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Paolo Grossi

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MAT~RIA13. OS. ,~. Reglevo No. 473.696 0&1&: 08/04/2009
ORIGINAL. Au1llr.GR0981. PAOLO

TIllJlo:MITOLOOIAS JUAIDICAS DA MODERNIDADE

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Mitologias jurídicas
da modernidade
2" Edição
Revisada e Ampliada

- Tradução de Amo Dal Ri Júnior-

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FUNDAÇAO
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BOITEUX
Florianópolis
2007
Obra original publicada na Itália (2001)com o lít~llo
MITOLOGIEGlURIDlCHEDELLAMODERNITA
<i'Doll.A.GiuffreEditore,S.p.A.
Via Busto Arsizio, 40 - 20.151Milano

@Ediç1\obrasileira:
FundaçãoJoséArthur Boiteux- UniversidadeFederalde SantaCatarina
<i'AmoDaIRiJúnior

Ficha Catalográfica
G878m Grossi,Paulo
Mitologiasjurídicas da modernidade. 2. ed. rev. e atual. / 2.ed. rev. e
atual. / Paulo Grossi; tradução de Amo Dal Ri Júnior - Florianópolis:
Fundação Boiteux,2007.
16Op.
Tradução de: Mitologiegiuridiche della modemità
Incluibibliografia
lSBN:85-87995-30-8
1.Direito- História. 2.Cultura e direito. 3. Modernidade.
1.DalRiJúnior, Amo. lI.Título.
CDU: 34(091)

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

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Secretária-Geral Prof. Leilane M. Zavarizi da Rosa
Secretário Adjunto Prof. José Isaac Pila ti
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Tesoureiro Adjunto Prof. Carlos Araújo Leonetti
Orador Prof. Luiz Otávio Pimentel

Conselho Editorial Pro£. Aires José Rover


Prof. Antonio Carlos Wolkmer
Prof. Amo Dal Ri Júnior
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Coleção "Arqueologia Jurídica"


Cátedra Aberta da Fondazione Cassamarca
Sob a direção de Amo Dal Ri Júnior

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(48) 3025-3070 - studios@studios.com.br

Revisão Amo Dal Ri Jr. Aos caros e não esquecidos alunos do


"Curso de Pós-Graduação-Mestrado
Endereço UFSC - CC} - 2° andar - Sala 216 em Direito" da primavera de 2005 na
Campus Universitário - Trindade
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Florianópolis - SC - Brasil
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i\'llTOLOGIJ\SJURÍDICAS DA MODERNIDADE
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4 da pela reflexão científica. E se assiste a "atores modifica-


dos protagonistas do processo jurídico", a "diferentes mo-
dalidades de produção e de funcionamento das regras jurí-
dicas"35, a uma crescente privatização da produção jurídi-
ca: vitais centros monopoiéticos (ou seja, produtores de re-
gras jurídicas pontualmente observadas pelos indivíduos)
já estão inseridos em núcleos sociais, econômicos e culhl-
36
rais muito distantes dos Estados .
IH
Essa é uma panorâmica que me sinto grato de mostrar
CÓDIGOS:
aqui, na Civitas Amalfitana, na sede do seu município, nessa
extraordinária forja jurídica medieval, onde mercadores e na-
ALGUMAS CONCLUSÕES ENTRE
vegadores destemidos participaram da criação, mesmo sen-
UM MILÊNIO E OUTRO *
do pobres de leis e de ciências, mas fortes na própria capaci-
dade de escuta das forças econômicas e confiando quase uni-
camente na sensibilidade e na intuição do direito comercial e
3
marítimo da koiné mediterrânea da idade média ?

35 Como bem se expressa uma inteligente socióloga do direito em uma obra


a ser lida e meditada pelos juristas (efr. FERRARESE, M.R. Le istituzioni
della globalizzazione - diritto e diritti nella soeietà transnazionale. Bologna: Il Trata-se do texto da conferência final no Congresso "Codici - Una riflessione di
Mulino, 2000, p. 7). fine mil/ennio" (Códigos - Uma reflexão de final de milênio) acontecido em
36 Tratam-se de instituições internacionais de organização cultural, de grandes Florença nos dias 26 a 28 de outubro de 2000. Isto explica as referências a
escritórios profissionais, de grupos de empresários e assim por diante. conferencistas e conferências do mesmo congresso. Foram omitidas as palavras
37 Aos mercadores e navegadores amaifitanos, que tinham sólidos pontos de apoio
iniciais de saudação, que podem ser lidas no texto publicado contendo os
no mediterrãneo oriental, foi concedido importar uma série de costumes de "Anais" do congresso. Nesta redação - que se dirige a um público possivelmen-
origens gregas. Ver, BOGNETTI, G.r. La funzione di Amaifi nella formazione di te mais vasto, também de estudantes - foram inseridas notas integradoras
un diritto comune dei Medioevo, in Mostra bibliografia e Convegno internazionale di contendo explicações, com a finalidade de tornar mais claras a esse público de
studi sloriei dei diritto marittimo medioevale - Amaifi, julho-outubro de 1934,Atti, leitores, afirmações e referências concisas perfeitamentes compreensíveis (mes-
Napoli, Associazione Italiana di diritto marittimo, 1934, p. 55-51. mo na sua concisão) aos ouvintes do Congresso fiorenlino.
1. o Código e o seu significado na modernidade jurídica. - 2. O Código e
os elementos que historicamente o caracterizam. - 3. O Código hoje: algu-
mas considerações do historiador do direito.

1. O Código e o seu significado na modernidade jurídica

Como historiador do direito sinto-me no dever de começar


essas anotações dividindo com vocês uma preocupação. Uma
noção nunca foi tão marcada por uma intrínseca polissemia
como acontece no caso da noção de Código: o vocábulo unitá-
rio permite aproximar o Código Hermogeniano1, o Código
Justinian02, o Código Napoleônico e todos os demais Códi-
gos, cada vez mais freqüentes na práxis contemporânea, que
ouvimos mencionar nas várias conferências, em particular nas
proferidas pelos estudiosos do direito positivo (Código dos jor-
nalistas, dos consumidores, dos seguros, dos princípios, das
regras, Código comum europeu dos contratos, e, assim por
diante); o vocábulo unitário, tendo como denominador comum
a tendência a estabilizar o instável, o que caracteriza toda

1 Por Código Hermogeniano (Codex Hermogenianus) os historiadores do direito se


referem à compilação sistemática de atos imperiais redigidas no século IV d.C
pelo jurista Hermogeniano.
2 Ou seja, o recolhimento sistemático, em doze livros, das constituições imperiais
mais relevantes, promovida e realizada na primeira metade do século VI d. C
pelo imperador Justiniano 1.
,.

I 88
MITOLOCIAS JURíDICAS DA :-'IODER!'-:rDADE
CÓDIGOS 89

historiadores falar corretamente de "Código símbolo", "CÓ-


codificaçã03, através do engano que é típico de certas impassí-
digo mito", de "forma Código", de "idéia de Código"4.
veis persistências lexicais, mistura e associa realidades pro-
nmdamente diferentes por origem e por nmção, gerando con- Em outras palavras, para o historiador do direito, podem
nlsões e equívocos culturalmente perniciosos. O historiador existir e existem muitos "Códigos", para os quais pode ser
do direito, cumprindo o seu métier nmdamental, que é o de convencional e inócuo o emprego de um vocábulo unitário,
comparar, relativizar, diferenciar, sente a armadilha que se mas, ~~.:nte um é o Códi~o, que irrompe em um determina-
constitui no léxico, prefere abandonar o simulacro lUutário e do momento histórico, fruto de uma autêntica revolução cul-
cair na realidade histórica que é, ao contrário, substancial- tural que bate em cheio e devasta os fundamentos consolida-
mente marcada por insanáveis descontinuidades. dos.do, luU:~er~()jurídico; justo por essa sua carga incisiva,

Deve ser salientada com vigor ao menos uma dupla justo por ser também e sobrehldo uma idéia, o Código pode

descontinuidade: aquela entre o "Código do consumidor" de sofrer uma transposição, e, a partir do plano terrestre das

que hoje se fala (para dar um exemplo) e o que para nós, fontes comuns de direito, vir a encarnar um mito e um símbo-

historiadores do direito, é o Código; entre esse último e os lo. Porque, de fato, o Código quer ser um ato de ruphua com

muitos Códigos da qual estava repleta - por exemplo - a o passado: não se trata de uma fonte nova ou de um novo

Antigüidade clássica. Os tênues elementos associados - que modo de conceber e confeccionar com profundidade e am-

existem - não devem enfraquecer a absoluta tipicidade histó- plitude a velha ordonnance5 real; trata-se, ao contrário, de um

rica daquela escolha fundamental da civilização jurídica modo novo de conceber a produção do direito, e, desse modo,

moderna que pôde se definir completamente entre os séculos o inteiro problema das fontes, assim como o problema pri-
XVIII e XIXna Europa continental, escolhida não por esta ou mário da conexão entre ordem jurídica e poder político.
aquela política contingente, mas tão radical a ponto de se Fez bem o amigo Halpérin ao nos oferecer, entre várias
colocar como marco fronteiriço na história jurídica ociden- imagens significativas, a de Napoleão I quando esse rejeitava
tal, assinalando um "antes" e um "depois" caracterizados
por uma íntima descontinuidade, escolha que permite aos

4 Amava falar de uma "idéia de 'Código" um grande estudioso italiano de


direito comercial, Tullio Ascarelli. Sobre ele, vede, sobretudo, o iluminadíssimo
3 No âmbito dos trabalhos do Congresso foram dignas de atenção as palavras
ensaio: L'idea di codice nel diritto priva to e la junzione de li' in terpretazione (1945).
iniciais de saudação do Pro-reitor, Professor Giancarlo Pepeu, docente na Facul-
dade de Medicina, o qual salientou o uso que é feito da palavra "Código" na atualmente em Saggi giuridici, Milano, Giuffre, 1949.
5 Com o termo ordonnance se entendia, na história medieval e pós-medieval do
ciência médica (como, por exemplo, quando se fala de "Código genético") para
indicar um conjunto de elementos marcados por uma íntima fixidade. Reino da França, a norma que expressava a vontade do príncipe-soberano.
90
MITOLOGIAS JURíDICAS DA MODERt'\jIDADE CÓDIGOS 91

o velho droit coutumiet': nessa, foi testemunhada a presun- completo delinear de uma mentalidade energicamente nova
ção do primeir07 autêntico codificador da história jurídica que investe o coração da ordem jurídica, ou seja, o modo de
européia - de romper com o passado por aquilo que o passa- conceber e de realizar a produção do direito. Neste ponto -
do representava sob o aspecto da visão do "jurídico" e da que é uma noção cmcial sobre a qual se edilica o jurídico -,
posição do "jurídico" no "social" e no "político", Sob esse concepções e soluções estão em uma polêmica frontal.
perfil, o "Código" expressa a forte mentalidade forjada no A produção acontecia no mtmdo pré-revolucionário atra-
grande laboratório iluminista e se encontra - enquanto tal - vés de três elementos básicos que a caracterizavam.
em áspera polêmica com o passado.
Era transbordante, ou seja, seguia sem tentar obrigar o
Com esse esclarecimento, que deve ser feito: é obvio que, se advir da sociedade a se manter dentro de margens muito
olhássemos o tecido do primeiro verdadeiro Código, aCode vinculantes: as opiniões dos doutores acumulavam-se uma
civil, e, ainda mais se olhássemos os seus trabalhos preparató- após a outra, formavam-se opiniões comuns, mais que co-
rios, poderíamos constatar a fértil continuidade de institutos muns, comuníssimas , 9
entesourizantes naquelas confusas
cunhados e aplicados na imemorável práxis consuetudinária, colheitas dos séculos XVII e XVIII, que forneciam aos práti-
8
Os redatores, primeiro entre eles Portalis , eram homens nas- cos O suporte para as pretensões processuais; as sentenças se
cidos e educados sob o Antigo Regime, assim como não sur- acumulavam uma após a outra, sendo que os Tribtmais mais
preende o fato de esses serem portadores, nas suas subconsci- ilustres tinham a sorte de poder imprimi-las naquelas enor-
ências, de noções, costumes, esquemas técnicos, enraizados na
experiência da sociedade francesa e, portanto, aceitos e vivi-
dos na vida cotidiana. Isso eu daria por certo, considerando 9 Quando se fala de doutores, nos referimos aos doetores, ou seja, aos mestres
do direito, os quais, com a interpretatio do velho direito romano justiniano e do
que a história nunca realiza saltos improvisados, e o futuro direito canônico, constituíam o instrumento de adequação daquelas normas
às exigências da experiência jurídica medieval e pós-medieval em contínuo
sempre tem um vulto antigo. O que conta é o que emerge e o crescimento e punham-se, por isso, como autênticas fontes do direito comum
europeu. Aquelas opiniones, pareceres jurídicos que eram expressão não so-
mente do jurista, mas que, pelo seu sucesso e pelo seu recebimento geral,
6 Com a expressão "droit coutumier" entende-se, no antigo direito francês, o com- poderiam parecer a expressão de toda a classe dos juristas, as chamadas
plexo do direito consuetudinário espontaneamente florescido e aplicado nas opiniones eommunes, opiniões comuns, conseguiam ter uma particular autori-
. vária" práticas locais e, sucessivamente, consolidado em redações escritas. dade junto aos juízes. Por isso, muito cedo, começou-se a recolhê-las, come
7 Por motivos que pareciam claros no desenvolvimento dessas considerações, o preciosos subsídios para os advogados, organizando-as segundo os vários
Código Prussiano, o "Allgemeine Landrecht" de 1794, que adIlÚtia ainda a hétero- problemas a que se referiam. Nessa corrida, voltada a fornecer ao advogado
integração por parte dos direitos locais, é mais corretamente inquadrável entre instrumentos infalíveis para serem vitoriosos nas diferentes causas, existiu,
as consolidações do século XVIII do que entre as verdadeiras codifieações. no direito comum tardio (séculos XVII a XVIII), uma concorrência entre os
8 O jurista francês Jean-Etienne-Marie Portalis (1746-1807) foi um dos prota- vários recolhe dores, que propunham não somente "opiniões comuns", mas
gonistas na redação da grande codificação ordenada por Napoleão L até mesmo "mais que comuns" ou "comuníssimas".
CÓDIGOS 93
MHOLOCIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE
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coragem, em que o novo Príncipe pós-revolucionário ousa-
mes coleções sobre as quais teve o mérito de ter chamado a
va, seguríssimo de si mesmo, legislar em um terreno difícil, a
.
atenção - único entre nós - o caro amIgo G'mo G or llo
a .
razão civil, ultrapassando os limites onde os legisladores do
Era pluralista, ou seja, estava em conexão com a socieda- passado tinham parado, mesmo os de Luís XIV, que com as
de e com as suas forças plurais, expressando-as sem particu- suas grandes Ordol1l1al1ces tinham realizado uma primeira
larizações artificialmente construídas. experiência de redução de boa parte do direito a um corpo
Era, conseqüentemente, ~~s!.?-tal, ou seja - excetu- de leis soberanas12• O que Luís considerou que fosse melhor
ando as zonas que se encontravam em íntima relação com continuar regulamentado por costumes imemoráveis, sedi-
o exercício da soberania -, nã_~.!_<:.gJ~!.r!:r_~.~.:r~.~.~.<:>.'p0d~r mentados em um longo processo, agora -l\m 180~-~~'p'()!eão
"---- ,/ --._- -

po1.~ti~?c~m_ting~~~e,
conservando-se de um indefectível con- ª-RI!Sü~I1a.~9..~.
~.281 artigos do Code civil, oncfé todo o direito
d-icionamento. Em um ensaio bastante consciente, o civil passa a ser previsto, onde existem regras minuciosas para
romanista-civilista Filippo Vassalli advertia, em 1951, que o ~a~i3.~~i~~~3quef~eqü~ntemente encontra até mesmo a sua
direito civil, o direito das relações cotidianas entre os indi- definição, elaborada pelo próprio legislador).
víduos, tinha tido até a Idade do Código a conotação de
Tudo isso horroriza a velha lógica transbordante, cria aver-
uma íntima extra-estatalidade, encontrando a sua fonte nos
são para aquele colocar-se nas mãos da história, mesmo a sim-
indivíduos, nos costumes instituídos e observados pelos in-
ples história de todos os dias, que foi o traço marcante da or-
divíduos, sucessivamente reduzidos em esquemas técnicos
dem jurídica tradicional. A historicidade do direito não satis-
pela classe dos juristasl1.
faz o novo Príncipe, ou melhor, mostra-se a ele no seu aspecto
Tudo isso vem apagado pela obstinaçãu.co.ciifis.adQra,não repugnante de complexidade desordenada e confusa.
sendo por acaso que Napoleão queria realizar, com o .CQfk
civil, a primeira etapa de uma codificação totalizante. Uma
O Cóqigo
...._. "_.. ---."" -"
revela plenamente a sua filiação ao Iluminismo .
. ~- ."

º.~!íncipe, indivíduo modelo, modelo do novo sujeito liberto


-ciraIDstância nada banal, ou melhor, um gesto de suprema
e fortificado pelo hun:anismo secularizador, te~ condições
de ler a natureza das coisas, decifrá-la e reproduzi-la em

10 o civilista e comparativista italiano Gino Gorla (1906-1992) dedicou-se com


paixão a vastas e relevantes obras de .escavação ~as coletâneas de ~córdãos ~os 12 É a Luís XIV (e, por trás dele, ao seu ministro Colbert) que se devem algumas
grandes Tribunais que atuavam na :poca do dIreito comum tardIO. Uma Im- grandes ordonnances, a serem consideradas como uma etapa relevante no itine-
portantecoletãnea deescntos de Gorla e Dmlto comparato e dmlto comune europeo, rário francês que levou ao Código, quando essas sistematizaram organicamente
Milano, Giuffre, 1981. amplas zonas da vida jurídica, tais como o processo civil (1667), o direito penal
11 VASSALLI, F. Eslraslalua/ilà dei dirillo civi/e, atualmente em Sludi giuridici, vo- (1670), o direito comercial (1673), o direito da navegação (1681).
lume m, tomo lI, Milano, Giuffre, 1960 ..
MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CÓDIGOS 95
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normas que podem ser legitimamente pensadas como _~i- Pressuposto desta gratificação é a sua idealização: o PrÍn-
..... -_._------ cipe é, ao contrário do juiz e do doutor, uma figura acima
versais e eternas, como se fossem a tradução em regras soci-
;~-da~~~l~-h~~monia geométrica que rege o mlmdo. Aqui se das paixões e das mesquinharias ligadas aos casos particula-
manifesta af~ª".é:1mentação)1!~P~.~l.~~lis~~, que reveste de res e, por isso, tem condições de fazer uma leitura serena e
"., .•...•• e_,_. .

eticidade a certeza de que o Código se faz portador, já que,. objetiva. Quem não recorda, a propósito, os escritos, ao mes-
quando se torna possível ler a natureza das coisas, a veia mo tempo conhmdentes e ingênuos, de Muratori ou de Becca-
ética passa a ser certa, mesmo se no fundo não existe mais o ria 13?Como antes fez a Reforma religiosa, também a culhlra
Deus-pessoa da tradição cristã, mas, no seu lugar, uma vaga Jusnaturalista, imersa no novo mundo secularizado, precisa-
divindade panteisticamente vislumbrada; desse modo, passa va de um vigoroso gancho no temporal, e isso foi oferecido
a ser certa a mitificação. Não é errado falar de catecismo, do pelo novo sujeito político, vigoroso, já protagonista do cená-
Código como catecismo. rio europeu transalpino, o Estado. E toma forma um fenôme-
Filho do jusnahualismo iluminista, o Código leva consi- no que poderia, à primeira vista, mostrar-se como uma com-
go, bem penetrado na sua estrutura óssea, a marca da gran- :?leta antítese em relação ao que dissemos algumas lirthas
de antítese jusnaturalista, a mais grave e pesada antítese da acima, sobre uma harmonia de geometrias eternas e univer-
história do direito moderno. Na nova êultura secularizada, a sais: a estatização do direito, também do direito civil, o mais
convicção na capacidade do novo sujeito de ler a natureza difícil a ser controlado nas malhas do poder.
das coisas passa a ser acompanhada por um problema que a O jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo
velha cultura medieval e pós-medieval pôde ignorar: quem positivismo jurídico, e o Código, mesmo se portador de valo-
possui legg~~dªç1gP-ªKil J~r..ª ...nªhlr.~.~ª_.dªs.çoisasj~...d.e_~?_a
.extrair regr~s ..~?r~él!i~.é:1s?A nada serve o antigo leitor, úni- 13 Ludovico Antonio Muratori, que é lembrado sobretudo pela sua importante
obra de erudito e de colecionador-editor de fontes históricas, é uma figura que
co e necessário, a Igreja Romana, já condenada ao sótão das interessa ao historiador do direito por uma pequena obra que publicou em
superstições e eliminada da categoria das possíveis fontes de 1742, entitulada "Dei di/etti delIa giurisprudenza". Trata-se de um polêmico libe-
lo contra o velho direito comum e o seu confuso pluralismo jurídico, trazendo a
direito. Esse leitor deve obrigatoriamente sero J:>~cip":"o qual, proposta de um novo direito tendo o Príncipe e a lei como protagonistas e que,
por isso, coloca-se como testemunho genuíno do iluminismo jurídico italiano.
após ter sido gratificado no âmbito da Reforma religiosa com No que diz respeito a Cesare Beccaria, faz-se referência ao seu notório libelo
"Dei delitti e delle pene", publicado em 1764, e por todos conhecido devido as
o comando das Igrejas Nacionais, vê-se, agora, honrado e suas propostas criminalistas, mas aqui lembrado pelos seus escritos polêmicos
contra um direito comum monopolizado por doutrinadores e juízes, contra um
onerado, com uma nova missão inteiramente temporal.
direito comum que, no século XVIII, ainda era interpretação do direito romano
e do direito canônico, e a favor de um novo direito iluministicamente resumido
em um complexo de leis soberanas.
CÓDIGOS 97
MITOLlX~lAS JURÍDICAS DA \10DER.l\JIDADE

rias: em que, mal se retira o maximalismo retórico, emerge


res tmiversais, é reduzido à voz do soberano nacional, à lei
com toda a sua rudeza urna fria e lúcida estratégia polítical;.
positiva desse ou daquele Estado.
A idealização do Príncipe provoca a necessária idealização
Na França, a primeira grande codificação, a napoleônica,
da sua vontade soberana e, conseqüentemente, a cristalização
chega ao resultado final de um longo itinerário histórico,
normativa na lei. Aquela que é simplesmente a voz do poder
quando o direito já se identificou na lei, ou seja, na expressão
recebe um lugar seguro no mais secreto sacrário da consciên-
da vontade autoritária do Príncipe; um itinerário difícil que,
cia laica. Delineia-se já uma escrupulosa mística da lei.
ainda no final do século XVI, Jean Bodin, cientista político de
consistente formação jurídica, visualiza no dissídio entre droit Essa é a única fonte capaz de expressar a vontade ge-
e loí14, entre direito e lei, ou, para melhor explicar, entre a ral e é graças a uma qualidade desse tipo que o seu prima-
práxis consuetudinária tradicional, compenetrada de eqüi- do impõe-se, que o sistema das fontes fecha-se em urna
dade, e a vontade potestativa do Príncipe; um dissídio conti- ordem hierárquica com a inevitável desvitalização de qual-
nuado feito de lutas e de resistências, mas que, lentamente, quer outra produção jurídica. O velho pluralismo jurídi-
marca a progressiva vitória de uma monarquia sempre mais co, que tinha nos seus ombros mais de dois mil anos de
empenhada e satisfeita na sua dimensão legislativa. O direi- vida, mesmo com várias vicissitudes, passa a ser estran-
to francês - para usar uma expressão do léxico de Bodin - é, gulado em um rígido monismo.
com o passar do tempo, sempre mais loi e sempre menos droit. E desenha-se mais claramente a intimíssima ligação entre
A idéia de Código, tendo sido deposta a sua projeção ori- doutrina dos poderes e produção jurídica, com a atribuição
ginal e natural voltada a uma ordem universal, mortifica-se dessa última somente ao poder legislativo. A divisão dos po-
espiritualmente e potencia-se efetivamente, expressando a deres, ao lado do seu valor garantis ta, tem, para o historia-
ordem jurídica de um Estado delimitado em termos tempo- dor do direito, a ftmção de ftmdamentar o monopólio jurídi-
rais e espaciais. O Código insere-se plenamente no paroxis- co nas mãos do legislador, já nesse momento identificado no
mo legislativo que escorre nas veias do século XVIII e que se detentor da soberania. O círculo fecha-se e o grande projeto
manifesta plenamente nas insistentes proclamações das de-
clarações constitucionais revolucionárias e pós-revolucioná- 15 Para se dar conta desse fato, basta ler as várias "Declarações", começando pela
adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assembléia Nacional Constituinte. A
enunciação mais transparente encontra-se no "Ato Constitucional" de 24 de
junho de 1793, no artigo 4: "a lei é a expressão livre e solene da vontade geral; a
mesma é para todos, seja qu<-proteja, seja que puna; pode ordenar somente o
14 BODIN, J. Les six livres de la République. Aalen: Scientia, 1977, livro r, capo VIII. que é justo e útil à sociedade; pode impedir somente o que é nocivo".
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"r-, . MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CODIGOS 99
~~ 98
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jllsnahualista revela a sua latente dimensão estratégica, ou Uma tipicidade inconftmdível, em relação a todas as ou-
seja, de sagaz estratégia da classe burguesa no momento de tras fontes jurídicas que se manifestaram ao longo da histó-
conquistar o poder político. ria/ é-lhe impressa por uma tríplice tensão que o percorre;
O problema das fontes, do sistema das fontes - de todas efetivamente, tende
--"
a ser fonte lmitária,
...•. ..-
espelho e fundamento
... . .... ..
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as fontes -/ é sentido pela cultura jurídica burguesa como ~a unidade de um ente esta~al; tende a ser uma fonte com-
problema intimamente, genuinamente, constitucional, no pleta;. tende a ser uma fonte exclusiva. Est.a tríplice tensão
coração da constihtição do novo Estado; ou seja, não somen- caracteriza fortemente o Código, ao plenos no seu modelo
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te no heróico momento da conquista ou próximo a essa, mas 0riginário/ que nos foi proposto na realização francesa do
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também em tempos bastantes distantês, com uma continui- início do século XIX.
dade inerte que tem muito a dizer. Vem em mente os escritos Disse tensão porque, sem dúvida, é uma aspiração desse
dos civilistas italianos do início do século XX, que recente- tipo. De fato, não esqueçamos nunca de conceber o Código
l6
mente reli para uma pesquisa , os quais estariam inclinados - a idéia de Código - como o fruto extremo do comporta-
a reconhecer doutrina e jurisprudência como fontes de direi- mento geral de mística legislativa, de inseri-lo naquele <l.~~-.
to/ mas o negam categoricamente por motivos de Úldole ex- <!EQqe rnº-ni~J:!l9Jllrídic()_que identif~ca ~ lei aciIllil de qual-
clusivamente constitucional: tal fato teria constituído uma quer outra fonte de direito, no topo de uma rigidíssima hie-
", _ •• 0 _..".. ..-" ••••• -_ •• -... .'

lesão à coluna que sustenta todo o Estado de direito burguês, ,r<l~qy:i.a.,


<:?_~.~_.~.?E~~q~~_~te
c()J:l.c!.~.~ação
das.PQ?iç()~s. hie:-
ou seja, o princípio de divisão dos poderes. ~arquica~ente~!eriores a um status decidi~aIl1.~.nteservil.
Também não podemos esquecer a maquinação de um Có-
2. O Código e os elementos que historicamente o caracte- digo: preterlde realizara reduçã()çle toda a experiência em
rizam
um sistema articuladíssimo e minuciosíssiIn.<:ld~ regras es-
Chegamos, desse modo, aos elementos que caracterizam critas/ contemplando todos os institutos possíveis, começan-
o Código, sobre os quais se discutiu em uma vivaz dialética do muito freqüentemente pelo dar a esses uma definição e
de posições, nas mais variadas relações. disciplinando com uma precisão estudada todas as aplica-
ções previstas pelos redatores.
Também acredito que não devamos nos deixar desviar
16 GROSSI, P.ltinerarii deI/' assolutismo giuridico - saldezze e incrinature nella 'parti pelos propósitos que, por vezes, floresciam nos preparativos,
genera/i' di Chironi, Coviello e Ferrara, in Assolutismo giuridico e diritto priva to.
Milano: Giuffre, 1998. como quando Portalis apela para a eqüidade, ou seja, a um
, 100
MITOI.(X;I;\S JURíDICAS DA MODERNIDADE CODlGOS 101

J7
dos valores que caracterizavam o Antigo Regime • Qs novos "princípios do direito nahlral, respeitando as cirCtIDstâncias
"legisladores" ainda levam sobre a pele os sinais da própria analisadas com diligência e maduramente ponderadas"18 com
velhice, ou seja, de figuras educadas na época pré-revolucio- uma dição que indica abertamente, ao mesmo tempo, as in-
nária. O que conta é o clima histórico, a ideologia política e a fluências paralelas - enormes sobre aquele legislador - do
cultura jurídica dominantes, das quais o Código é tradução robusto jusnahlralismo alemão e do também robusto direito
em nível normativo e que o fazem ser instrumento de um comum revivido na Idade Moderna da área germânica. Mas
rigoroso absolutismo jurídico. Não podemos nos deixar des- atrás do Código falta o embaraçante Estado-nação e falta a
viar pela consideração se, sob o conteúdo vago e ambíguo do corrosiva incidência revolucionária que os franceses experi-
notório artigo 4, obrigando o juiz a decidir a qualquer custo mentaram na própria pele. Bastaria analisar corno o ABGB
a controvérsia submetida a ele pelas partes, exista uma von- coloca-se (e resolve) o problema da propriedade e dos direi-
tade de abertura além da lei por parte dos redatores, quan- tos reais para se dar conta de que estamos em um planeta
do, imediatamente e com duradoura forhma, dá-se uma in- jurídico muito distante do francês, um planeta ainda intima-
terpretação positivista e legolátrica dessa, coerente com a mente ligado à estrutura feudal e às decrépitas invenções do
imperante mística legislativa. No seu complexo, o Código é domínio dividido, assim corno foram teorizadas e sistemati-
uma operação ideológica e cultural notavelmente compacta, zadas pelos intérpretes medievais.
e bastaria, para confirmar o seu relevo - já por nós realizado Passando aos Códigos da área italiana que surgiram ao
_ acerca do território do qual toma início a operação, o direi- longo do século XIX, não gostaria de supervalorizar as pou-
to civil plasmado por costumes seculares e a esse reservado. cas referências ao direito comum, salientadas por Pio Caroni;
Convencidos dessa densidade, torna-se impossível não efetivamente, essas podem ser observadas ou em zonas bas-
salientar algumas fissuras na solidíssima muralha. A primei- tante separadas (corno o Cantão Ticino), ou em zonas onde
ra que vem em mente é oferecida pelo parágrafo 7 do ABGB, ainda perdura, em pleno século XIX,a vigência geral do mes-
o Código Austríaco, que tem como hipótese, como meio ex- mo direito comum (como acontece no Estado Pontifício).
tremo para preencher as lacunas legislativas, o recurso aos
18 Trata-se da parte final do parágrafo 7 do "Código Civil geral aust~íaco"
(Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch) de 1811. O texto completo do paragrafo
recita: "Quando não seja possível decidir um caso nem segu,ndo as palavras,
17 Sobretudo no complexo Discours préliminaire, riquíssimo de velhos e novos mo-
nem segundo o sentido natural da lei, deverão se~ respeitados os ca~os s~lares
tivos, pronunciado por Portalis quando apresenta ao Conselho de Estado o
especificamente decididos pelas leis e os mo.h:os de outras leiS. a~a~ogas.
projeto de Código Civil redigido pela Comissão do governo (a.tualmente po~e
Permanecendo duvidoso o caso, deverá ser deCIdido segundo os prmclplOs do
ser lido na coletânea: Naissance du Code clUzI - la ralson du leglslateur. Pans:
direito natura!, respeitando as circunstâncias analisadas com diligência e pon-
Flammarion, 1989)
deradas com maturidade".
MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CÓDIGOS
102 103

É mais encorpado, ao contrário, o apelo aos "princípios culo, já em um Código que reflete a conclusão do positivismo
gerais do direito" - feito expressamente no artigo 3 das dis- legalista da Pandetística21, o Código Imperial Germânico, o
posições preliminares do primeiro Código civil da Itália BGB, existe um fervilhar de cláusulas gerais22, de brechas
19
unificada, de 1865 - como último subsídio oferecido ao abertas para o juiz através do mlmdo dos fatos, um tema -
aplicador para preencher as lacunas normativasi porém, esse - caro a Stefano Rodotà, que o desenvolveu, há muitos
com o ulterior e significativo esclarecimento que adição - anos, em uma esplêndida conferência proferida na cidade
por verdade, genérica - será sempre e constantemente en- de Macerata23• E, no início do século XX, o Código suíço,
tendida como uma redução do próprio espectro aos princí- marcado pelas convicções germanistas de Huber, surge imerso
pios gerais dedutíveis do direito positivo estatal italiano. em uma realidade consuetudinária que merece ser valoriza-
Existirá - durante o longo império do Código de 1865- quem da, com um juiz que possui maior liberdade, podendo abrir
o interpretará com um conteúdo de genuíno direito nahl- as janelas do seu métier para absorver as mensagens soci-
ral, mas será muito mais tarde, e será um filósofo do direi- ais24. Poderia-se, até mesmo, mencionar o primeiro Código
to, Giorgio deI Vecchio, na conferência que esse proferiu de direito canônico de 1917, ünico Código - de que eu saiba
em Roma em 1921 2
°, dando livre curso a um debate aceso e - expressamente aberto, com o cano 6, em direção ao passa-
fecundo, que toma viva e enriquece a reflexão jurídica ita-
liana no início da década de vinte.
21 Com o termo "Pandetística" nos referimos sobretudo à grande corrente científi-
Aquilo que estou delineando é o modelo d;eCódigo assim ca que, tendo por base as Pandetas de Justiniano, edifica na Alemanha do
século XIX um saber jurídico extremamente conceitualizado, fundamentado
como esse veio a se desenhar, com traços nítidos na França, sobre modelos abstratos e purificado das escorias factuais de índole econômica
e social. Na falta de uma codificação na Alemanha durante todo o século XIX,
nos primeiros anos do século XIX. Com o passar do tempo a Pandetística constrói robustamente no plano teórico, mas permanece domina-
da por um forte positivismo legalista.
também passa muita água sob as pontes do Senna, do Tevere, 22 Com a expressão "cláusulas gerais" pretende-se salientar as referências que o

do Renoi e essa não passa em vão. A história sempre traz legislador faz a noções pertencentes à consciência coletiva (boa-fé, bom costu-
me, usos comuns, diligência do bom pai de família, e, assim por diante) indi-
consigo riqueza e transformação incessante. No final do sé- cando a~ juiz um reservatório extra legem a ser alcançado pela sua decisão.
23 RODOTA,S.ldeologie e tecniche della riforma dei diritto civile, in Rivista dei diritto
commerciale, 1967,I.
24 Nos referimos ao "Código Civil suíço" (citado como ZGB) de 1907, mais do que

a qualquer outro, um verdadeiro Código de autor, por ter sido fruto da


19 Código Civil de 1865, artigo 3: "Quando uma controvérsia não possa ser decidida engenhos idade de somente um notável personagem, o jurista Eugen Huber
com uma específica disposição de lei, deverão ser respeitadas as disposições que (1849-1922), um doutrinador especializado em direito privado e inspirado na
regulamentam casos similares ou matérias análogas: onde o caso permaneça cultura'jurídica germanista. Os traços que caracterizam esse Código são a
duvidoso, deverá ser decidido segundo os princípios gerais de direito". valorização da consciência jurídica popular e, conseqüentemente, a valorização
20 DELVECCHIO, G. Sui principi generali dei diritto, atualmente em Studi sul diritto. do papel do costume e do juiz. É também, por isso, que no Código faz-se
Volume I. Milano: Giuffre, 1958. grande uso de "cláusulas gerais".
CÓDIGOS 105
MITOLOCIAS JURÍDICAS DA ~IODERNI[)ADE
104

tavelmente põe sobre os ombros de quem age no seu seio. A


do, através do princípio constihlcional não escrito da eqüi-
camalidade, no bem e no mal, era própria do Antigo Regi-
dade canônica, com a possibilidade, para o juiz - sob deter-
25 me, onde haviam nobres e plebeus, camponeses e mercado-
minadas condições -, de não aplicar a norma escrita ; mas
res, ricos e pobres, cada um pensado no interior de uma co-
aqui é fácil salientar que se trata de uma codificação
mlmidade historicamente definida, cada um desigual em re-
peculiaríssima, relativa a um ordenamento sacro com
lação ao outro graças a sua inabdicável historicidade.
imperiosas instâncias pastorais absolutamente ignoradas pe-
No projeto jurídico burguês, abstração e igualdade jurídi-
los ordenamentos laicos.
ca(ou seja, a possibilidade de igualdade de fato) ~ão noções
As matrizes jusnaturalistas pesam sobre o Código. Como
"constitucionais" que fundamentam o mesm() P!C?Je.t? E a mu-
norma que presume prender a complexidade do social em
ralha chinesa que separa o mundo do direito (e da relevância
um sistema fechado, o Código, toda codificação, somente
jurídica) do mundo dos fatos é compactíssima, impenetrável.
pode traduzir-se em urna operação drasticamente redutiva:
Tão compacta e impenetrável como talvez nunca se tenha reali-
se a razão civil pode e deve desenhar-se em uma harmonia
zado na história jurídica ocidental. Sinal de que o projeto se
geométrica, sob a égide da máxima simplicidade e da máxi-
misturava também com estratégia, com a exigência de um con-
ma clareza, o legislador deve empenhar-se em um esforço de
trole rigoroso no ingresso dos fatos na cidadela do direito.
depuração e decantação.
A factualidade começará a ser discutida na Itália - após
Corno norma que, rejeitando as escórias deformantes da
muitas dificuldades - no final do século XIX por civilistas
historicidade, pretende redescobrir o indivíduo originário em
hereges e se contraporá, então, à fria harmonia de museu
toda a sua genuína privacidade, o Código tem por protago-
que caracterizava o Código Civil, um "Código privado soci-
nistas sujeitos abstratos aos quais se refere uma faixa de rela-
al" em que os sujeitos são patrões e empregados, ricos e po-
ções igualmente abstratas. São os modelos desenhados sobre
pegadas pré-históricas, modelos todos iguais, sem aquela pe- bres, sábios e ignorantes26; em suma, homens de carne e osso;
e também começará a ser discutida, sempre no final do sécu-
sada bagagem de camalidade humana que a história inevi-
lo XIX,na legislação especial- antes muito escassa - que logo

25 O cano 6 valoriza o grande patrimônio jurídico que se acumulou na birnilenária


se intensificará com o objetivo de remediar as muitas necessi-
vida da Igreja Romana e que entre os canonistas vem denominado ius vetus.
Quanto à eqüidade canônica, ou seja, ao espaço de discricionariedade concedi-
do ao juiz para evitar aplicações rigorosas da lei que pudessem ser motivo de
26 Tal fenômeno acontecerá na Itália, no final do século XIX, no ãmbito da corrente
pecado para os que julgam, essa, chamada expressamente pelo cano 20 do
ambígua e heterogênea de índole tipicamente solidarista que chamamos de
Código de 1917, deve todavia ser considerada como um princípio constitucio-
nal não escrito que permeia toda a codificação. "socialismo jurídico".
106 MITOLOGIAS JURíDICAS DA MODERNIDADE
CÓDIGOS 107

dades emergentes27, e, finalmente, na legislação especial e É verdade, o Código sofre de incomtmicabilidade ou, ain-
excepcional surgida com a Primeira Guerra MundiaI28, que da, de grandes dificuldades ao comunicar si mesmo à gene-
se transforma em uma corda no pescoço para o organismo ralidade. Isso por um motivo fundamental: <:>. Código, como
rarefeito dos sujeitos e das relações do direito burguês. resultado de uma monopolização da produção jurídica por
Abstração~.igJJaldade
. _._._----.,.. foonal foram, talvez, as ..,--'-
armas,. mais parte do poder político, é o instrumento de um Estado
afiadas <:t_~&rancle
ba~a~~_?tl:gtl~sa, armas só aparentemen- monoclasse (uso constantemente essa expressão felizmente
te desinteressadas, só aparentemente em benefício e para a cunhada por Massimo Severo Giannini, um importante pen-
proteção de todos. Aos meus altmos da disciplina de História sador italiano do direito público falecido no início do ano
do direito moderno, nunca deixo de ler uma frase retirada 2000); é o instrumento de um Estado centralizador que se
do magnífico romance "Le lys rauge", de Anatole France, uma expressa em uma língua nacional, culta, literária, que tenta
frase que acumula em si um diagnóstico historio graficamente se manter o mais distante possível de todo o tipo de localismos
agudíssimo; o grande romancista assinala com pungente sar- vernáculos, os únicos verdadeiramente agradáveis e compre-
casmo "la majesteuse égalité des lais, qui interdit au riche camme ensíveis à massa popular.
au pauvre de coucher sous le ponts, de mendier dans les rues et de
Se o ç_~_c!~g.9
fala a alguém, esse alguém é a 1?tlrguesi.a que
voler du pain "29; e conclui, mal conseguindo esconder a zom- fez a Revolução e que finalmente realizou a sua plurissecular
baria: "elle éleva, sous le nom d' égalité, l' empire de la richesse"3o.
aspiração à propriedade livre da terra e à sua livre circulação;
Esse discurso sobre a abstração como princípio estratégi- o Código francês é tornado por uma realização desse tipo, a
co me permite realizar alguns comentários sobre o que Paolo ser desenhada, ainda, em 1804, ou seja, um protagonismo da
Cappellini dizia acerca da incomunicabilidade do Código. terra - sobretudo da terra rural - corno objeto possível de pro-
priedade, que era substancialmente desmentido por uma situ-
ação econômica em plena evolução, valorizando cada vez mais
27 Nos referirmos, em modo particular, às primeiras leis sociais, que atenuam o
surdo individualismo jurídico da legislação burguesa, começando a introduzir decididamente outras fontes de riqueza; não estava errado
elementos de solidariedade e tutela dos sujeitos economicamente mais frágeis.
28 Trata-se da densa e complexa obra do legislador italiano que salienta, de um
Pellegrino Rossi, que, daí há pouco, teria salientado o atraso
modo até então desconhecido, por trás das urgênciaf' dos problemas bélicos, a da consciência econômica dos codificadores napoleônicos31•
dimensão socioeconômica com uma forte contribuição que vem a romper ou a
subverter princípios inveterados, até então recebidos como autênticos dogmas.
29 "a majestosa igualdade das leis, que proíbe ao rico assim como ao pobre de dormir

debaixo das pontes, de mendigar nas ruas e de roubar o pão" (nota do tradutor).
31 Nos referimos às notas Observations sur le droit civil français consideré dans ses
30 "ela eleva, sob o nome da igualdade, o império da riqueza"(nota do tradutor).
In: Le lys rouge, cp. VIII. rapports avec ['état économique de la societé, inMélanges d'économie politique, de
poli tique, d'histoire et de philosophie. Tomo li. Paris: Guillaumin, 1867.
CÓDIGOS 109
MITOLOCIAS JURíDICAS DA MODERNIDADE
108

autoritarismo que intensifica a incomunicabilidade entre


o Código fala ao coração dos proprietários, é sobretudo a
Código e sociedade civi.l,já que, a respeito das incessantes
lei tuteladora e tranqüilizadora da classe dos proprietários,
transformações socioeconâmicas, o Código inevitavelmente
de um pequeno mundo dominado pelo "ter" e que sonha em
permanece um pedaço de papel cada vez mais velho e cada
investir as próprias poupanças em aquisições nmdiárias (ou
vez mais alienado.
seja, o pequeno mlmdo da grande comédie balzaquiana). É
por isso que, ao lado da lei do Estado, única concessão Venho a um outro ponto nmdamental sobre o qual pe-
pluralista, mas, ao contrário, bem fechada no interior de um sam as raízes jusnaturalistas do Código, o ponto que há pou-
surdo monismo ideológico, é admitida como única lei con- co indicávamos. A legolatria iluminista imobiliza o direito no
corrente o instrumento príncipe da autonomia dos indivídu- momento da produção; tal procedimento chega à exaustão
os, ou seja, o contrat032. É por isso que o Código - mais do com a revelação (deve-se insistir com esse termo teológico)
que aos utentes, entendidos sempre como destinatários pas- de uma vontade suprema, sendo que o momento de interpre-
sivos - fala aos juízes, ou seja, aos efetivos aplicadores nas tação e aplicação permanece estranho a esse. Talvez se te-
quais mãos passa a ser entregue a tranquillitas ordinis. nha falado muito pouco disso no nosso congresso, como sali-

Mesmo existindo a hipótese de uma lei dos indivíduos a entou Luigi Lombardi Vallauri.

ele paralela, o Código permanece inserido em uma dimensão O procedimento de normatização conclui-se no momen-
autoritária. Recentemente foi medida a respeitabilidade da to em que a norma vem produzida; conclui-se e extingue-se.
fonte "Código" em referência aos conteúdos33, mas o subs- O resto conta pouco, porque a norma jurídica é aquela abs-
tancial autoritarismo está em outro lugar, na exigência tratamente confeccionada pelo legislador. É certo que em se-
centralizadora do Estado monoclasse, no seu conseqüente guida acontece o momento da sua aplicação, ou seja, da vida
panlegalismo, na mitificação do legislador que surge quase da norma em contato com a vida dos utentes, mas sem dar
como um Zeus fulminante do Olimpo, onisciente e onipoten- nenhuma contribuição a uma realidade que nasce e perma-
te, na mitificação do momento de produção do direito como nece compacta e rígida, impermeável à história.
momento de revelação da vontade do legislador. E é um Essa mentalidade é tipicamente iluminista, e não somen-
te peculiar aos entusiasmados homens do sp-culo XIX, tão
32 É eloqüente o artigo 1123 do Código Civil italiano de 1865 (reproduzindo um impregnados do positivismo jurídico; caiu - o confessamos-
idêntico ditado contido no Código Civil napoleônico): "Os contratos legalmente
formados têm força de lei para todos os que dele participam".
nas profundezas da alma do jurista europeu continental e,
33 ZENCOVICH,V.2.11 'codice civile europeo', /e tradizioni giuridiche naziona/i e i/ neo- mesmo com tudo o que aconteceu na experiência e cientifi-
positivismo, in Foro Italiano, 1998, V, 6055.
i.

110 MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CÓDIGOS 111

camente ao longo do fertilíssimo século XX, ali permanece, dor (procedimento desdenhosamente rejeitado pelo ortodo-
intacta, seguramente revestindo o subconsciente, mas encon- xo Beccaria) para adentrar e esclarecer a sua soberana inten-
trando também um pleno aceite por parte da sua consciên- ção. Rejeita a historicidade da lei porque essa infligiria uma
cia opaca. Perdura, intacta, a atitude de ácida hostilidade lesão mortal à estratégia que se conclui no projeto iluminista.
em relação à interpretação - toda interpretação que não seja Se consideramos os filões mais inovadores - e também mais
a autêntica - muito bem expressa por Cesare Beccaria em fectmdos - do nosso século XX, pode-se observar que esse
memoráveis escritos da literahua jurídica italiana34• diHcil itinerário (ainda hoje não concluído) está buscando uma
Mas Beccaria está ali, no seu nicho do século XVIII, efi- valorização cada vez maior do momento de interpretação,
caz ao expressá-lo e, portanto, merecendo a nossa com- da sua recuperação no interior do procedimento de produ-
preensão historio gráfica. Merece uma compreensão me- ção da norma como momento essencial desse mesmo proce-
nor a rejeição da historicidade da norma, de toda norma, J.imento, o único que pode fazer da norma abstrata uma re-
mesmo da legislativa, no incontrastado domínio que tem gra de existência cotidiana.
sobre a alma dos juristas.
A experiência do século XIX francês deveria ser urna ad-
A idéia de Código, ou seja, de uma geometria de regras vertência. A ciência reduz-se a exegese35, urna corte de
abstratas, simples, lineares, conceitualmente não concebe a laboriosíssimos e feetmdíssimos operadores que trabalhavam
possibilidade de uma incidência do momento de aplicação. satisfeitos na sombra da codificação. O colega Rémy, de um
A ideologia jurídica pós-iluminista fica profundamente per- :nodo brilhante, teceu um elogio36 a eles, e é seguramente
turbada com a visão de uma norma que vive além da sua digna de consideração a inteligência esclarecida e documen-
produção e elasticamente modifica-se, segundo o seu percur- tada deles, manifestada em comentários limpidíssimos. Po-
so, que continuamente se reproduz recebendo as mensagens rém, eu não poderia assinar o mesmo elogio: porque entre
dos diferentes terrenos históricos por onde passa. É por isso eles dominava uma psicologia substancialmente passiva em
que, nessa, a interpretação assume a única veste que lhe é relação ao texto normativo, urna concepção que minirniza o
possível, de exegese: a norma deve ser somente explicada, no
máximo penetrando no interior do cérebro do Zeus legisla- ;5 E não sem razão foi chamada "escola da exegese" a rica corte de interprétes
franceses que, em boa parte do século XIX, trabalhou na sombra da codificação
napoleônica. Certamente esses não constituíam uma "escola" unitária, mas, em
uma avaliação unitária, podem muito bem serem associados devido a um
comportamento psicológico e metodológico comum entre eles.
34 BECCARIA,C. Dei delitti e delle pene (1764),capoIV -lnterpretazione delle leggi. 36 REMY, J.P. Eloge de l'exegése (1982), atualmente em Droits-Revue française de
Milano: Giuffre, 1964. théorie juridique, I, 1985.
CÓDIGOS 113
MITOLCX;IAS JURÍDICAS DA \100ER!\'InADE
112

direito, reduzindo-o a um texto respeitável, uma incapacida- por si mesmas não são edificantes, mas permitem aos juízes
de de responder e corresponder às incumbentes exigências franceses construir apesar do texto.
de uma sociedade marcada por um forte crescimento e pre- Isso, devido ao fato de o Código ter se tomado um texto,
cisando ser ordenada com ca tegorias e escolhas técnicas co- um texto em lun pedaço de papel. Nesse contexto não posso
rajosas e inovadoras. deixar de citar dois grandes civilistas franceses que tive a sor-
Uma jurisprudência prática tem consciência desse objeti- te de poder estudar profundamentéo: Raymond Saleilles e
vo e trabalha nessa direção, investida pela fricção entre lei François Gény. Estamos nos últimos vinte anos do século XIX;
velha e novas necessidades, tomando para si essa tarefa enor- eles são o testemunho do que há pouco eu disse ser a crucifi-
me, não a evita e, mesmo sofrendo uma verdadeira crucifica- cação de um jurista socialmente sensível e culturalmente cons-
ção no abismo entre surdez de um texto e transformação dos ciente; Gény e Saleilles, intolerantes com um direito identifi-
fatos sociais, freqüentemente faz as suas escolhas parando cado e cristalizado em um texto, orientam as suas reflexões
no respeito formal a um texto que foi efetivamente esvaziado tentando evitar a separação funesta entre a cortiça jurídica e
ou violado por essa transformação; uma jurisprudência prá- a subjacente linfa social e econômica, uma linfa que, por na-
tica que quis e soube construir "au delà du code" e "malgré le tureza, é mutabilíssima.
code ", trabalhando "avec les textes", mas chegando "au dessus Entre nós, na Itália, deve-se obrigatoriamente recordar a
des textes et par delà les textes" 37 38. Pode ser extremamente figura de Tullio Ascarelli, apaixonado por um ramb do direito
instrutivo ler os "anais" das celebrações centenárias aconte- privado imerso na prática econômica, como é o direito comer-
cidas em 1904: junto a tantos escritos triunfalistas, chamam cial, e que tentou, no convulsionado momento que tivemos
a atenção outros, como, por exemplo, os do Presidente da imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, harmonizar
Corte de Cassação, Ballot-Beaupre39, em que o elogio à formas e práxis inventando categorias de interpretação sob a
codificação consiste no fato de essa ser vaga e genérica, no égide de um diagnóstico despudorado do direito ViV041•
fato de ser portadora de muitas lacunas, circunstâncias que

37 "além do código"; "apesar do código"; "com os textos"; "acima dos textos e


além dos textos" (nota do tradutor).
38 A proposta metodológica e a linha de ação que constituíram o fulcro da mensa- 40 Ripensare Gény, e Asso/utismo giuridico e diritto priva to: lungo l'itinerario scientifico
gem de Raymond Saleilles. como acreditamos ter salientado no ensaio citado, di Raymond Sa/eilles, atualmente em Asso/utismo giuridico e diritto privato,op. cito
podem ser encontradas na nota 40. 41 São exemplos, entre tantos ensaios ascarellianos: Funzioni economiche e istituti
39 Nos referimos ao discurso pronunciado em 29 de outubro de 1904, nas festivi- giuridici nella tecnica de/l'interpretazione (1946), atualmente em Saggi giuridici.
dades do centenário da promulgação do Código. Milano: Giuffre, 1949.
":'",'0

1
I
114 MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CÓDIC.os 115

3. O Código hoje: algumas considerações do historiador I?ente le?!a e podia prestar-se, também, a ser ordenada em
do direito
categorias não elásticas, enquanto hoje a m~~J!larélP~9:e~J~~-
Falou-se, nesse congresso, do passado, mas também do qüentemente obriga o legislador a uma ativic!ª_cl~fe1J!'U,modi-
presente, assim como não faltaram olhares para o futuro. O ficando o conteúdo de uma norma logo após tê~laproduzido.
historiador sente-se "em casa" no sulco dessa longa linha que Penso em nós, na Itália (e o digo somente para os amigos não
chega ao "hoje" e o ultrapassa, e tem, provavelmente, algo italianos), ao recentíssimo Código de processo penal, um Có-
fundamentado a dizer. digo que eu - secamente, mas não inconseqüentemente - tomo
Atualmente ainda se fala de Códigos e de codificações: a liberdade de qualificar como "redigido em versos", um texto
somente há pouco tempo pode-se ter o único modelo ideolo- abstratamente respeitadíssimo, mas inadequado para ordenar
gicamente coerente de Código civil realizado em um Estado uma práxis criminal que se encontra em um tumultuado e alar-
de regime comunista, o da República Democrática Alemã, mante crescimento, que foi apresentado não sei quantas vezes
que hoje interessa somente ao historiador do direito, mas que apesar do breve período de vigência.
representa uma experiência culhrral e tecnicamente de rele-
42;e hoje refloresce - sendo objeto de excessivas e algumas
2) A segunda conceme à _~~~plexi~él~~ da ~~~!!iza~~~_~,~~-
V0 ~:?-:porânea. Se é verdade que .él.codifica~~<?_irl.augurada em
vezes vazias discussões - o projeto de um "Código comum 1804 foi uma tentativa de redução da complexidade, é tam-
"~ •• _,o ._.'~'. --.-~ • ' "

europeu de direito privado"43. béI)1 verdade que se tratava de uma compJexidªçl~ reduzíy~l
! A esse ponto, torna-se legítima uma pergunta: a idéia de (mesmo se, no final, a tentativa não chegou perfeitamente ao
( Código ainda é atual? Ou se trata, mesmo nesse caso, da seu objetivo e o Código acabou por nascer "velho"). ~9.i~!a
(\ maldição misoneísta dos juristas sempre apegados a mode- é inacreditavelmente
_~~_t~~~çª.o diferente, com fronteiras das
\--.19s passados e sempre tardios e avessos a superá-los? dimensões econômicas e tecnológicas que continuamente alar-
gam-se, modificam-se, complicam-se. Os pontos salientados
Neste contexto, impõem-se algumas considerações.
por Rodotà no que diz respeito à evolução tecnológica confir-
A primeira concerne à rapidez da transformação social na •••.~ ~ -~••_.... •..• "-,. -* ••.•
..,.••••••••
- •••..••.,~.'. "•.•.• _. ".

mam que ~ atual complexidade dificilmente pode ser reduzível.


t\\ ciY-W:z.-a.~ª,?n:od~,:na.
A Jr~~~çãc;-d~-~;~'~-~a
-_.
e~'tre~~- -- .. ~_ - -.•...... .
-'-'-~'-'~'._'~"--""' , '-""'_ .._--_. --~
~.- .'- . _ ......•'"~--.~ ...•_,...

~ A terceira consideração concerne à tensão voltada à


univeJ:saE~_ª.@Q(intencionalmente, omito-me de pronunci-
42 A rica introdução premissa a: Il Codice civile della Repubblica Democratica Tedesca,
trad. e introd. De G. Crespi Reghizzi e G. De Nova. Milano: Giuffre, 1976. ar o termo correntíssimo de globalização, que evoca demasi-
43 Pode-se ler, a respeito BUSSANI, M. et MATIEI, U. (Ed.) Making European Law
- Essays on the "Common Core" Project. Trento: Università degli Studi, 2000. adamente o desagradável espectro do imperialismo econô-

MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE CÓDIGOS 117
116

mico norte-americano e das suas vorazes multinacionais). coberto o mundo dos valores, fazendo com que essas ~e tor-
Não existem dúvidas quanto ao fato de o panorama geral ter _ nassem portadoras de um harmonioso sistema de valores. E
variado muito em relação à velha paisagem estatal e inter- __ justamente - mesmo se bastante atrasada - a doutrina civilista
~~tatal44,colocando em dificuldade o Código que, mesmo se italiana colocou-se o problema da relação entre o que já ti-
'~~lh~do de instâncias originárias e veias jusnaturalistas, his- nha tomado-se dois níveis de legalidade, a legalidade consti-
toricamente se tomou lei nacional e nela se identificou. tucional e a legalidade do Códig045.
}\ Enfim, uma última consideração, sobre o que, talvez, ti- \ Impõe-se uma resposta para a pergunta que acima for-
tt) véssemos que refletir mais profundamente. Falou-se de Có- I mulamos: a idéia de Código é atual? Nesse caso, qual papel
digo-Constituição. Verissimo! De fato, não existe dúvida que, i\ podemos dar hoje para o futuro do Co'd'19O.7
quando nasceu, o Código encarnou a autêntica Constituição L:... .
Não é tarefa do historiador fazer propostas operativas;
do Estado burguês, já que, tendo as primeiras "cartas dos porém, o historiador pode utilizar a sua consciência tendo o
direitos" se revestido de UM caráter filosófico-político, coube sentido da linha histórica para incentivar o espírito crítico do
ao Código civil enunciar regras jurídicas que disciplinassem observador e projetador do presente. Há pouco tempo Salvatore
os institutos fortemente "constitucionais" da propriedade Tondo, a propósito da [ex mercatoria, invocada muitas vezes
individual e do contrato. Na longa estrada percorrida após
nesse nosso tríduo jiorentino, salientava a sua fé na capacidade
1804, o Código viu multiplicarem-se os níveis de legalidade,
de o Código ordenar convenientemente essa realidade emer-
primeiro - no século XIX- a legislação especial ou excepcio-
gente. Eu teria mais dúvidas a respeito. Perguntamo-nos,
nal do legislador ordinário, que, porém, limitava-se a respon-
retoricamente, tendo por objetivo somente esclarecer melhor o
der questões contingentes que o Código abstrato não tinha
discurso, o que entendemos quando fazemos uso de um
conseguido responder, após - no século XX - as Constitui-
sintagma desse tipo. Simplificando e reduzindo ao máximo,
ções, que a essa altura já tinham se tomado verdadeiras or-
são as invenções da práxis que em um novo cenário econômi-
dens normativas, mas, ao mesmo tempo, ordens concretís-
co e-t~cnológic() precisam sempre de instrumentos novos; [ex
simas onde podia ser enxertado de modo imediato e des-
~ercatoria é o conjunto das invenções realizadas com
criatividade e bom senso pelos homens de negócios nas praças
44 "Em termos de fragmentação e opacização da soberania, em termos de modi- mercantis, nos portos, nos mercados financeiros.
ficados atores e protagonistas do processo jurídico, assim como em. ter.m?s ~;
diferentes modalidades de produção e funcionamento das regras Jundlcas ,
como nobremente indica uma inteligente socióloga do direito em uma obra 45 Uma obra exemplar a respeito é: PERLINGIERI, P. li diritto nella legalità
recente, que recomendo aos juristas (FERRARESE, M. R. Op. cit.,p. 7).
costituzionaie. Napoli: ESI, 1984.
MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE
CÓDIGOS 119
118

Os glosadores falavam, no século XII, dos nova negotia, do outro. Acredito que o legislador pretendeu realizar uma
.'-----_ ..•... ' .•..
' .... ..... .. .... .. ... •..

embaraçadíssimos sobre como poder inserir nos esquemas :ngerência excessiva no mundo moderno através de uma ar-
ordenantes do Corpus iuris justiniano todos esses casos que, rogante monopolização do fenômeno jurídico;"infe1iz~~~t~,
naquele momento, eram "zero-quilômetro" - como, por exem- fazendo isso, também demonstrou o quanto é impotente.
plo, todos os casos comerciais e de navegação - fervilhantes e O amigo Schiavone foi prudente ao convidar para a inau-
invasivos na grande ko in é mediterrânea. Mas eles estavam con- guração do nosso Congresso o respeitabilíssimo Presidente
victos - mesmo tendo de forçar e superar as categorias clássi- da Câmara dos Deputados da República Italiana, Luciano
cas - de que deveriam apropriar-se dessa riqueza consuehldi- Violante (que, por profissão, também é um jurista), e foi elo-
46
nária que a potente classe mercantil solicitava e apoiava . qüente a confissão que esse fez, sobre a lentidão do legislador
Estamos em uma situação muito semelhante a deles: ~:l!l~.. italiano e sobre a incapacidade deste para corresponder às
práxis que c0!1:ti!':l1~mente
forma ins!:ituto~.l1ovos~.c<:>n.~~~: solicitações de uma sociedade civil extremamente complexa,
~e~t~ ..?~_~llP~!~!
...l!-':as~~cE~cl~-()?_.ºu
.c~i~~?_~?-~S'~!.~~.~~ hoje também extremamente complexa no que se refere ao
cor~ida caract~~ad~ por ~ª~)(tr.~m!1... gP!çl~];
.. crescimento rápido da sua organização tecnológica. Violante
Para essas criaturas elásticas e mutáveis, a codificação falou pudicamente de lentidão, eu, com mais brutalidade,
"o. • --_,~' __"-'-' __ ._.•.•. 0'- . " •••••• ~._ .•,.".- .••.• -.,. .•- ••• -,.,------,.,--"

corre o risco de tornar-se um revestimento rígido demais, com mas não sem motivos, prefiro falar de impotência.
'" • '"" , ••••••• ". __ 'o ••••••••••••• ,_ ••••• _~._ ••• ~ ••• _, •••••••• _,.,~ •• -._., ••

o ulterior rt$.,CQ. de um ~:rlVelhe.c!.~e!1t.~


__
p!.~co~~... ~~_~:::!~ Acredito ser necessário, perante essa realidade alarman-
'.,. .
~-ºITP:ªti"o e._--"-
de uma práxis
.-
que continua
_ ~a galopar seguindo
~.,..-.,_. __ ._._-~---,
- -._., ....• "
te, r~p~.~ar o sistema formal das fontes, também para torná-
os fatos, prescindindo das inadeq~~.~~~.re.~r~.~..~u~.?~~ári~s. lo mais consoante ao projeto e ao desenho da nossa carta
Atualmente, perante uma transformação rápida e uma constitucional; e :.~pensar principalmente o papel da lei, .9.~~,
complexidade pouco dócil, re?!ª __
ªº.Ç9_ciig.<?.L~~._~a ~pi- me parece, :eossa s~~() de fornecer algumas molduras rele.-

niªº,..a_p.ossihi1id.ªc,i~d~s.~
..()f~r~c.~!.s.()mo~~~~Eécie de gran- vaDtes.para o desenvolvimento da vida jurídica.
9:~_moldura..Rodotà nos falava de um Código dos princípi- É claro que o .~.stado não pode abdicar da fi~a~~o ~~ ~i-
OS47. Provavelmente eu e ele não estamos muito distantes um _.~.
nhas
__ .-. __fundamentais,
.._,- __ .-.- -.._ ~.mãs"~ambém
.......-.-_..... ~ claro que ,~~.~E9.~...':l?la
._-"-"~ ..

~_~~leg~~i.~~sã.0, abandonando a desconfiança iluminista do


social e ~~_~ ..~~?_ um~~têntico plur~~is~?-t~r.í~_~~o,onde os
46 GROSSI,P. L'ordine giuridico medievale. Bari: Laterza, 1995.
47 Uma rica resenha dos recentíssimos problemas florescidos em nível europeu
indivíduos, sejam QS protagonistas ativos da. organização
.••... __ ... __ ...._ ..•..-~.- ~
..... '. ,.
ju--' ....

pode ser encontrada em: ALPA, G. Il codice civile europeo: 'e pluribus unum' in r~~i~~do mesmo modo que acontece nas transformações so-
Contratto e impresa/Europa, 1999.
, ..

120 MITOLOGIAS JURíDICAS DA MODER."lIDADE

dais. Somente dessa forma será possível preencher o fosso


que ahlalmente constatamos com amargura.
Retomando ao nosso tema dos Códigos e, concluindo es-
sas considerações finais, também é claro que os Códigos que,
construiremos seguindo uma linha operativa desse tipo não
terão e nem poderão ter o valor do Code civil e dos grandes
Códigos do século XIX, vozes constitucionais do Estado
monopolizador, fontes de fontes por serem emanação da. IV
~ica potestade nomopoiética, o Parlamento; fontes que for- AS MUITAS VIDAS DO
malmente condicionam todos os órgãos aplicadores na ingê- JACOBINISMO JURÍDICO *
nua pretensão de oferecer um sistema normativo
(ou seja: a "Carta de Nice", o Projeto de
tende;~i-~lrnente exaustivo. "Constituição Européia" e as satisfações
Uma dupla descontinuidade delineia-se perante os nos- de um historiador do direito)
sos olhos. Não existe somente a história descontínua que liga
esses Códigos com o Antigo Regime. Uma outra desconti-
nuidade delineia-se: a que se encontra entre os Códigos do
imediato futuro e a idéia c.e Código, assim como essa se afir-
mou no sulco das eficazes sugestões ilumirlistas.

• Publicamos aqui o texto da conferência ministrada em Rimini, em agosto de


2003, no "Meeting per /'amicizia tra i popo/i", por ocasião do Encontro de agosto
de 2003 que tinha por tema: Se ti distrai, /'Europa ê giacobina, no qual fomos
conferencista ao lado de ]oseph Weiler (da New York University) e de Augusto
Barbera (da Università di Bologna).

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