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“Escrevivência” em Becos da memória

memória,, de
Conceição Evaristo
Becos da memória. rua, mendigos, desempregados, beberrões,
prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor
um quadro de determinada parcela social que
EVARISTO, Conceição. se relaciona de modo ora tenso, ora ameno,
com o outro lado da esfera, composta de
Belo Horizonte: Mazza, 2006. empresários, senhoras de posses, policiais,
funcionários do governo, dentre outros. Perso-
nagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana
Davenga e Natalina, presentes no universo dos
contos publicados nos Cadernos Negros;
“Homens, mulheres, crianças que se amonto-
Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua
aram dentro de mim, como amontoados eram
Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério,
os barracos de minha favela” (p. 21).
Evaristo, 2006, p. 21. listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova
(desdobramento ficcional da autora?), Maria
Maria da Conceição Evaristo de Brito Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha,
nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó
humilde, migrou para o Rio de Janeiro na e Negra Tuína, de Becos da memória, exem-
década de 1970. Graduou-se em Letras pela plificam, no plano da ficção, o universo marginal
UFRJ, trabalhou como professora da rede que a sociedade tenta ocultar.
pública de ensino da capital fluminense e da Becos da memória é marcado por uma
rede privada de ensino superior. É mestre em intensa dramaticidade, o que desvela o intuito
Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, de transpor para a literatura toda a tensão ine-
está concluindo doutorado em Literatura rente ao cotidiano dos que estão permanente-
Comparada na Universidade Federal Fluminen- mente submetidos à violência em suas diversas
se. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e
literatura afro-brasileira e as literaturas africanas delegacias compõem o cenário urbano com
de língua portuguesa. Participante ativa dos que se defrontam os excluídos de todos os
movimentos de valorização da cultura negra em matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual
nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora
quando passou a publicar seus contos e poemas escapa das soluções fáceis: não faz do morro
na série Cadernos Negros, suporte de que se território de glamour e fetiche; tampouco, inves-
utiliza até hoje. te no traço simples do realismo brutal, o qual
Em 2003, veio a público o romance Ponciá acaba transformando a violência em produto
Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. comercial para a sedenta sociedade de
Seu segundo livro, outro romance, Becos da consumo.
memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e Os fragmentos que compõem Becos da
início dos 1980. Ficou engavetado por cerca memória procuram aliar a denúncia social a
de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde um lirismo de tom trágico, o que remonta ao
então, os textos de Evaristo vêm angariando mundo íntimo dos humilhados e ofendidos,
cada vez mais leitores, sobretudo após a tomados no livro como pessoas sensíveis, marca-
indicação de seu primeiro livro como leitura das, portanto, não apenas pelos traumas da
obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A exclusão, mas também por desejos, sonhos e
escritora participou ainda de publicações lembranças. Violência e intimismo, realismo e
coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos ternura, além de impactarem o leitor, revelam o
Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida compromisso e a identificação da intelectuali-
para o inglês e está em processo de tradução dade afrodescendente com aqueles colocados
para o espanhol. à margem do que o discurso neoliberal chama
A obra em prosa de Conceição Evaristo é de progresso.
habitada, sobretudo, por excluídos sociais, Sabendo que é possível à obra (re)construir
dentre eles favelados, meninos e meninas de a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo

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projeto literário de Conceição Evaristo vislum- olhos, compõe-se, mais do que todas as perso-
bram-se pistas de possíveis percursos e leituras nagens, de rastros do sujeito autoral: menina,
de cunho biográfico. Na configuração do negra, habitante durante a infância de uma
romance em questão pululam aqui e ali, ora na favela e que vê na escrita uma forma de expres-
ficção, ora em entrevistas, ora em textos são e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte
acadêmicos, peças para a montagem de seu metafórica que arriscamos instalar permite ver
quebra-cabeça literário e biográfico. Uma das em comum, ainda, o fato de serem provenien-
peças desse jogo parece ser a natureza da tes de famílias sustentadas por matriarcas lava-
relação contratual estabelecida entre o leitor e deiras, transitantes entre os mundos da prospe-
o espaço autoficcional em que se insere Becos ridade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-
da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar Nova cumpriram, no espaço familiar em que
imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em estiveram, o papel de mediação cultural que
seus personagens, como Maria-Nova, por aperfeiçoou o processo de bildung (confirma
exemplo. Em outras palavras, processa-se uma palavra em inglês?) de uma e de outra.
espécie de exercício de elasticidade de um A obra se constrói, então, a partir de
eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa “rastros” fornecidos por aqueles três elementos
de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, formadores da escrevivência: corpo, condição
tradicionalmente, aquele se preocupa com o e experiência. O primeiro elemento reporta à
universal humano e esta, com o particular ou dimensão subjetiva do existir negro, arquivado
com o indivíduo, a autora propõe a junção dos na pele e na luta constante por afirmação e
dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é reversão de estereótipos. A representação do
também pensar seu coletivo. Do ponto de vista corpo funciona como ato sintomático de
formal não é diferente: não se utilizam capítulos, resistência e arquivo de impressões que a vida
mas fragmentos, bem a gosto do narrador confere. O segundo elemento, a condição,
popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê- aponta para um processo enunciativo fraterno
se o mundo através da ótica dos fragmentos e e compreensivo com as várias personagens que
dos indivíduos anônimos que compõem boa povoam a obra. A experiência, por sua vez,
parte da teia social. funciona tanto como recurso estético quanto
Neste livro de corte tanto biográfico quanto de construção retórica, a fim de atribuir
memorialístico, nota-se o que a autora chama credibilidade e poder de persuasão à narrativa.
de escrevivência, ou seja, a escrita de um No livro em questão, a voz enunciativa, num tom
corpo, de uma condição, de uma experiência de oralidade e reminiscência, desfia situações,
negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas
em Becos da memória, a leitura antecede e no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se
nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, assemelha ao da infância da autora. Arriscamos
razão pela qual lutam contra a existência em dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a
condições desfavoráveis. Ler é também arquivar experiência do sujeito empírico e de Maria-
a si, pois se selecionam momentos e estratégias Nova, para além da simetria do espaço da
de elaboração do passado, o qual compõe as narrativa (favela) e do espaço da infância e da
cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de juventude da autora (idem).
seus personagens. Finalmente, decodificar o uni- Outro bom exemplo de jogo especular
verso das palavras, para a autora e para Maria- consiste em uma situação por que realmente
Nova, torna-se uma maneira de suportar o passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova.
mundo, o que proporciona um duplo movimento Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma
de fuga e inserção no espaço. Não menos para crianças negras estudar na escola tópicos
importante, a escrita também abarca estas duas relativos à escravidão e seus desdobramentos.
possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se Enquanto a professora se limitava à leitura de
para modificar. um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica
O lugar de enunciação mostra-se solidário acerca do passado escravocrata, Maria-Nova
e identificado com os menos favorecidos, vale não conseguia enxergar naquele ato – e na
dizer, sobretudo, com o universo das mulheres escola – sentido para a concretude daquele
negras. E o universo do sujeito autoral parece assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam
ser recriado através das caracterizações físicas, na pele as consequências da exploração do
psicológicas, sociais e econômicas de suas homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-
personagens do gênero feminino. Maria-Nova, mulher-negra, abandonada à própria sorte a
presente em Becos da memória, aos nossos partir do dia 14 de maio de 1888,

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Maria-Nova olhou novamente a professora e a espécie de dever de memória e dever de
turma. Era uma história muito grande! Uma escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia
história viva que nascia das pessoas, do hoje, qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia,
do agora. Era diferente de ler aquele texto. ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as
Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado
pensamento: quem sabe escreveria esta que existia, que era de cada um e de todos.
história um dia? Quem sabe passaria para o
Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu
papel o que estava escrito, cravado e gravado
povo (p. 161).
no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p.
138).
E a escrita acompanhará a pequena até
a última página do livro, o que nos permite
A garota, ciente de que a história das lutas pensar que a missão ainda está em processo:
dos negros no Brasil começava já com as “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida
primeiras levas diaspóricas, parece repetir o passar daquela forma tão disforme. [...] Era
célebre questionamento de Gayatri Spivac: preciso viver. ‘Viver do viver’. [...] O pensamento
“pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, veio rápido e claro como um raio. Um dia ela
ser ouvido, redigir outra história, outra versão, iria tudo escrever” (p. 147).
outra epistemologia, que leve em conta não o E escreveu em seu mundo de papel.
arquivamento das versões dos vencidos, mas Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-
que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobra-
a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado mento de uma em outra e as pontes metafóricas
conta de que o que ela havia pensado era que pretendemos instaurar não esgotam as
exatamente a fundamentação de boa parte possibilidades de leituras, mas permitem a
dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. possibilidade de muitas outras, que despertem
Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova o afã de também escrever.
e Conceição Evaristo possuem em comum a
missão política de inventar outro futuro para si e Luiz Henrique Silva de Oliveira
para seu coletivo, o que lhes imbui de uma Universidade Federal de Minas Gerais

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