesmo
anos. Nos casos de dor tardia, é obrigatório realizar
Quais as características um novo exame neurológico, a fim de determinar se
se trata de um novo evento ou de uma progressão
clínicas da dor neuropática da doença anterior (por ex. novo AVC ou
central? siringomielia com perda sensorial em expansão após
a lesão da espinal medula). Depois de aparecer, a
Uma das características comuns da dor neuropática dor neuropática central tem tendência a tornar-se
central é a função alterada do trato espino-talâmico, crónica, e geralmente, para muitos doentes,
que medeia as sensações de temperatura e de dor. permanece para o resto das suas vidas.
Assim, a perceção anómala de temperatura ou dor,
ou de ambas, é detetada através de testes sensoriais. A que se refere a expressão
Os doentes sentem geralmente uma dor constante «lesão traumática da
espontânea, mas podem também sofrer paroxismos
de dor (breves ataques de dor), dor evocada (dor espinhal medula»?
causada por um estímulo) e alodinia (estímulos
inócuos são sentidos como dolorosos). A dor pode Vários traumatismos podem resultar na deslocação
ser sentida como profunda, superficial ou ambas. e na fratura das vértebras espinhais e causar lesões
Pode ser exacerbada por alterações no humor, na na espinhal medula. Em países desenvolvidos, os
temperatura ambiente e no estado físico, e pode ser acidentes rodoviários são o principal fator etiológico
aliviada se o doente concentrar a sua atenção num de lesão traumática da espinhal medula. De acordo
tema que lhe interesse. A dor neuropática central é com um estudo epidemiológico realizado em
frequentemente referida como intensa, Haryana, na Índia, a causa predominante das lesões
incomodativa e esgotante, embora possa ser ligeira é a queda em altura (45%), seguida de acidentes de
em alguns doentes. As qualidades mais comuns da veículos motorizados (35%). Outras causas de
dor central são o ardor, a picada e a compressão. traumatismo da espinhal medula incluem lesões
As lesões no SNC também podem causar desportivas e atos de violência, principalmente
outros sintomas e sinais neurológicos, como a lesões infligidas por balas. Nas pessoas com
paresia motora, ataxia, visão anómala ou disfunção estenose espinal cervical assintomática, uma queda
vesical, dependendo da sua localização e dimensão. ou uma força de abrandamento súbita podem causar
Não existe qualquer associação entre a intensidade uma contusão na coluna cervical, mesmo sem
da dor e a presença ou ausência de sintomas qualquer traumatismo ósseo ou nas articulações. As
concomitantes, o que, em alguns doentes, pode ser lesões da espinhal medula podem ser parciais,
ainda mais incapacitante do que a dor. poupando algumas funções motoras ou sensitivas
Para o diagnóstico de dor neuropática ou ambas, ou pode ser completa, causando paralisia
central, deve ser determinada a localização neuro- e perda sensitiva total abaixo do nível da lesão.
anatómica da lesão (Fig. 1). Uma lesão num
hemisfério cerebral causa resultados anómalos no Quais as características da
lado contralateral do corpo. Uma lesão no tronco
cerebral causa resultados anómalos dos nervos
dor neuropática central em
cranianos no lado ipsilateral, enquanto resultados lesões da espinhal medula?
anómalos nos membros e no tronco devem-se a
uma lesão contralateral. Uma lesão na espinal A dor que se segue a uma lesão na espinhal medula
medula causa resultados anómalos abaixo do nível divide-se em dor abaixo do nível e dor ao mesmo
da lesão.
204
nível da lesão. Esta última situa-se num padrão predominantemente unilateral (ipsilateral à siringe),
segmentar ou de dermatoma, no espaço de dois e pode ser exacerbada através da tosse ou de
segmentos acima ou abaixo do nível da lesão da esforço. Também podem estar presentes sintomas
medula espinal. Pode ser causada por lesões na autonómicos, como alterações da temperatura
medula espinhal ou em raízes nervosas. Em casos cutânea ou transpiração na zona dolorosa. A dor
de lesões das raízes nervosas, a dor pode ter uma pode ser o primeiro sintoma ou pode aparecer
predominância unilateral. A dor situada abaixo do depois de um longo período após a lesão original. A
nível da lesão costuma ser constante, intensa e difícil fraqueza motora pode aparecer com a progressão da
de tratar e representa uma dor neuropática central doença. O tratamento neurocirúrgico é considerado
por desaferenciação. Se a lesão for parcial, as apenas em casos com progressão recente e rápida.
alterações sensitivas podem ser incompletas,
enquanto numa lesão completa, ocorre a perda total O que é a dor de membro
de sensação abaixo do nível da lesão.
fantasma?
Todas as dores são
Após uma amputação traumática, pelo menos
neuropáticas nos doentes metade dos doentes sente dor de membro fantasma,
com lesões da espinhal que se refere a dor sentida na parte perdida do
corpo. Esta dor está associada à reorganização
medula? central no cérebro, o que explica o fenómeno
peculiar de dor sentido na parte do corpo em falta.
Os doentes com lesões da espinhal medula e dor Em alguns doentes, a dor de membro fantasma
neuropática central podem sofrer frequentemente mantém-se através da dor no coto de amputação
de dor músculo-esquelética nociceptiva (dor periférica no local de amputação). É mais
concomitante causada por espasmos musculares ou provável ocorrer dor de membro fantasma se o
uso excessivo das partes do corpo que funcionam indivíduo tiver história de dor crónica antes da
normalmente (por ex., os membros superiores e os amputação e é menos provável se a amputação tiver
ombros na paraparesia). Exemplos de dores sido realizada na infância.
nociceptivas viscerais comuns nestes doentes são a A dor fantasma assemelha-se muitas vezes à
dor causada por impactação intestinal ou distensão dor sentida antes da amputação e, além disso, o
da bexiga. É importante reconhecer estes sintomas doente pode sentir fenómenos fantasmas não
na abordagem de um doente com lesão da espinhal dolorosos, como a sensação de perna torcida.
medula. A GMI (graded motor imagery, ) e a terapêutica
com espelhos são abordagens novas e económicas cuja
O que é a siringomielia? capacidade de reduzir a dor e a incapacidade em
doentes com dor de membro fantasma foi
A siringomielia é uma cavitação quística da medula comprovada. Na GMI, os doentes passam por três
espinhal central, mais comummente na região fases. Em primeiro lugar, avaliam imagens dos seus
cervical. Pode dizer respeito ao desenvolvimento, membros em várias posições. A segunda fase
como na malformação de Chiari I, ou ser adquirida, consiste em imaginar que movimentam os membros
geralmente devido a uma lesão traumática da de forma suave e indolor. Por fim, os doentes
espinhal medula. Caracteriza-se clinicamente por acabam por imitar de facto o movimento. Na
uma perda sensorial segmentar que costuma ser de terapêutica com espelhos, solicita-se aos doentes
tipo dissociado, na qual ocorre perda de sensações à que usem o espelho de forma a que a imagem
temperatura e à dor mas as sensações tácteis e refletida do membro intacto pareça surgir no local
proprioceptivas são preservadas. A dor na do membro amputado ou afetado. A imagem do
siringomielia cervical pode situar-se na mão, no espelho produz uma ilusão de dois membros
ombro, no pescoço e no tórax, é muitas vezes «saudáveis» e o movimento do membro saudável
205

pode melhorar a dor do membro fantasma. Ambas


estas terapêuticas têm como objetivo ativar as
A dor é sempre neuropática
ligações corticais que servem o membro afetado. em doentes que sofreram
um AVC?
Qual é a definição de dor
central pós-AVC? A dor nociceptiva também é muito comum em
doentes que sofreram uma lesão vascular cerebral.
Toda a dor neuropática causada diretamente por Afeta mais frequentemente o ombro e está
uma lesão vascular cerebral (por ex. enfarte ou associada a dinâmicas alteradas devido a fraqueza
hemorragia), independentemente de onde se situe a motora no lado afetado. As causas possíveis são
dita lesão, é chamada de dor central pós-AVC. subluxação da articulação gleno-umeral, rotura da
Anteriormente, era designada dor talâmica, de coifa dos rotadores, lesão em tecidos moles causada
acordo com a localização típica da lesão, mas pode por manuseamento inapropriado do doente e
também dever-se a uma lesão cortical (córtex espasticidade dos músculos do ombro.
parietal), subcortical, da cápsula interna (membro
posterior) ou do tronco cerebral. Quais as características da
dor central após uma lesão
Quais as características
cerebral traumática?
clínicas da dor pós-AVC?
Uma lesão cerebral traumática ocorre quando um
Na maioria dos doentes, a dor central pós-AVC é traumatismo súbito, penetrante ou não penetrante
uma hemi-dor contralateral, que nem sempre inclui causa danos cerebrais. A prevalência de dor central
o rosto, mas pode também limitar-se a uma parte do em doentes com lesão cerebral traumática é
membro superior ou inferior. A qualidade mais desconhecida. A dor crónica nestes doentes é quase
comum é a dor ardente, mas também é comum a exclusivamente unilateral e é mais comummente
dor persistente, penetrante e dilacerante. Na maior penetrante, pulsátil e ardente. Uma característica
parte do tempo, a dor central pós-AVC é constante curiosa é a manifestação de dor em zonas do corpo
e espontânea, mas, em casos raros, pode ser que não estão associadas a nenhuma lesão local ou
paroxística e alodínica (isto é, evocada pelo toque, espinhal. Estas zonas dolorosas exibem taxas muito
pela sensação térmica ou por emoções). É comum o elevadas de dor patologicamente evocada (alodinia e
exame sensorial revelar hiperestesia. Numa lesão hiperpatia). As zonas dolorosas do corpo mais
hemisférica, produz-se uma sensação anómala do frequentemente indicadas são a zona dos joelhos, os
lado contralateral do rosto, do tronco e dos ombros e os pés. A hiperexcitabilidade neuronal foi
membros, acompanhada de paresia se o tracto sugerida como fator de contribuição para a dor
piramidal estiver afetado. Numa lesão baixa do crónica. O tratamento da dor central em doentes
tronco cerebral, produz-se um padrão cruzado nas com lesão cerebral traumática constitui um desafio,
alterações sensitivas: estas situam-se ipsilateralmente uma vez que a maior parte destes doentes também
no rosto e contralateralmente no tronco e nos sofre de défices cognitivos e angústia emocional,
membros, devido a lesões no núcleo sensorial do pelo que a dor pode sobrepor-se a outra dor de
trigémio e no tracto espinhotalâmico transversal, origem psicogénica.
respectivamente.
206
Como diagnosticar a dor deterioração sensorial e motora de um abcesso
espinal abaixo do nível do abcesso).
neuropática central? Uma história clínica de traumatismo antes
de se iniciar o processo de enfraquecimento dos
As pedras angulares do diagnóstico são a história membros e as alterações sensitivas, incluindo dor
clínica detalhada do desenvolvimento dos sintomas central, sugere uma lesão medular parcial. Se existir
e os factores de alívio e agravamento, bem como uma lesão instável da coluna vertebral, a realização
um exame neurológico aprofundado que inclua rápida de cirurgia de estabilização pode prevenir a
testes sensoriais ao toque, às picadas, ao frio, ao paralisia completa, o mesmo se aplicando a
calor e à vibração. Resultados sensoriais anómalos laminectomias numa contusão espinhal com paresia
sugerem a possibilidade de dor neuropática e outros parcial. Uma paraparesia de progressão lenta e as
resultados neurológicos ajudam a localizar a alterações sensitivas podem ser causadas por um
localização da lesão. É importante recordar que a tumor espinal A remoção do tumor pode prevenir a
região que apresenta anomalias sensoriais pode ser paralisia. O prognóstico final depende da histologia
maior do que a zona dolorosa (Caso 2). Na verdade, do tumor e da gravidade dos sintomas antes da
estabelecer um diagnóstico de dor neuropática cirurgia. Os hematomas intracranianos com possível
central consiste em identificar sintomas e sinais tratamento apresentam-se geralmente com cefaleias
neurológicos compatíveis com uma lesão no SNC e e sintomas neurológicos progressivos, mas a dor
excluir outras causas possíveis de dor. Os resultados neuropática central é um sintoma pouco comum
neurológicos típicos associados a uma lesão nestes casos.
neurológica central são um sinal de Babinski
positivo, reflexos tendinosos acelerados e Como deve ser tratado o
espasticidade. Outras causas possíveis de dor têm de
ser excluídas com um grau de certeza razoável. Um
doente?
exame clínico aprofundado é geralmente suficiente
para este processo, como o diagnóstico de dor O tratamento consiste em:
músculo-esquelética e ou de dor causada por  Tratamento da doença na origem da dor,
infeção local. sempre que possível (por ex. tratamento
Estudos de diagnóstico, como a clínico e cirúrgico de abcessos epidurais
neuroimagiologia e análise do líquido causadores de compressão da espinhal
cefalorraquidiano, podem fornecer informação medula).
valiosa para conseguir um diagnóstico preciso, mas  Prevenção secundária (por ex. iniciar
podem não estar disponíveis. Nestas condições, é profilaxia com ácido acetilsalicílico para
muito útil o reconhecimento das características enfarte cerebral aterotrombótico ou
clínicas das doenças que estão na origem da dor. A tratamento de endocardite num doente com
decisão de utilizar ou não recursos limitados e a êmbolo causado por uma válvula cardíaca
seleção de doentes para serem encaminhados para infetada).
uma determinada especialidade baseia-se nas  Alívio sintomático da dor neuropática.
possibilidades de tratamento da doença de origem,  Tratamento de outras fontes concomitantes
como acontece na neurocirurgia. Os abcessos de dor, como a espasticidade, que possam
espinhais e cerebrais, os traumatismos espinhais exacerbar a dor neuropática central.
com lesão medular parcial e os tumores espinhais A primeira linha de tratamento, após uma
são exemplos de doenças com prognóstico avaliação rigorosa, é a informação e a educação,
radicalmente melhorado com um tratamento tanto do doente como da respetiva família. Por
cirúrgico ativo. Deve suspeitar-se de um abcesso exemplo, é difícil para um leigo compreender a dor
cerebral caso um doente sofra febre e sintomas de membro fantasma. Nesta situação, a explicação
neurológicos progressivos (nos sintomas do médico pode ser muito útil («o seu pai não está
contralaterais de um abcesso cerebral e na louco por sentir dor no local onde perdeu um
207

membro»). O carácter da dor, a doença que a causa informação proveniente de estudos abertos e da
e as possibilidades de alívio da dor têm de ser experiência clínica, a estimulação nervosa elétrica
explicados ao doente e à família. Uma vez que o transcutânea (TENS) pode ser útil para a dor central
tratamento sintomático da dor neuropática central é em casos em que exista uma sensibilidade bem
menos eficaz do que o tratamento da dor conservada à vibração e ao toque.
neuropática periférica, fornecer informação
aprofundada pode ser a melhor forma de ajudar o Qual o prognóstico da dor
doente.
À semelhança da dor neuropática periférica,
neuropática central?
os antidepressivos e anticonvulsivantes são usados
no tratamento sintomático da dor neuropática A evolução natural da dor central não é conhecida
central. A amitriptilina é o fármaco de eleição para a de forma exata. A eliminação da dor foi constatada
dor central pós-AVC. Começa com 10-25 mg à em 20% dos doentes com dor central pós-AVC,
noite, sendo que a dose deve ser aumentada em ocorrendo num período de vários anos. Continua-se
incrementos de 10-25 mg até 50-150 mg/dia, sem saber se o tratamento da dor tem qualquer
dependendo da extensão dos efeitos secundários. As efeito modificador sobre a duração da dor
dificuldades na micção, a obstipação, boca seca e neuropática central.
tonturas são efeitos secundários típicos, que podem
impedir o aumento adicional da dose. As arritmias Pérolas de sabedoria
causadas pela amitriptilina constituem uma contra-
indicação para a continuação da administração. Se a  A dor neuropática central pode estar
amitriptilina não for tolerável ou se revelar ineficaz, presente desde o início dos sintomas
pode experimentar-se substitui-la por neurológicos ou pode aparecer após um
carbamazepina. Esta é iniciada com uma dose de período de dias, meses ou mesmo anos.
100 mg duas vezes ao dia, sendo que a dose é  As qualidades mais comuns da dor central
aumentada em incrementos de 100 mg ao longo de são ardor, picadas e compressão.
vários dias, até alcançar uma dose de 400-800  É importante recordar que quase todos os
mg/dia. Se aparecerem efeitos secundários doentes com dor neuropática central sofrem
(tonturas, cefaleias, ataxia ou nistagmo), a dose deve anomalias nas sensações dor e às
ser reduzida. temperaturas.
Foi demonstrada a eficácia da pregabalina
 A amitriptilina, a carbamazepina e a
para a dor causada por uma lesão na espinhal
gabapentina pode ser usadas para o
medula, no entanto, não está disponível em todos os
tratamento sintomático.
países. A gabapentina possui o mesmo mecanismo
de acção e pode ser administrada em substituição.
Inicia-se com uma dose de 300 mg à noite, sendo
Referências
que a dose é aumentada em incrementos de 300 mg
[1] Attal N, Cruccu G, Haanpää M, Hansson P, Jensen TS,
por dia ou a cada dois dias. A dose diária divide-se Nurmikko T, Sampaio C, Sindrup S, Wiffen P. EFNS Task
em três doses. A dose eficaz é de 900-3600 mg/dia, Force. EFNS guidelines on pharmacological treatment of
dividida em três doses diárias. A gabapentina não neuropathic pain. Eur J Neurol 2006;13:1153-69. (Evidências
e directrizes práticas actuais relativas à farmacoterapia da dor
provoca quaisquer interações farmacocinéticas. neuropática)
Também pode ser administrada para a dor central [2] Moseley GL, Gallace A, Spence C. Is mirror therapy all it is
pós-AVC se a amitriptilina e a carbamazepina não cracked up to be? Current evidence and future directions.
Pain 2008;138:7-10. (Evidências e informação prática actuais
surtirem efeito. relativas à terapêutica com espelhos)
Infelizmente, a dor neuropática central é [3] Ofek H, Defrin R. The characteristics of chronic central pain
bastante refratária ao tratamento e o alívio da dor after traumatic brain injury. Pain 2007;131:330-40. (Descreve
a dor neuropática central após uma lesão cerebral)
costuma ser apenas parcial. Com base na
208

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 26
Gestão da Dor em Adultos e Crianças com VIH/SIDA
Glenda E. Gray, Fatima Laher e Erica Lazarus

Qual o âmbito do os homens tinham uma probabilidade


significativamente maior de ter dor do que as
problema? mulheres.

Em 2007, o UNAIDS (United Nations Programme Quais os princípios para um


on HIV/AIDS) estimou que 33,2 milhões de
pessoas estavam infectadas pelo VIH. A maior parte bom manejo da dor?
dos homens, mulheres e crianças infectados pelo
VIH residiam na África Sub-Sahariana. Em termos Cinco princípios são fundamentais para a gestão
globais, 2 milhões de crianças com idade inferior a bem-sucedida dos sintomas dolorosos:
15 anos vivem com VIH. Embora a terapêutica 1) Valorizar o sintoma.
anti-retroviral esteja a tornar-se cada vez mais 2) Realizar uma avaliação adequada.
disponível em contextos de baixos recursos, muitas 3) Realizar um diagnóstico apropriado.
pessoas infectadas pelo VIH, incluindo crianças, 4) Implementar o tratamento.
desconhecem o seu estado de saúde e poderão 5) Avaliar a abordagem da dor.
nunca ter acesso a tratamento e cuidados. Embora A melhor abordagem para tratar a dor no
se tenham conseguido grandes progressos para VIH/SIDA é multimodal: farmacológica,
tornar o VIH/SIDA numa doença crónica tratável, psicoterapêutica, cognitivo-comportamental,
pouco está a ser feito para lidar com os problemas anestésica, neurocirúrgica e de reabilitação. A
de dor causados pelo VIH, por infecções terapêutica deve iniciar-se de acordo com a escada
oportunistas concomitantes, por cancros associados da Organização Mundial de Saúde (OMS), com um
ao VIH ou causados por efeitos secundários da fármaco não opióide, como o paracetamol
terapêutica anti-retroviral. A dor no VIH/SIDA é (acetaminofeno). Os opióides devem constituir a
altamente prevalente, apresenta uma grande terapêutica de primeira linha para a dor moderada a
variedade de síndromes, pode provir de duas ou três intensa. Os medicamentos anti-inflamatórios não
fontes ao mesmo tempo, é subestimada pelos esteróides (AINE's), os tratamentos adjuvantes
médicos e tem o potencial de ser insuficientemente (antidepressivos tricíclicos e anticonvulsiantes) e as
tratada. Na África do Sul, a prevalência de dor modalidades não farmacológicas podem ser
neuropática em doentes com SIDA antes do suplementos importantes para uma analgesia eficaz.
tratamento anti-retroviral era de 62,1%, sendo que A administração de AINE's numa infecção por VIH
209

pode exacerbar uma doença da medula óssea e causada por procedimentos clínicos deve ser
agravar os efeitos gastrointestinais observados com considerada pelos médicos e enfermeiros que tratam
o VIH ou com anti-retrovirais. A administração crianças infectadas pelo VIH, tanto nos tratamentos
contínua de opióides de longa acção é o tratamento em ambulatório como em regime de internamento.
de eleição para a dor crónica. A escada analgésica da Deve ser proporcionada às crianças uma abordagem
OMS constitui uma abordagem progressiva no multi-fásica baseada na terapêutica cognitivo-
manejo da dor, foi desenvolvida para gerir a dor de comportamental, que ensine competências eficazes
forma consistente (em particular a dor oncológica) e que permitam lidar com a situação, que pode incluir:
pode ser aplicada em todos os casos de tratamento preparação, ensaio, exercícios de respiração para
de dor. relaxamento e distracção, reforço positivo e
abordagens farmacológicas.
Descrição de caso 1 («dor
Deve pedir-se aos pais que saiam da sala
nos bebés») quando se sujeita uma criança infectada por
VIH a um procedimento?
Flavia é uma menina de 4 meses infectada pelo VIH Embora as crianças manifestem geralmente mais
referenciada pelo hospital local com CD4 de 15% (valor angústia comportamental na presença dos pais,
absoluto 489) para inscrição num programa de tratamento preferem tê-los presentes e podem sentir menos
anti-retroviral. A sua história clínica inclui um único angústia subjectiva. Além disso, os pais preferem
episódio de broncopneumonia, devido ao qual foi assistir aos procedimentos clínicos a que os filhos
hospitalizada e recebeu antibiótico por via intravenosa são sujeitos. Os pais podem incentivar e orientar os
quando tinha 2 meses. Não tem contactos conhecidos com filhos e ainda reforçar as estratégias que ajudam a
tuberculose (TP) e um teste cutâneo de tuberculina realizado lidar com a situação.
na enfermaria não produziu reacção. A mãe queixa-se de que
está «enfraquecida», não bebe o suficiente e tem lesões Como avaliar a dor em crianças infectadas pelo
persistentes na boca há mais de 2 meses, apesar do VIH?
tratamento com gotas de Mycostatin por via oral. O exame É importante definir as características da dor: a sua
revela que pesa 79% do peso previsto para a idade, com intensidade, o seu carácter, onde está distribuída e o
linfadenopatia generalizada, candidíase oral grave que se que a provoca? É preciso olhar para o nível de
estende até à faringe e uma hepatomegalia de 3 cm. desenvolvimento da criança e incentivar a
comunicação entre pais e filhos sobre a dor (ver
Devemos preocupar-nos com a dor causada por capítulo relativo à gestão da dor nas crianças). A
procedimentos clínicos em crianças infectadas história e o exame clínicos devem tentar delimitar a
pelo VIH? zona de ocorrência da dor. As crianças podem
As crianças infectadas pelo VIH são sujeitas com queixar-se de dores «em todo o lado» e podem não
frequência a procedimentos como a punção venosa conseguir precisar a localização exacta da dor.
para colheita de amostras sanguíneas, cateterização Formar os pais e prestadores de cuidados no
intravenosa, administração de medicação ou sentido de observarem as crianças poderá permitir
vacinação. As crianças hospitalizadas podem obter conhecimentos úteis sobre a origem, a
necessitar de ser submetidas a entubação intensidade e a natureza da dor. É muito importante
nasogástrica, punção lombar ou aspiração de medula tratar a causa subjacente da dor para além de
óssea. Procedimentos indolores mas causadores de prescrever analgesia. Se a dor estiver associada a um
ansiedade, como as TC, os raios-X ou a ressonância tratamento, o fármaco na origem da dor deve ser
magnética também podem causar sofrimento. Um interrompido (por ex. antivirais ddl ou D4T para
estudo de Stafford (1991) revelou que 22 crianças neuropatias periféricas), e usado um fármaco
com VIH foram submetidas a um total de 139 alternativo. Se a dor for causada por uma doença
procedimentos dolorosos num ano. A gestão da dor
210
infecciosa subjacente, faz parte do seu manejo tratá- é usada morfina para produzir analgesia. Um efeito
la. secundário da morfina é a obstipação. Inicialmente,
Que tratamento pode ser prescrito a crianças podem ocorrer sonolência e prurido, aquando da
infectadas pelo VIH que sentem dor? toma inicial de morfina.
Tem de ser estabelecida a causa da dor. O
profissional de saúde pode iniciar um tratamento de Como podem ser geridas as lesões orais
alívio da dor com paracetamol (acetaminofeno) (30 dolorosas?
mg/kg a cada 4-6 horas). A terapêutica deve ser O alívio sintomático da estomatite e de outras lesões
administrada regularmente, e não «conforme orais dolorosas pode ser conseguido evitando
necessário». Se este regime não aliviar a dor, pode alimentos ácidos, como o sumo de laranja,
ser acrescentado fosfato de codeína ao paracetamol, utilizando uma palhinha para evitar o contacto com
administrado a cada 4-6 horas. O passo seguinte é as lesões orais e ingerindo comida fria, cubos de
uma dose de morfina de 0,4 mg/kg por via oral ou gelo e gelados. Podem ser tomadas medicações
de 0,2 mg/kg por via i.v. a cada 4 horas, que pode tópicas, tais como a lidocaína 2% (20 mg/mL) antes
ser aumentada em 50% ou mais em cada dose das refeições, aplicadas directamente nas lesões em
subsequente até a dor ser controlada. Assim que for crianças maiores até um máximo de 3 mg/kg/dia (a
alcançado um controlo da dor, a quantidade total não repetir num período de 2 horas).
diária de morfina solúvel é dividida em 2 doses
administradas a cada 12 horas e sob a forma de
sulfato de morfina de longa acção numa forma de
libertação controlada. A dependência e depressão
respiratória não são problemas significativos quando
Quadro 1
Causas de dor em crianças infectadas pelo VIH
Dor na cavidade oral Candidíase orofaríngea, cáries dentárias,
Se a dor for muito forte, a criança pode deixar de comer e beber. Nos gengivite, úlceras aftosas, estomatite
bebés, pode ocorrer ptialismo. herpética
Dor associada a infecções no esófago Cândida, citomegalovírus, herpes simplex e
Pode ser muito difícil determinar a causa e o diagnóstico da dor no esofagite micobacteriana
esófago. As crianças imunocomprometidas com candidíase oral
também podem sofrer de candidíase esofágica. As crianças mais velhas
podem queixar-se de azia ou dor durante a deglutição.
Dor abdominal Gastroenterite infecciosa, pancreatite,
A dor abdominal pode ser constante ou intermitente, surda ou aguda. A hepatite ou, menos frequentemente,
dor pode ocorrer depois de comer ou com o estômago vazio. Podem linfoma gastrointestinal
surgir diarreia e vómitos associados à dor
Dor nervosa e/ou muscular Hipertonicidade/espasticidade,
O VIH pode causar dor muscular ou nas articulações. A encefalopatia neuropatias periféricas, cefaleias,
por VIH pode ser acompanhada de hipertonicidade ou espasticidade. mielopatia, miopatia, herpes zoster e
Algumas medicações anti-retrovirais como a D4T podem causar nevralgia pós-herpética
neuropatia periférica.
Dor causada por procedimentos clínicos Venipunctura, testes cutâneos de
Grande parte da dor causada por procedimentos clínicos pode ser tuberculina, punção lombar, aspirações
minimizada. de medula óssea, perfusões intravenosas,
colocação de sonda nasogástrica, vacinas

Dor causada por efeitos secundários do tratamento Neuropatias periféricas, pancreatite,


cálculos renais, miopatia, cefaleias
* Adaptado de Children’s Hope Foundation. Pain assessment and management of pediatric HIV infection. Pediatric
HIV/AIDS Training Module; 1997.
211

Como gerir a dor causada por procedimentos a causa subjacente. Para este tipo de dor,
clínicos em crianças infectadas pelo VIH? recomenda-se uma intervenção multi-fásica (ver
É fundamental estabelecer um diagnóstico. Para Quadro 2).
além da administração de analgesia, deve ser tratada

Quadro 2
Intervenção multi-fásica para o manejo da dor causada por procedimentos clínicos
Intervenção Procedimento
1) Preparação Fornecer informação detalhada acerca do que vai acontecer em seguida. Ensaiar
o que vai acontecer. Adaptar o nível de informação de acordo com o nível de
desenvolvimento da criança.
2) Promover o relaxamento recorrendo a exercícios de respiração. Podem ser
Relaxamento usados auxílios, como bolas de sabão. As crianças que aprendem uma técnica
e distracção específica, como os exercícios respiratórios, acreditam que têm mais controlo
sobre uma situação dolorosa, o que melhora a sua tolerância à dor.
3) Reforço Principalmente sob a forma de elogios orais, autocolantes, crachats, doces ou
pequenos brinquedos destinados a recompensar e incentivar as crianças a
tentarem cooperar, por ex. mantendo-se sentadas sem se movimentarem. Este
reforço proporciona um incentivo para adoptar comportamentos que permitam
lidar com a dor.
4) Aplicar EMLA (mistura eutética de anestésicos locais) e reforçar o papel dos
Abordagem pais durante os procedimentos pode reduzir a angústia e a dor. Aplicar o
farmacológic EMLA 1 hora antes do procedimento e revestir com um penso estanque. Os
a pais têm uma função importante nos esforços envidados para levar as crianças a
colaborar nos procedimentos clínicos dolorosos.
* Adaptado de Schiff et al. 2001.

As crianças sentem dor causada por Enquanto a candidíase oral ligeira pode fornecer
medicamentos anti-retrovirais? uma boa resposta à terapêutica tópica, a
Muitos dos anti-retrovirais, em particular os eficácia das gotas de Mycostatin depende em grande
inibidores da protease, causam desconforto medida do tempo durante o qual a medicação
abdominal, náuseas e diarreia. Cefaleias, pancreatite permanece em contacto com as lesões. É
e neuropatias periféricas são outros efeitos importante explicar às mães que precisam de tentar
secundários comuns do tratamento. É importante retirar as espessas placas que se formam e aplicar as
consultar o folheto informativo dos fármacos anti- gotas directamente nas lesões (administrando as
retrovirais prescritos, a fim de avaliar os efeitos gotas como se fosse um xarope). Permitir que o
secundários e as interacções medicamentosas. bebé ingira rapidamente a medicação revelar-se-á
ineficaz. Este procedimento deve ser repetido no
Qual é a causa mais provável de perturbação na mínimo 4 vezes ao dia. Em alternativa, é possível
deglutição e como pode ser gerida? prescrever uma formulação em gel, como o
A candidíase esofágica é o diagnóstico mais Daktarin gel oral que adere às zonas afectadas.
provável e deve ser suspeitado com base numa A candidíase oral grave e a candidíase
história clínica de dificuldades na alimentação e de esofágica não respondem à terapêutica tópica.
extensa presença de aftas na orofaringe. Trata-se muitas vezes de uma doença muito
dolorosa que se manifesta com frequência em bebés
e crianças pequenas, causando perda de apetite ou
212
dificuldade em comer. É necessária uma terapêutica
sistémica, pelo que o medicamento de primeira linha
Descrição de caso 1
de eleição é o fluconazol. A decisão deve ser tomada (continuação)
quer a criança necessite de receber o fluconazol por
via intravenosa, exigindo assim uma hospitalização e Quatro semanas depois de iniciar a HAART, a mãe
a possível separação da mãe, quer consiga tolerá-lo queixa-se de que a bebé desenvolveu um nódulo debaixo do
oralmente. Uma criança que ainda esteja a receber braço direito, mas que, excluindo isso, está tudo a correr bem.
alimentos por via oral poderá ser capaz de tolerar o O exame revela uma massa móvel de 4 cm na axila direita.
tratamento oral. Obviamente, a candidíase esofágica A bebé está claramente em sofrimento e chora aquando da
é um diagnóstico de Categoria C («gravemente observação da lesão. É iniciado um novo exame aprofundado
sintomática») segundo o CDC (Centers for Disease a fim de excluir a tuberculose, sendo no entanto estabelecido
Control and Prevention) e a terapêutica anti- um diagnóstico de síndrome inflamatória de reconstituição
retroviral altamente activa (HAART) também é uma imune (IRIS) relacionado com o BCG.
componente importante do tratamento. A análise à tuberculose revela-se negativa, pelo que
Conforme indicado anteriormente, esta se decide aguardar os resultados da cultura de espécimes antes
doença pode ser extremamente dolorosa, pelo que de considerar um tratamento contra a tuberculose. O nódulo
também deve ser prescrita analgesia ao doente. De continua a crescer, causando maior desconforto à bebé,
acordo com a escada analgésica da OMS, pode acabando por se tornar vermelho, quente e flutuante. A
iniciar-se com xarope de paracetamol criança é encaminhada para o serviço de cirurgia pediátrica
(acetaminofeno) oral se o doente conseguir tomar para incisão e drenagem do nódulo e é iniciado um tratamento
medicamentos por via oral ou, em alternativa, de prednisona por via oral. Em seguida, os cirurgiões
supositórios de paracetamol. Este medicamento realizam uma incisão e drenagem (I&D) no serviço
pode ser administrado de forma segura e fácil em ambulatório. A bebé é sedada com xarope de valeriana e é-
crianças, a cada 6 horas. Revela-se muitas vezes útil lhe administrada uma dose de paracetamol (acetaminofeno)
aconselhar as mães a administrar a dose 30 minutos antes da operação. É prescrita terapêutica de paracetamol a
antes da refeição para se alcançar a máxima cada seis horas para analgesia em casa.
eficácia na hora da refeição, reduzindo assim a dor O nódulo melhora de alguma forma na sequência da
aquando da deglutição. Se esta terapêutica se revelar I&D e da administração de prednisona, mas desenvolvem-se
inadequada, o passo seguinte consiste em mais tarde duas novas zonas de flutuação. As lesões são
administrar um AINE, por exemplo, supositórios de aspiradas nos consultórios com a mesma sedação e analgesia
diclofenac, mas as crianças com este nível de dor usadas anteriormente. Os resultados da análise da
necessitam mais provavelmente de ser expectoração e da aspiração por agulha fina (FNA) revelam
hospitalizadas para receberem líquidos por via por fim que a expectoração é negativa para TB e a FNA
intravenosa e analgesia parentérica, para além do revela uma micobactéria como agente causador. Não é
fluconazol por via i.v. iniciado qualquer tratamento para a tuberculose, mantém-se
Uma semana depois, a mãe refere que a criança a HAART e administra-se prednisona à bebé durante 6
apresenta fraqueza mas que as lesões orais desapareceram e semanas. Não é necessária qualquer outra intervenção e o
que não houve novas queixas. Os níveis basais da criança nódulo melhora gradualmente ao longo do tempo,
obtidos nas análises sanguíneas não revelaram qualquer desaparecendo totalmente após 1 ano de HAART.
contra-indicação à terapêutica anti-retroviral, pelo que é
iniciado tratamento com estavudina, lamivudina e Que outras opções estavam disponíveis para
lopinavir/ritonavir. tratar o abcesso axilar inicial?
1) Conservadoras. Esta não é uma opção
aconselhável, uma vez que o pus precisa de ser
drenado e, se não for levado a cabo um
procedimento de drenagem, pode desenvolver-se
cavitação ou fistulização por cura insuficiente.
Outro problema reside no facto de os abcessos
213

serem extremamente dolorosos, em particular numa deixava sempre a bebé na mesa de exame ao cuidado da
zona como a axila, que é movimentada ao vestir, enfermeira, pronta para a colheita de sangue e saía da sala
nos transportes e outras actividades. O alívio da até à conclusão do procedimento, altura em que era chamada
pressão constitui em si um processo eficaz de a entrar. Dois anos mais tarde, são necessárias duas
tratamento da dor. enfermeiras para manter a criança deitada com firmeza
2) Aspiração. Pequenos abcessos podem ser suficiente para garantir a segurança da flebotomia, enquanto
aspirados facilmente com um nível de dor mínimo o médico realiza o procedimento. Assim que se encontra em
para a criança. Este processo permite a drenagem supino, a criança começa a engasgar-se até induzir o vómito e
do pus até à superfície, previne a formação de expele o pequeno-almoço para o chão da clínica, tornando o
cavidades e ainda alivia a própria dor causada pelo procedimento extremamente difícil para o pessoal clínico.
abcesso. Infelizmente, os abcessos inadequadamente
aspirados voltam frequentemente a aparecer, com a O que poderia ter sido feito para prevenir esta
resultante recorrência da dor. É difícil aspirar situação?
devidamente grandes abcessos, em particular Embora seja muitas vezes traumático para os pais
aqueles que estiveram presentes tempo suficiente observar a colheita de sangue nos seus filhos, é
para começarem a desenvolver-se em locas frequentemente mais traumático para a criança
separadas. enfrentar o procedimento sozinha, sentindo-se
3) Incisão e drenagem (I&D) sob anestesia abandonada pela mãe, em quem confia para a
geral. Em alguns casos, para crianças, este método é proteger da dor. Assim sendo, é aconselhável
preferível às intervenções ambulatórias, dado que a incentivar os pais a permanecerem na sala e a
dor da intervenção é integralmente tratada através falarem de forma reconfortante com a criança
do anestésico. Permite a drenagem completa do durante o procedimento (não precisam
abcesso, independentemente das locas existentes. necessariamente de observar o procedimento). Além
Por outro lado, a anestesia geral exige que a criança disso, os pais ou prestadores de cuidados devem ser
seja separada da mãe, que seja internada e exposta a incentivados a explicar porque tem de ser colhido o
uma sala de operações desconhecida e assustadora. sangue, na medida em que a criança tenha
E obviamente, a dor do pós-operatório ainda terá capacidade para compreender. Devem também ser
de ser gerida, tal como acontece numa intervenção incitados a não enganarem a criança prometendo
ambulatória. que não será retirado sangue. Os pais devem ser
dissuadidos de «diabolizar» o pessoal clínico que
Descrição de caso 2 («dor realiza o procedimento. Este é muitas vezes o
instinto das mães, em particular para justificar a dor
psicológica causada por da criança, prometendo-lhes que irão bater no
intervenções recorrentes») médico ou, como prometeu a mãe de um doente,
que irão fazer queixa do médico à polícia! Este
Edith é uma menina de 2 anos e meio que tem consultas na comportamento serve apenas para aumentar o
clínica anti-retroviral desde as 6 semanas de vida. Começou medo sentido pela criança relativamente ao pessoal
com HAART às 12 semanas e foi observada mensalmente clínico e fazer com que esta comece a duvidar das
durante o primeiro ano de vida. Eram colhidas amostras de promessas ou da capacidade da mãe em oferecer a
sangue a cada 3 meses. Desde os 6 meses de idade, as protecção prometida.
amostras de sangue necessárias foram colhidas a partir da
veia jugular externa, o que implicava mantê-la em supino O que pode ser feito de futuro para suavizar
numa mesa de exame com o pescoço ligeiramente esticado esta situação?
sobre a extremidade da mesa enquanto uma enfermeira lhe Deve ser introduzida a abordagem multi-fásica
segurava as mãos para a impedir de tentar retirar a agulha. descrita no Quadro 2. Deve ser usado EMLA para
A mãe sofre de fobia a agulhas e não conseguia suportar ver tentar reduzir a dor. Assim que a criança tem idade
um médico inserir uma agulha no pescoço da filha, pelo que suficiente para que a colheita de sangue da veia
214
braquial seja tão acessível como a colheita na veia É internada com o diagnóstico de pneumonia
jugular, esta opção deve ser adoptada. A criança adquirida na comunidade e são-lhe administrados antibióticos
pode permanecer no colo da mãe envolta nos seus por via intravenosa. A sua contagem de CD4 é de 4.
braços afectuosos como forma de imobilização sem Aquando do internamento, também se detecta que sofre de
força. Oferecer uma forma de compensação dor abdominal grave. Os médicos hospitalares descobrem que
reconfortante, como uma goma ou um chupa- a dor é generalizada, com aparente hipersensibilidade de
chupa, permite muitas vezes interromper o choro repercussão, e solicitam um raio-X abdominal e o nível de
ou, no mínimo, atenuar o traumatismo do lipase sérica. Iniciam o tratamento com gotas de tilidina (um
procedimento graças a uma associação positiva. analgésico opióide oral), a administrar a cada 6 horas. Os
exames revelam-se normais mas a sensibilidade parece não
Descrição de caso 3 («dor melhorar. Simultaneamente, o seu estado de saúde parece
agravar-se. Aparenta estar mais enfraquecida e cansada do
causada por infecção que nunca.
oportunista com factores Uma vez que o seu estado de saúde se deteriora,
psicossociais Abigail é observada por uma especialista em cuidados
paliativos. Esta recomenda que a tilidina seja substituída por
exacerbantes») paracetamol (acetaminofeno) e codeína (um opióide fraco com
efeito sedativo muito inferior). Também consegue uma
Abigail é uma menina de 12 anos que vai à consulta na consulta com o psicólogo da equipa clínica, assim que Abigail
clínica depois de lhe ter sido diagnosticado VIH. Os pais se mostra mais lúcida. Entretanto, a temperatura corporal e
morreram há dois anos de doenças associadas à SIDA e as os sintomas continuam a não estar controlados, apesar dos
tias maternas têm tomado conta dela desde então. Quando diferentes antibióticos administrados por via intravenosa,
constataram que estava a perder peso rapidamente num incluindo tazobactam, amicacina e mesmo imipenem. Os
período de poucos meses, decidiram que também tinha de ser resultados da análise à expectoração são adiados devido a um
submetida a um teste do VIH. Na clínica local, Abigail e a atraso no laboratório e a causa da sensibilidade abdominal
tia foram a uma consulta de aconselhamento pré-teste, uma ainda não foi determinada. É efectuada uma ecografia
vez que se considerou que já era suficientemente crescida para abdominal que revela microabcessos esplénicos. É-lhe
compreender as implicações do teste e para dar o seu próprio diagnosticada tuberculose disseminada e é iniciado um
consentimento. Quando os resultados estavam disponíveis, tratamento para a tuberculose. Três dias mais tarde, a
foram entregues apenas a Abigail, sem a presença da tia. temperatura corporal estabiliza, os sintomas constitucionais
Não se realizou qualquer aconselhamento pós-teste e disse-se melhoram, a dor abdominal diminui consideravelmente e
simplesmente a Abigail que precisava de se dirigir à clínica, Abigail volta ao seu estado normal, pronta para receber alta.
uma vez que estava infectada pelo VIH e precisava de
tratamento. Quais são alguns dos factores que
Na primeira consulta, Abigail estava claramente possivelmente contribuíram para a sua dor?
perturbada com o diagnóstico. É uma criança inteligente que 1) Patologia intra-abdominal: tuberculose
entende claramente o significado do diagnóstico, pelo que se esplénica. Também é provável que,
mostra um pouco reservada e visivelmente assustada – concomitantemente com o envolvimento esplénico,
preocupada com o seu futuro, com medo da rejeição e com a houvesse envolvimento linfático. A tuberculose dos
vida virada do avesso. Sofre de tosse crónica há mais de 4 gânglios linfáticos mesentéricos também pode
semanas e sente-se esgotada, sem energia e com perturbações causar obstrução parcial a nível intestinal, resultando
respiratórias, com uma temperatura corporal de 40ºC. Um nos sinais de peritonite descobertos durante o
raio-X ao tórax revela uma infiltração bilateral heterogénea. exame.
Necessita claramente de ser hospitalizada, mas mostra-se 2) Dor «referida». Após 4 semanas de tosse e
reticente, pois tem medo de deixar de ser tratada pelas tias e face à malnutrição induzida pela doença, o
de ser abandonada no hospital. As tias tranquilizam-na com diafragma e músculos respiratórios auxiliares da
ternura e o médico garante-lhe que é necessário e que é para o doente foram demasiado forçados, causando lesões.
seu bem, pelo que acaba por aceder.
215

O abdómen pode estar sensível devido a tensão saúde gravemente afectado e a infecção oportunista,
muscular prolongada. constituem uma carga assustadora para uma psique
3) Dor «psicológica». As crianças, em jovem. A tentação de desistir deve ser certamente
particular as mais pequenas, apresentam muito forte. É fundamental a existência de um
frequentemente dor abdominal generalizada ou sistema de apoio familiar forte e afectuoso com
inespecífica sem qualquer patologia aparente. A dor intervenção psicossocial externa. Felizmente,
pode muitas vezes ser simplesmente um sinal de Abigail tem tias muito afectuosas que a visitavam
angústia emocional (embora, obviamente, se deva todos os dias, bem como amigos da escola que lhe
excluir em primeiro lugar a patologia física). É enviavam postais e presentes durante a sua
necessário proceder com cuidado a fim de distinguir hospitalização. O psicólogo dos cuidados paliativos
entre dor real e peritonismo ou dor psicológica. também soube aconselhar e incentivar Abigail e a
Muitas vezes, distraindo o doente com conversa ou sua família e oferecer-lhes os cuidados adicionais de
perguntas ou, para crianças mais pequenas, que necessitavam neste período difícil.
brinquedos ou telemóveis, é possível descobrir se a 4) Efeitos secundários dos medicamentos. A
dor é real ou não. A dor real provoca geralmente tilidina é um opióide forte. Sabe-se que os
uma careta e mesmo uma interrupção da conversa. analgésicos opióides causam sedação e alterações de
O peritonismo resulta numa óbvia humor (euforia ou disforia). A própria tilidina
hipersensibilidade de repercussão, apesar da também pode causar tonturas, sonolência e
distracção. A dor puramente psicológica (ou mesmo confusão. De acordo com a escada analgésica da
fingida) resulta na falta de sinais óbvios de OMS, os opióides fortes devem ser reservados para
sensibilidade durante o exame enquanto a criança a dor que não responde a analgesia menos potente.
está distraída. Não devem ser usados como analgésicos de
primeira linha, excepto no pós-operatório ou em
Quais são algumas das possíveis razões para a caso de patologia que exija claramente uma analgesia
deterioração do estado de saúde da doente? forte, como a pancreatite.
1) Diagnóstico incorrecto com agravamento
da infecção oportunista. Esta criança apresentava Como gerir a dor em adultos infectados pelo
vários sintomas que deveriam ter alertado o pessoal VIH?
clínico para a forte possibilidade de tuberculose. A As síndromes de dor observadas em adultos
doente sofria de tosse crónica produtiva, febre sem infectados pelo VIH podem estar directamente
resposta aos medicamentos e uma perda de peso associadas à infecção pelo VIH, à imunossupressão
significativa, com alterações suspeitas na radiografia ou à terapêutica para o VIH. A dor pode ser
torácica. Com uma contagem de CD4 de 4, a dividida em duas categorias: nociceptiva ou
probabilidade de tuberculose, em particular de neuropática. As síndromes mais comummente
tuberculose disseminada, era muito forte. referidas em doentes afectados pelo VIH incluem
2) Infecção nosocomial de novo (isto é, neuropatias periféricas dolorosas, bem como dor
adquirida no hospital). Embora esta seja causada por sarcoma de Kaposi extenso, cefaleias,
frequentemente causa de deterioração em doentes dor oral ou faríngea, dor abdominal, dor torácica,
internados gravemente imunocomprometidos, era artralgias e mialgias e doenças dermatológicas
improvável, tendo em conta a falta de culturas de dolorosas.
espécimes positivas e a falta de resposta à
terapêutica antibiótica intravenosa. Os princípios da abordagem da dor são
3) Dor psicológica. Perda da vontade de diferentes para o VIH?
continuar a lutar e resignação face à possibilidade da Os princípios da abordagem da dor no VIH são
morte. A perda de ambos os pais, a forma trágica semelhantes aos aplicáveis a doentes com outras
como recebeu o diagnóstico e o carácter tardio da patologias. Em cada consulta, tanto em ambulatório
sua apresentação, juntamente com o seu estado de como em regime de internamento, é útil analisar os
216
«sinais vitais da dor», a fim de avaliar o grau de dor e factores causais. A avaliação basal pode ser usada
a resposta ao programa analgésico actual (ver como indicador que permita determinar se a
também o Inventário Breve da Dor). analgesia está a ser eficaz ou não.
 Perguntar aos doentes se tiveram dor na
última semana. As mulheres infectadas pelo VIH sofrem mais?
 Pedir-lhes que descrevam a intensidade da As mulheres sentem a dor de forma diferente dos
dor: ligeira, moderada ou intensa. homens devido a factores biológicos, psicológicos e
 Pedir-lhes que descrevam a sensação de dor: sociais. Os homens e as mulheres respondem de
ardente, penetrante, surda ou aguda. forma diferente a tratamentos farmacológicos e não
farmacológicos. As mulheres com dor são muitas
 Descobrir o que melhora ou agrava a dor.
vezes alvo de diagnóstico e tratamento insuficientes.
 Pedir-lhes que classifiquem a dor numa
Podem não possuir a informação ou educação
escala numérica de 0 a 10.
necessárias para compreender que as suas
 Pedir-lhes que classifiquem a sua qualidade experiências dolorosas podem fazer parte da
de vida numa escala numérica de 0 a 10. infecção por VIH. A cultura também influencia a
 Questionar acerca de sentimentos de experiência de dor.
tristeza, fadiga e depressão.
Depois de obter uma história clínica, um
exame médico rigoroso ajuda a esclarecer os
Quadro 3
Fontes comuns de dor no VIH/SIDA
Cutânea/Oral Visceral Somática Neurológica/Cefaleias
profunda
Sarcoma de Tumores Doença Cefaleias: associadas ao VIH (encefalite,
Kaposi Gastrite reumatológi meningite, etc.)
Dor da cavidade Pancreatite ca Cefaleias: não associadas ao VIH (tensão,
oral Infecção Dor lombar enxaqueca)
Herpes zoster Perturbaçõ Miopatias Iatrogénica (associada à zidovudina)
Candidíase es do Neuropatia periférica
oral/esofágica tracto biliar Nevrite herpética
Neuropatias associadas a ddI, toxicidades D4T,
álcool, carências nutricionais.
* Modificado a partir de Carr DB. Pain in HIV/AIDS: a major health problem. IASP/EFIC
(comunicado de imprensa). Disponível em www.iasp-pain.org.

Descrição de caso 4
clínica de traumatismo. Lembra-se de, há uma semana, ter
(«nevralgia pós-herpética») sentido um ligeiro estado gripal. A filha esteve recentemente
com varicela. Ao examinar a pele, aparecem duas vesículas
Um homem de 44 anos positivo para o VIH, cumpridor da na extremidade do ombro esquerdo e a dor estende-se
terapêutica anti-retroviral e em situação estável há 3 anos, unilateralmente numa distribuição dermatotópica. É iniciada
queixa-se de fadiga repentina e de dor grave no ombro a toma de valaciclovir oral, um comprimido que combina
esquerdo. Descreve a dor como a pior que alguma vez sentiu, paracetamol (acetaminofeno) e codeína, e ibuprofeno.
uma dor ardente que o desperta de noite, agravada pela
movimentação do ombro esquerdo, levando-o a transpirar
excessivamente, tornando-se incapacitante. Não tem história
217

Que tratamentos podem ser administrados para


aliviar a dor e o prurido causados por uma
Descrição de caso 5
erupção de herpes zoster? («meningite criptocócica»)
Esta doença é extremamente dolorosa, pelo que a
abordagem quanto à administração de analgésicos Uma mulher grávida de 18 anos, infectada pelo VIH, com
deve ser bastante liberal. Uma loção de calamina contagem CD4 basal de 38 x 106/L e carga viral >500
tópica e a limpeza com água podem ajudar a aliviar 000 cópias/mL, toma estavudina/lamivudina/nevirapina
o prurido. Também serão necessários paracetamol, há 3 semanas. Apresenta-se agora com cefaleias há 7 dias,
ibuprofeno e dihidrocodeína. Pode ocorrer infecção descritas inicialmente como ligeiras, mas com agravamento ao
secundária das bolhas o que poderá exacerbar a dor, longo do tempo, persistentes, penetrantes, deixando de
pelo que estas devem ser tratadas com antibióticos e responder ao paracetamol, exacerbadas pela movimentação e
um agente tópico, como cloranfenicol, tetraciclina associadas a fotofobia e vómitos. Durante o exame, a doente
ou violeta de genciana. Existem evidências de que a apresenta-se com ligeira pirexia, totalmente desperta, alerta e
administração de corticosteróides com aciclovir orientada, mas agitada. São detectadas cinco lesões cutâneas
diminui a dor aguda, mas os esteróides devem ser papulares com 2 mm de diâmetro debaixo da pálpebra
usados com cuidado, em particular em doentes inferior direita, presentes desde antes da indução anti-
imunocomprometidos. retroviral, as quais foram interpretadas como sendo molusco
contagioso. Não exibe défices neurológicos focais nem
Como tratar a dor da nevralgia pós-herpética? papiledema. O antígeno criptocócico sérico é positivo e os
A amitriptilina e a carbamazepina devem ser resultados do líquido cefalorraquidiano são os seguintes:
consideradas na nevralgia pós-herpética. A pressão de abertura 20 cm H20, líquido ligeiramente turvo,
carbamazepina apresenta interacções proteína LCR 0,5 g/L, LCR: glicose sérica 40%, cloreto
medicamentosas com anti-retrovirais, pelo que deve 125 mmol/L, acelular, coloração Gram-negativa, teste de
ser administrada com cuidado. Deve considerar-se a aglutinação em látex para detecção do antígeno criptocócico no
administração de pregabalina, um novo fármaco da LCR positivo, teste com tinta da Índia positivo. Resultados
classe dos anticonvulsivantes, para doentes com da biópsia cutânea: Cryptococcus neoformans em
nevralgia pós-herpética que não respondem a cultura. Foram administradas anfotericina B por via
antidepressivos tricíclicos, à gabapentina e a outros intravenosa e a dihidrocodeína oral e a doente referiu alívio
analgésicos. A dose inicial de pregabalina é de 75 mg total da dor no terceiro dia de tratamento.
duas vezes ao dia, mas a dose pode ser aumentada
para 150 mg duas vezes ao dia após três dias. A Que sinais alertam o profissional de saúde para
pregabalina exige um ajuste da dose se a depuração um aumento da pressão intracraniana num
da creatinina for inferior a 60 mL/min. Foram doente com meningite criptocócica?
frequentemente observadas tonturas e sonolência Défices neurológicos focais. Perda transitória da
com a pregabalina, pelo que é aconselhável actuar acuidade visual, diplopia, perda auditiva, confusão e
com cautela ao co-administrar o fármaco com papiledema.
efavirenz, que tem efeitos secundários semelhantes
nas semanas de tratamento iniciais. Como tratar e gerir doentes com aumento da
pressão intracraniana >25 cm H2O?
Que complicações de herpes zoster são mais A fim de evitar a herniação cerebral, uma TC ou
comuns em indivíduos imunocomprometidos? uma RM cerebral antes da punção lombar devem
Foram descritos envolvimento cutâneo extenso, excluir o efeito de massa. A drenagem diária de
disseminação da doença, pneumonite, envolvimento pequenas quantidades de líquido cefalorraquidiano,
ocular, menigoencefalite, mielite e envolvimento dos durante um máximo de 2 semanas, com
nervos cranianos. monitorização da pressão, melhora geralmente as
cefaleias e outros sintomas associados à meningite
criptocócica. Após 2 semanas, se o aumento da
218
pressão persistir, considerar a colocação cirúrgica de amitriptilina para 50 mg à noite, e é iniciado um regime de
uma derivação ventriculo-peritoneal ou lombo- terapêutica anti-retroviral altamente activa (HAART) com
peritoneal. nucleósidos inibidores da transcriptase reversa (NRTI) e de
não-nucleósidos inibidores da transcriptase reversa
Que analgésicos são contra-indicados para (NNRTI). Passados 3 meses, a neuropatia regrediu para a
administração com aumento da pressão categoria 1 e, passados 6 meses, a neuropatia foi totalmente
intracraniana? eliminada.
Sulfato de morfina, petidina (meperidina).
Indicar todos os factores que contribuem para a
Descrição de caso 6 neuropatia periférica!
O próprio VIH, possíveis carências em vitamina B e
(«neuropatia periférica») a profilaxia ou o tratamento com isoniazida.

Uma jovem mulher de 23 anos é enviada para a clínica anti- Num caso deste tipo, que agentes NRTI devem
retroviral (ARV) com um teste recente por ELISA positivo ser evitados, se possível?
para VIH e CD4 absoluta de 19 x 106/L. A doente é A estavudina e a didanosina, dado que ambas
naive para ARV. Queixa-se de uma sensação de ardor nas podem causar neuropatia periférica com uma toma
plantas de ambos os pés. Os resultados positivos durante o a longo prazo, devido à toxicidade mitocondrial.
exame incluem atrofia muscular acentuada, malnutrição, 50 Que carências nutricionais podem causar
kg de peso, palidez, uma linfadenopatia supraclavicular de 5 neuropatia periférica?
cm no lado direito e uma neuropatia periférica sensório- A vitamina B1 (tiamina), a vitamina B3, a vitamina B6
motora de grau 1. São de destacar nos resultados sanguíneos e a vitamina B12.
a carga viral do HIV-1 por ADN ramificado, 238 810
cópias/mL e anemia normocrómica normocítica. O raio-X Por que razão a neuropatia progrediu para a
torácico revela uma adenopatia hilar. É realizada aspiração categoria 2?
por agulha fina no gânglio linfático e revela-se consistente com A neuropatia na sua apresentação inicial era muito
o diagnóstico de tuberculose. Inicia profilaxia por provavelmente secundária ao VIH. A dor foi
cotrimoxazol, tratamento para a tuberculose, 25 mg de exacerbada pela adição de isoniazida, um
piridoxina por dia e complexo de vitamina B. componente do tratamento para a tuberculose e
Dez dias depois de iniciar o tratamento para a uma causa de neuropatia periférica através da
tuberculose, a doente contacta o médico às 3 da manhã, depleção da vitamina B6 (piridoxina). Também foi
queixando-se de agravamento da dor nos pés e é-lhe referida neuropatia periférica como efeito
aconselhado apresentar-se na clínica às 8 da manhã nesse dia. secundário do cotrimoxazol (utilizado em doses
A doente comparece a essa hora, numa cadeira de rodas e mais elevadas para tratamento e em doses mais
com chinelos calçados, queixando-se de não conseguir baixas na profilaxia do tratamento para a
caminhar sozinha devido à dor nos pés, pelo que dorme o dia pneumonia por Pneumocystis jirovecii).
inteiro. Na consulta, são-lhe explicadas as causas e a
evolução da sua neuropatia periférica, agora de categoria Que medicamento utilizado para tratar a
sensorial 2 e motora 3. É iniciado um tratamento com 25 mg neuropatia periférica pode não ser adequado
de amitriptilina à noite, ibuprofeno e paracetamol, e a dose de para esta doente?
piridoxina é aumentada para 50 mg por dia. Os níveis de A carbamazepina pode não ser ,adequada uma vez
vitamina B12 e de folato são normais e as provas de ferro que induz o metabolismo do efavirenz e da
sugerem uma anemia de doenças crónicas. nevirapina através do sistema 3A4 do citocromo
Três dias mais tarde, contacta o médico à 1 da P450.
manhã e queixa-se de que a dor nos pés não ficou resolvida.
É-lhe pedido mais uma vez que se desloque até à clínica e é
novamente avaliada com neuropatia periférica de categoria 2.
A piridoxina é aumentada para 75 mg por dia, a
219

Lembre-se da escada analgésica da OMS para o manejo da dor


1º Degrau: DOR LIGEIRA
Paracetamol (acetaminofeno), medicamentos anti-inflamatórios não esteróides (AINE's) e adjuvantes (se
necessário)
Os adjuvantes incluem (na presença de dor neuropática): antidepressivos tricíclicos, anticonvulsivantes,
esteróides
2º Degrau: DOR LIGEIRA A MODERADA
Opióides fracos + não opióides do 1º degrau e adjuvantes (se necessário)
Opióides fracos: codeína, dihidrocodeína, dextropropoxifeno
3º Degrau: DOR MODERADA A INTENSA
Opióides fortes + não opióides do 1º degrau e adjuvantes (se necessário)
Opióides fortes: morfina, diamorfina, fentanil, hidromorfona

Referências
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antiretroviral therapy. S Afr Med J 2008;98:
889-92.
220

Gestão da Dor Crónica Não Oncológica


221

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 27
Dor nas Costas Crónica Inespecífica
Mathew O.B. Olaogun e Andreas Kopf

Descrição de caso 1
sinal de Lasègue (elevação da perna estendida em posição de
Um engenheiro químico de 27 anos que sofre de dor nas decúbito dorsal) é negativo. Consegue sentar-se a partir da
costas há 10 anos é referenciado para fisioterapia. posição em decúbito dorsal, sem dor. Com o doente decúbito
Apresentou-se com uma radiografia recente que não ventral, o teste de Ely (extensão da anca com joelho
evidenciava qualquer patologia grave, para além de uma estendido) é negativo e a extensão lombar não provoca dor.
rectificação da lordose lombar. A dor é constante mas é Por conseguinte, não existe qualquer evidência de discopatia,
aliviada com repouso e irradia num padrão não radicular de osteoartrite facetária ou de estenose espinal lombar.
para o membro superior. O doente fez vários períodos de O doente sente-se bastante desiludido com o facto de
diversos medicamentos, em particular analgésicos, sem o médico não lhe prescrever um analgésico forte ou propor uma
melhoria álgica duradoura. A dor nas costas é muitas vezes intervenção cirúrgica. Não se mostra muito entusiasmado com
exacerbada quando se tenta levantar a partir de uma posição as extensas explicações acerca da estrutura e da patomecânica
deitada ou sentada, e o doente sofreu frequentemente dor à da coluna vertebral. Na educação postural do doente foi
volta da cintura. Quando questionado, o doente queixa-se de utilizado um modelo em plástico para demonstrar as técnicas
que o transporte de cargas pesadas lhe lesou a coluna de elevação correctas (não excedendo 70% do peso corporal) e
vertebral. Sofreu o primeiro episódio de dor aguda com cerca a postura correcta na posição sentada, tendo sido explicada
de 16 anos, quando estava a transportar um barril de 50 kg simultaneamente as reservas funcionais extraordinárias da
de água (cerca de 100% ou mais do seu peso corporal na coluna vertebral. É aconselhado usar um suporte lombar
altura). A dor diminuiu depois de tomar medicação, mas portátil no carro e quando estiver sentado em cadeiras com um
nunca ficou totalmente sem dor desde então. A intensidade da design pouco ergonómico, bem como evitar o descanso
dor tem sido variável e o doente continuou a viver com ela, prolongado e cuidar demasiado de si mesmo. Ao sair do
mas consultava ocasionalmente um médico para pbter consultório, o doente – como já referimos – não estava
medicação. Agora, explica que se deslocou ao hospital totalmente convencido, pelo que ninguém esperava voltar a vê-
académico de Ile-Ife, em Lagos, na Nigéria, para que a dor lo. Curiosamente, voltou alguns dias mais tarde para a
seja tratada «de uma vez por todas» e afirma «mesmo que «consulta de educação postural» que tinha marcada e
seja necessária cirurgia». mostrou-se muito menos exigente quanto a intervenções
Durante o exame objectivo, a dor revela-se axial à invasivas; antes solicitou mais aconselhamento acerca da
volta de L3-L5, não referida e não radicular. O raio-X não etiologia e da prevenção da dor nas costas. Parecia estar
evidencia qualquer doença discal degenerativa. Quando está bastante motivado para alterar as suas atitudes e
deitado em decúbito dorsal sobre uma mesa, não sente dor e o comportamentos, com uma abordagem geral positiva em
relação ao futuro. Sentiu-se satisfeito com a atenção recebida e saiu com a esperança de um dia deixar de sentir dor.
Mais tarde, o seu estado foi revisto através de um contacto da medicação inicial, após um diagnóstico de instabilidade
telefónico. Parecia muito satisfeito ao telefone. Manifestou a lombar com espondilolistese considerável, foi sujeito a cirurgia
sua gratidão e afirmou que se sentia muito melhor. Realizou de fusão espinal ao nível de L4/L5. Quando regressou à
de forma rigorosa os exercícios prescritos e cumpriu as Nigéria, passadas cerca de 10 semanas, já não sentia dor,
instruções profilácticas sem qualquer exacerbação da dor na mas continuava com restrições nos movimentos. O seu estado
cintura. Uma vez que isto não acontece frequentemente com os tem-se mantido estável desde então. O médico local (o próprio
doentes com a mesma síndrome de dor, esta notícia foi filho) observou-o com um sorriso radiante – sem dor durante
também muito animadora para os terapeutas. a caminhada e sem quaisquer sintomas nas costas ou na
coxa. Papa retomou de imediato o trabalho e continua a
Descrição de caso 2 cumprir os 30 minutos diários em posição de decúbito dorsal
no seu gabinete.
Um farmacêutico de 71 anos (Bapa) recebe tratamento O caso aqui descrito não ilustra um «doente
conservador para a dor nas costas há cerca de 3 anos. O com dor lombar inespecífica» típico, mas sim um
regime de tratamento, para além dos analgésicos ocasionais doente com «dor específica», devido à estenose
tomados anteriormente, consistiu em exercícios de extensão espinal funcional causada pela espondilolistese.
das costas, tratamentos manuais da coluna vertebral, Embora sejam desejáveis técnicas conservadoras,
termoterapia e educação acerca dos cuidados com as costas. recomenda-se as técnicas não farmacológicas, como
Embora seja farmacêutico, Bapa não recorreu a medicação a terapêutica pelo exercício, a terapêutica
sintomática para tratar a sua dor crónica de costas. Por comportamental e a educação sobre os cuidados das
vezes, a dor irradiava para a parte posterior da coxa, o que costas e o cumprimento da utilização de dispositivos
pode indicar «dor referida» das articulações facetárias ou da de auxílio à reabilitação. De outro modo,
articulação ílio-sacra. intervenções específicas, incluindo cirurgia como a
Um dos resultados significativos alcançados durante descrita acima, podem proporcionar um alívio de
o tratamento foi o facto de que a dor se atenuava geralmente longa duração na dor nas costas. É fundamental
quando estava deitado em posição de decúbito dorsal ou distinguir entre dor nas costas inespecífica (muito
ventral. Bapa foi assim aconselhado que instalasse uma mesa frequente) e dor nas costas específica (rara), a fim de
no seu gabinete, numa área anexa ao escritório, e que se evitar o agravamento da dor inespecífica através de
deitasse sobre a mesa no intervalo do almoço, a fim de técnicas interventivas e analgésicas, e para evitar
descomprimir de forma contínua a pressão intradiscal. O sofrimento desnecessário aos doentes com dor
doente cumpriu a recomendação. específica a necessitarem de terapêutica local – e por
No entanto, a dor nas costas impedia Bapa de vezes invasiva – bem como analgésicos para
realizar grandes caminhadas. Foi aconselhado o uso um colete melhorarem.
dorso-lombar (apropriado para doentes com instabilidade que
não têm acesso a cirurgia de estabilização), bem como muletas Porque é tão frequente a dor
com apoio de cotovelos para alívio parcial do peso sobre as nas costas crónica?
articulações lombares e lombo-sagradas. O corpete e as
muletas eliminaram a dor nas costas e na parte posterior da
A dor nas costas inespecífica crónica é muito
coxa, no entanto, começou a sair menos, uma vez que,
comum. Poucos de nós nunca chegam a sofrer dor
meramente por razões estéticas, se sentia angustiado com o
nas costas; a maior parte das pessoas sofre de dor
facto de ter de usar tais auxílios. Confessou que se sentiu
nas costas periódica e algumas sofrem de dor
muitas vezes envergonhado pelo facto de as pessoas olharem
crónica. A dor crónica situa-se principalmente na
para ele ou lhe perguntarem porque andava de muletas.
região lombo-sagrada e na zona posterior do
Queixou-se e sentia que ainda se podia ir mais além para
pescoço.
aliviar a dor sem ter de usar o corpete e as muletas.
Nos países industrializados, a lombalgia
No final de 2006, os filhos propuseram-lhe que
baixa (LB) é a causa mais comum de limitação de
fosse submetido a um tratamento no estrangeiro. Para além
actividades em pessoas com idades inferiores a 45
223

anos. É definida como uma dor na região lombo- tanto os médicos como os doentes devem
sagrada que persiste mais de 12 semanas. Embora a questionar se a causa da dor é mais psicossomática
LB aguda tenha um prognóstico favorável, o efeito do que meramente somática. Os factores físicos e
da LB e da incapacidade associada na sociedade são não físicos, interligados de forma complexa,
tremendas. Por exemplo, cerca de 80% dos influenciam a transição de LB aguda para LB
americanos sentem LB durante as suas vidas. crónica. A identificação de todos os factores físicos
Estima-se que 15-20% desenvolvam dor prolongada e não físicos contributivos permite ao médico
e cerca de 2-8% têm dor crónica. Todos os anos, 3- conceber uma abordagem abrangente com a maior
4% da população fica temporariamente incapacitada probabilidade de sucesso.
e 1% da população em idade activa fica total e
permanentemente incapacitada devido a LB. Por que razão a dor nas
Estima-se que os custos da LB rondem os 30 mil
milhões de dólares por ano nos Estados Unidos.
costas é um problema
mundial?
Porque é tão importante a
«regra das 6 semanas»? Nas sociedades industrializadas, a incapacidade
causada pela LB alcançou proporções endémicas,
com enormes consequências socioeconómicas.
A maior parte dos tecidos conjuntivos normais
Estudos indicam que a prevalência de LB não
saram em 6-12 semanas, a menos que esteja
depende tanto de factores genéticos que possam
presente instabilidade ou destruição maligna ou
predispor as pessoas de uma etnia ou raça específica
inflamatória dos tecidos. Por conseguinte, em
para esta perturbação. Homens e mulheres são
qualquer tipo de dor de costas prolongada, estas
afectados de igual modo. No entanto, o estilo de
etiologias da dor devem ser excluídas. A dor que
vida pode ser um dos mais importantes factores de
irradia para as pernas num padrão radicular deve ser
predisposição para a LB. Consequentemente, a LB
rigorosamente investigada, em particular se forem
começa a tornar-se num problema major de saúde
observadas perturbações sensoriais ou motoras no
em todos os países em que, devido a alterações
doente.
económicas e sociais, se estão a transformar em
sociedades modernas industrializadas, para benefício
Se as etiologias de dor dos cidadãos.
referidas anteriormente
forem excluídas e a dor nas Em que situações a dor de
costas persistir, como deve costas periódica é
ser interpretada a dor? considerada «normal» e a
dor de costas crónica é
Deve evitar-se sobreinterpretar os resultados de considerada «anómala»?
uma TC ou RM. Embora as protrusões discais
tenham sido popularizadas como causas de LB, são
A coluna lombar consegue suportar cargas pesadas
comuns as hérnias discais assintomáticas em TC e
relativamente à sua zona transversal. Resiste ao
RM, mesmo em jovens adultos. Além disso, não
movimento gravitacional anterior mantendo a
existe uma relação clara entre a extensão de
lordose numa postura neutra. Ao invés da coluna
protrusões discais e o grau de sintomas clínicos. Por
torácica, a coluna lombar não é suportada
conseguinte, devem ser consideradas outras causas
lateralmente. Os discos intervertebrais são
para uma LB persistente. Se os estudos de
compostos pelo anel fibroso externo e o núcleo
diagnóstico não revelarem qualquer causa estrutural,
pulposo interno. A parte externa do anel insere-se
no corpo vertebral e aloja nociceptores e relembrar que, geralmente, a proporção de doentes
terminações nervosas proprioceptivas. A parte com dor nas costas específica é relativamente baixa
interna do anel engloba o núcleo, fornecendo força (cerca de 5%). Por um lado, as causas da dor
adicional ao disco durante a compressão. mencionadas anteriormente nunca devem ser
O núcleo pulposo de um disco intervertebral ignoradas, por outro lado, deve evitar-se
saudável constitui dois terços da superfície do disco sobreinterpretar os resultados radiográficos.
e suporta mais de 70% da carga compressiva. Até à Em termos práticos, a dor ininterrupta em
terceira década de vida, o gel contido no núcleo repouso deve sugerir uma causa grave, como cancro
pulposo interno é composto por cerca de 90% de ou infecção. Os estudos por imagiologia e as
água. No entanto, o teor de água diminui análises ao sangue são geralmente obrigatórios
gradualmente ao longo das quatro décadas nestes casos e também em casos de défice
seguintes, até cerca de 65%. Até à terceira década de neurológico progressivo. Outros sinais históricos,
vida, cerca de 85% do peso é transmitido através do comportamentais e clínicos que devem alertar o
disco. Contudo, à medida que a altura dos discos médico para uma etiologia não mecânica exigem
diminui e que o eixo biomecânico de carga se uma avaliação para diagnóstico.
desloca posteriormente, as articulações posteriores Os seguintes «sinais de alerta» (red flags) de
(articulações facetárias) suportam uma maior diagnóstico podem constituir evidência de dor nas
percentagem da distribuição do peso. O costas específica:
crescimento ósseo compensa este aumento da  Cólicas ou dor associada à função (ou
tensão biomecânica, a fim de estabilizar o complexo disfunção) visceral.
triarticulado.  História de cancro ou fadiga, ou ambos, e
Assim, até determinada medida, a hipertrofia perda de peso.
das facetas e a excrescência óssea dos pratos  Febre ou estado imunocomprometido.
vertebrais constitui uma reacção fisiológica normal à
 História de velhice e osteoporose (com risco
degenerescência dos discos dependente da idade,
acrescido de fracturas).
com o fim de estabilizar a coluna. Estas alterações
 Disfunção neurológica progressiva ou
contribuem para um estreitamento do canal
disfunção intestinal e/ou vesicular.
foraminal e do canal central apenas em doentes com
uma «auto-estabilização» inadequada. A estenose  Rigidez matinal grave enquanto primeira
espinhal alcança o seu pico numa fase mais tardia da queixa.
vida e pode causar síndromes radiculares, Dor inespecífica
mielopáticas ou vasculares, como a pseudo- Os seguintes «sinais de alerta» de diagnóstico podem
claudicação e a isquémia da medula espinhal. A LB é constituir evidência de dor de costas inespecífica
mais comum nas fases precoces de degenerescência (sinais e sintomas não orgânicos):
discal e «auto-estabilização».  Dissociação entre comportamentos verbais
e não verbais.
Que tipos de dor podem ser  Recurso a descrições afectivas da dor.
identificados?  Pouca modulação da dor, com intensidade
elevada contínua.
Dor específica  Ganhos associados à lesão compensável,
A dor nas costas que dura mais de 3 semanas com desemprego, busca de incapacidade (conflito
disfunção funcional considerável deve ser avaliada de interesses entre compensação e desejo de
de forma aprofundada, a fim de identificar causas se restabelecer).
graves, em especial doenças malignas (por ex.  Sinais de depressão (dificuldade em
metástase óssea), inflamação (por ex. adormecer, despertar cedo de manhã, perda
espondilodiscite) ou compressão local (por ex. de interesse, de energia e dinamismo, em
compressão espinal ou foraminal). Convém
225

particular no início do dia) e ansiedade com sinais de dor, rigidez articular e


(preocupação e agitação constantes). degenerescência. Curiosamente, não existe qualquer
 Procura de medicamentos psicoactivos. correlação forte entre a imagiologia e a dor. Por
 História de tratamentos cirúrgicos ou conseguinte, o diagnóstico é estritamente clínico
clínicos repetidamente falhados. (dor a irradiar para as nádegas e aspectos dorsais do
membro superior, provocados por retroflexão das
Dor discogénica costas e/ou rotação). Infelizmente, os efeitos a
Inúmeros estudos demonstraram que o disco longo prazo das injecções locais de esteróides na
intervertebral e outras estruturas do segmento de articulação ou nas suas imediações, bem como a
movimentação espinal podem causar dor. Contudo, ablação eléctrica dos nervos que inervam as
ainda não está claro o motivo pelo qual as articulações («bloqueio do ramo médio») não
síndromes de dor mecânica de costas se tornam demonstraram quaisquer efeitos a longo prazo.
frequentemente crónicas, com persistência da dor
para além do período normal de cura da maior parte Dor sacro-ilíaca
das lesões de tecidos moles ou articulações. Os A articulação sacro-ilíaca recebe a sua principal
factores inflamatórios podem ser responsáveis pela inervação dos ramos dorsais dos quatro primeiros
dor nalguns casos, sendo que, nestes casos, as nervos sagrados. A artrografia ou injecção de
injecções epidurais de esteróides proporcionam soluções irritantes na articulação sacro-ilíaca causa
alívio. Os corticosteróides inibem a produção de dor com padrões variáveis de dor local e referida na
ácido araquidónico e seus metabolitos região das nádegas, na região lombo-sagrada, nos
(prostaglandinas e leucotrienos), inibindo a membros inferiores e nas virilhas. Determinadas
actividade da fosfolipase A2 (PLA2).Os níveis de manobras (por ex. teste de Patrick) também podem
PLA2, que tem uma função na inflamação, são provocar uma dor típica. Os bloqueios locais por
elevados em amostras cirurgicamente extraídas de vezes aceleram a recuperação e facilitam a
discos humanos herniados. Além disso, a PLA2 fisioterapia. Em particular em homens adultos
pode ter uma função dupla: incitar a jovens, deve ser excluída a doença de Bechterew
degenerescência discal e sensibilizar as fibras (espondilite anquilosante).
nervosas do anel.
Dor muscular
Dor radicular Na maior parte das vezes, a dor muscular é a causa
Curiosamente, a fisiopatologia da dor radicular não da dor de costas crónica. Os receptores de dor nos
é clara. As etiologias prováveis incluem compressão músculos são sensíveis a uma variedade de
nervosa causada por estenose foraminal, isquemia e estímulos mecânicos e à sobrecarga biomecânica. A
inflamação. A causa da radiculopatia é ansiedade e as perturbações depressivas têm
frequentemente multifactorial e mais complexa do frequentemente um papel importante na
que a disfunção neuronal devida a impacto sustentação da dor muscular devido à «reacção de
estrutural. Na prática clínica, a disfunção estrutural é alerta», com um aumento contínuo da tensão
geralmente considerada responsável se for detectada muscular. A dor muscular pode ser descrita como
inflamação. Por conseguinte, são utilizadas na «dor miofascial» se os músculos estiverem
terapêutica injecções de esteróides epidurais, contraídos, com aumento da tonicidade e da rigidez,
frequentemente para-radiculares, embora o seu e apresentarem «pontos gatilho» (pequenos nódulos
efeito a longo prazo seja um tanto questionável. sensíveis identificados aquando da palpação
Dor nas articulações facetárias muscular, com irradiação para zonas de referência
Os processos articulares superiores e inferiores das localizadas). Na maioria dos doentes, a dor
lâminas vertebrais adjacentes formam as articulações miofascial é o resultado de uma combinação de
facetárias ou zigapofisárias, as quais partilham forças factores: a «reacção de alerta», traumatismo directo
compressivas com o disco intervertebral. Após um ou indirecto, exposição a tensão cumulativa e
traumatismo ou com uma inflamação, podem reagir
repetitiva, disfunção postural e descondicionamento instrumento de diagnóstico eficaz quando os níveis
físico. espinais e neurológicos são bem identificáveis e se
Ao nível celular, presume-se que o aumento suspeita de patologia óssea. A RM é mais útil
anómalo e persistente da libertação de acetilcolina quando os níveis espinais e neurológicos exactos são
na junção neuromuscular gera contracção muscular pouco claros, quando se suspeita de um problema
e um ciclo reverberatório contínuo. Se a dor de patológico da espinal medula ou dos tecidos moles,
costas muscular não se resolver em poucas semanas quando é possível a herniação discal, ou quando se
(geralmente considera-se crucial um período de 6 desconfia de uma causa infecciosa ou neoplásica
semanas), deve ser encarada como uma doença subjacente. Se a interpretação da RM ou da TC for
complexa com influências fisiológicas («biológicas»), difícil e se suspeitar de compressão de radicular ou
psicológicas e psicossociais (de acordo com o da espinal medula, a mielografia pode ser útil para
modelo psicossocial da evolução da dor crónica). obter uma imagem mais clara, especialmente em
Consequentemente, quando as terapêuticas locais doentes que foram sujeitos anteriormente a cirurgia
por si só não conseguem proporcionar um alívio da lombar espinal ou à colocação de um dispositivo de
dor a longo prazo, pode ser necessário um fixação metálico. Os testes não radiográficos
diagnóstico e uma análise terapêutica aprofundados, incluem electromiografia (EMG) e testes de
incluindo aspectos físicos, psicossociais e potenciais evocados somatosensoriais (PES) e
neuropsicológicos («terapêutica multimodal»). ajudam a localizar lesões nervosas, a fim de
Se a terapêutica adequada for adiada vários distinguir entre lesões mais antigas e mais recentes.
meses com tentativas de terapêuticas multimodais
como, por exemplo, apenas analgésicos ou Abordagens terapêuticas
injecções, os efeitos positivos a longo prazo das
abordagens terapêuticas multimodais tornam-se O repouso na cama é uma abordagem
improváveis ou muito limitados. terapêutica apropriada na dor nas costas?
O repouso na cama é apropriado apenas para a dor
Quais as estratégias de aguda com irradiação (ciática), mas não deve
diagnóstico na dor nas exceder 1 a 3 dias, a fim de evitar a inactividade e a
evicção progressivas, que reforçam
costas com duração comportamentos patológicos anómalos. Para todas
superior a 3 semanas? as dores miofasciais inespecíficas, a inactividade
teria efeitos fisiológicos prejudiciais, conduzindo ao
A dor ininterrupta em repouso e os restantes «sinais encurtamento muscular e de outros tecidos moles, a
de alerta da dor específica» devem levar a suspeitar hipomobilidade articular, a redução da força
de cancro ou infecção. Nestes casos, são muscular e a desmineralização óssea. Por
obrigatórios exames de imagiologia apropriados. conseguinte, o repouso na cama não deve ser
Em casos de défice neurológico progressivo, deve aconselhado. Deve sugerir-se ao doente que
recorrer-se à imagiologia sem demora, assim que continue as «actividades diárias normais», na medida
estiver disponível, ou o doente pode ser transferido do que for possível. Quaisquer recomendações de
para um local onde esteja disponível um sistema de repouso na cama reforçariam apenas
imagiologia. A radiologia lombar simples comportamentos cognitivos e de condicionamento
(anteroposterior e perfil) está indicada em primeira incorrectos («crenças de evicção causadas pelo
linha para identificar cancro, fractura, doença óssea medo»), resultando num círculo vicioso de descanso
metabólica e artropatia inflamatória. Nestas na cama – aumento do medo de se movimentar –
doenças, as técnicas de imagiologia de diagnóstico aumento da dor durante os movimentos devido a
mais sofisticadas (para além de caras e raras) não descondicionamento muscular – mais repouso na
acrescentarão quaisquer informações substanciais cama. Por estes motivos, o repouso na cama não é
para a maior parte dos doentes. A TC é um
227

de todo recomendado como tratamento da dor de prevenção da dor de costas crónica inespecífica é a
costas inespecífica. chave para o sucesso da terapêutica. Em todos os
Que medicações são recomendadas na dor de doentes, há que abordar questões como a obesidade
costas inespecífica? mórbida, o tabagismo, o estado físico geral e o grau
Infelizmente, inúmeros doentes com dor de costas de satisfação no trabalho, a fim de evitar o
inespecífica recebem um tratamento idêntico ao das aparecimento de dor de costas crónica inespecífica.
doenças específicas agudas causadoras de dor, com Uma orientação adequada e bem informada do
prescrições a longo prazo de analgésicos não doente parece ser o instrumento profiláctico e
esteróides, opióides e relaxantes musculares de terapêutico mais importante na dor de costas
acção central, embora não exista evidência na inespecífica. Os objectivos da abordagem da dor de
literatura de referência quanto à utilização destes costas crónica consistem em aliviar (parcialmente) o
fármacos neste âmbito, e uma série de normas de desconforto e (acima de tudo) melhorar ou
orientação terapêutica não as recomendem. Estão restabelecer a função física, psicológica e social. A
indicadas apenas alguns fármacos. Os abordagem implica conhecer a causa e a evolução da
antidepressivos tricíclicos em doses baixas a dor, educar os doentes de forma simples e
moderadas são úteis para aliviar as insónias, seleccionar modalidades e técnicas físicas e
melhorar a supressão de dor endógena, reduzir a psicológicas adequadas e «orientadas para os
disestesia dolorosa e ajudar o doente a lidar com a recursos». Para o bom êxito, é fundamental
dor. Se for diagnosticada uma disfunção depressiva, conseguir uma «motivação para a mudança» nos
serão necessárias doses mais elevadas. Nalguns doentes e educá-los acerca do que pode ser feito em
doentes, podem ser benéficas a gabapentina ou a termos de auto-cuidados.
pregabalina, bloqueadores do canal de cálcio com
efeito ansiolítico e de melhoria da qualidade do Pérolas de sabedoria
sono. Outros co-analgésicos e narcóticos só podem
ser usados se a dor for de origem oncológica,  A dor de costas crónica inespecífica é uma
crónica inflamatória ou degenerativa grave. das queixas mais frequentes dos doentes.
As técnicas terapêuticas invasivas são indicadas  É fundamental distinguir entre a dor de
na dor de costas inespecífica? costas inespecífica e a dor específica, dado
Em doentes cuidadosamente seleccionados, como que as técnicas terapêuticas diferem
doentes com afecção concomitante sacro-ilíaca ou consideravelmente. Esta distinção deve ser
das articulações facetárias, as injecções locais podem estabelecida o mais precocemente possível,
facilitar a recuperação com fisioterapia. São pois a dor de costas inespecífica tem
amplamente promovidas as injecções locais em tendência a progredir por si mesma em
tecidos moles paravertebrais, especificamente em poucas semanas ou meses, resultando assim
«pontos gatilho» miofasciais. No entanto, os numa doença difícil de tratar.
resultados dos estudos são bastante decepcionantes.  Os «sinais de alerta» (red flags) ajudam a
identificar as indicações de dor específica e
Se não se recomendam os analgésicos inespecífica.
convencionais e as técnicas invasivas, que
 Regra geral, os opióides, os AINE e os
terapêutica é mais indicada para a dor de costas
relaxantes musculares de acção central, bem
crónica inespecífica?
como os procedimentos invasivos, não são
Os programas multidisciplinares sobre dor
eficazes na dor de costas inespecífica e
comportamental e cognitiva comportamental têm-se
geram mesmo o risco de promover mais
revelado eficazes em muitos doentes, mas exigem
ainda o desenvolvimento da dor crónica.
pessoal dedicado, devidamente formado, bem como
Em contrapartida, o aconselhamento
recursos financeiros bastante elevados para
intensivo, a educação do doente, a activação
produzirem resultados. Por conseguinte, a
física e as intervenções comportamentais
revelaram-se eficazes.
 A comorbilidade psiquiátrica é frequente e
não deve ser ignorada.
 Um dos objectivos mais importantes nos
doentes com dor de costas crónica avançada
é a concentração de esforços terapêuticos na
melhoria funcional, mais do que na redução
da dor.

Referências
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Sítios na Web
http://www.rcep7.org/projects/handbook/back.pdf
229

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 28
Cefaleia
Arnauld Fumal e Jean Schoenen

Como se classifica a
cefaleia?
Cefaleia é a principal razão das consultas médicas e
Existem quatro grupos de cefaleias primárias: (1)
particularmente de consultas neurológicas. Um
enxaqueca, (2) tipo-tensão, (3) cefalalgias
grande número de anormalidades pode se
autonômicas trigeminais, e (4) outras cefaleias
apresentar com cefaleia, portanto é essencial uma
primárias. Os critérios das cefaleias primárias são
abordagem sistemática de classificação e diagnóstico
clínicos e descritivos e, com poucas exceções (i.e.,
da cefaleia tanto para o tratamento clínico quanto
enxaqueca hemiplégica familiar), são baseados em
para a pesquisa. A cefaleia foi mal classificada e
características da cefaleia e na exclusão de outros
definida ate 1988. Nessa época, a International
problemas, e não na etiologia. Em contrapartida, as
Headache Society (IHS) (Sociedade Internacional de
cefaleias secundárias são classificadas com base na
Cefaleia) publicou sua Classificação Internacional de
etiologia e são atribuídas a outras causas.
Distúrbios da Cefaleia (ICHD-1) onde as cefaleias
Como as cefaleias primárias são as mais comuns,
foram classificadas em 13 grupos principais. Essa
esta discussão se concentrará no diagnóstico e
classificação das cefaleias com critérios diagnósticos
tratamento dessas síndromes. A epidemiologia e a
operacionais foi um marco importante para o
experiência dos pacientes com cefaleia no mundo
diagnóstico clínico e é mundialmente aceita. Sua
em desenvolvimento não são claras porque a maior
segunda edição (ICHD-2) aprimorou a classificação
parte das pesquisas sobre cefaleia vem de um
de cefaleias específicas e aumentou o número de
número limitado de países de muitos recursos.
grupos para 14 (Tabela 1). Existem critérios
Quando procuradas, foram encontradas variações
diagnósticos explícitos para cada problema. Esses
regionais na incidência, prevalência e no ônus
critérios diagnósticos são muito úteis para os
econômico das cefaleias. Fatores sociais, financeiros
clínicos porque contêm exatamente o que é preciso
e culturais podem influenciar a experiência do
obter dos pacientes durante o histórico. Apesar
paciente individual de cefaleia, e os pacientes em
disso, é surpreendente e decepcionante que os
locais de poucos recursos podem presumivelmente
pacientes com cefaleia continuem mal
sofrer um impacto ainda maior dessas influências.
diagnosticados e tratados na maioria dos países.
Tabela 1  A dor é uni ou bilateral?
Cefaleia tipo-tensão (forma episódica):
Critérios diagnósticos gerais (ICHD-2)
 É agravada por atividade física?
Critérios diagnósticos gerais  A presença de zonas desencadeantes e a
A. Cefaleia durando de 30 minutos a 7 dias. qualidade lancinante sugerem nevralgia.
B. Pelo menos duas das seguintes características da dor:  Existe a aura da enxaqueca?
Localização bilateral
Qualidade de pressão/aperto (não pulsátil)  Muito importante, existem outros sintomas
Intensidade leve ou moderada como náusea, hipersensibilidade à luz e som,
Não agravada por atividade física rotineira como ou sintomas autonômicos como
caminhar ou subir escadas lacrimejamento, nariz entupido, sudorese,
C. Ambas as seguintes:
ptose ou miose?
1. Sem náusea ou vômitos (pode ocorrer anorexia)
2. Apenas fotofobia ou fonofobia, não as duas juntas. A próxima pergunta é se o paciente tem um ou
D. Não atribuível a outros distúrbios mais tipos diferentes de cefaleia. Isso precisa ser
elucidado cuidadosamente. A razão da consulta
Quais são os problemas médica tem que ficar clara. É porque a cefaleia
normal está piorando ou é devido a um novo
importantes para não tipo de cefaleia? Temos que ter em mente que se
especialistas em cefaleia? a cefaleia é a quinta queixa mais comum nos
departamentos de emergência norte-americanos,
Cuidar de um paciente com cefaleia requer acima de a minoria desses pacientes tem uma causa
tudo um histórico completo e um exame físico que secundária para a cefaleia, e um número ainda
inclua um exame neurológico. Em primeiro lugar, é menor tem uma causa grave e potencialmente
preciso distinguir entre cefaleia primária e catastrófica para a cefaleia, como meningite ou
secundária. Para avaliar a probabilidade de uma hemorragia subaracnóidea.
cefaleia secundária sintomática, a característica mais Na prática clínica, sabe-se que os pacientes
crucial, além do exame clínico, é a duração da podem não identificar facilmente nem lembrar
cefaleia. Os pacientes com um histórico curto de algumas características de sua cefaleia, como
exigem atenção imediata e podem precisar de a presença e o tipo de sintomas de aura,
investigação complementar rápida, enquanto aqueles sintomas associados específicos, e a coexistência
com histórico longo de cefaleia em geral requerem de vários tipos de cefaleia. Portanto, o uso de
tempo e paciência ao invés de pressa e exames por instrumentos de monitoramento se torna crucial
imagens. Pacientes com histórico de cefaleia há mais para o diagnóstico desses problemas. Com
de 2 anos, definitivamente têm cefaleia primária. As diários e agendas de cefaleia é possível registrar
bandeiras vermelhas (vide Tabela 2) que podem prospectivamente as características de cada
alertar para a possibilidade de cefaleia secundária ataque, aumentando a precisão da descrição e
incluem dor súbita, febre, mudança acentuada no tornando possível a distinção entre tipos
caráter e no tempo da dor, rigidez da nuca, dor coexistentes de cefaleia.
associada a distúrbios neurológicos como disfunção Mais ainda, os diários das cefaleias dão ao
cognitiva ou fraqueza, e dor associada a médico informações sobre outras características
sensibilidade local, por exemplo, da arterial temporal importantes, como a frequência e o padrão
superficial. temporal dos ataques, ingestão de
Pacientes com início recente de cefaleia ou com medicamentos, e a presença de fatores
sinais neurológicos requerem no mínimo imagens desencadeantes. O uso de medicamentos agudos
cerebrais com tomografia computadorizada (TC) ou pode ser ajustado para uma dose ideal. O uso
ressonância magnética (RM). As perguntas a seguir frequente (10 dias ou mais por mês) de
são cruciais para classificar as cefaleias primárias: medicação aguda é um alerta para cefaleia por
 Frequência e duração dos ataques. uso excessivo de medicamentos. O diário pode
até ser mandado para os pacientes antes da
 Gravidade da cefaleia.
231

primeira consulta porque ele pode melhorar o denominador diagnóstico comum, algumas
diagnóstico clínico da primeira entrevista. características clínicas como o tipo dos sintomas
de aura, intensidade da dor, presença de
Tabela 2 pródromos, coexistência de enxaqueca com e
Critérios diagnósticos para enxaqueca com aura sem aura, ou sintomas associados como
(ICHD-2)
vertigem, podem caracterizar subgrupos de
Critérios diagnósticos para enxaqueca com aura
A. Pelo menos 5 ataques preenchendo os critérios B-D pacientes com diferentes mecanismos
B. Ataques de cefaleia durando 4-72 horas (não tratados fisiopatológicos e genéticos subjacentes.
ou tratados sem sucesso) Na enxaqueca, os sintomas premonitórios e os
C. Pelo menos duas das seguintes características da dor: fatores desencadeantes são vários e podem
Localização unilateral
variar entre pacientes e durante o curso da
Qualidade pulsátil
Intensidade moderada a grave doença. Os sintomas premonitórios relatados
Agravamento por, ou levando a evitar atividades físicas com mais frequência são fadiga, fonofobia e
rotineiras (por ex., caminhar, subir escadas) bocejos. Com relação aos fatores
D. Durante a cefaleia, um dos seguintes: desencadeantes, os mais comuns são estresse,
1. Náusea e/ou vômitos
período perimenstrual e álcool. O uso abusivo
2. Fotofobia e fonofobia
E. Não atribuível a outros problemas de medicamentos agudos antienxaqueca,
particularmente a combinação de analgésicos e
O que é essencial saber ergotamina, é outro fator subestimado que leva
à cronificação.
sobre enxaqueca? Se a enxaqueca é uma condição benigna, a
gravidade e a frequência dos ataques podem
A enxaqueca é a causa mais comum de cefaleia resultar em importante incapacidade e redução
recorrente episódica. A enxaqueca afeta da qualidade de vida, mesmo entre um ataque e
aproximadamente 12% das populações outro. Embora a enxaqueca seja uma das razões
ocidentais e sua prevalência é mais alta em mais comuns para os pacientes consultarem o
mulheres (18%) do que em homens (6%). A médico, e apesar de seu enorme impacto, ela
enxaqueca é uma cefaleia recorrente que se ainda é sub-reconhecida e sub-tratada. A falta de
manifesta em ataques que duram entre 4 e 72 reconhecimento tem várias razões. Por um lado,
horas. As características típicas dessa cefaleia não existem marcadores biológicos para
são localização unilateral, qualidade pulsante, confirmar o diagnóstico e vários médicos não
intensidade de moderada a grave, agravação por têm conhecimento, tempo, interesse, ou os três,
atividades físicas rotineiras, e associação com para tratar migranosos. Por outro lado, não
náusea e/ou fotofobia e fonofobia (vide Tabela existe cura para a enxaqueca e embora existam
3 para os critérios diagnósticos da ICHD-2 para terapias eficazes elas têm apenas eficiência
enxaqueca sem aura). parcial ou não são acessíveis. Finalmente, a
A cefaleia pode ser precedida por uma aura, a percepção da enxaqueca pode variar entre as
assim-chamada enxaqueca com aura, em 15- culturas, e algumas tendem a negar ou tornar
20% dos pacientes. A aura pode durar entre 5 e trivial sua existência. Como resultado, uma
60 minutos. O tipo mais comum é a aura visual, parcela de indivíduos afetados não procura (ou
que causa escotomas, teicopsia, espectros de desistiu de procurar) ajuda médica.
fortificação e fotofasias. Também pode ter A enxaqueca é uma distúrbio neurovascular (i.e.,
outros sintomas neurológicos, como parestesia estão envolvidos fatores neuronais e vasculares)
focal, alterações da fala e enxaqueca no qual suscetibilidades genéticas levam à hiper-
hemiplégica, um déficit motor unilateral. A reação do cérebro provavelmente
heterogeneidade do fenótipo clínico da metabolicamente vulnerável a estímulos,
enxaqueca é subestimada. Apesar de um estabelecendo um “limiar da enxaqueca” onde
fatores desencadeantes podem agir para A cefaleia migrânea resulta provavelmente da
precipitar o ataque. O consenso hoje é que a ativação do sistema trigeminovascular, o
aura da enxaqueca é causada pelo fenômeno principal sistema de sinalização da dor do
neurônio-glial da assim-chamada “depressão cérebro visceral, composto de aferentes
cortical alastrante”, onde uma breve frente de nociceptivos que pertencem à porção visceral do
despolarização neuronal (“cintilações”) é nervo oftálmico (V1) e vasos sanguíneos
seguida por uma onda de parada de atividade menígeos circulantes. A relação patogênica
neuronal devida à hiperpolarização; as duas se precisa entre aura e enxaqueca não está
espalham pelo córtex a uma velocidade de 3-5 totalmente clara.
mm/minuto.

Tabela 3
Sintomas típicos de enxaqueca e cefaleia tipo-tensão
Enxaqueca Cefaleia tipo-tensão
Relação sexo (F:M) 2 a 3:1 5:4
Dor
Tipo Pulsátil Qualidade de Pressão/aperto
(não pulsátil)
Gravidade Moderada a grave Intensidade leve ou moderada
Local Unilateral Bilateral
Agravada por atividade física Sim Não
rotineira
Duração do ataque 4 a 72 horas 30 minutos a 7 dias
Características autonômicas Não Não
Náusea e/ou vômitos Sim Não
Fotofobia e/ou fonofobia Sim, ambas Apenas uma das duas

Quais são as opções para , ele-, almo- e frovatriptano), que corrigiam


algumas desvantagens do sumatriptano. Uma
tratamento de enxaqueca grande metanálise de uma série de estudos
aguda? aleatórios controlados realizados com triptanos
confirmou que a forma subcutânea auto-
Durante a última década, o advento de agonistas injetável do sumatriptano (6 mg) tem a melhor
5-HT1B/1D altamente eficazes, os triptanos, foi eficácia, qualquer que seja o desfecho medido.
um grande avanço no tratamento. Os triptanos Existem diferenças entre os triptanos orais em
conseguem agir como vasoconstritores via algumas medidas de desfecho, mas na prática,
receptores 5-HT1B vasculares e inibir a liberação cada paciente precisa encontrar o triptano que
de neurotransmissores no terminal periférico e lhe dê a melhor satisfação.
central dos nociceptores trigeminais via No momento, a principal razão para não
receptores 5-HT1D/1B. O local de ação relevante considerar os triptanos como tratamento de
para sua eficácia na enxaqueca ainda é primeira opção para ataques de enxaqueca é seu
controverso; provavelmente, sua alta taxa de alto custo, e, em alguns pacientes, seus efeitos
eficácia seja devida à sua capacidade de agir em colaterais cardiovasculares. No entanto,
todos os três locais, ao contrário de outros estratificar o tratamento prescrevendo um
medicamentos antienxaqueca. O sumatriptano, triptano aos pacientes mais incapacitados tem se
o primeiro triptano, foi seguido por vários mostrado econômico. Em migranosos
triptanos de segunda geração (zolmi-, nara-, riza- severamente incapacitados, a taxa de eficácia do
sumatriptano injetável para um desfecho livre de
dor em 2 horas é o dobro do efeito dos
233

derivados do ergot ou AINEs tomados em altas associadas. O tratamento profilático também é


doses orais, e doses i.v. de lisinato de ácido útil para evitar que a enxaqueca episódica se
acetilsalicílico. O ganho terapêutico costuma ser transforme em cefaleia diária crônica com uso
claramente mais baixo para analgésicos simples exagerado de analgésicos (cefaleia por excesso
ou AINEs, como acetaminofeno (1.000 mg de medicação).
oral), aspirina efervescente (1.000 mg) ou A principal desvantagem dos profiláticos mais
ibuprofeno (600 mg), do que para triptanos clássicos (betabloqueadores sem atividade
orais quando ataques graves são considerados. simpatomimética intrínseca, ácido valpróico,
Para ataques leves e moderados, no entanto, foi antagonistas C2+, anti-serotoninérgicos e
difícil demonstrar a superioridade dos triptanos tricíclicos), que têm uma média de 50% de
orais em estudos aleatórios controlados. A eficácia, é a ocorrência de efeitos colaterais. Se a
combinação de analgésicos ou AINEs com um tentativa inicial é bem-sucedida para reduzir a
antiemético e/ou com cafeína, ou administrá-los frequência dos ataques sem causar efeitos
em supositório, aumenta claramente sua eficácia, colaterais crônicos importantes, a terapia
às vezes até o nível da eficácia dos triptanos. preventiva pode prosseguir por 6 meses. Após 6
Recentemente, a combinação de um triptano e meses, a dose deve ser gradualmente diminuída
um AINE em um único comprimido para o antes de interromper o tratamento. Se o
tratamento da enxaqueca resultou em benefícios tratamento não é bem-sucedido, a dose do
clínicos mais favoráveis, se comparados à medicamento deve ser aumentada até o máximo
terapia isolada, com um perfil de efeitos permitido, ou deve-se iniciar um novo
adversos aceitável e bem tolerado. tratamento preventivo.
Como era de se esperar, os triptanos não Recentemente, alguns novos profiláticos com
resolveram os problemas dos pacientes. Existe menos efeitos colaterais têm sido estudados.
espaço para tratamentos mais eficientes e Altas doses de magnésio ou ciclandelato são
seguros da enxaqueca aguda. Como os triptanos bem toleradas, mas pouco eficazes se
são contraindicados para pacientes com comparadas aos profiláticos clássicos. Um novo
distúrbios cardiovasculares, os agentes não tratamento preventivo da enxaqueca é uma alta
vasoconstritores são o santo graal da pesquisa dose de riboflavina (400 mg/d), que tem
terapêutica. Os agonistas receptores de excelente relação eficácia-efeitos colaterais e
serotonina 5-HT1F e um novo antagonista do provavelmente age por melhorar o potencial de
peptídeo relacionado ao gene da calcitonina fosforilação mitrocondrial. A coenzima Q10 (100
(CGRP) estão sendo atualmente investigados, mg 3 vezes ao dia), outro ator na cadeia
com resultados promissores. Os algoritmos de respiratória mitocondrial, também é eficaz para
tratamento devem ser inspirados pela a profilaxia da enxaqueca. O lisinopril (10 mg 2
experiência pessoal, pela situação fármaco- vezes ao dia), inibidor da enzima de conversão
econômica local e pela literatura disponível. da angiotensina, e mais ainda o candesartan (16
mg 2 vezes ao dia), inibidor da angiotensina II,
Quais são as terapias bem conhecidos para o tratamento de
hipertensão, mostraram-se úteis para a
profiláticas para a enxaqueca.
enxaqueca? Recentes resultados preliminares, porém
promissores, com novos compostos
O tratamento profilático antienxaqueca deve ser antiepilépticos como gabapentina, precisam ser
individualmente estabelecido para cada paciente, confirmados por grandes estudos aleatórios
levando em consideração o subtipo da controlados, enquanto que o topiramato foi
enxaqueca, a incapacidade resultante, o histórico eficaz em vários estudos controlados com
e as demandas do paciente, e as anormalidades placebo. A lamotrigina é até agora o único
medicamento preventivo que se mostrou eficaz nada mais do que dor na cabeça. O problema
para auras de enxaqueca, mas não para diagnóstico encontrado com mais frequência é
enxaquecas sem aura. Tratamentos não separar CT de enxaqueca leve. A CT é a forma
farmacológicos e fitoterápicos estão sendo cada mais comum de cefaleia, mas recebe muito
vez mais submetidos a estudos controlados, e menos atenção das autoridades de saúde, dos
alguns como butterbur (petasitos) se mostraram pesquisadores clínicos ou dos farmacologistas
claramente mais eficazes do que o placebo. industriais do que a enxaqueca. Isso é porque a
Várias terapias não farmacológicas (como maioria das pessoas com CT infrequente ou
biofeedback e intervenções psicológicas) se frequente nunca consulta o médico; tratam-se
mostraram eficazes para a profilaxia da sozinhas, se necessário, com analgésicos
enxaqueca. vendidos sem prescrição médica. No entanto, a
CT crônica, que causa cefaleia >15 dias por
Como se escolhe a terapia mês, representa um grande problema de saúde
com enorme impacto socioeconômico. Em um
farmacológica profilática da estudo baseado em populações, a prevalência ao
enxaqueca? longo da vida da cefaleia tipo-tensão foi 79%,
com 3% sofrendo de CT crônica, isto é, cefaleia
De maneira interessante, as recomendações para >15 dias por mês.
o tratamento profilático da enxaqueca variam Ainda é discutível se a dor da CT se origina de
em todo o mundo. Os betabloqueadores e o tecidos miofasciais ou de mecanismos centrais
valporato costumam ser as primeiras escolhas. A no cérebro. O progresso da pesquisa é
escolha do medicamento, porém, deve ser prejudicado pela dificuldade para obter
individualizada de acordo com o perfil de seus populações homogêneas de pacientes devido à
efeitos colaterais. Por exemplo, pacientes mais falta de especificidade das características clínicas
velhos podem se beneficiar das propriedades e dos critérios diagnósticos. O consenso atual,
anti-hipertensivas dos betabloqueadores, no entanto, é que é mais provável que
enquanto os mais jovens podem sofrer bastante mecanismos periféricos da dor tenham uma
com a sedação induzida por betabloqueadores. função na CT episódica infrequente e na CT
Além dos medicamentos da lista, existem outras episódica frequente, enquanto que a
opções farmacológicas com evidências mais disnocicepção central é predominante em TC
fracas, inclusive magnésio (24 mmol por dia, crônica.
principalmente para enxaqueca associada ao Analgésicos simples (por ex., 600 a 1.200 mg/d
período menstrual), petasitos (butterbur), tanacetum de ibuprofeno) são o esteio do tratamento da
parthenium (matricária), candesartan (16 mg por CT episódica. A combinação de analgésicos,
dia). A coenzima Q10 (100 mg 3 vezes ao dia) e triptanos, relaxantes musculares e opióides não
riboflavina (400 mg por dia). deve ser usada, e é crucial até evitar o uso
frequente e excessivo de analgésicos simples
O que é essencial saber para evitar o desenvolvimento de cefaleia por
uso excessivo de medicamentos. Deve-se
sobre cefaleia tipo-tensão? considerar a farmacoterapia em pacientes com
cefaleia por mais de 15 dias por mês (CT
A cefaleia tipo-tensão (CT) é uma síndrome mal crônica). O tratamento profilático é útil para
definida e heterogênea cujo diagnóstico é impedir que a CT episódica se transforme em
baseado principalmente na ausência das cefaleia por uso excessivo de medicamentos. O
características de outras cefaleias, como antidepressivo tricíclico amitriptilina é o
enxaqueca (vide Tabelas 4 e 5 para os critérios medicamento de primeira linha para o
diagnósticos). Portanto, ela é acima de tudo uma tratamento profilático de CT crônica, mas
cefaleia “sem características”, caracterizada por estratégias de tratamento não farmacológico
235

(relaxamento, biofeedback, fisioterapia) são amitriptilina. Se a cefaleia melhorou pelo menos


igualmente eficazes. A dose inicial dos tricíclicos 80% em 4 meses, é razoável tentar interromper
deve ser baixa: 10-25 mg de amitriptilina ao a medicação. Reduzir a dose diária em 20-25%
deitar. Muitos pacientes vão ficar satisfeitos com por 2-3 dias pode evitar cefaleia de rebote. Os
essa baixa dose. A dose média de amitriptilina melhores resultados são obtidos com a
para CT crônica, no entanto, é 75-100 mg ao combinação de tricíclicos e terapia de
dia. Se o paciente não melhorar o suficiente com relaxamento.
essa dose, pode-se tentar doses mais altas de
Tabela 4
Bandeiras vermelhas no diagnóstico da cefaléia
Bandeiras vermelhas A considerar Possíveis investigações
Cefaleia de início súbito Hemorragia subaracnóidea, Neuroimagens, punção lombar (após neuroimagem)
sangramento cerebral, lesão de
massa (principalmente fossa
posterior)
Cefaleia com padrão de piora Lesão de massa, hematoma Neuroimagem
subdural, uso excessivo de
medicação
Cefaleia com doença sistêmica Meningite, encefalite, doença de Neuroimagem, punção lombar, biópsia, hemogramas
(febre, rigidez da nuca, erupção Lyme, infecção sistêmica, doença
cutânea) vascular colágena, arterite
Sinais ou sintomas neurológicos Lesão de massa, malformação Neuroimagem, avaliação vascular do colágeno
focais, que não aura típica visual ou arteriovenosa, doença vascular
sensorial colágena
Papiledema Lesão de massa, pseudotumor, Neuroimagem, punção lombar (após neuroimagem)
encefalite, meningite
Cefaleia desencadeada por tosse, Hemorragia subaracnóidea, lesão Neuroimagem, considerar punção lombar
esforço ou Valsalva de massa
Cefaleia durante gravidez ou pós- Trombose da veia cortical/seio Neuroimagem
parto craniano, dissecação da carótida,
apoplexia pituitária
Novo tipo de cefaleia em paciente Metástase, meningoencefalite, Neuroimagem e punção lombar para todas
com câncer, doença de Lyme ou infecção oportunística
HIV
Fonte: Bigal ME, Lipton RB. Headache Pain 2007;8:263-72

Tabela 5
Critérios de seleção de tratamento farmacológico profilático da enxaqueca
Medicamento e Dose Efeitos Adversos Selecionados
Ácido valpróico, 500-1.000 mg diários à Toxicidade hepática, sedação, náusea, ganho de peso, tremor, teratogenicidade,
noite (liberação lenta) possível toxicidade do medicamento, perda de cabelo, torpor
Betabloqueadores Perda de energia, cansaço, sintomas posturais, contraindicados na presença de
Propranolol, 40-240 mg asma.
Bisoprolol, 2,5-10 mg
Metoprolol, 50-200 mg
Flunarizina, 5-10 mg diários Torpor, ganho de peso, depressão, parkinsonismo
Topiramato, 25-100 mg 2 vezes ao dia Parestesias, fadiga, náusea, disfunção cognitiva
Amitriptilina, 25-75 mg à noite Ganho de peso, boca seca, sedação, torpor.
Metisergida, 1-4 mg diários Torpor, cãibra nas pernas, perda de cabelo, fibrose retroperitoneal (necessário um
mês de “férias” do medicamento a cada seis meses).
Gabapentina, 900-3.600 mg diários Tontura, sedação
Lisinopril, 10-20 mg diários Tosse
L/minuto através de uma máscara facial de não
O que é essencial saber reinalação por 15 a 20 minutos pode ser eficaz
em até 60-70% dos casos, mas a dor costuma
sobre cefaleia em salvas e voltar. O objetivo da terapia preventiva é
outras cefalalgias produzir a remissão rápida da crise e manter
trigeminais autonômicas? essa remissão com efeitos colaterais mínimos até
que a crise de salvas termine de acordo com seu
histórico natural, ou por um período mais longo
As cefalalgias trigeminais autonômicas (CTAs) de tempo em pacientes com CS crônica. Os
são um grupo raro de síndrome de cefaleias que esteróides são muito eficazes para interromper
inclui cefaleia em salvas, hemicrania paroxística, uma crise. As injeções suboccipitais de
SUNCT (ataques de cefaleia nevralgiforme esteróides de liberação lenta devem ser
unilateral de curta duração com injeção preferíveis ao tratamento oral para diminuir o
conjuntival e lacrimejamento), e SUNC (ataques risco de “córtico-dependência". O veparamil é o
de cefaleia nevralgiforme unilateral de curta próximo medicamento preventivo de escolha,
duração com sintomas cranianos autonômicos). mas lítio, topiramato, metisergida ou
Embora raros, são importantes de reconhecer corticosteróides também podem ser usados.
devido à sua excelente, embora seletiva, resposta Dados funcionais de imagens sugerem que o
ao tratamento. Compartilham as mesmas hipotálamo é a origem da CS.
características em seu fenótipo de ataques de
cefaleia, que é uma dor forte unilateral, orbital,
periorbital ou temporal, com sintomas cranianos
A medicação para cefaleia
autonômicos ipsilaterais, como injeção pode produzir cefaleia?
conjuntival, lacrimejamento, bloqueio nasal,
rinorréia, edema palpebral e ptose. A distinção O uso excessivo de medicamentos agudos é o
entre as síndromes é feita de acordo com a fator mais frequente associado à transformação
duração e frequência dos ataques. da enxaqueca episódica em cefaleia diária
Como a cefaleia em salvas (CS) é a mais comum crônica. Essa última é chamada de “cefaleia por
das CTAs, vamos descrever apenas esse tipo de uso excessivo de medicação” (CUEM) na
cefaleia neste capítulo. CS tem prevalência de segunda edição da Classificação Internacional de
aproximadamente 0,3% e uma relação homem- Distúrbios da Cefaleia (ICHD-II, 2004). É
mulher de 3,5-7,1. Os ataques de CS são classificada como uma cefaleia secundária, que
estereotípicos, sendo graves ou excruciantes, pode evoluir de qualquer tipo de cefaleia
durando de 15-180 minutos, ocorrendo de uma primária, mas principalmente de enxaqueca
a oito vezes por dia, com sintomas autonômicos episódica e, em proporções menores, de cefaleia
ipsilaterais associados. Na maioria dos pacientes tipo-tensão. A CUEM é um problema
a CS tem uma periodicidade circanual e incapacitante de saúde que pode afetar 1-2% da
circadiana. O diagnóstico é baseado nos critérios população em geral.
da IHS para o fenótipo dos ataques, mas uma O tratamento mais eficaz da CUEM é a retirada
RM do cérebro com contraste deve ser feita abrupta do medicamento e a prescrição imediata
para eliminar uma CS secundária/sintomática. de um medicamento preventivo (um agente
Deve-se aconselhar aos pacientes com CS para antienxaqueca se a cefaleia primária é
que evitem álcool durante o período da salva. enxaqueca, ou tricíclicos no caso de CT), mas
Porque a dor da CS aumenta muito rapidamente não existem estudos comparando as diferentes
e agentes abortivos precisam agir rapidamente estratégias. No entanto, não existem diretrizes
para serem úteis. De longe, o mais eficiente é a claras mundialmente aceitas com relação à
injeção subcutânea de 6 mg de sumatriptano. A modalidade de retirada ou tratamento dos
inalação de oxigênio a 100%, a 10 a 12 sintomas de abstinência. Prednisona,
237

acamprosato, tizanidina e clomipramida orais, e


diidroergotamina intravenosa se mostraram
Referências
úteis para cefaleias de abstinência, mas os
[1] Cohen AS, Matharu MS, Goadsby PJ. Trigeminal autonomic
resultados são conflitantes; por exemplo, a cephalalgias: current and future treatments. Headache
prednisona apresenta resultados positivos e 2008;47:969–80.
negativos. Parece claro que após as primeiras 2 [2] Colas R, Munoz P, Temprano R, Gomez C, Pascual J.
Chronic daily headache with analgesic overuse: epidemiology
semanas de abstinência física é necessário tratar and impact on quality of life. Neurology 2004;62:1338–42.
por longo prazo e de forma abrangente o [3] Ferrari MD, Roon KI, Lipton RB, Goadsby PJ. Oral triptans
problema biopsicossocial desses pacientes para (serotonin 5-HT1B/1D agonists) in acute migraine treatment: a
meta-analysis of 53 trials. Lancet 2001;358:1668–75.
minimizar a recidiva. [4] Fumal A, Schoenen J. Current migraine management—
patient acceptability and future approaches. Neuropsychiatr Dis
Pérolas de sabedoria Treat 2008;4:1043–57.
[5] Fumal A, Schoenen J. Tension-type headache. Where are we?
Where do we go? Lancet Neurol 2008;7:70–83.
[6] Goadsby P. Recent advances in the diagnosis and
 As cefaleias recidivantes impõem um management of migraine. BMJ 2006;332:25–9.
ônus substancial aos que dela sofrem, à [7] International Headache Society. Th e International
sua família e à sociedade. Classification of
Headache Disorders. 2nd edition (ICHD-II). Cephalalgia
 Embora a cefaleia seja uma das razões 2004;24(Suppl 1):1–160.
mais comuns de os pacientes [8] Mateen FJ, Dua T, Steiner T, Saxena S. Headache disorders
consultarem o médico, e apesar de seu in developing countries: research over the past decade.
Cephalalgia 2008;28:1107–14.
enorme impacto, ela ainda é sub-
reconhecida e sub-tratada.
 O diagnóstico incorreto é
Sítios na Web
provavelmente a razão da falha do International Headache Society (IHS): http://www.i-h-s.org/
tratamento. É portanto essencial uma
abordagem sistemática da classificação e Following the listing by the World Health Organization of the
world’s 100 poorest countries (British Medical Journal
do diagnóstico tanto para tratamento 2002;324:380), IHS offers Associate Membership free to
clínico quanto para a pesquisa. individuals living in those countries who qualify for Ordinary
 As melhoras nos tratamentos têm sido Membership. Associate Membership carries the responsibilities
to the Society of Ordinary Membership (other than payment of
menos drásticas do que as the membership fee), but offers limited benefits. These include
extraordinárias revelações da pesquisa on-line access to the Society’s journal Cephalalgia.
básica e clínica sobre as cefaleias.
American Headache Society (AHS):
 Finalmente, embora os novos www.americanheadachesociety.org/
tratamentos eficazes sejam bastante
World Headache Alliance (WHA): http://www.w-h-a.org/
dispendiosos, por exemplo, novos
antiepilépticos e triptanos, ainda existem
medicamentos mais antigos em toda a
parte com uma boa relação custo-
benefício: AINEs (para tratamento
agudo) e betabloqueadores e/ou
riboflavina (para tratamento profilático)
para enxaqueca, e oxigênio (para
tratamento agudo) e verapamil (para
tratamento profilático) para cefaleia em
salvas.
Guia para o Tratamento da Doe em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 29
Dor Reumática
Fereydoun Davatachi

O que é reumatologia? articulares podem ser divididas em seis categorias:


anormalidades inflamatórias, mecânicas,
Reumatologia é uma subespecialidade da medicina metabólicas, neurológicas, infecciosas e tumorais.
interna que trata de doenças ósseas e articulares As manifestações extra-articulares também são
(tecido conjuntivo e anormalidades teciduais chamadas de reumatismo de partes moles (tendinite,
relacionados a ossos, cartilagens, tendões, tenosinovite, bursite, etc.). As doenças ósseas são
ligamentos, bainha tendinosa, bursa, músculos, etc.). divididas em metabólicas (osteoporose,
Embora a reumatologia moderna seja baseada em osteomalácia), infecciosas, tumorais (benignas,
biologia molecular avançada, imunologia e malignas, metastásicas) e malformações genotípicas.
imunogenética, a prática diária e o diagnóstico de
rotina ainda são clínicos e baseados em sintomas e Qual é a conexão entre
sinais. Na maioria dos casos, os exames de
laboratório e as imagens têm função confirmatória,
reumatologia e dor?
ao invés de serem obrigatórios. Exames simples,
O sintoma mais importante na reumatologia é a dor.
como hemograma completo (HC), taxa de
A dor pode ser inflamatória, mecânica ou contínua.
sedimentação de eritrócitos (TSE), proteína C-
reativa (PCR), fator reumatóide (FR), ácido úrico e A dor inflamatória ocorre durante o repouso e
desaparece ou melhora gradualmente com atividade.
exame de urina são suficientes em muitos casos. As
pesquisas sofisticadas são raramente obrigatórias na É acompanhada de um certo grau de rigidez,
especialmente de manhã quando o paciente acorda.
prática diária. O mesmo vale para técnicas
A dor mecânica aparece com atividade, aumenta
elaboradas de imagens.
gradualmente e desaparece com repouso. Pode ser
acompanhada de dor gelificante, que se assemelha à
Como são classificadas as dor inflamatória, mas dura muito pouco (alguns
doenças reumatológicas? minutos ou menos). A dor contínua pura é rara; em
geral existe uma característica inflamatória ou
São divididas em três grupos: doenças articulares, mecânica. Inchaço articular é o segundo sintoma
extra-articulares e ósseas. As manifestações mais importante na reumatologia. Pode ser causado
por derrame ou hipertrofia sinovial. O aumento
239

ósseo da articulação (hipertrofia óssea) é o A indometacina e o diclofenaco são baratos,


diagnóstico diferencial. Limitação dos movimentos eficazes e altamente disponíveis. Novas terapias,
articulares é um indicador do envolvimento principalmente os agentes biológicos, mudaram o
articular. Movimento anormal é um indicador de desfecho da doença reumática incapacitante.
deslocamento articular (destruição de cartilagem, Infelizmente, são muito dispendiosos e
rompimento de ligamento e colapso epifisário). indisponíveis em vários locais. No entanto,
medicamentos testados e reais, disponíveis desde
Como se diagnostica uma meados do século XX, ainda podem fazer uma
grande diferença, se combinados e usados
doença reumatológica? corretamente. Alguns deles são relativamente
baratos (por ex., cloroquina, prednisolona).
As características de cada articulação, a cronologia
dos sintomas, o número e a localização das O que é preciso saber sobre
articulações envolvidas e o padrão de envolvimento
costumam ser suficientes para a suspeita de um a osteoartrite?
diagnóstico, ou melhor, para fazer o diagnóstico.
Em muitos casos (reumatismo de partes moles, A osteoartrite (OA) é o distúrbio mecânico por
lombalgia ou dor cervical mecânica) não é excelência. É causada pela degeneração da
necessário nenhum exame de laboratório. Em cartilagem e pode ser primária (relativa à idade ou
outros, exames simples como os mencionados menopausa) ou secundária (relativa a esforço
acima serão suficientes. Quando necessários, raios- mecânico, distúrbios metabólicos ou malformação
X costumam dar informações suficientes. genética, artrite inflamatória, artrite infecciosa). É
vista em 9,6% da população com 15 anos ou mais
Quais são os princípios do em países do Pacífico asiático [1]. A idade de início
depende principalmente da articulação, com
tratamento? variações individuais, que são provavelmente
devidas a variações genéticas. No início, a OA pode
Embora o tratamento tenha avançado muito na não ser dolorosa, ou a dor pode ser episódica. Não
última década (agentes biológicos, são necessários exames de laboratório. HC, TSE,
imunomoduladores sofisticados, etc.), em muitos PCR, FR, ácido úrico e exames de doenças
casos um bom aconselhamento e medicação mínima infecciosas, principalmente Wright para brucelose e
controlam com eficácia a dor dos pacientes. A DPP (derivado de proteína purificada) para
maioria das lombalgias responde bem a poucos dias tuberculose são normais.
de repouso e medicamentos antiinflamatórios. Após Os raios-X não são necessários para o diagnóstico e
o repouso, os pacientes aprendem como alongar a essencialmente ajudam a demonstrar a gravidade da
musculatura com exercícios adequados e devem ser destruição cartilaginosa. Os sinais radiográficos
aconselhados a manter as atividades diárias. O aparecem tardiamente (meses ou anos após o início)
mesmo é válido para dor cervical, osteoartrite, e e são principalmente estreitamento do espaço
vários reumatismos de partes moles. É falsa a idéia articular e osteófitos.
de que dor mecânica, como a osteoartrite, precisa de Não há tratamento específico para curar ou mesmo
analgésicos ou antiinflamatórios por um longo interromper o progresso da OA. A dor, ao contrário
período ou para sempre. O uso contínuo de analgésicos do que o paciente pensa, age em seu favor. A dor
leva a mais dano cartilaginoso na articulação, enquanto que o mostra quais atividades são prejudiciais à articulação
uso correto da articulação ajuda a interromper ou retardar a e quanta atividade ele pode ter sem interferir com a
degradação cartilaginosa. Se antiinflamatórios não fisiologia normal da cartilagem. Técnicas analgésicas
esteróides (AINEs) são necessários, não há costumam ser prejudiciais à articulação, a menos
necessidade de usar as novas gerações de que sejam administradas juntamente com repouso.
medicamentos COX-2, que são muito dispendiosos.
Em muitos casos, não há necessidade de repouso mecânico. O exame físico revela derrame sinovial
total ou medicação. Explicar a fisiologia da dor é o com limitação do movimento articular. Desaparece
melhor tratamento para prevenir a rápida com repouso, dentro de poucos dias a poucas
degradação da cartilagem. A atividade articular é semanas, e os sintomas voltam a seu estado anterior.
permitida na medida em que a dor não seja muito Não são necessários exames de laboratório quando
grave. Em casos graves, antiinflamatórios, AINEs o histórico é sugestivo. Permanecem normais, como
ou esteróides, são preferíveis aos analgésicos. São durante o curso normal da doença. Os raios-X não
administrados por 2 a 3 semanas (150 mg de mudam durante o ataque inflamatório.
indometacina ou diclofenaco, 15 mg de O tratamento é indicado principalmente para
prednisolona), juntamente com repouso articular ataques inflamatórios, onde a deambulação precisa
moderado. Após esse período, a medicação é ser limitada para permitir que a articulação repouse.
interrompida e o paciente é aconselhado sobre Exercícios para fortalecer o quadríceps são
atividade articular adequada. Os exercícios para essenciais quando a deambulação é limitada. Se
aumentar a força muscular são muito importantes, possível, pedalar é uma boa opção por prevenir
porque por melhorar a fisiologia articular ajudam a longos deslocamentos que são muito prejudiciais à
retardar o processo da doença. articulação do joelho e exercitar o quadríceps.

Quais são as E a osteoartrite em outros


recomendações específicas locais?
para osteoartrite do joelho?
A osteoartrite do quadril é semelhante à OA do
joelho, exceto que a dor é localizada na virilha e nas
A osteoartrite do joelho é o tipo mais frequente de
nádegas. Pode-se projetar para a coxa ou até para a
OA, visto em 15,3% dos casos. A dor começa com
articulação do joelho. A OA da articulação
deambulação, no início ou mais tarde, dependendo
interfalangeana distal (AID) é chamada de nódulo
da gravidade do dano cartilaginoso. A dor
de Heberden. É caracterizada por dois nódulos no
desaparece gradualmente com repouso. A dor
aspecto dorsal da articulação. Após uma longa
gelificante é sentida no início da deambulação e
progressão, pode aparecer deformidade leve ou
desaparece rapidamente. A dor pode estar localizada
moderada. A dor é esporádica e sentida
na articulação do joelho em si, ou pode ser
principalmente quando os nódulos aparecem e daí
projetada para a panturrilha ou coxa, ou mesmo
para frente durante ataques progressivos. Não há
para o quadril. O exame físico revela pele fria com
tratamento eficaz. Os AINEs são eficazes apenas
coloração normal. O roçar da patela contra a epífise
para a duração dos ataques. A OA da articulação
femoral produz a sensação de raspar uma superfície
interfalangeana proximal (AIP) é chamada de
irregular. A manobra costuma ser dolorosa. A
nódulo de Bouchard. É caracterizada por um único
amplitude de movimentos é normal no início e se
nódulo no aspecto dorsal da articulação. Tem as
deteriora gradualmente. Extensão e flexão
mesmas características do nódulo de Heberden. São
completas se tornam impossíveis e a limitação
interessantes as diretrizes EULAR (Liga Européia
aumenta gradualmente. Movimento anormal
Contra o Reumatismo) para o diagnóstico [7].
(movimento lateral em extensão completa) é sinal de
A dor da OA dos artelhos é mecânica. As
destruição cartilaginosa avançada. Os raios-X,
deformidades são vistas depois de longa progressão.
especialmente se feitos de pé, demonstram o
Atividades moderadas e um curso curto de AINEs
estreitamento do espaço articular que é mais
mais repouso articular são a melhor estratégia. A
pronunciado no compartimento interno.
cirurgia, quando possível, pode ser uma boa
Ocasionalmente, pode ocorrer um ataque
alternativa. A OA primária do cotovelo é muito
inflamatório de OA, e o joelho incha. A dor piora e
rara. Entre as formas secundárias, trabalhar com
se torna contínua, mas mantém seu caráter
uma britadeira produz um tipo especial de OA. Os
241

pacientes têm dor noturna, muito semelhante à dor novamente. Nos homens, a curva descendente é
inflamatória, que melhora ou desaparece quando o uniforme. A redução da densidade de massa óssea
trabalho é retomado. Nas articulações do calcanhar, (DMO) torna os ossos frágeis. A qualidade do osso
ombro, pulso e metacarpofalangeanas a OA também degrada com a idade, mesmo se a massa
costuma ser secundária. óssea permanecer estável, aumentando a fragilidade
óssea. Os dois fenômenos aumentam o risco de
Qual é a importância do fraturas. Com o aumento da longevidade, a
osteoporose vai se tornar mais frequente em todas
“reumatismo de partes as regiões do mundo. A Organização Mundial de
moles”? Saúde (OMS) classificou-a, desde 1991, como o
“inimigo público número um”, junto com infarto,
O reumatismo de partes moles é a terceira causa AVE e câncer.
mais frequente de dor reumática. É visto em 4,7% Infelizmente, a osteoporose não tem manifestação
da população jovem e adulta [1]. A dor é causada clínica até que ocorra uma fratura. A única forma de
por componentes periarticulares (tendões, bainhas fazer o diagnóstico antes que ocorra uma fratura é
tendinosas, bursas e ligamentos). Na maioria dos através de densitometria óssea. É um procedimento
casos a dor é mecânica e relacionada à atividade do muito dispendioso, indisponível para uso geral em
paciente. A dor tem uma alta tendência a voltar. O países em desenvolvimento. O diagnóstico por
desfecho do tratamento é imprevisível, de excelente, raios-X é difícil e tardio. É preciso que mais de 30%
passando por intervenção mínima até resistente à da massa óssea desapareça para que ela seja
melhor estratégia conhecida. A melhor abordagem diagnosticada por raios-X da coluna. O padrão ouro
parece ser boa educação do paciente com um do tratamento são os bisfosfonatos, principalmente
mínimo de intervenção: AINEs (altas doses) ou alendronato. Infelizmente é um medicamento
esteróides (15 a 20 mg de prednisolona) por dispendioso. O fluoreto de sódio é barato e pode
algumas semanas e, se necessário, injeções locais de ser preparado por quase todas as farmácias. Pode
esteróides (repetidas uma vez por semana se aumentar a massa óssea embora seus resultados
necessário, em geral não ultrapassando três injeções sejam controversos; 20 a 40 mg diários usados por 1
consecutivas). ano e depois interrompidos por 6 meses antes de ser
Os reumatismos de partes moles são inúmeros em usado novamente podem aumentar a massa óssea
tipos e localização. Os mais frequentes e sem diminuir a força óssea. Os suplementos de
importantes estão localizados no ombro (tendinite, cálcio ou os laticínios juntamente com vitamina D
periartrite aguda e subaguda, ombro congelado, suficiente (800 unidades diárias de vitamina D3)
ruptura do manguito rotador), no cotovelo também devem ser incluídos à dieta.
(cotovelo de golfista e tenista), e no antebraço
(tenosinovite de De Quervain), entre outros. A artrite reumatóide é uma
doença muito frequente?
O que se deve saber sobre a
osteoporose? A artrite reumatóide não é muito frequente (afeta
cerca de 1% da população). Outras doenças
A osteoporose é um curso natural da fisiologia óssea autoimunes que causam artrite são
se alguém vive muito. Do nascimento até o início da espondiloartropatias, doenças do tecido conjuntivo
idade adulta (cerca de 30 anos de idade), a massa (como lupus eritomatoso sistêmico,
óssea cresce. Depois disso, o corpo começa a perder dermatopolimiosite, ou esclerose sistêmica
gradualmente suas reservas ósseas. Nas mulheres, a progressiva), e vasculites (como periarterite nodosa
taxa de perda é muito baixa até a menopausa, e ou granulomatose de Wegener).
depois acelera por 10 a 15 anos até desacelerar
A incidência da artrite reumatóide é ainda mais agentes biológicos podem ser úteis. Em países onde
baixa em certas regiões do mundo; na Ásia, ela afeta não há agentes biológicos ou onde os pacientes não
apenas 0,33% da população [1]. Envolve têm condições financeiras para adquiri-los, pode-se
principalmente as articulações periféricas, mas considerar uma combinação de vários
também pode envolver outros órgãos (pulmões, imunossupressores.
coração, rins), embora raramente. O envolvimento
articular leva à destruição progressiva, causando Pérolas de sabedoria
incapacidade em poucos anos se o paciente não for
tratado. As articulações do pulso e dos dedos Lembre-se:
(metacarpofalangeana e interfalangeana proximal)
 A árvore decisória é auto-explicativa (Fig 1).
são as mais frequentemente afetadas, mas outras
Por exemplo: se a dor é mecânica e a coluna
articulações são também envolvidas (cotovelo,
está envolvida, é importante descobrir se a
joelho, tornozelo e pé, quadril e ombro). A dor é
dor começou insidiosamente ou se teve um
inflamatória. A rigidez matinal pode durar até o
início agudo. No caso de início insidioso, de
meio dia ou mesmo durante a tarde em casos
longe a causa mais provável é lombalgia
graves.
comum ou dor cervical.
O exame revela inchaço da articulação devido a
 A árvore decisória não pode dar um
derrame sinovial e hipertrofia sinovial. A TSE é
diagnóstico, mas pode ser útil para indicar
aumentada, a PCR é positiva e em mais de 75% dos
onde procurar o diagnóstico.
casos, o fator reumatóide (FR) é positivo no soro.
Recentemente, um anti-PCC (peptídeo citrulinado  A primeira etapa é distinguir entre dor
mecânica e inflamatória, o que não deve ser
cíclico) ganhou muita atenção por ser específico
para AR, embora não para todos os pacientes. Após muito difícil. A dificuldade é quando o
paciente se queixa de dor contínua. Se você
6 meses a um ano da duração da artrite, os raios-X
questionar o paciente meticulosamente, em
mostram desmineralização articular, seguida de
erosão da superfície articular e mais tarde de geral conseguirá encontrar um caráter
mecânico ou inflamatório da dor contínua.
destruição articular. A doença é crônica, dura
décadas, mas pode entrar em remissão (temporária  O exame clínico ajuda a elucidar o
ou definitiva). O tratamento é baseado na diagnóstico. Se necessários, exames de
combinação de dois ou mais medicamentos laboratório e raios-X pode ser úteis.
modificadores da doença reumática (MMDRs)  O restante da árvore decisória é usado de
como metotrexate, cloroquina, sulfasalazina e baixas forma semelhante.
doses de prednisolona [2]. Em casos refratários, os
243

Referências
[1] Davatchi F. Rheumatic diseases in the APLAR region.
APLAR J Rheumatol 2006;9:5–10. [6] Medscape. Low-intensity back rehab programs promote
[2] Davatchi F, Akbarian M, Shahram F, et al. DMARD quicker return to work. Available at:
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[3] Davatchi F, Jamshidi AR, Banihashemi AT, Gholami J, [8] Peul WC, van Houwelingen HC, van den Hout WB, Brand
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E, Khabazi AR, Salesi M,Salari AH, Karimifar M, Essalat- Hague Spine Intervention Prognostic Study Group. Surgery
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[5] Medscape. Back schools for nonspecific low back pain.
Available at: www.medscape.com/viewarticle/485199.
Situações Terapêuticas Difíceis e Técnicas
245

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 30
Dismenorréia, Dor Pélvica e Endometriose
Susan Evans

 Amitriptilina em dose inicial de 10 mg no


Relato de caso início da noite diariamente e aumentando
lentamente conforme o tolerado até 25 mg
Mulher casada, com 28 anos, de idade tem dor por dia pode ser prescrita para as dores
pélvica quase todos os dias do mês, principalmente aguda tipo facada e sintomas urinários.
durante o período menstrual. Sofre de cólicas  Um histórico meticuloso deve identificar
menstruais antes e durante o período menstrual, fatores alimentares desencadeantes dos
dores agudas que aparecem a qualquer hora e a sintomas urinários e a causa de sua
acordam durante a noite, sintomas de urinários dispaneuria (vide abaixo).
(frequência, urgência urinária e noctúria), dor de  Exercícios diários leves podem ser
cabeça e dispareunia (relações sexuais dolorosas). estimulados para ajudar a reduzir a
intensidade da dor.
Quais são as opções de  A dor de cabeça deve ser manuseada.
tratamento?  A decisão de enviá-la a um cirurgião vai
depender de se as dores durante a
menstruação se tornam intratáveis ou se ela
Essa mulher tem dor pélvica crônica com uma
tem dificuldades para engravidar. Também
combinação de tipos diferentes de dor, e
vai depender das aptidões cirúrgicas
provavelmente tem endometriose. Para o controle
disponíveis.
da dor, ela vai precisar de um tratamento para cada
tipo de dor:
 Pílula anticoncepcional e um
Qual é a frequência da dor
antiinflamatório não esteróide (AINE) são pélvica?
boas opções de primeira linha para dor
menstrual. Se a dor persistir, e não houver A dor pélvica é pouco relatada, sub-tratada e
cirurgia laparoscópica de alto nível para subestimada em todo o mundo. Afeta
remoção da endometriose, progesterona aproximadamente 15% das mulheres entre 18 e 50
contínua ou dispositivo intrauterino de anos de idade. Embora seja de tratamento
levonorgestrel são opções. complexo, a melhora na qualidade de vida que pode
ser obtida é bastante recompensadora. A maioria
das mulheres tem mais de um tipo de dor. Seus Exame
sintomas incluem qualquer um ou todos os abaixo: Avalie o bem-estar geral da paciente (depressão,
 Dismenorréia postura e nutrição), o abdômen (para locais de dor,
 Dispareunia sensibilidade, peritonite ou massas), a vulva (para
 Dor neuropática sensibilidade, lesões cutâneas ou infecção vulvar), os
músculos do assoalho pélvico (para sensibilidade e
 Disfunção intestinal
espasmo), a vagina (para nódulos de endometriose
 Disfunção da bexiga
posteriores ao colo ou no septo retovaginal, ou
 Dor vulvar anomalias congênitas), e a pelve (para massas
 Flatulência uterinas e supra-renais, gravidez). O exame vaginal
 Dor pélvica crônica é raramente necessário em mulheres virgens.
Com frequência, os sintomas dolorosos já existiam
há anos, sem diagnóstico ou tratamento. A dor afeta Investigação
a educação, o emprego, os relacionamentos, a auto- Exclua gravidez, inclusive gravidez ectópica,
estima, o bem-estar geral, o sono e às vezes procure doenças sexualmente transmissíveis, se for
fertilidade, portanto é importante saber que essas o caso, e colete um esfregaço vaginal se disponível
pacientes precisam de suporte emocional e físico. (desnecessário para virgens). O ultra-som pode
Este capítulo dá uma visão geral das intervenções revelar um endometrioma, mas é em geral normal,
farmacológicas e não farmacológicas para o controle mesmo com endometriose grave.
eficaz da dor pélvica.
Como planejar o tratamento
Como é possível avaliar a da dor pélvica?
causa da dor em mulheres
O tratamento recomendado depende dos sintomas
com dor pélvica? presentes. A maioria das mulheres tem mais de um
sintoma doloroso. Planeje um tratamento para cada
A dor pélvica é avaliada através de histórico, exame sintoma doloroso. Lembre-se de tratar qualquer
e investigações especiais. problema coexistente de saúde para dar mais energia
Histórico às pacientes para enfrentar a dor:
Pergunte sobre a data da última menstruação em  Síndrome pré-menstrual (SPM), depressão
caso de gravidez e faça uma lista de cada dor ou ansiedade
sintoma da paciente. Para cada dor, peça que  Menorragia
descreva como ela é, onde está, quando ocorre,  Acne
quantos dias apresenta a dor por ciclo, e o que  Obstipação
agrava ou alivia a dor. Pergunte sobre sintomas  Má nutrição, má postura, falta de exercícios
urinários (noctúria, frequência, infecções urinárias,  Outras condições dolorosas, inclusive
urgência), sobre o funcionamento intestinal enxaqueca.
(obstipação, diarréia ou flatulência, dor tipo cólica
intensa durante o período menstrual, e sobre dor Como tratar a dismenorréia nos dias 1-2 do
com movimentos e dor em outras partes do corpo ciclo menstrual?
(por ex., enxaqueca ou pontos musculares A dor nesse estágio do ciclo é normalmente dor
dolorosos), pergunte se as relações sexuais são uterina. As opções de tratamento em nível de
dolorosas, e pergunte quantos dias por mês ela se cuidados primários incluem pílulas
sente totalmente bem. anticoncepcionais monofásicas orais, como 20-35
μg de noretisterona ou 150 mg de levonorgestrel,
além de medicação analgésica. A medicação
analgésica de primeira linha deve ser um AINE
247

tomado no início do episódio doloroso, como 400 Como tratar dor da ovulação?
mg de ibuprofeno inicialmente e depois 200 mg três A dor normal da ovulação só deve durar 1 dia,
vezes ao dia nas refeições. Pode-se utilizar opioides ocorre 14 dias antes da menstruação e muda de lado
para dor moderada ou intensa. As opções não a cada mês. As opções de tratamento incluem
farmacológicas incluem compressas quentes ou frias AINE quando ocorre a dor, pílula anticoncepcional
no abdômen inferior, 1 g de Vitex agnus castus oral para impedir a ovulação, ou 5-10 mg de
(chasteberry) ao dia (evitar se grávida; ineficaz se em noretisterona contínua ao dia para induzir
pílulas anticoncepcionais orais), vitamina E (400- amenorréia. Se houver disponibilidade de mais do
500 UI de vitamina E natural desde 2 dias antes da que o nível de cuidados primários e a dor for grave
menstruação até o dia 3), e 20 mg de zinco (como ou sempre unilateral, a indicação é laparoscopia com
quelato) duas vezes ao dia. A medicina chinesa separação de aderências e remoção da
tradicional (acupuntura e fitoterapia) também é endometriose. O ovário só deve ser removido se
popular, mas só deve ser recomendada se acessível e estiver gravemente doente, e a fertilidade da
se a paciente tiver uma atitude positiva. paciente precisa ser discutida e considerada
Muitas mulheres com dismenorréia grave ficam cuidadosamente.
temerosas quando o período menstrual se aproxima.
Como tratar uma mulher com dor pélvica e
Têm medo da dor que não possam controlar. A
sintomas urinários?
administração de analgésicos fortes para controlar
Muitas mulheres com dor pélvica descrevem micção
dor intensa se esta ocorrer pode reduzir essa
frequente, noctúria, dor quando há demora para
antecipação da dor e elas podem recuperar o
esvaziar a bexiga, dor suprapúbica, dor vaginal,
controle da dor. Portanto, deve-se prescrever doses
dispareunia, ou o sentimento de ter uma infecção do
“sob demanda” de analgésicos.
trato urinário. Esse sentimento é em geral devido a
Como tratar dismenorréia prolongada? A cistite intersticial da bexiga. Pode haver um histórico
paciente pode ter endometriose? de “infecções do trato urinário” frequentes mas
A dismenorréia (cólicas dolorosas) por mais de 1-2 com cultura urinária negativa. Primeiro, exclua
dias costuma ser causada por endometriose, mesmo infecção urinária, clamídia e uretrite gonocócica ou
em adolescentes. A mulher com endometriose tuberculosa. Depois receite ingestão suficiente de
também tem o útero mais doloroso do que as outras líquidos para evitar concentração urinária.
mulheres. Assim, ela tem duas causas para a dor. As Identifique e evite desencadeantes alimentares, se
opções de tratamento em nível de cuidados houver. Desencadeantes comuns incluem café,
primários incluem todos os tratamentos usados para coca-cola, chá (inclusive chá verde), vitaminas B e
a dismenorréia descritos acima, um dispositivo C, frutas cítricas, oxicocos, refrigerantes, chocolate,
intrauterino de levonorgestrel, progesterona álcool, adoçantes artificiais, alimentos
contínua (3-10 mg de noretisterona ao dia, 10 mg de condimentados ou tomates. Os chás de menta e
didrogesterona [hormônio sintético semelhante à camomila costumam ser aceitáveis. Se existem
progesterona] ao dia, ou acetato de desencadeantes alimentares, a dor acontece dentro
medroxiprogesterona de depósito para produzir de 3 horas após a ingestão do alimento. Dê
amenorréia). Se há a opção de encaminhamento instruções sobre como cuidar dos sintomas (beber
para um hospital bem equipado, é indicada a 500 mL de água com 1 colher de chá de bicarbonato
cirurgia, preferivelmente laparoscópica, para de sódio. Tomar paracetamol (acetaminofeno) e
diagnosticar e remover a endometriose, se os AINE, se disponíveis. Então beber 250 mL de água
tratamentos médicos não derem resultado. A a cada 20 minutos pelas próximas horas). Para
histerectomia só é indicada se a paciente é mais controlar os sintomas, tente 5-25 mg de amitriptilina
velha e sua família está completa. Conserve os à noite, oxibutinina (comece com 2,5 mg à noite,
ovários sempre que possível em mulheres pré- aumente lentamente para 5 mg três vezes ao dia) ou
menopáusicas. Os endometriomas ovarianos podem hidroxizina, principalmente para as alérgicas
ser tratados por cistectomia e não por ooforectomia.
(comece com 10 mg à noite e aumente lentamente  Use um ou dois dedos para verificar se há
para 10-50 mg à noite). nódulos de endometriose, massas pélvicas
Muitas mulheres com sintomas urinários ou fixação uterina na vagina superior.
desenvolvem disfunção secundária do assoalho Empurre o colo para o lado para ver se há
pélvico com dispareunia e grave dor muscular dor supra-renal contralateral (para verificar a
pélvica. Se a dor persiste, considere cistoscopia com existência de endometriose, cistos ovarianos,
hidrodistensão. Se possível, todos os medicamentos infecções pélvicas ou aderências).
devem ser evitados durante a gravidez. Note  Use um espéculo para verificar a presença
também que a hidroxizina é contraindicada para de cervicite, infecção vaginal, anomalia
epilépticos. vaginal ou nódulos endometrióticos no
Como tratar dor aguda lancinante? fórnice vaginal posterior.
Dores agudas lancinantes costumam ser uma forma Se alguma parte do exame causar dor, pergunte à
de dor neuropática. O tratamento inclui medicações paciente se é a mesma dor que sente durante as
para dor neuropática (por ex., 5-25 mg de relações sexuais. É importante examinar a vagina
amitriptilina no início da noite, 100-1.200 mg de inferior gentilmente com um dedo antes de usar o
gabapentina ao dia), sono regular, exercícios espéculo, ou poderemos não localizar a dor no
regulares (comece com exercício regular de baixo assoalho pélvico/bexiga. Dispareunia generalizada,
nível para evitar piora inicial da dor), e redução do principalmente na presença de dores agudas, pode
estresse. Comece todas as medicações em doses ser neuropática. Inclua na consulta uma discussão
muito baixas e aumente lentamente. Onde houver sobre o relacionamento que tem com seu marido e
aptidões cirúrgicas de alto nível, a excisão da se lhe dá apoio.
endometriose, se houver, pode às vezes melhorar a Como é possível ajudar a paciente com vulva
dor, embora com frequência esse tipo de dor dolorosa (vulvodínia)?
permaneça após a cirurgia. Os cuidados gerais da vulva costumam ser úteis. A
paciente não deve usar sabonete e deve evitar
Como diagnosticar a causa da dispareunia?
produtos vulvares como talco ou óleos. Recomende
A dispareunia (relações sexuais dolorosas) pode ser
um creme aquoso como sabonete, suavizantes e
o sintoma mais aflitivo para muitas mulheres porque
hidratantes vulvares. Sugira roupas íntimas de
interfere com sua vida conjugal. Ela pode achar que
algodão e roupas largas. Trate qualquer infecção
está decepcionando o marido quando não consegue
vaginal. Prescreva 5-25 mg de amitriptilina à noite
ter relações sexuais devido à dor, e ele pode achar
ou um anticonvulsivante para dor vulvar, se houver.
que ela está evitando as relações porque já não o
Para vestibulite vulvar, prescreva um curso de 200
ama. É importante identificar a causa do problema:
mg de cetoconazole oral (antifúngico) e creme de
 Examine visualmente a vulva em busca de
betametasona (0,5 mg/g) aplicado em camada fina
anomalias (infecção, dermatite, líquen
por 3 semanas. Para líquen escleroso, prescreva um
escleroso).
creme esteróide aplicado em camada fina
 Use um cotonete para testar a sensibilidade diariamente em cursos intermitentes, apenas quando
da fúrcula posterior, mesmo se parecer houver sintomas.
normal (para verificar se há vestibulite
vulvar). Como ajudar as pacientes com músculos
 Use um dedo na vagina inferior para pélvicos dolorosos?
empurrar para trás (para verificar se há dor Os músculos estão em espasmo e não relaxam
muscular do assoalho da vagina ou normalmente. Esse tipo de dor pode ser secundário
vaginismo). Use um dedo para empurrar a sintomas de urinários, a qualquer tipo de dor
anteriormente (para verificar se há dor na pélvica, a agressão sexual prévia ou à ansiedade com
bexiga ou na uretra). relação às relações sexuais. A dor é intensa, assim
como a dor de espasmos na região lombar. Os
249

sintomas típicos incluem dispareunia (com dor por  Presença de endometriose ovariana
1-2 dias seguintes), dor ao movimento, dor com  Nódulos palpáveis de endometriose no
inserção de um dedo ou do espéculo, e dor com septo retovaginal.
tampões. Pode haver dor depois de permanecer  Útero imóvel.
sentada por longo tempo. O espasmo do músculo
 Dor tipo cólica intestinal durante o período
do assoalho pélvico é involuntário e a paciente não
menstrual.
consegue “apenas relaxar”. O melhor tratamento
Em mulheres pré-menopáusicas, se não houver
envolve fisioterapia do assoalho pélvico, instruções
reposição pós-operatória de estrógeno, a
sobre técnicas de relaxamento, e o uso regular de
ooforectomia bilateral deve ser evitada, se possível.
dilatadores vaginais em uma situação descontraída,
Os endometriomas em mulheres jovens devem ser
segura e indolor. As relações sexuais devem ser
tratados com cistectomia ao invés de ooforectomia,
evitadas até que o problema seja resolvido porque o
na maioria dos casos. A drenagem isolada de um
problema vai piorar com relações repetidas e
endometrioma é em geral acompanhada de rápida
dolorosas. Se as relações sexuais persistirem, um
recidiva.
lubrificante vaginal e uma abordagem lenta à relação
podem ajudar. Outros tratamentos incluem:
 Resolução dos fatores iniciantes, por ex.,
Quais são as barreiras
sintomas urinários / dor pélvica. comuns para o tratamento
 Evitar esforço ao esvaziar a bexiga ou tentar eficaz da dor?
interromper a passagem da urina no meio da
micção.
A grande demora entre o início dos sintomas e o
 Exercícios regulares leves (por ex., diagnóstico e o tratamento da dor pélvica é comum
caminhadas, alongamento, ioga leve), por várias razões. A família da paciente pode não
melhorar a postura, sentar em uma cadeira acreditar que a dor é real e intensa, ela pode achar
confortável com bom suporte, manter os que dor intensa durante a menstruação é normal, ou
dois pés apoiados no chão quando sentada, seu médico local pode acreditar que ela é jovem
e fazer pausas regulares. demais para ter endometriose, ou subestimar a
 Compressas quentes na pelve e banho gravidade de sua dor.
morno 1-2 vezes por dia durante 3-6 Outras barreiras ao tratamento eficaz da dor
semanas. incluem medo do exame ginecológico,
 Tratamento da ansiedade e da depressão, se principalmente quando não há uma médica; medo
presentes. de cirurgia, infertilidade e câncer; e medo do
desconhecido.
Quando se deve encaminhar a paciente com
Portanto, é importante explicar à paciente e à sua
dor pélvica a um cirurgião?
família:
A cirurgia deve ser considerada quando o
 A dor é real e a dor não é culpa da paciente.
tratamento não cirúrgico não deu resultado. Onde
estiver disponível e for segura, a laparoscopia é  Ela não tem câncer e a dor não ameaça sua
preferível à laparotomia. No entanto, a laparoscopia vida.
requer equipamento e aptidões cirúrgicas avançadas  Embora não seja possível curar completamente
e podem ocorrer complicações importantes. a dor, ela pode esperar com otimismo por
Portanto, é importante tentar primeiro as opções menos dor e viver melhor com a dor
não cirúrgicas. A cirurgia de endometriose costuma remanescente. É importante ser positivo.
ser difícil e requer as melhores aptidões cirúrgicas  Recursos que ela pode procurar se precisar
disponíveis. Situações que sugerem doença grave de ajuda.
talvez necessitando de um cirurgião GI e de um  Qual outro alívio da dor ela pode usar se a
ginecologista incluem: dor se agravar; sua ansiedade vai diminuir
quando ela souber que pode tratar a dor se Algumas mulheres têm endometriose e
ela ocorrer. todas essas outras dores. Enxaquecas
 Garantir que ela não esteja sobrecarregada também são comuns.
de trabalho, porque o cansaço vai piorar a  As mulheres com dor crônica e que
dor. parecem “desgastadas” emocionalmente
 Garantir que ela gosta das atividades de sua ou deprimidas costumam ter um
vida. componente neuropático em sua dor.
Isso será ainda pior se a paciente estiver
O que se deve perguntar nas estressada ou sobrecarregada de
trabalho.
consultas de  Reconheça que muitas mulheres têm dor
acompanhamento? há muito tempo, resultando em perda de
confiança, emprego e oportunidades de
As consultas de acompanhamento são importantes educação, relacionamentos e, às vezes,
porque a dor varia ao longo do tempo e a paciente fertilidade.
vai precisar de suporte constante para estar bem.  É importante que a família da paciente
Em cada visita de acompanhamento: valorize sua saúde e felicidade, e que ela
 Pergunte sobre cada uma das dores que ela tenha atividades que lhe tragam alegria,
relatou na primeira consulta para avaliar o descontração e satisfação. “Pessoas
progresso. A dor resolvida costuma ser preparadas e felizes sentem menos dor”.
esquecida. Ela pode achar que não houve  Reconheça que embora a cirurgia possa
progresso se alguma dor persistir. ser muito útil, ela não cura todas as
 Pergunte sobre qualquer nova dor. Pergunte dores. A decisão de fazer uma cirurgia
sobre a função sexual. Ofereça tratamento ou usar tratamentos não cirúrgicos vai
para qualquer nova dor. depender das instalações cirúrgicas
 Discuta novamente as questões de estilo de disponíveis.
vida, como exercícios regulares, dieta  Seja cuidadoso ao explicar a dor para a
saudável, gerenciamento de estresse, paciente e tenha certeza que ela sabe que
questões de relacionamento, e atividades que você acredita em sua dor. A maioria das
ela aprecia. mulheres com esse tipo de dor já ouviu
 Assegure-se que ela entendeu que sua dor que “está tudo na sua cabeça”, o que
pode mudar ao longo do tempo mas que baixa sua auto-estima.
existe ajuda se ela precisar.  Tenha certeza de que a família sabe que
a dor é real. A paciente vai precisar do
Pérolas de sabedoria apoio da família para ter acesso aos
cuidados.

 A maioria das mulheres com dor pélvica


crônica tem vários outros sintomas
Referências
dolorosos. Cada dor precisa ser avaliada
[1] Evans S. Endometriosis and pelvic pain. Available from:
e tratada. A dor pélvica não pode ser
www.drsusanevans.com. (An easy-to-read book for patients
considerada uma entidade isolada. that explains how to diagnose and treat many types of pelvic
 As causas mais comuns de dor pélvica pain.)
não podem ser vistas durante uma [2] Howard FM. Pelvic pain: diagnosis and management.
Lippincott Williams and Wilkins; 2000. (A textbook for
operação, inclusive dor na bexiga, dor
doctors describing all aspects of pelvic pain in detail.)
neuropática, dor uterina, dor muscular
do assoalho pélvico e dor intestinal.
251

[3] Stein A. Heal pelvic pain. Available from:


www.healpelvicpain.com. (A book for patients with all types of Sítios na Web
musculoskeletal pelvic pain.)
www.endometriosis.org (world forum for patients and
doctors)
www.endometriosisnz.org.nz (for teenagers with
endometriosis)
www.ic-network.com (for bladder symptom information)
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 31
Considerações sobre o Tratamento da Dor Durante
Gestação e Aleitamento
Michael Paech

Relato de caso 1
anomalia espinhal. Depois você descobre que ela toma uma
(analgésicos na gestação) baixa dose de amitriptilina (10 mg) à noite, diclofenaco (100
mg duas vezes ao dia) e codeína (30 a 60 mg a cada 6 horas
Você recebe a visita de uma mulher, Sheila e seu parceiro conforme necessário, mas apenas por um ou dois dias a cada
Aluísio, de uma grande cidade do interior. Estão recém- quinzena).
casados e planejam mudar para um centro urbano maior e
ficar com os parentes porque esperam começar a formar uma
Devemos nos preocupar em receitar
família. Aluísio diz: “Doutor, minha mulher tem dores fortes
analgésicos para mulheres grávidas ou
nas costas e nas pernas, e todos os dias ela toma medicação
lactantes?
prescrita pelo médico local. Estamos tentando ter um bebê e
Devemos ser cuidadosos ao prescrever qualquer
eu estou preocupado se esses medicamentos vão afetá-lo. Há
medicamento a uma gestante! Entretanto, quase
algum problema em continuar a tomá-los?”
90% das mulheres tomam medicamentos prescritos
Você pergunta a Sheila sobre sua dor e fica sabendo que ela a
durante a gestação. Embora a incidência do uso de
tem por mais de um ano desde um acidente automobilístico no
analgésicos durante a gestação varie entre os países,
qual fraturou algumas vértebras lombares. A dor persistiu e é
é provavelmente 5 a 10% durante o primeiro
uma sensação de queimação que irradia da coluna lombar
trimestre e é possível que seja bem mais alta no final
através das nádegas até a parte posterior do joelho, ocorrendo
da gestação. A incidência do uso perinatal de
em geral à noite quando ela está deitada em repouso. Ela
fármacos ilícitos (inclusive opioides) também varia
também tem uma área próxima à coluna lombar que formiga
muito, oscilando entre 10% e 50%. Portanto, é
e parece machucada, mesmo quando tocada muito de leve. O
extremamente comum que mulheres grávidas e seus
médico tentou vários analgésicos diferentes e o único que ajuda
fetos sejam expostos a medicamentos para o
um pouco é um comprimido que ela toma à noite antes de
controle da dor durante a gestação e a lactação. A
deitar, embora ela esteja tomando também um
incidência de anomalias fetais entre nascidos vivos é
antiinflamatório, e ela às vezes também toma codeína quando
de aproximadamente 2%, então essa taxa histórica
a dor piora – mas isso a torna obstipada então ela não gosta
deve ser levada em consideração ao comparar as
muito de usar. Ao exame, ela não apresentou sinais óbvios de
253

taxas de toda a população gestante com aquelas de aleitamento também é imperativo para otimizar a
mulheres recebendo medicamentos específicos. saúde do bebê, possivelmente com benefícios
Apesar da prevalência de seu uso, existe muito permanentes. É importante saber onde procurar e
pouca informação sobre os efeitos de analgésicos poder acessar informações sobre esses temas
tomados antes da concepção sobre a fertilidade. quando houver necessidade.
Existem poucos dados humanos epidemiológicos e
observacionais sobre os efeitos dos analgésicos Qual seria a abordagem ideal do tratamento da
durante o início da gestação. Com exceção da dor durante gestação e aleitamento?
aspirina e de outros antiinflamatórios não esteróides Durante e imediatamente antes da gestação, pode-se
(AINEs), o embrião parece protegido nas primeiras considerar e explorar as opções não farmacológicas
duas semanas. O feto corre maior risco durante o de tratamento da dor antes de usar analgésicos.
período de organogênese, entre 17 e 70 dias após a Idealmente, se disponível na região do futuro
concepção; no entanto, o uso de alguns domicílio, e antes de Sheila engravidar, ela deveria
medicamentos durante o segundo e o terceiro ser avaliada por um grupo de profissionais de saúde,
trimestres da gestação também pode causar principalmente aqueles interessados na medicina da
anomalias orgânicas, principalmente nos sistemas dor e com experiência clínica em lidar com
nervoso central e cardiovascular. Assim sendo, é pacientes com problemas de difícil tratamento. No
importante conhecer em detalhes os riscos caso de Sheila e Aluísio, por exemplo, esse grupo
potenciais associados à administração de analgésicos poderia incluir um cirurgião ortopédico, um médico
em qualquer estágio da gestação. de reabilitação, um obstetra, um médico de família,
Felizmente, sabemos que é provável, que milhões de um anestesiologista ou especialista em dor, um
mulheres tenham tomado algum dos analgésicos fisioterapeuta, um quiroprático, um psicólogo, um
mais comumente usados, tanto à época da farmacêutico e/ou um enfermeiro da comunidade.
concepção, quanto durante as fases iniciais da Essa abordagem multidisciplinar iria otimizar seu
gestação. Para uma série de analgésicos, a grande tratamento, e o acompanhamento de sua dor
experiência clínica, indica um risco muito baixo de poderia ser organizado. Sheila pode ter fatores
problemas, o que é reconfortante. Quando as físicos e psicológicos contribuindo para sua dor, que
informações clínicas são combinadas com a análise podem ser tratados de várias formas, incluindo
de dados obtidos com animais sobre potenciais fisioterapia e até mesmo procedimentos invasivos,
efeitos teratogênicos ou carcinogênicos, ou, com reduzindo ou eliminando a necessidade do uso de
dados sobre o quanto do medicamento é transferido medicamentos. Isso, é claro, resolveria todos os
para o leite materno, o nível de preocupação com o problemas relacionados a possíveis toxicidades
medicamento pode ser estimado. farmacológicas de medicamentos administrados
Consequentemente, entidades reguladoras e durante a gestação. Mesmo se o tratamento
educacionais em vários países, classificaram os medicamentoso permanecer a única maneira de
medicamentos em categorias para orientar a controlar sua dor, sua resposta aos fármacos, suas
avaliação de risco em relação ao benefício para a doses e regimes prescritos precisa ser revista assim
gestante ou lactante. Por exemplo, não há evidências que ela engravidar e à medida que a gestação
de que os opioides sejam perigosos no início da avançar.
gestação, mas podem causar depressão do neonato
ao nascer, portanto a maioria dos opioides é Qual seria o conselho para Sheila e Aluísio?
classificada como medicamentos que têm efeitos Sheila tem dor crônica não maligna com
farmacológicos prejudiciais, porém reversíveis, no características neuropáticas, e você deve consultar
feto humano ou no recém-nascido, sem causar os capítulos sobre lombalgia e dor neuropática para
malformações. maiores informações. Você também precisa estar
É mandatório aliviar o sofrimento materno, mas ao em posição de aconselhá-la sobre os riscos
mesmo tempo é preciso evitar prejuízo ao feto. O específicos dos medicamentos que ela toma
atualmente e sobre quaisquer riscos associados a Existem outros analgésicos que possam estar
medicamentos alternativos. disponíveis quando Sheila for a um grande
É importante ser honesto e transparente em todas hospital?
as comunicações. Em primeiro por não haver Existem outros analgésicos que podem ser mais
garantias de plena segurança para qualquer eficazes e causar menos efeitos colaterais. Ao invés
medicamento, e, porque controlar a dor neuropática de codeína, a oxicodona (5-15 mg repetidos quando
pode ser difícil. Não é preciso que ela abandone necessário) é um exemplo de opioide oral eficaz
todos os analgésicos. Na verdade, não existem contra dor moderada a intensa, que causa menos
evidências de que manter a amitriptilina no início da obstipação. No entanto, a administração de opioides
gestação aumente significativamente o risco de por longo prazo chegando até o momento do parto
malformações. Esse é um medicamento usado por tem algumas desvantagens importantes (vide caso 3
muitas gestantes, portanto o casal pode ser abaixo), então é essencial confirmar que a dor de
tranquilizado quanto à sua relativa segurança e ele Sheila é sensível aos opioides. Ela pode ser
pode ser mantido. Os AINEs, como diclofenaco e internada no hospital, ter sua dor avaliada (escores
indometacina (e um medicamento semelhante, a de dor, incapacidade funcional e efeitos colaterais
aspirina) não são eficazes contra dor neuropática, dos opioides) e documentada, e então o opioide
mas podem ser úteis por poucos dias para alívio da pode ser introduzido em uma dose baixa, escalando
dor musculoesquelética ou de ferida pós-operatória. a dose ao longo de alguns dias até que o
No entanto, a menos que haja inflamação ativa, que medicamento seja eficaz com efeitos colaterais
é improvável no caso de Sheila, eles não devem ser aceitáveis, ou até o fracasso (falta de efeito, ou
usados por tempo prolongado. Embora esses benefício limitado por excesso de efeitos colaterais).
medicamentos não causem malformações fetais, eles Outra possibilidade é o tramadol, que tem
influenciam negativamente na fertilidade, aumentam formulações orais e intravenosas. Doses entre 400 a
o risco de aborto por interferir com a implantação 600mg ao dia são eficazes contra dor aguda e
de blastócitos e podem causar sérios problemas no neuropática. O tramadol tem várias ações
final da gestação (vide abaixo). Você deve antinociceptivas (serotoninérgica, noradrenérgica e
aconselhar Sheila a interromper o diclofenaco e, se atividade opioide fraca em receptor µ), é útil para
disponível, tentar o paracetamol (acetaminofeno), dor moderada a intensa, e não causa depressão
que é uma opção muito mais segura. Embora não respiratória. O tramadol deve ser evitado em
seja ideal, não há razão para Sheila interromper o mulheres com risco aumentado de convulsões,
uso da codeína quando precisar dela (em dose como aquelas com pré-eclampsia ou eclampsia, ou
máxima de 240mg ao dia), principalmente se você aquelas tomando medicamentos que aumentam os
conferir sua dieta e aconselhá-la sobre como reduzir níveis de serotonina no sistema nervoso central. Os
o risco de obstipação. A codeína já foi usada por efeitos colaterais comuns são náusea e tontura.
muitas gestantes e é considerada segura para o feto Estudos em animais indicam que o tramadol é um
no início da gestação. O principal problema da medicamento de baixo risco para anomalias fetais,
codeína é que muitas pessoas não têm a enzima mas a experiência no início da gestação é muito
hepática necessária para desmetilá-la em seu limitada, então, é preferível usar um opioide no caso
metabólito ativo, a morfina, o que a torna de Sheila. Após o período de organogênese, dados
completamente ineficaz. Outras pessoas são limitados sugerem que o tramadol é provavelmente
metabolizadoras ultra-rápidas da codeína e vão ter de baixo risco para o feto, embora altas doses
concentrações plasmáticas mais altas e sentir mais próximas ao dia do parto devam ser evitadas (vide
efeitos colaterais (sedação, disforia, obstipação e caso 3 abaixo).
depressão neonatal), mesmo após doses de Alguns países têm adesivos de clonidina
pequenas a modestas. transdérmica (100μg/dia), mas a clonidina é de
eficácia questionável e apesar do uso extensivo
durante a gestação sem evidências de causar
anomalias congênitas, os dados sobre sua segurança
255

no primeiro trimestre são muito limitados. Portanto,


o uso da clonidina não é recomendado.
Relato de caso 2 (analgesia
durante aleitamento)
E se Sheila continuar a ter dor neuropática no
final da gestação? Agnes é uma multípara de 28 anos que tem dois filhos e
Bons níveis de evidência suportam a eficácia e a agora está na 34a semana de gestação. Vem de uma família
segurança de doses típicas de amitriptilina boa e sensata que você conhece bem. Veio pedir conselhos
(inicialmente 10 a 15mg orais à noite). A cetamina, porque o obstetra acabou de marcar uma cesariana eletiva de
outro analgésico potente, pode ser eficaz para dor repetição para daqui a um mês. Foi-lhe dito que o bebê parece
aguda e neuropática, embora as formas em muito maior do que da última vez quando houve falha na
comprimidos ou pastilhas ainda estejam sendo progressão do trabalho de parto e ela teve que ser submetida a
desenvolvidas. A cetamina já foi usada em um uma cesariana de urgência. Embora ela esteja se sentindo
grande número de gestantes sem relacionamento bem e entenda por que é melhor fazer outra cesariana, ela
com malformações, por isso é considerada segura, está muito ansiosa e não muito segura se faz a cirurgia no
tornando-a uma opção valiosa quando as pacientes hospital missionário distrital ou se pede para ser
são internadas no hospital quando a dor aguda ou encaminhada para o hospital de referência de uma cidade
neuropática é de difícil tratamento (bolos de até próxima com mais recursos.
0,25mg/kg e taxa inicial de infusão de 5 a 10mg/h). Agnes está preocupada por dois motivos. Primeiro, após sua
Como os anestésicos locais são seguros durante a última cesariana ela sentiu muita dor, principalmente durante
gestação, a infusão de lidocaína (1mg/kg por 20 os primeiros dois dias, e ela está apavorada de passar pela
minutos e depois 10 a 30mg/h, vide capítulo sobre mesma experiência. Segundo, as anciãs locais lhe disseram
dor neuropática) é outra opção eficaz para uma que se ela tomar algum analgésico forte após a cirurgia, o bebê
minoria de pacientes com dor neuropática. não vai poder mamar – e ela não tem condições de comprar
Se houver gabapentina, ela pode ser considerada. uma fórmula láctea. Você ouve pacientemente porque sabe
Não foi relacionada a grandes taxas de que muitas mulheres não recebem um bom tratamento da dor
malformações em estudos animais e não há após a cesariana no hospital distrital. Você planeja conversar
evidência de dano em experiências limitadas com com os médicos de lá para sugerir algumas mudanças simples
humanos até o momento. A mexiletina também que você acredita vão melhorar significativamente a situação.
parece ser de baixo risco para o feto, mas é menos Você discute com Agnes as opções que podem estar
eficaz e tem mais efeitos colaterais. Em disponíveis para sua analgesia pós-operatória nos dois
contrapartida, a carbamazepina, embora ainda usada hospitais e suas implicações quando ela começar a amamentar
durante a gestação em algumas pacientes epilépticas – e depois você faz algumas recomendações e promete entrar
porque se considera que seus benefícios superem os em contato com o hospital para tentar garantir que ela receba
riscos de dano, deve ser evitada mesmo após o um tratamento satisfatório.
primeiro trimestre porque pode causar anomalias
primárias e secundárias, inclusive espinha bífida, A dor da cesariana realmente precisa ser bem
defeitos craniofaciais e distúrbios da coagulação em tratada?
humanos. Faltam informações sobre os inibidores A maioria das mulheres tem dor intensa a moderada
seletivos de recaptação da serotonina e nas primeiras 48 horas após cirurgia abdominal,
medicamentos similares (citalopram, paroxetina, inclusive cesarianas, e mãe e bebê vão se beneficiar
venlafaxina), sobre a lamotrigina (um do bom alívio da dor. Se a mãe pode se mover com
anticonvulsivante) e a pregabalina (um bloqueador relativo conforto, pode se movimentar logo após a
de canais de cálcio voltagem-dependente), e, recuperação anestésica (poucas horas após a cirurgia
portanto é melhor evitá-los. com raquianestesia), o risco de infecções
pulmonares e de tromboembolismo venoso (causa
importante de morte súbita por embolia pulmonar),
pode ser reduzido. Ela poderá se alimentar algumas
horas após a cirurgia e continuar a cuidar e interagir norpetidina (normeperidina), que tem uma meia
com seu bebê enquanto estabelece a lactação e o vida de eliminação muito longa no recém-nascido
aleitamento. O alívio eficaz, regular e precoce da (aproximadamente 72 horas), e como ambas se
dor reduz o risco de dor moderada ou intensa após acumulam no recém-nascido, o bebê fica mais
os primeiros três dias, de forma que a maioria das sonolento e menos ativo, prejudicando sua
mulheres vai precisar apenas de paracetamol capacidade de sugar o peito. Esses efeitos são
(acetaminofeno) e/ou de AINE do terceiro ao importantes quando são administradas doses
quinto dia pós-operatório (e podem diminuir o risco intravenosas após a cesariana, mas também podem
de dor crônica na cicatriz mais tarde!). A maioria ser causados por doses intramusculares mais baixas
dos métodos de alívio da dor pós-cesariana se baseia durante o trabalho de parto. Se o bebê é muito
em opioides, a maioria dos quais é considerada prematuro e tem períodos preocupantes de apneia,
segura para amamentar o bebê se usada apenas em todas as doses de opioides devem ser minimizadas
período curto durante a lactação. e, se possível, substituídas por tramadol, que é
seguro para o bebê durante os primeiros dias após o
O que o “hospital distrital” deveria poder oferecer a nascimento, quando o aleitamento está sendo
Agnes? estabelecido.
A melhor abordagem para o tratamento da dor Deve-se fazer todas as tentativas para garantir que
aguda de Agnes é “multimodal”, ou seja, combinar Agnes receba um AINE, como diclofenaco (a
vários comprimidos ou métodos analgésicos para segunda opção é indometacina, que tem mais efeitos
reduzir a dose e, portanto, os efeitos colaterais de colaterais), paracetamol (acetaminofeno) ou até os
cada componente. Pode-se prescrever um opioide dois. Esses analgésicos reduzem a dose de morfina
como a morfina, preferivelmente usando doses necessária em 10 a 20% respectivamente, e o AINE
regulares com doses extras suplementares se pode reduzir a dor de “cólica” do útero. O
necessário durante as primeiras 24 a 48 horas. Se paracetamol oral (1 g a cada 6 horas) quase não tem
não houver um método intravenoso (analgesia efeitos colaterais e é contra-indicado apenas para
controlada pelo paciente ou infusão contínua, vide pacientes com disfunção hepática grave. O AINE,
abaixo esses métodos de hospitais de referência), administrado preferivelmente na dose máxima
pode-se usar a via oral ou subcutânea. As injeções recomendada (por ex., 50 mg de diclofenaco 3 vezes
intramusculares são mais doloridas do que as ao dia ou 100 mg de indometacina 2 vezes ao dia) e
subcutâneas (principalmente se as últimas forem junto com alimento para evitar mal-estar
injetadas por uma pequena cânula ou agulha tipo gastrintestinal, é contra-indicado para mulheres com
borboleta); apresentam um alto risco de infecção doença hipertensiva, inclusive pré-eclampsia,
profunda e não são mais confiáveis em termos de prejuízo renal, úlcera péptica ou refluxo
eficácia. Administrar o opioide “conforme sintomático, e em mulheres com um distúrbio de
necessário” leva a subtratamento e alívio ineficaz da sangramento ou risco atual de sangramento.
dor devido à farmacocinética inconsistente de Uma medida adicional para o cirurgião, e que não é
absorção e à resposta individual. Se for prescrita muito dispendiosa, é a infiltração de anestésico local
uma faixa de doses, então a menor pode ser usada (por ex., bupivacaína a 0,25% até o máximo de
primeiro e ser substituída por doses maiores 2mg/kg) na ferida. A infiltração da pele apenas não
subsequentemente, se necessário. A medicação de é eficaz, mas uma injeção embaixo da fascia da
escolha é a morfina, que pode estar disponível como bainha do reto e pela via subcutânea pode reduzir a
comprimido ou xarope oral (30 a 45mg a cada 8 quantidade de opioides necessários com baixo risco
horas) ou formulação parenteral (10 a 15mg de complicações.
subcutâneos a cada 6 horas). A codeína oral (60 mg
a cada 6 horas) pode ser usada se não houver outro Quais são os efeitos dessas medicações no bebê
opioide. Deve-se evitar a petidina (meperidina) amamentado?
durante a lactação, a menos que não haja outra Com algumas exceções, principalmente aquelas
alternativa. Ela tem um metabólito ativo, a aplicadas à petidina (meperidina), pode-se garantir a
257

Agnes que todos esses medicamentos foram bem morfina intratecal são muito eficazes e seguros para
avaliados e são considerados seguros e aceitáveis um excelente alívio da dor.
para uso nos primeiros dias após o parto. Nesse A longa meia vida de eliminação da morfina no
ponto, a produção de leite está aumentando líquido cefalorraquidiano resulta em bom ou
rapidamente, mas o conteúdo ainda está mudando excelente alívio clínico por 4 a 14 horas (em média
de colostro rico em proteínas, que é um meio 12 horas), principalmente se administrarmos
ineficaz de transferência para a maioria dos também um AINE. Sedação, náusea e vômitos são
medicamentos, para leite rico em gordura. A efeitos colaterais comuns após os opioides. Em
transferência de morfina e codeína, paracetamol e geral, a sedação será maior após administração
AINEs para o leite materno é de apenas 2 a 4% da sistêmica (oral, intramuscular ou intravenosa) e o
dose materna ajustada para peso, e nenhum tem prurido será mais grave após administração espinal
efeitos adversos no bebê. (raque ou peridural). Todas as pacientes que
A aspirina não é uma boa opção para recebem opioides, principalmente por via espinal,
paracetamol/acetaminofeno, que não têm efeitos devem ser monitoradas para evitar sedação
detectáveis apesar da conjugação imatura de excessiva e baixa frequência respiratória, embora
glicuronídeos. A aspirina é contra-indicada para morbidade grave seja rara na população obstétrica.
pacientes com risco de sangramento devido a seus Muitos hospitais e médicos parecem especialmente
efeitos na função plaquetária, e embora considerada preocupados com opioides por via espinhal mesmo
aceitável para uso durante a lactação, tem sido quando eles são usados corretamente. Séries de
associada à rara e grave condição da síndrome de Reye casos sugerem um risco significativamente mais alto
em recém-nascidos, portanto a administração prolongada de depressão respiratória quando comparado ao da
deve ser evitada. administração intravenosa. É menos provável que
Deve-se explicar a Agnes que ela deve tentar marcar a exista analgesia peridural pós-operatória, mas ela é
hora das amamentações para evitar o pico de altamente eficaz. Pode ser obtida com dose única ou
concentração do opioide no leite, que em geral irá
doses repetidas de 3mg de morfina (a cada 8 ou 12
coincidir com 1 a 2 horas após a última dose.
horas) ou, em hospitais com alta tecnologia, com
Quais outros métodos o hospital de referência infusão peridural ou analgesia peridural controlada
poderá oferecer a Agnes? pelo paciente (APCP) usando fentanil (bolos de
Pode haver uma série de métodos potencialmente 2μg, intervalo de bloqueio de 15 minutos) ou
melhores para o alívio da dor pós-operatória no petidina/meperidina (bolos de 20mg, intervalo de
hospital de referência, que Agnes pode considerar e bloqueio de 15 minutos). Esses métodos peridurais
solicitar. A morfina intravenosa (e em alguns países estão associados a taxas mais baixas de consumo de
o fentanil, opioide sem metabólitos, mas mais opioides (em 2 a 50%) do que os que utilizam os
dispendioso) proporciona alívio da dor de melhor intravenosos e embora a administração de curto
qualidade do que a morfina subcutânea ou prazo de opioides peridurais após cesarianas não
intramuscular e preferivelmente deve ser tenha sido bem pesquisada, a experiência clínica
administrada por um aparelho de analgesia sugere que o recém-nascido amamentado não é
controlada pelo paciente (ACP) (dose padrão, por afetado.
ex., bolo de 1mg sob demanda, sem infusão A oxicodona de liberação imediata (por exemplo 5 a
contínua, intervalo de bloqueio de 5 minutos) para 10mg regularmente a cada 4 horas por 48 horas,
proteger as pacientes de hiper-dosagem acidental. com doses adicionais sob demanda) é um opioide
Os métodos de administração espinal de opioides oral mais eficaz do que a codeína e também tem um
(raque ou peridural) para analgesia propiciam alívio sabor menos desagradável do que a morfina oral. O
melhor do que a administração intravenosa, tramadol (50 a 100mg intravenoso ou oral, repetido
subcutânea, intramuscular ou oral de opioides. Se a cada 2 horas até um máximo de 600mg por dia)
for usada a raque-anestesia, então 100 a 150μg de também é uma excelente opção para alívio da dor
pós-operatória. Também podemos assegurar a
Agnes que o uso por curto prazo, imediatamente analgésicos orais, um bloqueio TPA eficaz atinge
após o parto, está associado a baixa transferência do bem a incisão da cesariana (dermátomos T10 a L1) e
medicamento para o leite materno (menos de 3%) e dura até 36 horas.
que não existem efeitos aparentes no bebê. Em
alguns países, a nova geração de AINEs, os Relato de caso 3
inibidores específicos da cicloxigenase-2 (inibidores
da COX-2), como parecoxib intravenoso (40mg por
(analgésicos no final da
dia) e celecoxib oral (400mg, depois 200mg a cada gestação)
12 horas) podem estar disponíveis, e porque não
têm efeito na função plaquetária, são a melhor A enfermeira vem lhe dizer que Martina, uma mulher
opção para mulheres que têm sangramento ou saudável na 33a semana da quarta gestação atendida em
correm risco de sangramento. No entanto, ainda consulta pré-natal, se queixa de dor intensa em pontadas na
não foram adequadamente avaliados durante parte posterior e frontal da pelve. A dor vem piorando
lactação humana e, embora o risco de afetar o bebê gradualmente há várias semanas e Martina já não consegue
amamentado pareça baixo, a segurança não pode ser cuidar bem de seus filhos. Diz que dói muito para se levantar
garantida. Alguns países também têm e se sente mais confortável engatinhando pela casa do que
paracetamol/acetaminofeno intravenoso que causa andando. Quando você encontra Martina, ela explica que
picos de concentração plasmática mais altos e mais levou duas horas para andar de casa até a clínica, percurso
rápidos do que a dose oral equivalente. que antes ela fazia em 20 minutos. Está muito sensível à
palpação da região supra-púbica e na parte superior das
Algum outro bloqueio anestésico local pode ser nádegas. A dor aumenta apertando e soltando a pelve (como
útil para ajudar a reduzir o risco de Agnes ter uma mola). “Por favor, o senhor pode fazer alguma coisa
dor mal controlada? para me ajudar?” pergunta Martina. Você explica que
A infusão de anestésico local na ferida (ou talvez parece que ela tem diástase da sínfise com separação
mesmo diclofenaco) é eficaz para reduzir a dose importante e ruptura secundária e inflamação nas articulações
necessária de opioide, mas requer bombas sacrilíacas. Você explica o problema e discute com ela um
dispendiosas e cateteres, portanto é bem possível plano inicial de tratamento. Diz a ela que pode começar com
que não esteja disponível. Se houver um médico algum medicamento forte se ela não melhorar em uma
bem treinado, os bloqueios bilaterais ilioinguinais e semana.
ílio-hipogástricos na parede abdominal próximo à
crista ilíaca anterior, ou o bloqueio da bainha retal Quais as condições dolorosas que podem ocorrer
pode obter redução semelhante da dose de opioide durante a gestação?
nas primeiras 12 ou 24 horas. O melhor bloqueio A diástase da sínfise púbica é um exemplo de uma
nervoso periférico, se alguém tiver o conhecimento condição muito dolorosa e incapacitante que ocorre
e a especialização, seria dar a Agnes bloqueios com frequência durante e após a gestação. No
bilaterais transversos do plano abdominal (TPA). entanto, os princípios de tratamento
Esse bloqueio analgésico regional é realizado medicamentoso da dor presente no primeiro
usando, por exemplo, 20ml de lidocaína a 0,25% ou trimestre de gestação podem ser aplicados às
ropivacaína a 0,5% em cada lado. A injeção é condições ou doenças mais dolorosas, inclusive dor
aplicada logo acima da cavidade pélvica na seção musculoesquelética (outros exemplos são dor na
posterior do triângulo de Petit, no espaço entre os faceta lombar vertebral, protrusão ou ruptura
músculos grande dorsal e o oblíquo externo. A discal); dor visceral (colecistite, cólica renal, fibrose
técnica guiada por ultrassom (“two pop”) permite uterina degenerativa, ou dor intestinal); dor
que a medida que a agulha de ponta romba passa neuropática (nevralgia intercostal, meralgia
através da extensão fascial do oblíquo externo e parestésica do nervo cutâneo lateral da coxa,
depois do interno, o anestésico local possa ser nevralgia ílio-hipogástrica e gênito-femoral, várias
depositado entre os músculos oblíquo interno e os nevralgias induzidas por câncer, síndrome de dor
abdominais transversos. Combinado com
259

regional pós-traumática complexa ou dor pós- durante o segundo trimestre de gestação onde esses
amputação); enxaqueca e dor de câncer invasivo. medicamentos podem ser úteis. A exposição fetal
no final da gestação pode resultar em
Qual o tratamento inicial a ser sugerido para oligohidrâmnio devido a prejuízo renal, fechamento
Martina? prematuro do duto arterioso com hipertensão
Independentemente da causa da dor, as opções não pulmonar neonatal subsequente, e hemorragia
farmacológicas de tratamento devem ser intracraniana neonatal. Existem poucas informações
consideradas e tentadas, sempre que possível, antes sobre os efeitos dos inibidores da COX-2 (por ex.,
de usar analgésicos para dor aguda que parece celecoxib) e esses agentes também devem ser
necessitar de tratamento prolongado ou de uma evitados.
abordagem gradual para o tratamento continuado.
Seu plano para Martina deve iniciar com fisioterapia Anestésicos locais ou opioides seriam benéficos
(por ex., encaminhamento a um terapeuta para nesse caso?
receber um cinto de suporte pélvico sacrilíaco; É o caso com muitas condições dolorosas (como o
manipulação suave e exercícios posturais; e de Martina) em que o tratamento inicial vai acabar
aplicação local de calor ou gelo, neuroestimulação se mostrando insuficiente. A possibilidade de um
elétrica transcutânea, acupuntura ou tratamentos componente neuropático deve ser considerada no
semelhantes), mas também seria razoável introduzir caso de Martina e o tratamento medicamentoso
analgésicos não opioides, nunca esquecendo da adequado foi discutido no caso 1 acima. No
segurança do feto e do recém-nascido. O entanto, as duas próximas opções principais a
paracetamol (acetaminofeno) tem sido usado em considerar para Martina são infiltração com
milhares de gestantes e é seguro. A aspirina é anestésico local e analgesia opioide oral. A
aceitável mas deve-se evitar seu uso prolongado infiltração com anestésico local proporciona alívio
(vide caso 2 acima). O tramadol ainda não foi temporário (e às vezes prolongado) da dor articular
avaliado em grandes estudos durante a gestação, (outro exemplo é no cóccix para coccidínia, ou na
mas, é amplamente usado após o primeiro trimestre, articulação facetaria para lombalgia) e dor miofascial
portanto seu uso de curto prazo seria aceitável para (por ex., nos pontos desencadeantes na parede
reduzir a dor intensa de Martina até que outras abdominal, pescoço ou ombros, ou na área
medidas tenham oportunidade de se tornarem costocondral e intercostal). Pode-se incluir um
eficazes. Não é ideal continuar com o tramadol por esteróide, como a triamcinolona, se houver suspeita
várias semanas até a época do parto, porque existem de inflamação, mas é melhor omitir os esteróides no
casos de síndrome de abstinência neonatal em 24 a primeiro trimestre e em injeções repetidas. Desde
36 horas. que o médico conheça a anatomia envolvida e tenha
Os AINEs têm função limitada durante a gestação, especialização adequada, a infiltração costuma ser
e é muito importante entender as implicações de sua um procedimento de baixo risco que pode ser útil
prescrição. Esses medicamentos impedem a para diagnóstico e terapia. Os anestésicos locais têm
formação da junção do espaço miometrial induzida risco zero ou mínimo para o feto, embora os limites
por prostaglandinas e o influxo trans-membranoso e de dose máxima para o medicamento individual e
a liberação de cálcio no sarcolema, tornando a para o tipo de bloqueio devam ser usados. É preciso
indometacina um medicamento tocolítico eficaz que cuidado maior ao injetar próximo a órgãos
tem sido usado para prevenir parto prematuro após importantes ou ao feto (por ex., ao injetar próximo
o período de organogênese. No entanto, são contra- à bexiga e segmento uterino inferior ou ao colo na
indicados no final da gestação, certamente após 32 sínfise púbica). Como opção final, se houver
semanas (como é o caso de Martina), e alguns técnicas peridurais em um hospital de referência, um
acham até que desde o início da viabilidade fetal período de analgesia peridural com uma
(23-24 semanas em países e hospitais com muitos combinação de anestésico e opioide pode ser
recursos). Isso deixa apenas um curto período benéfico.
Se a analgesia opioide for iniciada durante a (dependendo da meia vida do opioide específico,
gestação, é melhor internar a paciente por alguns por ex., 6 a 36 horas para morfina e 24 a 72 horas
dias. Essa estratégia permite a titulação e a para metadona e buprenorfina), mas ocasionalmente
estabilização do opioide oral (vide caso 1 acima) e demora muitos dias. O risco é maior se a mãe se
suplementação com opioide intravenoso ou tornou tolerante aos opioides e precisou de
cetamina intravenosa para estabelecer o controle da aumento de dose ou de altas doses de manutenção
dor. Opioides orais ou sublinguais (morfina, (incidência de 30 a 90% com metadona, e, de 50%,
metadona, codeína e, em alguns países, oxicodona, mas menos intenso, com buprenorfina).
buprenorfina e fentanil) podem ser usados com Infelizmente, o aleitamento não previne essa
segurança por curtos períodos durante a gestação (e síndrome. Os sinais e sintomas do bebê são
em alguns casos já terão sido prescritos ou estão causados por hiperatividade autonômica (que pode
sendo usados ilicitamente pelas pacientes). Se a se manifestar como bocejos, espirros ou febre) e
administração prolongada é esperada, é preferível irritabilidade cerebral (por ex., taquipnéia, tremor,
usar medicamentos sem metabólitos ativos, por aumento do tônus, comportamento alimentar ruim,
exemplo metadona no lugar de morfina para terapia e, em casos graves, convulsões). A gravidade da
de manutenção em dependentes de opioides. síndrome também está parcialmente relacionada
Embora exista uma taxa um pouco maior de baixo com a dose materna e é mais grave em mulheres
peso ao nascer e de natimortos entre mulheres tolerantes ou dependentes de opioides. O bebê deve
recebendo terapia opioide crônica, a maioria tem ser trocado e cuidado em um ambiente sossegado e
bons desfechos neonatais. Já foi sugerido que o uso alguns vão precisar de tratamento com sedativos,
crônico de opioides durante a gestação está como fenobarbital (10 mg/dia), diazepam, clonidina
associado a comportamento dependente na vida ou morfina (iniciando com 0,4 a 1mg/dia em doses
adulta posterior, mas evidências observacionais não divididas e aumentando 10 a 20% a cada 2 ou 3 dias,
provam a causalidade e tais achados devem ser conforme necessário). O tratamento pode ter que
vistos com algum ceticismo. As mulheres que se prosseguir por 4 a 20 dias e às vezes por mais
tornam tolerantes aos opioides e precisam de doses tempo.
cada vez mais altas apresentam vários desafios para
o tratamento da dor durante o parto, além de Pérolas de sabedoria
durante e após a cesariana. Opções como rotação de
opioides e múltiplos opioides podem ter que ser
 Saiba quais são os analgésicos comuns
consideradas (vide capítulo sobre terapia opioide
considerados seguros no início da gestação e
crônica). Essas mulheres precisam de mais
saiba onde encontrar informações que
intervenções e aumentam a carga de trabalho da
descrevam a segurança do medicamento
equipe.
durante a gestação e a lactação. Oriente-se
Os efeitos neonatais dos analgésicos opioides
por recomendações publicadas e entre em
usados na época do nascimento são importantes,
contato com outros médicos e enfermeiros
por isso vários membros da equipe devem saber do
envolvidos com o tratamento da dor.
consumo de opioides, inclusive o obstetra, a
 Escolha um regime analgésico pós-
parteira, o pediatra e o médico local. A depressão
operatório para a cesariana que não seja
respiratória neonatal pode surgir ao nascimento,
apenas eficaz mas que também minimize a
portanto pode haver necessidade de pessoas
exposição do bebê ao medicamento através
treinadas em ressuscitação neonatal; se possível,
do leite materno. Deve haver uma
deve haver disponibilidade de naloxona. O bebê
abordagem multimodal baseada em
também deve ser observado em uma área de alta
opioides, principalmente usando a via de
dependência, se possível, e deve haver pessoal
administração subaracnóidea. Se for usado
treinado para observar a existência de síndrome de
um opioide sistêmico, ele deve ser
abstinência neonatal. Essa síndrome costuma
combinado com analgésicos não opioides
aparecer em horas ou dias após o nascimento
261

e/ou um método analgésico regional (por reservados para o segundo trimestre da


ex., bloqueio do plano abdominal gestação e devem ser evitados após 32
transverso). semanas de gestação.
 O uso de opioides durante a gestação não  Use a tabela a seguir para fazer uma
causa malformações fetais, mas pode avaliação risco-benefício individual para a
resultar em depressão respiratória neonatal sua paciente antes de começar a analgesia:
ao nascimento e em uma síndrome de
abstinência neonatal começando no
primeiro ou segundo dia após o nascimento.
 Durante e imediatamente após a gestação, o
paracetamol (acetaminofeno) é o analgésico
não opioide mais seguro, e são preferidos
opioides diferentes da codeína.
 Antiinflamatórios não esteróides são
analgésicos valiosos mas devem ser

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Faculty of Pain Medicine. Approved by Australian
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The pregnant patient. Second edition 2005, Dec 2007 update. ObFocus. High risk pregnancy directory.
http://www.obfocus.com/resources/medications.htm
Medicamento Recomendações durante Recomendações durante
a gestação aleitamento
Paracetamol (acetaminofeno) Compatível com toda a gestação Compatível
Aspirina Evitar na concepção e evitar altas Toxicidade potencial
doses crônicas durante a gestação
Indometacina Evitar na concepção, durante as Provavelmente compatível
primeiras 10 semanas e após 32
semanas de gestação
Diclofenaco Evitar na concepção, durante as Compatível
primeiras 10 semanas e após 32
semanas de gestação
Ibuprofeno Como indometacina Compatível
Naproxeno Como indometacina Compatível
Cetoprofeno Como indometacina Compatível
Cetorolaco Como indometacina Compatível
Celecoxib Como indometacina Poucos dados, toxicidade
potencial
Tramadol Provavelmente evitar no primeiro
trimestre, mas depois baixo risco (é
possível síndrome de abstinência
neonatal)
Morfina Compatível, mas possível depressão Provavelmente compatível
neonatal ao nascimento e síndrome
de abstinência com uso no terceiro
trimestre
Codeína Como a morfina, mas menos eficaz Provavelmente compatível
Petidina (meperidina) Como a morfina, mas use opioides Compatível, mas use
alternativos se possível opioides alternativos
Metadona Como a morfina Provavelmente compatível
Oxicodona Como a morfina Provavelmente compatível
Fentanil Como a morfina
Amitriptilina Baixo risco por toda a gestação Poucos dados, toxicidade
potencial
Carbamazepina Compatível se usada para epilepsia, Compatível
mas é preferível evitar (risco de
malformações).
Gabapentina Poucas evidências sugerem baixo Sem dados – provavelmente
risco compatível
Pregabalina Dados insuficientes Sem dados – provavelmente
compatível
Cetamina Baixo risco por toda a gestação
Clonidina Provavelmente evitar durante o Provavelmente compatível
primeiro trimestre
Bupivacaína Baixo risco por toda a gestação Provavelmente compatível
Ropivacaína Compatível por toda a gestação Provavelmente compatível
Lidocaína (lignocaína) Compatível Provavelmente compatível
263

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 32
Dor na Anemia Falciforme
Paula Tanabe e Knox H. Todds

quebrando”, ou “ser atingido por um pedaço de


Relato de caso madeira”.
Esses episódios perpétuos têm um início abrupto,
Rubens tem 25 anos, anemia falciforme e veio para a são intermitentes e imprevisíveis, e são associados a
avaliação de uma dor moderada e constante no quadril dor intensa. As pessoas em geral não conseguem
direito(escore 6/10) com episódios intermitentes de dor aguda, realizar atividades normais durante uma crise de dor,
relatada com “dor de crise”. Rubens descreve essas crises como que pode durar de várias horas até uma semana ou
intensas, ocorrendo mensalmente, e ele se sente como “se todos mais.
os ossos de meu corpo estivessem quebrando”. A dor é mais A gravidade e a frequência das crises de dor variam
frequente nas pernas. com o genótipo específico. Pacientes com SS e SOB
costumam ter episódios mais agudos de dor do que
Com que frequência as aquelas com SC e SB+. Isso não quer dizer que
pacientes com SC e SB+ não tenham episódios
pessoas com anemia dolorosos – os episódios são apenas mais incomuns
falciforme sentem dor? e infrequentes.
Tanto fatores fisiológicos quanto psicológicos
podem desencadear crises dolorosas. Os
Esse caso mostra um quadro típico enfrentado
desencadeantes comuns das crises dolorosas são
pelos terapeutas de todo o mundo. Em geral, a dor
infecção, mudanças de temperatura, e qualquer tipo
associada à anemia falciforme (AF) é mal
de estresse emocional ou físico. As causas comuns
compreendida. As pessoas com AF costumam sentir
de dor aguda incluem:
dor aguda e crônica. Hoje sabemos que metade dos
pacientes com AF informam algum tipo de dor  Síndrome da mão e do pé em crianças
diária. “Dor de crise”, a mais forte dor sentida por (dactilite)
pessoas com AF, tem sido relatada em até 13%  Crises dolorosas: vaso-oclusão
cotidianamente. A dor de crise (dor aguda) foi  Sequestro esplênico
descrita como “se todos os meus ossos estivessem  Síndrome do tórax agudo
 Colelitíase
 Priapismo
Além de crises dolorosas agudas, as pessoas com AINEs em combinação com opióides, podem ser
AF também têm dor crônica. As causas específicas úteis para tratar crises dolorosas de forte
da dor crônica incluem: intensidade.
 Artrite
 Artropatia Devemos nos preocupar
 Necrose avascular (em geral nos quadris e os com o risco de dependência
ombros e mais comuns em pessoas com
genótipo SC) se prescrevermos opióides?
 Úlceras nas pernas
 Colapso de corpo vertebral A opiofobia, ou o medo de prescrever opióides, é
um fenômeno mundial. E algumas síndromes
dolorosas ainda não são boas indicações para
Como tratar a dor opióides (por ex., lombalgia crônica, cefaléia). Mas a
farmacologicamente? AF parece ser uma boa indicação para os opióides e
não existem dados sugerindo que pessoas com AF
Os terapeutas devem considerar a necessidade de corram maior risco de dependência a opióides. O
tratamento da dor crônica além de medicamento de medo injustificado de causar dependência resulta no
resgate para as crises dolorosas agudas. Pessoas com tratamento insuficiente do efeito grave e debilitante
mais de três crises dolorosas agudas por ano são da dor da AF. A dor da AF, portanto, deve ser
candidatas à terapia de hidroxiuréia que diminui sempre tratada agressivamente. Comportamentos
significativamente o número de crises dolorosas e a tidos com frequência como suspeitos de
incidência da síndrome do tórax agudo. dependência são em geral uma indicação do
As recomendações gerais são: tratamento insuficiente da dor ou da progressão da
 Tratar a dor como emergência doença (chamados de “pseudodependência”).
 Avaliar com frequência os níveis de dor
 Avaliar o estado de hidratação e manter Existem terapias não
hidratação adequada farmacológicas para
 Investigar outras causas possíveis de
dor/complicações da doença (síndrome do
episódios de dor aguda e
tórax agudo, priapismo, sequestro esplênico, crônica?
colelitíase)
 Não negar opióides quando a dor é intensa Muitas pessoas com AF disseram que outras
Analgésicos para dor leve a moderada incluem terapias ajudaram a evitar crises dolorosas ou a
acetaminofeno (evitar se houver doença hepática) e tratar a dor crônica. São as seguintes:
antiinflamatórios não esteróides (AINEs) como  Manter hidratação adequada
ibuprofeno ou cetorolaco (contraindicados em  Manter um diário de dieta, atividades ou
pacientes com gastrite/úlceras e insuficiência renal; fatores estressantes, que ajuda a identificar
monitorar a função renal se usados cronicamente). desencadeantes das crises dolorosas
A dor moderada a intensa deve ser tratada com  Calor e massagem
opióides, como sulfato de morfina ou
 Uso de uma série de ervas e vitaminas
hidromorfona. Muitos pacientes com dor crônica
(principalmente ácido fólico)
associada a AF podem precisar de doses diárias de
 Muita atenção com uma dieta saudável (altas
opióides para manter uma função ideal. Altas doses
quantidades de frutas e legumes, baixas
de opióides costumam ser necessárias para tratar
quantidades de proteína)
crises dolorosas. A meperidina NÃO é
recomendada porque pode ser associada a
convulsões e toxicidade renal. O acetaminofeno ou
265

Além da crise dolorosa, inflamação contribui para a fisiopatologia da dor.


Os mecanismos incluem danos ao endotélio
quais as outras vascular e mediadores químicos da inflamação,
complicações importantes microinfartos causados por falcização de capilares
locais, isquemia, sintomas somáticos (músculos,
que devemos reconhecer? tendões, ligamentos, ossos e articulações), e
sintomas viscerais (baço, fígado e pulmões), em
A anemia falciforme é associada a mortalidade geral descritos pelo paciente com sendo vagos,
precoce em vários países, embora não exista uma difusos e/ou dor surda.
estimativa correta da expectativa de vida.
Historicamente, crianças com AF não sobrevivem Dicas de um especialista em
até a idade adulta. No entanto, devido ao uso de
penicilina profilática até a idade de cinco anos para
medicina complementar
prevenir septicemia, as crianças estão sobrevivendo,
e muitos adultos nos Estados Unidos estão vivendo Muitas estratégias de medicina alternativa
até os 60 anos. Damos a seguir uma lista de complementar podem limitar a frequência das crises
complicações graves que devem sempre ser dolorosas e melhorar a qualidade de vida dos
consideradas ao tratar pessoas com AF. Essas pacientes. Muita atenção à nutrição, ter sono
complicações são mais comuns na infância, mas adequado, usar calor e massagem foram
também podem ocorrer em adultos: mencionados por pessoas com AF que têm alto
 Anemia crônica nível de funcionalidade. O uso de estratégias
complementares deve, portanto, ser estimulado.
 Sequestro esplênico agudo
 Septicemia
 Crise aplástica
Pérolas de sabedoria
 Síndrome do tórax agudo
 Muitas pessoas com AF sentem dor
 AVE
diariamente
As complicações crônicas comuns em adultos são:
 As pessoas com AF costumam ter dor aguda
 Hipertensão pulmonar
e crônica
 Doença renal progressiva
 Os episódios dolorosos começam na
 Anemia crônica infância e prosseguem por toda a vida
 Retinopatia  Acetaminofeno e AINEs são úteis para
 Infarto da vesícula, do fígado e dos pulmões tratar dor leve a moderada
 Sobrecarga de ferro (se o paciente recebeu  Os opióides costumam ser necessários para
inúmeras transfusões de sangue) tratar crises dolorosas agudas
 Depressão  Alguns pacientes vão precisar do uso
crônico de opióides diários para tratar a dor
e melhorar as funções diárias
Qual é o mecanismo  Estratégias complementares, como uso de
fisiopatológico da anemia calor, sono suficiente, hidratação, massagem
e excelente nutrição são consideradas úteis
falciforme?  Novamente, os opióides são muito eficazes
e não devem ser negados aos pacientes com
As crises dolorosas são desencadeadas pela anemia falciforme.
desoxigenação e pela polimerização resultante da
hemoglobina. Uma tríade de isquemia, infarto e
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267

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 33
Síndrome Dolorosa Regional Complexa
Andreas Schwarzer e Christoph Maier

Em 1865, o neurologista Silas Weir Mitchell relatou o edema aumentam quando o membro está
casos de soldados que se queixavam de uma dor pendente. Outras características essenciais da
forte em queimadura hiperestesia pronunciada, doença incluem: (1) os doentes sofrem de
edema e redução da função motora dos membros disfunções sensoriais, motoras e autonómicas; (2) os
na sequência de lesões nos membros superiores ou sintomas alastram-se para além da zona lesionada
inferiores. Mitchell designava estas perturbações principal e não podem ser atribuídos à zona de
«causalgia». Nos anos que se seguiram, estes inervação de um único nervo, por ex. a mão é
sintomas voltaram a ser descritos vezes sem conta afetada na sequência de uma fratura do rádio; (3)
após lesões nos membros, mas eram designados de geralmente, são afetados tanto articulações como
formas diferentes (algodistrofia, distrofia simpática nervos; (4) os doentes apresentam frequentemente
reflexa, atrofia de Sudeck). Atualmente, este padrão perturbações psicológicas. Não existe qualquer tipo
de doença é denominado síndrome dolorosa de diferença clínica entre a SDRC de tipo I e de tipo
regional complexa (SDRC) e são reconhecidos II, à exceção da lesão do nervo.
dois tipos: SDRC de tipo I, sem lesões nervosas, e
SDRC de tipo II, associada a grandes lesões Qual a incidência da SDRC
nervosas.
e existem ativadores
Quais as principais específicos?
características dos doentes
A SDRC é uma doença rara. Cerca de 1% dos
com SDRC? doentes desenvolve SDRC na sequência de uma
fratura ou lesão nervosa. No entanto, não existem
Regra geral, os sintomas da SDRC manifestam-se na dados exatos quanto à sua prevalência. Num estudo
extremidade distal (geralmente nos membros recente realizado nos Países Baixos, a incidência foi
superiores e, menos frequentemente, nos membros estimada em 26/100 000 pessoas por ano, sendo os
inferiores). Quase todos os doentes (90-95%) indivíduos do sexo feminino os mais afetados, no
sofrem de dor descrita como queimadura e mínimo três vezes mais frequentemente do que os
perfurante, sendo sentida profundamente nos homens. Noutro estudo baseado na população e
tecidos. Além disso, em quase todos os doentes, realizado nos Estados Unidos, a incidência foi
observa-se edema do membro afetado, com ênfase estimada em 5,5/100 000 pessoas por ano. Os
nas zonas dorsais (dorso da mão ou do pé). A dor e membros superiores são os mais frequentemente
afetados e uma fratura é a causa mais comum
(60%).
Que estratégias de
tratamento desempenham
Como se explica o um papel importante na
desenvolvimento de SDRC? gestão da SDRC?
A história clínica de quase todos os doentes (90- O tratamento deve realizar-se em três passos: no
95%) revela que se produz um evento início, o tratamento da dor em repouso e o
desencadeante inicial (traumatismo). O motivo pelo tratamento do edema têm a máxima prioridade. A
qual apenas alguns doentes desenvolvem SDRC seguir ao tratamento farmacológico, o repouso e a
permanece por esclarecer. Também não existe imobilização são os passos mais importantes. Na
qualquer teoria abrangente que explique a segunda fase, a terapêutica deve incluir tratamento
diversidade e heterogeneidade dos sintomas (edema, da dor em movimento, bem como durante a
sintomas do sistema nervoso central, envolvimento fisioterapia e terapia ocupacional. O tratamento da
articular, etc.). As tentativas atuais explicam dor passa para segundo plano na terceira fase,
sintomas isolados, mas não o quadro durante a qual a ênfase é colocada no tratamento de
global. Uma das hipóteses essenciais acerca do perturbações funcionais ortopédicas, bem como na
principal patomecanismo para o desenvolvimento reintegração psicossocial. A intensificação da
da SDRC inclui os processos inflamatórios. Este fisioterapia pode ser limitada devido à recorrência
ponto de vista é apoiado pelo fato de os sinais de dor ou edema. A regra principal é que o
inflamatórios clássicos (edema, rubor, hipertermia e tratamento não deve causar qualquer tipo de dor.
função comprometida) serem evidentes, em
particular nas fases precoces da doença, e de estes Descrição de caso
sintomas serem positivamente influenciados pela
administração de corticosteroides.
Etta, uma secretária de 58 anos, teve pouca sorte no dia
chuvoso em que saiu de casa e escorregou nos degraus da
Qual o prognóstico para entrada da sua casa. No hospital, foi-lhe diagnosticada uma
doentes que desenvolveram fratura do rádio esquerdo. Parecia estar a evoluir bem após o
tratamento da fratura por osteossíntese e da aplicação de
SDRC? gesso. No entanto, poucos dias depois de receber alta sentiu
uma dor em queimadura constante e crescente no antebraço e
É desconhecido o número de casos que evoluem do edema dos dedos. Na consulta com o cirurgião, queixou-se
com cura espontânea ou na sequência de um da dor e o gesso foi removido.
tratamento adequado (e evitando o tratamento
indevido). O prognóstico relativo à total Os sintomas são uma consequência «normal»
recuperação da função do membro afetado é da fratura?
desfavorável, e apenas 25-30% de todos os doentes Após a aplicação de um gesso mais largo e da prescrição de
recuperam integralmente, consoante o nível de analgésicos, a dor tornou-se tolerável, embora os dedos
gravidade e as respetivas comorbilidades. A relação permanecessem edemaciados Seis semanas mais tarde, o gesso
da extensão das alterações osteoporóticas com o foi removido e deu-se início à fisioterapia. Uns dias mais
prognóstico permanece incerta. Os seguintes tarde, Etta referiu um aumento da tumefação após a remoção
sintomas apontam para uma evolução desfavorável do gesso e afirmou sentir uma dor de tipo picada, tipo ardor,
da doença: tendência para rigidez nas articulações, num padrão circular à volta do pulso, que irradiava para os
contractura nas fases precoces, sintomas motores dedos. Adicionalmente, o movimento dos dedos estava
pronunciados (distonia, tremor e espasticidade), reduzido; a mão brilhava, estava edemaciada e apresentava
edema e comorbilidade psicológica. uma cor azulada-avermelhada.
269

Novamente, trata-se de uma consequência Existem outras opções terapêuticas? Quais são
«normal» da fratura? as principais regras para a terapêutica?
O Dr. Jones, o médico de serviço, recomendou a intensificação No início da fisioterapia, foi colocada a ênfase no ombro e,
da fisioterapia e o aumento das doses de analgésicos. Durante duas semanas mais tarde, a mobilidade normal foi
a intensificação da fisioterapia, os dedos de Etta foram restabelecida. O progresso na melhoria da função da mão era
mobilizados de forma violenta, o que lhe causava muita dor. bem mais lento. Assim que Etta exercitava demasiado a mão
Com o exercício, a dor e o edema aumentaram e a mão ou a usava para desempenhar tarefas domésticas, o edema
continuava com uma cor azulada-avermelhada e brilhante. desenvolvia-se mais e a dor tornava-se mais forte. Passados
Além disso, a Etta notou um aumento do crescimento das cerca de 3 meses, com a fisioterapia e terapia ocupacional,
unhas dos dedos e dos pelos no dorso da mão esquerda. Etta conseguiu uma melhoria da função da mão e uma
Embora a fisioterapia tenha sido intensificada, a falta de redução da dor. Foram precisos 6 meses adicionais até
mobilidade dos dedos agravou-se, a mão estava conseguir regressar ao escritório e trabalhar no computador
constantemente edemaciada e a dor provocava um ardor quase com a mão esquerda.
insuportável, tanto em repouso como durante a mobilização.
Etta ficou desesperada e o Dr. Jones já não sabia como Qual é a evolução típica da SDRC?
ajudá-la. Este caso exemplifica uma evolução típica da SDRC
relativamente ao sexo, idade, lesão e sintomas. No
O que deveria ser feito? Por que razão falhou a entanto, especialmente nas fases precoces da
terapêutica do Dr. Jones? doença, é muitas vezes difícil distinguir entre os
Passaram-se seis semanas e o Dr. Jones encaminhou Etta sintomas de SDRC e a cura normal ou ligeiramente
para um centro especializado no tratamento da dor. A doente retardada de uma fratura. O diagnóstico de SDRC
continuava a queixar-se de dor, que nessa altura também já só é possível depois de se desenvolverem os
irradiava para o antebraço e o cotovelo. Além disso, referia sintomas típicos como, por exemplo, a disfunção da
défices funcionais consideráveis na mão (não conseguia fechar função sensorial, vasomotora, motora e
o punho e a distância dedos da palma da mão era de 10 cm). sudomotora. No caso de Etta, a atenção deve
Nos últimos dias, também notou uma restrição nos concentrar-se em dois fenómenos clínicos típicos:
movimentos do ombro (em particular na abdução). O Dr. em primeiro lugar, a influência negativa dos
Ndungu, o médico de serviço no centro especializado na dor, exercícios físicos forçados e, em segundo lugar, o
reconheceu o problema e recomendou um tratamento envolvimento frequentemente observado do ombro
adequado. Etta teve sorte. durante a evolução da doença. A mobilidade da
Quais as opções do Dr. Ndungu relativamente articulação do cotovelo não é afetada de um modo
a procedimentos de diagnóstico adicionais? geral, enquanto a abdução e rotação da articulação
Com base nos critérios de diagnóstico definidos pela IASP do ombro ficam frequentemente comprometidas. A
(ver abaixo) e na evolução da doença, o Dr. Ndungu paciência e a atividade física adaptada
diagnosticou um síndrome doloroso regional complexo. Na individualmente são requisitos essenciais para os
altura de iniciar o tratamento no centro especializado na dor, doentes.
explicou a Etta o padrão da doença e os princípios da
terapêutica, que exigem a sua cooperação ativa, compreensão e Quais os sintomas clínicos
paciência, uma vez que o progresso pode ser lento, com da SDRC?
recidivas e períodos de estagnação. Prescreveu a Etta uma
tala e recomendou que posicionasse a mão e o antebraço acima
O padrão clínico da SDRC caracteriza-se por uma
do nível do coração, até o edema diminuir. Foram prescritos
disfunção sensorial, motora e autonómica. Além
coxib (celecoxib) e anticonvulsivos (gabapentina) como
disso, os doentes com SDRC sentem
analgésicos. Foi iniciada a fisioterapia e terapia ocupacional
frequentemente como se a mão ou o pé tivesse
uma semana depois da diminuição do edema e da dor em
deixado de lhes pertencer ou como se não fossem
repouso.
percetíveis ou controláveis. Só conseguem realizar
movimentos sob controlo visual direto («síndrome correspondem a um fluxo sanguíneo alterado. Cerca
neglect-like»). Adicionalmente, produzem-se as de 60% dos doentes sofrem de hiperhidrose e 20%
seguintes características em quase todos os casos: de hipohidrose. Muitas vezes, nas fases precoces, o
 A disfunção causada pela SDRC é crescimento dos pelos e das unhas no membro
desproporcionada relativamente à causa afetado aumenta, diminuindo em seguida, em fases
desencadeante mais avançadas da doença. Os sintomas distróficos
 Existe uma tendência para uma (isto é, atrofia cutânea e muscular, fibrose dos
generalização distal de todos os sintomas, tecidos conjuntivos) são típicos das fases mais
isto é, não é afetado apenas um único dedo, avançadas da doença. No entanto, nem sempre
mas sim a mão por completo, e a mão é ocorrem.
mais fortemente afetada do que o antebraço.
 As estruturas articulares e dos tecidos moles Quais os critérios de
também são afetadas, com a perturbação da diagnóstico para a SDRC?
mobilidade correspondente.
 Consoante a posição e a atividade física, o A SDRC é um diagnóstico clínico. Não existem
edema ocorre geralmente nas fases precoces quaisquer parâmetros laboratoriais que confirmem a
da doença. presença ou a ausência da doença. A
Disfunção sensorial: A dor espontânea e a desmineralização parcial, em particular nas regiões
hiperalgesia na mão ou no pé, que não se limitam à periarticulares, aparece na radiografia algumas
zona de inervação de um único nervo periférico, são semanas ou meses após o início da doença, mas
características importantes do padrão clínico da pode ser observada em menos de 50% dos doentes
SDRC. A dor é descrita como queimadura e é com SDRC. A TC e a RM não são específicas para
sentida nos tecidos profundos. Além disso, estão o diagnóstico de SDRC. Contudo, a cintigrafia óssea
muitas vezes presentes crises paroxísticas de dor, trifásica desempenha um papel importante no
descritas como choques elétricos. Verifica-se quase diagnóstico da SDRC durante o primeiro ano que se
sempre a presença de dor por pressão periarticular segue ao traumatismo. A acumulação de
das articulações dos dedos. Regra geral, podem ser radionuclídeos aumentados em forma de faixa nas
observados forte hipersensibilidade a estímulos articulações metacarpo-falângicas e inter-falângicas
dolorosos ligeiros (hiperalgesia) ou dor geralmente do membro afetado durante a fase de mineralização
na sequência de estímulos não dolorosos (alodinia). é um critério de diagnóstico muito específico.
Disfunção motora: Em 90% de todos os casos, Os critérios de diagnóstico atuais
a função motora voluntária de todos os músculos encontram-se indicados em seguida, segundo
distais fica comprometida. Movimentos complexos, Harden e Bruehl [3]. Para além da distinção entre
como fechar o punho ou a oposição dedo-polegar, disfunção sensorial, vasomotora, sudomotora e
são limitados. Estes movimentos são possíveis motora, durante o exame físico o médico deve
apenas sob controlo visual. Cerca de 50% dos diferenciar entre sintomas anamnésicos e sinais
doentes com envolvimento dos membros superiores clínicos atuais.
desenvolvem tremor. Observa-se raramente distonia
ou espasticidade.
Disfunção autonómica: Estão frequentemente
presentes diferenças de temperatura cutânea
superiores a 2ºC entre o membro afetado e o
membro não afetado (o lado afetado é mais quente
em cerca de 75% dos casos), e as mesmas
271

Quadro 1
Critérios de diagnóstico para a SDRC (segundo Harden e Bruehl [3])
1 Dor persistente desproporcionada relativamente a qualquer evento desencadeante conhecido
2 O doente deve referir no mínimo um sintoma em três das seguintes categorias (sintomas
anamnésicos):
2.1 Sensorial Referir hiperestesia e/ou alodinia
2.2 Vasomotora Referir assimetria nas temperaturas e/ou alterações na coloração da
pele e/ou assimetria na coloração da pele
2.3 Sudomotora/edema Referência de edema e/ou alterações na sudação e/ou assimetria na
mesma
2.4 Motora/trófica Referir uma diminuição da amplitude dos movimentos e/ou disfunção
motora (fraqueza, tremor, distonia) e/ou alterações tróficas (pelos,
unhas, pele)
3 O doente deve apresentar no mínimo um sinal em dois ou mais das seguintes categorias
durante o exame físico atual:
3.1 Sensorial Evidência de hiperestesia e/ou alodinia
3.2 Vasomotora Evidência de assimetria nas temperaturas e/ou alterações na coloração
da pele e/ou assimetria na coloração da pele
3.3 Sudomotora/edema Evidência de edema e/ou alterações na sudação e/ou assimetria na
mesma
3.4 Motora/trófica Evidência de diminuição da amplitude dos movimentos e/ou disfunção
motora (fraqueza, tremor, distonia) e/ou alterações tróficas (pelos,
unhas, pele)
4 Não existe outro diagnóstico que, de outro modo, pudesse ser considerado para os sinais e
sintomas e o grau de dor e disfunção

Qual o diagnóstico Quais as opções de


diferencial para a SDRC? tratamento para a SDRC?
Na rotina clínica, é fundamental distinguir entre O tratamento da SDRC deve basear-se numa
SDRC e uma cura retardada de um traumatismo ou abordagem multidisciplinar. A par do tratamento da
queixas após uma imobilização prolongada. No caso dor, a recuperação da função do membro deve ter
da SDRC, não ocorre geralmente apenas um um papel importante.
aumento da intensidade da dor, mas sim também Opções farmacológicas: podem ser tomados
uma alteração das características da dor. O temporariamente AINE tradicionais (ibuprofeno 3 x
diagnóstico diferencial é de lesão nervosa ou do 600 mg) ou inibidores da COX-2 (celecoxib 2 x 200
plexo, em particular após uma operação destinada a mg) para o tratamento da dor causada por SDRC.
tratar síndromas de compressão nervosa (síndrome Além disso, podem ser prescritos metamizol (4 x
do túnel cárpico). Contudo, nestes casos, os 1000 mg) e opióides (de libertação controlada). Os
sintomas limitam-se à zona inervada pelo nervo adjuvantes mais importantes para o tratamento da
lesionado. A disfunção autonómica não comprova o dor neuropática são os antidepressivos tricíclicos
diagnóstico de SDRC. Adicionalmente, o (amitriptilina) e os anticonvulsivos (gabapentina).
comportamento de autoagressão é outro Depois de considerar as suas possíveis
diagnóstico diferencial da SDRC. contraindicações e efeitos anticolinérgicos, o médico
deve aumentar a dose gradualmente. Além disso, a
dose deve ser suficientemente elevada antes de se A terapêutica para a SDRC, relativamente ao
avaliar a sua eficácia. A dose de amitriptilina inicial uso de tratamento médico e não médico, não exige
deve ser de 25 mg à noite (alternativamente 10 mg). qualquer contexto particular e cumpre os padrões
A dose pode ser aumentada a cada sete dias em de uma comunidade ou nível de cuidados primários.
incrementos de 25 mg, até uma dose máxima de 75 A aplicação de técnicas de bloqueio nervoso deve
mg. A dose inicial de gabapentina é de 3 x 100 mg, ser reservada aos centros especializados na gestão da
devendo a mesma ser aumentada em 300 mg a cada dor («ao nível do hospital de referência»). A
três dias. Deve ser atingida uma dose mínima de vantagem do tratamento em centros especializados
1800 mg/dia. Em especial em casos de dor no tratamento da dor, para além da fiabilidade do
artrogénica (particularmente durante um exame diagnóstico de SDRC e do recurso a bloqueios
físico), são indicados os glucocorticoides simpáticos, é a maior experiência no doseamento da
(prednisolona em doses decrescentes de fisioterapia e terapia ocupacional – sendo talvez
90/60/30/10/5 mg durante 14 dias). esta, por fim, a questão mais essencial para a
Terapêuticas invasivas: o sistema nervoso recuperação da função do membro afetado.
simpático pode ser bloqueado através de bloqueios
anestésicos unilaterais do gânglio simpático cervical O que se conhece
inferior (gânglio estrelado) (10-15 mL de
bupivacaína 0,5%) ou através de bloqueios da cadeia
atualmente acerca da
simpática lombar ou torácica (5 mL de bupivacaína fisiopatologia da SDRC?
0,5%). São raramente efetuados bloqueios
anestésicos regionais por via intravenosa devido aos Atualmente, não existe qualquer conceito
fracos resultados e ao procedimento doloroso. A fisiopatológico global que explique todos os
indicação para um bloqueio simpático é a dor em sintomas da SDRC. Existem várias explicações
repouso apesar da imobilização e/ou alodinia possíveis. A par das pistas para uma predisposição
pronunciada. Os bloqueios simpáticos não reduzem genética, a inflamação parece ter uma função
apenas a dor, mas podem também frequentemente importante. No contexto de uma inflamação
melhorar a disfunção motora e autonómica. neurogénica, as fibras C e alguns recetores podem
Contudo, é importante comprovar que a simpatolise libertar neuropeptídeos, induzindo assim sinais
foi tecnicamente bem-sucedida, verificando um clínicos, como vasodilatação e edema. Além disso,
aumento significativo da temperatura cutânea na os especialistas debatem atualmente o conceito de
zona de irrigação. uma doença do sistema nervoso central, na qual as
Opções não farmacológicas: enquanto a dor em alterações dos neurónios aferentes, como as ligações
repouso prevalecer, a terapêutica deve limitar-se à patológicas ao sistema nervoso simpático, podem
imobilização consistente do membro afetado numa causar dor espontânea ou evocada. O padrão de
posição mais elevada do que o coração, suportado evolução dos sintomas assemelha-se ao das doenças
por uma tala e através de drenagem linfática. Após do sistema nervoso central. Presume-se que a
uma diminuição evidente da dor, pode proceder-se à desregulação nervosa central resulta em
fisioterapia e terapia ocupacional. Inicialmente, inadaptação, por exemplo, uma alteração na
devem ser tratadas as articulações proximais do temperatura ambiente induz uma reação inadequada
membro afetado e contralateral. Em particular em do fluxo sanguíneo cutâneo e da função
casos de disfunção sensorial e alodinia, são sudomotora. Adicionalmente, os processos de
indicados exercícios de dessensibilização. O reorganização cortical parecem ter uma função
tratamento inicial fundamental deve principiar com importante, pela qual o grau de reorganização se
uma adaptação do estímulo, seguida de exercícios correlaciona positivamente com a difusão da
que visem a imobilização indolor e a melhoria da hiperalgesia mecânica e da dor, o que, por sua vez, é
motricidade fina e, por fim, movimentos contra reversível recorrendo ao tratamento apropriado.
forte resistência.
273

Pérolas de sabedoria Stanton-Hicks M, Harden RN, editores. CRPS: current


diagnosis and therapy, Progress in pain research and
management, vol. 32. Seattle: IASP Press; 2005.
[4] Maihöfner C, Handwerker HO, Neundörfer B, Birklein
 São considerados três aspetos importantes
F. Patterns of cortical reorganisation in complex
para o diagnóstico de SDRC: dor ou regional pain syndrome. Neurology 2003;61:1707-15.
perturbação funcional desproporcional [5] Moseley GL. Graded motor imagery for pathologic
relativamente ao evento desencadeante; pain: a randomized controlled trial. Neurology
sinais de disfunção sensorial, vasomotora, 2006;67:2129-34.
[6] Nelson DV, Brett RS. Interventional therapies in the
sudomotora ou motora no passado; e
management of complex regional pain syndrome. Clin J
resultados atuais de disfunção sensorial, Pain 2006;22:438-42.
vasomotora, sudomotora ou motora durante [7] Pleger B, Ragert P, Schwenkreis P, Förster AF,
o exame clínico Wilimzig C, Dinse H, Nicolas V, Maier C, Tegenthoff
 O tratamento não deve provocar dor. Se M. Patterns of cortical reorganization parallel impaired
tactile discrimination and pain intensity in complex
causar um aumento da dor, o procedimento regional pain syndrome. Neuroimage 2006;32:503-10.
de terapêutico deve ser interrompido. [8] Rowbotham MC. Pharmacological management of
Devem ser seguidos os três passos complex regional pain syndrome. Clin J Pain
terapêuticos seguintes: em primeiro lugar, 2006;22:425-9.
tratamento da dor e do edema; em segundo
lugar, tratamento da dor, permitindo assim o Sítios na Web
movimento; e, em terceiro lugar, tratamento
da disfunção ortopédica funcional. http://www.mayoclinic.com/health/complex-regional-pain-
 A intensidade da fisioterapia deve ser syndrome/DS00265

reduzida se a dor voltar a aumentar ou após http://www.iasp-


um novo traumatismo físico. pain.org/AM/Template.cfm?Section=WHO2&Template=/C
M/ContentDisplay.cfm&ContentID=4174
Referências
[1] Baron R, Schattschneider J, Binder A, Siebrecht D,
Wasner G. Relation between sympathetic
vasoconstrictor activity and pain and hyperalgesia in
complex regional pain syndromes: a case-control study.
Lancet 2002;359:1655-60.
[2] Birklein F, Schmelz M. Neuropeptide, neurogenic
inflammation and complex regional pain syndrome
(CRPS). Neurosci Lett 2008;437:199-202.
[3] Harden RN, Bruehl S. Diagnostic criteria: the statistical
derivation of the four criterion factors. In: Wilson PR,
Guia para o Tratamento da Dor em Contexto de Poucos Recursos

Capítulo 34
Tratamento da Dor em Crianças
Dilip Pawar e Lars Garten

Este capítulo vai abranger as dificuldades de tratar a


dor em crianças e vai dar uma visão geral das As crianças não são apenas
intervenções farmacológicas e não farmacológicas
para o controle eficaz de dor aguda (lesão, trauma e
“adultos pequenos”?
pós-operatória) e crônica (oncológica e de HIV) em
crianças. A faixa etária pediátrica é heterogênea, variando de
recém-nascidos até adolescentes. A percepção e a
As crianças sentem dor? resposta à dor das crianças são diferentes tanto
qualitativa quanto quantitativamente se comparadas
aos adultos. A resposta à dor é mais intensa no
Até recentemente, muitas pessoas acreditavam que
início, mas diminui muito mais cedo do que nos
as crianças não sentiam dor, uma crença baseada na
adultos. Portanto, nenhuma fórmula vai funcionar
falta de entendimento e no medo de usar opioides
para todas e são necessárias medidas
com potencial para depressão respiratória e
individualizadas de alívio da dor.
dependência em crianças, e não em um raciocínio
A compreensão e o apoio dos pais ajudam, devido a
científico. Hoje se sabe que o sistema nervoso
seus elos emocionais. Como as crianças podem não
sensorial e as vias da dor se desenvolvem no meio
pedir analgesia como os adultos podem e pedem, é
da gestação, com conexões e funções de maturação
preciso fazer um esforço para prever a dor,
ao longo dos 3 primeiros meses após o nascimento.
principalmente em lactantes e crianças que não
Não há evidências para respaldar a idéia de que a
podem se expressar verbalmente.
dor é menos intensa em recém-nascidos e crianças
A maioria dos princípios gerais da analgesia pode
pequenas devido a seu sistema nervoso ainda em
ser aplicada às crianças, mas existem algumas
desenvolvimento. No entanto, a dor é subjetiva e a
diferenças psicológicas importantes entre adultos e
resposta à dor é individual e modificada através de
crianças que podem causar problemas,
aprendizado social e experiência. A experiência
principalmente em recém-nascidos e lactantes. Veja
precoce da dor tem papel importante em moldar a
os relatos de caso e imagine que precisa lidar com
resposta individual tardia à dor pela alternação entre
essas situações clínicas.
o eixo do estresse e o circuito nociceptivo.
275

Relatos de caso suas doses máximas, é necessário mudar o opióide.


Interrompa a codeína e comece com morfina oral. Continue
com morfina oral regularmente em casa, após instruir
Você está em um pequeno hospital rural com corretamente os pais. Pense nos efeitos colaterais dos opióides
poucos medicamentos. Considere os seguintes casos – se ainda não apareceram, inicie terapia profilática com
da vida real. Como trataria deles? medicamentos preventivos. Combine a medicação com métodos
não farmacológicos.
Relato de caso 1 (“trauma agudo”)
Ahmed, um menino de 3 anos de idade, com queimaduras Relato de caso 4 (“dor neuropática”)
graves em grande parte (mais de 20%) de seu corpo, foi Nasir é um menino de 6 anos de idade que tem AIDS. Foi
internado. Tem dor aguda. Como você prescreveria analgesia trazido a você por seus pais. Ele recebe terapia antiretroviral
para essa criança? mas tem dor neuropática aguda nas pernas relacionada à
O menino sofre de dor aguda pós-traumática e precisa de infecção por HIV. Qual seria sua primeira linha de terapia?
analgesia rápida. Use morfina em bolus intravenoso (se não Avalie a dor com, por ex., a escala facial de classificação da
for possível, substitua por morfina parenteral), seguida de dor. Mesmo se a dor neuropática for declaradamente
morfina enteral (se a criança precisar ser ventilada, use considerada “resistente a opióides”, inicie medicação com
infusão i.v. de morfina) regularmente para dor constante. morfina oral regularmente como terapia de primeira linha, e
Para qualquer procedimento adicional, por ex., troca de aumente a dose se for possível uma redução adicional da dor
curativos, use um bolus adicional de morfina conforme sem efeitos colaterais perigosos da medicação. Além disso,
necessário. Pense também em tratar a ansiedade, que tem tente antiinflamatórios não esteróides. Combine a medicação
importante papel nas crianças queimadas. Em geral, o uso de com métodos não farmacológicos. Se não houver alívio
benzodiazepínicos, como lorazepam oral ou midazolam i.v. é satisfatório da dor com esse regime, às vezes podemos
benéfico. Combine a medicação com métodos não considerar o uso de adjuvantes (por ex., gabapentina,
farmacológicos (vide abaixo). Use uma escala comportamental antidepressivos tricíclicos ou anticonvulsivantes) – a
de dor (por ex., a escala FLACC) para monitorar a administração de adjuvantes deve ser feita por especialistas
gravidade da dor e avaliar o efeito de sua terapia. Quando a experientes em dor.
dor diminuir, desmame o paciente da medicação.

Relato de caso 2 (“dor pós-operatória no recém-


Qual é a situação atual do
nascido”) tratamento da dor em
Joyce, uma recém-nascida, foi operada de atresia esofágica.
Agora a enfermeira informa que a criança parece estar
crianças?
sentindo muita dor. Como você pode avaliar e tratar a dor
dessa criança? Apesar de hoje entendermos melhor a dor
O bebê tem dor pós-operatória aguda. Avalie a dor com pediátrica, as crianças costumam receber menos
auxílio de uma escala de dor para recém-nascidos e lactantes analgesia do que os adultos, e os medicamentos
(por ex., NIPS). Após uma grande cirurgia, você deve costumam ser interrompidos mais cedo. A
esperar dor de moderada a grave. O bebê precisa ser segurança e a eficácia dos analgésicos não estão bem
acompanhado de perto em uma unidade de terapia intensiva estudadas para essa faixa etária, e as doses são em
neonatal. Use morfina i.v. para tratamento da dor, geral extrapoladas de estudos com adultos ou de
combinada com métodos não farmacológicos. dados farmacológicos. Também, o medo de
depressão respiratória e dependência com os
Relato de caso 3 (“dor oncológica”) opióides são duas questões importantes para reduzir
Diana, uma menina de 10 anos de idade, tem tumor o uso desses agentes nas crianças.
metastásico ósseo incurável, está recebendo paracetamol O principal problema do tratamento da dor em
(acetaminofeno) e codeína orais e sente muita dor. Como crianças, principalmente as mais jovens, é a
ajudá-la? Avalie a dor com, por ex., a escala facial de dificuldade de avaliar a dor. Não podemos avaliar
classificação da dor. Se o paracetamol e a codeína estão em eficazmente níveis de dor ou de alívio da dor, não
temos certeza de quais medidas de alívio da dor são Não. As crianças expostas a procedimentos
necessárias e quando. Outro fator importante na dolorosos repetidos costumam ter mais ansiedade e
maioria dos países em desenvolvimento (onde percepção da dor. Portanto, principalmente crianças
vivem 80% da população mundial) é a falta de com dor crônica ou repetida, como tumores ou
infraestrutura em termos de enfermagem treinada HIV, requerem um tratamento correto da dor.
ou falta de medicamentos e equipamentos até para
procedimentos simples. A dor em crianças com HIV
Qual é a fisiologia da dor ou câncer é sempre
em crianças? diretamente relacionada à
doença?
Certo ou errado? Procedimentos como circuncisão,
sutura ou outras operações simples em bebês Não, nem sempre. Entre 20% e 60% das crianças
podem ser realizados sem medicação anestésica ou infectadas por HIV têm dor diariamente. A dor no
analgésica, porque o sistema nervoso das crianças é HIV não apenas reduz a qualidade de vida, mas
imaturo e não consegue perceber e sentir a dor também está associada a imunossupressão mais
como os adultos. grave e aumento da mortalidade, portanto, deve ser
Errado. Até recém-nascidos respondem a estímulos tratada com cuidado. A dor não diretamente
dolorosos com sinais de estresse e sofrimento. Hoje relacionada à infecção por HIV pode ser causada
sabemos que um feto com 24 semanas tem as por (1) efeitos colaterais de medicamentos, por ex.,
capacidades anatômicas e neuroquímicas de neuropatia periférica, pancreatite induzida por
experimentar nocicepção, e pesquisas sugerem que medicamentos ou dor abdominal por vômitos
existe uma percepção sensitiva consciente de (efeito colateral comum da zidovudina), (2)
estímulos dolorosos nesses estágios iniciais. A dor procedimentos médicos invasivos (estima-se que 20-
significa estresse importante para todos os pacientes 25% dos pacientes HIV-positivos vão necessitar de
pediátricos e está associada a desfecho médico pior. cirurgia durante sua doença), (3) infecções
Existem relatórios de morbidade e mortalidade mais oportunísticas como candidíase esofágica, herpes
baixas entre recém-nascidos e lactantes que zoster, pneumonia (por ex., pneumocistis carinii,
receberam analgesia adequada durante e após citomegalovírus ou criptococos), ou infecções
cirurgia cardíaca. A cirurgia em bebês que recebem tuberculosas, e (4) outras malignidades. Para
tratamento analgésico inadequado evoca um excesso crianças com câncer, a dor adicional ocorre
de produção de hormônios do estresse, que resulta principalmente de (1) cirurgia, (2) quimioterapia, e
em aumento do catabolismo, imunossupressão e (3) radioterapia. Crianças submetidas a cirurgia para
instabilidade hemodinâmica, entre outros efeitos. excisão de tumor primário sentem dor pós-
Acredita-se que crianças mais jovens podem até operatória. Os agentes quimioterápicos também
experimentar níveis mais altos de angústia durante podem causar dor durante o tratamento. A
procedimentos dolorosos do que crianças mais vincristina, um alcalóide vegetal, é mais comumente
velhas, porque estas lidam com a dor de forma associada a neuropatias periféricas caracterizadas
comportamental. por dor disestésica que se apresenta como uma
sensação de queimação, causando dor mediante leve
As crianças se acostumam contato com a pele. A mucosite é um efeito
colateral comum da quimioterapia, em geral visto
com dor crônica ou em crianças recebendo antraciclinas (por ex.,
procedimentos dolorosos doxorubicina), agentes alquilantes (por ex.,
ciclofosfamida), antimetabólitos (por ex.,
repetidos? metotrexate), e epipodofilotoxinas (por ex., VP-16).
A radioterapia de cabeça e pescoço em crianças é
277

associada a mucosite grave. Pode ocorrer dor pós- adequadamente. Quando as crianças desenvolvem
radiação em algumas partes do corpo, causada por tolerância aos efeitos analgésicos dos opióides, elas
reações cutâneas, fibrose ou cicatriz de tecidos também costumam desenvolver tolerância a um
conjuntivos, e lesão secundária a estruturas efeito depressor respiratório inicial. O efeito
nervosas. Outros efeitos colaterais relacionados ao colateral mais comum dos opióides é obstipação,
tratamento são dor abdominal causada por vômitos, não depressão respiratória. É importante saber que
diarréia, obstipação, e infecções como tiflite, celulite a dor age como antagonista natural do analgésico e
ou sinusite. dos efeitos colaterais de depressão respiratória. No
entanto, os analgésicos opióides devem ser
Barreiras ao tratamento administrados com cautela se a criança tiver menos
de um ano. Os opióides não são recomendados para
eficaz da dor bebês com menos de três meses, a menos que exista
acompanhamento de perto em uma unidade de
As crianças se tornam dependentes de opióides terapia intensiva neonatal, porque existe um risco
mais facilmente do que os adultos? aumentado de depressão respiratória e hipotensão.
Os opióides não são mais perigosos para as
crianças do que para os adultos, quando Quando as crianças podem ser tratadas em casa
administrados corretamente. A prevalência de com opióides orais?
dependência física (definida como um efeito Com instrução adequada, a administração de
fisiológico involuntário de sintomas de abstinência opióides orais em casa pelos pais é segura. Os pais
notados após a retirada abrupta dos opióides, ou a precisam saber que os opióides são analgésicos
administração de um narcótico antagonista, como a fortes e devem ser administrados à criança
naloxona) de opióides em crianças é comparável à conforme a prescrição. Frequência e regularidade
dos adultos. Se os opióides são administrados são importantes para evitar o retorno da dor, e isso
regularmente em altas doses por mais de uma tem que ser deixado bem claro. Os pais devem estar
semana, não interrompa abruptamente a medicação. preparados para os efeitos colaterais dos opióides
Recomenda-se a redução lenta da dose de opióide (náusea e sonolência, que em geral desaparecem em
para evitar sintomas de abstinência. Como regra poucos dias e não voltam; a obstipação ocorre
prática, reduza o opióide para 3/4 da dose anterior a sempre). Deve-se administrar sempre remédios
cada 24 horas (por ex., dia 1: 100 mg/d, dia 2: 75 preventivos como semente seca de mamão ou um
mg/d, dia 3: 55 mg/d, dia 4: 40 mg/d). Às vezes, laxante como sena à noite. Deve-se dizer aos pais
essa redução pode demorar 1-2 semanas. Se houver para entrar em contato com o profissional de saúde
convulsões durante a redução, recomenda-se se (1) a dor estiver piorando (a dose pode ser
tratamento com diazepam (0,1-0,3 mg/kg i.v. a cada aumentada), (2) foi dada uma dose extra de opióide
6 horas). para a criança, (3) a sonolência voltou, ou (4) a dose
foi reduzida. A medicação opióide NÃO PODE ser
A depressão respiratória é um problema comum interrompida abruptamente, porque podem ocorrer
em crianças tratadas com opióides? sintomas graves de abstinência. Todas as instruções
A depressão respiratória é um efeito colateral grave devem ser dadas claramente por escrito (Fig. 1).
e bem conhecido dos opióides; no entanto ela é rara
em crianças quando os opióides são administrados
Avaliação da dor
crianças de 5-6 anos. Crianças mais jovens são um
Como avaliar a dor? grande desafio e a EAV foi modificada para facilitar
A escala analógica visual (EAV) é o padrão de ouro a compreensão das crianças pela incorporação de
para avaliar a dor em adultos. A escala tradicional é expressões faciais no final ou nos intervalos da
uma escala de 10 cm (100 mm) com marcas a cada 1 escala. Numa escala que é uma escada de 10 degraus
cm de zero a 10. Zero significa “sem dor” e 10 com um brinquedo, pergunta-se à criança quantos
significa “dor excruciante”. Pede-se ao paciente que degraus o brinquedo seria capaz de subir se tivesse o
identifique a marca na escala que corresponda a seu mesmo nível de dor. Todas essas escalas são usadas
grau de dor. A EAV tem se mostrado eficaz para para crianças de 3-5 anos (Fig. 2).

Além da percepção da dor, um estímulo nocivo 3) Frequência respiratória


produz outras mudanças fisiológicas e 4) Movimentos corporais e choro (AIIMS, FLACC,
comportamentais que são mais acentuadas nas OPS)
crianças e podem ser usadas para avaliar a dor. As 5) Chorar também pode ser a expressão definitiva
principais alterações são: das necessidades não relacionadas à dor da criança,
1) Expressão facial com um certo nível de dor como fome, sede, ansiedade ou atenção dos pais.
(CHEOPS, Oucher, Facial) Esses fatores devem ser cuidadosamente excluídos
2) Frequência cardíaca antes de considerar o choro como sinal de dor.
279

As crianças expressam a dor da mesma forma É possível avaliar a intensidade da dor em


que os adultos? crianças apenas observando seu
Não. Devido a diferenças em desenvolvimento, a comportamento?
expressão da dor varia em diferentes faixas etárias Como cada criança tem estratégias individuais para
pediátricas. enfrentar a dor, o comportamento pode não ser
1) Os lactantes podem apresentar rigidez corporal, específico para avaliar os níveis da dor. Por
podem ter arqueamento, exibir expressão facial de exemplo, uma menina em idade escolar pode passar
dor (sobrancelhas abaixadas e franzidas, olhos horas brincando com um brinquedo. À primeira
fechados “apertados”, boca aberta e quadrada), vista, você pode achar que ela está feliz e sem dor.
chorar intensamente/muito alto, ficar inconsoláveis, Mas isso pode ser sua expressão comportamental
encolher os joelhos no tórax, apresentar para enfrentar a dor (distraindo sua atenção e
hipersensibilidade ou irritabilidade, comer mal ou tentando curtir uma atividade agradável). Embora o
não conseguir dormir. comportamento da criança possa ser útil, ele
2) Crianças pequenas podem ficar agressivas também pode ser enganador. Recomenda-se o uso
verbalmente, chorar intensamente, exibir de uma escala de classificação da dor e a busca de
comportamento regressivo ou de afastamento, indicadores fisiológicos da dor (mudanças na
exibir resistência física afastando o estímulo pressão arterial, frequência cardíaca e respiratória).
doloroso assim que ele é aplicado, proteger a área
As crianças conseguem dizer se e onde dói?
dolorosa do corpo ou não conseguir dormir.
Estudos demonstraram que crianças com apenas
3) Crianças na idade pré-escolar/pequenas podem
três anos de idade conseguem expressar e identificar
verbalizar a intensidade da dor, ver a dor como
a dor com precisão, com a ajuda de escalas de
castigo, apresentar movimentos de braços ou
avaliação da dor. As crianças conseguem apontar
pernas, tentar afastar o estímulo antes que ele seja
para a área do corpo onde estão sentindo dor ou
aplicado, não cooperar, precisar de contenção física,
fazer um desenho ilustrando sua percepção da dor.
se agarrar aos pais, enfermeiros ou outros, solicitar
Uma escala adequada e amplamente utilizada é a
suporte emocional (por ex., abraços, beijos),
escala facial de classificação da dor (recomendada
entender que pode haver ganhos secundários
para crianças de 3 anos ou mais) (Fig. 3).
associados à dor, ou não conseguir dormir.
4) Crianças na idade escolar podem verbalizar a dor,
usar uma medida objetiva da dor, ser influenciadas
por crenças culturais, ter pesadelos relacionados à
dor, exibir comportamento de protelação (por ex.,
“espere um pouco”, ou “não estou pronto”), ter
rigidez muscular como punhos cerrados, nós dos
dedos brancos, dentes cerrados, membros
contraídos, rigidez corporal, olhos fechados ou testa
franzida, ter os mesmos comportamentos das
crianças em idade pré-escolar/pequenas, ou não
conseguir dormir.
5) Adolescentes podem localizar e verbalizar a dor,
negar a dor na presença de colegas, ter mudanças no
padrão de sono ou de apetite, ser influenciados por
crenças culturais, exibir tensão muscular e controle
As crianças sempre avisam quando estão
do corpo, apresentar comportamento regressivo na sentindo dor?
presença da família, ou não conseguir dormir. Mesmo quando elas têm aptidões adequadas de
comunicação, há algumas razões para as crianças
não avisarem da dor. As crianças podem ter medo
de (1) falar com os médicos, (2) descobrir que estão emoções. Existem várias escalas de angústia
doentes, (3) decepcionar ou incomodar os pais ou comportamental para lactantes e bebês. As medidas
outros, (4) tomar injeção ou medicamento, (5) voltar de expressões faciais parecem ser as mais úteis e
para o hospital ou adiar a alta hospitalar, (6) sofrer específicas em recém-nascidos. Os sinais faciais
mais procedimentos diagnósticos invasivos ou (7) típicos de dor e angústia física em lactantes são: (1)
ter efeitos colaterais da medicação. E, acima de sobrancelhas abaixadas e franzidas; (2) uma
tudo, as crianças podem simplesmente achar que protuberância entre as sobrancelhas e os sulcos
não é necessário contar aos profissionais de saúde verticais da testa; (3) olhos semifechados; (4)
sobre sua dor. Portanto, devemos sempre perguntar bochechas elevadas, nariz alargado e protuberante,
aos pais sobre suas observações com relação à prega nasolabial aprofundada; e (5) boca aberta e
situação da criança. Portanto, mesmo em crianças quadrada (Fig. 4).
cujo desenvolvimento cognitivo permita que
informem a dor, recomenda-se uma combinação de
(1) perguntas à criança e aos pais, (2) usar uma
escala de classificação da dor e (3) avaliar as
mudanças comportamentais e fisiológicas.

Como avaliar a dor em lactantes e bebês?


Pais, cuidadores e profissionais de saúde são
constantemente desafiados a interpretar se o
comportamento angustiado de lactantes e bebês,
que não conseguem se expressar, representa dor,
medo, fome ou uma gama de outras percepções ou
Escala de dor de recém-nascidos/lactantes (NIPS)
Avaliação da dor Escore
Expressão facial
0-músculos relaxados Rosto calmo, expressão neutra.
1-Careta Músculos faciais tensos, sobrancelha/queixo/mandíbula franzidos (expressão
facial negativa – nariz, boca e mandíbula)
Choro
0. Sem choro Quieto, sem choro
1. Choramingando Gemidos leves, intermitentes
2. Choro forte Choro alto: aumentando, agudo, contínuo (nota: choro silencioso pode ser
classificado se o bebê estiver entubado, e pode ser evidenciado por
movimentos óbvios bucais e faciais
Padrões respiratórios
0. Relaxado Padrão usual para esse lactante
1. Mudança na respiração Ofegante, irregular, mais rápida que o normal; engasgos, prender a respiração.
Braços
0. Relaxados/contidos Sem rigidez muscular; movimentos ocasionais aleatórios dos braços.
1. Flexionados/estendidos Braços tensos, esticados; rígidos ou flexão/extensão rápidas.
Pernas
0. Relaxadas/contidas Sem rigidez muscular; movimentos ocasionais aleatórios dos braços.
1. Flexionadas/estendidas Braços tensos, esticados; rígidos ou flexão/extensão rápidas.
Estado de alerta
0. Dormindo/acordado Sono ou despertar calmo e sossegado

1. Agitado Alerta, inquieto e debatendo-se


Fig. 5. Escala de dor de recém-nascidos/lactantes (NIPS). Exemplo de uma escala avaliada de classificação da dor em
recém-nascidos e lactantes. O escore máximo é 6; um escore acima de 3 indica dor. (De: Lawrence J. e col. O
desenvolvimento de um instrumento para avaliar dor neonatal Nets 1993;12-59-66)
281

Avaliação da dor Escore


Expressão facial
0- Sem expressão particular ou sorriso
1- Careta ou sobrancelhas franzidas ocasionais, desligado, desinteressado
2- Queixo tremendo, mandíbula cerrada, frequente ou constante
Pernas
0- Posição normal ou relaxada
1- Inquietas, agitadas, tensas
2- Chutando, pernas jogadas para cima
Atividade
0- Deitado quieto, posição normal, move-se facilmente
1- Contorcendo-se, balançando para frente e para trás, tenso
2- Arqueado, rígido ou com espasmos
Choro
0- Sem choro (dormindo ou acordado)
1- Gemidos ou choramingos, reclamações ocasionais
2- Choro constante, gritos ou soluços, reclamações constantes.
Consolabilidade
0- Contente, relaxado
1- Tranquilizado por toques ocasionais, abraços ou conversas, passível de ser
distraído
2- Difícil de consolar e confortar
Fig. 6. Escala FLACC. (De: Merkel S, e col. FLACC: escala comportamental para classificar dor pós-
operatória em crianças pequenas. Pediatr Nurse 1997; 23:293-7. Copyright 1997 por Jannetti Co. Centro
Médico da Universidade de Michigan).

Tabela 1
Escala de avaliação clínica da dor ao pé do leito
Sem dor A criança consegue tossir bem
Dor leve A criança consegue respirar normalmente, mas não tossir sem sofrimento
Dor moderada A criança consegue respirar normalmente, mas não tossir ou respirar fundo
sem sofrimento.
Dor aguda A criança sofre mesmo durante respiração normal.

Tabela 2
Escala de avaliação dos pais
Sem dor Brincalhona, confortável na cama, sem desconforto ao virar-se,
rosto calmo, quando chora é facilmente consolada pelos pais
Leve Queixa-se de desconforto no local da cirurgia quando se mexe
Moderada Careta, dor e desconforto no local da cirurgia quando se mexe
Aguda Choro persistente e inquietação, dor mesmo sem se mexer.

Existem instrumentos simples para avaliação à


beira do leito?
Tratamento da dor
A prática clínica do All India Institute of Medical
Sciences (AIIMS) em Nova Delhi, desenvolveu uma Quais os medicamentos que podem ser usados
escala clínica de avaliação da dor à beira do leito e para o controle eficaz da dor em crianças?
uma escala de avaliação parental (Tabelas 1 e 2), que Anestésicos locais para lesões dolorosas na pele ou
se mostraram úteis até para pais analfabetos. mucosa, ou durante procedimentos dolorosos, por
ex., lidocaína, TAC (tetracaína, adrenalina
[epinefrina], cocaína) ou LET (lidocaína, epinefrina
e tetracaína).
Analgésicos para dor leve a moderada (como dor  Suporte emocional (sempre que possível
pós-traumática e dor de espasticidade), por ex., permita que os pais permaneçam com seus
paracetamol (acetaminofeno) ou antiinflamatórios filhos durante qualquer procedimento
não esteróides (por ex., ibuprofeno ou doloroso).
indometacina).  Métodos físicos (toque, inclusive carícia,
Opiáceos para dor moderada a intensa que não massagem, balanço e vibração; aplicação
responde ao tratamento com analgésicos, por ex., local de frio ou calor; respiração profunda
codeína (dor moderada; alternativas são controlada).
dihidrocodeína, hidrocodona e tramadol) e morfina  Métodos cognitivos (distração, como cantar
(dor moderada a grave; alternativas são metadona, ou ler para a criança, ouvir rádio, atividades
hidromorfona, oxicodona, buprenorfina e fentanil). lúdicas, ou imaginar um lugar agradável).
Nota: a aspirina não é recomendada como
 Orações (a religião da família precisa ser
analgésico de primeira linha porque está relacionada
respeitada).
à síndrome de Reye, condição rara, porém grave,
 Práticas tradicionais que são úteis e não
que afeta o fígado e o cérebro. Principalmente, evite
prejudiciais. (Os profissionais de saúde
dar aspirina a crianças com catapora, dengue e
devem saber o que pode ajudar no local).
outros distúrbios hemorrágicos.
Outro ponto importante é dar às crianças e aos
Em recém-nascidos e lactantes com até 3 kg de
membros da família informações adequadas sobre o
peso, os opióides como medicação única se
mecanismo e o tratamento adequado da dor, para
mostraram eficazes para tratar dor moderada a
ajudá-los a enfrentar melhor a situação e estimular
grave. Para a dor leve a moderada, use métodos não
uma maior obediência ao tratamento recomendado.
farmacológicos e uma fórmula de sacarose a 30%
Para recém-nascidos e bebês até os 3 meses de
com uma chupeta. Os anestésicos locais podem ser
idade, glicose/sacarose (por ex., 0,5-1 mg de glicose
usados para tratar feridas (vide Tabela 2 para
a 30%) orais 1-2 minutos antes do procedimento
medicamentos usados com frequência e suas doses).
doloroso, em combinação com uma chupeta
oferecida ao bebê durante o procedimento
O que significam os termos “pela escada”,
doloroso, são eficazes para reduzir a dor de injeções
“pelo relógio”, “pela boca” e “pela criança” no
ou coleta de sangue. Todos esses métodos são
tratamento da dor?
“adicionais” e não devem ser usados no lugar dos
O tratamento da dor em crianças deve seguir a
analgésicos quando eles forem necessários.
escada analgésica da OMS (“pela escada”), ser
administrado em horários pré-determinados (“pelo
Quais as vias de administração para a
relógio”, porque “sob demanda” em geral significa
farmacoterapia?
“não administrado”), ser administrado pela via
menos invasiva (“pela boca”; sempre que possível
Via não parenteral
administre analgésicos orais e não i.v. ou i.m.), e ser
O analgésico não opióide mais comumente usado
adaptado às circunstâncias e necessidades
em crianças é o paracetamol (acetaminofeno). A
individuais da criança (“pela criança”).
dose tradicionalmente recomendada é a dose
antipirética, que é muito conservadora para alívio da
Quais os métodos não farmacológicos que
dor. A recomendação atual é uma dose oral de 20
podem ser usados para aliviar dor, medo e
mg/kg, seguida de 15-20 mg/kg a cada 6-8 horas,
ansiedade nas crianças?
ou uma dose retal de 30-40 mg/kg, seguida de 15-20
Se a criança e os pais concordam, e se ajudar, os
mg/kg a cada 6 horas. A dose diária total para as
seguintes métodos adicionais (para adaptação local)
duas vias não deve exceder 90-100 mg/kg/dia em
podem ser combinados com medicamentos contra a
crianças e 60 mg/kg/dia em recém-nascidos. Essa
dor.
dose máxima diária não deve ser administrada por
mais de 48 horas a lactantes com menos de 3 meses,
283

e por não mais que 72 horas a crianças acima dos 3 sérico estático de 10 μg/mL em crianças para dor
meses de idade. Se for usado um supositório, ele perioperatória moderada com uma infusão de
não deve ser cortado porque a distribuição do cloridrato de morfina de 5 μg/kg/h em recém-
medicamento pode não ser igual. Pode-se usar nascidos a termo (8,5 μg/kg/h para 1 mês, 13,5
vários supositórios para atingir a dose desejada. O μg/kg/h para 3 meses, 18,0 μg/kg/h para 1 ano, e
uso dos supositórios de paracetamol para analgesia 16,0 μg/kg/h para 1-3 anos de idade). Não existe
tem que ser visto com cuidado porque estudos correlação sólida entre dose/ níveis séricos
demonstraram que a absorção retal é lenta e errática plasmáticos e os efeitos analgésicos quando morfina
com variabilidade substancial, principalmente em e fentanil são usados em pacientes pediátricos,
recém-nascidos e lactantes. Em geral, o paracetamol principalmente em recém-nascidos e lactantes,
retal não dá níveis séricos terapêuticos do devido à alta variabilidade de metabolismos opióides
medicamento. Se usar paracetamol, a via oral deve individuais. Por essa razão, é aconselhável não
ser a primeira opção. confiar em recomendações específicas de doses,
Pode-se usar antiinflamatórios não esteróides mas usar o conceito “WYNIWYG” (sigla em
(AINEs), como ibuprofeno e cetorolaco. O inglês): “o que você precisa é o que você recebe”. A
ibuprofeno (10-20 mg/kg orais) dá bom alívio da titulação do medicamento é recomendada para
dor leve. Os supositórios de cetorolaco foram identificar a dose de opióide individual do paciente
considerados úteis em crianças com margem para alívio adequado da dor.
terapêutica estreita para opióides. Os AINEs podem A depuração total da morfina é de 80% do valor
afetar o tempo de sangramento e devem ser usados adulto aos 6 meses de idade. A depuração da
com cuidado em adenoamigdalectomia. morfina é mais alta em lactantes do que em adultos,
O cloridrato de tramadol, um opióide leve (com principalmente devido a fluxo sanguíneo hepático
atividade apenas parcial do agonista receptor de mais alto e à via de sulfatação alternativa ativa.
opióides) está disponível para administração oral e O fentanil pode ser usado para substituir a morfina
retal em crianças. É absorvido rapidamente (em em crianças com instabilidade hemodinâmica e que
menos de 30 minutos), e o perfil de concentração não toleram liberação de histamina. Em recém-
suporta uma duração clínica eficaz na região de 7 nascidos, o fentanil tem meia vida de eliminação
horas. Os opióides transmucosais, intraorais ou mais longa do que a morfina. Em crianças acima de
intranasais podem ser uma alternativa interessante 1 ano de idade, a depuração é semelhante à dos
para dor irruptiva em crianças porque elas adultos, mas em recém-nascidos é duas vezes mais
costumam aceitar bem essa forma de aplicação. longa do que em adultos. Uma taxa de infusão de 1-
4 μg/kg/h costuma fornecer analgesia adequada
Via parenteral para crianças.
A via tradicional de administração parenteral era a Com o remifentanil, que só deve ser usado no
intramuscular, que hoje em dia deve ser evitada perioperatório, a analgesia adequada é obtida com
devido ao medo, ansiedade e angústia que produz uma dose de ataque de 1 μg/kg/h seguida de
nas crianças. A via subcutânea pode ser uma infusão de manutenção de 0,25 μg/kg/min. O
alternativa para os casos em que o acesso venoso é alfentanil é eficaz na dose de 50 μg/kg seguida de
difícil. infusão de 1 μg/kg/min. Embora a petidina
(meperidina) seja usada clinicamente há muitos
Qual é a função dos opióides? anos, não deve mais ser usada em infusão contínua
Os opióides são o tratamento de primeira linha para porque pode produzir convulsões em crianças.
dor moderada a intensa, sendo a morfina a mais
frequentemente usada. A morfina foi estudada Quais são algumas formas de reduzir os efeitos
intensamente em crianças. Níveis séricos de 10-25 colaterais dos opióides?
μg/kg foram considerados analgésicos após grandes Os seguintes métodos podem ser tentados por
cirurgias em crianças. Pode-se atingir um nível “tentativa e erro” para reduzir os efeitos colaterais
dos opióides: (1) redução da dose, (2) trocar de pais” ou “controlada pela enfermagem” pode ser
opióide (por ex., de codeína para morfina), (3) uma alternativa à ACP. A bomba pode ser
mudar a via de administração (por ex., de oral para programada para impedir a administração de doses
i.v.), e (4) terapia sintomática (por ex., remédios tóxicas usando um intervalo de bloqueio e uma dose
preventivos ou laxantes para obstipação). máxima por hora. A morfina costuma ser o
Qual é a dose diária máxima de morfina? medicamento de escolha. O bolus administra 10-25
Não existe dose máxima de morfina. Se for possível μg/kg. A taxa basal máxima da infusão contínua de
uma redução adicional da dor sem efeitos colaterais 10-20 μg/kg pode ser administrada com um
perigosos, o aumento da dose está indicado. A intervalo de bloqueio de 6-12 minutos. Em crianças,
titulação do medicamento é recomendada para uma infusão de fundo pode ser útil durante o sono e
identificar a dose individual de opióide para o alívio não parece aumentar a dose total. Também é
adequado da dor do paciente. Se surgir tolerância possível a analgesia regional controlada pelo
após um certo tempo, a dose deverá ser aumentada paciente que tem se mostrado eficaz para bloqueios
para manter o mesmo nível de alívio da dor. poplíteos e da fascia ilíaca e para bloqueios
peridurais. Deve-se lembrar porém que o intervalo
Quais são os analgésicos não opióides a serem de bloqueio nesses casos deve ser acima de 30
considerados? minutos porque o tempo necessário para o bolus ser
Houve um renovado interesse pela cetamina, um eficaz é maior.
antagonista receptor de NMDA, por suas
propriedades analgésicas. Uma dose de 0,1-0,5 Anestesia regional e local
mg/kg i.v. proporciona alívio eficaz da dor
perioperatória. O cetorolaco tem potência analgésica Qual é o valor dos bloqueios regionais para as
para a maioria dos casos de cuidados ambulatoriais e crianças?
pode ser suplementado inicialmente com tramadol Os bloqueios regionais voltaram a ser populares em
parenteral. Não há evidências publicadas da eficácia crianças devido à sua eficácia para promover bom
e da segurança desses medicamentos em recém- alívio da dor. Os bloqueios regionais são a chave do
nascidos e lactantes. bom alívio da dor em situações difíceis porque são
simples de usar, fáceis de aprender e econômicos.
É possível usar analgesia controlada pelo Propiciam analgesia profunda e os anestésicos
paciente (ACP)? locais, como a lidocaína (lignocaína) e a bupivacaína
O aparelho de ACP é uma bomba de infusão com a estão disponíveis até nos países mais pobres. Os
facilidade de administrar uma dose maior sempre bloqueios mais comumente usados em crianças
que o paciente achar que precisa dela. No paciente estão na Tabela 3.
pediátrico, o uso da ACP é possível no início da
idade escolar (acima de 5 anos). Em crianças com
menos de 5 anos, a analgesia “controlada pelos
Tabela 3
Bloqueios regionais comuns realizados em crianças
Peridural caudal Reparo de hérnia, orquidopexia, uretroplastia, Circuncisão
Peridural lombar Todas as cirurgias abdominais altas e baixas,Toracotomia
Ileoinguinal/íleo-hipogástrica Reparo de hérnia
Nervo dorsal do pênis Circuncisão, avanço do prepúcio
Axilar Cirurgia da mão e do antebraço
Femoral/ilíaca Cirurgia de coxa e fêmur
Nota: a infiltração da ferida pode ser boa para hérnia, ou bloqueio caudal com administração
bilateral do medicamento para um bloqueio completo. Anestésicos locais contendo adrenalina
não devem ser usados porque a artéria peniana não é uma artéria final.
285

Existe uma dose máxima de anestésicos locais por profissionais experientes. Em crianças o
que seja segura quando o medicamento é usado bloqueio caudal costuma ser o preferido porque é
para anestesia local? tecnicamente mais seguro devido a diferenças
Sim. Não mais do que 4 mg/kg de lidocaína sem anatômicas, e muito mais fácil do que em adultos.
adrenalina, ou 7 mg/kg com adrenalina devem ser Os cateteres podem mesmo ser avançados – sempre
usados para anestesia infiltrativa ou local. A sem resistência – até os segmentos torácicos em
bupivacaína não deve exceder 2 mg/kg ou 8 lactantes porque sua gordura mais compacta e
mg/dia; é comumente usada em concentrações de globular facilita a passagem do cateter. A
0,125-0,25% para bloqueio peridural caudal (o tunelização subcutânea do cateter reduz a taxa de
interessante é que 0,5 mg/kg de cetamina pela contaminação bacteriana.
mesma via prolonga a ação da bupivacaína para até
12 horas). As doses máximas costumam ser um Planejamento da estratégia
problema na sutura de grandes feridas ou no uso de
concentrações mais altas de anestésicos locais.
analgésica
Dicas úteis É importante ter um plano de alívio da dor desde o
1) Para úlceras orais dolorosas, aplique lidocaína início do período perioperatório até o momento em
com uma gaze antes de alimentar (aplique com que o paciente pediátrico esteja sem dor (vide Fig.
luvas, a menos que um membro da família ou 7). Damos a seguir os fatores que precisam ser
profissional de saúde seja HIV-positivo e não considerados para um planejamento eficaz.
precise de proteção contra infecção; age em 2-5
minutos). Idade de desenvolvimento
2) Para suturas, aplicar TAC (tetracaína, adrenalina e A idade cronológica e a de neurodesenvolvimento
cocaína)/ LET (lidocaína, epinefrina e tetracaína) a do paciente devem ser consideradas. Um prematuro
uma compressa de gaze e colocar sobre a ferida ou lactante jovem que pode ter problemas com o
aberta. sistema respiratório central, pode se beneficiar de
3) A morfina, quando administrada pela via caudal, técnicas que minimizem o uso de opióides, que têm
é eficaz até para abdômen superior e cirurgia efeitos depressores no sistema respiratório central.
torácica e pode ser eficaz e segura na dose peridural Em lactantes mais velhos e crianças pequenas, a
de 10 mg/kg. ludoterapia e a presença dos pais têm papel
importante no alívio da dor. Crianças mais velhas
Quais técnicas regionais podem ser usadas para podem entender o conceito de ACP.
analgesia contínua?
Comparados aos bloqueios neuraxiais, os bloqueios Considerações cirúrgicas
de nervos periféricos com ou sem cateteres têm as O nível de dor costuma ser associado ao tipo de
menores complicações e são populares, cirurgia. O tipo de cirurgia costuma ser o fator
principalmente para bloqueios axilares, femorais e decisivo para a escolha de uma determinada medida
três em um. Bloqueios peridurais lombares podem para alívio da dor. Para cirurgias em áreas que se
ser usados em dose única, principalmente quando o movem regularmente, como o tórax ou abdômen
bloqueio caudal é contraindicado ou quando o superior, a medida necessária para alívio da dor deve
volume necessário para o bloqueio caudal vai estar ser agressiva. A capacidade dos pacientes de ingerir
muito próximo dos níveis tóxicos. Um cateter medicamentos orais após a cirurgia é outro fator
instalado no espaço peridural pode proporcionar importante no planejamento do tratamento.
analgesia contínua por um longo período de tempo
(se tunelizado por períodos de mais de 1 semana). O Educar enfermeiros e pais
cateter pode ser instalado em nível lombar, caudal O enfermeiro é a primeira pessoa que se depara
ou torácico. O nível torácico deve ser usado apenas com a criança com dor. Também é quem cuida das
infusões peridurais e intravenosas e dos dispositivos bloqueio caudal pode ser prolongada pela
de ACP. É sua responsabilidade monitorar e inclusão de outros adjuvantes.
coordenar com a equipe cirúrgica e anestésica. Sua  Terapias alternativas como acupuntura
educação em tratamento da dor é importante. Se podem se mostrar simples, seguras e
não houver enfermagem treinada ou uma área de econômicas.
alta dependência, métodos mais agressivos de  Se não houver bomba de infusão, uma
controle da dor poderão não ser seguros. Os pais simples bureta pediátrica pode ser usada
dão suporte emocional aos filhos e é importante para infusão. Os muitos anos de experiência
discutir o plano com eles para garantir seu suporte. do autor consideram-na segura se apenas o
equivalente a 2 horas da dose for colocada a
Disponibilidade de recursos qualquer tempo (mesmo com opióides
Recursos limitados podem ser definidos como a potentes como a morfina e o fentanil).
indisponibilidade de um analgésico potente como
morfina ou fentanil, ou de equipamentos para a Planos práticos de
administração dos medicamentos, como bomba de
infusão ou de ACP, ou pessoal capacitado para fazer tratamento para um hospital
o procedimento e monitorar o paciente no pós- distrital
operatório. Em tais situações, a estratégia deve ser
encontrar técnicas simples, que não exijam
Plano 1
equipamentos de precisão e monitoramento
Uma criança de 2 anos pesando 15 quilos vai ser submetida
intensivo no período pós-operatório. Esses métodos
a uma cirurgia de hérnia em procedimento ambulatorial.
podem ser:
Premedicação com 300 mg de paracetamol oral ou 600 mg
 Uso eficaz de medicamentos orais retais, e após a indução da anestesia um bloqueio caudal ou
comumente disponíveis, como paracetamol, ileoinguinal e íleo-hipogástrico, seguido por infiltração da
AINEs e cetamina. O paracetamol e a ferida no final da cirurgia. Duas horas após a cirurgia, 300
cetamina são extensivamente usados em mg de paracetamol oral ou a combinação de paracetamol e
países em desenvolvimento. ibuprofeno (300 mg) a cada 8 horas até que o escore de dor
 Utilização ideal de anestésicos locais. Os permita a redução ou interrupção do medicamento.
anestésicos locais podem ser aplicados em
infiltrações de feridas, antes da incisão, antes Plano 2
da sutura ou continuamente no período pós- Recém-nascido com anomalia ano-retal, programado para
operatório. colostomia de emergência. Não é possível administrar
 A incidência extremamente baixa de medicamento oral. O bebê pode ser tratado com um bloqueio
complicações após bloqueios de nervos subaracnóideo espinhal com bupivacaína apenas. Nesse caso,
periféricos deve estimular seu uso mais não é necessário nenhum outro analgésico perioperatório. Se o
frequente quando adequado. Em bloqueios bebê receber anestesia geral, pode-se administrar cetamina
nervosos regionais com uma única injeção, a (0,5 mg/kg) e morfina (50 μg/kg). Deve-se evitar opióides
analgesia pós-operatória é limitada a 12 em bebês prematuros devido à sua função respiratória
horas ou menos. Os bloqueios nervosos imatura. Embora a cetamina seja usada em vários lugares,
periféricos contínuos proporcionam alívio não existem boas evidências de sua eficácia e segurança para
eficaz, seguro e prolongado da dor pós- recém-nascidos. Ao final da cirurgia, também se costuma usar
operatória. Têm sido até usados em casos infiltração da ferida. No pós-operatório, o bebê pode receber
ambulatoriais até a idade de 8 anos. Se os paracetamol oral.
pacientes receberam um bloqueio regional
durante a cirurgia, isso diminui a Plano 3
necessidade de opióides parenterais Menino de 5 anos internado na emergência com queimaduras
potentes. A duração da analgesia de um graves e dor aguda. As crianças com dor aguda devem ser
287

tratadas com os medicamentos i.v. disponíveis, como morfina,


cetamina ou tramadol, ou uma combinação deles, junto com
Uma história diferente: as
baixa dose de midazolam para evitar estresse pós-traumático, crianças também têm dor
mas não para analgesia. Assim que a dor aguda é aliviada, crônica?
pode-se iniciar medicação oral com 20 mg/kg de paracetamol.
A criança vai precisar de analgésicos para fisioterapia, troca
Sim, elas têm, mas pouco se sabe sobre a
de curativos, ou até mesmo para a troca da roupa de cama. A
epidemiologia da dor crônica em crianças, mesmo
criança e seus pais devem ser preparados com uma explicação
em países ricos. A dor crônica costuma ser
do que está sendo feito. A dor pode ser tratada com
observada na adolescência. Condições comuns são
paracetamol ou cetamina oral (8-10 mg/kg) e cetamina i.v.
cefaléia, dor abdominal, dor musculoesquelética, dor
(1 mg/kg). Se ela for para cirurgia, a infiltração local da
de anemia falciforme, síndrome de dor regional
área doadora com anestésicos locais ou um bloqueio regional
complexa e dor neuropática pós-traumática ou pós-
podem ser benéficos.
operatória. Crianças com câncer ou AIDS têm
vários níveis de dor à medida que a doença
Qual o monitoramento progride. A dor recidivante se torna crônica devido
necessário para analgesia a tentativas mal-sucedidas de ajustar e enfrentar uma
no período pós-operatório? experiência incontrolável, assustadora e adversa. Ao
longo do tempo, é o peso dessa experiência que leva
os pacientes a desenvolver sintomas concomitantes
Deve haver medidas de ressuscitação ao pé do leito de incapacidade física crônica, ansiedade, distúrbios
para todos os pacientes recebendo infusões de do sono, ausência da escola e afastamento social. Os
opióides. O monitoramento e o registro rotineiros pais relatam estresse grave e papéis familiares
dos escores de dor, escores de sedação e frequência disfuncionais. Existe um maior elemento
respiratória são importantes em todas as condições psicológico na dor crônica do que na dor aguda,
de dor moderada a intensa, e para todos os assim como nos adultos.
pacientes recebendo infusão. Todas as crianças
recebendo opióides devem ser monitoradas com
cuidado por pelo menos 24 horas, inclusive crianças
Como tratar a dor crônica
em ACP sem infusão de fundo. No caso de excesso em crianças?
de opióides, a sedação sempre vem antes da
depressão respiratória. Portanto, a observação do A avaliação da dor crônica deve estabelecer não
estado de alerta do paciente é a chave para um apenas o local, a gravidade e outras características da
monitoramento seguro. O monitoramento a cada 4 dor, mas também o impacto físico, emocional e
horas é considerado seguro para detectar aumento social da dor.
de sedação. Uma redução da frequência respiratória O tratamento deve incluir terapia específica dirigida
abaixo de 30% do valor basal em repouso também à causa da dor e aos sintomas associados, como
pode ser usada como parâmetro de alarme. A espasmos musculares, distúrbios do sono, ansiedade
saturação de oxigênio é um monitor melhor do que ou depressão. Analgésicos comuns, como AINEs e
frequência de apnéia/respiratória porque detecta opióides, podem ser usados na dor neuropática,
mais precocemente obstrução de vias aéreas, mas juntamente com antidepressivos e
para as situações normais e para pacientes fora da anticonvulsivantes. O tratamento farmacológico
unidade de terapia intensiva, não existe indicação de deve ser combinado com medidas de suporte e
que o controle regular da sedação seja inferior à modalidades integradas de tratamento não
oximetria de pulso. farmacológico, como massagem, acupuntura,
relaxamento e fisioterapia. Os métodos físicos
incluem um chamego ou abraço da família,
massagem, neuroestimulação elétrica, posição
confortável, terapia física ou ocupacional, além de  Além do tratamento da dor perioperatória,
reabilitação. Técnicas cognitivo-comportamentais, deve haver uma habilidade básica para
incluem imagens guiadas, hipnose, respiração diagnosticar e tratar síndromes simples de
abdominal, distração e contar histórias. O plano de dor crônica. A maioria dos pacientes, quase
tratamento deve incluir aptidões passivas, e se 80-90%, podem ser tratados por meios
possível ativas, de enfrentamento da dor, a ser simples, que devem estar disponíveis até em
implementadas considerando os desejos da criança e locais remotos ou de recursos muito baixos.
também de sua família. Apenas uma pequena porcentagem de
pacientes vai precisar de técnicas invasivas,
Pérolas de sabedoria como analgesia peridural, que podem estar
limitadas a centros de referência.
 Para o tratamento eficaz da dor em  Com relação ao monitoramento dos efeitos
crianças, é muito importante saber como colaterais da analgesia, nada pode substituir
avaliar a dor em diferentes faixas etárias. a vigilância e a avaliação clínica frequente.
 Para o tratamento da dor perioperatória é  Nenhuma criança deve ser privada de
necessário ter o conhecimento básico da analgesia adequada e segura devido à falta
farmacocinética e da farmacodinâmica de conhecimento.
dessa faixa etária especial.
 Deve haver um plano ou algoritmo
analgésico disponível na enfermaria para
situações terapêuticas típicas. As opções de
tratamento não farmacológico devem ser
integradas ao plano analgésico.

Tabela 4
Dose de bupivacaína caudal (0,125-0,25%)
0,5 mL/kg para cirurgia peniana e anal
0,75 mL/kg até a coluna lombar
1,00 mL/kg até T10
1,25 mL/kg abdominal superior até T6

Tabela 5
Duração da ação de bupivacaína caudal com adjuvantes
Medicamento Duração da ação (horas)
Bupivacaína 0,25% 4-6
Bupivacaína 0,25% com 0,5 mg/kg de cetamina 8-12
Bupivacaína 0,25% com 1-2 μg/kg de clonidina 8-12
Bupivacaína 0,25% com 1,5 mg/kg de tramadol 12
Bupivacaína 0,25% com 30-50 μg/kg de morfina 12-24
Bupivacaína 0,25% com 0,5 mg/kg de cetamina e 30
μg/kg de morfina 24

Tabela 6
Dose de infusões peridurais
Bupivacaína 1% com fentanil 1-2 μg/mL
Lactantes abaixo de 6 meses 0,1 mL/kg/h
Crianças acima de 6 meses 0,1-0,3 mL/kg/h
289

Tabela 7
Medicamentos usados com frequência e seus regimes de dose
Doses e regimes dos medicamentos Dose de acordo com peso corporal
Medicamento Dose Forma 3-6kg 6-10kg 10-15kg 15-20kg 20-29kg
Paracetamol 10-15 mg/kg Comprimido de
(acetaminofeno) até 4 vezes ao 100 mg - 1 1 2 3
dia Comprimido de
500 mg - ¼ ¼ ½ ½
Ibuprofeno 5-10 mg/kg Comprimido de
oral até o 200 mg - ¼ ¼ ½ ¾
máximo de Comprimido de
500 mg/dia 400 mg - - - ¼ ½
Codeína 0,5-1 mg/kg Comprimido de 15
oral a cada 6- mg ¼ ¼ ½ 1 1½
12 horas
Morfina Calcular a dose EXATA com base no peso da criança!
Oral: 0,2-0,4 mg/kg cada 4-6 horas; aumentar se necessário para dor aguda
Intramuscular: 0,1-0,2 mg/kg cada 4-6 horas
Bolus intravenoso: 0,05-0,1 mg/kg cada 4-6 horas (administrados devagar!)
Infusão intravenosa: 0,005-0,01 mg/kg/hora (em recém-nascidos apenas 0,002-0,003!)
Cetamina 0,04 mg/kg/h – 0,15 mg/kg/h i.v. / s.c.
(titulada para efeito: em geral máximo de 0,3 mg/kg/h – 0,6 mg/kg/h)
OR 0,2 mg/kg/dose – 0,04 mg/kg/dose oral 3 x ao dia, 4 x ao dia e ao deitar
Tramadol 1 mg/kg – 2 mg/kg cada 4-6 horas (máx. De 8 mg/kg/dia)
Adaptado de: Organização Mundial de Saúde. Livro de bolso para cuidados hospitalares de crianças –
diretrizes para o tratamento de doenças comuns com recursos limitados. Organização Mundial de Saúde;
2005

Referências
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[12] World Health Organization. Palliative care: symptom Communications Program
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www.whocancerpain.wisc.edu/related.html. Lists of numerous
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[13] World Health Organization. Symptom management and
end-of-life care. Geneva: World Health Organization; 2005. www.ippcweb.org .Online education program for health care
professionals by the “Initiative for Pediatric Palliative Care”
291

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 35
Dor na Velhice e Demência
Andreas Kopf

Portanto, o sistema de saúde e os profissionais de


O que é um paciente saúde precisam estar preparados para lidar com esse
grupo especial de pacientes. Com relação aos
geriátrico? problemas álgicos, o paciente geriátrico será um
desafio especial, visto que a porcentagem de
Paciente geriátrico é uma pessoa com idade pacientes com dor crônica (dor por mais de 6
biológica avançada (sendo a idade em anos a menos meses) aumenta constantemente entre 11% e 47%
importante), com várias morbidades, provavelmente entre os 40 e os 75 anos de idade. Os profissionais
vários medicamentos, privação psicossocial e de saúde precisam saber que os pacientes geriátricos
indicação para reabilitação (geral). O tratamento dos não apenas esperam o respeito da sociedade em
pacientes geriátricos é complicado quando existe geral, mas – com o aumento da expectativa de vida
demência, devido ao prejuízo das habilidades de – merecem tratamento médico adequado, inclusive
comunicação do paciente. tratamento da dor. As sociedades precisam discutir
como querem enfrentar essa demanda.
Tratamento da dor em
pacientes geriátricos O que os pacientes idosos esperam do médico?
Em pesquisas, a geração mais velha definiu uma
“lista de desejos”: permanecer ativa até a morte,
Por que o tratamento da dor de pacientes
tratamento individual, sem dor, tomada de decisão
geriátricos é um desafio médico para o futuro?
autônoma, poder morrer “cedo o suficiente” antes
Um fenômeno demográfico importante das últimas
do início de sofrimento inútil, e abordar contextos e
décadas em países industrializados é o constante
contatos sociais reduzidos.
aumento de faixas etárias mais altas com relação às
gerações mais jovens. Dentro de poucas décadas, a Por que os pacientes idosos não recebem o
mesma mudança demográfica vai ocorrer também cuidado que precisam e merecem?
em países que não fazem parte da Organização para Da perspectiva dos pacientes:
Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
 A incidência de demência aumenta com a idade,
(OCDE). Por exemplo, na Alemanha, o número de resultando em dificuldade de comunicação.
habitantes na faixa etária acima de 80 anos  Os pacientes idosos costumam se comportar
aumentou de 1,2 milhões em 1960 para 2,9 milhões como “bons pacientes”.
hoje, e vai crescer mais até 5,3 milhões em 2020.
 Têm uma visão tradicional de “confiar” no controlada adequadamente. Mas em outros países, o
médico que “irá cuidar de tudo que seja tratamento da dor oncológica não costuma ser uma
necessário”. alta prioridade, embora o bom controle da dor
 Costumam não insistir em certas intervenções oncológica possa ser conseguido de forma
médicas. relativamente fácil com algoritmos simples de
Da perspectiva de pacientes e médicos: tratamento baseados principalmente em um
 Dor na velhice faz “parte da vida” e do suprimento adequado de opióides.
“destino”.
Da perspectiva da sociedade: Se damos medicamento adequado aos
 Recursos inadequados do sistema de saúde pacientes idosos, por que mesmo assim eles
limitam o tratamento adequado.
não recebem controle suficiente da dor?
Da perspectiva do médico:
Problemas de comunicação e equívocos sobre a dor
 Pacientes idosos não sentem a dor tão
são causas importantes nessa situação. Deve-se
intensamente quanto pacientes mais jovens.
considerar uma série de particularidades dos
 Enfrentam melhor a dor e portanto precisam de
pacientes geriátricos:
menos analgesia.
 Obediência. Os pacientes geriátricos têm
Quais são as opiniões e as afirmações de problemas práticos previsíveis com a
organizações médicas científicas? medicação contra a dor. Pouca visão e
Um grande número de publicações mostra que os aptidões motoras, combinadas com
pacientes geriátricos não recebem tratamento xerostomia (boca seca) e distúrbios de
adequado da dor. As sociedades médicas fizeram memória, podem tornar o tratamento
dos pacientes idosos uma prioridade. Como a dor é adequado um verdadeiro fracasso. É preciso
frequente, importante, mal diagnosticada e sub- notar que os pacientes geriátricos em países
tratada, e como a pesquisa nesse tópico é pequena, a industrializados recebem prescrição de sete
dor dos idosos tem que ser declarada uma medicamentos diferentes em média, e
prioridade médica. Consequentemente, a IASP, em apenas uma minoria deles recebe prescrição
setembro de 2006, proclamou a “dor na velhice” de menos de cinco medicamentos diários,
como o alvo principal do “Dia Global da Dor”. tornando altamente prováveis a
desobediência ao tratamento e as interações
É verdade que a dor nos idosos é frequente? medicamentosas. As taxas de desobediência
Vários estudos demonstraram que a incidência de chegam a 20%. Além disso, prejuízos
dor é alta. Nas casas de repouso para idosos, até três intelectuais, cognitivos e manuais simples
quartos dos residentes entrevistados relataram dor. podem interferir com o tratamento. Mais de
Metade deles tinha dor todos os dias, mas menos de um quinto dos pacientes geriátricos não
um quinto tomava analgésicos. Estudos mostram consegue abrir embalagens de
que a dor não aliviada é um dos fatores preditivos medicamentos e blisters. Outro fator
mais importantes de incapacidade física. relativo à obediência dos pacientes
comparados aos pacientes mais jovens é o
Quais são as principais causas de dor de “pensamento positivo” diminuído: apenas
pacientes idosos? 20% dos pacientes geriátricos esperam
A causa número um de dor em pacientes idosos é a recuperação e cura.
doença degenerativa da coluna, seguida de  Disponibilidade de opióides e riscos de
osteoartrose e osteoartrite. Outras importantes prescrição.
etiologias da dor são polineuropatia e nevralgia pós-  Co-morbidade: a co-morbidade pode
herpética. A dor oncológica também é uma etiologia prejudicar o desempenho físico
importante da dor. Em países altamente possivelmente diminuindo os efeitos dos
industrializados, a dor oncológica nos idosos esforços de reabilitação.
costuma ser – pelo menos parcialmente –
293

 Mudanças farmacocinéticas: Uma das 3% desses pacientes irão informar que precisam de
principais mudanças fisiológicas dos analgésicos.
pacientes pediátricos é a redução do
metabolismo dependente do citocromo Como avaliar eficazmente a dor de pacientes
P450. Também, devido à função hepática geriátricos?
diminuída, os níveis de proteína plasmática A principal regra para o paciente geriátrico é:
costumam ser mais baixos em pacientes “pergunte pela dor”. O paciente pode não pedir
idosos. Os dois mecanismos alterados espontaneamente por analgesia. Toda dor relatada
podem causar interações medicamentosas deve ser levada a sério; é o paciente que sente a dor,
potencialmente perigosas e níveis e a dor é o que o paciente diz para você que é.
plasmáticos imprevisíveis. Esse efeito pode Instrumentos convencionais podem ser úteis para a
ser mais pronunciado para medicamentos avaliação da dor, como escalas analógicas ou
que são eliminados pelos rins, pois a taxa de verbais, se o paciente consegue se comunicar
filtração glomerular costuma estar diminuída adequadamente. Mas as escalas analógicas ou
também, e para medicamentos com alta taxa verbais não vão funcionar com o paciente que não
de ligação às proteínas plasmáticas, que pode se comunicar. Portanto, será necessário usar
podem resultar em níveis séricos técnicas mais sofisticadas. Todas essas técnicas são
imprevisíveis de substâncias livres. baseadas em observações e interpretações
 Estado vegetativo: reações simpáticas são cuidadosas do comportamento do paciente. Para
reduzidas causando o mau entendimento e a isso, foram desenvolvidos vários sistemas de
subestimação da dor, visto que os pacientes classificação. Itens típicos a serem observados são
idosos parecem ser menos afetados pela dor. expressão facial, atividade diária, reações
Com relação aos receptores opióides e à emocionais, posição corporal, chance de consolo e
sensibilidade subjetiva a estímulos dolorosos reações vegetativas. Alguns escores também incluem
existem evidências conflitantes. Portanto, a a impressão subjetiva do terapeuta. Uma pesquisa
conclusão deve ser que a percepção da dor e as clínica recente tentou interpretar as várias
interações entre analgésicos são imprevisíveis. intervenções terapêuticas para saber mais sobre a
dor dos pacientes, com estudos chamados “estudos
Os pacientes com problemas de comunicação, de intervenções sequenciais”.
como aqueles com mal de Alzheimer, recebem
analgesia insuficiente? Relato de caso: Sr. Ramiz
Infelizmente, alguns estudos mostram que pacientes
com mal de Alzheimer e comunicação difícil ou
Shehu (câncer de próstata)
impossível recebem analgesia insuficiente. Isso foi
O Sr. Shehu tem 75 anos e é agricultor no norte da Albânia,
demonstrado para situações agudas como fraturas
morando na cidade de Filipoje. O diagnóstico de câncer de
da cabeça do fêmur, e para dor crônica. Essa
próstata foi feito 3 anos atrás quando ele foi consultar o
observação é alarmante porque existem evidências
médico local, Dr. Frasheri, porque estava com dificuldade de
de que a percepção da dor não é alterada em
urinar. Como houve suspeita de doença da próstata,
pacientes com mal de Alzheimer.
coletaram sangue e enviaram para o hospital distrital para
Qual é a razão provável mais importante para o exame de antígeno específico da próstata (PSA).
tratamento inadequado da dor? Infelizmente, o PSA foi altamente positivo. Depois de
Grande parte do problema do tratamento avaliação cuidadosa da situação individual, principalmente
inadequado da dor de pacientes geriátricos é a falta com relação a comorbidades como hipertensão e insuficiência
de avaliação adequada. Principalmente em pacientes cardíaca, além da idade avançada do paciente, o Dr. Frasheri
com demência, a não avaliação adequada da dor concluiu que não havia indicação para mandar o Sr. Shehu
resulta em analgesia insuficiente, porque menos de para a capital Tirana para cirurgia, quimioterapia ou
radioterapia. Agora, 3 anos depois, o Sr. Shahu ainda piroxicam. Interrompeu esse medicamento e explicou ao Sr.
estava relativamente bem sendo membro ativo da igreja de Shehu que a medicação tinha vários fatores prognósticos para
São Bartolomeu em sua cidade natal. Mas nas últimas insuficiência renal e efeitos colaterais gastrintestinais: idade
semanas ele passou a ter mais dor no tórax e no quadril avançada, medicação prolongada, acúmulo de piroxicam
esquerdo. Ele descreve a dor como “perfurante”, aumentando devido à meia vida longa, entre outros problemas. O Sr.
com atividade, principalmente ao andar e respirar Shehu não ficou satisfeito com a redução da dor
profundamente. Visitantes italianos suspeitaram primeiro de proporcionada pelo paracetamol porque ele precisava ir e
doença coronariana e de artrite do quadril, visto que seu voltar a pé para a igreja todos os dias, embora a dor fosse
PSA havia sido esquecido naquela época. Mas o médico local aceitável quando ele estava sentado ou deitado. Então, ele
tirou as conclusões corretas. insistiu com o Dr. Frasheri que precisava de algo mais.
No início, o Dr. Frasheri relutou em prescrever opióides,
1) As opções em Filipoje: porque não eram fáceis de encontrar na Albânia. A
Terapia local: Usar uma bengala, aplicar bandagem elástica quantidade per capita de morfina e petidina quase não tinha
feita em casa em torno do tórax. mudado desde a ditadura de Enver Hoxha (1970-1980s) e
Terapia sistêmica: Os únicos analgésicos disponíveis eram a Albânia nunca assinou a Convenção Única de 1961. As
diclofenaco e morfina. prescrições de fentanil (principalmente para cirurgias) e de
metadona (principalmente para substituição de opióides) só
2) As opções na capital, Tirana aumentaram recentemente. Assim mesmo, podia-se obter
No Hospital Madre Theresa, centro de cuidados terciários, as morfina – com dificuldade. Após muitas explicações sobre os
opções são: prós e os contras da morfina (o Sr. Shehu era bastante cético
Terapia local: Raios-X ou TC para confirmação de sobre tomar morfina), o Sr. Shehu começou a morfina,
metástase óssea, talvez radioterapia; radiação fracionada iniciando com 10 mg 2 vezes ao dia e aumentando
(múltipla) para analgesia e estabilização óssea, radiação não gradualmente a dose durante vários dias. Quando ele
fracionada (única) apenas para analgesia. descobriu os efeitos positivos (principalmente ao andar e ficar
Terapia sistêmica: Bisfosfonatos (para estabilização óssea), de pé), o Sr. Shehu parou de levantar objeções. Sua dose de
radionucleotídeos, como samário, ou fosfatos ativados (para manutenção foi 30 mg de sulfato de morfina quatro vezes ao
pacientes com várias metástases ósseas dolorosas onde a dia. Atividade, beber um litro a mais de água por dia, dieta
radiação não é uma opção), opióides alternantes (para efeitos mediterrânea saudável e açúcar do leite ajudaram contra
colaterais persistentes ou para o primeiro ou segundo opióide obstipação, mas a náusea não pôde ser evitada por falta de
porque a rotação de opióides é a terapia de escolha se a metoclopramida. No entanto, o Sr. Shehu foi instruído
sedação e/ou náusea persistirem por mais de 1 semana), meticulosamente para que fosse paciente o suficiente para
cateteres intratecais (para metástases vertebrais onde a dor em esperar que a náusea (e a sedação) desaparecessem após uma
repouso é bem controlada com opióides, mas a dor ao semana. Na parte educacional das visitas ao consultório, os
sustentar peso é insuportável ou apenas suportável com doses membros da família foram incluídos para discutir o desejo do
de opióides que podem causar efeitos colaterais intoleráveis). paciente de ficar em Filipoje e sua atitude pessoal ao enfrentar
a doença e seus sintomas, achando força pessoal nas palavras
O tratamento do Sr. Shehu de seu salvador da igreja de São Bartolomeu.
Devido a problemas de transporte e a uma longa lista de
espera para tratamento em Tirana, o Dr. Frasheri decidiu Como o Dr. Frasheri e o Sr. Shehu encontraram
tratar o Sr. Shehu sintomaticamente em casa. Em Filipoje, a dose ideal de morfina?
ele encontrou uma bengala usada e bandagem elástica, que Como o Sr. Shehu nunca tinha tomado opióides,
ajudaram na deambulação. Havia diclofenaco nas farmácias tinha idade avançada e intensidade imprevisível da
locais, mas o Dr. Frasheri decidiu aconselhar paracetamol dor oncológica, o método de escolha foi titulação
(acetaminofeno), porque não estava certo da função renal e era por paciente. Isso significa que após uma explicação
previsto que a terapia analgésica durasse muito tempo. detalhada dos prós e contras da morfina, o Sr.
Quando o Sr. Shehu recebeu piroxicam de sua missão Shehu recebeu uma solução de morfina (2%) que
Católica, começou a tomá-lo por via oral. Foi por pura sorte podia ser produzida localmente pelo farmacêutico.
que o Dr. Frasheri descobriu que o paciente estava tomando Foi dito ao Sr. Shehu, com a ajuda de seu filho mais
295

velho Sali, para tomar 10 gotas (10mg) de morfina as orientações devem ser repetidas várias
conforme necessário, sempre aguardando pelo vezes.
menos 30 minutos entre as doses, e foi dito a ele vi) Preveja a dor e trate de acordo.
para anotar a hora em que tomou o medicamento vii) Use técnicas não farmacológicas quando
extra. Dois dias depois, o Sr. Shehu e seu filho aplicáveis, como posicionamento,
voltaram ao consultório do Dr. Frasheri e, juntos, contrairritação (usando gelo, loções
verificaram a lista. O resultado foi que, em média, fitoterápicas alcoólicas externas, etc.).
foi necessária uma dose a cada duas horas, mais viii) Tranquilize comportamentos associados
durante o dia e menos durante a noite. Para atingir à ansiedade.
níveis sanguíneos estáveis – e mais toleráveis – de ix) Não use “esquemas de doses de livro de
morfina, o Dr. Frasheri aconselhou o Sr. Shehu a receitas”; ao contrário, titule as doses
tomar 30 mg de morfina regularmente a cada quatro individualmente a partir de doses iniciais
horas, porque não havia formulação de liberação muito baixas.
lenta da morfina. É claro que o Dr. Frasheri não x) Para a avaliação geral do paciente,
esqueceu de permitir que o sr. Shehu tomasse – condicionamento físico é uma diretriz
quando necessário – doses extras de 10 mg (cerca de melhor do que idade cronológica.
10% da dose cumulativa diária). Se o Sr. Shehu não xi) A dor pode ser geralmente tratada no
precisasse de doses extras, a dose básica de quatro ambulatório; o tratamento hospitalar
vezes ao dia seria levemente reduzida, por ex., para apenas para o controle da dor é indicado
20 mg quatro vezes ao dia; se precisasse de 1-4 somente para pacientes selecionados.
doses extras, a prescrição não seria alterada; e se as 2) Avaliação:
doses extras excedessem 4 por dia, a dose básica de i) Faça perguntas ao paciente, que poderá
quatro vezes ao dia seria aumentada (por ex., com 6 não revelar espontaneamente certas
doses extras por dia iguais a 60 mg, a dose regular informações, por alguma razão.
de 30 mg quatro vezes ao dia seria aumentada para ii) Para pacientes com problemas de
40 mg quatro vezes ao dia). O mesmo comunicação, um dos escores sugeridos
procedimento de titulação foi usado para o horário é o BESD (Beurteilung von Schmerz bei
para que o equilíbrio entre analgesia e efeitos Demenz [Avaliação da Dor na
colaterais fosse benéfico para o Sr. Shehu. Demência]). Pode-se alocar de 0 a 2
pontos para cinco observações,
Em conclusão, o que deve ser feito? dependendo de sua inexistência,
1) Geral: presença média ou presença forte. As
i) os pacientes não devem ser privados dos observações são:
benefícios da analgesia só porque são a) Frequência respiratória
idosos. (normal/alta/agitada)
ii) Incluir os parentes. b) Vocalizações (nenhuma, gemendo,
iii) Escrever suas indicações em letras chorando)
grandes para pacientes com problemas c) Expressão facial (sorrindo, ansiosa,
de visão. fazendo caretas)
iv) Sempre dar aos pacientes informações d) Posição corporal
por escrito sobre o que tomar, quando (relaxada/agitada/tônica)
tomar e, finalmente, sobre os efeitos e) Consolação (desnecessária, possível,
colaterais esperados. impossível)
v) Evite sobrecarregar mentalmente o iii) A partir de um total de cinco pontos,
paciente; em geral, não se deve discutir esse sistema de classificação obriga o
mais do que um tópico por consulta, e terapeuta a iniciar a terapia analgésica.
3) Farmacoterapia. O princípio básico da Os opióides também podem ter efeitos
farmacoterapia no idoso é “começar baixo e ir indesejáveis?
devagar”, significando que as doses iniciais de todos Os opióides também podem interagir com outros
os analgésicos devem ser menores se comparadas às medicamentos. Cuidado principalmente, com todos
doses normais para adultos e que todos os os medicamentos que contenham efeito inibidor de
aumentos de dose devem ser feitos lentamente em CYP2D6 e espere níveis plasmáticos acima do
pequenos incrementos. normal, por exemplo, cimetidina, quinidina,
paroxetina, fluoxetina, metadona, anti-histamínicos
Farmacoterapia em e haloperidol. Outras interações diretas importantes
da morfina com outras farmacoterapias são
pacientes mais velhos ranitidina e rifanpicina; para fentanil, cetoconazole e
claritromicina; para metadona, cimetidina, quinidina,
Quais são as considerações especiais para a paroxetina, fluoxetina, anti-histamínicos e
farmacoterapia de pacientes idosos? haloperidol; e para tramadol, quinina e ISRSs.
Os AINEs têm uma série de interações Se houver disfunção orgânica, escolha – se houver –
farmacológicas. Uma das mais importantes é o buprenorfina para insuficiência renal e metadona
potencial para aumentar os efeitos colaterais para insuficiência hepática. Mas todos os outros
gastrintestinais com a co-medicação com opióides. opióides também podem ser escolhidos desde que
A redução de açúcar no sangue também é as doses sejam tituladas individualmente e as
potencializada se o paciente estiver tomando reduções de dose sejam feitas de acordo.
antibióticos orais. Outras interações são a redução
do efeito da co-medicação, por ex., com diuréticos Quais são as considerações para escolher os
(menor débito urinário) ou inibidores da ECA opióides?
(enzima de conversão da angiotensina) (menor Os opióides têm uma vantagem imbatível sobre
redução da pressão arterial). Outras interações com quase todos os outros medicamentos disponíveis,
mudanças inesperadas de nível sérico resultam de principalmente para os idosos, porque não existe
terapia concomitante com AINEs e álcool, potencial conhecido para toxicidade orgânica,
betabloqueadores, metotrexate, inibidores seletivos mesmo com uso prolongado. Portanto, todas as
de recaptação da serotonina (ISRSs), ou quinina. doenças destrutivas avançadas com dor (neuropatia-
HIV, dor oncológica, neuralgia pós-herpética, e
Por que os AINEs são de especial importância importantes doenças degenerativas da coluna com
com relação a efeitos indesejáveis? destruição de corpos vertebrais) são indicações para
Os pacientes idosos podem ter uma complicação o uso de opióides. Alguns opióides, como a
típica com a administração de AINEs por um longo morfina, são baratos (menos que o custo de um
período de tempo. Por exemplo, artrite dolorosa filão de pão para uma dose semanal de morfina) e
costuma ser a causa primária da prescrição de um estão disponíveis na maioria dos países, embora as
AINE. A ingestão prolongada (mas de 5 dias de leis locais possam proibir a prescrição de morfina. A
ingestão regular), doses mais altas, e medicação morfina e outros opióides “simples”, como
esteróide concomitante podem causar úlceras hidromorfona e oxicodona são bons. Pentazocina,
gastrintestinais. O sangramento repetitivo da úlcera tramadol e petidina (meperidina) não são a primeira
pode ser causa de anemia. Em pacientes idosos com opção para pacientes idosos devido a
função cardíaca reduzida, a anemia pode causar farmacocinética e farmacodinâmica específicas.
insuficiência cardíaca, que é seguida pela Embora os opióides sejam analgésicos eficazes e
administração de diuréticos como terapia. Embora seguros, deve-se considerar alguns pontos antes de
essa medicação seja razoável em situações normais, iniciar os opióides em pacientes idosos. Devido a
os diuréticos podem causar disfunção renal e mudanças na depuração plasmática e na distribuição
consequentemente insuficiência renal! de fluidos, as concentrações plasmáticas dos
opióides podem ser mais altas do que o esperado.
297

Principalmente em tratamentos prolongados, serão mais velhas costumam ter menos estratégias para
necessários ajustes de dose. Em geral, as doses de enfrentar o estresse. Se viveram em tempos de
opióides têm uma correlação inversa com a idade, guerra, em geral é a velhice que trás de volta
mas a indicação para um opióide tem uma lembranças desagradáveis. Existem evidências de
correlação positiva (linear) com a idade, e os que sintomas semelhantes ao estresse pós-
homens, em média, precisam de mais opióides do traumático podem aparecer na velhice. Mesmo que
que as mulheres. Mulheres idosas precisam de não exista tratamento adequado para esse problema,
opióides com mais frequência, mas em doses perguntar por tais lembranças e sintomas e uma
menores. Como com outras faixas etárias, algumas abordagem compreensiva podem aliviar alguns dos
regras da terapia com opióides devem ser seguidas, sofrimentos dos pacientes idosos. As estratégias
principalmente informações estruturadas sobre as religiosas também podem ser usadas por suas
vantagens (ausência de toxicidade orgânica, propriedades curativas. Às vezes, os pacientes
tratamento prolongado) e desvantagens idosos não ousam expressar suas crenças, e o
(dependência com necessidade de diminuição profissional médico jovem pode ter se afastado do
gradual da dose, náusea e sedação iniciais, e maior pensamento espiritual. Embora a cura espiritual
probabilidade de obstipação contínua). possa não ser usada intencionalmente, se essas
necessidades já não estão presentes no paciente elas
Existe o “melhor opióide” para os pacientes podem ser integradas a uma abordagem holística se
idosos? o questionamento meticuloso revelar a disposição
Em geral, “todos os opióides são iguais”, mas como do paciente. Na idade avançada, a dor pode ser
na fazenda de animais de George Orwell “alguns integrada à realidade da vida se cuidarmos de outros
são mais iguais”: a baixa ligação com as proteínas fatores da qualidade de vida em geral. Se
plasmáticas da hidromorfona e da morfina (8% e perguntados sobre sua “lista de desejos”, os
30%, respectivamente) pode ser uma vantagem pacientes mais velhos vão gostar de conversar sobre
sobre outros como oxicodona, fentanil ou sua biografia, estímulos para ter esperança,
buprenorfina (40%, 80% ou 95%, respectivamente), integração de religião e família ao seu tratamento,
porque a alta taxa de ligação proteíca pode causar além de um ambiente carinhoso no consultório
interações medicamentosas. médico. O sistema de saúde deve tentar aliviar
algumas tristezas e ansiedades do final da vida, para
Os co-analgésicos devem ser considerados para que o paciente não precise citar o famoso diretor de
pacientes idosos? cinema Woody Allen: “Não tenho medo de morrer,
A indicação de co-analgésicos deve ser feita com só não quero estar por perto quando isso
cautela para evitar interações medicamentosas e acontecer”.
efeitos colaterais indesejados. Por exemplo, o uso de
antidepressivos tricíclicos, usados com frequência Pérolas de sabedoria
para dor constante em queimação, como na
polineuropatia diabética ou neuralgia pós-herpética,
 Não há evidência de que pacientes mais
aumenta o risco de quedas e a incidência de fraturas
velhos sintam menos dor e precisem de
do colo do fêmur. Portanto, na clínica prática, o uso
menos analgésicos do que pacientes mais
de co-analgésicos deve ser restrito a medicamentos
jovens. Também, a crença de que a
bem-tolerados, como capsaicina externa ou
densidade de receptores opióides é reduzida
gabapentina sistêmica, se houver.
não foi confirmada por pesquisas recentes.
Portanto, é errado negar opióides porque o
Existe algo além dos analgésicos para pacientes
paciente é idoso.
idosos?
 A dor é subdiagnosticada no paciente idoso.
A incidência de distúrbios depressivos é alta
Sempre pergunte sobre a dor, e não confie
comparada aos pacientes mais jovens, e pessoas
em escala analógicas (por ex., escala
numérica ou EAV); ao contrário, observe intervalo mais longo entre doses pode ser
cuidadosamente o paciente que não se uma boa solução (morfina 3 vezes ao dia).
comunica para diagnosticar dor não aliviada. Se houver, combine morfina de ação
 Os pacientes idosos costumam agir de prolongada para analgesia básica com
maneira “socialmente aceitável”, morfina de ação rápida para doses sob
significando que tentam ser um bom demanda.
paciente (“se eu não for uma carga para  Os co-analgésicos podem ser usados apenas
ninguém, todos vão me valorizar mais”, e “o em pacientes individualmente selecionados.
médico sabe o que é melhor para mim e vai Se os co-analgésicos forem inevitáveis, deve-
me perguntar se necessário”), e costumam se preferir os anticonvulsivantes
sofrer por coisas como dor, privação e bloqueadores de canais de cálcio
isolamento (“ninguém pode me ajudar”, (gabapentina ou pregabalina).
“sofrer é o destino dos idosos”, “não há  As estratégias de tratamento não
esperança para mim”). farmacológico devem ser sempre
 AINEs ou paracetamol (acetaminofeno) ou implementadas se possíveis e viáveis:
dipirona, são medicamentos de primeira educação, atividade, técnicas cognitivas e
opção para dor metastática (óssea), contrairritação (por ex., acupuntura). Não
dependendo do perfil de risco do paciente esqueça de integrar crenças religiosas ao
(AINEs podem ser usados no curto prazo plano de tratamento.
para exacerbações da dor). Use a dose mais  Decisões do final da vida devem respeitar o
baixa possível de AINEs, e evite AINEs de desejo dos pacientes idosos de morrer em
ação prolongada que possam se acumular casa, com dignidade e respeitados, com a
(piroxicam e outros). Evite AINEs com dor sob controle.
histórico de medicação esteróide,  Regra prática: comece baixo, vá devagar.
sangramento gastrintestinal e disfunção
renal. Referências
 Se não houver suspeita de componente
inflamatório e as atividades antiinflamatórias [1] AGS Panel on Persistent Pain in Older Persons. The
dos AINEs forem irrelevantes, então management of persistent pain in older persons. J Am Geriatr
escolha sempre um analgésico antipirético, Soc 2002;50:S205–24.
como paracetamol e dipirona. [2] Hadjistavropoulos T. International expert consensus
statement. Clin J Pain 2007;23:S1.
 Os opióides são os analgésicos de escolha [3] Manfredi PL, Breuer B, Meier DE, Libow L. Pain
para dor oncológica forte que não responde assessment in elderly patients with severe dementia. J Pain
a AINEs. Lembre-se que serão necessárias Symptom Manage 2003;25:48–52.
aproximadamente quatro meias-vidas (para
morfina o tempo total será de cerca de um Sítios na Web
dia) antes que se atinja uma situação de
manutenção e que mulheres em geral www.merck.com (the Merck manual on geriatrics)
precisam de menos opióides do que os www.canceradvocacy.org (pain in the elderly)
homens. Na maioria dos idosos, um
299

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 36
Dor do Tipo Breakthrough, Emergência da Dor, e
Dor Incidental
Gona Ali e Andréas Kopf

O conceito de “dor do tipo breakthrough” é o opioide da Sra. Nadhari para morfina (30 mg 4 vezes ao
relativamente novo e recebe muito menos atenção dia).
do que a dor constante. Como resultado, este tipo Em repouso, a dor estava agora bem controlada, como
de dor é muito menos bem entendida e tratada do quando ela estava na cama ou vendo televisão. Mas a Sra.
que a dor constante. Na verdade, a dor do tipo Nadhari estava muito decepcionada porque não podia mais
breakthrough tem uma série de “necessidades não cozinhar para sua família porque longos períodos de pé ou
atendidas”. curvada sobre o fogão eram agora impossíveis.

Relato de caso Discussão do relato de caso


Tabitha Nadhari, uma senhora de 66 anos de Basra, Essa paciente com câncer de mama e envolvimento
Iraque, tem histórico de câncer de mama. Sete anos atrás, fez de nódulos linfáticos axilares se queixa de dor forte
uma mastectomia com esvaziamento de axila, seguida de causada por várias metástases ósseas. Como é
químio e radioterapia. Permaneceu sem dor até um ano atrás, comum nesses casos, a dor em repouso é bem
quando começou a se queixar de lombalgia que era leve e foi controlada por analgésicos (de acordo com a escada
erroneamente diagnosticada como “funcional”. Infelizmente, a da Organização Mundial de Saúde [OMS]), mas a
RM mostrou metástases nas vértebras cervicais, torácicas e dor com movimentos é totalmente incontrolável.
lombares. Naquela época, a Sra. Nadhari tomou analgésicos Como todas as exacerbações da dor ocorrem junto
não opioides conforme necessário, como paracetamol com atividade física, tal dor é chamada dor
(acetaminofeno) ou diclofenaco. Devido aos problemas sociais incidental (ao contrário da dor do tipo
de pós-guerra, o sistema de saúde não tinha nem breakthrough, que também pode aparecer
quimioterapia nem radioterapia. espontaneamente). Para o Dr. Foud, a melhor coisa
Recentemente sua dor se tornou mais forte e intolerável. A a fazer era prescrever comprimidos de 10 mg de
dor já não respondia a diclofenaco. Ela encontrou um médico morfina para a Sra. Nadhari e instrui-la a usá-los
muito atencioso, o Dr. Foud, que iniciou com tramadol, um quando planejasse atividade física. Por exemplo,
opioide fraco, além do diclofenaco. Após alguns dias, quando antes de começar a cozinhar, a Sra. Nadhari deveria
ficou evidente que o tramadol era ineficaz, o Dr. Foud mudou tomar um comprimido de 10 mg (dose de titulação),
esperar aproximadamente 30 minutos e então avaliada de forma semelhante à dor constante, com
começar a ir para a cozinha. É claro, ela deve ser histórico da dor e exame físico.
informada que morfina extra, principalmente se ela
precisar de mais de uma dose de titulação, pode Por que devemos aumentar
produzir sedação ou náusea, ou ambos. Se houver,
deve-se prescrever metoclopramida, se necessário, e
a atenção na dor do tipo
um membro da família ou amigo deve estar por breakthrough?
perto para ajudá-la caso ela fique tonta.
Caso a Sra. Nadhari precise de mais de três ou A dor do tipo breakthrough é comum em pacientes
quatro doses de morfina extra por dia, o Dr. Foud oncológicos e também em pacientes com outros
deve considerar aumentar a morfina de acordo, tipos de dor. Infelizmente, ela é sub-diagnosticada e
talvez para 40 mg de morfina quatro vezes ao dia. sub-reconhecida pelos profissionais de saúde. Uma
pesquisa da IASP sobre características e síndromes
O que é dor do tipo da dor oncológica descobriu que os especialistas em
breakthrough? dor da América do Norte, Australásia e Europa
Ocidental relataram mais dor irruptiva do que os
especialistas da América do Sul, Ásia e Europa do
A OMS publicou diretrizes para combinar a
Sul e Oriental. Portanto, existe necessidade de
potência dos analgésicos à intensidade da dor. A
iniciativas educacionais específicas sobre dor do tipo
abordagem de três degraus foi recomendada em
breakthrough para todos os grupos de profissionais
1990 e revista em 1996. As diretrizes da OMS não
de saúde envolvidos com o tratamento da dor,
abordam especificamente a dor irruptiva.
porque o diagnóstico e o tratamento da dor do tipo
A exacerbação transitória da dor é descrita na
breakthrough devem ser independentes da região
literatura médica por uma série de termos diferentes,
onde vive o paciente. Muitos pacientes com dor
como dor irruptiva, dor transitória, exacerbação da
oncológica são inadequadamente tratados e esse
dor, dor episódica, ou fluxo de dor. Um Grupo de
problema diz respeito ao tratamento tanto da dor
Trabalho Especialista da Associação Européia para
constante quanto da dor do tipo breakthrough. O
Cuidados Paliativos (EAPC) sugeriu que o termo
tratamento insatisfatório da dor do tipo
“dor do tipo breakthrough” deveria ser substituído
breakthrough está relacionado à avaliação
pelos termos “dor episódica” ou “dor transitória”.
inadequada, ao uso inadequado de tratamentos
No entanto, o termo “dor do tipo breakthrough”
disponíveis e, em vários casos, a tratamentos
ainda é bastante usado pela literatura médica;
inadequados. Os profissionais de saúde precisam
portanto esse termo será usado também neste
conhecer as diferentes opções de tratamento, e os
capitulo.
pacientes precisam ter acesso a todas essas
A dor do tipo breakthrough costuma ser abrupta,
diferentes opções de tratamento (por ex.,
aguda e pode ser muito intensa. As características da
tratamento anti-câncer, intervenções não
dor do tipo breakthrough oncológica variam de
farmacológicas, e intervenções farmacológicas).
pessoa para pessoa, inclusive o início, a duração, a
frequência de cada episódio e as causas possíveis.
A dor do tipo breakthrough pode ser descrita como
Quais são as causas da dor
a exacerbação de curto prazo da dor sentida por um do tipo breakthrough?
paciente que tem a dor basal relativamente estável e
adequadamente controlada. Mas atualmente não Parece que a dor do tipo breakthrough é mais
existe definição universalmente aceita para dor do comum em pacientes com
tipo breakthrough. Existem algoritmos diagnósticos  Doença avançada;
e instrumentos de avaliação deste tipo de dor,
 Mau estado funcional;
embora não sejam usados com frequência na prática
clínica. A dor do tipo breakthrough deve ser
301

 Dor originária da coluna vertebral e em Como sempre, a melhor estratégia para tratar a dor
menor grau de outros ossos ou articulações do tipo breakthrough seria tratar a causa da dor,
que sustentam peso; mas infelizmente, na maioria das vezes, a causa da
 Dor originária dos plexos nervosos e em dor que poderia ser eliminada imediatamente não é
menor grau de raízes nervosas. aparente.
Outras categorias incluem dor do tipo breakthrough A dor do tipo breakthrough é uma condição
idiopática, que ocorre espontaneamente, e dor do heterogênea e seu tratamento envolve uma série de
tipo breakthrough conhecida como “falha de final tratamentos e não o uso de um único tratamento
de dose”, que ocorre tipicamente ao final do padrão. O tratamento mais adequado será
intervalo de doses de analgésicos usados para determinado por uma série de fatores diferentes,
controlar a dor persistente do paciente. Esse inclusive a etiologia da dor (por ex., dor oncológica,
aumento transitório da dor deve ser mais do que dor não oncológica), a fisiopatologia da dor (por ex.,
moderado (por ex., “intenso” ou “excruciante”). nociceptiva, neuropática), as características da dor
Russell Portenoy, do Memorial Sloan-Kettering (por ex., duração do episódio), as características do
Cancer Center de Nova Iorque desenvolveu um paciente (por ex., estado de desempenho), a
conjunto de critérios diagnósticos amplamente aceitabilidade de diferentes intervenções, a
utilizados para a dor do tipo breakthrough. Os disponibilidade de diferentes intervenções, e o custo
critérios são: das diferentes intervenções.
 Presença de analgesia estável nas últimas 48 Em primeiro lugar, deve-se avaliar se a dor do tipo
horas breakthrough pode ser diminuída com métodos não
farmacológicos, como reposicionamento, repouso
 Presença de dor constante controlada nas
no leito, fricção ou massagem, aplicação de calor ou
últimas 24 horas (i.e., intensidade da dor de
frio e técnicas de distração e relaxamento. Nunca se
não mais do que 4 em uma escala numérica
esqueça também de verificar o volume da bexiga em
de classificação de zero a 10 [ENC])
casos de exacerbação da dor no abdômen inferior,
 Crises temporárias de dor intensa ou
principalmente em pacientes sedados ou
excruciante nas últimas 24 horas
impossibilitados de se comunicar.
Infelizmente, existem poucas evidências
Como se avalia a dor do tipo respaldando o uso dessas intervenções no
breakthrough? tratamento de episódios de dor do tipo
breakthrough.
Atualmente, não existe instrumento validado de Em segundo lugar, se a intervenção farmacológica
avaliação da dor do tipo breakthrough, mas a for essencial, a classe de medicamentos de escolha
avaliação da deve incluir: para dor nociceptiva (descrita como doída, surda,
perfurante) são os opioides. A via de aplicação é
 Obter o histórico da dor
escolhida dependendo da intensidade da dor. Na
 Examinar a área dolorosa
dor “excruciante” (escore NRS de 9-10), o intervalo
 Investigações adequadas entre o opioide oral e a redução da dor é
 Avaliação da intensidade da dor com considerado muito longo (em geral de 30 a 45
instrumentos bem conhecidos: por exemplo, minutos) e a titulação intravenosa do opioide deve
escala verbal ou numérica ou escala ser indicada (em geral de 5-10 minutos). Para dor
analógica visual moderada ou aguda (escore NRS de 6-8), pode-se
usar opioides orais. Todos os opioides de liberação
Como podemos tratar a dor imediata são adequados como medicações orais ou
do tipo breakthrough? i.v. para dor do tipo breakthrough.
É uma boa idéia combinar opioides com não
opioides, como metamizole, ibuprofeno ou
diclofenaco se o paciente já não estiver os tomando Na prática, o que é possível fazer para ajudar
regularmente. pacientes com dor aguda excruciante?
Em geral, nunca sabemos qual será a dose total
Perguntas práticas sobre a necessária para controlar a dor. Portanto, o
princípio básico da medicação da dor irruptiva é
dor do tipo breakthrough “titulação”. Um paciente jovem e atlético com dor
excruciante pode precisar de apenas 2,5 mg de
Tenho medo da depressão respiratória. Essa morfina i.v. enquanto que uma senhora idosa frágil
preocupação com esse efeito adverso típico dos pode precisar de 25 mg de morfina i.v. para obter o
opioides é justificada? mesmo alívio da dor.
A dor é um antagonista de todos os efeitos Se o paciente não recebeu medicação opioide
depressores dos opioides. Desde que haja um contínua, 2,5 mg de morfina (ou 50 mg de tramadol,
equilíbrio entre a dor e a dose de opioide, só haverá 0,5 mg de hidromorfona ou 50 mg de meperidina)
sedação tolerável, mas não depressão respiratória. será uma etapa adequada de titulação intravenosa.
Como o princípio do tratamento da dor do tipo Perguntando ao paciente todas as vezes, 5-10
breakthrough é a titulação dos opioides, esse minutos após a administração do opioide, sobre a
equilíbrio entre intensidade da dor e efeitos intensidade da dor, é possível decidir se a titulação
colaterais dos opioides pode ser encontrado deve prosseguir.
facilmente. A meta da titulação não é eliminar a dor Se o paciente recebeu medicação opioide contínua, a
(escore da escala numérica de 0), porque nas doses dose de titulação deve ser em torno de 10-15% da
necessárias os efeitos colaterais vão prevalecer, mas dose cumulativa diária do opioide. Se o paciente está
sim atingir um nível tolerável de dor (escore de 3-4). tomando 40 mg de morfina oral quatro vezes ao dia
Nesse caso, a depressão respiratória não será uma (dose diária total de 160 mg orais, equivalentes a 50
grande preocupação. No entanto, em casos raros, a mg de morfina i.v.), a dose de titulação i.v. será de
intensidade da dor pode não mudar, mas o paciente 5-7,5 mg. A dose i.v. pode ser repetida a cada 8
ficar cada vez mais sedado. Nessas situações minutos para que faça efeito completamente antes
extremas, o paciente precisa estar acordado para que mais titulação seja indicada. A titulação
poder lhe dizer que a dor é ainda excruciante. analgésica da dor do tipo breakthrough é
considerada bem-sucedida quando a intensidade da
Como pode um paciente estar profundamente dor é igual ou menor do que 4 na escala numérica.
sedado e ainda sentir dor excruciante?
A explicação é que o paciente pode ter uma dor que Na prática, o que fazer em caso de dor forte,
não seja “sensível a opioides”, significando que mas não excruciante?
devido a esse tipo de dor (por ex., dor neuropática) Basicamente, aplicam-se as mesmas regras do
ou efeitos de tolerância (aumento rápido da dose parágrafo anterior, mas ao invés de titulação i.v.,
com opioides antes da dor irruptiva), os opioides usa-se a titulação oral. Novamente, calcula-se 10-
não estão fazendo efeito. Portanto, o paciente só 15% da dose diária total e essa dose de titulação é
está sentindo os efeitos colaterais dos opioides. dada ao paciente a cada 30 minutos até que a
Já foram consideradas técnicas alternativas para intensidade da dor esteja controlada.
aliviar a dor. Na dor neuropática, carbamazepina
oral ou fentoína oral ou i.v. parecem funcionar, ou Pode-se usar titulação aguda de dose para
se não, cetamina i.v. ou S(+)-cetamina em doses calcular as necessidades futuras de opioides do
analgésicas podem ser indicadas (0,2-0,4 mg/kg ou paciente?
0,05-0,2 mg/kg de peso corporal por hora, Sim, em pacientes oncológicos podemos muito bem
respectivamente). Se houver um anestesiologista, prever a demanda futura de opioides. Se o paciente
pode-se considerar bloqueios regionais ou precisa de 30 mg de morfina oral ou de 10 mg de
neuraxiais com cateteres. morfina i.v. para titulação analgésica, ele terá uma
demanda diária suplementar calculada de 120 mg
303

(oral) ou 30 mg (i.v.) de morfina (correspondente à Pode-se usar o número médio de doses de


duração média de ação da morfina de cerca de seis demanda para calcular o requisito real de
horas vezes quatro, que equivale à dose diária opioides do paciente?
suplementar). Sim. Se o paciente necessita de cinco doses de
demanda por dia, deve-se somar a dose de demanda
Em que situações podemos indicar outros cumulativa diária à medicação básica. Um paciente
medicamentos para a dor do tipo recebendo 40 mg de morfina quatro vezes ao dia e
breakthrough? que precisa de doses de demanda de morfina de 10
As indicações típicas para outros medicamentos não mg cinco vezes ao dia deve passar a receber 50 mg
opioides na dor do tipo breakthrough seriam a dor quatro vezes ao dia regularmente. A frequência de
espasmódica ou a dor neurálgica. menos de quatro doses de demanda por dia é
A dor espasmódica, por ex., do trato renal, pode ser considerada “normal” e portanto o esquema de
aliviada com doses relativamente altas de dosagem deve ser mantido. Se não houver
metamizole (2,5 g i.v. lentamente), que é a primeira necessidade de dose de demanda, talvez se possa
opção de medicação. tentar uma (pequena) redução da medicação básica.
As exacerbações de dor neurálgica, como neuralgia
do trigêmeo, são mais bem tratadas agudamente Quais são as considerações práticas para dor do
com carbamazepina de liberação rápida (200 mg). tipo breakthrough?
Nas raras ocasiões de dor neuropática refratária, por  A dor do tipo breakthrough acontece em
ex., em tumor de Pancoast (tumor do sulco superior pacientes oncológicos com problemas de
com infiltração do plexo braquial, descrito pela dor crônica e que em geral estão recebendo
primeira vez pelo radiologista americano Henry analgésicos há muito tempo para tratar a
Pancoast), pode-se indicar a titulação i.v. de fentoína dor, mas ainda têm episódios de aumento da
(5 mg/kg de peso corporal por 45 minutos, dor além da dor constante.
repetidos no máximo duas vezes).  Dor do tipo breakthrough em dor não
No entanto existem relativamente poucas evidências oncológica é diferente. Em geral, a dor do
respaldando o uso dessas intervenções para o tipo breakthrough tem etiologia diferente da
tratamento de episódios de dor do tipo dor oncológica porque não há destruição
breakthrough. tecidual contínua e óbvia. Portanto, o
paciente não deve ter “livre acesso” a doses
Devemos sempre esperar até que o paciente de demanda para evitar aumentos de dose
tenha dor do tipo breakthrough? em etiologias dolorosas onde a analgesia de
Com certeza não! Todos os regimes longo prazo com opioides é muito rara, por
medicamentosos para pacientes oncológicos devem ex., lombalgia crônica ou cefaléia. Uma
incluir medicamento para esta dor desde o início. exceção à regra seria a dor inflamatória,
Como regra prática, o paciente deve poder usar como em artrite reumatóide crônica ou
doses extras (“demanda”) de seu opioide normal escleroderma sistêmico.
quando necessário. Um paciente recebendo 40 mg  Não é de surpreender que a fisiopatologia da
de morfina oral quatro vezes ao dia (160 mg por dor do tipo breakthrough seja
dia), deve ser instruído para tomar uma dose extra frequentemente igual à da dor constante.
de 20 mg de morfina quando necessário. O Portanto, a dor do tipo breakthrough pode
intervalo mínimo de tempo entre duas doses de ser nociceptiva, neuropática ou mista.
demanda deve ser de 30 minutos para permitir que a
 A dor do tipo breakthrough pode resultar
morfina exerça totalmente seus efeitos.
em uma série de outros problemas físicos,
psicológicos e sociais. Na verdade,tem
impacto negativo importante na qualidade
de vida. O grau de interferência parece estar
relacionado às características da dor do tipo  Outro tipo de dor semelhante à dor do tipo
breakthrough. Está associada a maior breakthrough é a dor incidental. Pode ser
prejuízo funcional relacionado à dor, a pior que algumas atividades realizadas pelos
humor e a mais ansiedade. pacientes durante o dia levem a mais dor. O
 As características da dor do tipo paciente precisa ter medicação para esse tipo
breakthrough oncológica variam de pessoa de atividade a ser tomada antes que ele inicie
para pessoa, inclusive a duração do episódio essa atividade extra. Outro tipo de dor que é
irruptivo e as causas possíveis. Em geral, a de certa forma semelhante à dor do tipo
dor do tipo breakthrough aparece depressa e breakthrough, mas é um pouco diferente, é
pode durar de segundos a minutos até horas. chamada de falha de final de dose. São
A duração média da dor do tipo pacientes recebendo um analgésico que se
breakthrough em alguns estudos foi de 30 torna ineficaz após poucas horas e então a
minutos. Os episódios de dor têm as dor volta. A solução para esse problema é
seguintes características principais: alta escolher um agente diferente de ação mais
frequência, alta gravidade, início rápido e longa, tomar uma dose mais alta do mesmo
curta duração. agente, ou mudar o intervalo entre as doses
 A medicação de resgate pode ser para evitar baixos níveis séricos com
administrada ao primeiro sinal de dor do consequente falha de “final de dose”.
tipo breakthrough. A dor forte é mais difícil
de tratar. É possível ter dor do tipo Pérolas de sabedoria
breakthrough imediatamente antes ou
imediatamente após tomar a medicação para  Cerca de metade a dois terços dos pacientes
a dor constante. com dor oncológica crônica também têm
 Os medicamentos usados para tratar dor do episódios de dor do tipo breakthrough.
tipo breakthrough são chamados de  Quase todas as pessoas com dor oncológica
medicamentos de resgate. São a pedra crônica devem receber medicamentos para
angular do tratamento dos episódios de dor controle da dor vinte e quatro horas por dia
do tipo breakthrough. A medicação de e um medicamento específico para dor do
resgate é tomada quando necessária e não tipo breakthrough. Se você nunca ofereceu
regularmente: no caso de dor espontânea ou essa opção a seus pacientes, sempre faça isso
dor incidente não volitiva, o medicamento daqui para frente.
deve ser tomado no início da dor; no caso  A morfina (oral e i.v.) é comumente usada e
de dor incidente volitiva ou dor relacionada
fácil de encontrar. Embora tenha um início
a procedimentos o tratamento deve ser dado
lento de ação e uma longa duração, estudos
antes do fator precipitante da dor. Para
mostram que a maioria dos pacientes tem
muitos pacientes, a medicação de resgate
controle suficiente da dor do tipo
mais adequada é um analgésico opioide de
breakthrough com essa abordagem.
liberação normal (“liberação imediata”).
 Quando os pacientes aprendem que certas
 Vias alternativas de administração e opioides
ações podem causar dor do tipo
lipofílicos parecem ser adequadas para
breakthrough, esses episódios podem ser
pacientes com controle inadequado da dor
previstos, o que permite que pacientes e
do tipo breakthrough. Fentanil oral,
médicos preparem uma resposta terapêutica
transmucosal, sublingual e intranasal, que já
ou tratem profilaticamente a dor.
está disponível em alguns países, será uma
 Aumentar moderadamente a dose da
boa opção para pacientes em que o início do
analgesia básica pode diminuir a frequência
efeito da morfina oral é demasiadamente
e a intensidade dos episódios de dor do tipo
lento e a duração é demasiadamente longa.
breakthrough.
305

 O tratamento da dor do tipo breakthrough é


a arte da avaliação, tratamento e reavaliação.

Referências
[1] Fallon M, Zeppetella G, Poulain P, Stein C. Realising
unmet needs in breakthrough pain. Eur J Palliat Care 2007;14:
29–31.
[2] Mercadante S, Radbruch L, Caraceni A, Cherny N, Kaasa
S, Nauck F, Ripamonti C, De Conno F; Steering Committee
of the European Association for Palliative Care (EAPC)
Research Network. Episodic (breakthrough) pain. Consensus
conference of an Expert Working Group of the European
Association for Palliative Care. Cancer 2002;94:832–9.
[3] Mercadante S, Villari P, Ferrera P, Casuccio A.
Optimization of opioid therapy for preventing incident pain
associated with bone metastases. JPain Symptom Manage
2004;28:505–10.
[4] Portenoy RK, Bennett DS, Rauck R, Simon S, Taylor D,
Brennan M, Shoemaker S. Prevalence and characteristics of
breakthrough pain in opioid-treated patients with chronic
noncancer pain. J Pain 2006;7:583–91.
[5] Portenoy RK, Payne D, Jacobsen P. Breakthrough pain:
characteristics and impact in patients with cancer pain. Pain
1999;81:129–34.
[6] Zeppetella G, O’Doherty CA, Collins S. Prevalence and
characteristics of breakthrough pain in cancer patients
admitted to a hospice. J Pain Symptom Manage 2000;20:87–
92.

Sítios na Web
www.pain.com
www.breakthroughpain.eu
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 37
Controlo de Dor em Unidades de Cuidados Intensivos
Josephine M. Thorp e Sabu James

 Fontes da dor (fatores de exacerbação)


Descrição de caso  Efeitos da dor não tratada (vantagens de um
alívio da dor adequado, desvantagens do
Um homem de 52 anos, Joe Blogg, é transferido do bloco excesso de analgésicos ou sedativos)
operatório para a unidade de cuidados intensivos (UCI),  Avaliação da dor e da sedação
depois de ser submetido a uma intervenção cirúrgica  Objetivos da terapêutica
prolongada. Ia ao volante de um veículo envolvido num  Técnicas de controlo de dor (vias para os
acidente frontal e ficou preso no automóvel (sem cinto nem agentes farmacológicos; analgésicos,
airbag) durante cerca de 30 minutos. Na primeira avaliação ansiolíticos e técnicas anestésicas locais)
no serviço de urgência e traumatologia, foi possível despertá-lo  Adjuvantes dos agentes farmacológicos
mas estava confuso e com bastante dor. Apresentava as (gerir o ambiente da UCI, reduzir outras
seguintes lesões: fontes de desconforto, medidas alternativas,
Pneumotoraxes bilaterais (a equipa de reanimação medidas psicológicas)
do serviço de urgência e traumatologia inseriu drenos A maioria dos doentes a necessitar de
intercostais); fraturas da terceira, quarta e quinta costelas, do cuidados intensivos sofre de dor com intensidade
lado esquerdo; lesões profundas no joelho e no cotovelo variável durante o internamento. Apesar de se saber,
direitos, a estenderem-se para a articulação; rutura desde o início dos anos 1970, que a dor é
mesentérica extensa, devido à qual teve que ser sujeito a frequentemente a pior recordação dos doentes que
laparotomia durante 5 horas; perda de sangue estimada em sobrevivem aos cuidados intensivos, em ensaios
cerca de 5L, coagulopatia, com contagem de plaquetas de 50 multicêntricos recentes, até 64% dos doentes
000 no pós-operatório. Recebeu várias unidades de sangue e continuavam a afirmar que sentiam dor moderada a
componentes sanguíneos no bloco operatório. Está anúrico e intensa enquanto estavam na UCI. As experiências
hipotérmico (com uma temperatura central de 34ºC). de doentes que não sobreviveram aos cuidados
Foi transferido para a unidade de cuidados intensivos permanecem desconhecidas. Os doentes
intensivos para ventilação eletiva e suporte vital. internados em UCI durante períodos mais
prolongados referiram uma maior intensidade da
Neste caso, que problemas devem ser tidos em dor.
consideração para os cuidados intensivos e
subsequentemente?
307

Quais são as fontes da dor?  Fadiga/Astenia após uma cirurgia; mesmo


 Patologia primária, como queimaduras, após uma cirurgia simples, é normal sentir-
ferimentos traumáticos, fraturas, lesões se fadiga
(cirúrgicas ou traumáticas)  Aborrecimento e falta de distração
 Complicações relativas ao estado original ou O tratamento destes aspetos irá tornar a
a novos problemas, como perfuração própria dor mais tolerável e controlável.
intestinal ou deiscência de anastomose
intestinal causando peritonite, isquemia Quais os efeitos da dor não tratada?
intestinal, pancreatite  A dor induz aumento do stress simpático,
 Outros sintomas, como abcessos, resultando em alterações cardiovasculares
inflamação cutânea, infeção de lesões, (aumento do ritmo cardíaco e do consumo
erupções, prurido de oxigénio).
 Sistemas e monitorização de apoio – locais e  Um aumento da resposta das hormonas do
inserções de linhas intravenosas periféricas e stress resulta em catabolismo, com retenção
centrais, cateteres, drenos, aspiração de sódio e água e hiperglicémia que, por sua
endotraqueal regular, fisioterapia, mudanças vez, causa imunossupressão e atraso na
de pensos cicatrização dos ferimentos
 A hipoxia tecidular na sequência de baixo  Tosse ineficaz e retenção de secreções pode
débito cardíaco, a saturação de oxigénio resultar em oxigenação reduzida e infeção.
baixa ou a queda acentuada da hemoglobina  As lesões torácicas e as incisões abdominais
podem resultar em isquemia miocárdica diminuem os movimentos da parede
 Articulações dolorosas, pontos de pressão, torácica e abdominal, o que pode adiar o
dor ao mudar de posição na cama desmame ventilatório, aumentar o risco de
infeção pulmonar e prolongar o
Que fatores de exacerbação podem aumentar a internamento na UCI.
perceção da dor?  A dor em si resulta numa diminuição
 Medo de ambientes desconhecidas qualidade de sono .
associado a perda de referências
 Incapacidade de recordar ou compreender a Quais as vantagens de um alívio da dor
situação que resultou do internamento em adequado?
cuidados intensivos  Aumento da tolerância ao tubo
 Ansiedade e incerteza sobre si mesmo, a endrotraqueal, à ventilação mecânica, à
família, bem como o presente e o futuro aspiração traqueal e outras manobras .
 Fatores agravantes relacionados com o  Durante o desmame e após a extubação, a
ambiente – ruído, alarmes de máquinas, excursão torácica pode estar limitada pela
toques de telefones dor. Uma analgesia adequada resulta em
 Atividade contínua durante a noite, maiores débitos respiratórios, melhoria das
admissões ou reanimação de outros doentes trocas gasosas, melhor expulsão da
 Incapacidade de comunicar, mover-se, expetoração e cooperação com a
mudar de posição fisioterapia.
 Falta de sono, padrões de sono perturbados  Redução na resposta ao stress.
 Outras sensações: - sede, fome, calor, frio,  Recordações menos perturbadoras da
cãibras, comichão, náuseas terapêutica em UCI.
Qual é o compromisso entre analgesia escala visual analógica (EVA) ou uma escala
adequada e insuficiente? numérica de avaliação (ENA). A ENA é uma escala
O meio-termo para obter benefícios sem de 10 pontos: o doente seleciona um número de 0 a
desvantagens, só pode ser alcançado através da 10, sendo 10 a pior dor imaginável. Quando não é
avaliação regular da dor, juntamente com uma «pausa possível qualquer comunicação, podem ser
na sedação» (interrupção da sedação) e um ajuste registados sinais que refletem predomínio simpático
diário do regime de sedação. – taquicardia, hipertensão e lacrimejo. As diretrizes
da prática clínica estabelecem: «Os doentes que não
Como é possível avaliar a dor e a sedação? conseguem comunicar podem ser avaliados através
Mesmo em circunstâncias normais, é difícil avaliar e de observação subjetiva dos comportamentos
quantificar a dor. Estas dificuldades são obviamente associados à dor (movimento, expressão facial e
muito superiores no doente na UCI, com a presença postura), dos indicadores fisiológicos (ritmo
frequente de um tubo endotraqueal, que dificulta a cardíaco, pressão arterial e frequência respiratória ),
comunicação. Deve evitar-se o estado de paralisia bem como da alteração destas variáveis na sequência
(relaxamento) num doente consciente em UCI, tal de uma terapêutica com analgésicos.
como no bloco operatório, uma vez que esta é uma A dor é exacerbada pelo movimento, que
experiência assustadora. Se o doente estiver paralisado, é pode evocar dor de natureza substancialmente
importante garantir a administração de sedação e analgésicos diferente. Deslocar, rodar o doente, assim como os
adequados, a fim de evitar que esteja acordado sem conseguir efeitos da aspiração pelo tubo endrotraqueal e da
movimentar-se! fisioterapia fornecem informação valiosa acerca da
Se o doente conseguir falar, pode ser eficácia da analgesia.
efetuada uma história clínica de rotina acerca da dor Para as crianças, foram desenvolvidas escalas
e da sua intensidade. Um doente que consegue especificamente para a utilização em recém-nascidos
compreender mas não consegue falar pode e crianças, por ex. Escala de Dor infantil de Riley
conseguir realizar gestos ou indicar a intensidade (Riley Infant Pain Scale):
numa ferramenta de avaliação simples, como uma
Score Expressão facial Sono Movimentos Choro Toque
0 - Neutra - A dormir - Movimenta-se - Nenhum -
- Sorriso, calma serenamente facilmente
1 - Sobrolho franzido - Agitado - Movimentos - Choramingar - Encolhe-se com o toque
- Caretas corporais agitados
2 - Dentes cerrados - Intermitente - Agitação moderada - Choro - Chora com o toque
- Difícil de consolar
3 - Expressão de choro - Prolongado, - Agita-se - Gritos agudos - Grita ao toque
com períodos de violentamente, - Inconsolável
movimentos debate-se
bruscos ou
insónia

Seja qual for o método de avaliação  Estar gravemente afetado, com lesões
selecionado, este deve ser efetuado regularmente. múltiplas, incluindo contusões pulmonares e
Tanto o doente como a resposta aos fármacos estão com possível traumatismo crânio encefálico
constantemente em mudança, pelo é necessário  Perda de sangue massiva, com necessidade
ajustar as doses de uma forma regular. de transfusão associada a coagulopatia
 Ter hipotermia
Quais os principais problemas de Joe na
 Estar em anúria
unidade de cuidados intensivos?
 Ter múltiplas fontes de dor: drenos
 Estar profundamente sedado e ventilado,
intercostais, costelas fraturadas, lesões no
sem capacidade de comunicar
309

cotovelo, joelho e incisão causada pela o midazolam ou o propofol eram recomendados


laparatomia para a sedação de curta duração, sendo o Propofol
o agente de eleição para se obter um despertar
Quais os objetivos da terapêutica? rápido. Mais recentemente, foi revista a prática de
O objetivo deve ser conseguir ter um doente que sedação e analgesia nas UCI(s) da Europa. Os
coopere e não sinta dor, o que implica que este não opióides são os fármacos mais usados para o alívio
esteja apenas indevidamente sedado. da dor, geralmente por perfusão, sendo a morfina a
As diretrizes da United Kingdom Intensive mais amplamente utilizada. Também são usados o
Care Society estabelecem o seguinte acerca da fentanil e o alfentanil que têm ação mais curta, bem
sedação: como o remifentanil de ação ultra curta, mas são
1) Todos os doentes devem sentir-se mais dispendiosos. O propofol e as benzodiazepinas
confortáveis e sem dor: a analgesia é portanto o primeiro (diazepam, lorazepam e midazolam) são os
objetivo. fármacos mais utilizados em sedação.
2) A ansiedade deve ser minimizada. É
difícil, uma vez que a ansiedade é uma emoção própria da Quais as vias de administração disponíveis para
situação. A forma mais importante de reduzir a os agentes farmacológicos?
ansiedade consiste em proporcionar cuidados A via ideal é a intravenosa, mais fiável do que as
individualizados e proporcionar a atenção outras alternativas existentes. Doses pequenas e
necessária. A comunicação é uma parte essencial frequentes por bólus por via intravenosa ou em
dos cuidados. perfusão intravenosa são as formas mais favoráveis
3) Os doentes devem estar calmos, para administração de analgésicos e sedativos. Esta
cooperantes e conseguirem dormir, quando não última evita que sejam alcançados valores pico ou
perturbados. Tal não significa que devem estar sempre a vale, mas pode resultar em acumulação. Quando
dormir. utilizados os bólus devem ser regulares, sem se
4) Os doentes devem conseguir tolerar o esperar até que outra dose seja absolutamente
suporte vital. Assim, os doentes com troca de gases necessária. Em todas as situações, é importante
insuficientes, em particular aqueles que necessitam rever regularmente as necessidades, por exemplo
de ventilação com relação I:E invertida na fase diariamente, descontinuando a perfusão ou
inicial da hipercapnia permissiva, podem necessitar interrompendo os bólus. Desta forma, é possível
de bloqueio neuromuscular. O recurso a um avaliar a dor, evitar a acumulação e ajustar a dose
neuroestimulador para monitorizar a extensão do em conformidade com as variações individuais.
bloqueio neuromuscular pode ser útil em Outro motivo importante de descontinuação de
determinadas situações. fármacos é permitir avaliar os efeitos resultantes da
5) Os doentes nunca devem estar paralisados variabilidade individual inerente aos doentes
e conscientes simultaneamente. gravemente afetados . Existe uma variedade de
explicações para esta variação, mas a
Controlo de dor na unidade descontinuação dos medicamentos permite que o
efeito se desvaneça e reduz a tendência para a
de cuidados intensivos acumulação.
A absorção gastrointestinal pode ser
Que técnicas de controlo de dor estão imprevisível e por isso a absorção de opióides pode
disponíveis? estar comprometida e desta forma ser baixa. A
A maior parte dos doentes em cuidados intensivos administração por via retal, para medicamentos
necessita de analgesia. Em 1995, a Society of Critical disponíveis sob a forma de supositórios, pode
Care Medicine publicou orientações para a analgesia oferecer uma melhor absorção, embora
e a sedação intravenosas em UCI. A morfina e o permaneçam os efeitos secundários da via entérica.
fentanil eram os agentes analgésicos preferenciais e Algumas classes de analgésicos só ficaram
recentemente disponíveis sob a forma parentérica. necessárias doses excessivas para conseguir a
Os agentes anti-inflamatórios não esteroides sedação.
(AINE) por via intravenosa e, mais atualmente, o  Sistema respiratório: todos os opióides
paracetamol (acetaminofeno), estão disponíveis sob deprimem a respiração de forma
a forma de formulações intravenosas. proporcional ao alívio da dor obtido. Este
não é um problema grave num doente
Qual seria a título de exemplo uma escolha ventilado. Um efeito supressor da tosse
adequada de analgesia para Joe? pode ser uma vantagem num doente
 Paracetamol/acetaminofeno (por via entubado.
intravenosa, se disponível, ou através de um  Sistema cardiovascular: administrados em
tubo nasogástrico, administrado pequenas doses, o seu efeito sobre a pressão
regularmente) arterial costuma ser mínimo.
 Analgésicos não esteroides (através do tubo  Sistema gastrointestinal: os opióides têm um
nasogástrico) administrados regularmente efeito antimotilidade intestinal, pelo que
(depois de resolvida a coagulopatia), podem exacerbar o íleo paralítico e a
combinados com agentes de proteção obstipação. As náuseas e os vómitos são
gástrica efeitos secundários bem conhecidos da
 Opióides (preferencialmente sob a forma de morfina.
perfusão intravenosa contínua)  Outros efeitos secundários: o prurido pode
 Bloqueios nervosos (bloqueios nervosos de ser um efeito secundário incómodo para o
administração única ou analgesia epidural) doente. A dependência não representa um
problema com a administração de opióides
O que convém ter em mente ao administrar na dor intensa e não é motivo de
analgésicos opióides numa unidade de preocupação em doentes que sobreviveram
cuidados intensivos aos cuidados intensivos. No entanto, são
A morfina e o fentanil são os analgésicos mais possíveis sintomas e sinais de privação após
comummente usados na Europa, de acordo com vários dias de terapêutica contínua ou se a
um inquérito realizado em 2001. A morfina terapêutica for interrompida subitamente.
apresenta a vantagem de ser barata. Tem uma ação Uma redução inicial de 30% seguida de uma
mais prolongada do que os opióides sintéticos, mas redução de 10% a cada 12-24 horas
apresenta também uma maior tendência para a subsequentes deverá ajudar a evitar os
acumulação. Os doentes idosos são mais sensíveis, fenómenos de privação.
tal como os doentes que sofrem de insuficiência Os efeitos sistémicos de outros opióides são
renal ou hepática. O metabolito ativo potente, semelhantes aos descritos anteriormente. Podem ser
morfina-6-glicuronídeo, pode acumular-se em caso usados diamorfina ou papaveretum em vez de morfina
de insuficiência renal, resultando em sedação se estiverem disponíveis mais facilmente. O fentanil é
contínua, insuficiência respiratória ou incapacidade um opióide sintético que foi introduzido enquanto
de despertar. Esta característica também se aplica à agente de curta duração, mas pode acumular-se
diamorfina e ao papaveretum. Na insuficiência quando administrado sob a forma de perfusão nos
renal, caso não exista alternativa, a dose e o cuidados intensivos. Pode ser útil para realizar
intervalo de administração deve ser reduzido. pequenas intervenções dolorosas de curta duração.
Os efeitos sistémicos dos opióides no O alfentanil apresenta as vantagens do fentanil
contexto dos cuidados intensivos são os seguintes: indicadas acima. O seu tempo de ação é mais curto
 Sistema nervoso central: a morfina, a do que o do fentanil e, mesmo sob a forma de
diamorfina e o papaveretum têm perfusão prolongada, envolve menos acumulação.
propriedades sedativas, mas poderão ser Este será o fármaco de eleição na insuficiência renal.
À semelhança do fentanil, é particularmente útil
311

para uma analgesia adicional de curta duração (cerca nasogástrico. Na verdade, a codeína é metabolizada
de 10-15 minutos). Infelizmente, é muito mais no fígado para morfina e outros produtos que
dispendioso. causam efeitos secundários relativamente graves.
O remifentanil, embora seja bastante caro, é
utilizado atualmente na área dos cuidados Como reverter os efeitos dos opióides, se
intensivos, em particular para o desmame mantendo necessário
a tolerância à entubação. É rapidamente A naloxona reverte todos os efeitos dos opióides,
metabolizado e não causa acumulação, pelo que são revertidos tanto a depressão
independentemente do tempo de perfusão, respiratória como o alívio da dor (ver acima
revelando-se útil na insuficiência renal ou hepática. relativamente à buprenorfina e à pentazocina).
Para a dor menos intensa, podem ser Excesso de Naloxone, administrada demasiado
administrados a petidina e o tramadol. A rapidamente e com efeito reversor da analgesia pode
petidina/meperidina pode ser administrada em doses resultar em agitação, hipertensão, arritmias e tem-se
de bólus para o alívio da dor causada por observado que pode provocar paragem cardíaca em
procedimentos clínicos, mas não sob a forma de doentes sensíveis. Se possível, diluir a naloxone em
perfusão, dado que o seu metabolito se pode 0,1 mg/mL e titular, administrando 0,5 mL da
acumular e está associado a espasmos musculares e solução diluída de cada vez, a fim de alcançar o grau
convulsões. O tramadol tem a vantagem de necessário de reversão e de modo a que a respiração
apresentar dois mecanismos de ação para o alívio da se torne adequada e permaneça algum efeito
dor – uma a atividade através da ligação a recetores analgésico. A ação da naloxona é de duração mais
opioides e outra na inibição da recaptação da curta do que a maioria dos opióides, pelo que o
serotonina e da noradrenalina principalmente na doente poderá voltar a ficar narcotizado. Poderá ser
espinal medula. É relativamente caro mas evita os necessário repetir doses de naloxone ou iniciar uma
problemas de depressão respiratória e estase perfusão.
gastrointestinal. A injeção intravenosa rápida pode
causar convulsões, pelo que não é recomendada na Que analgésicos não opióides representam uma
gravidez ou durante a amamentação. opção de analgesia em unidades de cuidados
A buprenorfina e a pentazocina não são intensivos?
adequadas para a analgesia nos cuidados intensivos. Os analgésicos não opióides usados em combinação
Se administradas em doses suficientes para com um opióide proporcionam um alívio da dor de
causarem depressão respiratória, os efeitos podem melhor qualidade. Embora estejam disponíveis
não ser invertidos de forma previsível com algumas preparações intravenosas e intramusculares,
naloxona. Além disso, estes agentes antagonizam estes agentes são principalmente administrados pela
outros opióides devido a uma forte ligação aos via entérica, se a função gastrointestinal permitir
recetores, invertendo o efeito analgésico de outros uma absorção adequada. Alguns estão disponíveis
opióides, afastando-os dos recetores. Por sob a forma de supositórios ou de suspensão líquida
conseguinte, podem precipitar sintomas e sinais de que podem ser administrados por um tubo
privação de opióides. A pentazocina pode estar nasogástrico.
associada a pensamentos bizarros e alucinações. O paracetamol/acetaminofeno é um analgésico
Outros opióides incluem o meptazinol e a não narcótico que apresenta igualmente uma ação
codeína. Acredita-se que o meptazinol causa menos antipirética útil. É proveitoso na dor ligeira a
depressão respiratória, mas que pode provocar moderada e tem um efeito aditivo se for
náuseas. A injeção intravenosa deve ser lenta. A administrado em conjunto com um opiáceo. Está
codeína é utilizada na dor ligeira a moderada e pode disponível sob a forma de comprimidos dispersíveis,
ter algum efeito supressor da tosse. É geralmente de suspensão oral ou de supositórios. Não possui
administrada por via oral, embora a forma em qualquer atividade anti-inflamatória, pelo que
xarope possa ser administrada por tubo permite evitar os efeitos secundários dos
medicamentos anti-inflamatórios não esteroides de broncoespasmos, exceto se contribuir para
(AINE). A clonidina, um agonista alfa-2-adrenérgico, arritmias principalmente se também for usada
pode ser utilizada para aumentar os efeitos sedativo aminofilina. Quando não estão disponíveis
e analgésico dos opióides. Foi observada uma analgésicos caros, a cetamina pode ter uma função
redução substancial da necessidade de opióides e importante nos cuidados intensivos enquanto
dos efeitos secundários associados com baixas doses adjuvante no alívio da dor. Além disso, quando
de clonidina. O diclofenac, o cetoprofeno, o ibuprofeno e existe dor com componente neuropático pode
outros AINE são adequados para a dor óssea e para constituir uma indicação, uma vez que os
a dor dos tecidos moles em jovens doentes que não coanalgésicos «normais» para a dor neuropática, por
sofram de asma ou disfunção renal e podem reduzir ex. a amitriptilina, a carbamazepina e a gabapentina,
a necessidade de opióides. Pode ser usadas as vias não estão disponíveis para administração parentérica
oral, nasogástrica, intravenosa e retal. e têm um início de ação mais lento.
Independentemente da via de administração,
causam irritação gástrica. Por isso, deve ser efetuado Podem ser usadas técnicas anestésicas locais
tratamento profilático para úlceras gástricas. numa unidade de cuidados intensivos?
Contudo, devem ser considerados os efeitos Podem ser aplicados bloqueios nervosos
secundários significativos dos AINE nos cuidados intercostais, bloqueios paravertebrais, analgesia
intensivos: podem causar broncoespasmo, podem epidural, bloqueios do músculo transverso
precipitar ou exacerbar uma tendência para abdominal (TAP) , bloqueio nervoso femoral e
hemorragia, causar hemorragia gastrointestinal por bloqueios do plexo interescalénico/braquial sob a
ulceração das mucosas (exacerbada pela inibição de forma de administração única ou com colocação de
plaquetas) ou conduzir ao desenvolvimento de cateteres (não nos bloqueios intercostais) para
disfunção renal ou agravamento da insuficiência perfusão contínua. A fim de evitar lesão nervosa,
renal, em particular quando estão presentes outros devem ser usados estimuladores nervosos ou
riscos, como hipotensão, hipertensão ou diabetes. orientação por ultrassons, se o doente estiver
Os AINE devem ser prescritos com precaução em sedado e não puderem ser referidas parestesias.
doentes mais idosos, devido à maior incidência de Deve ser analisado o perfil de coagulação com
complicações gástricas e de disfunção renal. A regularidade, a contagem sanguínea completa e o
aspirina, a indometacina e os inibidores da número de plaquetas antes de realizar estes
ciclooxigenase (COX)-2 não são recomendados para procedimentos, uma vez que as técnicas regionais
administração em UCI devido a uma grande estão contraindicadas em doentes com tendência
quantidade de efeitos secundários. para hemorragia, como a hipocoagulação,
coagulopatia e trombocitopenia. Se for usada uma
O que dizer sobre a administração de Cetamina técnica contínua com cateter, tal deverá ser identificado
em unidades de cuidados intensivos? claramente. Deve ser usado um filtro para minimizar
Pode ser conseguida uma boa analgesia com baixas ou prevenir infeções.
doses de cetamina. Não é geralmente usada para
analgesia de base nos cuidados intensivos no Reino O que deve ser debatido relativamente a uma
Unido, embora possa ser usada no âmbito de analgesia adequada para Joe
pequenas intervenções. Alguns estudos  Disponibilidade de analgésicos (tipo e
demonstraram que a cetamina reduz a necessidade forma)
de opióides em doentes cirúrgicos em cuidados  Analgésico adequado para esta situação,
intensivos. As de doses para evitar efeitos dado que este doente apresenta insuficiência
secundários psicomiméticos é de 0,2 a 0,5 mg/kg de renal e coagulopatia
peso corporal. Ao administrar S-cetamina, a dose  Opióides (preferencialmente sob a forma de
deve ser dividida por dois. É possível uma perfusão contínua)
administração de longa duração. A cetamina pode
ser o analgésico de eleição em doentes com história
313

 O bloqueio nervoso e/ou epidural pode ser redução da dose deve ser gradual, a fim de evitar
adequado logo que a função renal melhore e este efeito.
o doente deixe de apresentar coagulopatia.
Que adjuvantes dos agentes farmacológicos
Como e quando devem ser usados ansiolíticos e devem ser considerados em unidades de
sedativos cuidados intensivos?
Embora estes fármacos não tenham quaisquer Uma UCI pode ser um local ruidoso, com alarmes
propriedades analgésicas, podem permitir a redução de monitores constantes, telefones e chamadas para
da dose de analgesia necessária. Num inquérito pagers. Grande parte do ruído produzido pelos
realizado em 2001 na Europa Ocidental, o midazolam alarmes dos monitores pode ser evitado, definindo
foi usado com maior frequência para a sedação em limites para os alarmes próximos das variáveis
situações de cuidados intensivos por ter uma ação expectáveis para um determinado doente nessa
de duração mais curta do que o diazepam e ser altura. Isto significa que o alarme não deixará de
menos propenso à acumulação. O lorazepam é um soar caso ocorra uma alteração inesperada. Embora
fármaco com uma boa relação custo / benefício, de os doentes possam parecer adormecidos ou
ação mais prolongada e que pode ter efeitos sedados, podem continuar a ouvir, pelo que é as
ansiolíticos benéficos no tratamento prolongado da conversas acerca do doente deverão
ansiedade. No entanto, pode resultar em sedação preferencialmente ocorrer onde este não as consiga
excessiva. Nas diretrizes da American Society of ouvir, uma vez que poderá interpretar erroneamente
Critical Care Medicine, o lorazepam foi o a informação. Tal aplica-se talvez mais ainda às
medicamento recomendado para uma sedação de conversas relativas a outros doentes, dado que um
maior duração. O propofol sob a forma de perfusão doente a ouvir pode interpretar que a conversa lhe
também é frequentemente usado em inúmeros diz respeito.
países da Europa. Apresenta a vantagem de poder A regulação da iluminação para oferecer
ser titulado facilmente e o seu efeito costuma níveis diurnos/noturnos pode ajudar. Mesmo que o
diminuir rapidamente depois de interromper a doente esteja cansado, é difícil manter-se
perfusão, permitindo assim conseguir uma «pausa adormecido com uma iluminação diurna, pois o
na sedação» nas UCI. Para além das doente na UCI não tem a opção de se refugiar
benzodiazepinas e do propofol, foram usados debaixo dos lençóis. As sensações de sede, fome,
outros medicamentos com propriedades sedativas frio ou calor são forças impulsionadoras que
no passado e passaram a ser considerados obsoletos conduzem geralmente à procura de uma solução,
para a sedação: as fenotiazinas, os barbitúricos e as mas tal está fora do alcance de um doente em UCI.
butirofenonas. Os opióides não devem ser usados para Cuidados adequados oferecidos pelos
alcançar a sedação, e alguns dos seus efeitos secundários enfermeiros ajudam a evitar as zonas de pressão e a
podem ser bastante perturbadores, só por si . que o doente fique deitado em lençóis ou tubos
A sedação excessiva tem efeitos negativos – desordenados, que a tubagem do ventilador puxe
a mobilidade reduzida resulta num aumento do risco pelo tubo endotraqueal, que os cabos do ECG
de trombose venosa profunda e de estejam esticados sobre a pele do tórax, que
tromboembolismo pulmonar. A sedação excessiva sistemas de perfusão gota-a-gota faça tração nos
pode abrandar o processo de desmame ou atrasar a cateteres (para além disso, deslocação de cateteres
extubação quando o doente está preparado para tal, significa geralmente reinserção, o que pode revelar-
pode prolongar o internamento em UCI, com os se difícil). Uma consciencialização deste tipo de
riscos associados, e aumentar o custo dos cuidados. detalhes ajuda a reduzir desconforto desnecessário.
Após vários dias de terapêutica contínua com Os modos de ventilação, como o de pressão
propofol ou benzodiazepinas, os fenómenos de de suporte, e outros modos em ventiladores
privação podem ser precipitados, pelo que a modernos, estão associados a um maior conforto do
doente e exigem menos analgesia e sedação
comparativamente com a ventilação controlada comuns inesperadas para o doente não serão
total. A manutenção da atividade muscular reduz o interpretadas como «algo correu mal».
enfraquecimento dos músculos respiratórios. Embora a perceção da dor possa ser
Outros sintomas, como náuseas, vómitos, exagerada por fatores adicionais, e minimizar esses
prurido, pirexia significativa e cãibras exigem fatores possa tornar a dor consideravelmente mais
controlo sintomático específico. As fraturas tolerável, a dor não desaparece. Por conseguinte,
precisam de ser estabilizadas quando indicado, serão sempre necessárias doses apropriadas de
cirurgicamente ou por imobilização. Devem ser analgésicos.
excluídas causas de agitação, como a bexiga ou reto
cheios. Descrição de caso (continuação)
Ainda fortemente sedado e ventilado, o tratamento de Joe
Existem medidas alternativas e psicológicas de começa com uma perfusão intravenosa de morfina a 10 mg
que doente pode beneficiar? por hora. Começa a debater-se e o alarme do ventilador está
Para as técnicas de relaxamento é preciso contar sempre a tocar. Fica também muito taquicardico e hipertenso,
com a cooperação do doente que deve, respirar causando preocupação no pessoal clínico. É necessária uma
espontaneamente, a fim de coordenar a respiração revisão da sedação e da analgesia na unidade. (Pode tratar-se
profunda com o relaxamento sequencial de grupos de infeção, embolia gorda, sedação/analgesia inadequadas,
musculares, desde os pés até à cabeça. A música dificuldades respiratórias devidas a contusões pulmonares,
pode ser benéfica, em particular se for escolhida etc.). A contagem de leucócitos de Joe está ligeiramente
pelo doente e apreciada com auscultadores, em vez elevada, a temperatura está tendencialmente elevada, as
de ser acrescentada ao ruído de fundo da UCI. plaquetas aumentam e os resultados de coagulação são
É sempre útil, tanto para o doente como animadores. Não existe evidência clínica de embolização
para os familiares ou amigos que vêm visitá-lo, gorda. Existe a preocupação de que a sedação/analgesia de
dirigir-se ao doente tratando-o pelo seu nome, Joe possa ser inadequada. É-lhe administrado regularmente
embora pareça estar sedado, e explicar-lhe o que paracetamol por via nasogástrica, é aumentada a sedação com
está a acontecer. Isto ajuda os doentes a voltarem a midazolam e a dose de morfina é aumentada para 15 mg por
estabelecer uma ligação consigo próprios e com as hora, após bólus de 5 mg. O doente acaba por estabilizar e
respetivas famílias. Dizer aos doentes que não existem preocupações imediatas.
compreendem que estão a recuperar e conseguir
bons progressos estimula, o pensamento positivo e O que dever ser tido em consideração para o
pode melhorar a recuperação. desmame ventilatório e a preparação para a
Dar aos doentes a oportunidade de extubação?
expressarem a sua dor ou desconforto por qualquer A primeira regra consiste em definir as estratégias
meio é benéfico, para que saibam que o pessoal para um desmame e extubação bem-sucedidos, de
clínico é compreensivo e que explicará quais as um ponto de vista do controlo da dor:
possíveis soluções. Se o doente conseguir escrever, a  Continuar a administrar paracetamol
primeira oportunidade dará origem invariavelmente  Reduzir a morfina e o midazolam
a rabiscos parecidos com arte abstrata e não com  Rever a contagem sanguínea total, os
palavras (é necessário tranquilizar o doente parâmetros de coagulação e a função renal
indicando-lhe que esta situação é muito comum).
 O doente ainda necessita de drenos
Em alternativa, podem ser usadas imagens que
intercostais?
ilustrem as queixas e pedidos mais comuns.
 Planear no sentido de alcançar um controlo
Para os internamentos em UCI planeados,
analgésico mais eficaz, como por ex. com
como acontece após uma grande cirurgia, pode ser
bloqueios nervosos, ou acrescentando um
oferecida com antecedência uma explicação sobre as
AINE se a função renal tiver melhorado e as
tubagens, as linhas, os monitores e os
plaquetas estiverem dentro de limites
procedimentos. Desta forma, as intervenções
315

normais (lembrar da proteção da mucosa  Como sempre «não é o que se diz, mas sim a
gástrica). forma como o diz» – usar um tom de voz
compreensivo.
Descrição de caso (continuação)
Os parâmetros respiratórios suportam um desmame Relativamente à dor:
ventilatório adequado, a perfusão de morfina está em curso,  Perguntar sobre a dor e desconforto de
não foi inserido nenhum bloqueio epidural ou paravertebral e forma regular.
o doente está extubado. Consegue estar estável sem o  A avaliação regular da dor e a
ventilador durante cerca de 2 horas. Queixa-se de dor grave descontinuação de bólus ou perfusões evita
no tórax (nas costelas fraturadas) e na lesão causada pela o doseamento insuficiente ou excessivo e
laparotomia. Progressivamente, deixa de conseguir respirar, a melhora os resultados e os custos
saturação diminui e necessita de voltar a ser entubado pouco
 Estabilizar as fraturas com talas, gesso ou
depois.
fixação cirúrgica o mais rapidamente
Depois de Joe estar estabilizado, o controlo
possível
inadequado da dor é considerado um dos principais fatores de
 Como noutros casos, a dor em movimento é
falha da extubação e é-lhe aplicada epidural torácica e um
superior à dor em repouso.
bloqueio paravertebral no lado esquerdo. Uma dose de bólus
de anestésico local é administrada na epidural e é aplicada  Tomar medidas adequadas previamente a
uma perfusão contínua. procedimentos ou manobras dolorosas,
O que deve ser feito a seguir? Rever a analgesia e administrando uma analgesia adicional com
diminuir progressivamente a perfusão de morfina, na antecedência.
esperança de que os bloqueios epidural e paravertebral estejam  Antes de iniciar uma perfusão, são
a surtir efeito. necessárias doses de bólus de opiáceos.
Joe é observado no dia seguinte. A sedação e a  Um aumento da taxa de perfusão demora
morfina são mínimas e Joe está perfeitamente acordado e quer algum tempo até ser eficaz; administrar
retirar o tubo endotraqueal. Quando lhe é perguntado se sente primeiro um bólus.
dor, responde que não sente qualquer dor e que está muito  A terapêutica multimodal pode reduzir as
confortável. É extubado com sucesso e permanece num estado necessidades de opióides e os efeitos
satisfatório. secundários, mas é preciso ter em
consideração os perigos dos analgésicos não
Pérolas de sabedoria opióides neste grupo de doentes.
 As pessoas mais idosas têm necessidades
De um modo geral: analgésicas inferiores, os jovens adultos têm
 Falar com o doente tratando-o pelo nome. necessidades analgésicas superiores.
 Incentivar os visitantes a falarem com o  A dependência dos opióides não representa
doente. um problema em doentes que sobreviveram
aos cuidados intensivos.
 Dizer aos doentes em recuperação que estão
a progredir satisfatoriamente; aos que não  De um modo geral, o fornecimento
estão a recuperar tão bem, evocar aspetos insuficiente de analgesia é mais
positivos. problemático do que o fornecimento
excessivo.
 Podem alcançar-se bons resultados
reduzindo as fontes de desconforto
adicionais. Referências
 Uma experiência negativa em UCI pode ser
[1] Cardno N, Kapur D. Measuring pain. BJA CEPD
reduzida através de uma boa comunicação
Reviews 2002;2(1):7-10.
com os doentes.
[2] Chong CA, Burchett KR. Pain management in critical [14] Tonner PH, Weiler N, Paris A, Scholz J. Sedation and
care. BJA CEPD Reviews 2003;3(6):183-6. analgesia in the intensive care unit. Curr Opin
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pain in a surgical intensive care unit. Crit Care Med
1994;22:974-80.
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1994;10:651-7. incorpora o sítio sobre a dor de Oxford (Oxford Pain Internet
[5] Intensive Care Society, Reino Unido. Clinical guideline Site)– é um recurso gratuito
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http://www.jr2.ox.ac.uk/Bandolier/booth/painpag/index2.ht
www.ics.ac.uk/downloads/sedation.pdf. ml
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D, Wittbrodt ET, Chalfin DB, Masica MF, Bjerke HS, O formulário conjunto de Lothian (Lothian Joint Formulary) está
Coplin WM, Crippen DW, Fuchs BD, Kelleher RM, disponível gratuitamente na Internet. Existem formulários para
Marik PE, Nasraway SA Jr, Murray MJ, Peruzzi WT, adultos e crianças. São fornecidas duas escolhas para cada
Lumb PD, Task Force of the American College of grupo de medicamentos. Os analgésicos encontram-se na
secção 4.7, relativa ao sistema nervoso central. Não é fornecida
Critical Care Medicine (ACCM) of the Society of informação farmacológica detalhada.
Critical Care Medicine (SCCM), American Society of
Health-System Pharmacists (ASHP), American College http://www.ljf.scot.nhs.uk/
of Chest Physicians. Clinical practice guidelines for the
use sustained use of sedatives and analgesics in the É possível efetuar o download e guardar o Lothian Joint
critically ill adult. Crit Care Med 2002;30:119-41. Formulary em
http://www.ljf.scot.nhs.uk/downloads/ljf_adult_20060524.pd
[7] Kehlet H. Multimodal approach to control of
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Anaesth 1997;78:606-17. Update in Anaesthesia. Revista educativa que visa fornecer
[8] Park GR. Sedation and analgesia – which way is best? conselhos práticos para pessoal clínico a trabalhar em
Br J Anaesth 2001;87:183-5. ambientes isolados ou difíceis. Recurso extremamente valioso.
[9] Park GR, Ward B. Sedation and analgesia in the As vinte e cinco edições encontram-se disponíveis online.
critically ill. In: Warrell DA, Cox TM, Firth JD, Benz
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EJ, editores. Oxford textbook of medicine, 4ª edição,
vol. 2. Oxford University Press; 2003. p. 1250-2. AnaesthesiaUK é um recurso educativo para exames pós-
[10] Puntillo KA. Pain experiences of intensive care universitários. Para além de fornecer material instrutivo,
patients. Heart Lung 1990;19(5 Pt 1):526-33. oferece o acesso a um tutorial semanal.
[11] Shapiro BA, Warren J, Egol AB, Greenbaum DM,
Jacobi J, Nasraway SA, Schein RM, Spevetz A, Stone http://www.frca.co.uk/default.aspx
JR. Practice parameters for intravenous analgesia and
Uma seleção de artigos sobre tópicos relacionados com a dor
sedation for adult patients in the intensive care unit: an aguda
executive summary. Society of Critical Care Medicine.
Crit Care Med 1995;23:1596-600. http://www.frca.co.uk/SectionContents.aspx?sectionid=148
[12] Smith CM, Colvin JR. Control of acute pain in
postoperative and post-traumatic situations. Anaesth Uma seleção de artigos sobre tópicos relacionados com a dor
Intensive Care Med 2005;6:2-6. crónica
[13] Soliman HM, Mélot C, Vincent JL. Sedative and
http://www.frca.co.uk/SectionContents.aspx?sectionid=183
analgesic practice in the intensive care unit: the results
of a European survey. Br J Anaesth 2001;87:186-92.
317

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 38
Bloqueios Nervosos Diagnósticos e Prognósticos
Steven D. Waldman

geral é obrigado a buscar meios externos para quantificar


Quais são os pressupostos ou ratificar uma impressão clínica dúbia. Os exames
laboratoriais e radiológicos são, em geral, o segundo
fundamentais para o uso de lugar onde o médico busca confirmação diagnóstica,
bloqueios nervosos no embora a indisponibilidade de testes específicos
rapidamente acessíveis em locais de poucos recursos
tratamento da dor? possa impedir seu uso.
Felizmente, o bloqueio nervoso diagnóstico precisa de
poucos recursos e quando feito corretamente dá ao
A pedra angular do tratamento bem sucedido de
médico informações úteis para ajudar a aumentar o nível
doentes com queixas dolorosas é o diagnóstico
de conforto do paciente com um diagnóstico provisório.
correto. Por mais simples que essa frase possa
No entanto, nunca é demais lembrar que o excesso de
parecer na teoria, o sucesso pode ser difícil em confiança nos resultados, mesmo de um bloqueio
doentes individuais. A razão da dificuldade está em nervoso realizado corretamente, pode desencadear uma
quatro questões diferentes, porém inter- série de eventos que, no mínimo, irão dar pouco ou
relacionadas: nenhum alívio da dor e, na pior das hipóteses, irão
A dor é uma resposta subjetiva difícil, se não impossível resultar em complicações permanentes de cirurgias
de quantificar; invasivas ou de procedimentos neurodestrutivos que
a resposta à dor em seres humanos é composta de uma foram justificados apenas com base no bloqueio nervoso
série de fatores óbvios e não tão óbvios que servem para diagnóstico.
modular a expressão clínica da dor para cima ou para
baixo; nosso conhecimento atual sobre os componentes
neurofisiológicos, neuroanatômicos e comportamentais Qual seria o caminho para o
da dor é incompleto e impreciso; e, existe uma discussão
em andamento entre os especialistas em tratamento da uso adequado dos bloqueios
dor sobre se é melhor tratar a dor como um sintoma ou
como uma doença.
nervosos?
A incerteza trazida por esses fatores pode às vezes tornar
o diagnóstico bastante difícil e limitar a utilidade do No início dessa discussão, é preciso dizer que
bloqueio nervoso como previsor do sucesso ou do mesmo o bloqueio nervoso realizado com perfeição
fracasso de procedimentos neurodestrutivos tem suas limitações. A Tabela 1 oferece ao leitor
subseqüentes. Dada a dificuldade de estabelecer um uma lista do que fazer e não fazer ao realizar e
diagnóstico correto da dor do paciente, o clínico, em interpretar bloqueios nervosos diagnósticos.
Tabela 1
O que fazer e o que não fazer nos bloqueios nervosos diagnósticos
 Analise as informações obtidas do bloqueio nervoso diagnóstico no contexto do histórico
do paciente, e dos exames físicos, laboratoriais, neurofisiológicos e radiográficos.
 Não confie demais nas informações de bloqueios nervosos diagnósticos.
 Veja com ceticismo as informações contraditórias obtidas dos bloqueios nervosos
diagnósticos.
 Não confie nas informações obtidas de bloqueio nervoso diagnóstico como a única
justificativa para fazer procedimentos invasivos.
 Considere a possibilidade de limitações técnicas que limitam a capacidade de fazer um
bloqueio nervoso diagnóstico preciso.
 Considere a possibilidade de variações anatômicas do paciente que possam influenciar os
resultados.
 Considere a presença de dor incidental ao analisar os resultados dos bloqueios nervosos
diagnósticos.
 Não faça bloqueios diagnósticos em pacientes que no momento não estão sentindo a dor
que você quer diagnosticar.
 Considere fatores comportamentais que podem influenciar os resultados do bloqueio
nervoso diagnóstico.
 Considere que os pacientes podem se pré-medicar antes do bloqueio nervoso diagnóstico.

Em primeiro lugar, o médico deve usar as Em geral, a confiabilidade dos dados obtidos com
informações obtidas dos bloqueios nervosos um bloqueio nervoso diagnóstico está diretamente
diagnósticos com cuidado e apenas como uma parte relacionada ao conhecimento do médico sobre a
do exame diagnóstico do doente com dor. anatomia funcional da área onde está o bloqueio
Resultados de um bloqueio nervoso diagnóstico que nervoso e à experiência do médico em realizar o
contradigam a impressão clínica formada pelo bloqueio. Mesmo nas melhores mãos, alguns
especialista em tratamento da dor, como resultado bloqueios nervosos são tecnicamente mais difíceis
do desempenho de um histórico bem formado e de do que outros, o que aumenta a probabilidade de
exames clínicos e considerando os exames um resultado não tão perfeito. Além disso, a
confirmatórios de laboratório, radiográficos, presença de outras estruturas neurais próximas ao
neurofisiológicos e radiográficos, devem ser vistos nervo, como gânglio ou plexo, sendo bloqueados
com muito ceticismo. Tais resultados conflitantes, podem levar a bloqueio inadvertido e em geral não
quando o bloqueio nervoso é usado para reconhecido de nervos adjacentes invalidando os
prognóstico, nunca devem ser a única base para ir resultados que o médico vê, por ex., raízes nervosas
adiante e realizar procedimentos neurodestrutivos cervicais inferiores, do nervo frênico e do plexo
ou invasivos que, nessa situação, têm pouca ou braquial próximas ao gânglio estrelado. Também
nenhuma chance de ajudar a aliviar a dor do devemos lembrar de que sempre existe a
paciente. possibilidade de anomalia anatômica não detetada,
Além das advertências acima, é preciso reconhecer que pode confundir ainda mais os resultados do
que a utilidade clínica do bloqueio nervoso bloqueio nervoso diagnóstico, por ex., raízes
diagnóstico pode ser afetada por limitações técnicas. nervosas unidas, anastomose de Martin Gruber
(conexão mediana ao nervo ulnar), etc.
319

Como cada experiência dolorosa é exclusiva do irá turvar ainda mais as questões que o bloqueio
doente e o médico realmente não tem como nervoso deveria esclarecer.
quantificá-la, é preciso tomar cuidado especial para
garantir que todos estão falando a mesma língua Quais são os bloqueios
com relação à dor que o bloqueio diagnóstico está
querendo diagnosticar. Muitos pacientes têm mais
nervosos diagnósticos
de um tipo de dor. O paciente pode ter dor importantes e úteis?
radicular e dor de neuropatia diabética. Um
determinado bloqueio diagnóstico pode aliviar um Os pioneiros da anestesia regional, Labat e Pitkin
tipo de dor e deixar a outra intocada. [3], acreditavam que era possível bloquear qualquer
Além disso, se o paciente tem dor eventual de nervo do corpo. Apesar das várias limitações
escape, por ex., dor ao andar ou sentar, a realização técnicas enfrentadas por esses pioneiros, eles
de um bloqueio diagnóstico em uma situação perseveraram. Fizeram isso não apenas porque
diferente da que provoca a dor eventual tem pouco acreditavam na utilidade técnica e na segurança do
ou nenhum valor. Isso costuma significar que o bloqueio nervoso regional, mas também porque as
médico precisa adaptar o tipo de bloqueio nervoso alternativas disponíveis para tornar o paciente
que vai realizar para que o paciente possa realizar insensível à dor decorrente de procedimentos
com segurança a atividade que provoca a dor. cirúrgicos naquela época eram bem menos
Finalmente, um bloqueio nervoso diagnóstico nunca atraentes. A introdução do curare, como relaxante
deve ser feito se o paciente estiver sem ou não muscular, em 1942, pelo dr. Harold Griffith, mudou
conseguir provocar a dor que o especialista em esse conceito [2], e em um período relativamente
tratamento da dor está tentando diagnosticar, curto, a anestesia regional foi relegada à história da
porque não haverá nada para quantificar. medicina, com seus defensores considerados
A precisão do bloqueio nervoso diagnóstico pode excêntricos, na melhor das hipóteses. Assim como
ser otimizada pela avaliação do alívio nervoso as técnicas egípcias de embalsamamento foram
comparado à duração farmacológica esperada do perdidas pelo homem moderno, muitas técnicas de
agente usado para bloquear a dor. Se houver anestesia regional de uso comum foram perdidas
discordância entre a duração do alívio da dor e a pelos atuais especialistas em tratamento da dor.
duração do anestésico local ou opióide usado, é O que restou foram procedimentos que resistiram
preciso ter muito cuidado antes de confiar apenas ao teste do tempo para anestesia cirúrgica. Em sua
nos resultados do bloqueio nervoso diagnóstico. Tal maioria, eram bloqueios nervosos não
discordância pode ser causada por problemas excessivamente complicados do ponto de vista
técnicos na realização do bloqueio nervoso, por técnico e eram razoavelmente seguros. Muitas
variações anatômicas e, mais comumente, por dessas técnicas também têm utilidade clínica para
componentes comportamentais da dor do paciente. bloqueios nervosos diagnósticos. Essas técnicas
Finalmente, é preciso lembrar que a dor e a estão resumidas na Tabela 2. Os bloqueios nervosos
ansiedade causadas pelo bloqueio nervoso diagnósticos mais comuns serão discutidos abaixo.
diagnóstico podem confundir os resultados de um Tabela 2
bloqueio de outra forma tecnicamente correto. O Bloqueios nervosos diagnósticos comuns
médico deve estar alerta ao fato que muitos Bloqueios neuraxiais: peridurais, subaracnóideos.
pacientes com dor podem se pré-medicar com Bloqueios de nervos periféricos: occipital maior e
opióides ou fazer uso de álcool devido ao medo da menor, trigêmeo, plexo braquial, mediano, radial e
dor do procedimento. Essa situação também tem o ulnar, intercostal, raiz nervosa seletiva, ciático.
potencial de confundir os resultados observados. Bloqueios nervosos intra-articulares: faceta.
Obviamente, o uso de sedação ou de ansiolíticos Bloqueios nervosos simpáticos: gânglio estrelado,
antes da realização do bloqueio nervoso diagnóstico celíaco, plexo, lombar, plexo hipogástrico e gânglio
ímpar
Bloqueios nervosos diagnósticos neuraxiais tronco cerebral e em níveis mais altos pode
Os bloqueios espinhais e peridurais diferenciais existir e pode alterar os resultados até do
ganharam um pouco de popularidade como auxílio bloqueio nervoso diferencial realizado com
no diagnóstico da dor. Popularizados por Winnie o maior cuidado; e
[9], os bloqueios espinhais e peridurais diferenciais 8) O fato de que existem componentes
se baseiam na sensibilidade variável de fibras comportamentais importantes da dor do
sensoriais e motoras simpáticas e somáticas ao paciente que podem influenciar a resposta
bloqueio com anestésicos locais. Embora sólidas em subjetiva do paciente ao médico realizando
princípio, essas técnicas estão sujeitas a algumas o bloqueio neuraxial diferencial.
dificuldades técnicas graves que limitam a Apesar dessas desvantagens, o bloqueio
confiabilidade das informações obtidas. São elas: neuraxial diferencial continua sendo um
1) Incapacidade de medir precisamente até que instrumento clinicamente útil para ajudar no
ponto cada tipo de fibra nervosa está diagnóstico de dor inexplicável. Além disso,
bloqueada; existem algumas opções que o médico pode
2) Possibilidade de bloqueio simultâneo de fazer para aumentar a sensibilidade da técnica,
mais de uma fibra nervosa levando o médico entre elas:
atribuir a dor do paciente à estrutura 1) Usar o bloqueio reverso diferencial espinhal
neuroanatômica errada; ou peridural em que o paciente recebe uma
3) Impossibilidade de evitar a sensação de alta concentração de anestésico local que
calor, as vezes muito desagradável, associada resulta em bloqueio motor, sensitivo e
ao bloqueio simpático, e contra a dormência simpático denso, e a observação do paciente
e a fraqueza que acompanham o bloqueio de à medida que o bloqueio regride;
fibras nervosas somatossensoriais; 2) Usar opióides no lugar de anestésicos locais
4) O fato de que na prática clínica o conceito que removem as dicas sensoriais que podem
de linearidade temporal, que diz que fibras influenciar as respostas dos pacientes;
simpáticas mais “sensíveis” são bloqueadas 3) Repetir o bloqueio mais de uma vez usando
primeiro, depois as fibras somatossensoriais anestésicos locais ou opióides de durações
menos sensíveis e, por último, as fibras diferentes, por ex., lidocaína versus
motoras mais resistentes, cai por terra. Na bupivacaína, ou morfina versus fentanil, e
prática, não é raro que o paciente sinta comparar a consistência dos resultados.
algum bloqueio sensorial antes de notar o Resista ou não essa técnica ao teste do tempo, o
calor associado ao bloqueio de fibras alerta de Winnie aos médicos de que dor
simpáticas, tornando suspeitos os resultados mediada simpaticamente é em geral
do exame. subdiagnosticada certamente resistirá.
5) O fato de que mesmo na presença de
bloqueio neuraxial denso o suficiente para Bloqueio dos nervos occipitais maior e
permitir um procedimento cirúrgico de menor
grande porte, sinais nociceptivos aferentes O nervo occipital maior surge a partir do ramo
ainda podem ser demonstrados no cérebro; primário dorsal do segundo nervo cervical e em
6) O fato de que mudanças neurofisiológicas menor grau de fibras do terceiro nervo cervical
associadas à dor podem aumentar ou [4]. O nervo occipital maior perfura a fascia logo
diminuir o limiar de disparo dos nervos, abaixo da crista da nuca junto com a artéria
sugerindo que mesmo na presença de occipital. Supre a porção medial do couro
concentrações sub-bloqueadoras, existe a cabeludo posterior até o vértice. O nervo
possibilidade de os nervos aferentes occipital menor surge a partir dos ramos
sensibilizados pararem de disparar; primários ventrais do segundo e terceiro nervo
7) O fato de que sabemos que a modulação da cervical. O nervo occipital menor passa ao
transmissão da dor na medula espinhal, no longo da borda posterior do músculo
321

esternoclideomastóideo, dividindo-se em ramos elucidar os nervos envolvidos na dor facial que


cutâneos que enervam a porção lateral do couro costuma ser de difícil diagnóstico.
cabeludo posterior e a superfície craniana do
pavilhão auricular. Bloqueio da faceta cervical
O bloqueio seletivo dos nervos occipitais maior As articulações da faceta cervical são formadas
e menor pode dar informações úteis ao pelas articulações das facetas articulares superior
especialista em tratamento da dor que está e inferior de vértebras adjacentes [6]. Exceto as
tentando determinar a causa de cefaléia articulações atlanto-occipital e atlantoaxial, as
cervicogênica. Ao bloquear os nervos outras articulações da faceta cervical são
atlantoaxial, atlanto-occipital, peridural cervical, articulações verdadeiras no sentido que são
faceta cervical e occipital maior e menor em revestidas por líquido sinovial e possuem uma
consultas sucessivas, o especialista em cápsula articular real. Essa cápsula é ricamente
tratamento da dor pode conseguir diferenciar os inervada o que fundamenta seu papel como
nervos que afetam a cefaléia do paciente. fonte de dor cervical. A articulação da faceta
cervical é suscetível a alterações artríticas e a
Bloqueio do gânglio estrelado traumas causados por lesões de aceleração-
O gânglio estrelado está localizado na superfície desaceleração. Tal dano à articulação resulta em
anterior do músculo longo do pescoço. Esse dor secundária à inflamação da articulação
músculo localiza-se anterior aos processos sinovial e aderências. Cada articulação facetária
transversais da sétima vértebra cervical e da recebe inervação de dois níveis espinhais. Cada
primeira vértebra torácica [5]. O gânglio articulação recebe fibras do ramo dorsal do
estrelado é composto de uma porção fundida do mesmo nível da vértebra além de fibras do ramo
sétimo gânglio cervical e do primeiro gânglio dorsal da vértebra acima. Esse fato tem
torácico simpático. O gânglio estrelado localiza- importância clínica porque oferece uma
se anteromedial à artéria vertebral e é medial à explicação para a natureza mal-definida da dor
artéria carótida comum e à veia jugular. O mediada por faceta e explica por que o ramo do
gânglio estrelado é lateral à traquéia e ao ramo dorsal surgindo acima do nível agressor
esôfago. A proximidade de raízes nervosas precisa também ser bloqueado com frequência
cervicais e do plexo braquial ao gânglio para propiciar alívio completo da dor. Em cada
estrelado facilita o bloqueio inadvertido dessas nível, o ramo dorsal possui um ramo medial que
estruturas ao realizar o bloqueio do gânglio envolve a convexidade do pilar articular de sua
estrelado, dificultando a interpretação dos respetiva vértebra e inerva a articulação
resultados do bloqueio. facetária. O bloqueio seletivo das articulações
O bloqueio seletivo do gânglio estrelado pode facetárias cervicais pode dar informações úteis
dar informações úteis ao especialista em ao especialista em tratamento da dor que está
tratamento da dor que está tentando determinar tentando determinar a causa de cefaléia
a causa de dor de extremidade superior ou facial cervicogênica e/ou dor no pescoço. Ao
sem diagnóstico claro. Ao bloquear o plexo bloquear os nervos atlantoaxial, atlanto-
braquial (preferivelmente pela via axilar) e o occipital, peridural cervical e occipital maior e
gânglio estrelado em consultas sucessivas, o menor em consultas sucessivas, o especialista
especialista em tratamento da dor pode em tratamento da dor pode diferenciar os
conseguir diferenciar os nervos envolvidos na nervos envolvidos na cefaléia e/ou dor no
dor de extremidade superior do paciente. O pescoço do paciente.
bloqueio diferencial seletivo do gânglio
estrelado, do nervo trigêmeo e do gânglio Bloqueio do nervo intercostal
esfenopalatino em consultas sucessivas pode Os nervos intercostais surgem a partir da divisão
anterior do nervo paravertebral torácico [7]. Um
nervo intercostal típico tem quatro ramos ganglionar ao plexo celíaco. O nervo
principais. O primeiro ramo são fibras pós- esplâncnico maior se origina nas raízes nervosas
ganglionares não mielinizadas dos ramos em T5-T10. Cursa ao longo da borda
comunicantes cinzas, que fazem interface com a paravertebral torácica através da cruz do
cadeia simpática. O segundo ramo é o ramo diafragma até a cavidade abdominal, terminando
cutâneo posterior, que inerva os músculos e a no gânglio celíaco de seu respetivo lado. O
pele da área paraespinhal. O terceiro ramo é a nervo esplâncnico menor se origina nas raízes
divisão cutânea lateral, que surge a partir da de T1-T11 e passa com o nervo maior para
linha axilar superior. A divisão cutânea lateral terminar no gânglio celíaco. O nervo
fornece a maioria dos nervos cutâneos do tórax esplâncnico mínimo se origina nas raízes
e da parede abdominal. O quarto ramo é o ramo espinhais em T11-T12 e passa através do
cutâneo anterior que inerva a linha média do diafragma até o gânglio celíaco.
tórax e da parede abdominal. Ocasionalmente, A variabilidade do gânglio celíaco entre
os ramos terminais de um determinado nervo pacientes é importante, mas as seguintes
intercostal podem realmente cruzar a linha generalizações podem ser tiradas de estudos
média para fornecer inervação sensorial ao tórax anatômicos dos gânglios celíacos. Os gânglios
e à parede abdominal contralaterais. Esse fato é variam em número entre um e cinco e têm
especificamente importante quando se usa o diâmetros de 0,5 a 4,5 cm. Os gânglios estão
bloqueio intercostal como parte do exame anteriores e anterolaterais à aorta. Os gânglios
diagnóstico de um paciente com dor na parede localizados à esquerda são uniformemente mais
torácica e/ou abdominal. O 12o nervo é inferiores do que os do lado direito por até um
chamado de nervo subcostal e é único no nível vertebral, mas os dois grupos de gânglios
sentido de emitir um ramo para o primeiro estão abaixo da artéria celíaca. Os gânglios estão
nervo lombar, assim contribuindo para o plexo geralmente localizados no nível da primeira
lombar. vértebra lombar.
O bloqueio seletivo do nervo intercostal e/ou Fibras pós-ganglionares irradiam dos gânglios
subcostal considerados envolvidos na dor do celíacos para seguir o curso dos vasos
paciente pode dar informações úteis ao sanguíneos para inervar as vísceras abdominais.
especialista em tratamento da dor que está Esses órgãos incluem grande parte do esôfago
tentando determinar a causa da dor torácica distal, o estômago, o duodeno, o intestino
e/ou abdominal. Ao bloquear os nervos delgado, o colo transversal ascendente e
intercostais e o plexo celíaco em consultas proximal, as glândulas suprarrenais, o pâncreas,
sucessivas, o especialista em tratamento da dor o baço, o fígado e o sistema biliar. Essas fibras
pode diferenciar os nervos envolvidos na dor pós-ganglionares, que são fibras provenientes
torácica e/ou abdominal do paciente. dos nervos esplâncnicos pré-ganglionares, e do
gânglio celíaco, compõem o plexo celíaco. O
Bloqueio do plexo celíaco diafragma separa o tórax da cavidade abdominal,
A inervação simpática das vísceras abdominais mas, permite a passagem das estruturas
se origina no corno anterolateral da medula toracoabdominais, inclusive a aorta, a veia cava
espinhal [8]. Fibras pré-ganglionares de T5-T12 e os nervos esplâncnicos. A cúpula
saem da medula espinhal junto com as raízes diafragmática é composta de estruturas bilaterais
ventrais para se unir aos ramos comunicantes que vêm das superfícies anterolaterais das duas
brancos em seu curso para a cadeia simpática. ou três vértebras e discos lombares superiores.
Ao invés de fazer sinapse com a cadeia A cúpula do diafragma age como barreira para
simpática, essas fibras pré-ganglionares passam separar eficazmente os nervos esplâncnicos dos
através dela para fazer sinapse com os gânglios gânglios celíacos e do plexo abaixo.
celíacos. Os nervos esplâncnicos maior, menor e O plexo celíaco está anterior aos pilares do
mínimo dão a principal contribuição pré- diafragma. O plexo se estende na frente e em
323

torno da aorta com maior concentração de representam um próximo passo razoável


fibras anteriores à aorta. Com a abordagem se o histórico meticuloso e o exame
transaórtica de agulha única para bloquear o físico, além de exames radiográficos,
plexo celíaco, a agulha é colocada próxima a neurofisiológicos e de laboratório não
essa concentração de fibras do plexo. O conseguirem fornecer um diagnóstico
relacionamento do plexo celíaco com as claro.
estruturas adjacentes é o seguinte: A aorta está  O excesso de confiança em um bloqueio
anterior e levemente para a esquerda da margem nervoso prognóstico como a única
anterior do corpo vertebral. A veia cava inferior justificativa para um procedimento
está à direita, com os rins posterolaterais aos invasivo ou neurodestrutivo pode levar a
grandes vasos. O pâncreas está anterior ao plexo graves morbidades e insatisfação do
celíaco. Todas essas estruturas estão localizadas paciente.
no espaço retroperitoneal. O bloqueio seletivo  Analise as informações dos bloqueios
do plexo celíaco pode dar informações úteis ao nervosos diagnósticos no contexto do
especialista em tratamento da dor que está histórico e dos exames físicos,
tentando determinar a causa de dor na parede laboratoriais, neurofisiológicos e
torácica, flanco e/ou abdominal. Ao bloquear os radiográficos do paciente.
nervos intercostais e o plexo celíaco em  Não confie excessivamente em
consultas sucessivas, o especialista em informações obtidas de bloqueios
tratamento da dor pode diferenciar os nervos nervosos diagnósticos.
envolvidos na dor do paciente.
 Veja com ceticismo informações
discordantes ou contraditórias obtidas
Bloqueio seletivo de raiz nervosa
com o bloqueio nervoso diagnóstico.
As melhoras na fluoroscopia e na tecnologia das
 Não confie em informações obtidas do
agulhas levou a um maior interesse no bloqueio
bloqueio nervoso diagnóstico como as
seletivo de raiz nervosa para o diagnóstico de
únicas justificativas para realizar
dor cervical e radicular lombar. Embora o
tratamentos invasivos.
bloqueio seletivo nervoso seja tecnicamente
complicado e exija recursos que podem não  Considere a possibilidade de limitações
existir em vários locais, a técnica pode ajudar a técnicas que reduzam a habilidade de
identificar a razão por trás da queixa do realizar um bloqueio nervoso
paciente. O bloqueio seletivo de raízes nervosas diagnóstico preciso.
para prognóstico ou diagnóstico deve ser visto  Considere a possibilidade de variações
com cautela porque devido à proximidade dos anatômicas dos pacientes que possam
espaços peridural, subdural e subaracnóideo, é influenciar os resultados do bloqueio
muito fácil colocar inadvertidamente o nervoso diagnóstico.
anestésico local nesses espaços ao tentar  Considere a presença de dor incidente
bloquear uma única raiz nervosa cervical ou ao analisar os resultados dos bloqueios
lombar. O erro nem sempre é imediatamente nervosos diagnósticos.
evidente na fluoroscopia devido às pequenas  Não faça bloqueios nervosos
quantidades de anestésico local e ao meio de diagnósticos em pacientes que não estão
contraste usado. sentindo a dor no momento.
 Considere fatores comportamentais que
Pérolas de sabedoria possam influenciar os resultados dos
bloqueios nervosos diagnósticos.
 Os bloqueios nervosos como parte da
avaliação da dor do paciente
 Lembre-se que os pacientes podem se
automedicar antes do bloqueio nervoso
diagnóstico.

Referências
[
1] Dawson DM. Carpal tunnel syndrome. In: Entrapment [6] Waldman SD. Cervical facet block. In: Atlas of
neuropathies,3rd ed. Philadelphia. Lippincott-Raven; 1990. P. interventional pain management, 2nd ed. Philadelphia:
53. Saunders; 2004. p. 125.
[2] Griffi th HR, Johnson E. The use of curare in general [7] Waldman SD Intercostal nerve block. In: Atlas of
anesthesia. Anesthesiology 1942;3:418–20. interventional pain management, 2nd ed. Philadelphia:
[3] Pitkin G. Controllable spinal anesthesia. Am J Surgery Saunders; 2004. p. 241
1928;5:537. [8] Waldman SD. Celiac plexus block. In: In: Atlas of
[4] Waldman SD. Greater and lesser occipital nerve block. In: interventional pain management, 2nd ed. Philadelphia:
Atlas of interventional pain management, 2nd ed. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 265.
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[5] Waldman SD. Stellate ganglion block. In: Atlas of neural blockade in pain syndromes of questionable etiology.
interventional pain management, 2nd ed. Philadelphia: Med Clin North Am 1968;52:123–9.
Saunders; 2004. p. 104.
325

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 39
Cefaleia Pós-Punção da Dura Mater
Winfried Meissner

recomendou encaminhamento para o hospital universitário mais


Relato de caso próximo para fazer uma TC. Mas não havia ambulância no
momento então o paciente foi mantido sob observação e monitorado
clinicamente. Finalmente, enquanto admitia o paciente à
O Sr. Lehmann, um expatriado, trabalha para a enfermaria, a enfermeira-chefe Betty Hazika notou o curativo no
Bilfinger & Berger, uma grande construtora da joelho e fez o histórico médico completo. Quando ela informou ao
Nigéria. Recebeu uma anestesia raquidiana para uma Dr. Adewale sobre seu achado, ele entrou em contato com o
artroscopia eletiva do joelho no hospital da anestesiologista em Abuja que confirmou que “poderia ter
empresa. Recuperou-se rapidamente e então decidiu perfurado a dura mater”. Diagnosticaram cefaleia pós-punção da
viajar para uma reunião de negócios na manhã dura mater (CPPDM) e decidiram monitorar o paciente por dois
seguinte, embora tivesse sentido uma cefaleia leve dias. Seguindo as diretrizes do hospital, o Sr. Lehmann recebeu
ao meio dia. No caminho para Kano a cefaléia paracetamol, muito líquido (que foi muito aborrecido para o
piorou e só a posição reclinada dava algum alívio ao paciente porque a cefaleia restringia gravemente sua ida ao
banheiro), e Betty incluiu alguns medicamentos fitoterápicos (esses
Sr. Lehmann.
fora das diretrizes do hospital).
Quando o Sr. Lehmann chegou em Kano, a cefaleia era tão forte
Na noite do dia seguinte, a cefaleia melhorou e o Sr. Lehmann se
que ele se sentia muito mal. Vomitou uma vez e não conseguia
recuperou bem. Como ele estava muito contente com o tratamento
andar. Seu motorista não conseguiu entrar em contato com o médico
da enfermeira, ele associou o tratamento fitoterápico à sua
da Bilfinger & Berger então decidiram ir até o hospital local mais
recuperação e o recomendou a todos os seus colegas como tratamento
próximo. Lehmann foi examinado pelo médico de plantão, o Dr.
para ressaca!
Adewale; no entanto, como Lehmann não sabia da possível
associação entre a anestesia raquidiana e a cefaléia, ele não a
mencionou. Por outro lado, o Dr. Adewale só examinou a cabeça e Fatores de risco e
o pescoço de Lehmann – então ele não viu o curativo (e como
Lehmann não conseguia andar devido à cefaleia, o Dr. Adewale
diagnóstico
não notou que ele mancava).
Foram documentadas as seguintes características: temperatura O que causa uma CPPDM e quais são suas
corporal levemente aumentada, aumento da cefaleia ao dobrar o características?
pescoço (imitando meningite),caso contrário estado neurológico Se você induz anestesia regional espinal você poderá
normal. intencionalmente (anestesia raquidiana) ou não
O diagnóstico diferencial do Dr. Adewale foi hematoma intencionalmente (anestesia peridural) perfurar a
intracraniano, meningite ou malária cerebral. dura mater com a agulha. Normalmente, o orifício
No entanto, o hospital não tinha TC. O Sr. Lehmann pediu para fecha sozinho em poucas horas ou dias. Em alguns
voltar para Abuja onde estava baseado, mas o Dr. Adewale casos, no entanto, ele não fecha e o líquido
cefalorraquidiano continua a vazar. Se a perda de cefaleia pós-punção da dura mater. Uma é o
fluido exceder a sua produção (aproximadamente diâmetro da agulha (agulhas maiores produzem
0,35 mL/min), o volume intratecal de líquor orifícios durais maiores e mais duradouros que
diminui, dando origem a hipotensão intracraniana resultam em mais perda de líquor e em uma
que se manifesta como uma cefaleia intensa incidência mais alta de cefaleia). A outra é o formato
conhecida como cefaléia pós-punção da dura mater da agulha. Agulhas ponta de lápis, Whitacre e
(CPPDM). Em geral é postural – a cefaleia piora Sprotte, e agulhas de ponta esférica estão associadas
quando o paciente está de pé e melhora ou a menor incidência do que agulhas Quincke. Após
desaparece quando ele está reclinado ou deitado. o uso de uma agulha Quincke de 22-G, a ocorrência
Na maioria dos casos, a CPPDM aparece dentro de 24 a de cefaleia chega a 30%. Em contrapartida,
48 horas após a punção da dura mater, mas pode pequenas agulhas atraumáticas são associadas a um
demorar alguns dias e os pacientes consultam outros risco de CPPDM menor que 3%. A incidência de
médicos e não o anestesiologista. É muito importante cefaléia pós-punção da dura mater após perfuração
que a ocorrência de uma punção inadvertida da dura
dural varia de 5% (agulhas finas ponta de lápis) a
mater (principalmente ao induzir anestesia peridural) seja
70% (agulhas Quincke grandes).
documentada e que o paciente seja avisado da grande
possibilidade de desenvolver uma cefaleia postural.

Existem fatores de risco que aumentam a


probabilidade de CPPDM?
A incidência é mais alta em pacientes mais jovens,
durante a gestação ou com punções complicadas ou
repetidas, e também depende do diâmetro e do tipo
de agulha (vide abaixo). A incidência diminui se a
punção é feita na posição lateral e não sentada, e se
for usado soro fisiológico no lugar de ar para a Curso natural e tratamento
técnica de perda de resistência durante anestesia
peridural. A experiência do anestesiologista também Qual é o curso natural da CPPDM?
influencia a incidência de CPPDM. Na maioria dos casos, a CPPDM se resolve sozinha.
Normalmente, os pacientes se recuperam
Quais são os diagnósticos diferenciais da
espontaneamente depois de 4 a 6 dias. No entanto,
CPPDM?
alguns casos podem demorar mais, com sintomas
Embora os sintomas clínicos, junto com o histórico de
graves.
punção espinal, costumem fornecer um diagnóstico
correto, existem importantes fatores diagnósticos, como
cefaléia tensional e enxaqueca, e no caso de mulheres no
Como tratar um caso de CPPDM?
pós-parto não se deve esquecer da eclâmpsia. Outros Como a CPPDM em geral se resolve sozinha, na
diagnósticos diferenciais possíveis e graves, embora maioria dos casos uma posição reclinada, hidratação
raros, são trombose venosa intracraniana, meningite e oral e muita paciência são a melhor terapia. Em
hematoma subdural. Sintomas como déficits geral, as diretrizes clínicas não oferecem muito, visto
neurológicos focais, cefaléia independente da posição de que uma série de abordagens diferentes para tratar a
pé, rigidez do pescoço, febre, visão turva, sonolência, CPPDM foram sugeridas e são usadas em diferentes
fotofobia, confusão ou vômitos devem sempre levar a instituições, mas apenas muito poucas podem ser
outros diagnósticos. consideradas baseadas em evidência.
O repouso no leito é a recomendação mais
O tipo e o tamanho da agulha influenciam a
frequente; no entanto, a duração da cefaléia não
incidência de CPPDM?
parece ser reduzida com repouso no leito, que pode
Sabe-se que duas características da agulha usada
ser considerado um tratamento puramente
para punção espinal influenciam a incidência de
sintomático. O tratamento com analgésicos não
327

opióides, como paracetamol (acetaminofeno) ou Possíveis complicações são todos os problemas


outros medicamentos como cafeína, sumatriptano associados a uma injeção peridural, como infeção,
ou flunarizina não é bem respaldado por evidências hematoma e lesão nervosa e, claro, outra perfuração
científicas. O mesmo é verdade para “terapia” de da dura mater e vazamento subsequente de líquor.
fluidos. Um estudo recente respaldou o uso de Portanto, e devido ao fato de que a CPPDM
teofilina intravenosa (200mg em 100ml de dextrose ocorreu e pode significar condições difíceis de
a 5% por 40 minutos). punção, o tampão sanguíneo só deve ser realizado
O único tratamento que se mostrou ao menos por clínicos experientes!
parcialmente eficaz foi a injeção peridural de sangue,
conhecida como “tampão sanguíneo peridural” Quando devemos realizar um tampão
(TSP). Os melhores resultados de estudos indicam sanguíneo peridural?
que com a indicação correta, o tampão sanguíneo Porque a cefaleia pós-punção da dura mater se
pode resolver a CPPDM em um entre cinco resolve sozinha na maioria dos casos, e o TSP não é
pacientes. Após tamponamento sanguíneo repetido, isento de riscos (vide acima), ele é recomendado
esse número pode aumentar para mais de 90%. É apenas quando a cefaleia é muito incapacitante e
usado quando o tratamento sintomático não faz interfere com a recuperação do paciente ou, como
efeito, a intensidade da dor é alta e o paciente está no caso das mulheres no pós-parto, quando ela
gravemente incapacitado. Esse método é impede que elas amamentem ou se relacionem com
especialmente importante para mulheres no pós- seus filhos. Ter pouca mobilidade ou estar acamado
parto se não conseguem amamentar ou se relacionar também aumenta a incidência de trombose venosa
com seus bebês. No entanto, não há consenso sobre profunda e de coágulos pulmonares fatais.
o momento ideal para o TSP nem sobre a
quantidade de sangue que deve ser usada. Como o Existem complicações perigosas da CPPDM se
TSP pode causar ainda mais complicações (vide ela não for aliviada por um tampão sanguíneo
abaixo) e como a CPPDM é desagradável, mas com peridural?
frequência autolimitante e raramente ameaça a vida, Uma complicação rara da CPPDM não tratada é um
a indicação para um TSP deve ser feita com hematoma subdural causado por tração das veias
precaução e ele deve ser realizado por profissional cerebrais. Uma complicação incomum e indireta é a
experiente. trombose venosa profunda devido ao repouso no
leito, como mencionado acima.
Como se faz um tampão sanguíneo peridural?
Basicamente, o TSP é feito da mesma forma que a Pérolas de sabedoria
anestesia peridural. Ao invés de injetar anestésico
local, são usados 10 a 20ml do sangue do paciente
 Critérios diagnósticos: cefaléia postural logo
retirados imediatamente. É preciso duas pessoas
após punção espinal (punção espinhal ou
para o procedimento em si e, se houver, uma
acidental da dura mater durante um
terceira pessoa assistindo. Uma pessoa faz a
procedimento peridural).
peridural, em geral um segmento acima ou abaixo
 Diagnósticos diferenciais: qualquer outra
do local da inserção anterior. A segunda pessoa
forma de cefaléia (cefaléia tensional,
coleta o sangue imediatamente depois que a
enxaqueca), hematoma intracraniano e
primeira pessoa identificou o espaço peridural sob
trombose venosa, meningite, e no caso de
condições absolutamente assépticas (desinfeção
mulheres no pós-parto, eclâmpsia. Procure
cirúrgica da pele, luvas esterilizadas, avental,
sempre déficits neurológicos focais, cefaléia
máscara) de uma veia facilmente acessível e passa a
independente da posição de pé, rigidez do
seringa com o sangue para a primeira pessoa fazer a
pescoço, febre, visão turva, confusão,
injeção peridural.
vômitos e fotofobia.
 Com histórico de punção espinal com  CPPDM persistindo por mais de uma
sintomas típicos, não é necessário nenhum semana deve ser uma indicação para TSP.
exame de laboratório ou radiográfico.
 Tratamento: reclinado ou em decúbito Referências
dorsal, líquidos orais (mas não demais);
considere TSP apenas se a cefaleia interferir [2] Sprigge JS, Harper SJ. Accidental dural puncture and post
gravemente com a vida diária do paciente e dural puncture headache in obstetric anesthesia: presentation
se houver uma equipe experiente. Compare and management: a 23-year survey in a district general hospital.
Anaesthesia 2008;63:36–43.
os riscos do TSP e o alívio espontâneo [1] Thew M, Paech MJ. Management of postdural puncture
normal da cefaléia pós-punção da dura headache in the obstetric patient. Curr Opin Anaesthesiol
mater em 3 a 7 dias. 2008;21:288–92.
329

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de poucos Recursos

Capítulo 40
Radioterapia Citostática
Lutz Moser

centro em alguns estados para uma máquina para 11


Qual é a situação atual dos milhões de pessoas
(Bangladesh), a uma máquina para 807.000 pessoas
serviços de radioterapia em (Malásia).
países de renda média ou
baixa? Qual é a importância da
radioterapia na dor?
A radioterapia de feixe externo pode ser
administrada por aceleradores lineares ou unidade A eficácia da radioterapia se aplica mais à dor
de teleterapia de cobalto. As unidades de cobalto oncológica. Os cuidados paliativos melhoram a
são mais robustas e menos propensas a influências qualidade de vida dos pacientes aliviando dor e
externas, como o fornecimento instável de energia. sintomas do diagnóstico no final da vida (de acordo
Embora a radioterapia seja uma das formas mais com a Organização Mundial de Saúde). A meta
econômicas para o tratamento do câncer, existe uma principal é aliviar os sintomas do paciente.
falta de instalações de radioterapia, principalmente O controle da dor em pacientes oncológicos
na Ásia e na África. Esse problema é causado pelo representa um aspeto importante da radioterapia em
alto investimento inicial de capital em equipamentos todo o mundo. A radioterapia é uma das opções
e edifícios especialmente projetados e na terapêuticas mais eficazes, e às vezes a única, para
manutenção técnica, reposição de equipamentos e aliviar a dor causada por compressão nervosa ou
acesso permanente a suporte de engenharia. infiltração do tumor maligno, ou dor de metástases
Portanto, os centros de radioterapia ficam restritos a hepáticas e ósseas, e oferece boa paliação para
centros metropolitanos como as capitais desses disfagia causada por carcinoma do esôfago e para a
países. dor do câncer pancreático.
Muitos países da África não têm nenhum centro de
radioterapia. A disponibilidade dos serviços de Qual é a eficácia da
radioterapia varia nos outros países de uma máquina
para 126.000 pessoas (Egito) a uma máquina para 70
radioterapia na dor de
milhões de pessoas (Etiópia). A África Ocidental metástases ósseas?
tem o pior suprimento de equipamentos de
radioterapia com uma unidade para 24 milhões de Em cerca de 50-80% dos pacientes, os sintomas das
pessoas. Na Ásia, a distribuição varia de nenhum metástases ósseas se manifestam como dor
esquelética ou neuropática, fraturas patológicas,
hipercalcemia, lesão de raiz nervosa e compressão interesse de mais de 20%, foi encontrada em 25 a
da medula espinhal. O sintoma mais comum da 58% dos pacientes.
metástase esquelética é dor, presente na maioria dos Estudos mostram que irradiação de hemicorpo ou
pacientes com metástases ósseas. Em geral, a dor de campo amplo dá a quase todos os pacientes
progride lentamente durante dias ou semanas e algum alívio da dor. Pode aliviar a dor
requer o aumento frequente das doses de completamente em até metade das pessoas tratadas
analgésicos. Acredita-se que a dor esquelética seja e pode ajudar a interromper o aparecimento de
induzida pela combinação de fatores mecânicos e novas áreas dolorosas.
bioquímicos que resultam na ativação de recetores
da dor em nervos locais. O aumento do fluxo Quais são os esquemas de
sanguíneo para as lesões metastásicas provoca uma
resposta inflamatória com a liberação de citocinas
fracionamento usados para
pelas células tumorais e pelos tecidos adjacentes. A o controle da dor?
radioterapia é um instrumento útil usado para
controlar a dor das metástases ósseas. Embora só se Opiniões conflitantes sobre baixa dose, radioterapia
consiga uma resposta completa em 30% dos casos, de cursos curto ou prolongado, ou esquemas de
uma resposta parcial resulta em redução suficiente doses mais altas levaram a várias publicações
de medicação analgésica adicional. Outras metas do científicas e a estudos aleatórios para encontrar as
tratamento são a preservação de mobilidade e respostas. Os estudos clínicos incluíram pacientes
função, manutenção da integridade esquelética e com metástases ósseas dolorosas de qualquer local
preservação da qualidade de vida. primário, principalmente próstata, mama e pulmões.
A resposta global das metástases ósseas à As doses de radiação dos esquemas mais comuns
radioterapia para reduzir a dor é de cerca de 80%. são tratamento de fracionamento único com 8 Gy,
Aproximadamente 3 a cada 10 pessoas (30%) não tratamentos de curta duração com quatro vezes 5
sentirá dor durante um mês após o tratamento Gy ou cinco vezes 4 Gy, ou regimes mais
radioterápico. Para pelo menos 4 a cada 10 pessoas prolongados com 10 vezes 3 Gy ou 20 vezes 2 Gy.
(40%) o tratamento reduz ao dor pela metade. A As frações com doses únicas de 4 e 5 Gy são
experiência subjetiva do paciente confirma a eficácia aplicadas três a quatro vezes por semana, e frações
da radioterapia em reduzir a dor causada por de 3 e 2 Gy costumam ser aplicadas cinco vezes por
metástases ósseas e em melhorar a qualidade de semana, até o total de 30 Gy a 40 Gy. O alívio
vida. Cerca de 6 a 12 semanas após o tratamento o máximo da dor pode ser esperado após um mês.
osso se repara e fica mais forte. O nível e a duração do alívio da dor não dependem
A eficiência paliativa local pode ser expressa do regime de fracionamento aplicado. Não foram
dependendo do tempo para a progressão da dor, do encontradas diferenças significativas em termos de
número de fraturas patológicas e da necessidade de alívio da dor e uso de analgésicos com frações
novo tratamento local. Dependendo do intervalo únicas, tratamentos de curta duração ou regimes
entre as avaliações e de como os resultados foram mais prolongados. No entanto, as taxas de re-
obtidos, a duração documentada do alívio da dor é tratamento e de fraturas patológicas são mais altas
de mais de 6 meses em pelo menos 50% dos após radioterapia de fração única porque uma
pacientes, e o primeiro aumento no valor da dor em importante recalcificação das metástases ósseas
escalas de mensuração pode ser esperado depois de osteolíticas após a radiação está relacionada a
um ano em 40% dos pacientes. regimes mais prolongados.
A incidência relatada de fraturas patológicas após
radioterapia paliativa de metástases ósseas é baixa e A re-irradiação é possível?
varia entre 1% e 10%. A recalcificação de
metástases ósseas osteolíticas após seis meses,
Um segundo curso de radioterapia paliativa do osso
definida como o aumento de densidade na região de
afetado é possível e útil se o primeiro curso não
331

funcionou bem ou se a dor foi inicialmente estendidas e de infiltrações nervosas, as indicações


resolvida mas aumentou novamente após algumas incluem dor pélvica causada por câncer retal ou
semanas ou meses. A decisão de tratar novamente câncer de colo recidivante não operável. Nessas
deve levar em consideração qualquer estrutura situações paliativas, pode-se obter importante alívio
sensível no volume irradiado, por exemplo medula da dor com apenas uma pequena redução da massa
espinhal ou rins. A indicação deve ser confirmada pélvica. Setenta por cento dos pacientes com dor
por um radioterapeuta. pélvica obtêm alívio após a irradiação.
A dose da radioterapia paliativa deve ser ajustada às
Quais são os efeitos situações individuais e aos órgãos em risco. Os
regimes mais usados são tratamentos de dose única
colaterais da radioterapia de 8 Gy, ou regimes hipofracionados com doses
paliativa externa? totais de 20 a 30 Gy.
Para massas pélvicas, respostas iguais são obtidas
A radioterapia paliativa tem poucos efeitos com 30 Gy em 10 frações e com 20 Gy em cinco
colaterais. A toxicidade aguda é leve, raramente frações, dados em quatro frações por semana. Os
exigindo outros cuidados. Independentemente do portais opostos são os mais comuns; deve-se
regime de fracionamento, a incidência de toxicidade considerar vários portais se o diâmetro
aguda ou tardia grau 2 ou acima é baixa, com uma anteroposterior for maior do que 22 cm e não
taxa de aproximadamente 10 a 15% (aguda) e 4% houver fótons de energia mais alta (10 MV).
(tardia). Cansaço pronunciado ou apatia são os
efeitos colaterais gerais mais comuns, mas a Pérolas de sabedoria
recuperação ocorre poucas semanas após o
tratamento. Efeitos mais específicos da radioterapia  As complicações dolorosas do câncer, como
paliativa externa dependem do local do tratamento. dor óssea, devem ser passíveis de
Enquanto a radioterapia dos ossos das extremidades radioterapia se a dor é anatomicamente
pode afetar localmente a pele com um leve eritema localizada e não difusa, para que o alvo da
reversível, a predominância de efeitos adversos radioterapia possa ser definido (por ex.,
gastrintestinais, como emese e diarréia pode ser metástase osteolítica dolorosa única após
notada se os intestinos ou o estômago forem câncer de mama) e se a expectativa de vida
envolvidos. O tratamento de suporte com causada por toda a situação tumoral puder
antieméticos ou agentes antidiarreicos pode ser ser de alguns meses ou mais.
indicado sintomaticamente. Os efeitos colaterais  Dor oncológica relacionada a expectativa
costumam aparecer gradualmente durante o curta de vida deve ser tratada com
tratamento e podem durar por uma ou duas analgésicos apenas. O tempo e o esforço em
semanas após seu término. termos de locomoção e acomodações para o
tratamento radioterápico, os custos, a
E a radioterapia para complexidade técnica da radioterapia devem
tumores localmente ser comparados aos benefícios (por ex.,
metástases osteoblásticas de um carcinoma
avançados e metástases em de próstata ou carcinoma retal recorrente
partes moles e órgãos? pré-sacral).
 A radioterapia é o esteio da paliação de
Como no caso da dor de metástases ósseas, a câncer metastásico de próstata sintomático e
radioterapia é eficaz para dor oncológica causada é usada com mais frequência para paliação
por recidivas e metástases viscerais. Além de toda a de lesões ósseas metastásicas dolorosas,
dor oncológica direta de situações localmente resultando em alívio da dor em cerca de 80 a
90% dos pacientes e, portanto, menor [2] Bodei L, Lam M, Chiesa C, Flux G, Brans B, Chiti A,
dependência de analgésicos. Giammarile F; European Association of Nuclear Medicine
(EANM). EANM procedure guideline for treatment of
 A radioterapia paliativa para metástases refractory metastatic bone pain. Eur J Nucl Med Mol Imaging
ósseas é muito eficaz e deve ser aplicada 2008;35:1934–40.
com uma dose única de 8 Gy na maioria dos [3] Fine PG. Palliative radiation therapy in end-of-life care:
pacientes porque regimes de várias frações evidence-based utilization. Am J Hospice Pall Care
não oferecem melhor alívio importante da 2002;19:166–70.
dor. Os regimes mais prolongados devem [4] Souchon R, Wenz F, Sedlmayer F, Budach W, Dunst J,
Feyer P, Haase W, Harms W, Sautter-Bihl ML, Sauer R;
ser usados em situações paliativas com German Society of Radiation Oncology (DEGRO). DEGRO
expectativa de vida de mais de 6 meses practice guidelines for palliative radiotherapy of metastatic
porque as taxas de re-tratamento e fraturas breast cancer: bone metastases and metastatic spinal cord
patológicas são pequenas. compression (MSCC). Strahlenther Onkol 2009;185:417–24.
[5] Wu JS, Wong RK, Lloyd NS, Johnston M, Bezjak A,
Whelan T; Supportive Care Guidelines Group of Cancer Care
Ontario. Radiotherapy fractionation for the palliation of
Referências uncomplicated painful bone metastases—an evidence-based
practice guideline. BMC Cancer 2004;4:71.
[1] Bese NS, Kiel K, El-Gueddari Bel-K, Campbell OB,
Awuah B, Vikram B; International Atomic Energy Agency.
Radiotherapy for breast cancer in countries with limited
resources: program implementation and evidence-based
recommendations. Breast J 2006;12:S96–102.
333

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 41
A Função da Acupuntura na Abordagem da Dor
Natalia Samoilova e Andreas Kopf

durante duas semanas. Felizmente, ao longo das 3 semanas


Descrição de caso de tratamento, os sintomas regridem, permitindo a Mansur
uma mobilidade e movimentação quase completas.
Mansur, de 37 anos, com dor lombar aguda com irradiação
para a perna esquerda, vem para aconselhamento clínico. Conceitos básicos
Sofre de uma síndrome de dor radicular aguda, sem evidência
de qualquer défice neurológico relevante (incontinência Porque a Acupuntura se tornou tão popular na
urinária/intestinal, perda de sensibilidade ou paralisia abordagem da dor?
muscular). Explica a Mansur que não existe atualmente A Acupuntura como tratamento alternativo para a
qualquer indicação para cirurgia, uma vez que a sensação e a abordagem da dor está a tornar-se cada vez mais
função muscular não estão comprometidas. Planeia-se um popular. A principal razão é o número crescente de
tratamento conservador. Dada a etiologia da dor, os esteroides evidências acerca da eficácia da Acupuntura, embora
por via epidural e os anticonvulsivantes sistémicos seriam a estudos sobre eficácia (por ex. especificidade de
primeira opção terapêutica, mas não existe nenhum pontos de Acupuntura tradicionais
anestesista com formação em epidurais e não estão disponíveis comparativamente com pontos sham de colocação
anticonvulsivantes. Inicialmente, são administrados de agulhas) tenham demonstrado resultados
analgésicos simples, como o diclofenac e o tramadol, mas estes contraditórios. Uma baixa incidência de eventos
não aliviam a dor e Mansur regressa, queixando-se de que adversos e um elevado grau de satisfação dos
não consegue andar e sentar-se durante períodos prolongados. doentes são outros argumentos de importância para
Decide experimentar a Acupuntura. Têm de ser escolhidos o crescente recurso à Acupuntura nos países
determinados pontos de Acupuntura de acordo com os ocidentais. Outro motivo poderia ser o facto de que
sintomas e a doença subjacente: o contexto da medicina tradicional chinesa (MTC)
Em primeiro lugar, são tratados os pontos de considera o corpo humano como um «todo», e não
Acupuntura no local da dor: BL40 e BL60, e, em seguida, como um complexo de sintomas individuais. Existe
Du-mai 26. uma forte tendência para o modelo biopsicológico
Em seguida, são selecionados pontos de dor: BL2, da gestão da dor, uma ideia que se tornou parte
B24, BL52, BL54, BL36, GB30 e GB34. As agulhas integrante da gestão da dor moderna. Outro motivo
mantêm-se inseridas durante 10-20 minutos todos os dias, é o facto de que, em pequenos hospitais remotos
durante uma semana, e posteriormente, a cada dois dias, com fornecimento limitado de fármacos, a
Acupuntura permanece por vezes um dos poucos fraco denunciava doença. O objetivo do diagnóstico
métodos possíveis de tratamento capaz de oferecer do pulso, à semelhança dos outros métodos de
um alívio da dor. diagnóstico, consistiu sempre em obter informação
Além disso, a Acupuntura pode ser uma alternativa útil acerca do que se passa no interior do corpo, o
razoável em doentes com contraindicações a vários que causou a doença, o que pode ser feito para
medicamentos ou que não toleram os efeitos retificar o problema e quais as probabilidades de
secundários, ou em situações em que os sucesso. O «calor» e «frio» ou o «excesso» ou as
medicamentos são demasiado dispendiosos. «deficiências» são categorias típicas utilizadas para
Quando usados de forma racional e como parte de estabelecer um diagnóstico nesta abordagem. O
um programa de gestão da dor abrangente, a médico deve tomar o pulso em condições
Acupuntura pode ser eficaz, em particular se o adequadas – seguindo procedimentos estabelecidos
doente for recetivo à mesma. Outra vantagem é o – e deve então traduzir o pulso único sentido numa
facto de a Acupuntura poder ser simplesmente ou mais das categorias de formas de pulso. A
aplicada sem apoio ou dispositivos técnicos. As iconografia mais corrente envolve 24-28 formas
únicas condições prévias são a presença de um diferentes de pulso! Essencialmente, existem nove
acupunctor experiente e o fornecimento de agulhas tomadas de pulso em cada pulso: uma para cada um
esterilizadas para Acupuntura. dos três dedos onde é tomado o pulso em cada um
dos três níveis de pressão. Este exemplo oferece ao
O que se tenta gerir: a dor ou a doença? leitor a possibilidade de compreender, por um lado,
À medida que a globalização acelera, começam a a complexidade da MTC, e, por outro, as diferenças
espalhar-se diferentes culturas e filosofias de fundamentais relativamente à abordagem da
medicina pelo mundo. É muito tentador adaptar medicina ocidental.
rapidamente uma ideia nova e a MTC (incluindo a É necessário recordar que a MTC foi
Acupuntura) – devido à sua abordagem holística – desenvolvida há muito tempo, quando o
tem uma imagem muito positiva. Os cursos conhecimento sobre a fisio(pato)logia era apenas
intensivos de Acupuntura aos fins de semana, com rudimentar. Como tal, não se deve encarar como
grande adesão na Europa e em países de expressão um desvio da tradição ocidental o facto de se
inglesa, demonstram que estamos mais do que promover o recurso à Acupuntura neste capítulo,
dispostos a incorporar novas ideias. Embora faça possivelmente fora dos conceitos da MTC. A
sempre sentido alargarmos os nossos próprios essência deve ser que a MTC promove a
horizontes, devemos perguntar-nos se é assim tão subjetividade do doente e do terapeuta, o que
fácil a transferência transcultural da MTC, incluindo representa um aspeto importante, que por vezes se
a Acupuntura. perdeu na medicina técnica ocidental, que tenta
A título de exemplo, a MTC recorre à fragmentar o doente em sintomas. Devido à
Acupuntura, não como terapêutica única isolada, abordagem subjetiva, a Acupuntura permanece uma
mas sim como parte de um conceito de diagnóstico troca terapêutica singular entre o doente e o médico.
e tratamento que inclui o diagnóstico do pulso, a Deve notar-se, contudo, que a transferência da
fisioterapia e os tratamentos dietéticos. O Acupuntura para a medicina ocidental causou
diagnóstico do pulso pertence ao conjunto original alguma confusão. Por conseguinte, a prática atual da
de quatro métodos de diagnóstico descritos como Acupuntura não reflete necessariamente a
parte essencial da prática da MTC. O termo chinês Acupuntura tradicional, mas sim uma interpretação
que indica um vaso sanguíneo ou um meridiano é ocidental dos textos chineses, o que conduz a
Mai e o mesmo termo é usado para descrever o incompreensões e más interpretações. Colocar a
pulso. A palpação do pulso é chamada de Qiemai, Acupuntura num contexto explicativo de «contra-
que faz parte do método de diagnóstico geral da irritação», «teoria do controlo do portão – gate-
palpação ou sensação do corpo. O diagnóstico do control» e «inibição endógena da dor» pode, por um
pulso era mencionado em manuais médicos lado, salvar a Acupuntura do «charlatanismo» e, por
ancestrais chineses. Um pulso demasiado forte ou outro, ajudá-la a encontrar o seu lugar enquanto
335

terapêutica complementar aceite. Uma vez que, pode ser interpretada simplesmente como uma
desta forma, a aprendizagem da Acupuntura se pode estagnação do Qi e ser tratada de forma pragmática,
tornar mais fácil, tornar-se-á também possível com Acupuntura ortopédica chinesa.
distribuir conhecimento e prática da Acupuntura em A MTC também se concentra no
países de baixos recursos. Será interessante observar «equilíbrio» interior do doente. Segundo esta visão,
se e de que modo a nova iniciativa, o «Projeto Pan- um desequilíbrio no organismo pode resultar de
Africano sobre Acupuntura», no Quénia e no respostas emocionais inadequadas, como excesso de
Uganda, conseguirá integrar a Acupuntura nos ira, sobre-excitação, auto-comiseração, sofrimento
cuidados clínicos de rotina. profundo ou medo. Os fatores ambientais, como o
frio, a humidade, o vento, a secura e o calor também
Qual a diferença entre os conceitos orientais e podem criar desequilíbrio, assim como outros
ocidentais de medicina? fatores como uma dieta inadequada, excesso de
A Acupuntura tem sido uma componente essencial sexo, trabalho e exercício. Para restabelecer o
dos cuidados de saúde primários na China nos equilíbrio, o acupunctor estimula os pontos de
últimos 5000 anos. É usada extensivamente para Acupuntura que contrariam esse desequilíbrio.
uma variedade de objetivos clínicos, desde a Desta forma, acredita-se que a Acupuntura volta a
prevenção e o tratamento da doença até ao alívio da equilibrar o sistema de energias e restabelece a saúde
dor, passando mesmo pela anestesia dos doentes ou previne o desenvolvimento da doença. O
para cirurgia. Mas, tal como acontece na maioria das testemunho escrito mais antigo deste conceito
práticas clínicas orientais, a ênfase da Acupuntura é encontra-se no Nei Jing (o clássico do Imperador
colocada na prevenção. Na MTC, o acupunctor era Amarelo sobre medicina interna). Crê-se que este
considerado com imenso respeito por permitir que documento date de cerca de 200 a.C. a 200 d.C. e é
os doentes vivessem uma vida longa e saudável (e, um dos mais abrangentes antigos manuais médicos.
caso um doente adoecesse, o médico tinha de tratá-
lo gratuitamente!). Qual a ideia por detrás dos pontos de
Na teoria oriental, a compreensão do corpo Acupuntura?
humano baseia-se na compreensão holística do Tal como descrito, a ideia de harmonia e equilíbrio é
universo, tal como descrito pelo Taoismo, e o muito importante na Acupuntura. O conceito
tratamento da doença baseia-se principalmente no subjacente ao equilíbrio são os princípios opostos
diagnóstico e na distinção das síndromes. A do yin e do yang. O princípio segundo o qual cada
abordagem oriental trata os órgãos Zang-Fu como o pessoa é regida por forças opostas mas
centro do corpo humano. Crê-se que os tecidos e os complementares de yin e yang é central no
órgãos estão ligados através de uma rede de canais e pensamento chinês. O yin e o yang são os opostos
vasos sanguíneos no interior do corpo humano. O que constituem o todo. Não podem existir um sem
tratamento clínico inicia-se com a análise de todo o o outro e uma situação ou pessoa nunca poderia ser
sistema e concentra-se depois na correção das 100% yin nem 100% yang. A vida é possível apenas
alterações patológicas, através do reajuste das devido a uma interação equilibrada entre estas
funções dos órgãos Zang-Fu. A avaliação de uma forças.
síndrome inclui, não apenas a causa, o mecanismo, a Segundo a MTC, estas forças
localização e a natureza da doença, mas sim também complementares de yin e yang influenciam a energia
a confrontação entre o fator patogénico e a da vida ou Qi (pronunciado «chi»). Crê-se que o Qi
resistência do organismo. Por conseguinte, duas circula por todo o corpo por canais invisíveis
pessoas com uma doença idêntica podem ser (outras traduções do termo chinês jing luo incluem
tratadas de formas diferentes e, por outro lado, «conduta» e «meridiano»). Os pontos de Acupuntura
doenças diferentes podem resultar na mesma (ou orifícios, tradução mais adequada do termo
síndrome e serem tratadas de formas semelhantes. chinês xue) são as localizações onde o Qi dos canais
Isto é verdade para algumas doenças crónicas. A dor se ergue perto da superfície corporal. Foram
descritos doze canais principais, seis dos quais são Uma sensibilidade local aumentada ao palpar os
yin e seis yang, e inúmeros canais menores que doentes identifica um ponto Ashi. Por conseguinte,
formam uma rede de canais de energia em todo o estes pontos não têm nomes específicos nem
corpo. Cada meridiano está associado a, e localizações definidas. Considera-se que os pontos
denominado de acordo com um órgão ou uma Ashi representam a fase mais antiga da evolução dos
função. Os principais meridianos são os pulmões, os pontos de Acupuntura na China e podemos
rins, a vesícula biliar, o estômago, o baço, o coração, considerá-los pontos de Acupuntura apropriados
o intestino delgado, o san jiao («triplo aquecedor») e para uma abordagem fisiológica da dor pela
o pericárdio. Acredita-se que quando o Qi flui Acupuntura. No entanto, na abordagem original
livremente por estes meridianos, o corpo é (chinesa) à Acupuntura, os pontos que o acupunctor
equilibrado e saudável, mas se a energia for seleciona podem não estar necessariamente no local
bloqueada, estagnar ou enfraquecer, pode ocorrer da dor.
doença física, mental ou emocional.

Qual o aspeto de um meridiano?


Um meridiano não segue estruturas anatómicas
convencionais e a designação de meridianos só pode
ser compreendida no contexto da MTC. A
nomenclatura segue uma determinada lógica neste
contexto. A localização dos meridianos (e pontos de
Acupuntura) pode diferir dependendo da literatura
de referência a que se recorre (o que também se
aplica aos profissionais chineses).

Como são classificados os vários pontos de


Acupuntura?
Embora as localizações e as funções dos pontos de Como se incorpora esta filosofia clínica muito
Acupuntura possam variar consoante os diferentes diferente sobre a doença nos conceitos médicos
autores, a principal estrutura de classificação é ocidentais?
bastante uniforme. Em primeiro lugar, os pontos de Pelo uso frequente de aspas, deve tornar-se óbvio
Acupuntura situam-se ao longo de 12 meridianos que a Acupuntura não é facilmente transferida nem
principais «associados a órgãos». Depois, existem traduzida para o conceito ocidental de medicina.
oito meridianos curiosos que são considerados Por conseguinte, deve ter-se em consideração que as
reservatórios que fornecem Qi e sangue aos 12 definições e termos orientais não refletem
canais principais. Marcados ao longo destes necessariamente uma visão fisiológica, mas sim um
meridianos estão mais de 400 pontos de conceito desenvolvido sem o conhecimento da
Acupuntura, que também foram classificados pela fisiologia moderna através da observação e da
Organização Mundial de Saúde. Encontram-se descrição. Existe um grande número de escolas de
indicados por nome, número e pelo meridiano ao Acupuntura diferentes, que utilizam localizações e
qual pertencem. Para além da classificação, sabemos seleções de pontos diferentes. Assim sendo, não é
por experiência que pontos no mesmo meridiano possível interpretar a Acupuntura e redefini-la numa
podem ter efeitos comuns. Outro tipo de pontos de abordagem pragmática da dor.
Acupuntura são os «pontos extraordinários». Têm Estudos recentes de grande escala na
nomes específicos e localizações definidas, mas não Alemanha enriqueceram muito este debate,
são atribuídos aos meridianos. Podem ser demonstrando que a Acupuntura em si, mas não o
selecionados em determinados tipos de doenças. Os cumprimento rigoroso de regras tradicionais
pontos Ashi («pontos sensíveis») são frequentemente clássicas chinesas para a seleção de pontos de
usados em doentes com síndromes de dor aguda. Acupuntura, é eficaz no tratamento da dor.
Consequentemente, adaptar a Acupuntura
337

tradicional chinesa a uma seleção simplificada de de peptídeo relacionado com o gene da calcitonina
pontos de Acupuntura para uma utilização prática (CGRP) que aumenta a perfusão local, e uma
pode ser uma solução pragmática. Esta estratégia resposta de contractura local dos músculos seguida
permitiria ao profissional de saúde utilizar a de relaxamento quando são usados os pontos trigger
Acupuntura sem ter de se especializar submetendo- em Acupuntura. Curiosamente, uma grande
se a uma formação extensiva de prática clínica. Os proporção dos pontos trigger coincide com os
autores estão bem conscientes de que este tipo de pontos de Acupuntura chineses.
abordagem será contestado pelos acupunctores
tradicionais, mas as evidências científicas podem A acupuntura abordagem
permitir este tipo de abordagem simplificada da
Acupuntura.
da dor
Como se explicam os efeitos da Acupuntura O que é mais eficaz na gestão da dor crónica?
através de conhecimentos fisio(pato)lógicos Como sempre, os especialistas estão convencidos de
modernos? que o seu próprio método é superior, pelo que os
Historicamente, acreditava-se que os pontos de acupunctores têm tendência a considerar a
Acupuntura eram «orifícios que permitiam a Acupuntura uma panaceia (que cura tudo).
entrada» nos meridianos ou canais para permitir a Contudo, os terapeutas experientes no domínio da
alteração de «fluxos de energia». Na Acupuntura dor que utilizam a Acupuntura e são submetidos a
tradicional chinesa, estes orifícios constituem uma uma formação aprofundada têm uma visão mais
porta para influenciar, redirecionar, aumentar ou sofisticada: criar um antagonismo entre estas duas
diminuir a substância vital do corpo, o Qi, abordagens da Acupuntura e a gestão convencional
corrigindo assim muitos dos desequilíbrios da dor seria contraproducente para a Acupuntura a
mencionados anteriormente. Estes conceitos longo prazo, uma vez que os seus efeitos são
tradicionais chineses podem ser irrelevantes para a consideráveis mas não excecionais. Por conseguinte,
compreensão do impacto da Acupuntura, uma vez os especialistas da dor tentam incorporar a
que a abordagem fisiológica moderna conseguiu Acupuntura como uma técnica complementar da
demonstrar que a Acupuntura tem um efeito gestão regular da dor sob a forma de um módulo,
neuromodulador sobre partes do sistema nervoso juntamente com a terapêutica manual, os exercícios
periférico e central e sobre os neurotransmissores. terapêuticos e a psico e farmacoterapia numa
Estes efeitos não parecem ser específicos dos complexa abordagem terapêutica, reabilitativa e
pontos de Acupuntura e são, pelo menos preventiva.
parcialmente, um fenómeno psicofisiológico.
Alguns efeitos analgésicos importantes e outros O que devemos usar para diagnosticar e avaliar
efeitos da Acupuntura incluem a libertação central a dor se pretendermos recorrer à Acupuntura?
de endorfinas, serotonina, norepinefrina, ácido O recurso à Acupuntura não elimina a necessidade
gama-aminobutírico e neuroquinina A, entre outras de estabelecer uma história clínica rigorosa, de
substâncias. Existe evidência de ativação do sistema efetuar um exame físico ao doente e de realizar
inibitório descendente e de ativação dos sistemas diagnósticos laboratoriais e funcionais. Antes de
inibitórios segmentário e hetero-segmentário ao aplicar a Acupuntura, deve ser estabelecido um
nível espinal (controlos inibitórios nocivos difusos). diagnóstico adequado e deve decidir-se se a
Foram descobertos outros mecanismos supra- Acupuntura ou outro modo terapêutico é mais
espinais envolvidos na analgesia por Acupuntura no promissor. A dor é avaliada, como sempre,
sistema límbico (processamento afetivo dos utilizando a escala visual analógica (EVA ) para
estímulos de dor), no córtex somato-sensorial determinar a intensidade, a duração e o carácter da
secundário e no hipotálamo. Os efeitos locais da dor, bem como o estado psicológico/emocional do
Acupuntura incluem a libertação de substância P e doente e a sua motivação para o tratamento. Podem
ser usados vários testes e questionários para a
definição da dor, se adequado, conforme indicado complicações. É necessário proceder com cuidado
nos respetivos capítulos. em determinadas zonas do corpo onde estruturas
vulneráveis se encontram próximas da pele, como o
Como tratar os pontos de Acupuntura? pulmão na zona torácica ou os vasos sanguíneos e
As agulhas de Acupuntura são extremamente finas e nervos superficiais, onde não devem ser aplicadas
muitas vezes podem penetrar na pele sem causar agulhas. Por este motivo, é essencial possuir um
qualquer dor. Algumas zonas podem ser mais conhecimento básico de anatomia.
sensíveis e sentir uma pequena pressão quando é
inserida a agulha, mas esta sensação dura menos de O que se pode dizer acerca dos custos da
um segundo. Assim que as agulhas estão colocadas, Acupuntura?
não deve sentir-se dor, mas apenas uma sensação de Devido à crescente popularidade da Acupuntura, as
pressão ténue (conhecida como «sensação de Qi») agulhas de Acupuntura encontram-se agora
que reflete a ativação das fibras A-beta. amplamente disponíveis. Os custos podem variar,
Simultaneamente, o acupunctor sente que a agulha mas devem ser definidos comparativamente com as
está «colocada». poupanças conseguidas com um uso inferior ou de
A Acupuntura é um procedimento médico menor duração de farmacoterapia. Dependendo do
extremamente seguro quando realizado por um fornecedor, uma caixa de cem agulhas pode custar
profissional qualificado. As agulhas são pré- cerca de 3-9 euros.
esterilizadas, em aço inoxidável, de utilização única e
descartáveis. As agulhas de Acupuntura medem É possível tratar a dor com Acupuntura em
geralmente 0,3 mm de espessura (calibre 30) e 3-6 todos os doentes?
cm de comprimento. A aplicação da agulha pode ser Teoricamente, todos os doentes podem beneficiar
realizada com o doente em qualquer posição, desde da Acupuntura, mas – até agora – os estudos
que este se sinta confortável e esteja relaxado, mas é realizados só conseguiram demonstrar evidências
recomendável adotar a posição supina durante o para síndromes selecionadas. A Acupuntura nunca
tratamento, uma vez que uma minoria de doentes deve ser usada – após diagnóstico adequado
poderá sentir tonturas. As agulhas de Acupuntura segundo a medicina ocidental – como método de
seguram-se entre o polegar, o indicador e o anelar, tratamento exclusivo, uma vez que pode impedir os
com a agulha paralela ao indicador. A agulha deve doentes, como os doentes oncológicos, de receber
ser inserida rapidamente, a fim de minimizar outros tratamentos eficazes.
sensações dolorosas. O ângulo de inserção é As síndromes típicas em que o recurso à
geralmente entre 60 e 90 graus. Dependendo da Acupuntura se revela eficaz são as seguintes:
região, a profundidade de inserção é geralmente de  Cefaleias (por ex. enxaquecas, cefaleias de
0,5 e 5 cm. As agulhas são geralmente mantidas nos tensão)
respetivos pontos de aplicação durante 15-30  Lombalgia
minutos. Durante este tempo, podem ser  Cervicalgia
manipuladas para alcançar um efeito de tonificação Outras indicações com eficácia menos
ou sedação do Qi, de acordo com a situação. As comprovada incluem:
manipulações de agulhas envolvem geralmente
 Osteoartrite
elevar, empurrar, torcer e rodar, de acordo com as
 Síndromes de dor intestinal
especificações do tratamento para o problema de
saúde em questão. São inseridas agulhas finas nos  Dor isquémica vascular
pontos de Acupuntura.  Dor e causalgia pós-amputação
 Síndromes de dor crónica pós-cirurgia e
Quais as complicações e efeitos secundários da pós-traumática, por ex. síndrome pós-
Acupuntura? toracotomia
Se o profissional for devidamente qualificado, são
raramente observados efeitos secundários e
339

A Acupuntura também funciona na dor aguda, Passo um:


como a dor do pós-operatório? Começar sempre com pontos «distantes» para ativar
Existem fortes evidências provenientes de estudos e os diversos sistemas antinociceptivos e escolher
meta-análises de que a Acupuntura tem uma função entre as seguintes localizações empíricas para a
na redução dos efeitos secundários associados aos analgesia (locais ipsi e contralaterais):
opióides, como náuseas, vómitos e sedação.  ST 36 (estômago): aprox. 4 cm abaixo da
rótula numa depressão lateral ao ligamento
Como posso aplicar Acupuntura para a dor sem
patelar, lateral na largura de um dedo da
conhecer a seleção complicada de pontos de
borda anterior da tíbia
Acupuntura utilizando o sistema de
 BL 40 (bexiga): ponto mediano da prega
meridianos?
transversal da fossa poplítea, entre os
É difícil responder a esta pergunta. Por um lado, a
tendões dos bicípites femoral e
visão geral da Acupuntura é que pode ser usada
semitendinoso
apenas no âmbito da MTC. Por conseguinte, deveria
ser necessária uma formação aprofundada para  ST 44 (estômago): próximo da margem do
conseguir compreender a abordagem à doença e os tecido conjuntivo, entre os 2.º e 3.º ossos
conceitos de terapêutica fundamentalmente metatársicos numa depressão distal e lateral
diferentes. Os cursos de formação (básicos) à 2.ª articulação metatársica
aprovados habituais para a Acupuntura envolvem  LI 4 (intestino grosso): centro do 2.º osso
mais de 200 horas de teoria e seminários de estudo. metacárpico no lado radial
Por outro lado, estudos recentes, como os estudos  PC 6 (pericárdio): cerca de 3 cm acima da
GERAC na Alemanha, sugerem que pode valer a prega do pulso, entre os tendões do palmar
pena usar a Acupuntura de forma simplificada e longo e do flexor radial do carpo (também
pragmática, uma vez que os verdadeiros efeitos da eficaz para as náuseas)
Acupuntura podem resultar de contra-irritação e  LI 11 (intestino grosso): na extremidade
modulação da sensibilidade nervosa central e não lateral da prega cubital transversal, a meio
estarem estritamente dependentes dos conceitos caminho entre uma linha entre o lado radial
clássicos de seleção de pontos de Acupuntura. do tendão do bicípete braquial e o
Contudo, este conceito não é amplamente epicôndilo lateral do úmero
reconhecido e a literatura científica existente não  KI 6 (rim): na depressão abaixo da
avaliou esta abordagem pragmática. extremidade do maléolo medial
Dado que a técnica de colocação das agulhas  SP 6 (baço/pâncreas): aprox. 4 cm
é simples e que as agulhas de Acupuntura estão diretamente acima da extremidade do
amplamente disponíveis e são relativamente baratas, maléolo medial na borda posterior da tíbia
seria uma pena não usar a Acupuntura devido a falta Nas cefaleias, utilizar:
de facilidades de formação adequadas. Contudo, são  ST 44 (estômago): próximo da margem do
indispensáveis pelo menos alguma formação prática tecido conjuntivo, entre os 2.º e 3.º ossos
e teórica, bem como conhecimento anatómico, para metacárpicos, numa depressão distal e lateral
que a Acupuntura constitua uma técnica de gestão da 2.ª articulação metatársica
da dor eficaz e segura.
 GB 34 (vesícula biliar): numa depressão
Em situações em que não esteja disponível
anterior e inferior à cabeça da fíbula
sequer um mínimo de formação, é aconselhável
 ST 44 (estômago): próximo da margem do
substituir a técnica das agulhas por acupressão com
tecido conjuntivo entre os 2.º e 3.º ossos
estimulação superficial dos pontos, utilizando
metatársicos, numa depressão distal e lateral
também pequenas hastes de madeira. Um estudo
da 2.ª articulação metatársica
recente de Cochrane (Furlan et al. [1]) sugere a
eficácia da massagem nos pontos de Acupuntura.
Passo dois:
Escolher 2-4 pontos no local da dor (pontos Ashi)
Agradecimento
como pontos de Acupuntura.
Os autores gostariam de agradecer ao Dr. D. Irnich
Passo três: do Centro de Gestão da Dor da Universidade
Escolher um ponto segmentar correspondente à Ludwig Maximilian, em Munique, na Alemanha,
inervação do dermátomo da região dolorosa, ao pelos seus conselhos para a elaboração deste artigo.
nível vertebral correspondente, e colocar a agulha
no nível vertebral identificado, alguns centímetros Referências
paravertebralmente.
[1] Furlan AD, Imamura M, Dryden T, Irvin E. Massage
for low-back pain. Cochrane Database Syst Rev 2008:
Passo 4:
CD001929.
Escolher 2-4 pontos espelhados no lado [2] Madsen MV, Gøtzsche PC, Hróbjartsson A.
contralateral para modulação segmentária. Acupuncture treatment for pain: systematic review of
randomised clinical trials with acupuncture, placebo
Pérolas de sabedoria acupuncture, and no acupuncture groups. BMJ
2009;338:3115.
[3] Manheimer E, Linde K, Lao L, Bouter LM, Berman
 Embora a Acupuntura exista há séculos, a BM. Meta-analysis: acupuncture for osteoarthritis of
sua eficácia tem de ser comprovada pela the knee. Ann Intern Med 2007;146:868-77.
[4] Manheimer E, White A, Berman B, Forys K, Ernst E.
medicina baseada na evidência.
Meta-analysis: acupuncture for low back pain. Ann
 De acordo com literatura recente, existe um Intern Med 2005;142:651-63. [5] Trinh KV, Graham N,
número de indicações na abordagem da dor Gross AR, Goldsmith CH, Wang E, Cameron ID, Kay
em que a Acupuntura pode ser aplicada com T; Cervical Overview Group. Acupuncture for neck
disorders. Cochrane Database Syst Rev
sucesso.
2006;19:3:CD004870.
 No entanto, hoje em dia, poderá ser mais [5] Sun Y, Gan TJ. Acupuncture for the management of
racional recorrer à Acupuntura fora do chronic headache: a systematic review. Anesth Analg
conceito da medicina tradicional chinesa, de 2008;107:2038-47.
acordo com o conceito de abordagem [6] Sun Y, Gan TJ, Dubose JW, Habib AS. Acupuncture
and related techniques for postoperative pain: a
integrativa da abordagem da dor dentro do systematic review of randomized controlled trials. Br J
conceito biopsicossocial da dor. Anaesth 2008;101:151-60.
 Em particular na abordagem da dor, parece
ser um conceito atualizado combinar Sítios na Web:
bloqueios, farmacoterapia e Acupuntura,
bem como fisio e psicoterapia. www.acupuncture.com
www.acupuncture.com.au
www.pain-education.com
http://nccam.nih.gov/health/acupuncture/
www.tcmpage.com/index.html
www.panafricanacupuncture.org (Projeto Pan-africano sobre
Acupuntura, Allen Magezi, coordenador no Uganda)
341

Planeamento e Organização da Gestão da Dor


Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 42
Como Desenvolver um Plano de Tratamento da Dor
M.R. Rajagopal

“Estou interessado em iniciar um serviço de dor. países industrializados. A educação médica é dirigida
Mas ninguém mais parece interessado. E não há ao diagnóstico e à cura, e o alívio da dor não é
recursos. O que posso fazer?”, são perguntas ensinado na maioria das escolas de medicina e de
frequentes em países em desenvolvimento. Quem enfermagem. Em geral, a abordagem é orientada
pergunta costuma ser uma pessoa de bom coração para a doença ou síndrome e não para o paciente ou
interessada em aliviar o sofrimento humano, mas sintoma. Os profissionais portanto não entendem
que não sabe qual deve ser a próxima etapa. A bem o conceito da necessidade de alívio da dor e
ausência de um senso de direção costuma resultar têm um medo desnecessário dos analgésicos,
na perda de entusiasmo e na desistência de lutar. principalmente dos opióides. Mesmo quando
Este capítulo pretende prestar algumas informações superam esse medo, em geral eles não conhecem os
úteis a qualquer aspirante que deseje desenvolver fundamentos da avaliação e do tratamento da dor.
um plano de tratamento da dor sem se desgastar. Administradores: A “opiofobia” resultou em
regulamentação rigorosa dos narcóticos e também
Quais são as principais em dificuldade na avaliação do alívio da dor. Além
disso, a dor crônica não é uma “doença assassina” e
barreiras para avaliar o por isso é posta de lado nas estatísticas e recebe
alívio da dor? pouca atenção.
Público: O público não sabe que é possível aliviar a
Falta de conhecimento é a principal barreira para avaliar dor e costuma aceitá-la como inevitável. O público
o alívio da dor. É preciso lembrar que qualquer também tem medo do potencial de “dependência”
mudança sofre resistência em qualquer lugar do dos opióides.
mundo. É necessário esforço sustentado para Disponibilidade de medicamentos: O medo bastante
introduzir uma nova forma de pensar. Melhorar a difundido dos opióides resultou em restrições
conscientização geral é essencial para superar tal complicadas para o licenciamento de opióides e
resistência. práticas de prescrição. O custo muito alto dos
Profissionais: Devido à falta de edução profissional medicamentos e de outras medidas terapêuticas
sobre dor e seu tratamento, infelizmente os também é um fator limitante.
profissionais médicos e de enfermagem costumam Política institucional: Os serviços de dor não
ser a maior barreira à avaliação do alívio da dor. A costumam ser vistos como lucrativos, e os hospitais
explosão de conhecimento sobre a fisiologia e o costumam relutar em investir neles.
tratamento da dor, no momento, está limitada aos
343

Quais são os componentes tratamento dos pacientes devem fazer tal


treinamento como primeira etapa essencial.
essenciais para o Idealmente, tal treinamento deverá incluir todos os
desenvolvimento do três domínios de conhecimento, aptidão e atitude.
Damos a seguir uma tentativa de agrupar esses
serviço? programas de acordo com a duração e o tipo de
tratamento:
O esquema de ação sugerido a seguir leva em  Programas de educação à distância podem
consideração as barreiras comuns descritas acima. É transmitir conhecimento, mas são em geral
importante lembrar que todos os três lados do inadequados para transmitir aptidões ou
triângulo a seguir precisam ser abordados se o atitudes.
programa de alívio da dor quiser ter sucesso. Todos  Cursos introdutórios curtos de poucas horas
são necessários: pessoal com o treinamento a um ou dois dias. Oferecem algum
necessário, acesso a medicamentos essenciais conhecimento novo e são úteis para
baratos e um sistema administrativo favorável. Se sensibilizar os participantes sobre esse novo
faltar um desses três componentes, todo o sistema campo; mas raramente são capazes de
vai falhar naturalmente. mudar a prática. Ajudam a encontrar alguns
“neófitos” que possam querer estudar mais
Quais são os desafios com a medicina da dor.
relação à educação?  Cursos básicos de 1 a 2 semanas que
introduzem a matéria em maiores detalhes
mas em geral só conseguem atender ao
As necessidades educacionais dos profissionais
domínio do conhecimento. No lado
devem ser consideradas contra um antecedente em
positivo, eles podem estimular os
que gerações de profissionais dos países em
participantes a buscar mais treinamento e a
desenvolvimento não foram expostos ao tratamento
expandir os pontos básicos que aprenderam.
moderno da dor. O médico comum de um país em
desenvolvimento não foi treinado para distinguir  Cursos de certificação de várias semanas,
entre dor nociceptiva e dor neuropática. A que têm componentes didáticos e práticos
enfermeira comum nunca viu a dor ser medida na (clínicos). Os participantes ganham bastante
prática. Isso significa que a educação dos aqui nos três domínios de conhecimento,
profissionais deve incluir o ensino dos aptidão e atitudes para começar a praticar o
fundamentos. É importante que tal educação seja tratamento da dor, mas precisam de
adequada à realidade sócio-cultural local. Não é raro orientação constante.
que profissionais treinados em excelentes  Cursos de aprimoramento em regime de
instituições em países desenvolvidos comecem um tempo integral com ou sem certificação em
serviço de dor por conta própria em seus próprios 1 ou 2 anos, que preparam o participante
países em desenvolvimento e se sintam oprimidos para ser um médico independente de dor.
pelo tamanho dos problemas. Parte da dificuldade É importante lembrar que os serviços de
pode ser a tentativa de reproduzir todo o sistema tratamento da dor não podem ser realmente
ocidental. Os modelos regionais de educação sobre eficazes se permanecerem isolados da
dor que tiveram sucesso em Uganda e na Índia comunidade médica e de enfermagem em geral.
podem ser adotados para países individuais. A A adesão dos pacientes também não será boa
empresa ou a pessoa querendo implantar um porque, a menos que outros profissionais
programa de tratamento da dor precisa identificar o entendam o que você faz, os pacientes podem
programa de treinamento mais adequado disponível ser desestimulados a seguir seu tratamento.
na região. Os profissionais envolvidos no Portanto, o seguinte esquema de ação seria bom
para iniciar a prática:
mercado. Organizações, como os capítulos regionais
da Associação Internacional para o Estudo da Dor
(AIED/IASP) têm uma função muito importante
de influenciar políticas medicamentosas nacionais
ou regionais para que medicamentos acessíveis e
essenciais estejam disponíveis. Tal esforço, por
exemplo, resultou na disponibilidade de uma
semana de suprimento de morfina oral ao preço de
um filão de pão em Uganda.
 Primeiro, é preciso um programa
introdutório de defesa para o público
em geral e para os profissionais. Todos
Quais são os desafios de
os profissionais do hospital e da uma política institucional?
vizinhança devem ter a oportunidade de
participar de tal programa. Quanto mais Seja o serviço de dor parte de um hospital ou um
pessoas forem sensibilizadas, melhor a serviço independente, são necessárias algumas
resposta a seu serviço de tratamento da decisões políticas claras. Se o serviço tem sucesso, é
dor. Todos os profissionais envolvidos provável que a demanda seja enorme, e logo o
de alguma forma com o programa de serviço vai estar inundado de pacientes e o serviço
tratamento da dor, inclusive a vai considerar impossível atender a todos os
enfermagem, deve poder avaliar a dor e necessitados. Os pontos a seguir devem ser úteis
entender os fundamentos do tratamento como princípios orientadores.
da dor. Estabelecer metas realísticas: Pode ser prudente começar
 Segundo, os profissionais que tratam a com algo facilmente alcançável. Se o serviço é parte
dor devem todos ter no mínimo algumas de um grande departamento de anestesiologia que já
semanas de “mão na massa”, como o tem uma função considerável no tratamento pós-
curso de certificação mencionado acima. operatório, pode ser mais fácil começar com um
 Terceiro (e idealmente), pelo menos um programa de tratamento da dor pós-operatória. Um
ou dois membros da equipe devem, hospital do câncer pode achar mais fácil começar
assim que possível, obter o nível de com um ambulatório para tratamento da dor
especialização oferecido por programas oncológica. Um serviço independente pode achar
de aprimoramento em regime de tempo mais fácil começar com um serviço de dor crônica.
integral com ou certificação. Abordagem multidisciplinar: Idealmente, o tratamento
da dor deve ser um esforço multidisciplinar.
Quais são os desafios da Voluntários, assistentes sociais, enfermeiros, clínicos
gerais, anestesiologistas, oncologistas, neurologistas,
disponibilidade de psiquiatras e outros especialistas têm um papel a
medicamentos? desempenhar. No entanto, todas essas pessoas
sentadas em torno de uma mesa para cuidar de um
As questões relacionadas à disponibilidade de só paciente é um ideal que jamais será atingido.
opióides, principalmente questões legais, já foram Faria mais sentido ter um sistema de consultas
detalhadas em outro capítulo. A acessibilidade dos quando necessário. Ao mesmo tempo, quanto
medicamentos é um problema muito preocupante melhor for a interação entre o assistente social, o
nos países em desenvolvimento. Infelizmente, e enfermeiro e o terapeuta da dor, maior a
com frequência, os medicamentos mais possibilidade de um resultado melhor.
dispendiosos estão disponíveis nos países em
desenvolvimento enquanto que os mais baratos
estão desaparecendo lentamente e vão sair do
345

Quais são os desafios da alcançado. Portanto, o objetivo deve ser a melhora


da qualidade de vida e não apenas o alívio da dor.
meta do tratamento da dor? Em países desenvolvidos, duas correntes paralelas
de tratamento estão envolvidas – uma trata a dor
Qualidade de vida como objetivo: A meta do tratamento como sintoma e a outra presta “cuidados totais”.
deve ser melhorar a qualidade de vida e não apenas Mas na ausência de tal sistema, o terapeuta do país
tratar a dor como uma sensação. Todos os sintomas em desenvolvimento precisa representar o papel de
do paciente precisam ser tratados. Considerando médico da família também; ele precisa estar pronto
que ansiedade e depressão são parte do problema para oferecer controle geral dos sintomas e sua
álgico, deve haver exame de rotina dos pacientes em equipe deve poder oferecer suporte psico-sócio-
busca de problemas psico-sociais. espiritual. Em várias ocasiões, o envolvimento de
Parceria com o paciente e a família: O tratamento bem uma pessoa espiritual próxima da família pode
sucedido da dor significa uma parceria essencial ajudar na tomada de decisões e fazer o paciente
entre o paciente, a família e o terapeuta. A natureza aceitar mais facilmente.
do problema e as opções de tratamento devem ser Tratamento em casa: A maioria das pessoas com dor
discutidas com o paciente e sua família para se em países em desenvolvimento pode ter pouco
chegar a um plano conjunto. Em países em acesso ao transporte. Os hospitais raramente têm
desenvolvimento, o analfabetismo costuma ser espaço suficiente para admitir esses pacientes, a não
considerado a razão para não dar informações ser por curtos períodos de tempo, mesmo se eles
suficientes ao paciente. Os profissionais precisam puderem pagar por isso. A maioria dos pacientes
lembrar que educação formal e inteligência não são terá que ficar em casa. O serviço tem que ser
sinônimos. O aldeão analfabeto, com sua orientado para tratar o paciente em casa. Como em
experiência de uma vida dura, costuma entender países desenvolvidos, os pacientes preferem ficar
muito bem os problemas se lembrarmos de evitar em casa para ser tratados, principalmente quando
jargões e falarmos sua língua. E em geral ele será estão em fase terminal da doença. Modelos bem-
mais capaz de tomar decisões difíceis do que um sucedidos de tratamento usando “clínicas
paciente mais sofisticado e educado. itinerantes” e cuidados domiciliares prestados por
Acessibilidade do tratamento: A acessibilidade de uma enfermeiros já foram desenvolvidos em países como
modalidade de tratamento deve ser levada em Uganda e Índia.
consideração ao discutir opções de tratamento.
Incorporação dos princípios dos cuidados paliativos: Qual é Pérolas de conhecimento
o objetivo do tratamento da dor? Se a dor é aliviada,
mas outros sintomas, como falta de ar ou vômitos Em conclusão, três medidas fundamentais são
intratáveis persistem e portanto a qualidade de vida necessárias para um programa nacional eficaz.
não melhora, o objetivo do tratamento não foi
347

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 43
Recursos para Garantir a Disponibilidade de Opioides

David E. Joranson

O objetivo deste capítulo é dar perspetivas e


instrumentos a serem usados para tornar os Exemplos de casos
analgésicos Opioides mais disponíveis e acessíveis
para o tratamento da dor. Apresentamos vários casos reais para realçar este
A disponibilidade dos analgésicos Opioides depende capítulo na importância crítica da disponibilidade e
do sistema de leis de controle de medicamentos e da acessibilidade dos Opioides para o alívio da dor.
distribuição em seu país. A menos que o sistema Caso 1
possa distribuir com segurança medicamentos Uma paciente recebeu radioterapia para o alívio da
controlados de acordo com as necessidades dor, mas ela não foi eficaz à medida que a doença
médicas, os clínicos não conseguirão usar Opioides progredia. Em seguida, ela recebeu analgésicos
para aliviar dor moderada a intensa de acordo com fracos, mas sua dor continuou a piorar. Finalmente,
as diretrizes regulamentares internacionais de saúde ela voltou ao médico com dor excruciante e
e os padrões da medicina moderna. pedindo um medicamento que acabasse com sua
Este capítulo faz uma série de perguntas vida. Recebeu outro medicamento fraco junto com
importantes para o melhor entendimento de como antidepressivos e foi mandada para casa. Ela
o sistema deveria funcionar, e para identificar e cometeu suicídio [Pain & Policy Studies Group].
eliminar impedimentos à disponibilidade dos
Opioides e ao acesso dos pacientes ao alívio da dor. Caso 2
Isso é de suma importância porque o tratamento da XX é um hospital de referência para tratamento de
dor pós-operatória, oncológica e de HIV/AIDS é câncer. O requisito anual de morfina é de
praticamente impossível sem a disponibilidade de aproximadamente 10.000 comprimidos de 20 mg.
Opioides. Isso não significa que os Opioides sejam Mas o instituto não está conseguindo comprar
indicados para qualquer tipo de dor. Os Opioides nenhum comprimid... devido às leis estaduais
podem ser úteis para tratar dor crônica não severas e à grande quantidade de licenças exigidas.
oncológica, mas a terapia tem que ser determinada Após muito esforço, o instituto conseguiu obter as
em bases individuais, orientada por uma licenças... e entrou em contato [com um fabricante]
consideração cuidadosa dos riscos e benefícios do para comprar comprimidos... o [fabricante] não
tratamento. tinha comprimidos em estoque e na época em que
os comprimidos puderam ser obtidos as licenças
haviam expirado. Os médicos e a clínica de dor do usados para melhorar a disponibilidade e o acesso a
instituto pararam de prescrever comprimidos de analgésicos Opioides essenciais.
morfina porque eles não estavam disponíveis As perguntas e respostas a seguir pretendem auxiliar
[Joranson e col. 2002]. os médicos e defensores em seus esforços para
melhorar o acesso do paciente ao alívio da dor.
Caso 3 Estimulamos os leitores a consultar os materiais
Em várias ocasiões a morfina não estava disponível. mencionados no texto e, ao final, consultar outros
Tal situação costumava aparecer como resultado das capítulos deste livro e a buscarem orientação de
dificuldades encontradas ao tentar obter as licenças profissionais especializados nos problemas
exigidas. Em outras ocasiões, os fabricantes do específicos relativos a farmacologia clínica, medicina
medicamento simplesmente não tinham estoque e leis.
para vender... resultado direto da demanda baixa e
imprevisível. Durante essas ocasiões, os estoques de Qual é o princípio do
morfina... acabavam. Nessas emergências, a clínica
recorria a medidas de outra forma não éticas e
equilíbrio?
inaceitáveis de redução, implementadas de forma a
minimizar o efeito nos pacientes e familiares... Os esforços para melhorar a disponibilidade dos
Quando esses tratamentos alternativos não Opioides devem ser orientados pelo princípio
proporcionavam alívio adequado da dor, como regulamentar do “equilíbrio”. Equilíbrio é um
costumava ser o caso, a equipe ficava solidária com princípio médico, ético e legal internacionalmente
a desolação, o medo e a frustração dos pacientes e aceito que diz que os Opioides são indispensáveis
seus familiares. É impossível descrever a intensidade para aliviar dor e sofrimento e que eles também têm
do pavor sentido pela equipe e pelos pacientes potencial para abuso. O princípio reconhece que os
quando a remessa de morfina atrasava e a alegria esforços para coibir atividades ilegais e abuso não
quando a morfina finalmente chegava. [Rajagopal e devem interferir com a disponibilidade adequada de
col. 2001]. analgésicos Opioides para aliviar dor e sofrimento.
Os acordos internacionais que são obrigatórios para
O que esses casos ilustram? os governos já reconhecem há décadas que os
narcóticos, por ex., Opioides, são indispensáveis
para o alívio da dor e do sofrimento e que os
Esses casos mostram algumas das causas e o
governos são obrigados a garantir sua
impacto humano da dor intensa não aliviada quando
disponibilidade adequada para objetivos médicos e
o acesso aos analgésicos Opioides é bloqueado. Tais
científicos.
situações são trágicas e nunca deveriam acontecer,
mas elas formam o cenário deste capítulo que
descreverá uma série de recursos que podem ser
Qual é a situação mundial
usados pelos profissionais de saúde e pelo governo com relação à
de locais com poucos recursos, ou em qualquer
outra parte, para melhorar a disponibilidade e o
disponibilidade de Opioides
acesso dos pacientes aos analgésicos Opioides como como morfina oral para
a morfina. pessoas com dor?
Este capítulo é baseado em estudos internacionais e
na experiência do Pain and Policy Studies Group
Todos os dias, em todo o mundo, milhões de
(PPSG) da Universidade de Wisconsin e de vários
pessoas, inclusive adultos mais velhos e crianças,
colaboradores. Desde 1966, o PPSG é um Centro
sentem dor de cirurgia, trauma, câncer, AIDS,
de Colaboração da Organização Mundial de Saúde
anemia falciforme e uma série de outras doenças
(WHOCC) com termos de referência para
que podem levar a dor intensa. A incidência de
desenvolver métodos e recursos que possam ser
câncer e HIV/AIDS está mudando para países de
349

baixa/média renda. Os médicos sabem muito bem superutilizados para tentar atingir um efeito que eles
que dor aguda não aliviada pode destruir a qualidade não conseguem oferecer.
de vida e às vezes até o desejo de viver. Existe um acordo de que vários agonistas Opioides
Alguns – mas não todos – países mais ricos têm em diferentes doses devem estar disponíveis para
disponibilidade relativamente boa de Opioides, e permitir que os médicos mudem os Opioides, as
portanto os pacientes têm acesso aos analgésicos doses e as vias de administração para maximizar a
Opioides. No entanto, a realidade é que a maior eficácia e minimizar os efeitos colaterais. A meta é
parte da população mundial não tem acesso a esses garantir a disponibilidade desses importantes
medicamentos indispensáveis. A falta de acesso é analgésicos a um custo acessível quando e onde
especialmente grave em locais com recursos necessários ao paciente. A OMS e a International
limitados e infraestrutura inadequada do sistema de Association for Hospice and Palliative Care (IAHPC)
saúde. Várias organizações interessadas em dor, incluíram vários Opioides em suas listas de
cuidados paliativos, câncer e HIV/AIDS estão medicamentos essenciais.
trabalhando para resolver esses problemas.
Os Opioides têm potencial
Por que medicamentos para abuso?
controlados, como a
morfina oral, são Sim, os Opioides têm potencial para abuso e
portanto são “controlados” através de leis e
importantes? regulamentos internacionais, nacionais e estaduais.
Muitos Opioides controlados também são
Embora outros capítulos abordem essa questão em considerados medicamentos essenciais; são seguros
maiores detalhes, é importante notar que uma série e eficazes – na verdade indispensáveis – para o
de terapias medicamentosas e não medicamentosas, alívio da dor intensa.
inclusive procedimentos cirúrgicos, radioterapia e Existe uma tradição legal de classificar os Opioides
técnicas comportamentais, podem ser úteis no como “medicamentos narcóticos”, “substâncias
tratamento da dor e nos cuidados paliativos. A dor é perigosas”, e mesmo “venenos”. “Substâncias
tratada com uma combinação de medidas controladas” é um termo menos estigmatizante. A
medicamentosas e não medicamentosas. A OMS circulação de substâncias controladas está sujeita a
determinou que o tratamento farmacológico, controles legais do governo, como licenças,
inclusive Opioides e não Opioides, seja o esteio armazenagem segura, estoque, manutenção de
para aliviar a dor oncológica e de HIV/AIDS. registros e relatórios de compra, armazenagem,
Os Opioides bloqueiam a transmissão da dor nas distribuição e administração. É necessária uma
vias do sistema nervoso. Alguns Opioides, como prescrição médica para que os pacientes tenham
fentanil, morfina, hidromorfona e oxicodona, acesso legal a medicamentos controlados.
podem aliviar dor moderada a intensa e dor A maneira como os requisitos legais são
crescente. Esses agonistas Opioides não têm um administrados varia muito de país para país, e
“efeito teto” de modo que a dose pode ser mesmo de estado para estado e entre as instituições.
aumentada para aliviar dor crescente, sempre Mas é preciso ficar claro que o objetivo dos
lembrando dos efeitos colaterais. Órgãos regulamentos sobre Opioides não é apenas impedir
internacionais regulamentares e de saúde não o uso não autorizado e seu desvio da cadeia de
recomendam uma dose máxima de analgésicos suprimento. O objetivo é também garantir o acesso
Opioides. Alguns outros analgésicos Opioides e não de médicos e pacientes. No entanto, já foi bem
Opioides possuem um efeito teto e, principalmente documentado que alguns regulamentos nacionais e
na falta de agonistas Opioides, podem ser estaduais/municipais são mais restritivos do que o
necessário e dificultam ou bloqueiam totalmente o
acesso, prejudicando a habilidade de médicos de dor
ou de cuidados paliativos de praticar a medicina
O que se deve fazer se os
moderna. analgésicos forem
Embora os acordos internacionais reconheçam que desviados?
os governos nacionais podem ser mais restritivos, os
controles legais dos Opioides não são equilibrados
Em alguns casos, os analgésicos Opioides são
se interferem com o tratamento médico legítimo
ilegalmente furtados ou “desviados” de vários
dos pacientes. Mais adiante iremos discutir as
pontos ao longo do sistema de distribuição do
ferramentas para avaliar o equilíbrio das leis e
medicamento, e depois vendidos para objetivos não
regulamentos nacionais e para provocar mudanças.
médicos, inclusive para viciados. O abuso de
medicamentos essenciais, principalmente se a
Como manusear com publicidade é sensacionalista ou desequilibrada,
segurança os analgésicos pode levar a reações exageradas e a mais restrições
Opioides prescritos? aos medicamentos essenciais que podem minar a
confiança em seu uso terapêutico. Quando há
desvio, a resposta deve ser rápida e equilibrada, isto
O manuseio seguro de substâncias controladas pode é, as pessoas responsáveis devem ser
evitar desvio, mau uso e lesões. Todos os que lidam responsabilizadas, sem interromper o acesso do
com analgésicos Opioides controlados, inclusive paciente ao alívio da dor. Líderes nacionais de
fabricantes, distribuidores, médicos, farmacêuticos, tratamento da dor e de cuidados paliativos devem
enfermeiros, pacientes e familiares, devem saber e discutir abordagens equilibradas ao desvio com o
respeitar que os Opioides devem ser distribuídos, governo antes que ele aconteça.
prescritos e administrados apenas para efeitos
médicos como alívio da dor ou tratamento médico
de dependência/vício em Opioides. Remédios
Como posso saber quais são
controlados só devem ser usados pela pessoa para os Opioides usados em meu
quem foram prescritos e de acordo com as país?
instruções do médico.
É importante manter medicamentos prescritos na
O PPSG publicou em seu site informações
embalagem original porque a bula tem as
detalhadas sobre as tendências de consumo de
informações de prescrição que estabelecem aos
determinados Opioides em cada país. Os governos
olhos da lei o direito do paciente de possuir um
são obrigados a informar as estatísticas de consumo
medicamento controlado. A bula da embalagem
ao International Narcotics Control Board (INCB) da
original deve ter instruções para uso além de alertas
ONU. O INCB, por sua vez, fornece os dados para
relativos à segurança. Medicamentos controlados
o PPSG/WHOCC. “Consumo” significa a
devem ser sempre guardados longe da vista para
quantidade de Opioides distribuídos por fabricantes
evitar furto, e devem ser mantidos fora do alcance
ou distribuidores para o varejo do país, como para
das crianças para evitar ingestão acidental.
médicos, farmácias, hospitais, centros de cuidados
Os requisitos nacionais variam com relação a
paliativos, clínicas de dor, e programas de cuidados
devolver ou descartar “restos” de medicamentos
paliativos. As estatísticas de consumo de Opioides
não usados. Informações adicionais sobre os
são um indicador da capacidade de um país de
requisitos para o descarte seguro e sobre as formas
aliviar dor moderada a aguda.
de evitar danos a terceiros e ao meio ambiente
Os gráficos de tendências de consumo de Opioides
devem ser obtidas das autoridades governamentais
contêm informações sobre fentanil, hidromorfona,
competentes.
metadona (também considerada essencial para o
tratamento de dependência de Opioides), morfina,
oxicodona e petidina (meperidina). Esses dados não
351

nos dizem quais as doses de Opioides que estão  Restrições legais sobre fabricação,
sendo consumidas em um determinado país. distribuição, prescrição ou administração de
Se os gráficos de um país mostram consumo zero Opioides;
de um determinado opióide, esse é um indicador de  Relutância dos profissionais de saúde em
que o medicamento pode não estar disponível, ou armazenar Opioides devido a preocupação
pode ter sido um problema do relatório. As com sanções legais.
estatísticas de consumo são atualizadas anualmente Esses fatores e a interação entre eles podem agir
pelo PPSG à medida que recebe novos dados. Essas como um círculo vicioso – baixa disponibilidade
estatísticas podem ser usadas para estudar as nacional pode levar a baixo uso médico, resultando
tendências de consumo mundial, regional ou local em pouca demanda que, por sua vez, estimula a
dos Opioides fortes. As estatísticas de consumo de baixa disponibilidade constante. A educação médica
Opioides podem ser usadas para avaliar os inadequada sobre dor, combinada com restrições
desfechos de longo prazo dos esforços para legais e preocupações exageradas sobre analgésicos
aumentar sua disponibilidade. Opioides e dependência, podem conspirar para
As estatísticas de consumo podem ser encontradas manter o status quo. No entanto, é possível
nos Perfis de Países do site do PPSG. Os usuários interromper esse círculo se houver liderança tanto
podem baixar os gráficos e tabelas e usá-los para por parte dos profissionais de saúde quanto do
apresentações com permissão especial e com a governo.
citação da fonte. Exemplos de apresentações de
slides importantes para as políticas internacionais e O que a “Autoridade
nacionais de dor podem ser encontrados em
http://www.painpolicy.wisc.edu/internat/conferen Nacional Competente”
ces.htm. pode fazer para melhorar a
Quais são as razões para disponibilidade e o acesso?
disponibilidade e acesso O segredo para interromper o círculo e melhorar a
inadequados? disponibilidade e o acesso é a Autoridade Nacional
Competente (ANC). É um órgão existente em todos
A falta de analgésicos Opioides em um país não é os países e em geral ligado ao Ministério da Saúde.
um problema do “lado do suprimento”. De acordo Sua responsabilidade é implementar as obrigações
com o INBC, principal órgão regulador de do tratado internacional de narcóticos dos governos
narcóticos da ONU, não há insuficiência de para garantir a disponibilidade adequada dos
matérias primas para a fabricação de Opioides. Ao narcóticos para objetivos médicos e científicos. Os
contrário, o problema é resultado do sistema de Perfis de País do site do PPSG têm informações de
barreiras nos países, que resulta em demanda baixa contato com a ANC para cada país.
ou até inexistente de Opioides. O INCB pediu às ANCs que trabalhem com os
O INBC faz pesquisas periódicas com governos profissionais de saúde para determinar e prever
nacionais, em conjunto com a OMS, para verificar a necessidades médicas futuras de analgésicos
situação da disponibilidade de Opioides e as razões Opioides para que as quantidades necessárias
pelas quais eles não estão adequadamente possam ser importadas e fabricadas. O “sistema de
disponíveis. Os governos informaram que as estimativas” administrado pela ANC e pelo INCB é
seguintes barreiras contribuem para a falta de projetado para estimar necessidades não atendidas
Opioides em seus países. de Opioides e então autorizar sua aquisição. Todos
os anos a ANC prepara e envia ao INCB as
 Preocupações com dependência;
quantidades estimadas de cada opióide que será
 Treinamento insuficiente dos profissionais
necessário no país.
de saúde;
Apenas quando a estimativa nacional aumenta ou é Embora existam várias diretrizes e currículos de
expandida para incluir outros Opioides é que pode ensino que abordem a dor e os cuidados paliativos,
haver mudança nas quantidades importadas, os materiais de treinamento clínico não costumam
fabricadas, distribuídas e administradas aos descrever o sistema de controle de medicamentos e
pacientes. No entanto, se houver pouco interesse as etapas necessárias para obter e distribuir
público na obtenção do alívio da dor, ou pouco analgésicos Opioides. Obter e manter o acesso aos
interesse médico em fornecê-lo, haverá pouca Opioides em qualquer país dependem do
justificativa para aumentar a disponibilidade. conhecimento de leis e regulamentos internacionais
Quando medicamentos controlados são necessários e nacionais de controle de medicamentos, de como
para emergências humanitárias, pode-se abreviar os são implementados no sistema de distribuição, de
procedimentos legais demorados que regem as como podem ser avaliados, e então de trabalhar
exportações e importações para agilizar a com o governo para fazer as mudanças necessárias
disponibilidade e o acesso; maiores informações na política e na administração.
podem ser obtidas com INCB ou OMS. Com o apoio da National Hospice and Palliative Care
Organization e da Foundation for Hospices in Sub-Saharan
Existem recomendações Africa, o PPSG desenvolveu um curso pela Internet
chamado “Aumento do acesso dos pacientes a
para educadores e analgésicos em todo o mundo: uma estrutura para
organizações profissionais melhorar as políticas nacionais que governam a
abordarem o problema da distribuição de medicamentos”. O curso foi
desenvolvido para disponibilizar essas informações
disponibilidade de especializadas para médicos, administradores do
Opioides? governo, pessoal que regulamenta os medicamentos,
consultores nacionais de políticas de saúde,
estudiosos das políticas de saúde e para aqueles que
Sim. O INCB, em parceria com a OMS,
desenvolvem diretrizes clínicas e materiais de
recomendou um forte papel das instituições
treinamento para tratamento da dor e cuidados
educacionais e das organizações não governamentais
paliativos.
de saúde – inclusive a Associação Internacional para
O curso tem sete aulas, cada uma com leituras
o Estudo da Dor (IASP) – para ensinar os alunos de
selecionadas e muitas citações (vide Tabela 1). O
profissões de saúde e médicos licenciados sobre o
curso explica por que pacientes e médicos têm o
uso de Opioides, seu controle e o uso correto de
direito de esperar que seus sistemas nacionais de
termos relacionados à dependência. Mais ainda, foi
regulamentação de medicamentos disponibilizem os
pedido aos profissionais de saúde e suas empresas
Opioides, e explica como essa meta pode ser
que estabeleçam comunicação constante com seus
atingida.
governos sobre as necessidades não atendidas de
analgésicos Opioides e para ajudar a identificar
impedimentos à sua disponibilidade e acesso.
Os profissionais de saúde já
têm aptidões que possam
Como o médico pode ser usadas para abordar a
encontrar informações sobre disponibilidade dos
como melhorar a Opioides?
disponibilidade e o acesso
aos Opioides? Se você tem treinamento médico, você já tem
conhecimentos médicos importantes que podem ser
aplicados à área de políticas e sistemas
353

regulamentares. Por exemplo, você pode valorizar a


necessidade de alívio da dor em pacientes com
Os profissionais de saúde
várias doenças e condições. Você pode conhecer o têm crenças ou atitudes que
medicamento e seus usos. O modelo médico possam interferir com a
também é uma sólida abordagem de solução de
problemas que pode ser aplicada ao diagnóstico de questão da disponibilidade
barreiras à disponibilidade e ao acesso aos Opioides, dos Opioides?
e à formulação de estratégias de ação, ou
tratamentos, como se o sistema de distribuição de
Possivelmente. Informações incorretas sobre o
Opioides em seu país fosse seu paciente. Usando
potencial viciante dos Opioides e a terminologia
esse conhecimento e essas aptidões, você pode ser
confusa levaram a preocupações exageradas sobre o
tornar um líder eficaz para trabalhar com os
uso de analgésicos Opioides e a leis
governos para examinar, diagnosticar e então decidir
demasiadamente rigorosas que atrapalham os
e implementar o tratamento necessário para corrigir
esforços para melhorar o acesso a tratamento
os problemas.
adequado de dor moderada a intensa.
Décadas atrás, os especialistas diziam que a mera
Quais são as ferramentas exposição à morfina resultaria inevitavelmente em
existentes para ajudar a “vício”. Naquela época, os pesquisadores do vício
estavam estudando a síndrome de abstinência que
diagnosticar os problemas ocorre quando os Opioides são interrompidos
legais de meu país? abruptamente. Hoje, no campo do tratamento da
dor, sabemos que a dependência física é uma
As informações sobre políticas de controle de adaptação esperada do corpo à presença de um
medicamentos e barreiras dos sistemas costumam analgésico opióide e que a síndrome de abstinência
ser novas para os profissionais de saúde, então a pode ser tratada se o opióide for interrompido. A
OMS publicou Alívio da Dor Oncológica com um Guia OMS já não usa o termo “vício”. A terminologia
sobre Disponibilidade de Opioides, que explica os pontos atual é “síndrome da dependência”, que é uma
básicos da política, e Diretrizes para Obter Equilíbrio na condição bio-psico-social, cujos marcadores são
Política Nacional de Controle de Opioides. As Diretrizes comportamento não adaptado, uso compulsivo e
para Obter Equilíbrio da OMS são uma estrutura para uso continuado apesar do dano. No entanto, ao se
o diagnóstico dos impedimentos das leis nacionais referir à síndrome da dependência, o próprio uso do
de controle de medicamentos que são usadas termo “dependência” pode ser confundido com
extensivamente em todo o mundo. Essas diretrizes dependência física. Nessas circunstâncias, é
e a lista de verificação diagnóstica estão disponíveis importante deixar claro nas comunicações clínicas e
em 22 idiomas no site do PPSG http//www.pain científicas se estamos nos referindo a um
policy.wisc.Edu/publicat/00whoabi/00whoabi.htm. diagnóstico caracterizado por comportamento não
Do ponto de vista prático, o que os clínicos e legisladores adaptado ou à adaptação fisiológica.
governamentais podem fazer para melhorar a cooperação? A noção de que a morfina só deve ser usada como
A tabela 2 apresenta as recomendações das Diretrizes último recurso é baseada em uma visão fora de
para Obter Equilíbrio da OMS sobre como os moda dos Opioides e da dependência. Na verdade,
profissionais de saúde e os legisladores de os esforços para prevenir dependência/vício, que se
medicamentos podem cooperar através da troca de basearam nesse entendimento hoje ultrapassado,
informações e perspetivas e pelo estabelecimento de levaram a restrições excessivamente rigorosas de
mecanismos de comunicação e envolvimento. prescrição que impedem o acesso. Exemplos são
limites rígidos para os diagnósticos que são
candidatos a analgésicos Opioides, restrições de
dose e quantidade de prescrição, e formulários
complexos de prescrição que exigem muitas morfina pudesse causar dependência em
aprovações e são difíceis de obter. Essas questões qualquer um que fosse exposto a ela.
são discutidas com mais detalhes no curso pela  Mais recentemente, a OMS e o INCB
Internet do PPSG; o site do PPSG também traz estimularam os governos a dar aos pacientes
artigos sobre o progresso para remover barreiras em acesso fácil a analgésicos Opioides orais, e a
vários países. OMS atualizou sua definição de síndrome
Se eu quiser assumir um papel de mais liderança em meu de dependência. Ainda assim, os Opioides
país, existem cursos especializados? continuam inacessíveis para a maioria da
Sim. Além do curso pela Internet, o PPSG patrocina população mundial.
um International Pain Policy Fellowship (IPPF), com o  As autoridades legislativas de medicamentos
apoio da International Palliative Care Initiative do Open e de saúde da ONU reconheceram a falta de
Society Institute e da Fundação Lance Armstrong. O disponibilidade de analgésicos Opioides,
objetivo do IPPF é formar líderes de países de baixa incitaram os governos a examinar as leis e
e média renda para se tornarem agentes de regulamentos nacionais sobre barreiras à
mudança, e para desenvolverem planos para disponibilidade de Opioides e pediram aos
melhorar o acesso dos pacientes aos Opioides em profissionais de saúde e à IASP que
seus países. Os alunos são escolhidos através de um trabalhem juntos para educar os
processo competitivo de inscrição e passam uma profissionais de saúde e para garantir o
semana em treinamento com especialistas do PPSG acesso adequado do paciente ao alívio da
e outros especialistas internacionais. Em alguns dor.
casos, um representante da ANC acompanha o  Especialistas em dor e cuidados paliativos
participante para facilitar a cooperação com os relatam que na ausência de uma declaração
legisladores de medicamentos do governo. clara sobre a obrigação dos governos, de
Os participantes fazem o curso da Internet, acordo com tratados internacionais, de
diagramam e diagnosticam impedimentos do garantir a disponibilidade adequada de
sistema de distribuição de medicamentos de seu Opioides através de leis nacionais, fica difícil
país, aprendem a usar os instrumentos da OMS para convencer os legisladores. Estudos do
avaliar leis nacionais de controle de medicamentos, PPSG mostram que o modelo da ONU de
e desenvolvem seus próprios planos de ação para leis de controle de medicamentos, que
melhorar a disponibilidade e o acesso aos Opioides. deveria dar orientação equilibrada aos
Durante o curso de dois anos, os participantes governos, também não tem tal linguagem.
implementam seus planos de ação com a assistência  Tradicionalmente, a maioria dos países usa
técnica do PPSG. Visite o site do PPSG para petidina (meperidina) para alívio da dor, na
informações ou vá para crença de que tal opióide de curta duração
http://www.painpolicy.wisc.edu/newslist.htm para vai causar menos dependência. Mas como
se cadastrar para receber notícias do PPSG. os controles legais para a morfina e outros
Opioides fortes são iguais aos da petidina, é
Pérolas de sabedoria possível que os profissionais de saúde e a
ANC encontrem uma forma de
 Os requisitos legais atuais para disponibilizar outros Opioides quando
“medicamentos narcóticos” foram forem necessários.
desenvolvidos há muito tempo, bem antes  Os recursos apresentados neste capítulo são
de o alívio da dor se tornar uma prioridade, um ponto de partida e um estímulo para
antes de os Opioides serem considerados trabalhar com colegas, organizações
medicamentos essenciais pela OMS, e em profissionais e governos para corrigir as
uma época em que se considerava que a condições que impedem os esforços para
aliviar a dor e o sofrimento.
355

Para terminar, algumas opiates for medical needs. New York: United Nations; 1996.
Available at: www.incb.org/pdf/e/ar/1995/suppl1en.pdf.
dicas: [5] Joranson DE, Rajagopal MR, Gilson AM. Improving
access to opioid analgesics for palliative care in India. J Pain
Symptom Manage 2002;24:152–9. Available at:
Esteja atento a novas oportunidades e a novos recursos. http://www.painpolicy.wisc.edu/publicat/02jpsm3/index.htm
Podem haver oportunidades em seu país para [6] Joranson DE, Ryan KM. Ensuring opioid availability:
parcerias sinérgicas com o governo e organizações methods and resources. J Pain Symptom Manage 2007;33:527–
de saúde não governamentais que defendem o uso 32. Available at:
www. painpolicy.wisc.edu/publicat/07jpsm/07jpsm.pdf.
da metadona para o tratamento de usuários de [7] Joranson DE, Ryan KM, Maurer MA. Opioid policy,
drogas intravenosas para reduzir a disseminação de availability, and access in developing and nonindustrialized
HIV/AIDS. Os controles internacionais são os countries. In: Fishman SM, Ballantyne JC, Rathmell JP,
mesmos para a morfina e para a metadona, e as editors. Bonica’s management of pain, 4th edition.
etapas legislativas para torná-las disponíveis e Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 2010. p. 194–208.
acessíveis em um país devem ser semelhantes às dos [8] Pain and Policy Studies Group. Internet course: Increasing
patient access to pain medicines around the world: a
analgésicos Opioides.
framework to improve national policies that govern drug
A OMS está desenvolvendo um Programa de Acesso a distribution. University of Wisconsin Paul P. Carbone
Medicamentos Controlados para dar suporte adicional Comprehensive Cancer Center.
aos esforços para melhorar o acesso médico aos Available at:
analgésicos Opioides, além de outros medicamentos www.painpolicy.wisc.edu/on-line_course/welcome.htm.
[9] Rajagopal MR, Joranson DE, Gilson AM. Medical use,
essenciais que são controlados.
misuse, and diversion of opioids in India. Lancet. 2001;
O alívio da dor está sendo reconhecido como um direito
358(9276):139–143.
humano. À medida que o alívio da dor vai sendo mais [10] World Health Organization. Essential medicines. Geneva:
amplamente reconhecido, podem haver World Health Organization; 2005.
oportunidades adicionais para colaboração com os Available at: www.who.int/topics/essential_medicines/en.
defensores dos direitos humanos. Os defensores [11] World Health Organization. Cancer pain relief: with a
guide to opioid availability, 2nd edition. Geneva: World Health
dos direitos humanos entendem que é necessário
Organization; 1996.Available at:
trabalhar com os governos. O trabalho delineado http://whqlibdoc.who.int/publications/9241544821.pdf.
aqui para avaliar e reformar políticas ultrapassadas [12] World Health Organization. Achieving balance in national
de controle de medicamentos é parte integrante de opioids control policy: guidelines for assessment. Geneva:
tornar o direito humano ao alívio da dor uma World Health Organization; 2000. Available at:
www.painpolicy.wisc.edu/publicat/00whoabi/00whoabi.htm.
realidade.
[13] World Health Organization. Access to controlled
medications program. Geneva: World Health Organization;
Referências 2007. Available at:
www.who.int/medicines/areas/quality_safety/access_to_cont
rolled_medications_brnote_english.pdf.
[1] De Lima L, Krakauer EL, Lorenz K, Praill D, Macdonald
N, Doyle D.Ensuring palliative medicine availability: the
development of the IAHPC list of essential medicines for Sítios na Web
palliative care. J Pain Symptom Manage 2007;33:521–6.
[2] Foley KM, Wagner JL, Joranson DE, Gelband H. Pain
Recomendados
control for people with cancer and AIDS. In: Jamison DT,
Breman JG, Measham AR, Alleyne G, Claeson M, Evans DB, Pain & Policy Studies Group: www.painpolicy.wisc.edu/
editors. Disease control priorities in developing countries, 2nd World Health Organization: www.who.int/medicines/
edition. New York: Oxford University Press; 2006. p. 981–93. International Narcotics Control Board: www.incb.org
Available at: http://fi les.dcp2.org/pdf/DCP/DCP52.pdf. International Association for Hospice and Palliative
[3] Human Rights Watch. Please do not make us suffer Care: www.hospicecare.com/
anymore. March 3, 2009. Available at: http://www.hrw.org.
[4] International Narcotics Control Board. Report of the
International Narcotics Control Board for 1995. Availability of
Tabela 1
Aulas do Curso do PPSG pela Internet*
Aula 1: Como entender o relacionamento entre Dor e Política de Controle de Medicamentos
Aula 2: O Papel das Leis e Organizações Internacionais e Nacionais
Aula 3: Barreiras à Disponibilidade e Acesso aos Opioides
Aula 4: Diretrizes da OMS para Avaliar as Políticas Nacionais de Controle de Opioides
Aula 5: Diretrizes da OMS para Avaliar os Sistemas Administrativos Nacionais para
Calcular os Requisitos de Opioides e Fazer Estatísticas de Consumo
Aula 6: Diretrizes da OMS para Sistemas de Compra e Distribuição de Analgésicos Opioides
Aula 7: Como Fazer a Mudança em Seu País.
* Este é um curso que não dá créditos e ao qual você impõe seu próprio ritmo. Pode ser assistido a
qualquer hora ou durante um período de tempo. Pode levar de 10 a 12 horas para completar. Cada aula tem
um pré-teste e um pós-teste; são fornecidos links para leituras complementares e recursos oficiais. Ao final
você recebe um certificado. A página de boas vindas e de cadastramento está em
http://www.painpolicy.wisc.edu/on-line_course/welcome.htm . No momento, o curso só existe em inglês.

Tabela 2
Exemplos de cooperação entre governos e profissionais de saúde
As autoridades governamentais podem:
Informar aos profissionais de saúde sobre tendências de tráfico e abuso de drogas.
Explicar a estrutura da política e da administração do controle de medicamentos no país, inclusive como a
estimativa de requisitos de analgésicos Opioides é feita.
Criar mecanismos como forças-tarefa ou comissões para examinar formas como a política nacional de
controle de medicamentos e sua administração podem ajudar a melhorar a disponibilidade e o acesso e
também manter o controle adequado.
Endossar as diretrizes da Organização Mundial de Saúde para o tratamento da dor.
Apoiar as diretrizes nacionais para o controle da dor.
Informar os profissionais de saúde sobre os requisitos legais e discutir quaisquer preocupações.
Explorar formas de ter um número adequado de canais para maximizar o acesso do paciente.
Colaborar com outras organizações governamentais, por ex., no planejamento de serviços para câncer e
AIDS, e para apoiar a educação médica, a educação dos pacientes e do público em geral.
Os profissionais de saúde podem:
Prestar informações ao governo sobre a necessidade de vários Opioides para o tratamento da dor e para
cuidados paliativos no país.
Identificar necessidades a abordar e barreiras do sistema legal.
Dar informações sobre o tratamento moderno da dor, sobre o conhecimento atual dos analgésicos Opioides
para tratar a dor, e sobre barreiras de conhecimento e atitudes para seu uso ideal.
Demonstrar que conhecem as convenções internacionais sobre narcóticos e a obrigação dos governos de
garantir disponibilidade adequada de analgésicos Opioides, ao mesmo tempo em que previnem abuso e
desvio.
Dar informações sobre as diretrizes da OMS que podem ser usadas na autoavaliação das políticas nacionais de
controle de Opioides.
Prestar informações para ajudar a calcular as quantidades dos diferentes Opioides que serão necessários para
atender às necessidades reais.
Identificar impedimentos e pontos fracos no sistema de distribuição que levam à falta de medicamentos.
Apoiar os esforços do governo para obter pessoal adequado para administrar as funções de controle de
medicamentos de acordo com a Convenção Única.
Explicar as preocupações dos profissionais de saúde com relação aos requisitos de prescrição e à possibilidade
de investigações.
357

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 44
Configurando Diretrizes para Necessidades Locais
Uriah Guevara-Lopez e Alfredo Covarrubias-Gomez

Relato de caso O que são diretrizes


práticas?
Uma senhora mexicana de 65 anos se queixou de
dor abdominal generalizada. Foi a um médico rural
O conceito original de diretrizes práticas (DPs) foi
em San Juan de Bautista que prescreveu 30 mg de
descrito como “uma recomendação para o
cetorolaco 3 vezes ao dia. Dois dias depois a dor
tratamento do paciente, que identifica uma ou mais
não havia passado e ela voltou ao médico; dessa vez,
estratégias de tratamento”. No entanto, em 1990, o
ele incluiu na prescrição 90 mg de etoricoxib ao dia.
Instituto de Medicina dos Estados Unidos definiu as
Mais dois dias depois, a dor continuava e a senhora
DPs como “instruções desenvolvidas
foi ao hospital regional localizado a 16 km de sua
sistematicamente para auxiliar as decisões de médico
casa em Lloredo. No hospital, foi diagnosticado um
e paciente sobre o cuidado adequado de saúde para
câncer de útero com metástase de omento e fígado e
circunstâncias clínicas específicas” (vide Tabela 1).
ela recebeu medicação analgésica adequada.
Essa definição foi geralmente aceita.
A prescrição do médico do interior chamou a atenção das
As diretrizes não são regras ou normas; são resumos
autoridades de saúde locais. Perguntaram ao médico sobre sua
úteis e flexíveis de todas as informações disponíveis,
prescrição e sobre seu conhecimento sobre as diretrizes
importantes e de boa qualidade, aplicáveis a uma
mexicanas práticas para o tratamento da dor oncológica. O
determinada situação clínica onde médico e paciente
médico respondeu que tinha ouvido falar a respeito mas não
precisam tomar uma boa decisão. Como o
conhecia seu conteúdo ou suas recomendações, embora tenha
conhecimento, as técnicas e as tecnologias médicas
participado de um curso de duração de um mês no hospital
estão em constante desenvolvimento, a DP deve ser
regional sobre as diretrizes mexicanas para tratamento da
atualizada e melhorada periodicamente.
dor, no qual foi estimulado a ser um elemento multiplicador
divulgando e ensinando sobre as mesmas e seus beneficios
para as entidades locais.
Por que precisamos de
Foi estabelecido um programa de acompanhamento para a diretrizes práticas?
avaliação do tratamento da dor em sua comunidade.
O que deu errado? O conhecimento médico está em constante
evolução. Suponha que o médico saiba tudo sobre
uma doença e seu tratamento com base em
treinamento e critério clínico, mas a educação mudado nesse tempo, o diagnóstico e as abordagens
médica continuada não existe. Como há uma grande terapêuticas desse médico estão ultrapassados,
possibilidade de os conceitos médicos terem significando pior eficácia ou menor segurança.

Tabela 1
Definição de diretrizes práticas e de outros termos que são confundidos com diretrizes práticas.
Conceito Definição
Diretrizes práticas Uma instrução sistematicamente desenvolvida para auxiliar médicos e
pacientes na decisão sobre tratamento adequado de saúde para
circunstâncias clínicas específicas. “Protocolo” costuma ser usado como
sinônimo de “diretrizes”, embora alguns considerem “protocolo de práticas”
uma forma mais específica (de procedimento ou especialidade) de diretrizes
práticas.
Sequencias de intervenções clínicas Sequenciamento ideal e oportuno de intervenções para um determinado
diagnóstico ou procedimento. Um “mapa de cuidados” ou plano de ação
multidisciplinar expande o conceito incluindo um índice de resultado, que
permite a avaliação das intervenções.
Algoritmos clínicos Conjunto mais complexo de instruções contendo lógica condicional, em
geral expresso em ramificações de árvores.
Informações extraídas de: Henning [4].

A velocidade da evolução da medicina complicou a aumentando. O desenvolvimento de DPs na


tomada de decisão médica; por essa razão, a diretriz medicina da dor é justificado pelos seguintes
prática deve ser usada como um instrumento para pontos: (i) o número de intervenções cirúrgicas está
auxiliar o médico. Esse objetivo é possível porque a aumentando em vários países subdesenvolvidos sem
mesma resume a experiência coletiva e estabelece nenhum conceito para controlar a dor pós-
níveis de conhecimento médico. operatória; (ii) a mudança demográfica (aumento da
população idosa) em todo o mundo será associada a
Existem tipos diferentes de uma maior prevalência de dor oncológica; (iii) a
frequência de dor crônica não oncológica é mais
diretrizes práticas? reconhecida hoje, e foi estimado que os custos
anuais de seu tratamento são iguais ou mais altos do
Tentativas para regulamentar as DPs vem sendo que para doença coronária, câncer e AIDS.
feitas desde o início da década de 1980. Hoje, pode- Além disso, a dor tem impacto importante nas
se identificar tipos diferentes de diretrizes práticas: funções e atividades físicas, nas cotas de retorno ao
(i) para diagnóstico e tratamento de circunstâncias trabalho, nas relações sociais e familiares e no
clínicas específicas, (ii) para gerenciamento de risco, estado psicoafetivo geral do paciente. Isso pode ser
(iii) para a melhoria dos sistemas de qualidade, (iv) um ônus para a família do paciente, mas também
para regulamentação médica, (v) para educação, e para a sociedade como um todo porque o
(vi) para cuidados preventivos. tratamento insuficiente da dor é a principal causa do
aumento do uso dos recursos do sistema de saúde.
Por que precisamos de Portanto, as políticas de saúde precisam da
diretrizes práticas para o implementação de instrumentos racionalizados para
otimizar e melhorar a qualidade da atenção médica
tratamento da dor? para as doenças mais importantes, inclusive
síndromes álgicas.
A dor é considerada um problema de saúde em
poucos países, mas o número de países onde o
tratamento da dor é um problema de saúde está
359

Como as diretrizes práticas para classificar a evidência de acordo com a


metodologia do estudo:
são desenvolvidas?  Nível 1: A evidência é extraída de revisões
sistemáticas de estudos clínicos controlados
Existe um consenso geral que as DPs devem ser pertinentes (com meta-análise, se possível).
submetidas ao julgamento público, que devem ser  Nível 2: A evidência é extraída de um ou
extraídas de evidências científicas de alta qualidade mais estudos clínicos bem desenhados,
devido ao avanço da medicina. O método para a aleatórios e controlados.
escolha da evidência deve ser explicado assim como  Nível 3: A evidência é extraída de estudos
os critérios usados para classificar cada clínicos bem desenhados e não aleatórios ou
recomendação. de estudos bem desenhados de coortes ou
Os protocolos para o desenvolvimento de diretrizes relatos de casos analíticos (se possível
têm vários pontos em comum: (i) são feitas revisões multicêntricos ou realizados em épocas
dos achados das pesquisas, em geral com a ajuda da diferentes).
Biblioteca Nacional de Medicina; (ii) os estudos são  Nível 4: A evidência é extraída dos pareceres
selecionados de acordo com critérios pré- de especialistas e/ou dos líderes de opinião
determinados e os achados são resumidos usando (respaldada, se possível, por relatórios de
técnicas como meta-análise ou revisões sistemáticas; outras declarações de consenso).
(iii) são realizados painéis de especialistas e as A evidência pode se transformar em
diretrizes são revistas de acordo com o retorno recomendação (tipo A, B ou C) e na “força da
recebido; (iv) algumas áreas chegam a um consenso; evidência e benefícios máximos” (Classe A a
e onde há desacordo ou incerteza, são necessárias Classe E), dependendo de quão recomendável é
mais pesquisas, e os autores da diretriz(es) o uso de um tratamento específico ou
descrevem essa deficiência. Várias estratégias de intervenção (Classe A = altamente
desenvolvimento de DPs foram propostas por recomendável e Classe E = evidência
diversos grupos em todo o mundo. A tabela 2 insuficiente).
contém um resumo dessas estratégias.
Como são avaliadas as
Como a evidência científica
classifica as recomendações diretrizes práticas?
das diretrizes práticas? A qualidade das diretrizes clínicas práticas
precisa ser avaliada e existem vários métodos
Em 1979, a Força Tarefa Canadense para Exames para atingir esse objetivo. Existem três estágios
Periódicos da Saúde fez os primeiros esforços para básicos de avaliação: (i) avaliação durante o
caracterizar o nível de evidência subjacente às desenvolvimento das diretrizes e antes de sua
recomendações de saúde e sua força. Desde então, total divulgação e implementação (avaliação
uma grande variedade de métodos foi desenvolvida inicial); (ii) avaliação dos programas de saúde
para “classificar” a força de evidência na qual a onde as diretrizes têm papel central (avaliação
recomendação é baseada. de diretrizes-programas); e (iii) avaliação dos
Os métodos de classificação levam em conta o efeitos das diretrizes em ambientes de saúde
desenho do estudo, os benefícios e prejuízos, e o definidos (avaliação científica).
resultado (Força Tarefa Canadense, Força Tarefa A avaliação das DPs também inclui a
Norte-Americana de Serviços Preventivos, grupo de identificação de vieses potenciais do
trabalho GRADE, método SIGN, taxonomia desenvolvimento da diretriz e a garantia de que
SORT, etc.). Descrevemos abaixo uma estratégia as recomendações são válidas e viáveis na
prática. Esse processo de avaliação leva em
consideração os benefícios, prejuízos e custos de gerar certificação em programas de educação
das recomendações, além das questões práticas à distância e de educação médica continuada
relacionadas a eles. Portanto, a avaliação das (EMC) sobre o conteúdo das DPs. Para incluir
DPs inclui julgamentos sobre os métodos (e receber) o apoio dos administradores do
usados para seu desenvolvimento, o conteúdo sistema de saúde e dos fazedores de políticas, é
das recomendações finais e os fatores aconselhável enfatizar o impacto econômico das
relacionados ao seu entendimento. DPs (que em geral, atraem sua atenção!).
Finalmente, a educação dos pacientes e de seus
Como é possível familiares, além do público, sobre os benefícios
potenciais de uma DP deve ser parte do
implementar as diretrizes processo de implementação. Esses esforços
práticas? educacionais podem ser estendidos a
organizações não governamentais.
O fato de a maioria das DPs terem sido
publicadas e depois esquecidas tem a ver com a Como os médicos reagem
falta de esforços para sua implementação. A às diretrizes práticas?
aceitação das DPs requer extensa educação
entre os médicos, administradores de sistemas
O impacto das diretrizes no comportamento
de saúde, fazedores de políticas, gerentes de
dos médicos não é bem documentado, embora
benefícios e pacientes e seus familiares.
alguns relatórios documentem uma decepção
Portanto, as DPs precisam introduzir uma
considerável com as DPs. Outros estudos
estratégia abrangente e integradora para sua
mostram que, em geral, os médicos são
implementação.
positivos sobre as diretrizes, mas que grande
A estratégia de implementação se baseia em
parte não as integra à sua prática. A razão desse
informar e educar os médicos sobre o conteúdo
comportamento ambivalente são problemas
das diretrizes. As abordagens impessoais que
associados à produção, divulgação e uso das
usam a divulgação de material escrito apenas ou
DPs. No entanto, pouco se sabe sobre as
apresentações para grandes públicos não têm
atitudes e suspeitas dos médicos (e pacientes)
tido muito sucesso. A divulgação de uma DP
com relação às DPs, e com relação aos motivos
específica tem que ser personalizada, envolver
para estimular seu uso, ou com relação à sua
líderes médicos respeitados e incorporar um alto
credibilidade. Isso tem sido reconhecido com
grau de interação entre a platéia alvo e os que
um ponto negativo, visto que alguns motivos
apresentam as informações.
poderiam fazer com que médicos e pacientes
A comparação do desempenho atual com o
resistissem às DPs.
desempenho que seria esperado se as diretrizes
Alguns estudos indicam que a adesão dos
fossem seguidas pode ser usada como uma
médicos às diretrizes pode ser prejudicada por
estratégia de respostas de retorno para conseguir
uma série de barreiras. Algumas são: (i)
a implementação da DP. Pode haver tais
conscientização, (ii) conhecimento, (iii)
respostas à medida que o serviço é prestado
concordância, (iv) auto-eficácia, (v) expectativa
(retorno concomitante) ou depois que o serviço
de resultado, (vi) capacidade de superar a inércia
foi prestado (retrospectivo).
de práticas anteriores, e (vii) ausência de
O conhecimento das DPs pelos médicos para
barreiras externas para fazer as recomendações.
obter recertificação tem sido descrito como
Outro fator que pode tornar lenta a adesão dos
estratégia útil para a implementação da DP. Por
médicos às DPs pode ser o histórico
essa razão, as associações médicas ou conselhos
educacional dogmático. Por exemplo, médicos
médicos devem fazer parte da estratégia de
de família canadenses têm pouca resistência às
implementação das DPs. Sua função pode ser a
diretrizes e parecem precisar menos da ameaça
361

de controles externos para incorporá-las à sua quando a lista de medicamentos essenciais foi
prática. Por outro lado, os internos americanos emendada para incluir a morfina.
dão menos apoio às DPs. É possível que a Outro fator a ser respeitado ao introduzir DPs
educação adquirida no treinamento médico em locais de poucos recursos é a disparidade do
tenha um papel no apoio às DPs pelos acesso aos serviços médicos dependendo de
profissionais. Portanto, o desenvolvimento de fatores geográficos, como a diferença entre a
DPs deve incluir palestras a líderes de opinião capital e as regiões rurais, ou a diferença entre
em faculdades de medicina e organizações instituições de saúde nacionais com poucos
respeitadas para promover a divulgação. fundos e instituições particulares de alto padrão.
A clareza e a leitura fácil, além da aplicabilidade De um lado, as DPs precisam ser adotadas em
clínica de uma diretriz são outros elementos que etapas para serem usadas dependendo dos
contribuem para a aceitação das diretrizes pelos recursos disponíveis, de outro lado, as DPs
clínicos. Em conclusão, as DPs devem ser podem ser usadas como um instrumento para
escritas em linguagem simples, adaptadas às otimizar os recursos e a qualidade do serviço de
necessidades práticas do clínico e defendidas saúde.
por conselhos médicos, líderes de opinião e Também existem algumas diferenças nacionais,
sociedades médicas. Se a implementação de uma devido a razões culturais, étnicas/genéticas e
DP é bem sucedida, os resultados para a tradicionais, com relação ao uso de certos
segurança do paciente são animadores. medicamentos e procedimentos. No México,
por exemplo, 80% da população usa medicina
Por que as diretrizes fitoterápica e existem 3.500 plantas registradas
com propriedades medicinais. Por essa razão, a
práticas devem considerar fitoterapia ou outra medicina complementar
os recursos regionais? pode ser incluída em DPs localmente adaptadas.
Finalmente, a divulgação potencialmente eficaz
Os países em desenvolvimento têm acesso e as técnicas de educação desenvolvidas em
limitado a medicamentos ou procedimentos locais de muitos recursos também podem
dispendiosos. Portanto, as DPs devem precisar de mudanças para serem viáveis em
considerar os recursos regionais para sua locais de poucos recursos. Sabe-se que tal
viabilidade e aplicação de rotina, em geral iniciativa vai significar esforço considerável,
tornando impossível simplesmente copiar DPs embora o trabalho das DPs locais possa ao
internacionais. Pode ser inevitável fazer certas menos ser baseado em DPs internacionalmente
abordagens baseadas em evidências para aceitas. Será necessário ter todos os envolvidos
diagnóstico e tratamento opcionais, por ex., na mesma mesa: médicos rurais e acadêmicos,
incluindo frases como “se disponível”. As DPs outros profissionais de saúde, pacientes e seus
existentes devem ser adaptadas, se possível, de familiares, organizações locais e instituições
acordo com a “lista nacional de medicamentos acadêmicas. Isso parece muito trabalho, mas os
essenciais”. Se não houver alternativa razoável ganhos em segurança e economia após a
de medicamentos, não se recomenda mais publicação e a implementação de DPs
comprometimento com a DP nacional. Ao (adaptadas) justificarão o esforço.
contrário, a lista de medicamentos deve ser o
alvo. Devem ser feitos esforços para estimular Pérolas de sabedoria:
todos os envolvidos a mudar a lista de
medicamentos de acordo. Para dar um exemplo, As diretrizes práticas (DPs) são “instruções
a introdução dos cuidados paliativos básicos em sistematicamente desenvolvidas para auxiliar as
Uganda, no Oeste da África, só foi possível decisões do médico e do paciente sobre
tratamento de saúde adequado para
circunstâncias clínicas específicas”. As diretrizes  Os países em desenvolvimento têm
não são regras ou normas, mas sim uma síntese acesso limitado a medicamentos ou
útil e flexível de todas as informações procedimentos (dispendiosos). Portanto,
disponíveis, pertinentes e de alta qualidade, as DPs devem considerar recursos
aplicáveis a uma determinada situação clínica, regionais para sua viabilidade e aplicação
para que clínico e paciente tomem uma boa de rotina.
decisão.  As DPs devem levar em consideração os
 A evolução da medicina complicou o recursos e as tradições locais e
processo de tomada de decisão médica; disponibilizar a evidência da relação
por essa razão, as DPs podem ser usadas custo-benefício e da vantagem
como instrumento para auxiliar o clínico econômica. Se os recursos locais não
na tomada de decisões médicas. Esse tiverem evidência adequada ou se os
objetivo é possível porque as DPs recursos locais ignorarem a evidência
resumem a experiência coletiva e essencial, as DPs devem ser usadas
estabelecem um acesso fácil ao como instrumento para chamar a
conhecimento científico. atenção dos fazedores de políticas e dos
 As DPs devem ser fáceis de entender, administradores de saúde para o
abrangentes e gerenciáveis. O método gerenciamento mais positivo ou para
para a escolha da evidência deve ser intervenções na população afetada.
explicado e os critérios usados para
classificar cada recomendação devem ser Referências
incluídos.
 Foi desenvolvida uma grande variedade [1] Carter A. Clinical practice guidelines. CMAJ
de métodos para “classificar” a força da 1992;147:1649–50.
evidência na qual a recomendação foi [2] Frances A, Kahn D, Carpenter D, Frances C,
Docherty J. A new method of developing expert
baseada. Os métodos de classificação
consensus practice guidelines. Am J Manag Care
consideram o desenho do estudo, os 1998;4:1023–9.
benefícios e prejuízos e os resultados. [3] Guevara-Lopez U, Covarrubias-Gomez A, Rodriguez-
 A aceitação das DPs requer educação Cabrera R, Carrasco-Rojas A, Aragon G, Ayon-Villanueva
H. Practice guidelines for pain management in Mexico.
extensiva de médicos, administradores
Cir Cir 2007;74:385–407.
de sistemas de saúde, fazedores de [4] Henning JM. Th e role of clinical practice guidelines in
políticas, gerentes de benefícios e disease management.Am J Managed Care 1998;4:1715–22.
pacientes e seus familiares. Portanto, as [5] Palda VA, Davis D, Goldman J. A guide to the
DPs precisam ter uma estratégia Canadian Medical Association handbook on clinical
practice guidelines. CMAJ 2007;177:1221–6.
abrangente e integradora para sua
[6] Walker RD, Howard MO, Lambert MD, Suchinsky R.
implementação. Medical practice guidelines. West J Med 1994;161:39–44.
 A adesão dos médicos às diretrizes pode
ser prejudicada por uma série de Sítios na Web
barreiras que incluem: (i)
conscientização, (ii) conhecimento, (iii) NICE: National Institute for Health and Clinical
concordância, (iv) auto-eficácia, (v) Excellence (UK). www.nice.org.uk
expectativa do resultado, (vi) capacidade AGREE: Appraisal of Guidelines Research and
de superar a inércia de práticas Evaluation Collaboration. www.agreecollaboration.org
anteriores, e (vii) ausência de barreiras
externas para realizar as recomendações.
363

Tabela 2
Estratégias usadas para desenvolver diretrizes práticas
Estratégia Descrição
Identificação de um problema médico regional É identificado um problema médico regional. O impacto desse problema na
população e a utilidade das diretrizes práticas são analisados. Se necessário, é
formado um grupo de consenso para o desenvolvimento das diretrizes (para
gerenciamento, cuidados, diagnósticos, etc.).
Escolha de um grupo de especialistas Formado por especialistas das áreas relacionadas ao tópico da diretriz. Os critérios
de seleção incluem experiência (mais de 5 anos) nesse campo específico, em
pesquisa clínica, em classificar a evidência para as recomendações e/ou um perfil
acadêmico. Os médicos recomendados por associações médicas nacionais
relacionadas à área específica também estão incluídos. Os especialistas não podem
ter conflito de interesses.
Identificação das tendências médicas O grupo de especialistas desenvolve um questionário para avaliar as tendências
médicas (para diagnóstico, gerenciamento, cuidados, etc.). Os itens do questionário
são baseados nas instruções de outros grupos de consenso, diretrizes clínicas,
sequencias de intervenções ou algoritmos clínicos. Os resultados do questionário
são enviados para especialistas selecionados.
Revisão da literatura A partir do tópico selecionado para a diretriz, faz-se uma revisão focada da
literatura. Esse processo é feito através de vários bancos de dados eletrônicos
médicos (PubMed, EMBASE, LILACS, e outros). Faz-se a referência cruzada dos
documentos selecionados. Recursos para obter referência são fornecidos pelos
institutos nacionais de saúde, associações médicas nacionais e organizações sem fins
lucrativos.
Envio das evidências para os especialistas selecionados Os resultados da revisão da literatura são enviados para especialistas selecionados.
O objetivo é que todos os participantes tenham a oportunidade de analisar a
literatura antes da reunião de consenso.
Preparo das recomendações É feita uma reunião de consenso para analisar os resultados obtidos pelo
questionário e para criar recomendações específicas (para gerenciamento,
diagnóstico, educação, cuidados, etc.). Todas as recomendações podem ser sujeitas
a revisões futuras com base na especialização do grupo e nos resultados da revisão
da literatura.
Resultados preliminares É feito um relatório preliminar depois da reunião de consenso. Cada uma das
recomendações é submetida a uma revisão focada da evidência científica. São
analisados meta-análises, revisões sistemáticas, estudos aleatórios controlados,
estudos aleatórios não controlados e relatos de caso para cada recomendação
específica. Se não há estudos, a recomendação é baseada “na especialização do
grupo de consenso”. Os resultados dessa pesquisa são enviados para o grupo de
especialistas.
Classificação das recomendações A resposta em retorno do grupo de especialistas sobre a evidência para endossar a
recomendação é analisado. O método para classificar as recomendações está
descrito na Tabela 3.
Diretrizes práticas preliminares É enviado um documento preliminar para o grupo de consenso. São consideradas
as anotações finais dos participantes e é elaborado um documento final.
Revisão do documento final O documento final é enviado para aprovação dos participantes (tantas vezes
quantas forem necessárias). Após terminar esse processo, o documento é enviado
para publicação em periódico de impacto adequado.
Implementação das diretrizes É feita uma educação extensiva entre clínicos, administradores de sistemas de
saúde, fazedores de políticas e pacientes e seus familiares em cada centro de filiação
de cada participante do consenso. São feitas conferências em congressos regionais
ou reuniões médicas. Os esforços locais para implementar as diretrizes requerem o
engajamento dos participantes.
Acompanhamento e avaliação das diretrizes Prepara-se um questionário para avaliar o conhecimento do médico sobre as
diretrizes ou seus resultados. A avaliação é obtida através do método desenvolvido
pelo Grupo de Colaboração AGREE.
Informações extraídas de: Frances [ref.2], Guevara-Lopez e col. [ref. 3], Grupo de Colaboração AGREE: www.agreecollaboration.org;
Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (RU): www.nice.org.uk.
Pérolas de Sabedoria
365

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 45
Técnicas para Bloqueios Nervosos Usados
com Frequência
Corrie Avenant

Porquê recomendar a Que avaliação deve ser feita


anestesia regional? antes de realizar um
bloqueio?
 O doente permanece consciente ou
ligeiramente sedado. Não existem diferenças no que diz respeito à
 As vias aéreas e a respiração não são avaliação de um doente sujeito a técnica de anestesia
afetadas. geral e a de anestesia regional. Devem ser tidos em
 A incidência de tromboembolismo pós- conta os mesmos cuidados e considerações, com
operatório é reduzida. uma história clínica e exame clínico relevantes. É
 As técnicas de anestesia regional são mais necessária uma história farmacológica especial
baratas do que a anestesia geral. relativamente a medicamentos anticoagulantes e
anti-plaquetarios (anti-agregantes), como o tipo, a
Quais as desvantagens da dose e a hora a que foram tomados os
anticoagulantes.
anestesia regional? É necessário explicar ao doente o que irá
sentir:
 São necessárias competências especiais para  Algumas parestesias e movimentos
realizar um bloqueio nervoso com sucesso. involuntários durante a inserção da agulha.
 A analgesia pode não ser sempre eficaz, pelo  A nível intraoperatório, o doente pode sentir
que pode ser necessária a conversão para movimento, toque e pressão enquanto
anestesia geral. recebe a analgesia adequada e terá de ser
 Podem ocorrer complicações imediatas, tranquilizado quanto ao facto de que haverá
como toxicidade ou hipotensão. uma grande probabilidade de ser
administrada anestesia geral caso a analgesia
seja inadequada.
 No pós-operatório, o doente terá de
aguardar algumas horas até que volte a sentir
movimento e sensações, mas poderá ter uma perda de consciência, convulsões ou
refeição imediata. arritmias), parar a injeção e administrar
oxigénio e ventilação de apoio a fim de
Quais as contraindicações evitar acidose.

para a anestesia regional? Parar as convulsões com pentotal,
benzodiazepinas ou propofol por via
intravenosa.
 Recusa do doente  Se estiverem presentes sintomas cardíacos,
 Problemas de coagulação proporcionar suporte circulatório
 Infeções no local da injeção (antiarrítmicos como a amiodarona ou a
 Défices neurológicos pré-existentes: amrinona). Se as arritmias persistirem,
verificar a documentação prévia e realizar o utilizar cardioversão elétrica (preferir
seu próprio exame breve antes de planear bifásica) e reanimação cardiopulmonar
uma anestesia regional, a fim de evitar ser (RCP) durante o tempo necessário (o que
responsabilizado por eventuais défices pode ser mais prolongado do que para
neurológicos não documentados outras causas de paragem).
 Se disponível, utilizar perfusão de lípidos
Quais as características e a (Intralipid) para «antagonizar» a toxicidade
estrutura de um fármaco anestésica local (um bólus de 1,5 mL/kg de
peso corporal de Intralipid 20%, seguido de
anestésico local típico? 0,25 mL/kg de peso corporal/minuto
durante 1 hora).
 Os anestésicos locais têm uma estrutura
tripartida Que tipos de bloqueios
 As três partes da estrutura consistem num nervosos são fáceis de
anel aromático, numa cadeia intermédia e
num grupo amino realizar?
 A cadeia intermédia tem uma ligação éster
ou amido Bloqueio dos dedos da mão
 A ligação éster é decomposta por hidrólise, As indicações são fraturas e lacerações. Os dois
tem uma validade curta e é relativamente nervos digitais percorrem cada lado do dedo. Por
não tóxica conseguinte, a técnica é a seguinte:
 A ligação amido é metabolizada pelo fígado  O ponto de referência é a base do dedo.
 O modo de ação é um bloqueio reversível  Inserir a agulha e estabelecer contacto com
da condução nervosa, bloqueando os canais o osso (a falange proximal no seu ponto
de sódio (a partir do local intracelular) lateral).
 Retirar um pouco a agulha e injetar 0,5 – 1
Como evitar a toxicidade ao mL de 0,5% de bupivacaína.
 Redirecionar a agulha dorsalmente e injetar
utilizar anestésicos locais? mais 1 mL.
 Repetir esta operação do outro lado.
 Respeitar sempre as doses máximas: para a
bupivacaína, a dose máxima é de 2 mg/kg Bloqueio dos dedos dos pés
para uma técnica de injeção única (máximo As indicações são fraturas e amputações. Tal como
diário de 8 mg/kg para técnicas contínuas). acontece no dedo, dois nervos percorrem cada lado
 Em caso de sintomas de toxicidade
(perturbações da fala, zumbido nos ouvidos,
367

dos dedos dos pés. Por conseguinte, a técnica é  Confirmar a costela por palpação ou pontos
idêntica à do bloqueio dos dedos da mão. de referência adequados.
Utilizar sempre anestésicos locais simples  Identificar a linha medioaxilar.
para os bloqueios digitais; NUNCA usar misturas  A fim de evitar pneumotórax, a ponta da
com epinefrina (adrenalina). agulha deve estar muito próxima da costela.
 A costela é mantida entre o indicador e o
Anestesia regional intravenosa (bloqueio de
anelar.
Bier)
 Inserir a agulha entre o indicador e o anelar
O bloqueio de Bier pode ser um bloqueio muito
e avançar para estabelecer contacto com a
eficaz para a manipulação dos membros superiores
costela.
e inferiores, como a manipulação de fraturas simples
e a sutura de lacerações.  Direcionar a agulha para baixo
O método é o seguinte: (caudalmente) e orientar a agulha até que
deslize.
 Garantir o acesso venoso de ambos os
lados.  Avançar a agulha não mais de 5 mm a fim
de prevenir um pneumotórax.
 Dispor de um carro de reanimação
completo pronto a usar (em caso de falha  Por fim, injetar 2-3 mL de bupivacaína a
dos cuffs). 0,5% em cada nível, após aspiração cuidada,
uma vez que a artéria e o nervo intercostais
 O torniquete insuflável é colocado à volta
estão muito próximos.
do secção superior do braço, sobre uma
ligadura em lã para proteger a pele.
Bloqueio do pulso
 Pode ser usado um cuff duplo para cirurgia
Podem ser realizados bloqueios do pulso caso um
prolongada (>15 minutos).
bloqueio do plexo esteja incompleto, também como
 Drenar o sangue venoso do membro bloqueio diagnóstico ou para tratamento de dor. É
afetado. necessário estar familiarizado com a anatomia. O
 Encher o cuff de pressão sanguínea até 100 nervo mediano está situado na zona radial do
mm Hg acima da pressão arterial sistólica. tendão do palmaris longus (mais visível quando se
 Injetar um anestésico local. flete o pulso), e o nervo ulnar situa-se do outro lado
 A anestesia é conseguida após 10-15 (ulnar). O nervo radial está situado superficialmente
minutos (o cuff de pressão arterial não deve no aspeto lateral do pulso.
ser esvaziado durante 20 minutos). Para bloquear o nervo mediano:
 Utilizar uma solução de 0,5 mL/kg de 0,5%  Inserir a agulha no lado flexor, entre os
de lidocaína (simples) tendões do flexor carpi radialis do carpo e o
tendão do palmaris longus.
Bloqueio dos nervos intercostais  Caso se verifique a ocorrência de parestesias,
Uma indicação típica seria o alívio pós-operatório retirar ligeiramente e injetar 3-5 mL.
da dor após uma colecistectomia ou toracotomia, Para bloquear o nervo ulnar:
bem como o alívio simples de costelas fraturadas.  Pedir para estender o braço e colocar a mão
Recorde-se de que os nervos intercostais derivam com a palma virada para cima (supinação)
do ramo ventral dos nervos espinais e de que  Inserir a agulha cerca de 3-4 cm em posição
percorrem a borda inferior das costelas. Para proximal relativamente à prega entre o
bloquear os nervos intercostais, utilizar a seguinte tendão do flexor carpi ulnaris e a artéria
técnica: ulnar.
 Posicionar o doente em posição de supino.  Caso se verifique a existência de parestesia
 Elevar o braço do doente com a mão atrás ligeira, retirar a agulha ligeiramente e injetar
da cabeça. 3-5 mL do anestésico local.
Para bloquear o nervo radial:  Podem ser realizados com um mínimo de
 Pedir para estender o braço e colocar a mão formação.
com a palma virada para cima (supinação).  Contudo, é necessário conhecer e
 Infiltrar subcutaneamente no lado radial do memorizar os detalhes anatómicos (ver
pulso a 3-5 cm do ponto da cabeça radial. página web).
 Os bloqueios dos nervos periféricos
Bloqueio do tornozelo funcionam melhor se não houver
As indicações seriam todo o tipo de cirurgia aos pés, inflamação local.
incluindo amputações. Para um bloqueio eficaz do
 A toxicidade dos anestésicos locais pode ser
tornozelo, proceder como se segue:
prevenida (quase sempre) respeitando as
 Colocar o doente em posição de supino. doses máximas e evitando a injeção
 Bloquear o nervo peroneal superficial intravascular através de uma aspiração
através de uma infiltração subcutânea entre cuidada.
a extremidade anterior da tíbia e a  Em caso de toxicidade anestésica local, é
extremidade superior do maléolo lateral com preciso dispor de todos os instrumentos e
uma solução anestésica de 5-10 mL. fármacos necessários, prontos a usar, caso
 Bloquear o nervo sural através de infiltração contrário, não devem ser realizados
de 5 mL de um anestésico local, entre o bloqueios.
tendão de Aquiles e o maléolo lateral  Em caso de parestesias, retirar a agulha a
(externo). fim de evitar lesões nervosas.
 Infiltrar o nervo safeno com 5 mL de  Não aplicar bloqueios se o doente não o
anestésico local por via subcutânea desde a consentir.
extremidade anterior da tíbia (a nível da
patela lado interno) até ao tendão de
Aquiles.
Referências
 Bloquear o nervo peroneal profundo
[1] Enneking FK, Chan V, Greger J, Hadzić A, Lang SA,
inserindo a agulha entre o tendão do Horlocker TT. Lower-extremity peripheral nerve
músculo extensor do hálux (extensor blockade: essentials of our current understanding. Reg
hallucis longus) e a artéria dorsal do pé, no Anesth Pain Med 2005;30:4-35.
dorso do pé. A agulha é inserida [2] Klein SM, Evans H, Nielsen KC, Tucker MS, Warner
DS, Steele SM. Peripheral nerve block techniques for
perpendicularmente à pele e é avançada
ambulatory surgery. Anesth Analg 2005;101:1663-76.
ligeiramente sob a artéria. Após a aspiração
negativa, injetar 5 mL de anestésico local.
 O bloqueio do nervo tibial pode ser obtido
Sítios na Web
com a agulha inserida diretamente em
http://www.painclinic.org/treatment-
posição dorsal relativamente à artéria tibial
peripheralnerveblocks.htm (incluindo imagens anatómicas para
posterior, do lado medial da articulação, ou cada bloqueio)
em alternativa, diretamente em posição
anterior relativamente ao tendão de Aquiles, http://www.nysora.com/ (incluindo fotografias reais para
atrás do maléolo medial. todos os bloqueios relevantes)

http://www.nda.ox.ac.uk/wfsa (Material educativo da World


Pérolas de sabedoria Anaesthesia Online sobre diferentes bloqueios relevantes a
utilizar em contextos de baixos recursos)

 Alguns bloqueios dos nervos periféricos são


fáceis de executar e muito eficazes.
369

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 46
Princípios Psicológicos do Tratamento da Dor
Claudia Schulz-Gibbins

O que podemos usar para O que podemos usar para


dor aguda? dor oncológica e de
HIV/AIDS?
A dor aguda costuma ocorrer junto com uma
doença ou uma lesão, ou como efeito do tratamento
No tratamento da dor crônica, é importante
de uma doença (por ex., dor pós-operatória).
diferenciar entre dor benigna e maligna. No entanto,
Diferente da dor crônica, a dor aguda é um sinal de
para dor oncológica e dor causada pelo HIV, existe
alarme do corpo. Em geral, pode-se saber a causa e
o mesmo relacionamento, dentro da estrutura do
o tratamento é basicamente repouso e tratamento
conceito biopsicológico, que os outros modelos de
da causa da dor. O efeito psicológico é a esperança
dor crônica.
que o tratamento tenha sucesso e que a dor acabe
A prevalência de comorbidades como ansiedade e
logo. Pode haver ansiedade e apreensão durante o
depressão é comum, como em outras síndromes
período de dor aguda, por exemplo, medo de
dolorosas, e deve ser levada em consideração e
cirurgia ou anestesia que possam ser parte do
tratada. Em geral, esses transtornos são ignorados.
tratamento.
Além disso, os pacientes precisam enfrentar a dor
de um tumor e a dor que pode surgir no curso do
Consequências práticas
tratamento. Superar as consequências das doenças
Como parte da preparação para a cirurgia,
crônicas é muito diferente em países desenvolvidos
intervenções como técnicas de relaxamento, uma
e em países em desenvolvimento. O tratamento da
boa explicação do procedimento e dos desfechos
pessoa doente é em geral difícil para a família
possíveis, e uma visão otimista mostraram-se úteis.
devido a problemas financeiros. Uma situação
É possível reduzir a dor pós-operatória através
financeira difícil e o pouco acesso a serviços
desse conhecimento. Conhecer o tratamento
médicos, de enfermagem ou outros serviços sociais
costuma reduzir a ansiedade. As técnicas de
podem afetar negativamente o processo de cura. Na
relaxamento podem minimizar os padrões de
ocasião do diagnóstico, costuma haver perda de
agitação psicológica como frequência cardíaca alta e
controle e desamparo face à possível desfiguração
inquietação interna.
física, dor concomitante e possíveis implicações
financeiras para o tratamento adequado, sem falar
do medo e da incerteza em torno da perspetiva de
uma morte prematura. Adicionalmente, problemas padrões musculares disfuncionais, como aumento
de culpa podem levar a estresse psicológico por de tensão, que pode então se tornar o fator
tentar se culpar pela doença, por exemplo: “é minha desencadeante da cefaleia. Fatores de estresse social,
culpa que eu tenho um tumor porque eu fumava como excesso de demandas no trabalho ou
demais”, ou “estou infetado pelo HIV devido à estratégias ineficazes para enfrentar o estresse
minha vida sexual irresponsável”. podem tornar as cefaleias intensas e crônicas.

Consequências práticas Consequências práticas


O aconselhamento adequado e o suporte emocional O importante no tratamento das cefaleias é explicar
devem ser integrados aos cuidados de saúde desses ao paciente que o estresse pode levar a um aumento
pacientes. Uma boa comunicação e explicações de intensidade e frequência da cefaleia. As
sobre as possibilidades terapêuticas existentes intervenções psicológicas mais importantes são
podem reduzir o medo e o desamparo, e permitir educação para enfrentar a dor e sobre a importância
que os pacientes enfrentem melhor a doença e seus da administração do estresse e a redução de
desafios. Particularmente no Quênia, o apoio hiperatividade com aulas de terapia
religioso tem se mostrado útil. comportamental, técnicas de relaxamento, etc.

Quais são as opções para a O que pode ser usado para


dor crônica não oncológica? lombalgia crônica?
Em termos de dor abdominal crônica, que é difícil Na maioria dos casos, a lombalgia crônica tem
de ser localizada e administrada pelo paciente, e que origem musculoesquelética, acompanhada de
em geral se apresenta junto com ameaça de impossibilidade de enfrentá-la e de outras
incurabilidade e morte iminente. Em geral, os “bandeiras amarelas”. Um problema especial ao
médicos se perguntam, “Por que o paciente veio enfrentar a lombalgia crônica é o fato de que às
aqui hoje?” As razões do paciente podem ser medo vezes não é possível dar explicações suficientes ao
de doença grave após mortes na família, paciente sobre a causa e a origem da dor. Por
comorbidades psicológicas, sofrimento emocional exemplo, o diagnóstico de “lombalgia inespecífica”
devido a abuso sexual, mas também problemas com leva a uma grande incerteza por parte do paciente,
o contexto real da vida e estratégias ineficazes de em geral causando medo de uma patologia mais
enfrentamento que podem levar ao aumento da dor. grave e o desejo de mais procedimentos
diagnósticos. Costuma haver um componente
Consequências práticas iatrogênico quando são solicitadas investigações
Deve-se procurar os indicadores de estresse adicionais – em parte porque o paciente insiste nisso
mencionados acima que possam afetar o e em parte porque o médico pode estar incerto:
desenvolvimento e a manutenção da dor. “Existe tumor ou prolapso grave de disco causando
Intervenções terapêuticas, inclusive uma boa a dor?” Pode haver relutância em “perder algo”.
explicação sobre a doença, apoio psicológico
continuado, conselhos sobre dieta balanceada, etc., Consequências práticas
devem ser incluídos ao longo do tempo. A compilação abrangente de todos os achados, além
da discussão com os colegas sobre diagnósticos e
Como podemos abordar a tratamentos prévios podem ser úteis para obter o
cefaleia crônica? quadro completo do paciente. Deve-se informar o
paciente sobre procedimentos diagnósticos
invasivos desnecessários e, em geral, muito
A maioria das cefaleias não têm causa orgânica. Em
dispendiosos.
geral, encontramos interações entre a cefaleia e
371

Após considerar todos os fatores, inclusive [5] Merskey H, Lau CL, Russell ES, Brooke RI, James M,
comorbidade psiquiátrica ou riscos de cronificação, Lappano S, Neilsen J, Tilsworth RH. Screening for psychiatric
morbidity. The pattern of psychological illness and premorbid
pode-se desenvolver um plano de tratamento. Bons characteristics in four chronic pain populations. Pain
modelos de interações, por exemplo entre depressão 1987;30:141–57.
e dor crônica, podem ajudar o paciente a enfrentar a [6] Murray SA, Grant E, Grant A, Kendall M. Dying from
dor com sucesso. cancer in developed and developing countries: lessons from
two qualitative interview studies of patients and their carers.
Referências BMJ 2003;326:368.
[7] Norman SB, Stein MB, Dimsdale JE, Hoyt DB. Pain in the
aftermath of trauma is a risk fator for posttraumatic stress
[1] American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical disorder. Psychol Med 2008; 38:533–42.
manual of mental disorders, 4th ed. Washington, DC: [8] Tang NK, Crane C. Suicidality in chronic pain: a review of
American Psychiatric Association; 1994. the prevalence, risk factors and psychological links. Psychol
[2] Dersh J, Polatin PB, Gatchel RJ. Chronic pain and Med 2006:36:575–86.
psychopathology: research fi ndings and theoretical [9] Tsang A, Von Korff , M, Lee S, Alonso J, Karam E,
considerations. Psychosom Med 2002;64:773–86. Angermeyer MC, Borges GL, Bromet EJ, de Girolamo G, de
[3] Fishbain D, Cutler R, Rosomoff H. Chronic pain- Graaf R, Gureje O, Lepine JP, Haro JM, Levinson D, Oakley
associated depression: antecedent or consequence of chronic Browne MA, Posada-Villa J, Seedat S, Watanabe M. Common
pain? A review. Clin J Pain 1997;13:116–37. chronic pain conditions in developed and developing
[4] Gureje O, von Korff M, Kola L, Demyttenaere K, He Y, countries: gender and age diff erences and co morbidity with
Posada-Villa J, Lepine JP, Angermeyer MC, Levinson D, de depression-anxiety disorders. J Pain 2008;9:883–91.
Girolamo G, Iwata N, Karam A, Guimaraes Borges GL, de
Graaf R, Browne MA, Stein DJ,Haro JM, Bromet EJ, Kessler
RC, Alonso J. The relation between multiple pains and mental
Sítios na Web
disorders: results from the World Mental Health Surveys. Pain
2008;135:82–91. www. immpact.org (Initiative on Methods, Measurement, and
Pain Assessment in Clinical Trials)
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 47
Insights da Fisiologia Clínica
Rolf-Detlef Treede

anestesia local) também diminui a sensibilização


Insights da dor aguda central.
Consequências práticas
Além de aliviar o sofrimento, um dos principais Pergunte aos pacientes sobre dor induzida por
objetivos do tratamento da dor pós-operatória é movimento e trate com analgésicos multimodais
facilitar e acelerar a recuperação, restabelecer a eficazes.
mobilidade e favorecer uma alta hospitalar rápida.
Um dos mecanismos fundamentais do sistema Insights da dor oncológica
nociceptivo que interfere com esses objetivos é
chamado de sensibilização central. A sensibilização é Uma das condições mais dolorosas do paciente com
um mecanismo básico de aprendizado que descreve câncer avançado é a metástase óssea. Essa realidade
o aumento da resposta neural quando estímulos de médica bem conhecida conflita com o ensinamento
intensidade constante são simplesmente repetidos. científico tradicional básico: de acordo com livros
(Sua contrapartida, a habituação ou redução da didáticos comuns, só o periósteo é enervado, mas
resposta a estímulos repetitivos, é menos não o osso em si. Se isso fosse verdade, apenas
proeminente no sistema nociceptivo). Na grandes metástases ósseas se estendendo até o
sensibilização central, o aumento da resposta neural periósteo deveriam ser dolorosas. Mas a experiência
é devido à maior eficácia das conexões sinápticas mostra o contrário: felizmente, as metástases ósseas
com o sistema nociceptivo. A sensibilização central dolorosas em geral ainda não destruíram a
aumenta a dor de estímulos mecânicos,enquanto que a compacta. Portanto, quando são tratadas
sensibilização periférica aumenta quase que causalmente por radio ou quimioterapia, a
exclusivamente a sensibilidade ao calor. Isso torna a estabilidade do osso é preservada. Também é bem
sensibilização central altamente importante no pós- conhecido que a aspiração da medula óssea é muito
operatório. dolorosa, apesar da anestesia local do periósteo.
Quando ocorre sensibilização no sistema Portanto, as estruturas ósseas internas são
nociceptivo, o paciente sente mais dor em resposta densamente enervadas por aferentes nociceptivos,
a estímulos relativamente leves, como se mover na provavelmente semelhante à enervação dos dentes.
cama ou tossir. Como consequência, o paciente vai se Apenas recentemente os anatomistas conseguiram
mover menos e respirar menos profundamente para suportar demonstrar fibras nervosas nociceptivas no osso
a dor até um nível tolerável. Felizmente, o usando o marcador CGRP (peptídeo relacionado ao
tratamento eficaz da dor (por ex., com opióides ou gene da calcitonina), onde elas parecem ter contato
373

com a trabécula óssea e os osteoclastos. neuropática corretamente, os especialistas de dor


Fisiologicamente, também existem evidências precisam ter algum nível de treinamento
recentes de que a medula espinhal recebe impulsos neurológico.
nociceptivos de dentro do osso.
Insights da dor crônica
Consequências práticas
A lesão tecidual restrita à medula óssea pode ser A enxaqueca é uma síndrome frequente com
fonte de impulsos nociceptivos intensos. Portanto, importante impacto na qualidade de vida. Apesar de
os pacientes com dor em tais condições necessitam muitas pesquisas, sua fisiopatologia ainda não está
de tratamento. No entanto, o tratamento aqui não totalmente explicada. Na fase da aura, muitos
precisa ser necessariamente com analgésicos; ao pacientes são hipersensíveis a estímulos externos,
contrário, radioterapia ou quimioterapia podem como luz, som, odores ou toque. Esse aumento de
realmente eliminar a causa dessa dor. sensibilidade parece estar relacionado a uma
deficiência de habituação. Por exemplo, estudos de
Insigths da dor neuropática potencial evocado cerebral demonstraram que a
redução da resposta normal mediante a aplicação
Existe uma discussão antiga sobre como definir a repetitiva de estímulos visuais não existe nos
“dor neuropática”. O conceito, no entanto, é pacientes migranosos. Mais recentemente, esses
bastante simples: considere o sistema nociceptivo déficits também foram demonstrados para
como o sistema de alarme do organismo. A dor é habituação da dor usando potenciais evocados por
sentida quando esse sistema aciona o alarme. Como laser (aqui um laser infravermelho aplica pulsos
em outros sistemas de alarme, existem duas formas breves de calor de poucos mili-segundos de
possíveis de ativar o alarme: (a) existe um sinal real duração). Existe alguma evidência de que os déficits
de alarme e um evento real; (b) é um falso alarme de habituação da dor ocorrem em outras condições
causado por um defeito no sistema de alarme. A dor álgicas também, como na síndrome cardíaca X.
comum após dano tecidual é um caso de alarme real
pelo sistema nociceptivo. No caso da dor Consequências práticas
neuropática, é um alarme falso causado por algum Atualmente não temos como, mas no futuro poderá
tipo de dano ao sistema nociceptivo. ser possível aliviar a dor crônica com modalidades
de tratamento que melhorem a habituação sem ser
Consequências práticas diretamente analgésicas.
Se o paciente relata dor em uma parte do corpo que
não está machucada, considere a possibilidade de Insights da dor em lactantes
dor neuropática. Para verificar essa hipótese clínica
é preciso buscar evidências para demonstrar o dano
e crianças
subjacente ao sistema nociceptivo. O histórico do
paciente pode revelar possíveis etiologias como A enervação cutânea ocorre a cerca de 7-15 semanas
diabetes, lesão de nervo periférico, HIV ou herpes de gestação e os arcos de reflexos simples aparecem
anterior. O exame sensorial é da maior importância: já a partir de 8 semanas. As conexões tálamo-
a distribuição da dor e a distribuição dos sinais corticais são estabelecidas bem mais tarde (a partir
sensoriais negativos e positivos devem ter boa de 20 semanas) e os sinais de ECG e de potenciais
correspondência. Os testes sensoriais devem incluir evocados somatossensoriais começam a aparecer na
ou um estímulo doloroso, como picada de agulha, semana 29-30. Esses sinais elétricos cerebrais
ou um estímulo térmico como o contato com um sugerem que as perceções conscientes, como a dor,
objeto frio (as vias termo-recetoras são muito podem estar presentes antes do nascimento. No
semelhantes às vias nociceptivas e, portanto, são um entanto, o sistema nervoso está imaturo ao
excelente substituto). Para diagnosticar a dor nascimento e sofre mudanças substanciais após o
nascimento. Imediatamente após o nascimento, os
reflexos cutâneos de retração estão vivos e ocorrem
Insights da dor na velhice e
com limiar muito baixo, como o toque leve de um na demência
objeto pontiagudo. As sinapses GABAérgicas são
excitatórias nas primeiras fases de desenvolvimento Os limiares de dor e potenciais cerebrais evocados
e se tornam inibitórias apenas com a maturação. por dor foram estudados em voluntários saudáveis
Após o nascimento, os reflexos diminuem enquanto até a idade de 100 anos. Os limiares de dor e as
que as respostas a estímulos corticais aumentam latências dos potenciais evocados aumentam
(detetáveis por espetroscopia quase-infravermelha, levemente e as amplitudes dos potenciais evocados
por exemplo). A mielinização dos nervos periféricos diminuem em idades acima de 80 anos. Em vários
está completa dentro de aproximadamente um ano, casos, no entanto, as aptidões de comunicação
mas leva de 5 a 8 anos no sistema nervoso central. verbal podem se deteriorar na velhice, com grandes
Assim que a criança começa a entender instruções variações individuais. Nessas situações, fica difícil
verbais, pode-se usar escalas faciais de dor da avaliar a dor. Para pessoas dementes, foram
mesma forma que usamos escalas analógicas visuais desenvolvidas e validadas escalas especiais baseadas
para os adultos. no observador para avaliar a dor e o sofrimento
nesse grupo vulnerável. Existem algumas evidências
Consequências práticas de que o efeito placebo é menos eficaz em pessoas
É difícil julgar o nível de dor e desconforto de dementes. A diminuição da função renal e hepática,
lactantes devido a suas fortes respostas reflexas que por outro lado, torna necessário ajustar as doses de
podem ou não correr em paralelo com a perceção muitos medicamentos.
consciente. Para ficar do lado seguro, considera-se
anestesia e analgesia adequadas como o padrão de Consequências práticas
tratamento para todas as idades. Aplicam-se regimes Muitas pessoas mantêm as funções normais do
especiais e a maioria dos medicamentos é usada sem sistema nociceptivo até a velhice. Quando existe
indicação. demência, a avaliação da dor se baseia cada vez mais
na observação de comportamentos relacionados à
dor. Atualmente assume-se que o nível de dor em
pacientes dementes é substancialmente
subestimado.
375

Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 48
Suplementos Fitoterápicos e Outros
Joel Gagnier

Saúde de Gana criou uma força tarefa para


Qual é a definição de identificar as Associações Nacionais de Curadores
confiáveis. Foram identificadas seis associações.
produtos naturais para a Essas associações se uniram para formar o núcleo
saúde? da Federação das Associações dos Praticantes de
Medicina Tradicional de Gana (GHAFTRAM).
Os produtos naturais para a saúde incluem Seguiram-se outras atividades, como conferências
vitaminas, minerais, medicamentos fitoterápicos, internacionais e intercâmbios de pesquisas.
homeopáticos e outras substâncias derivadas
naturalmente (por ex., glicosamina, pólen) para Quais os melhores
prevenir ou tratar várias condições de saúde. suplementos para dor
No mundo em desenvolvimento, seria aconselhável
consultar os anciãos ou curadores locais para aguda?
determinar plantas ou alimentos locais que possam
ser usados. Você deve receber instruções de como Os procedimentos cirúrgicos e o trauma agudo
usá-los com segurança. Os conhecimentos podem ser tratados por vários produtos naturais
tradicionais de anciãos, curadores ou chefes tribais para a saúde. Por exemplo, os medicamentos
respeitados podem ser informações valiosas. Pense homeopáticos arnica e hipericão podem ser úteis
sempre na relação custo-benefício, porque os antes e depois da cirurgia. A arnica é
produtos naturais de saúde podem conter particularmente útil para diminuir a dor, para a
ingredientes “não naturais”, como metais pesados descoloração de hematomas e reduzir o desconforto
ou outros contaminantes. Portanto, o uso de do paciente. O hipericão homeopático é muito útil
produtos naturais para a saúde depende da para cicatrizar incisões e eliminar a dor. Esses
confiança mútua entre o cuidador e o curador, medicamentos podem ser administrados oralmente
porque existem poucos dados baseados em à potências de 200C a cada 2-4 horas na véspera da
evidência e poucos produtos padronizados cirurgia e após a cirurgia até que a ferida cicatrize.
disponíveis. Para trauma agudo de músculos, ligamentos e
É aconselhável buscar a cooperação entre o setor tendões, cremes ou pomadas tópicas contendo
médico “oficial” e “extraoficial” para ampliar as Harpagophytum procumbens (garra do diabo), Capsicum
opções terapêuticas e evitar interações frutescens (caiena), arnica homeopática ou
contraprodutivas. Algumas iniciativas assumiram metilsufonilmetano (MSM) podem ser aplicados 3-4
essa tarefa. Por exemplo, em 1988 o Ministério da
vezes ao dia na área afetada desde que a pele esteja vitamina B2 por dia, 100 mg de Tanacetum parthenium
intacta. (matricária) por dia, ou 150 mg de Petasides hybridus
(Butterbur) por dia. Podem ser usados
Quais os melhores individualmente ou em combinação. A dor
reumática na forma de osteoartrite (OA) pode ser
suplementos para dor tratada com sucesso com 1.500 mg de sulfato de
neuropática? glicosamina oral por dia junto com 1.200 mg de
sulfato de condroitina por dia; 300 mg de frações
As neuralgias periféricas, se causadas por insaponificáveis de óleos de abacate ou de soja por
desnutrição, podem ser tratadas com suplementos dia; 2.400 mg de Harpagophytum procumbens (garra do
vitamínicos. As vitaminas E, B1, B3, B6 e B12 são diabo) por dia; e cremes tópicos contendo uma
essenciais para a função nervosa adequada. Uma combinação de cânfora, sulfato de glicosamina e
dieta regular com ingestão de frutas e legumes irá sulfato de condroitina. OA leve a moderada pode
suprir essas vitaminas, ou alternativamente uma responder a um tratamento começando com sulfato
simples fórmula multivitamínica mineral pode ser o de glicosamina (1.500 mg por dia) e sulfato de
suficiente. Em pacientes com neuropatia diabética, condroitina (1.200 mg por dia) por 4-6 semanas e se
além do controle adequado da glicemia, 150 mg de o efeito for limitado, adicionar frações
vitamina B6 ou 800 IU de vitamina E por dia podem insaponificáveis de óleos de abacate, soja e garra do
ser eficazes. Esses suplementos podem ser usados diabo. A artrite reumatoide pode ser tratada com 1-
juntos. Uma simples intervenção dietética para 1,5 gramas de óleo de semente de borragem por dia,
auxiliar no controle da glicemia é o consumo regular 2 gramas de óleo de peixe oral contendo ácido
de grãos e leguminosas. eicosapentaenóico (EPA) e ácido docosaexanóico
(DHA) por dia, 800 IU de vitamina E oral por dia,
Quais os melhores ou 200-600 mg de Tripterygium wilfordii (vinha do
Deus trovão).
suplementos para dor
crônica? Quais os melhores
suplementos para situações
A lombalgia crônica inespecífica pode ser tratada
com 2.000-3.000 mg de Harpagophytum procumbens terapêuticas especiais?
(garra do diabo) por dia, administrando 50-100 mg
do constituinte ativo harpagosídio; 1.200 mg por dia A demência do mal de Alzheimer pode ser tratada
de casca de salgueiro (Salix alba, Salix daphnoides ou eficazmente com 120-240 mg de Ginkgo biloba
Salix purpurea), administrando 120-240 mg do (Ginkgo) oral por dia, Melissa officinalis (erva-cidreira)
constituinte ativo salicina; ou creme tópico de a 60 gotas de um extrato de álcool a 45%, 1.000 mg
pimentão. A dismenorréia pode ser tratada com de Salvia officinalis (sálvia) por dia, ou 2.000 UI de
1.000-1.500 mg de cálcio oral por dia, 300-400 mg vitamina E oral por dia. Esses complementos
de magnésio por dia, 100 mg de vitamina B6 por dia, podem ser usados isoladamente ou em combinação.
400-800 IU de vitamina E por dia, ou 20-40 mg de Pode levar de 3 a 4 meses até que os efeitos dessas
Vitex agnus-castus (chaste berry) por dia. Para intervenções possam ser observados.
enxaquecas, os seguintes são eficazes: 400 mg de
377

Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Capítulo 49
Perfil Farmacológico, Doses e Efeitos Adversos de
Medicamentos Usados para o Tratamento da Dor

Barbara Schlisio

Apresentamos a seguir uma seleção de Aqui temos um exemplo de uma folha de


medicamentos comumente usados para o informações a ser dada aos pacientes:
tratamento da dor. A seleção foi extraída das Nome do Como tomá-lo Para que Informações
medicamento serve? importantes
recomendações da “Lista de Medicamentos
Morfina 1 comprimido Analgésico É possível haver
Essenciais para a Dor no Câncer” da Universidade de 20 mg: 6- forte para náusea e
de Makarere e do ministério da saúde de Uganda 12-18-24 horas controle de cansaço na
dor primeira
para o tratamento de pacientes oncológicos, que
constante semana. Nunca
parece ser uma seleção razoável de medicamentos mude a dose
para tratar a maioria das síndromes dolorosas por por conta
própria!
médicos não especialistas em locais com poucos
Morfina 1 comprimido Analgésico Vide acima. O
recursos financeiros. de 10 mg forte a ser tempo mínimo
Esta lista geral explica o modo de ação e os efeitos conforme tomado se a entre
necessário dor comprimidos
adversos comuns dos medicamentos. Outros efeitos
aumentar extras de
adversos já foram descritos, mas aqui foram listados morfina é 30
os mais mencionados em literatura e os mais minutos
Metoclopramida 40 gotas; Previne a Deve ser
prevalentes para os profissionais de saúde.
6-12-18-24 náusea tomada por 10
A segurança é um item a ser considerado ao horas causada pela dias. Depois
escolher um medicamento: os efeitos positivos morfina disso, tente
passar sem ela.
analgésicos devem ser sempre comparados aos
Carbamazepina 1 comprimido Ajuda na dor Tontura e
possíveis efeitos adversos. de 200 mg; 8- nervosa cansaço nos
O tratamento farmacológico deve ser 16-24 horas aguda primeiros dias
detalhadamente explicado ao paciente e sempre se ou semanas.
Lembre-se de
deve obter o “consentimento informado” da mesma vir ao
forma que para uma intervenção cirúrgica. Uma consultório
ferramenta valiosa para evitar mal entendidos e fazer um
hemograma
“desobediência” do paciente, é o uso de uma dentro de uma
simples “folha de informações” a ser entregue ao semana.
paciente quando ele sai do consultório com a
prescrição.
principalmente em pacientes com histórico de
Analgésicos não opioides ateração renal ou hipovolemia.
Atenção para as contraindicações: ulceração
Antiinflamatórios não esteroides (AINEs) gastrintestinal, hemofilia, hipersensibilidade à
Apesar das diferenças nas formulações químicas, os aspirina, crianças pequenas devido à possibilidade
AINEs têm um modo de ação comum, ou seja, a de síndrome de Reye, gestação, principalmente no
inibição da síntese de prostaglandinas pelas último trimestre, aleitamento e lesão renal avançada.
isoenzimas cicloxigenase COX-1 – 3. Lembre-se A dose padrão do diclofenaco é 50-75 mg três vezes
que as prostaglandinas sensibilizam as terminações ao dia, de ibuprofeno 400-800 mg três vezes ao dia,
nervosas nociceptoras periféricas a estímulos e de aspirina 500-1.000 mg quatro vezes ao dia.
mecânicos e a outros estímulos causando uma
diminuição no limiar da dor. As prostaglandinas Acetaminofeno (paracetamol)
centralmente ativas aumentam a perceção e a O mecanismo exato de ação não é claro. O
transmissão de sinais dolorosos periféricos. Mas os acetaminofeno pode inibir uma isoenzima
AINEs também interferem com uma série de outras cicloxigenase central (COX-3) e agir como inibidor
funções fisiológicas, o que explica a maioria de seus da substância P central e espinhal. Embora o
efeitos adversos. Esses efeitos indesejáveis incluem acetaminofeno seja classificado como antipirético,
maior liberação de ácido gástrico, agregação ele tem propriedades antiinflamatórias leves. O
plaquetária, atividade do endotélio vascular, início acetaminofeno é uma alternativa quando os AINEs
do trabalho de parto, e uma influência no duto são contraindicados ou não são bem tolerados pelo
arterioso de recém-nascidos. paciente.
Os AINEs costumam ser indicados para o O acetaminofeno é bem tolerado em doses
tratamento de dor aguda ou crônica, principalmente terapêuticas, mas é hepatotóxico em doses mais
quando há inflamação. Nas dores de leve a altas (aproximadamente 6-15 g por dia), quando
moderada intensidade, eles podem controlar seus metabólitos podem produzir necrose hepática
adequadamente a dor como terapia única, mas em fatal. Pacientes dependentes de álcool e desnutridos
dor de moderada a intensa, só devem ser usados em têm alto risco de necrose tubular renal. O
combinação com opioides. No período pós- acetaminofeno costuma ser usado para dor pós-
operatório, é de bom senso combinar opioides e operatória leve ou moderada, além de indicações
AINEs porque a redução da dose de cada fármaco para cefaleia e em pacientes oncológicos. Ele não
vai reduzir os efeitos adversos. Existem vários tipos apresenta nenhum efeito adverso gastrointestinal e
de AINEs em países diferentes. O diclofenaco e o renal quando as doses recomendadas são
ibuprofeno são os mais utilizados, mas outros observadas.
AINEs se mostraram comparáveis. Para evitar Atenção para as contraindicações: prejuízo hepático
acúmulo não pretendido do medicamento, alguns e renal grave, pacientes dependentes de álcool,
AINEs de ação prolongada devem ser evitados (por pacientes desnutridos e pacientes com deficiência de
ex., piroxicam), e para evitar efeitos gastrointestinais glicose 6-fosfato desidrogenase.
e renais, todos os AINEs devem ser usados por um A dose padrão do paracetamol é 500-1.000 mg três
curto período de tempo. A maioria dos AINEs vezes ao dia e no pós-operatório a dose inicial oral
causa úlceras e outros sintomas do trato digestivo ou retal deve ser de 2.000 mg.
superior, como dispepsia ou desconforto epigástrico Dipirona (metamizole)
se usados por muito tempo (>7-10dias). Um efeito A dipirona é considerada um inibidor central da
adverso menos comum mas grave é a reação cicloxigenase. Age como um antipirético. É um
anafilática com desenvolvimento de broncoespasmo medicamento diferente dos não esteroides devido a
grave e/ou depressão cardiovascular. A insuficiência seus efeitos espasmolíticos porque a dipirona inibe a
renal é a mais frequente e grave complicação e em liberação de cálcio intracelular. As vantagens da
geral está associada ao uso prolongado, dipirona são segurança renal, ausência de efeitos
adversos gastrointestinais e o baixo custo. Como o
379

acetaminofeno, a dipirona também pode ser usada tecidos periféricos, principalmente se houver
para tratamentos prolongados. Suas indicações são inflamação. O efeito analgésico é resultado da
dor aguda e crônica de intensidade leve a moderada, redução da abertura pré-sináptica dos canais de
além de cólicas. cálcio e da liberação de glutamato, além do aumento
Muitos pacientes se queixam de sudorese para a qual da efluxo pós-sináptica de potássio e da
não há tolerância. O tópico de reações hiperpolarização da membrana celular que reduz a
idiossincráticas a medicamentos foi reaberto por excitabilidade.
algumas publicações escandinavas e uma série de O tratamento com opioides envolve um equilíbrio
países então tiraram a dipirona do mercado. Mas entre analgesia suficiente e a acorrência de efeitos
vários outros países, inclusive Alemanha, Espanha e adversos. Os efeitos adversos mais frequentes –
a maioria dos países latino-americanos consideram náusea e sedação – diminuem ao longo do tempo de
de baixo risco o uso da dipirona se comparado aos uso devido a tolerância, exceto a obstipação que
efeitos adversos dos AINEs. A aplicação pode ser tratada profilaticamente com bons
intravenosa rápida pode ser associada a hipotensão, resultados.
que não deve ser confundida com resposta alérgica, A melhor indicação clínica para os opioides é o
que de fato ocorre apenas raramente. As tratamento sintomático de dor aguda e crônica
contraindicações são porfíria, deficiência de glicose- moderada ou intensa, principalmente dor pós-
6-fosfato desidrogenase, gestação (principalmente operatória e dor oncológica. A dor neuropática
no último trimestre) e aleitamento. também pode ser uma indicação, principalmente em
A dose padrão da dipirona é 500-1.000 mg quatro pacientes com HIV/AIDS. A dor crônica não
vezes ao dia. oncológica, como lombalgia inespecífica crônica ou
cefaleia, raramente são boas indicações para
Analgésicos opioides opioides. Nos cuidados paliativos, os opioides
também podem ser usados de forma eficaz para
Os opioides podem ser classificados em fracos e controlar dispnéia.
fortes. A escada de três degraus da Organização O abuso ou vício com os opioides é extremamente raro em
Mundial de Saúde (OMS) para tratamento da dor pacientes sem histórico de abuso de álcool, benzodiazepínicos
oncológica também acompanha essa divisão, ou drogas ilícitas! A razão é que quando os opioides
defendendo primeiro o uso de um opioide “fraco” são usados para controle da dor, a dose estável evita
(por ex., tramadol ou codeína) para dores mudanças importantes nos níveis séricos, portanto
moderadas seguido por um opioide “forte” (por ex., impedindo a ativação do sistema dopaminérgico de
morfina ou hidromorfona) para dores fortes. Para a recompensa (ao contrário de viciados que
prática clínica, a terapia com opioides pode começar experimentam um pico alto da droga após elevação
com baixas doses de opioides “fortes”, se não súbita dos níveis sanguíneos após injeção
houver disponibilidade de opioides “fracos”. intravenosa de um opioide e um “desejo” nos
Os opioides também são classificados de acordo intervalos entre a próxima injeção). Devemos
com sua afinidade com o recetor. O efeito diferenciar dependência psicológica ou vício com
analgésico dos opioides é mediado pela ligação aos dependência física. Na verdade, todos os opioides
recetores μ, κ e δ. Com exceção de pentazocina, causam dependência física (como várias classes de
tramadol e buprenorfina, todos os opioides medicamentos, como betabloqueadores e
comumente disponíveis são mais ou menos anticonvulsivantes), e os pacientes desenvolvem
agonistas μ puros com função linear de dose e sintomas de abstinência se os opioides são
efeito. Tramadol, pentazocina e buprenorfina, por interrompidos sem a diminuição gradual das doses.
outro lado, têm um efeito teto e se ligam a recetores Opioides “fracos”
diferentes ou adicionais. Os recetores opioides são De acordo com a escada de três degraus da OMS
encontrados em várias áreas do cérebro, da medula para dor oncológica, os opioides fracos devem ser
espinhal e – ao contrário da crença popular – nos usados primeiro, se os analgésicos não opioides
forem insuficientes para controlar a dor. Tramadol, (desenvolvimento de dor neuropática além da dor
codeína e dihidrocodeína são exemplos desse grupo. nociceptiva) ou ansiedade e depressão
O tramadol tem afinidade com o recetor opioide μ, concomitentes. As outras causas mencionadas
além de atuar na recaptação da noradrenalina e da precisam ser diagnosticadas corretamente para
serotonina no sistema nervoso inibitório serem tratadas especificamente com coanalgésicos
descendente. Também se considera que o tramadol ou intervenções não farmacológicas.
tenha alguns efeitos antagonistas do recetor Náuseas e vômitos, sonolência, boca seca, miose e
NMDA. Os opioides fracos estão às vezes obstipação são muito frequentes em pacientes
disponíveis em combinações fixas com AINEs ou recebendo opioides fortes. Se náusea e vômitos
acetaminofeno/paracetamol. persistirem, ou se surgirem sintomas de delírio, a
Os opioides fracos, ao contrário dos opioides fortes, mudança para um outro opioide (“rotação de
têm um efeito teto, ou seja, existe uma dose máxima opioides”) costuma controlar o problema. Todos os
acima da qual não há mais aumento de analgesia. O opioides causam obstipação e requerem profilaxia
risco de depressão respiratória é muito baixo com constante, enquanto os medicamentos antieméticos
opioides fracos. Dependendo da região do mundo devem ser usados apenas por um curto período de
onde tramadol ou codeína são usados, alguns tempo (7-10 dias), até que haja tolerância.
polimorfismos genético podem resultar na Considere, e explique ao paciente, que os opioides
necessidade de doses inesperadamente altas ou não são tóxicos para nenhum órgão. Portanto, não
baixas. Por exemplo, na Ásia oriental e na África do há contraindicações, exceto para pacientes com
norte, o metabolismo hepático da codeína e do histórico de reações alérgicas (muito raro). Outras
tramadol pode ser prejudicado em uma parte doenças como doença pulmonar obstrutiva crônica
considerável da população. Estes medicamentos são ou prejuízo da função renal não significam que os
considerados muito seguros, mesmo para pacientes opioides devam ser negados, mas que sua dose deva
com funções orgânicas prejudicadas. ser titulada lenta e cuidadosamente.
A dose padrão do tramadol é 50 a 100 mg três vezes Os opioides fortes podem até ser usados durante a
ao dia, que é suficiente para analgesia pós-operatória gestação, mas é necessária a cooperação próxima do
da maioria das cirurgias. O tramadol também está pediatra ou do neonatologista para enfrentar a
disponível na formulação intravenosa. depressão respiratória e/ou dependência de
opioides do recém-nascido.
Opioides “fortes”
Existe dependência física na maioria dos pacientes
Os opioides fortes são os medicamentos de primeira
quando mais de cerca de 100 mg de morfina são
linha para dor pós-operatória e oncológica de forte
administrados diariamente por mais de 3 semanas.
intensidade, e também para dispnéia relacionada a
Para evitar a síndrome de abstinência, o paciente
câncer. Também podem funcionar em menor grau
deve ser instruído para nunca parar abruptamente o
para dor neuropática, mas em geral não são
opioide, mas seguir as instruções do médico. Um
indicados para dor crônica inespecífica, como
protocolo seguro seria reduzir a dose em várias
cefaleia, lombalgia crônica, fibromialgia e síndrome
etapas por cerca de 10 dias, o que previne com
do intestino irritável crônico. Não hesite em usar
segurança as síndromes de abstinência
opioides fortes precocemente na dor oncológica
(lacrimejamento, inquietação, taquicardia e
porque eles podem melhorar muito a qualidade de
hipertensão, entre outros sintomas).
vida dos pacientes. Não há dose máxima para
A dose inicial de morfina é aproximadamente 20-40
morfina e seus derivados. Como resultado da
mg orais por dia, quatro vezes ao dia. Se houver
progressão da doença, os pacientes muitas vezes
formulação de liberação lenta, pode-se optar por
precisam de aumento da dose durante o curso da
uma ou duas vezes ao dia. Quando só existem
doença. Aumentos de dose não significam tolerância
formulações de liberação imediata ou de liberação
ou dependência, mas na maioria das vezes refletem
lenta, pode-se combinar um regime fixo de
dano tecidual progressivo. Outras causas para o
medicação opioide com uma dose sob demanda,
aumento da dose são mudanças na qualidade da dor
que deve ser aproximadamente 10-20% da dose
381

cumulativa diária de opioide. Por exemplo, em um Opioides transdérmicos


paciente recebendo 20 mg de morfina quatro vezes Existem dois adesivos para a administração de
ao dia (80 mg por dia), 10 mg de morfina serão a opioides – o adesivo de fentanil e o adesivo de
dose extra a ser tomada sob demanda em situações buprenorfina. Esses medicamentos são bastante
de aumento da dor (“dor incidental”). O paciente lipofílicos permitindo uma adequada passagem da
deve esperar no mínimo 30 a 45 minutos antes de pele para a circulação e evitando metabolismo de
usar outra dose de demanda. De acordo com o primeira passagem no fígado. Lembre-se que o
número de doses diárias de demanda, o cuidador perfil de analgesia e de efeitos adversos não muda
pode mudar a dose basal constante de morfina. Se o com o uso da via transdérmica. Portanto, só
paciente não precisa de nenhuma dose de demanda, pacientes com problemas de deglutição ou vômitos
a dose basal pode ser reduzida em 25%. No recorrentes se beneficiam dessa via de
paciente que precisa de uma a quatro doses, o administração.O sistema transdérmico é indicado
regime não deve ser mudado e em um paciente que apenas para pacientes com necessidades de
precisa de mais de quatro doses de demanda, a dose concentrações estáveis de opioides. Ele leva de 12 a
basal de opioide deve ser aumentada. Por exemplo, 24 horas para o adesivo produzir a liberação estável
para um paciente com dose basal de morfina de 20 de opioide ao paciente (e o mesmo tempo para os
mg quatro vezes ao dia e que precisa, em média, 6 níveis sanguíneos baixarem se o adesivo for
doses de demanda de 10 mg de morfina por dia, a retirado). Em conclusão, a grande maioria dos
dose basal de morfina deve ser aumentada para pacientes em tratamento oncológico e paliativo
quatro vezes 30 mg (e a dose de demanda deve ser pode ser bem tratada com opioides sem necessidade
aumentada para 20 mg). de sistemas transdérmicos (que também são
A mesma abordagem deve ser usada para o consideravelmente mais dispendiosos).
tratamento da dispnéia (mesmo se o paciente não
sente dor). Os opioides diminuem a “força Medicamentos adjuvantes para efeitos
respiratória” por um desvio para a direita da curva colaterais dos opioides
de resposta do CO2, reduzindo de forma eficaz a Náuseas, vômitos e obstipação causados por
“fome de ar” subjetiva. opioides precisam de medicação “adjuvante”
Todos os agonistas μ puros são intercambiáveis e concomitante. Sem ela, a aderência do paciente será
diferem apenas nos seus efeitos adversos (que não baixa! Durante a primeira semana de terapia com
são previsíveis individualmente) e em sua potência opioides, 10 a 30 mg de metoclopramida quatro
relativa (não em sua potência absoluta). As doses vezes ao dia devem sempre acompanhar os
equianalgésicas de 10 mg de morfina oral são 2 mg opioides. Como já foi dito, será desenvolvida uma
de hidromorfona, 5 mg de oxicodona, 100 mg de tolerância mais precoce aos efeitos nauseantes dos
tramadol e 1,5 mg de levometadona.l opioides. A sedação deve ser explicada ao paciente
É preciso conhecer as doses equianalgésicas de visto que não existe medicação adjuvante eficaz para
todos os opioides dependendo da via de contra-atacá-la. Para obstipação, deve-se iniciar uma
administração. Para a morfina elas são: terapia laxativa profilática constante junto com o
início do opioide. Lactose ou bisacodil são boas
Doses equianalgésicas de morfina opções. Consulte o capítulo sobre obstipação para
Intravenosa (i.v.) 10 mg maiores detalhes sobre esse problema terapêutico.
Subcutânea (s.c.)
Intramuscular (i.m.)
Oral 30 mg
Coanalgésicos
Peridural 2-3 mg
Intraespinhal 0,1-0,3 mg Os coanalgésicos não foram inicialmente
desenvolvidos para analgesia mas com o passar do
tempo foram considerados úteis para alguns estados
dolorosos. Seu uso é comum na dor neuropática
onde os AINES, dipirona, paracetamol e opioides
costumam ser ineficazes. Substância Dose Dose Recomendações
Embora várias substâncias tenham demonstrado inicial máxima
propriedades coanalgésicas (entre outras: capsaicina, Carbamazepina 3 x 100 1.600 Uma dose baixa
mexiletina, amantadina, cetamina e cannabis), só mg mg/dia costuma ser eficaz
antidepressivos, anticonvulsivantes e esteroides são Oxcarbazepina 3 x 150 2.250 Há menos tontura
mg mg/dia e sedação
usados regularmente e são mais prováveis de
Gabapentina 3 x 100- 3.600 Em geral é
existirem em localidades com poucos recursos. Para
300 mg mg/dia necessária uma
usar coanalgésicos é preciso saber como balancear
dose alta
benefícios e riscos e evitar efeitos adversos. Pregabalina 2 x 25 300 Tem efeitos
Como nos opioides, as doses da maioria dos mg mg/dia ansiolíticos
coanalgésicos precisam ser tituladas para o efeito, Fentoína 1 x 100 400 Evitar uso
significando que as recomendações de dose das mg mg/dia prolongado
indicações originais não podem ser transferidas para
a indicação da “dor”. Ao tratar a dor, oriente Todos os anticonvulsivantes produzem sonolência e
meticulosamente o paciente para obter boa tontura, embora o problema possa ser minimizado
aderência e ajuste e reajuste. Não se esqueça de pelo aumento lento da dose, a cada 4 a 8 dias
transmitir uma mensagem de esperança ao paciente, dependendo da tolerância individual ao efeito
mas seja honesto com ele e estabeleça metas adverso. Para a carbamazepina, são necessários
realistas: os coanalgésicos não vão levar a dor hemogramas periódicos (por ex., semanais por 4
embora; serão capazes de dar alívio. semanas depois mensais por 3 meses e então um a
cada 3 meses) para identificar pacientes com
Anticonvulsivantes aumento das enzimas hepáticas, reações
Reduzem a excitabilidade neuronal e suprimem a idiossincráticas ao medicamento e hiponatremia. As
descarga paroxística dos neurônios por estabilizar as reações idiossincráticas ao medicamento indicam
membranas neurais. Os anticonvulsivantes atuam hipersensibilidade não imunológica a uma
pela interação com diferentes mecanismos, por ex., substância, sem qualquer conexão com toxicidade
os canais de sódio voltagem-dependentes ou os farmacológica. A medicação deve ser interrompida
canais de cálcio de alta voltagem. sempre que houver reação idiossincrática ou se a
Anticonvulsivantes bloqueadores dos canais de transaminase hepática estiver acima de ca. 200 e o
sódio (carbamazepina, oxcarbazepina ou sódio abaixo de 125. O mesmo se aplica à fentoína
lamotrigina) têm os melhores resultados ao atacar (com exceção do perigo de desenvolver
dor aguda, por ex., em pacientes onde o câncer hiponatremia), para a qual um ECG normal
infiltrou o plexo nervoso ou em nevralgia do (procure principalmente anomalias na condução
trigêmeo. Anticonvulsivantes bloqueadores dos AV) também deve ser um pré-requisito. Para
canais de cálcio (gabapentina, pregabalina) são gabapentina e pregabalina não são necessários
indicados mais para dor constante em queimação, controles por hemograma ou ECG. As
por ex., em pacientes com polineuropatias ou contraindicações para todos os anticonvulsivantes
neuralgia pós-herpética. Esses últimos parecem ter incluem porfíria, lactação, miastenia gravis,
efeito sinérgico nos canais de cálcio com os glaucoma e insuficiência renal ou hepática crônica.
opioides. A fentoína pode ser usada como
substância de “resgate” para dor neuropática intensa Antidepressivos
e resistente à terapia. Todos os anticonvulsivantes Os antidepressivos foram os primeiros
devem ser titulados de acordo com a regra “comece coanalgésicos usados depois que se descobriu que
com doses baixas, vá devagar”. As doses eles reduziam de forma eficaz a dor da
recomendadas para os anticonvulsivantes mais polineuropatia, mesmo em pacientes que não
comuns no tratamento da dor são: estavam deprimidos. Foram considerados eficazes
383

no tratamento de dor neuropática constante em antidepressivos (principalmente os tricíclicos) via


queimação de diferentes origens. Além disso, os recetores muscarínicos. Tais efeitos anticolinérgicos
antidepressivos são também úteis para tratar cefaleia incluem xerostomia (boca seca), obstipação,
tensional e como tratamento profilático da retenção urinária, visão turva e falta de acomodação,
enxaqueca. Como regra geral, os antidepressivos taquicardia e esvaziamento gástrico retardado.
tricíclicos “clássicos” são os mais eficazes no Explique aos pacientes que estão recebendo a
tratamento da dor. Embora a amitriptilina tenha as medicação para dor porque podem ter lido a bula
melhores evidências, todos os antidepressivos onde “depressão” é a única indicação. Também faça
tricíclicos são considerados igualmente bons para o paciente saber que a maioria dos outros efeitos
analgesia. Os inibidores seletivos da recaptação de adversos desaparecem em várias semanas. Explique
serotonina e noradrenalina (SNRIs) e os inibidores que esses medicamentos aliviam a dor mas não a
seletivos da recaptação de serotonina (SSRIs), mais curam.
novos e mais toleráveis, são menos potentes ou Aconselhamos verificar as enzimas hepáticas
ineficazes. Os únicos SNRIs considerados eficazes regularmente (por ex., uma vez por mês por 3 meses
pela meta-análise mais recente são venlafaxina e e depois uma vez a cada 3 meses). Antes de iniciar a
duloxetina. medicação com antidepressivos tricíclicos faça um
Os antidepressivos induzem analgesia por aumentar ECG para verificar irregularidades importantes do
os neurotransmissores serotonina e noradrenalina nódulo AV e extrassístole politopo.
no sistema nervoso inibitório descendente (por ex., Até 20% dos pacientes oncológicos têm episódios
na substância cinzenta periaquedutal). Além disso, de depressão e, nesse caso, deve-se usar os
os antidepressivos modulam o sistema opioide no antidepressivos com os menores efeitos adversos
sistema nervoso central. Alguns efeitos adversos (SNRIs e SSRIs) em doses antidepressivas.
podem ser usados para benefício do paciente, como
o efeito sedativo da amitriptilina para sono melhor e Esteroides
o efeito ansiolítico da clomipramina para Os esteroidesesteróides são amplamente utilizados
relaxamento. Se o paciente está em estado avançado na terapia da dor oncológica principalmente em
da doença com prejuízo das condições gerais ou pacientes em estado avançado da doença. Esses
comorbidades, nortriptilina e desipramina parecem agentes reduzem o edema perineural e podem inibir
ser alternativas mais seguras dentro da classe dos a atividade espontânea em nervos excitáveis e
antidepressivos tricíclicos. danificados devido a infiltrações tumorais ou
Como com os anticonvulsivantes, a dose eficaz compressão de estruturas nervosas. Devido a seus
precisa ser titulada individualmente usando a regra efeitos antiinflamatórios, os esteroides também
“comece com doses baixas, vá devagar” para evitar podem ser usados em doenças inflamatórias
efeitos adversos. Deve-se iniciar todos os crônicas, como artrite reumatoide. O medicamento
antidepressivos tricíclicos com a dose de 10 mg à de escolha para pacientes oncológicos é a
noite e a dose deve ser aumentada a cada 4-8 dias dexametasona, que só tem propriedades
em apenas 10-25 mg por dia. glicocorticoides, causando menos retenção de
Pacientes idosos não devem ser medicados com líquidos e perda de potássio do que a hidromorfona
antidepressivos tricíclicos devido a múltiplas ou a prednisolona. Não existe dosagem baseada em
interações medicamentosas e aumento de quedas. evidências mas em exacerbação aguda da dor devido
Para todos os outros pacientes é preciso lembrar a progressão tumoral maciça, uma abordagem
que o efeito analgésico costuma começar depois de comum seria usar a dose de ataque de
um certo prazo e portanto o cuidador e o paciente aproximadamente 24 mg no primeiro dia e depois
precisam ter um pouco de paciência antes de decidir reduzir a dose subsequentemente nos dias seguintes
se o tratamento é eficaz. até uma dose de manutenção de 2 mg por dia.
Os efeitos adversos mais frequentes são causados Os efeitos adversos podem ser benéficos para o
pelas propriedades anticolinérgicas dos paciente, como euforia e melhora do apetite em
pacientes caquéticos. Outros efeitos incomuns podem ser usados como indutores do sono em
podem incluir episódios psicóticos e miopatias. A pacientes oncológicos. Os novos neurolépticos
osteoporose, afinamento da pele, diabetes e “atípicos”, como olanzapina ou risperidona não são
supressão adrenal são de menor importância para o a primeira opção para pacientes oncológicos e
paciente com expectativa limitada de vida. Para devem ser reservados para pacientes com distúrbios
minimizar o risco de úlceras gástricas, não combine psiquiátricos.
AINEs e esteroidesesteróides, e não use esteroides Os antipsicóticos estão associados a uma vasta gama
em pacientes não oncológicos, a menos que seja de efeitos adversos. As reações extrapiramidais
imprescindível. incluem distonia aguda, discinesia tardia e sintomas
tipo Parkinson (rigidez e tremor) devido ao
Neurolépticos bloqueio de recetores de dopamina. É possível
Neurolépticos são medicamentos psicoativos usados haver taquicardia, intervalo QT prolongado,
com frequência para tratar episódios psicóticos e hipotensão, impotência, letargia, convulsões e
náusea. Os pacientes com câncer avançado pesadelos. Outro efeito adverso grave é a síndrome
costumam ter delírios. Não subestime o sofrimento neuroléptica maligna. Nesses casos existe falha nos
do paciente e de sua família na presença de delírio. centros reguladores da temperatura resultando em
Tente identificar a razão do delírio. Na maioria das emergência médica porque a temperatura do
vezes ele é o primeiro sinal de infeção, insuficiência paciente sobe repentinamente atingindo níveis
renal, desidratação ou desequilíbrio eletrolítico. Em perigosos. A maioria dos efeitos adversos
raras ocasiões também pode ser um efeito adverso mencionados acima são raros e de pouca
da terapia opioide (quando a rotação de opioides importância no período do final da vida.
resolverá o problema). Sempre identifique e trate a
causa subjacente além de dar tratamento Benzodiazepínicos
sintomático com neurolépticos (titule em Os benzodiazepínicos são um grupo de
incrementos de 2,5 mg até o efeito com haloperidol medicamentos com diferentes propriedades
na dose diária “normal” de 2,5 a 5 mg 3 vezes ao sedativas, ansiolíticas, anticonvulsivantes e
dia). Em pacientes com câncer avançado, o delírio relaxantes musculares. A principal indicação desses
também pode ser um sinal de ter atingido o estado medicamentos no tratamento da dor e nos cuidados
terminal (“desorientação terminal”). Mesmo no paliativos é o tratamento da ansiedade e da dispnéia
estágio final da doença, o delírio deve ser tratado intratável. Não hesite em prescrever esses
para diminuir o estresse do paciente e de sua família. medicamentos para pacientes terminais que sofrem
Os neurolépticos (como os benzodiazepínicos) não de ataques de pânico, dispnéia e insônia. Os
têm eficácia analgésica e portanto nunca devem ser benzodiazepínicos são muito úteis nos cuidados
usados para dor. A dor precisa de analgésicos não paliativos.
de sedação, com exceção da sedação terminal onde Os benzodiazepínicos se ligam à interface das sub-
todas as alternativas disponíveis para o controle da unidades α e γ do recetorreceptor do ácido γ-
dor falharam. aminobutírico (GABA) que é o recetor inibitório
Note também que os neurolépticos são mais prevalente em todo o cérebro. As propriedades
bloqueadores potentes dos recetores D2 nas vias anticonvulsivantes dos benzodiazepínicos podem
cerebrais da dopamina. Portanto, eles têm efeitos ser devidas no todo ou em parte à ligação aos canais
diretos na náusea induzida por opioides e são de sódio voltagem-dependentes.
antieméticos muito úteis (uma dose de 0,5 a 1 mg de Os benzodiazepínicos são bem tolerados e seguros.
haloperidol 3 vezes ao dia é suficiente para isso e Se quiser tratar ataques de pânico, use
não tem efeitos psicomiméticos). benzodiazepínicos com meia vida curta como o
Outros neurolépticos que podem estar disponíveis lorazepam. O diazepam tenha meia vida longa e
são tioridazina (25 a 50 mg por dia), clorpromazina pode ser administrado por via oral, intravenosa,
e levopromazina. Todos têm baixa potência intramuscular ou como supositório. A dose é entre
neuroléptica mas bom efeito sedativo e portanto 2 e 10 mg como dose única ou duas vezes ao dia. Às
385

vezes é necessário aumentar a dose sem Durante o curso da terapia com benzodiazepínicos,
consequências negativas. O diazepam em costuma haver tolerância aos efeitos sedativos, mas
combinação com morfina é o medicamento de não aos efeitos ansiolíticos. O diazepam não
primeira opção para sedação paliativa. Para tratar a aumenta nem diminui a atividade das enzimas
ansiedade na doença terminal, flunitrazepam hepáticas. Não há contraindicação real nos cuidados
subcutâneo uma vez ao dia é uma escolha muito paliativos se usado com cuidado, titulado para o
eficaz (em geral a dose varia de 0,5 a 5 mg). efeito e usado quando indicado.
Apêndice
387

Cuia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

Apêndice: Glossário
Andréas Kopf

Introdução
A lista de termos relacionados à dor foi publicada pela IASP como Classificação da Dor Crônica, Segunda
pela primeira vez em 1979 (PAIN 1979;6:249-52). Edição.
Muitos desses termos já estavam estabelecidos na O uso de termos na medicina costuma variar muito.
literatura. Um deles “alodínia” entrou rapidamente Isso não precisa ser causa para preocupação, desde
em uso nas colunas da PAIN e de outras revistas. que cada autor deixe muito claro como ele está
Os termos foram traduzidos para o português usando a palavra. No entanto, seria conveniente e
(Revista Brasileira de Anestesiologia 1980;30:349-51), útil para os outros se fossem usadas palavras com
para o francês (H. Dehen, “Lexique de la Douleur”, significados técnicos definidos. As definições deste
La Presse Médicale 1983;12:1459-60) e para o turco Apêndice pretendem ser específicas e explanatórias
(como “Agri Teriml” traduzidos por T. Aldemir; para servir como uma estrutura operacional e não
Journal of the Turkish Society of Algology 1989; 1:45-6). como uma limitação para o desenvolvimento futuro.
Uma nota suplementar foi incluída a esses termos Representam o acordo entre várias especialidades,
de dor na PAIN (1982;14:205-6). inclusive anestesiologia, odontologia, neurologia,
A lista original foi adotada pela primeira neurocirurgia, neurofisiologia, psiquiatria e
Subcomissão de Taxonomia da IASP. Revisões e psicologia.
inclusões subsequentes foram preparadas por um Os termos e definições não pretendem compor um
subgrupo da Comissão, principalmente os Drs. U. glossário completo, mas sim um vocabulário padrão
Lindblom, P.W. Nathan, W. Noordenbos e H. mínimo para membros de diferentes disciplinas que
Merskey. Em 1984, em resposta particular a algumas trabalham no campo da dor.
observações do Dr. M. Devor, foi feita uma nova
revisão, tanto por correspondência quanto durante Acupuntura
o 4o Congresso Mundial de Dor da IASP. Fizeram A acupuntura é um procedimento que envolve a
parte dessa revisão o Dr. Devor, os outros colegas estimulação ou a inibição de pontos anatômicos
já mencionados e o Dr. J.M. Mumford, Sir Sydney sobre ou sob a pele por uma série de técnicas. Já
Sunderland e o Dr. P.W. Wall. Depois dessa revisão, foram identificados vários efeitos na fisiologia da
esses especialistas decidiram tirar vantagem da dor, sendo o mais importante a ativação do sistema
publicação do projeto das síndromes e de seus opióide endógeno e a modulação espinhal da
sistemas de classificação para editar uma lista sinalização da dor através da ativação de fibras táteis
atualizada de termos com definições e observações (fibras Aβ). Existem várias abordagens diferentes
sobre seu uso. Editada por H. Merskey e N. para o diagnóstico e o tratamento na acupuntura
Bogduk, essa lista atualizada foi publicada em 1994 moderna que incorporam tradições médicas da
China, Japão, Coréia e outros países. A acupuntura
era originalmente parte da medicina chinesa Analgesia
tradicional. Na década de 1950, os médicos militares Ausência de dor em resposta a um estímulo que
franceses no Vietnam “exportaram” essa técnica seria normalmente doloroso. Como na alodínia, o
para a Europa onde ela foi usada principalmente estímulo é definido por seus efeitos subjetivos
como tratamento complementar da medicina normais. Os analgésicos são usados para dor aguda
principal. Poucas indicações na medicina da dor, e crônica. Enquanto a dor aguda (por ex., pós-
como alguns tipos de dor articular, lombalgia e operatória, pós-traumática) é passível de terapia
cefaleias podem se beneficiar da acupuntura. medicamentosa, a dor crônica é uma doença
complexa e precisa ser dividida em dor maligna
Alodínia (oncológica) e não maligna (por ex.,
Alodínia é dor causada por estímulos que em geral musculoesquelética, neuropática ou inflamatória). A
não provocam dor. O termo “alodínia” foi dor aguda e a dor oncológica costumam ser tratadas
introduzido originalmente para distinguir tal dor de com opióides, AINEs e/ou bloqueios anestésicos
hiperalgesia e hiperestesia, que são as condições locais. A dor crônica não maligna requer uma
vistas em pacientes com lesões do sistema nervoso abordagem multidisciplinar com várias estratégias de
onde toque, pressão leve ou frio ou calor tratamento farmacológico e não farmacológico (por
moderados causam dor quando aplicados à pele ex., psicológico, fisioterápico). São usadas várias vias
aparentemente normal. “Allo” significa “outro” em de administração (por ex., oral, intravenosa,
grego e é um prefixo comum para condições subcutânea, intratecal, peridural, tópica, intra-
médicas que são diferentes do esperado. “Odínia” é articular e intranasal) dependendo das circunstâncias
derivado do grego “odune” ou “odyne”, que é usada clínicas e das substâncias disponíveis. Os
em “pleurodínia” e “coccidínia” e é semelhante em anestésicos locais são usados tópicos e em técnicas
significado à raiz da qual derivam palavras com de anestesia regional (por ex., peridural) para o
“algia” ou “algesia”. É importante saber que a tratamento da dor aguda (por ex., associada à
alodínia envolve uma mudança na qualidade da cirurgia, parto) e algumas síndromes selecionadas de
sensação, seja tátil, térmica ou de qualquer outro dor crônica. Em geral, a via oral é a preferida, mas
tipo. A modalidade original costuma ser indolor, em situações de emergência e perioperatórias, a via
mas a resposta é dolorosa. Existe, portanto uma parenteral é a preferida. As vias transdérmica, oral,
perda de sensibilidade de uma modalidade sensitiva. transmucosal e intranasal podem ser benéficas para
Em contraste, a hiperalgesia representa uma alguns pacientes, se disponíveis, mas em geral é
resposta aumentada em um modo específico. Junto possível um tratamento de alta qualidade da dor sem
com outras modalidades cutâneas, hiperestesia é o elas.
termo que corresponde a hiperalgesia, e como na
hiperalgesia, a qualidade não é alterada. Na alodínia, Analgesia controlada pelo paciente (ACP)
o modo de estímulo e o modo de resposta podem A medicação administrada através de cateter
ser diferentes, ao contrário da hiperalgesia. Essa intravenoso ou peridural pode ser dada
distinção não deve ser esquecida porque alodínia e continuamente pela enfermeira ou pelo médico, ou
hiperalgesia podem ser traçadas com sobreposição pode ser auto-administrada pelo paciente. Com
no mesmo contínuo de intensidade física em certas ACP, os pacientes controlam a frequência da dose
circunstâncias, por exemplo, com pressão ou de medicação, dependendo de quanto eles precisam
temperatura. A alodínia pode ser causada pelo toque controlar a dor. A ACP costuma ser usada para
de roupas, como em pacientes com nevralgia pós- pacientes que se recuperam de cirurgias intra-
herpética. Seu tratamento pode ser difícil. Além dos abdominais, ortopédicas importantes ou torácicas, e
coanalgésicos, o tratamento com anestésicos locais para estados de dor crônica, como os causados por
e/ou capsaína pode ajudar. câncer, e que requerem a administração parenteral
de opióides. Em geral, a ACP usa bombas
eletrônicas que permitem a documentação da
demanda analgésica do paciente e a segurança ao
389

travar a função da bomba por algum tempo (em normal. Esses transtornos enchem a vida das
geral 10 minutos) após cada dose de demanda auto- pessoas de ansiedade e medo esmagadores. Ao
administrada pelo paciente. contrário da ansiedade breve causada por um evento
estressante como uma apresentação profissional ou
Analgésicos esperar pela cirurgia (ansiedade de estado), os
Os analgésicos interferem com a geração e/ou transtornos ansiosos são crônicos, implacáveis e
transmissão de impulsos após estímulos nocivos podem piorar progressivamente se não forem
(nocicepção) no sistema nervoso. Essa interferência tratados (ansiedade de traço).
pode ocorrer em nível periférico e/ou central do Em caso de dor crônica, tanto em países em
neuroeixo. O objetivo terapêutico é diminuir a desenvolvimento quanto nos desenvolvidos, existe
perceção da dor. Os analgésicos podem ser uma grande prevalência de transtornos ansiosos,
genericamente divididos por seus mecanismos de como transtorno da ansiedade generalizada,
ação: opióides, antiinflamatórios não esteroides síndrome do pânico, fobia social e transtorno de
(AINEs), compostos serotoninérgicos, antiepiléticos estresse pós-traumático (DEPT) em comparação
e antidepressivos. Agonistas adrenérgicos, com as pessoas sem dor. A prevalência aumenta
antagonistas recetores de aminoácido excitatório quando a dor ocorre em muitos lugares. Em geral
(por ex., N-metil-D-aspartato [NMDA]), não é possível determinar a causalidade entre a dor e
antagonistas recetores da neurocinina, antagonistas um transtorno psiquiátrico. Em modelos
da neurotropina (por ex., fator de crescimento do biopsicossociais para explicar as emoções, a
nervo), canabinóides e bloqueadores de canais de ansiedade é vista como uma reação do organismo a
íons estão sendo intensamente investigados mas uma experiência externa (por exemplo, uma
ainda não são usados de rotina. Os anestésicos experiência de violência) e a um estímulo interno
locais são usados para técnicas de anestesia local e (por exemplo, aumento da frequência cardíaca). Na
regional. Alguns medicamentos (por ex., tramadol), experiência da ansiedade existe um sentimento
combinam vários mecanismos. inespecífico de euforia e tensão além de
Anestesia dolorosa aborrecimento e a experiência de sintomas físicos de
Dor em área ou região anestesiada. Portanto, excitação. Os medos relacionados à dor são
técnicas neurodestrutivas no tratamento da dor compreensíveis, por exemplo ansiedade sobre piora
devem se limitar às poucas indicações em que a dos danos físicos e ansiedade sobre perder o
anestesia dolorosa não foi observada. emprego. Como consequência, os transtornos da
ansiedade podem ser resultado de dor crônica, mas
Anestésicos locais também podem ser a causa dos sintomas físicos.
Os anestésicos locais interferem com a geração e a Por exemplo, dor intensa no peito e no coração e
propagação dos potenciais de ação nas membranas falta de ar são alguns sintomas de um ataque de
neuronais, bloqueando os canais de sódio. Para pânico. Uma consequência da dor crônica pode ser
técnicas de anestesia regional, eles são injetados bem a agorafobia, por exemplo, se o paciente tem medo
próximos à medula espinhal (espaço intratecal ou de sair de casa porque o ataque de dor pode ocorrer
peridural), em nervos periféricos ou plexos na rua e não vai haver ninguém para socorrer.
nervosos, ou – em raras ocasiões – infundidos por Como consequência, o paciente tende a evitar cada
via intravenosa. vez mais ter que sair de casa. Os instrumentos mais
comuns para avaliar a ansiedade são a Hospital
Ansiedade Anxiety and Depression Scale (HADS-D), State-Trait-
Ansiedade é um sentimento de apreensão e medo Anxiety Inventory (STAI) e o Profile of Mood States
caracterizado por sintomas físicos como palpitação, (POMS).
sudorese e sentimentos de estresse. Os transtornos
ansiosos são uma doença grave que afeta pacientes
álgicos com mais frequência do que a população
Ansiolíticos tricíclicos – divididos em inibidores não seletivos da
Os ansiolíticos são medicamentos usados para tratar recaptação de noradrenalina/5-HT (por ex.,
a ansiedade. Ansiolíticos de ação curta, amitriptilina, imipramina e clomipramina) e
principalmente da classe dos benzodiazepínicos, inibidores preferenciais da recaptação da
podem ser úteis para os ataques de pânico, noradrenalina (por ex., desipramina e maprotilina),
enquanto que os ansiolíticos de longa duração têm inibidores seletivos da recaptação de 5-HT
função na medicina paliativa onde a ansiedade traço (serotoninérgicos) (por ex., citalopram, paroxetina e
não é controlada por intervenções psicológicas. O fluoxetina) e antagonistas 5-HT (nefazodona). A
medicamento antiepilético pregabalina também tem inibição da recaptação leva ao estímulo da inibição
efeito ansiolítico sem o risco de dependência dos da dor monoaminérgica endógena na medula
benzodiazepínicos e pode ser benéfico para espinhal e no cérebro. Além disso, os tricíclicos têm
pacientes álgicos com transtorno leve de ansiedade. efeitos antagonistas recetores de NMDA, de
Embora recomendados em vários livros didáticos, bloqueio dos canais de sódio e de abertura dos
não existe indicação dos ansiolíticos para tratar a canais de potássio que podem suprimir a
dor. sensibilização periférica e central. O bloqueio do
potássio cardíaco e dos canais de sódio pelos
Antidepressivos tricíclicos pode levar a arritmias potencialmente
Os antidepressivos são usados – da mesma forma fatais. Os inibidores seletivos do transporte de 5-HT
que os antiepiléticos – na dor neuropática e na não têm efeitos de bloqueio do recetor pós-
profilaxia da enxaqueca. Os antidepressivos sináptico e de estabilização da membrana (e os
tricíclicos são os mais eficazes. São titulados para o efeitos colaterais consequentes) e, portanto, só têm
efeito. O objetivo de monitorar as concentrações uma função limitada no tratamento da dor
plasmáticas do medicamento não é atingir o efeito neuropática.
ideal, mas evitar a toxicidade e controlar a
observância do paciente. Na maioria dos pacientes Antiepiléticos (anticonvulsivantes)
pode-se obter a redução da dor com uma dose baixa Vários antiepiléticos (carbamazepina, fentoína,
(por ex., 50 a 75 mg/dia de imipramina ou valproato, gabapentina, lamotrigina e pregabalina)
amitriptilina). Como em todas as opções de são usados para dor neuropática e mais
tratamento da dor neuropática com coanalgésicos, recentemente também para profilaxia da enxaqueca.
deve-se dizer aos pacientes antes do início da terapia Junto com os antidepressivos, eles são os
que a meta do tratamento pode ser apenas 50% de coanalgésicos mais eficazes. Os efeitos adversos
redução da dor. Estudos demonstraram que mesmo mais comuns são prejuízo da função mental
com tratamentos padronizados, apenas metade dos (sonolência, tontura, problemas cognitivos e fadiga)
pacientes com dor neuropática atingirá essa meta. e da função motora (ataxia) o que pode limitar seu
Para profilaxia da enxaqueca esses números são uso clínico, principalmente em pacientes idosos. Já
mais altos. foram relatados efeitos colaterais graves, como
Em pacientes com cardiopatia isquêmica, pode hepatotoxicidade, trombocitopenia e reações
haver aumento da mortalidade por arritmia súbita, e dermatológicas e hematológicas possivelmente
em pacientes com infarto recente do miocárdio, fatais. As concentrações plasmáticas dos
arritmia ou descompensação cardíaca, os tricíclicos medicamentos devem ser monitoradas para evitar
jamais devem ser usados. Os tricíclicos também níveis sanguíneos tóxicos. Vários antiepiléticos são
bloqueiam sítios recetores de histamina, colinérgicos usados na dor neuropática. As diferentes síndromes
e alfa-adrenérgicos. Os efeitos adversos são fadiga, de dor neuropática têm sido atribuídas a certos
náusea, boca seca, obstipação, tontura, distúrbios do mecanismos comuns, inclusive atividade ectópica
sono, visão turva, irritabilidade/nervosismo, em nociceptores sensibilizados por regeneração de
sedação e toxicidade hepática. brotos nervosos, recrutamento de nociceptores
Vários antidepressivos são usados no tratamento da previamente “silenciosos” e fibras Aβ, e atividade
dor neuropática. São eles os clássicos compostos espontânea nas células ganglionares da raiz dorsal.
391

O aumento da atividade neuronal periférica é AINEs e os opióides – às vezes administrados


transmitido centralmente e resulta na sensibilização localmente na articulação – estão entre os
dos neurônios ascendentes de segunda e terceira medicamentos de primeira escolha para artrite
ordem. Entre os mecanismos mais bem estudados grave.
da sensibilização periférica e central estão aumento
da nova expressão de canais de sódio e aumento de Artrite reumatoide
atividade em sítios recetores de glutamato (NMDA). Doença autoimune que causa inflamação crônica
Os mecanismos de ação dos antiepiléticos incluem das articulações e dos tecidos em torno das
estabilização da membrana neuronal pelo bloqueio articulações, além de em outros órgãos do corpo. As
de canais de sódio voltagem-sensíveis doenças autoimunes se manifestam quando os
patologicamente ativos (carbamazepina, fentoína, tecidos do corpo são erroneamente atacados pelo
valproato, lamotrigina), bloqueio de canais de cálcio próprio sistema imunológico do corpo. O sistema
voltagem-dependentes (gabapentina, lamotrigina), imunológico é uma organização complexa de células
inibição da liberação pós-sináptica de aminoácidos e anticorpos projetados para “procurar e destruir”
excitatórios (lamotrigina), ativação dos recetores invasores do corpo, principalmente as infeções.
GABA (valproato, gabapentina), abertura dos canais Pacientes com doenças autoimunes têm anticorpos
KATP (gabapentina), aumento potencial do no sangue que buscam os tecidos do próprio corpo,
turnover/síntese de GABA (gabapentina), aumento onde podem ser associados à inflamação. Como ela
da liberação não vesicular de GABA (gabapentina) e pode afetar vários outros órgãos do corpo, a artrite
inibição da anidrase carbônica nos neurônios reumatoide é chamada de doença sistêmica e às
(topiramato). vezes de doença reumatoide. Embora a artrite
reumatoide seja uma doença crônica (significando
Antiinflamatórios não esteroides (AINEs) que pode durar anos), os pacientes podem ter
Os AINEs inibem as cicloxigenases, enzimas que longos períodos assintomáticos. O tratamento da
catalisam a transformação do ácido araquidônico dor inclui AINEs e opióides. Não se deve tentar
(componente celular onipresente gerado de controlar a dor sem antes controlar a inflamação,
fosfolipídios) em prostaglandinas e tromboxanos. caso contrário a destruição articular não será
Duas isoformas, COX-1 e COX-2 são interrompida.
constitutivamente expressas em tecidos periféricos e
no sistema nervoso central. Em resposta a lesões e a Bradicinina
mediadores inflamatórios (por ex., citocinas, fatores A bradicinina é gerada no sangue pela ação do
de crescimento), as duas isoformas podem ser sistema plasmático calicreína-cinina (envolvendo
reguladas para cima, resultando em maiores ativador de pré-calicreína, pré-calicreína,
concentrações de prostaglandinas. Como resultado, cininogênio e cininases). Produz inflamação e ativa
os nociceptores ficam mais reagentes aos estímulos nociceptores via recetores da bradicinina B1 e B2.
nocivos mecânicos (por ex., pressão, distensão de Causalgia (síndrome de dor regional complexa
órgão oco), químicos (por ex., acidose, bradicinina, tipo II)
neurotrofinas) ou térmicos. Dor, em geral em queimação, associada a mudanças
Artrite autonômicas (mudanças na cor da pele, na
Artrite é a inflamação de uma articulação com temperatura, na sudorese, e inchaço). A causalgia é
sintomas típicos, inclusive rigidez (principalmente rara e difícil de tratar e ocorre após lesão nervosa. A
pela manhã), calor, inchaço, vermelhidão e dor. fisiopatologia da causalgia inclui inflamação local e
Pode ser dividida em osteoartrite (com etiologia processos de reorganização do sistema nervoso
degenerativa) e artrite reumatoide (com etiologia central. Se há suspeita de causalgia, o diagnóstico e
inflamatória). Se a causa da artrite é reumática, a o tratamento devem ser deixados para um
inflamação deve ser controlada antes da dor para especialista em dor.
evitar a destruição contínua do tecido articular. Os
Charlatanismo a grande maioria não atende aos critérios de
Deturpação deliberada da capacidade de uma transtornos de ansiedade ou depressão.
substância ou aparelho para a prevenção ou o
tratamento de doenças. Podemos achar que os dias Consentimento informado
dos medicamentos não testados desapareceram, mas O processo de tomar decisões sobre tratamento
se olharmos em volta ainda podemos vê-los. Eles médico baseado em comunicação aberta e honesta
apelam para nosso desejo de acreditar que todas as entre o prestador de cuidados de saúde e o paciente
doenças são curáveis ou pelo menos tratáveis. A e/ou familiares do paciente. A idéia por trás do
palavra charlatanismo também se aplica a pessoas consentimento informado é que o paciente aja
que fingem saber diagnosticar ou curar as pessoas, como um parceiro “simétrico” na conversa. Na
mas que são desqualificadas e incompetentes. prática, essa idéia é difícil de atingir quando a
situação específica do paciente e o conhecimento
Ciática altamente especializado do médico precisam resultar
Dor resultante da irritação do nervo ciático, em recomendações específicas ao paciente, sem
tipicamente sentida da coluna lombar até a parte alternativas (por ex., em cronificação avançada da
posterior da coxa e irradiando para baixo do joelho. dor).
Embora a ciática possa resultar de uma hérnia de
disco pressionando diretamente o nervo, qualquer Delírio
causa de irritação ou inflamação desse nervo pode Transtorno da função cerebral que causa confusão e
reproduzir os sintomas dolorosos da ciática. O mudanças no estado de alerta, atenção, pensamento
diagnóstico é feito pela observação dos sintomas, e raciocínio, memória, emoções, padrões de sono e
exames físicos e nervosos e, às vezes com raios-X coordenação. Esses sintomas podem começar
ou RM se houver suspeita de hérnia de disco. Com abruptamente, são causados por algum tipo de
frequência, o exame físico e o histórico detalhado problema médico e podem piorar e melhorar várias
revelarão que a dor não está irradiando pelos vezes. As causas típicas do delírio são infeção aguda
dermátomos típicos, portanto outras etiologias ou progressão do tumor (com liberação de TNF-
dolorosas que não compressão radicular devem ser alfa), insuficiência renal súbita, alguns
levadas em consideração, como dor na articulação medicamentos, inclusive opióides (a incidência de
facetaria, irritação da articulação sacrilíaca ou dor opióides é cerca de 1-2%) e desequilíbrios
miofascial. eletrolíticos. Se a suspeita é que os opióides são a
causa do delírio, a troca (rotação) para outro opióide
Comorbidade psiquiátrica em geral acaba com o delírio em algumas horas.
Com relação à prevalência de transtornos
psiquiátricos como ansiedade, depressão e Dependência
transtornos somatoformes em pacientes com dor Dependência é uma condição crônica recidivante
crônica, existem grandes diferenças nos resultados caracterizada pela busca compulsiva e abuso de
de exames clínicos. A prevalência varia de 18% a drogas e por mudanças químicas cerebrais
56%; mais ainda, os detalhes dependem dos duradouras. A dependência é a mesma,
parâmetros de tratamento. A prevalência de dor independentemente da droga ser álcool,
crônica e comorbidade com o espetro de depressão- anfetaminas, cocaína, heroína, maconha ou nicotina.
ansiedade é praticamente igual em países Todas as substâncias viciantes induzem estados
desenvolvidos e em desenvolvimento. A prevalência agradáveis ou aliviam a angústia. O uso continuado
padronizada por idade das condições de dor crônica de substâncias viciantes induz mudanças adaptativas
nos últimos 12 meses foi 37% nos países no cérebro que geram tolerância, dependência física,
desenvolvidos e 41% nos países em desejo incontrolável e, muito frequentemente,
desenvolvimento, e a prevalência geral de dor é recidiva. Os fatores genéticos que predispõem à
maior entre as mulheres e pessoas mais velhas, mas dependência ainda não estão totalmente claros. A
dependência tem que ser distinguida da dependência
física. Por exemplo, em terapia opióide prolongada,
393

a dependência física é um resultado normal e a única um plano de como quer cometer o suicídio?” “Está
implicação clínica é que a redução da dose tem que obcecado por pensamentos suicidas?” Com
ser escalonada. A dependência de opióides é rara em frequência, os pacientes estabeleceram uma data,
pacientes álgicos sem problemas pré-existentes de então perguntas sobre a data são importantes; o
dependência. Portanto, perguntar ao paciente sobre paciente pode concordar com um adiamento. Mais
consumo de álcool, opióides e benzodiazepínicos é ainda, tentativas anteriores de suicídio devem ser
um pré-requisito antes de iniciar a terapia com levadas em conta porque existe um fator de risco
opióides. maior para uma nova tendência suicida.

Dependência física Disestesia


A dependência física é um estado em que a presença Uma sensação desagradável anormal espontânea ou
constante de um medicamento é necessária para evocada. Compare com dor e parestesia. Casos
manter as funções normais do organismo. A especiais de disestesia incluem hiperalgesia e
interrupção do medicamento resulta em síndrome alodínia. A disestesia é sempre desagradável e a
de abstinência. A dependência física é um fenômeno parestesia não deve ser desagradável, embora se
“normal” que ocorre com muitos medicamentos reconheça que a linha divisória possa ser difícil
diferentes. Como consequência, quando os opióides quando é preciso decidir se a sensação é agradável
são administrados por um longo período de tempo ou desagradável. É preciso sempre especificar se a
(> 3 semanas) na dose de 50-100 mg equivalentes sensação é espontânea ou evocada.
de morfina oral por dia ou mais, nunca devem ser
interrompidos abruptamente, mas escalonados com Dispnéia
uma redução diária da dose (por ex., redução diária A dispnéia é a dificuldade de respirar e costuma ser
de 10% da dose). confundida com depressão respiratória. Enquanto a
dispnéia causa grande sofrimento pela sensação de
Depressão sufocação, e na maioria dos casos pode ser aliviada
A depressão é um fator de risco para a cronificação com sucesso pela morfina e por outros opióides, a
da dor. Algumas perguntas ajudam no diagnóstico. depressão respiratória é um estado de falta de
Achados comuns são problemas de sono, resposta da regulação respiratória central, que pode
inquietação, falta de energia mais pronunciada na ser causada por opióides. Como a depressão
primeira metade do dia e perda de interesse. Alguns respiratória não faz o paciente sofrer (e portanto o
instrumentos comuns para avaliar a depressão são a paciente não se queixa), o monitoramento pessoal
Escala de Depressão do Centro para Estudos ou eletrônico, principalmente no pós-operatório
Epidemiológicos (CES-D), o Inventário de imediato ou após a administração de opióides, é
Depressão de Beck para cuidados primários e o necessário para evitar complicações possivelmente
Perfil de Estados de Humor (POMS). No entanto, o fatais.
resultado psicopatológico deve sempre ser a base e
incluir avaliação da tendência suicida. De acordo Distrofia simpática reflexa (síndrome da dor
com os achados de um estudo de Tang e col. em regional complexa tipo I)
2006, a taxa de suicídio entre pacientes com dor A dor, em geral em queimação, associada a
crônica aumentou (prevalência de 5-14%) em “mudanças autonômicas” – mudanças na cor da
comparação com o público em geral. A depressão é pele, na temperatura, na sudorese, e presença de
em geral o previsor mais forte do desejo de morrer. inchaço. A distrofia simpática reflexa é causada por
É importante distinguir entre pensamentos passivos uma lesão no osso, articulação ou partes moles, sem
de morte ou desejos de morrer, e pensamentos lesão nervosa. A causa mais frequente é fratura do
suicidas ativos que envolvem a intenção de tirar a rádio. Com exceção da lesão nervosa, a SDRC tipo I
própria vida. É útil e aliviante para o paciente não se difere da SDRC tipo II. Um termo mais
quando são feitas perguntas concretas, por exemplo, antigo é doença de Sudeck, que não deve ser usado
“Você já pensou em cometer suicídio?” “Você tem porque a disfunção simpática pode ser parte da
SDRC mas não é pré-requisito para seu diagnóstico. intrapsíquico, mas são fatores de estresse
Diagnóstico e tratamento são difíceis e devem ser inespecíficos e vegetativos (por ex., com agitação,
entregues a um especialista. SDRC avançada pode tremores e dor) como resultado da pressão
deixar o paciente com uma extremidade emocional sentida principalmente fisicamente.
permanentemente inutilizável. Podem resultar vários transtornos físicos. O
tratamento médico padrão costuma ser limitado.
Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) Esses transtornos devem ser considerados logo no
São várias as razões para o desenvolvimento de início da avaliação dos pacientes com sintomas
TEPT. A pesquisa já examinou uma série de inexplicáveis para evitar intervenções e exames
categorias – vitimização criminal, abuso de parceiro, desnecessários. A identificação de um evento da
vitimização sexual, abuso na infância, trauma vida que seja importante o suficiente para ser
político, desastres ou ameaça à vida. A prevalência considerado a causa desse transtorno pode ser útil
de TEPT em pacientes álgicos varia de 0,5% a 9% para “solucionar” o estresse desse evento da vida
em comparação com pessoas sem dor onde ele varia com intervenções comportamentais.
de quase 0,5% a 3%. Uma experiência extrema de Consequentemente, a dor somatoforme pode
dor durante o trauma aumenta a probabilidade de diminuir ao longo do tempo.
desenvolver sintomas de TEPT. Os sintomas de
TEPT são intrusões (lembranças involuntárias e Dor
estressantes), pesadelos e flashbacks. No nível A Associação Internacional para o Estudo da Dor
cognitivo e emocional, o que domina é evitar (IASP) define a dor como “uma experiência
pensamentos e sentimentos, junto com amnésia sensitiva e emocional desagradável associada a dano
(parcial), escopo emocional limitado, redução dos tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de
níveis de interesse, e alienação. As reações tal dano”. Essa definição ampla reconhece que a dor
psicológicas são dificuldade de pegar no sono ou é mais do que uma sensação subsequente à ativação
sono perturbado, aumento da irritabilidade, elétrica de nociceptores (nocicepção). Ela inclui
incapacidade de concentração, hipervigilância e respostas cognitivas, emocionais e comportamentais
reações exageradas de choque. A dor crônica que também são influenciadas por fatores
também pode ocorrer após o trauma em conexão psicológicos e sociais. A dor é sempre subjetiva.
com as lesões, ou mais tarde, principalmente no Cada pessoa aprende a usar a palavra através de
caso de cefaleias. experiências relacionadas a lesões no início da vida.
Os biólogos reconhecem que os estímulos que
Transtornos somatoformes causam dor podem danificar os tecidos. Assim a dor
Os transtornos somatoformes são um grupo de é a experiência que associamos a dano tecidual real
transtornos psiquiátricos que causam sintomas ou potencial. A sensação em parte ou partes do
físicos inexplicáveis (transtorno somatoforme, corpo é inquestionável, mas é também sempre
hipocondríase, distúrbios de dor, transtornos de desagradável e portanto uma experiência emocional.
conversão). A fisiopatologia dessas queixas ainda Experiências que parecem dor mas não são
não está clara. Um sintoma comum desse transtorno desagradáveis, como por exemplo picada de agulha,
é que os sintomas físicos não podem ser totalmente não devem ser chamadas de dor. Experiências
explicados como um processo fisiológico. Os anormais desagradáveis (disestesias) também podem
transtornos somáticos podem ser acompanhados de ser dor, mas não necessariamente porque,
doenças físicas definidas, mas não podem ser subjetivamente, podem não ter as qualidades
explicados adequadamente por essas doenças. sensitivas comuns da dor.
Pacientes que têm dor sem uma causa orgânica são Muitas pessoas se queixam de dor na ausência de
em geral incapazes de enfrentar estresse emocional; dano tecidual ou de qualquer causa fisiopatológica
isso é transformado em fatores de estresse físico. provável; em geral, isso acontece por razões
Esses fatores difusos de estresse já não podem ser psicológicas. Em geral, não há forma de distinguir
entendidos como a expressão física de um conflito essa experiência daquela causada por dano tecidual
395

se aceitamos o relato subjetivo. Se as pessoas veem sobre as causas da dor pode trazer alívio
sua experiência como dor e se a relatam da mesma considerável.
forma que a dor causada por lesão tecidual, ela deve
ser aceita como dor. Essa definição impede a ligação Dor miofascial
da dor com um estímulo. A atividade induzida no A dor miofascial é caracterizada por dor muscular e
nociceptor e nas vias nociceptivas por um estímulo sensibilidade. Com frequência, a lombalgia crônica
nocivo não é dor, que é sempre um estado ou as síndromes do ombro e do braço se originam
psicológico, embora possamos muito bem de dor miofascial e não de compressão nervosa,
reconhecer que a dor quase sempre tem uma causa instabilidade da coluna ou degeneração esquelética
física imediata. ou discal. Técnicas de relaxamento e fisioterapia
específica são portanto melhores do que analgésicos
Dor central ou injeções para essas síndromes dolorosas.
A dor iniciada ou causada por uma lesão ou
disfunção primária do sistema nervoso central. Dor neurogênica ou neuropática
Ocorre em alguns pacientes após AVE e pode Dor iniciada ou causada por lesão primária,
limitar consideravelmente a qualidade de vida. Só disfunção ou perturbação transitória do sistema
antidepressivos tricíclicos se mostraram capazes de nervoso periférico ou central. A dor neuropática
ter alguma eficácia analgésica nesses pacientes. ocorre quando a lesão ou disfunção afeta o sistema
Todas as outras opções de tratamento são nervoso. Dor central é o termo quando a lesão ou
respaldadas apenas por evidências pontuais. disfunção afeta o sistema nervoso central. A causa
pode ser compressão nervosa, trauma, câncer
Dor crônica invasivo dos nervos, herpes zoster, HIV, AVE,
A dor crônica é diagnosticada quando a dor dura diabetes, álcool ou outras substâncias tóxicas.
mais do que 6 meses. Para a prática clínica, talvez
seja mais útil definir a dor crônica como a dor que é Dor neuropática periférica
complicada por alguns fatores de risco, de acordo Dor iniciada ou causada por uma lesão primária ou
com o conceito biopsicossocial de cronificação da disfunção no sistema nervoso periférico, como
dor: sensibilização central a estímulos dolorosos, polineuropatia diabética.
depressão ou ansiedade, ou transtornos Dor osteomielítica
somatoformes, além de conflitos no trabalho ou na Inflamação do osso devido a infeção, por exemplo,
família. pela bactéria Salmonella ou por Estafilococo. A
Dor do membro fantasma osteomielite é às vezes uma complicação de cirurgia
Dor desenvolvida após uma amputação na área do ou lesão, embora a infeção também possa atingir o
membro faltante. O diagnóstico da dor do membro tecido ósseo através da corrente sanguínea. O osso e
fantasma precisa primeiro excluir a presença de dor a medula óssea podem ser infetados. Os sintomas
no coto (por ex., devido a cobertura cirúrgica incluem dor profunda e espasmos musculares na
insuficiente dos tecidos do coto) e de sensações área da inflamação, e febre. Principalmente se o
fantasmas (“sentimentos” indolores, no entanto histórico revelar cirurgia na área dolorosa e a dor
assustadores no membro perdido). Como a dor do não diminuir com repouso à noite, deve-se suspeitar
membro fantasma é gerada principalmente no de osteomielite – principalmente espondilodiscite.
sistema nervoso central, principalmente na região O tratamento consiste em repouso no leito,
sensitivo-motora correspondente do córtex, a antibióticos e às vezes cirurgia para remover o
terapia em geral não é periférica, mas central. Os tecido ósseo infetado.
pacientes e seus familiares às vezes acham que – Espaço peridural
como dor em uma parte perdida do corpo não pode O espaço peridural circunda a dura mater da medula
ser possível – algo está errado com eles. Portanto, espinhal. É limitado pelos pedículos dos arcos
simplesmente explicar ao paciente e à sua família vertebrais e pelos ligamentos anterior e posterior
que conectam a coluna vertebral óssea. O espaço médicas difíceis, as conferências éticas também
peridural contém raízes nervosas, gordura e vasos ajudam a reunir as diferentes disciplinas de saúde,
sanguíneos e é usado de rotina para analgesia permitindo uma abordagem conjunta para o
perioperatória como técnica de analgesia única ou tratamento ideal. Em geral, as comissões de ética
em combinação com anestesia geral. A analgesia não são dirigidas a estabelecer normas éticas – algo
peridural é especialmente popular nos que se desenvolve mais na sociedade e em
departamentos de obstetrícia. comunidades religiosas – mas ajudam a interpretar e
transferir as normas sociais para normas específicas,
Espondilolistese ou a achar soluções para dilemas terapêuticos
Movimento para frente de uma vértebra da coluna epecíficos.
em relação a uma vértebra adjacente, com mais
frequência no nível de L5/S1. Raios-X funcionais Fadiga
“simples” (visão lateral em extensão completa e Sentimento de ficar cansado facilmente, não
flexão completa da coluna) podem demonstrar conseguir fazer as tarefas habituais, fraqueza e
espondilolistese. Só um movimento importante para dificuldade de concentração. A fadiga não deve ser
frente (>25-50% do comprimento vertebral) é uma confundida com sedação, que costuma ser um efeito
indicação para cirurgia. colateral de algumas intervenções médicas e
portanto pode ser influenciada pela mudança do
Estenose espinhal regime terapêutico. A fadiga é o sintoma mais
Estreitamento dos espaços da coluna resultando em frequente dos pacientes paliativos e, infelizmente, é
compressão das raízes nervosas ou da medula difícil de influenciar.
espinhal por esporões ósseos ou partes moles, como
discos, no canal espinhal. A estenose ocorre com Fibromialgia
mais frequência na coluna lombar (na parte inferior Um distúrbio doloroso – em geral que afeta
das costas) em pacientes com mais de 60 anos de mulheres de meia idade – no qual a pessoa sente dor
idade, mas também ocorre na coluna cervical (no difusa e rigidez muscular, fadiga e outros sintomas.
pescoço) e com menos frequência na coluna Embora o nome “fibromialgia” sugira um distúrbio
torácica (na parte superior das costas). Os sintomas muscular, pesquisas recentes acham mais provável
típicos a questionar na suspeita de estenose espinhal que a fibromialgia seja causada por mudanças no
são claudicação (a dor aumenta após um certo sistema nervoso central com hipersensibilidade
período de exercício sem evidência de doença de central. Portanto, os conceitos atuais de tratamento
artéria periférica) e alívio da dor ao curvar-se para objetivam o sistema inibitório descendente e a
frente. Se a cirurgia for impossível, poucas opções sensibilização central. Talvez a fibromialgia pudesse
terapêuticas são deixadas para a analgesia, inclusive ser vista no mesmo contexto de outras síndromes
esteroides peridurais, fisioterapia, opióides e AINEs, de hipersensibilidade, como lombalgia crônica,
além de flexão-ortostase. poliartrite soronegativa ou cefaleia tensional.

Estímulos nocivos Hiperalgesia


Estímulo nocivo é aquele que danifica tecidos Aumento de resposta a um estímulo que é
normais. normalmente doloroso. A hiperalgesia reflete
aumento da dor mediante estimulação supralimiar.
Ética Para a dor evocada por estímulos que em geral não
Um sistema de princípios morais usados como são dolorosos, prefere-se o termo alodínia,
normas para a conduta profissional. Muitos enquanto hiperalgesia é mais adequado para casos
hospitais e outras instalações de saúde têm com aumento de resposta a um limiar normal, ou a
comissões de ética que podem ajudar os médicos e um limiar aumentado, como em pacientes com
outros provedores de cuidados de saúde, pacientes e neuropatia. Também deve ser reconhecido que na
familiares na tomada de decisões difíceis sobre o alodínia o estímulo e as respostas são em modos
tratamento médico. Além de ajudar em situações diferentes, enquanto que na hiperalgesia eles são no
397

mesmo modo. Evidências atuais sugerem que a caso de sensibilidade diminuída a estímulos
hiperalgesia é consequência da perturbação do normalmente dolorosos. A hipoalgesia e a alodínia,
sistema nociceptivo com sensibilização periférica ou a hiperalgesia e a hiperpatia não precisam ser
central, ou ambas, mas é importante distinguir entre simétricas e não são simétricas no momento. Podem
os fenômenos clínicos que esta definição enfatiza, e ocorrer em baixo limiar com alodínia, mas não é
a interpretação, que pode bem mudar à medida que obrigatório. Também não existe categoria para
o conhecimento avança. Hiperalgesia e hiperpatia limiar diminuído ou resposta diminuída – se é que
são uma resposta exagerada a algo que causa dor, ocorrem.
com dor contínua depois que a causa da dor foi
eliminada. Hipoestesia
Diminuição da sensibilidade a estímulos, exceto os
Hiperestesia sentidos especiais.
Aumento de sensibilidade ao estímulo, exceto os
sentidos especiais. Estímulo e localização devem ser Instituição para cuidados paliativos (Hospice)
especificados. A hiperestesia pode se referir a vários Uma forma especial de cuidar de pessoas com
modos de sensibilidade cutânea, inclusive toque e doenças terminais e de suas famílias atendendo às
sensação térmica sem dor, e à dor. A palavra é usada necessidades físicas, emocionais, sociais e espirituais
para indicar limiar reduzido para qualquer estímulo do paciente além das necessidades da família. As
e aumento de resposta a estímulos que são metas da instituição são manter o paciente o mais
normalmente reconhecidos. Alodínia é usada para confortável possível aliviando a dor e outros
dor após estímulo que não costuma ser doloroso. A sintomas; preparar para uma morte que obedeça aos
hiperestesia inclui alodínia e hiperalgesia, mas os desejos e necessidades do paciente; e tranquilizar o
termos mais específicos devem ser usados sempre paciente e sua família ajudando-os a entender e
que aplicáveis. administrar o que está acontecendo. Os cuidados do
Hospice objetivam especialmente ajudar os pacientes
Hiperpatia que não querem ou não podem ser cuidados em
Síndrome dolorosa caracterizada por uma reação casa e têm sintomas estáveis ou tratáveis. Os
anormalmente dolorosa a um estímulo, cuidados do Hospice costumam terminar com a
principalmente um estímulo repetitivo, além de um morte do paciente, enquanto que os cuidados da
aumento do limiar. Pode ocorrer com alodínia, enfermaria paliativa permitem que o paciente volte a
hiperestesia, hiperalgesia ou disestesia. Identificação andar após a estabilização. Pallium Índia e Hospice
e localização erradas do estímulo, retardo, sensação Africa Uganda são exemplos notáveis de cuidados
de irradiação e pós-sensação podem estar presentes paliativos em locais de poucos recursos.
e a dor tem em geral caráter explosivo. As Atualmente, muitos países estão promovendo o
mudanças nesta nota são a especificação da alodínia “home care” para evitar o máximo possível e o mais
e a inclusão explícita da hiperalgesia. Anteriormente, frequentemente possível o tratamento no Hospice ou
a hiperalgesia estava implícita, porque a hiperestesia na enfermaria de cuidados paliativos.
era mencionada na nota anterior e a hiperalgesia é
Intratecal
um caso especial de hiperestesia.
O espaço intratecal está localizado entre o aracnoide
Hipoalgesia e a dura mater da medula espinhal. Contém o líquor
Redução da dor em resposta a um estímulo e os nervos espinhais. Para anestesia, o espaço
normalmente doloroso. A hipoalgesia era definida intratecal pode ser atingido por punção de agulha,
como sensibilidade reduzida a estímulos nocivos, em situações especiais, como dor oncológica
tornando-a um caso particular de hipoestesia. No avançada; também é possível inserir cateteres.
entanto, o termo hoje se refere apenas à ocorrência
Limiar de dor
de relativamente menos dor em resposta a um
O mínimo de experiência de dor que a pessoa pode
estímulo que produz dor. A hipoestesia cobre o
reconhecer.
diagnosticado como nevralgia do trigêmeo. A
Luto carbamazepina ainda é considerada o medicamento
Ato de sofrer pela morte de alguém. O luto é de primeira opção. Se a terapia medicamentosa
integrado ao tratamento paliativo pelo suporte aos falhar, a nevralgia do trigêmeo é uma das poucas
familiares após a morte do paciente. Portanto, o síndromes dolorosas em que a cirurgia é indicada
tratamento paliativo não termina com a morte do (cirurgia de Janetta).
paciente.
Nevralgia pós-herpética (NPH)
Medicina complementar Dor neuropática no dermátomo afetado após
Abordagens ao tratamento médico, diferentes do infeção de varicela com herpes zoster, em geral
treinamento médico tradicional recebido em definida como dor por mais de 6-12 semanas após o
faculdades de medicina. Embora a “medicina início da herpes zoster. A alodínia costuma estar
alternativa” costume entrar em conflito com a presente e é difícil de tratar.
medicina tradicional e possa às vezes incluir alguns
métodos bizarros, a medicina complementar está Nível de tolerância à dor
“expandindo” as abordagens médicas convencionais O nível mais alto de dor que a pessoa está preparada
para melhorar seus efeitos. Modalidades bem para tolerar. Como no limiar de dor, o nível de
conhecidas de medicina complementar são tolerância à dor é a experiência subjetiva da pessoa.
acupuntura, terapia laser de baixo nível, meditação, Nocicepção
aromaterapia, dança, musicoterapia, fitoterapia, A nocicepção é o componente sensitivo da dor.
osteopatia e naturopatia. Abrange os eventos neuronais periféricos e centrais
Neurite após a transdução de estímulos nocivos mecânicos,
Inflamação de um nervo ou nervos. químicos ou térmicos dos neurônios sensitivos
(nociceptores).
Neuroeixo
Estruturas nervosas na coluna. Portanto, as Nociceptor
anestesias peridural, caudal e raquianestesia podem Um recetorreceptor preferencialmente sensível a um
ser chamadas de técnicas de anestesia neuraxial. estímulo nocivo ou a um estímulo que poderia se
tornar nocivo se prolongado. Costuma ser chamado
Neuropatia de recetor da dor.
Qualquer doença ou mau funcionamento dos
nervos. Opióides
Os opióides agem nos recetores heptaelicais
Nevralgia acoplados à proteína G. Já foram clonados três tipos
Dor na distribuição de um nervo ou nervos. A de recetores opióides (mu, kappa e delta). Foram
palavra nevralgia costuma ser usada – erroneamente propostos subtipos adicionais mas não são
– para descrever dores paroxísticas. universalmente aceitos. Os recetores opióides estão
localizados e podem ser ativados ao longo de todos
Nevralgia do trigêmeo os níveis do neuroeixo, inclusive processos
Uma anormalidade do nervo trigêmeo na área de periféricos e centrais de neurônios sensoriais
sua raiz (por ex., nevralgia secundária do trigêmeo primários (nociceptores), medula espinhal
devido a massas malignas na região cerebelar) ou (interneurônios, neurônios de projeção), tronco
devido a compressão pulsátil pela artéria cerebelar cerebral, mesencéfalo e córtex. Todos os recetores
que causa breves ataques de dor intensa nos lábios, opióides se acoplam às proteínas G (principalmente
bochechas, gengivas ou no queixo, de um lado do Gi/Go) e subsequentemente inibem a adenilato-
rosto. Só um complexo sintomático incluindo ciclase, reduzem a condutância de canais de Ca2+
ataque de dor de menos de 2 minutos, ausência de voltagem-dependentes e/ou abrem os canais
déficits neurológicos, dor crônica ausente ou retificadores de K+. Esses efeitos acabam resultando
mínima e fatores desencadeantes típicos, pode ser
399

em menos atividade neuronal. Os peptídeos semelhantes, dependendo da dose, com algumas


opióides são expressos por todo o sistema nervoso nuances devido à redistribuição rostral (para o
central e periférico, em tecidos neuroendócrinos e cérebro) ou sistêmica dos diferentes componentes.
em células imunológicas. Doses pequenas e sistemicamente inativas são
Os opióides comumente disponíveis (por ex., usadas na periferia e portanto não têm efeitos
morfina, codeína, metadona, fentanil e seus colaterais. Os opióides continuam sendo os
derivados) são agonistas mu puros. A naloxona é medicamentos mais eficazes para o tratamento de
um antagonista não seletivo de todos os três dor oncológica aguda e intensa e de dor crônica,
recetores. Agonistas parciais precisam ocupar uma embora sejam apenas a segunda opção para dor
fração maior do grupo de recetores funcionais do neuropática e tenham apenas uma indicação limitada
que os agonistas completos para induzir uma em dor crônica não oncológica que não seja
resposta (por ex., analgesia) de magnitude neuropática nem inflamatória. Os efeitos colaterais
equivalente. Agonistas/antagonistas mistos (por ex., negativos podem normalmente ser prevenidos por
buprenorfina, butorfanol, nalbufina e pentazocina) cuidadosa titulação de dose e monitoramento
podem agir como agonistas em baixas doses e como constante do paciente, ou podem ser tratados por
antagonistas (no mesmo recetorreceptor ou em comedicação (por ex., laxantes) ou naloxona.
recetor diferente) em doses mais altas. Tais Atualmente estão sendo pesquisados opióides com
compostos costumam ter efeito teto para analgesia e acesso restrito ao cérebro.
podem causar uma síndrome aguda de abstinência
quando administrados junto com um agonista puro. Ordens de não ressuscitar (ONR)
Todos os recetores opióides mediam analgesia mas Instruções por escrito, em geral no prontuário do
com diferentes efeitos colaterais. Os recetores mu paciente, dadas por um médico ou outro provedor
mediam a depressão respiratória, sedação, de cuidados de saúde. É um método bastante
recompensa/euforia, náusea, retenção urinária, “impreciso” de indicar que, devido ao estágio
espasmo biliar e Obstipação. Os recetores kappa avançado da doença, o tratamento do paciente deve
mediam efeitos disfóricos, aversivos, sedativos e ser restrito e principalmente excluir ressuscitação
diuréticos, mas não mediam obstipação. Tolerância cardiopulmonar (RCP) ou outros tratamentos
e dependência física ocorrem com o uso prolongado relacionados. Em geral, as ordens ONR são escritas
– e às vezes curto – de todos os agonistas puros. após discussão entre o médico e o paciente e/ou
Portanto, a interrupção abrupta ou a administração familiares. Hoje em dia, um outro conceito
antagônica podem resultar em síndrome de chamado PMN (“permita morte natural”) está
abstinência. lentamente substituindo as ONR. Nesse conceito
Os opióides são eficazes na periferia (por ex., moderno, as limitações da terapia são documentadas
administração tópica ou intra-articular, precisamente após discussão entre cuidadores, o
principalmente em tecido inflamado), na medula paciente e a família. As ordens para PMN podem
espinhal (administração intratecal ou peridural) e incluir tópicos específicos, como antibióticos,
por via sistêmica (por ex., administração intravenosa ventilação, terapia intensiva, diálise e catecolaminas.
ou oral). A opção clínica de um determinado Organização Mundial de Saúde
composto é baseada principalmente em Uma agência da Organização das Nações Unidas,
considerações econômicas e farmacológicas (via de estabelecida em 1948 para aumentar a cooperação
administração, início de ação ou duração desejados, internacional para melhorar as condições de saúde.
e lipofilicidade) e nos efeitos colaterais associados à Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS)
via respetiva de administração. As doses podem tenha herdado tarefas específicas relativas ao
variar muito dependendo das características dos controle de epidemias, medidas de quarentena e
pacientes, do tipo de dor, e da via de administração. padronização de medicamentos, da Organização de
Administrados por via sistêmica ou espinhal, os Saúde da Liga das Nações (que foi criada em 1923) e
opióides podem produzir efeitos colaterais do Escritório Internacional de Saúde Pública de
Paris (criado em 1909), a OMS recebeu um mandato sensação anormal considerada desagradável. A
amplo de acordo com sua constituição para disestesia não inclui todas as sensações anormais,
promover a obtenção do “mais alto nível possível mas apenas aquelas que são desagradáveis.
de saúde” por todas as pessoas. A OMS define a
saúde positivamente como “um estado de bem-estar Peptídeo relacionado ao gene da calcitonina
físico, mental e social completo, e não meramente a O peptídeo relacionado ao gene da calcitonina
ausência de doença ou enfermidade”. As (CGRP) é um neuropeptídeo expresso nos
recomendações de tratamento da dor oncológica da neurônios sensoriais. Funciona como um
OMS (a escada analgésica) teve efeitos importantes neurotransmissor estimulante (pronociceptivo)
na taxa de opióides prescritos a pacientes com dor quando é liberado centralmente, e como mediador
oncológica e de HIV, principalmente em países proinflamatório quando liberado na periferia. A
membros da Organização para a Cooperação função central do CGRP nas cefaleias vasculares
Econômica e o Desenvolvimento (OCED). primárias (por ex., enxaqueca) levou à procura de
Infelizmente, os países do leste europeu e vários antagonistas adequados dos recetores DGRP.
países de poucos recursos têm taxas muito restritas Placebo
de prescrição de opióides para pacientes Uma “pílula de açúcar” ou qualquer outro
oncológicos, que deveria ser considerado uma medicamento ou tratamento inócuo que cause a
emergência de saúde. O Grupo de Estudos de Dor resposta placebo. Um fenômeno notável onde o
e Políticas da OMS está investindo muito esforço placebo – um tratamento falso – pode às vezes
para influenciar essa situação orientando as melhorar a condição do paciente simplesmente
autoridades governamentais e os profissionais de porque a pessoa acredita que ele pode ser útil. A
saúde sobre as mudanças legislativas, educacionais e expectativa tem uma função muito forte no efeito
de tratamento necessárias para poder fornecer as placebo. Os efeitos pré-condicionantes também
quantidades adequadas de opióides aos pacientes geram uma resposta placebo. Portanto, testar a
necessitados. Para maiores informações, visite o site “reação adequada” com um placebo não conseguirá
deles para muitos fatos relevantes relativos aos provar a “demanda analgésica inadequada”. A razão
opióides na maioria dos países do mundo. é que as expectativas e os pré-condicionamentos são
Osteoporose princípios potentes que conseguem imitar a resposta
Afinamento dos ossos com redução da massa óssea analgésica. Para realmente testar a “reação
devido ao esgotamento de cálcio e proteína óssea. A adequada” de um paciente a um procedimento
osteoporose predispõe a pessoa a fraturas. A analgésico, substâncias de ação curta e prolongada
osteoporose é mais comum em adultos mais velhos, devem ser testadas subsequentemente. Uma
principalmente mulheres pós-menopausa, e em “resposta inadequada” seria o paciente responder
pacientes recebendo esteroides. A osteoporose pode igualmente às duas substâncias (por ex., lidocaína de
levar a mudanças de postura (principalmente na ação curta e bupivacaína de ação prolongada em um
forma de costas arqueadas para baixo, bloqueio nervoso).
coloquialmente conhecida como “corcunda de Procuração legal durável para tratamento de
viúva”) e redução da mobilidade. Em geral, o corpo saúde (PLDPTS)
vertebral é afetado. A dor em geral não é constante, Em alguns países, foi introduzido recentemente um
mas temporária e um sintoma de fraturas documento para permitir a comunicação entre o
patológicas. cuidador e o paciente se o paciente não puder reagir
Parestesia devido à sua situação de saúde. O documento
Uma sensação anormal, espontânea ou evocada. Foi especifica uma ou mais pessoas (chamadas de
estabelecido que parestesia seja usada para descrever procuradores de tratamento de saúde) que o
uma sensação anormal que não é desagradável e que paciente deseja que tomem as decisões médicas se
disestesia seja usada preferivelmente para uma ele não puder fazê-lo.
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Recetor sua própria vida (por exemplo, engolindo as pílulas


Em biologia celular, é uma estrutura na superfície da que devem causar a morte). Embora o suicídio
célula (ou dentro da célula) que recebe seletivamente assistido pelo médico seja legal em países como
e se liga a uma substância específica. Existem vários Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça, ele é ilegal
recetores; por exemplo, o recetor da substância P, em todos os outros países do mundo. A expansão
molécula que age como mensageiro da sensação de do suicídio assistido pelo médico é considerada
dor, é porto único na superfície da célula onde a prejudicial e concorre com o desenvolvimento dos
substância P ancora. cuidados paliativos. Experiências nos países que
praticam o suicídio assistido pelo médico sugerem
Saúde pública que são incluídos pacientes demais, que não
É o ramo da medicina preocupado com a saúde da atendem aos requisitos originais para esse “último
comunidade como um todo. Saúde pública é a recurso”. Além das discussões legais, o suicídio
saúde da comunidade. Já foi dito que: “Os cuidados assistido pelo médico precisa ser comparado ao
de saúde são vitais para todos nós algumas vezes, juramento de Hipócrates dos médicos e aos ensinos
mas a saúde pública é vital para todos nós o tempo religiosos.
todo”.
Tolerância
Síndrome de abstinência Tolerância é a necessidade de aumentar
A interrupção abrupta de um agonista opióide progressivamente as doses de um agonista para
administrado repetidamente ou continuamente, ou a manter o mesmo efeito (por ex., analgesia). Na dor
administração de um antagonista, costumam resultar crônica, a necessidade de aumentar a dose pode ser
em síndrome de abstinência. Sinais e sintomas causada por alterações no funcionamento do recetor
incluem sudorese, taquicardia, hipertensão, diarréia, (por ex., ligação às proteínas G, segundos
hiperventilação e hiper-reflexia. Consulte também o mensageiros) e/ou ao aumento do estímulo
verbete sobre “Dependência física”. doloroso (por ex., por um tumor que cresceu), entre
Substância P outras razões. Felizmente, a tolerância não é comum
A substância P é membro da família taquicinina dos em pacientes com dor sensível a opióides. A
peptídeos que é expressa em neurônios sensitivos. tolerância é frequente em pacientes que buscam o
Funciona como um neurotransmissor ou tratamento com opióides para estabilização de
neuromodulador estimulatório quando é liberada humor. Portanto, em pacientes com dor não
centralmente, e como um mediador pró- oncológica e doença não progressiva a necessidade
inflamatório quando liberada na periferia. Ativa o repetida de aumento da dose (em geral a cada 4 a 8
recetor da neurocinina-1 que é fator importante na semanas, quando surge tolerância aos efeitos
sensibilização central. sedativos e eufóricos dos opióides) deve ser um
sinal de alerta para o uso “inadequado” dos opióides
Suicídio assistido pelo médico e a medicação opióide deve ser gradualmente
Ações do médico que ajudam o paciente a cometer retirada.
suicídio. Embora o médico possa dar a medicação, a
prescrição ou tomar outras medidas, o paciente tira

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