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Jürgen Habermas

O discurso filosófico
da modernidade
Doze lições

Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEI NASCIMENTO

Martins Fontes
São Paulo 2002
Esta obra foi pubtiaitta originalmente em alemão com o titulo
DER PHILOSOPHISCHE DtSKVRS DER MODERNE, por Suhrkamp Verias.
CopYríjthl <& Suhrkamp Verias. Frankfurt am Main. 1985.
Copyright O 2000. Urraria Martins Fontes Editora Lula..
Suo Paulo, para a presente edição.

1
I edição
junho de 2000
2' tiragem
abril de 2002

Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEl NASCIMENTO

Revisão da tradução
Karina Jannini
Marlene Holzhausen
Preparação do original
Andréa Stahef Si. da Silva
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Márcia da Cru: Nôboa Leme
Ana Maria de 0. M. Barbosa
Produção gráfica
Geraldo Alves
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Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na l*ubflcação (CTP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Htberma*. Jürgeii, 1929-


O discurso filosófico da modernidade': doze lições / Jürgen
Habermas: indução Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento, - São
Paulo : Martins Fontes. 2000. - {Coleção lópicos)

Título originai: Der Philosophische Diskurs der Modems,


Bibliografia.
ISBN 85-336-1202-1

1. Civilização modema - Filosofia 2. Filosofia moderna - Século


19 3. Filosofia moderna - Século 20 I. Título. II. Série.

00-2286 CDD-193
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia alenta 193 0

2. Habermas : Filosofia alemã 193

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CAPÍTULO I
A CONSCIÊNCIA DE TEMPO DA
MODERNIDADE E SUA NECESSIDADE
DE AUTOCERTIFICAÇÃO

Na célebre introdução à coletânea dos seus ensaios so-


bre sociologia da religião. Max Weber desenvolve aquele
"problema da história universal" ao qual dedicou toda a
obra cientifica de sua vida, a saber, por que fora da Europa
"nem o desenvolvimento científico, nem o artístico, nem o
político, nem o econômico seguem a mesma via de raciona-
1
lização que é própria do Ocidente" . Para Max Weber ainda
era evidente a relação interna, e não a meramente contigen-
te, entre a modernidade e aquilo que designou como racio-
2
nalismo ocidental . Descreveu como "racional" aquele pro-
cesso de desencantamento ocorrido na Europa que, ao des-
truir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura
profana. As ciências empíricas modernas, as artes tornadas

1. WEBER, M. Die proleslantische Elhik (A ética protestante). Hcidel-


berg, 1973, vol. I.
2. Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Ilandeíns (Teoria da
ação comunicativa). Frankfurt am Main. 1981, vol. 1, pp. 225 ss.
4 JÜRGEN HABERMAS

autônomas e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em


princípios formaram esferas culturais de valor que possibi-
litaram processos de aprendizado de problemas teóricos, es-
téticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legali-
dades internas.
O que Max Weber descreveu do ponto de vista da ra-
cionalização não foi apenas a profanação da cultura ociden-
tal, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades mo-
dernas. As novas estruturas sociais são caracterizadas pela
diferenciação daqueles dois sistemas, funcionalmente inter-
ligados, que se cristalizaram em torno dos núcleos organiza-
dores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do
Estado. Weber entende esse processo como a institucionali-
zação de uma ação econômica e administrativa racional com
respeito a fins. À medida que o cotidiano foi tomado por
esta racionalização cultural e social, dissolveram-se tam-
bém as formas de vida tradicionais, que no início da moder-
nidade se diferenciaram principalmente em função das cor-
porações de ofício. No entanto, a modernização do mundo da
vida não foi determinada apenas pelas estruturas da racio-
nalidade com respeito a fins. E. Durkheim e G. H. Mead
viram que o mundo da vida racionalizado é caracterizado
antes por um relacionamento reflexivo com tradições que
perderam sua espontaneidade natural; pela universalização
das normas de ação e Urna generalização dos valores que li-
beram a ação comunicativa de contextos estreitamente deli-
mitados, abrindo-lhe um leque de opções mais amplo; enfim,
por modelos de socialização que se dirigem à formação de
identidades abstratas do eu e que forçam a individualização
dos adolescentes. Em linhas gerais, esse é o quadro da mo-
dernidade tal como traçado pelos clássicos da teoria social.
Hoje o tema de Max Weber é posto sob uma outra luz,
tanto pelo trabalho dos que o reivindicam para si, quanto dos
que o criticam. Somente nos anos 50 a palavra "moderni-
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 5

zação" foi introduzida como termo técnico. Desde £iitão


caracteriza uma abordagem teórica que retoma a problemá-
tica de Max Weber, reelaborando-a com os instrumentos
do funcionalismo sociológico. O conceito de modernização
refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de re-
forço mútuo: à formação de capital e mobilização de recur-
sos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento
da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder
político centralizado e à formação de identidades nacionais;
à expansão dos direitos de participação política, das formas
urbanas de vida e da formação escolar formal; à seculariza-
ção de valores e normas etc. A teoria da modernização efe-
tua sobre o conceito weberiano de "modernidade" uma abs-
tração plena de conseqüências. Ela separa a modernidade
de suas origens - a Europa dos tempos modernos - para es-
tilizá-la em um padrão, neutralizado no tempo e no espaço,
de processos de desenvolvimento social em geral. Além dis-
so, rompe os vínculos internos entre a modernidade e o con-
texto histórico do racionalismo ocidental, de tal modo que
os processos de modernização já não podem mais ser com-
preendidos como racionalização, como uma objetivação his-
tórica de estruturas racionais. James Coleman vê nisso a
vantagem de não mais sobrecarregar o conceito de moder-
nização, generalizado na teoria da evolução, com a idéia de
um acabamento da modernidade e, portanto, de um estado
final, ao qual deveriam seguir-se desenvolvimentos "pós-mo-
3
dernos" .
Sem dúvida, a investigação desenvolvida nos anos 50 e
60 sobre a modernização criou as condições para que a ex-
pressão "pós-moderno" pudesse circular também entre os

3. Artigo "Modernízation" (Modernização). In: Encycl. Soe. Science (En-


ciclopédia cie ciências sociais), vol. 10, pp. 386 ss., aqui p. 476.
6 ÍÜRGENHABERMAS

cientistas sociais. Em face de uma modernização que se mo-


ve por si própria e se autonomiza em sua evolução, o obser-
vador social tem razões de sobra para se despedir do hori-
zonte conceituai do nacionalismo ocidental em que surgiu a
modernidade. Porém, uma vez desfeitas as relações internas
entre o conceito de modernidade e a sua autocompreensão,
conquistada a partir do horizonte da razão ocidental, os pro-
cessos de modernização que prosseguem, por assim dizer,
automaticamente, podem ser relativizados desde o ponto de
vista distanciado do observador pós-moderno. Arnold Gehlen
sintetizou esta questão em uma fórmula marcante: as pre-
missas do esclarecimento* estão mortas, apenas suas conse-
qüências continuam em curso. Dessa perspectiva, uma inin-
terrupta modernização social auto-suficiente destaca-se dos
impulsos de uma modernidade cultural que se tornou apa-
rentemente obsoleta; ela opera apenas com as leis funcio-
nais da economia e do Estado, da técnica e da ciência, as
quais se fundem em um sistema pretensamente imune a in-
fluências. A irresistível velocidade dos processos sociais apa-
rece, então, como o reverso de uma cultura saturada, em es-
tado de cristalização. "Cristalizada", assim designa Arnold
Gehlen a cultura moderna, pois "todas as possibilidades que
contém foram realizadas em seus elementos essenciais. Além
disso, as possibilidades contrárias e as antíteses foram des-
cobertas e integradas, de modo que doravante é improvável
que as premissas venham a sofrer alterações ... Se admitir-
mos essa idéia, perceberemos a cristalização' mesmo em um

* Aufklàrung: o termo tem várias traduções em português: luzes, filoso-


fia das luzes, ilustração, iluminismo, esclarecimento; alguns preferem não tra-
duzi-lo, mantendo a forma alemã. Adotamo? "lluminismo" quando o texto se re-
fere ao movimento intelectual do século XVIII, mas "esclarecimento" quando se
trata de um processo histórico mais amplo, próximo do que Habermas enten-
de por racionalização. (N. dos T.)
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 7

domínio tão espantosamente agitado e multicolorido como


4
o da pintura moderna" . Como a "a história das idéias se en-
cerrou", Gehlen pode constatar aliviado que "nós chegamos
à pós-história" (ibicL, p. 323). Tal como Gottfried Benn, acon-
selha: "Conte com o que possuis." Esta despedida neocon-
sei-vadora da modernidade refere-se, portanto, não à dinâmi-
ca desenfreada da modernização social, mas sim à superfície
de uma autocompreensão cultural da modernidade aparente-
5
mente ultrapassada .
No entanto, entre os teóricos que não consideram que
tenha ocorrido um desacoplamento entre modernidade e ra-
cionalidade, a idéia da. pós-modernidade apresenta-se sob
uma forma política totalmente distinta, isto é, sob a forma
anarquista. Reclamam igualmente o fim do esclarecimen-
to, ultrapassam o horizonte da tradição da razão, da qual a
modernidade européia entendeu outrora fazer parte, e fin-
cam o pé na pós-história. Mas, diferente da neoconservado-
ra, a despedida anarquista dirige-se à modernidade como um
todo. Ao submergir esse continente de conceitos fundamen-
tais, que sustentam o racionalismo ocidental de Max Weber,
a razão revela sua verdadeira face - é desmascarada como
subjetividade subjugadora e, ao mesmo tempo, subjugada,
como vontade de dominação instrumental. A força subver-
siva de uma critica à la Heidegger ou à la Bataille, que ar-
ranca o véu da razão para exibir a pura vontade de poder,
deve' simultaneamente abalar a redoma de aço na qual se

4. GEHLEN, A. "Über kulturelle Kristallisation" (Sobre a cristalização cul-


tural). In: Studitn zur Anthropologic itnd Soziohgie [Estudos sobre antropo-
logia e sociologia). Neuwied, 1963, p. 321.
5. Um ensaio de H, E. Holthusen ("Heimweli nach Geschichte" (Nos-
talgia da história). In: Mcrkttr, n°. 430, dez. 1984, p. 916) leva-me a concluir
que Gehlen poderia ter tomado de empréstimo o tenno "pós-história" do seu
parceiro intelectual Ilendrik de Man.
8 JÜRGEN HABERMAS

objetivou socialmente o espírito da modernidade. Dessa pers-


pectiva, a modernização social não poderá sobreviver ao fim
da modernidade cultural de que derivou, não poderá resistir
ao anarquismo "imemorial", sob cujo signo se anuncia a
pós-modernidade.
Por mais distintas que sejam essas versões da teoria da
pós-modernidade, ambas se distanciam do horizonte con-
ceituai fundamental em que se formou a autocompreensão
da modernidade européia. As duas teorias da pós-moderni-
dade pretendem ter-se apartado desse horizonte, tê-lo dei- 1

xado para trás como horizonte de uma época passada. Ora,


Hegel foi o primeiro filósofo que desenvolveu um conceito
claro de modernidade; em razão disso é necessário retornar
a Hegel se quisermos entender o que significou a relação
interna entre modernidade e racionalidade, que permane-
ceu evidente até Max Weber e hoje é posta em questão. Te-
mos de reexaminar o conceito hegeliano de modernidade
para podermos julgar se é legítima a pretensão daqueles que
estabelecem suas análises sobre outras premissas. Em todo
caso, não podemos descartar a priori a suspeita de que o
pensamento pós-moderno se arroga meramente uma posição
transcendental, quando, de fato, permanece preso aos pres-
supostos da autocompreensão da modernidade, os quais fo-
ram validados por Hegel. Não podemos excluir de antemão
que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração
estética está apenas tentando mais ürha vez, em nome de uma
despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser
que estejam simplesmente encobrindo com o pós-esclareci-
mento sua cumplicidade com uma venerável tradição do con-
tra-esclarecimento.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 9

II

Hegel emprega o conceito de modernidade, antes de


tudo, em contextos históricos, como conceito de época: os
6
"novos tempos" são os "tempos modernos" . Isso corres-
ponde ao uso contemporâneo do termo em inglês e francês:
por volta de 1800, modem times e temps modernes desig-
nam os três séculos precedentes. A descoberta do<*'Novo
Mundo" assim como o Renascimento e a Reforma, os três
grandes acontecimentos por volta de 1500, constituem o li-
miar histórico entre a época moderna e a medieval. Hegel
também utiliza esses termos, em suas lições sobre a filoso-
fia da história, para delimitar o mundo germânico-cristão que,
por sua vez, se originou da Antigüidade grega e romana. A
classificação, ainda hoje usual (p. ex., para a caracteriza-
ção de disciplinas de história), em Idade Moderna, Idade
Média e Antigüidade (respectivamente História moderna,
medieval e antiga), só pôde se compor depois que as expres-
sões "novos tempos" ou "tempos modernos" ("mundo novo"
ou "mundo moderno") perderam o seu sentido puramente
cronológico, assumindo a significação oposta de uma época
enfaticamente "nova". Enquanto no Ocidente cristão os "no-
vos tempos" significavam a idade do mundo que ainda está
por vir e que despontará somente com o dia do Juízo Final -
como ocorre ainda na Filosofia das idades do mundo, de
Schelling -, o conceito profano de tempos modernos expres-
sa a convicção de que o futuro já começou: indica a época
orientada para o futuro, que está aberta ao novo que há de
vir. Com isso, a cesura em que se inicia o novo é deslocada
para o passado, precisamente para o começo da época moder-

6. Em r e l a ç ã o ao q u e se s e g u e , cf. KosELLECK, R. Vergangene Zukimfl


{() futuro passado). Frankfurt am M a i n , 1979.
10 JÜRGEN HABERMAS

na. Somente no curso do século XVIJI o limiar histórico em


torno de 1500 foi compreendido retrospectivamente COTIIO tal
começo. Na qualidade de um teste, R. Koselleck formula a
questão de saber quando o nostrum aevum, o nosso tempo,
7
passa a ser denominado nova aetas, os novos tempos .
Koselleck mostra como a consciência histórica, expres-
sa no conceito de "tempos modernos" ou "novos tempos",
constituiu uma perspectiva para a filosofia da história: a
presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a partir
do horizonte da história em ;sua totalidade. Também o sin-
gular coletivo "História", que Hegel já utilizava naturalmen-
te,- foi cunhado no século XVIII: "A 'época moderna' con-
fere ao conjunto do passado a qualidade de uma história
universal... O diagnóstico dos novos tempos e a análise das
8
épocas passadas se correlacionam." A isso correspondem a
nova experiência do progresso e da aceleração dos aconte-
cimentos históricos e a compreensão da simultaneidade
cronológica de desenvolvimentos historicamente não simul-
9
tâneos . Constitui-se então a representação da história como
um processo homogêneo, gerador de problemas; de modo
concomitante, o tempo é experienciado como um recurso
escasso para a resolução dos problemas que surgem, isto é,
como pressão do tempo. Õ espírito do tempo (Zei/geist), um
dos novos termos que inspiram Hegel, caracteriza o presen-
te como uma transição que se consome na consciência da
aceleração e na expectativa da heterogeneidade do futuro:
"Não é difícil ver", escreve Hegel no prefácio à Fenome-
nologia do espírito, "que nosso tempo é um tempo de nas-
cimento e de passagem para um novo período. O espírito

7. KOSELLECK, R. "Neuzeit" (Época moderna), ibid., 1979. p. 314.


8. KOSELLECK, 1979, p. 327.
9. KOSELLECK, 1979, pp. 321- ss.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

rompeu com seu mundo de.existência e representação e está


á ponto de submergi-lo no passado, e [se dedica] à tarefa de
sua transformação ... A frivolidade e o tédio que se propagam
pelo que existe e o pressentimento indeterminado do desco-
nhecido são os indícios de algo diverso que se aproxima. Esse
desmoronamento gradual ... é interrompido pela aurora, que
10
revela num clarão a imagem do novo mundo."
Uma vez que o mundo novo, o mundo moderno, se dis-
tingue do velho pelo fato de que se abre ao futuro, o inicio
de uma época histórica repete-se e reproduz-se a cada mo-
mento do presente, o qual gera o novo a partir de si. Por isso,
faz parte da consciência histórica da modernidade a delimi-
tação entre "o tempo mais recente" e a "época moderna": o
presente como história contemporânea desfruta de uma po-
sição de destaque dentro do horizonte da época moderna.
Hegel também entende o "nosso tempo" como o "tempo mais
recente". Ele data o começo do tempo presente a partir da
cesura que o Iluminismo e a Revolução Francesa significa-
ram para os seus contemporâneos mais esclarecidos no fi-
nal do século XVIII e começo do XIX. Com esse "magnífi-
co despertar" alcançamos, assim pensa ainda o velho Hegel,
"o último estágio da história, o nosso mundo, os nossos
dias"". Um presente que se compreende, a partir do hori-
zonte dos novos tempos, como a atualidade da época mais
recente, tem de reconstituir a ruptura com o passado como
uma renovação contínua.
É nesse sentido que os conceitos de movimento, que no
século XVIII, juntamente com as expressões "modernidade"
ou "novos" tempos, se inserem ou adquirem os seus novos

10. HEGEL, G. W. F. Suhrkamp-Wcrkausgabe, vol. 3, pp. 1 8 - 9 . Dc aqui


em diante citado como H.
1 1 . H., vol. X I I , p. 5 2 4 .
12 JÜRCEN HABERMAS

significados, válidos até hoje: revolução, progresso, eman-


12
cipação, desenvolvimento, crise, espírito do tempo etc. Estas
expressões tornaram-se palavras-chave da filosofia hegelia-
na. Elas lançam uma luz histórico-conceitual sobre o pro-
blema que se põe à cultura ocidental com a consciência his-
tórica moderna, elucidada com o auxílio do conceito antité-
tico de "tempos modernos": a modernidade não pode e não
quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios de
orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normativi-
dade. A modernidade vê-se referida a si mesma, sem a pos-
sibilidade de apelar para subterfúgios. Isso explica a susceti-
bilidade da sua autocompreensão, Ia dinâmica das tentativas
de "afirmar-se" a si mesma, que prosseguem sem descanso
até os nossos dias. Há poucos anos, H. Blumenberg viu-se
na necessidade de defender, com grande dispêndio de indi-
cações históricas, a legitimidade ou o direito próprio da épo-
ca moderna contra aquelas construções que afirmam uma
dívida cultural da modernidade para com o legado do cris-
tianismo e da Antigüidade: "Não é evidente que se coloque
para uma época o problema de sua legitimidade histórica,
como tampouco é evidente que ela se compreendia em geral
como época. Para a época moderna o problema está latente
na pretensão de consumar, ou de poder consumar, uma rup-
tura radical com a tradição e no equívoco que essa preten-
são representa em relação à realidade histórica, que nunca é
13
capaz de recomeçar desde o princípio." Blumenberg cita
como prova uma passagem do jovem Hegel: "Exceto algu-
mas tentativas anteriores, coube sobretudo aos nossos dias

12. KOSELLECK, R. "Erfahningsraum und Erwartungshorizont" (Campo de


experiência e horizonte de expectativa). In: KOSELLECK, 1 9 7 9 , pp. 3 4 9 ss.
13. BLUMENBERG, H. Legttimilât der Neiaeit (Legitimidade da Idade Mo-
derna). Frankfurt am Main, 1 9 6 6 , p. 7 2 .
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 13

reivindicar como propriedade dos homens, ao menos em


teoria, os tesouros generosamente entregues ao céu; mas
qual época terá a força para fazer valer esse direito e dele se
14
apossar?"
É no domínio da crítica estética que, pela primeira vez,
se toma consciência do problema de uma fundamentação da
modernidade a partir de si mesma. Isso fica claro quando
15
acompanhamos a história conceituai do termo "moderno" .
O processo de distanciamento do modelo da arte antiga foi
introduzido, no início do século XVIII, pela célebre Que-
16
relle des anciens et des modernes . O partido dos moder-
nos insurge-se contra a autocompreensão do classicismo
francês, quando assimila o conceito aristotélico de perfei-
ção ao de progresso, tal coajo este foi sugerido pela ciência
natural moderna. Os "modernos" questionam o"sentido de
imitação dos modelos antigos com argumentos histórico-
críticos; em contraposição às normas de uma beleza absolu-
ta, aparentemente supratemporal, salientam os critérios do
belo relativo ou condicionado temporalmente, articulando
com isso a autocompreensão do Iluminismo francês como a
de um novo começo de época. Embora o substantivo moder-
nitas (junto com o par antitético de adjetivos antiqui/mo-
derni))à fosse empregado em um sentido cronológico desde
a Antigüidade tardia, nas línguas européias da época moder-
na, o adjetivo "moderno" foi substantivado só muito mais

14. H., vol. I, p. 209.


15. GUMBRECHT, H. U . Art. "Modern" (Moderno). In: BRUNNER, O , , C O N -
ZE, W. & KOSELLECK, R. (orgs.), Geschickllíche Grundbegriffe {Conceitos his-
tóricos fundamentais), vol. 4, pp. 93 ss.
1 6 . JAUSS, H. R. "Urspnmg und Bedeutung der Fortschrittsidee in der
'Querelle des anciens et des modernes"'(Ongem e significado da idéia de pro-
gresso na 'Querelle des anciens et des modernes'). In: K.UHN, H. & W l E D M A N N ,
F. (orgs.), Die Philosophie und die Frage nach dem Fortschrilt (A filosofia e a
questão do progresso). Munique, 1964, pp. 51 ss.
14 JÜRCEN HABERMAS

tarde, a p r o x i m a d a m e n t e n o s m e a d o s do s é c u l o X I X e, pela
primeira v e z , ainda no d o m í n i o das belas-artes, Isso explica
p o r que as expressões Moderne ou Modernitàt, modernité,
conservaram até hoje um núcleo de significado estético, m a r -
17
c a d o pela a u t o c o m p r e e n s ã o da arte de v a n g u a r d a .
Para B a u d e l a i r e a e x p e r i ê n c i a estética cpnfundia-se,
nesse m o m e n t o , c o m a e x p e r i ê n c i a histórica da m o d e r n i d a -
de. Na experiência fundamental da m o d e r n i d a d e estética,
intensifica-se o p r o b l e m a da a u t o f u n d a m e n t a ç ã o , pois aqui
o horizonte da experiência do t e m p o se r e d u z à subjetivida-
de descentrada, que se afasta das convenções cotidianas. Para
Baudelaire, a obra de arte m o d e r n a ocupa, por isso, um lu-
gar notável na intersecção do eixo entre atualidade e eterni-
dade: "A modernidade é o transitório, o efêmero, o contigen-
18
te, é a m e t a d e da arte, sendo a outra o eterno e o i m u t á v e l . "
O ponto de referência da m o d e r n i d a d e jtorna-se agora u m a
atualidade q u e se c o n s o m e a si m e s m a , c u s t a n d o - l h e a ex-
tensão de um p e r í o d o de transição, de um t e m p o atual, c o n s -
tituído no centro dos t e m p o s m o d e r n o s :e q u e dura a l g u m a s
d é c a d a s . O presente não p o d e m a i s obter sua consciência de
si c o m b a s e na oposição a u m a época rejeitada e ultrapassa-
da, a u m a figura do p a s s a d o . A atualidade só pode se c o n s -
tituir c o m o o p o n t o de intersecção entre o t e m p o e a eterni-
dade. C o m esse contato sem mediação entre o atual e o eterno,
c e r t a m e n t e a m o d e r n i d a d e n ã o se livra do seu caráter precá-

1 7 . N o que s e segue, apóio-me e m J A U S S , H . R . "Literarische Tradition


und gegenwârtiges Bewusstsein der Modernitàt" (Tradição literária e cons-
ciência atual da modernidade). In; Literaturge.schichte ais Provokation (Histó-
ria da literatura como provocação). Frankfurt am Main, 1 9 7 0 , pp. 1 1 ss. Cf.
t a m b é m : J A U S S , H . R . In: F R I E D E B U R G & H A B E R M A S , 1 9 8 3 , pp. 9 5 ss.
1 8 . B A U D E L A I R E , Ch. " D e r Maler des m o d e m e n Lebens". In: Ges.
Schriften ed. M. Bruns (Melzer). Darmstadt, 1 9 8 2 , vol, I. (trad., Snhre a mo-
dernidade. São Paulo, Paz e Terra, 1 9 9 6 , p. 2 5 ) . Baseio-me cm J A U S S , 1 9 7 0 ,
pp. 5 0 ss.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 15

rio, m a s sim da sua trivial idade: na concepção de Baudelaire,


ela aspira a que o m o m e n t o transitório seja r e c o n h e c i d o c o -
1
mo o p a s s a d o autêntico de um p r e s e n t e futuro ". A m o d e r -
nidade afirma-se c o m o aquilo que um dia será clássico; " c l á s -
s i c o " , de agora em diante, é o " c l a r ã o " da aurora de um novo
m u n d o , que d e c e r t o n ã o terá p e r m a n ê n c i a , m a s , a o contrá-
rio, sua p r i m e i r a entrada em cena selará t a m b é m a sua d e s -
truição. Essa c o m p r e e n s ã o d o t e m p o , radicalizada m a i s u m a
v e z no s u r r e a l i s m o , justifica a afinidade entre a modernida-
de e a moda.
B a u d e l a i r e parte do resultado da célebre querela dos
antigos e m o d e r n o s , m a s desloca, de maneira característica,
o p e s o do belo a b s o l u t o e do belo relativo: "O b e l o é c o n s -
tituído p o r um e l e m e n t o eterno, invariável ... e de um ele-
m e n t o relativo, circunstancial, q u e será ... sucessiva ou
c o m b i n a d a m e n t e , a época, a m o d a , a moral, a p a i x ã o . S e m
este s e g u n d o , q u e é c o m o o invólucro aprazível, palpitante,
aperitivo do divino manjar, o p r i m e i r o e l e m e n t o seria indi-
gesto, inapreciável, não a d a p t a d o e n ã o a p r o p r i a d o à natu-
20
reza h u m a n a . " E n q u a n t o crítico de arte, B a u d e l a i r e subli-
nha na pintura m o d e r n a o a s p e c t o " d a beleza fugaz e passa-
geira da vida p r e s e n t e , do caráter d a q u i l o que o leitor nos
2
p e r m i t i u c h a m a r ' M o d e r n i d a d e ' " ' . Baudelaire coloca entre
a s p a s a palavra " M o d e r n i d a d e " ; é c o n s c i e n t e do novo u s o ,
t e r m i n o l o g i c a m e n t e peculiar, desse t e r m o . E m c o n s e q ü ê n -
cia disso, a obra autêntica está radicalmente presa ao instante
do seu s u r g i m e n t o ; e x a t a m e n t e p o r q u e se c o n s o m e na atua-

19. " E m p o u c a s palavras, para que toda m o d e r n i d a d e seja digna dc tor-


nar-se antigüidade, é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a
vida h u m a n a i n v o l u n t a r i a m e n t e lhe c o n f e r e . " ( B A U D E L A I R E , Ces. Schrifíen,
vol. IV. p. 2 8 8 ; trad., p. 26.)
20. B A U D E L A I R E . Ges. Schriften, vol. IV, p. 2 7 1 ; trad.. p. 10.
2 1 . B A U D E L A I R E , GCS. Schn/ien. vol. IV, p 325; trad., p. 70.
16 JÜRGEN HABERMAS

lidade, ela p o d e deter o fluxo c o n s t a n t e das trivialidades,


r o m p e r a n o r m a l i d a d e e satisfazer o anseio i m o r t a l de bele-
za d u r a n t e o m o m e n t o de u m a ligação fugaz do eterno c o m
o atual.
A beleza eierna revela-se a p e n a s sob o disfarce dos c o s -
t u m e s de é p o c a . B e n j a m i n irá se referir m a i s tarde a essa
característica c o m a e x p r e s s ã o " i m a g e m dialética". A obra
de arte m o d e r n a e n c o n t r a - s e sob o signo da u n i ã o do autên-
tico c o m o e f ê m e r o . E s s e caráter de atualidade justifica t a m -
b é m a a f i n i d a d e da arte c o m a m o d a , c o m o n o v o , c o m o
p o n t o d e vista d o ocioso, d o g ê n i o a s s i m c o m o d a criança,
q u e n ã o d i s p õ e m da p r o t e ç ã o constituída p o r formas de per-
c e p ç ã o c o n v e n c i o n a i s e p o r isso são ab a n d o n a d o s ; s e m defe-
sa aos a t a q u e s da beleza e dos e s t í m u l o s t r a n s c e n d e n t e s ,
o c u l t o s n a q u i l o que há de m a i s c o t i d i a n o . O papel do dândi
consiste e n t ã o em colocar na ofensiva, de m o d o esnobe, esse
tipo de extracotidianeidade q u e ele e x p e r i m e n t a , em m a n i -
22
festá-la c o m m e i o s p r o v o c a t i v o s . O dândi c o m b i n a o ócio
e a m o d a c o m o prazer de p r o v o c a r e s p a n t o , s e m n u n c a ele
m e s m o ficar e s p a n t a d o . E o especialista do p r a z e r fugaz do
m o m e n t o , do qual aflora o novo: "Ele busca esse algo, ao qual
s e p e r m i t i r á c h a m a r d e M o d e r n i d a d e ; pois n ã o m e ocorre
m e l h o r palavra para exprimir a idéia em q u e s t ã o . Trata-se,
para ele, de tirar da m o d a o q u e esta p o d e c o n t e r de p o é t i c o
23
no histórico, de extrair o e t e r n o do t r a n s i t ó r i o . "
Walter Benjamin r e t o m a esse m o t i v o para tentar en-
contrar u m a s o l u ç ã o para o p r o b l e m a p a r a d o x a l de c o m o
obter critérios próprios v a l e n d o - s e da c o n t i n g ê n c i a de u m a

22. " T o d o s participam do m e s m o caráter de o p o s i ç ã o e revolta, todos


são representantes do que há de m e l h o r no orgulho h u m a n o , dessa necessida-
d e , muito rata nos h o m e n s de n o s s o t e m p o , de c o m b a t e r e destruir a trivialida-
d e . " B A U D E L A I R E , Ges. Schrijien, vol. IV, p. 302; trad., p. 5 1 .
2 3 . B A U D E L A I R E , Ges. Schrífien, vol. IV, p. 284; tracf?p. 24.

í
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 17

m o d e r n i d a d e que se t o r n o u e m i n e n t e m e n t e transitória. E n -
q u a n t o B a u d e l a i r e se contentara c o m a idéia de q u e a c o n s -
telação de t e m p o e eternidade se realiza na obra de arte au-
têntica, Benjamin quer retraduzir essa experiência estética
fundamental em u m a relação histórica. Constrói o conceito
de " t e m p o - p r e s e n t e " (Jetztzeif), em q u e se depositaram os
fragmentos de um t e m p o m e s s i â n i c o ou a c a b a d o , c o m a
ajuda do t e m a da mímesis, q u e se t o r n o u , por a s s i m dizer,
tênue e que fora p r e s s e n t i d o nos f e n ô m e n o s da m o d a : "A
R e v o l u ç ã o F r a n c e s a s e via c o m o u m a R o m a ressurreta. Ela
citava a R o m a antiga c o m o a m o d a cita um vestuário anti-
g o . A m o d a t e m um faro p a r a o atual, o n d e quer que ele es-
teja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em
direção ao p a s s a d o . ... O m e s m o salto, s o b o livre céu da
história, é o salto dialético da R e v o l u ç ã o , c o m o o c o n c e b e u
24
M a r x . " B e n j a m i n n ã o se rebela a p e n a s contra a empresta-
da n o r m a t i v i d a d e de u m a c o m p r e e n s ã o da história q u e r e -
sulta da imitação de m o d e l o s "passados; ele luta i g u a l m e n t e
contra aquelas d u a s c o n c e p ç õ e s q u e , j á n o terreno d a c o m -
p r e e n s ã o r n o d e r n a da história, i n t e r r o m p e m e n e u t r a l i z a m a
p r o v o c a ç ã o do n o v o e do a b s o l u t a m e n t e inesperado. Ele se
volta, p o r um l a d o , contra a idéia de um t e m p o h o m o g ê n e o
e vazio, p r e e n c h i d o pela "obstinada fé no p r o g r e s s o " do evo-
lucionismo e da filosofia da história, m a s t a m b é m , por outro,
contra aquela n e u t r a l i z a ç ã o de t o d o s os critérios q u e o h i s -
t o r i c i s m o opera q u a n d o encerra a história em um m u s e u e
desfia "entre os d e d o s os a c o n t e c i m e n t o s , c o m o as contas de
25
um r o s á r i o " . O m o d e l o é Robespierre, que, citando a R o m a
antiga, invocou um p a s s a d o correspondente, c a r r e g a d o de

24. BENJAMIN, W. " Ü b e r den Begriff der Geschichte". In: Ces. Schriften,
vol. I, 2, p. 7 0 1 . Trad., " S o b r e o conceito da história". In: Obras escolhidas.
São Paulo, Brasiliense, vol. I, p. 230.
2 5 . Ibid., p. 7 0 4 ; trad., p. 232.
18 JÜRGEN HABERMAS

t e m p o - p r e s e n t e , para r o m p e r o continuum inerte da história.


A s s i m c o m o ele tenta deter o curso inerte da história por
m e i o de um c h o q u e p r o d u z i d o de m a n e i r a surrealista, a m o -
d e r n i d a d e diluida em a t u a l i d a d e t e m de colher sua n o r m a t i -
vidade das i m a g e n s refletidas de passados incitados, tão logo
alcance a autenticidade de um t e m p o - p r e s e n t e . Estes não se-
rão m a i s p e r c e b i d o s c o m o p a s s a d o s o r i g i n a r i a m e n t e e x e m -
plares. O m o d e l o b a u d e l a i r i a n o do criador de m o d a focali-
za antes a criatividade que o p õ e ao ideal estético de imitação
dos m o d e l o s clássicos o ato do p r e s s e n t i m e n t o clarividentc
de tais c o r r e s p o n d ê n c i a s .

Excurso sobre
as teses de filosofia da história de Benjamin

N ã o é fácil classificar a c o n s c i ê n c i a do t e m p o e x p r e s -
20
sa nas teses b e n j a m i n i a n a s de filosofia da h i s t ó r i a . Incon-
fundíveis são as experiências surrealistas e os motivos da
mística j u d a i c a q u e e s t a b e l e c e m u m a peculiar aliança c o m
o conceito de " t e m p o - p r e s e n t e " . Dessas d u a s fontes se ali-
menta aquela idéia de que o instante autêntico de um presen-
te inovador interrompe o continuum da história e se desprende
de seu c u r s o h o m o g ê n e o . Tal c o m o o c o r r e na u n i f i c a ç ã o
mística c o m a c h e g a d a do M e s s i a s , a i l u m i n a ç ã o profana do
c h o q u e força a u m a s u s p e n s ã o , a u m a cristalização do a c o n -
tecer m o m e n t â n e o . Para B e n j a m i n n ã o se trata a p e n a s da
renovação enfática de u m a consciência para a qual " c a d a se-
g u n d o é a p o r t a estreita pela qual podia penetrar o M e s s i a s "
(tese 18). Pelo contrário, B e n j a m i n inverte a o r i e n t a ç ã o ra-
dical para o futuro, que em geral caracteriza a época m o d e r -

26. In: Ges. Sclvifien, vol. I, 2; trad., pp. 222 ss.


O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

na, sobre o eixo do " t e m p o - p r e s e n t e " , a tal p o n t o que ela é


transferida p a r a u m a orientação, ainda mais radical, para o
p a s s a d o . A expectativa do novo no futuro só se c u m p r e p o r
m e i o da reminiscência d e u m p a s s a d o o p r i m i d o . B e n j a m i n
e n t e n d e o sinal de u m a s u s p e n s ã o m e s s i â n i c a do a c o n t e c e r
c o m o " u m a o p o r t u n i d a d e revolucionária d e lutar p o r u m
p a s s a d o o p r i m i d o " (Tese 17). ,
No q u a d r o de suas investigações sobre a história dos
c o n c e i t o s , R. K o s e l l e c k caracterizou a consciência m o d e r n a
do t e m p o , entre o u t r o s m o d o s , m e d i a n t e a diferença c r e s -
cente entre o " c a m p o de experiência"-e o " h o r i z o n t e de ex-
pectativa": " S e g u n d o m i n h a tese, amplia-se progressivamen-
te na é p o c a m o d e r n a a diferença entre experiência e e x p e c -
tativa; m a i s p r e c i s a m e n t e , a é p o c a m o d e r n a só se deixa
c o m p r e e n d e r c o m o u m t e m p o n o v o desde o m o m e n t o e m
que as expectativas c o m e ç a m a se afastar cada vez m a i s de
27
todas as e x p e r i ê n c i a s feitas até e n t ã o . " A específica orien-
t a ç ã o para o futuro da época m o d e r n a só se forma na m e d i -
da em que a m o d e r n i z a ç ã o social escancara o c a m p o de
e x p e r i ê n c i a de m u n d o s da vida de e x p r e s s ã o rural e artesa-
nal, próprio da velha Europa^ o mobiliza e desvaloriza c o m o
diretriz q u e regula as expectativas. O lugar dessas experiên-
cias legadas pelas g e r a ç õ e s p r e c e d e n t e s é o c u p a d o então por
aquela experiência d o p r o g r e s s o , q u e confere a o h o r i z o n t e
de expectativa, até ai a n c o r a d o c o m firmeza no passado, u m a
" q u a l i d a d e histórica nova, q u e s e m p r e p o d e ser e n c o b e r t a
28
pela u t o p i a " .
S e m dúvida, Koselleck d e s c o n h e c e o fato de que o con-
ceito de p r o g r e s s o serviu não a p e n a s para a secularização
de esperanças escatológicas e a abertura utópica do horizon-

27. K O S E L L E C K , R. "Erfahrungsraum urid Erwartungshorizont" ( C a m p o


dc experiência e horizonte de expectativa") In: K O S E L L E C K , 1979, p. 359.
28. K O S E L L E C K . R, 1979, p, 363.
20 JÜRGEN HABERMAS

te de expectativas, m a s t a m b é m para m a i s u m a vez obstruir,


c o m o auxílio de c o n s t r u ç õ e s teleológicas da história, o fu-
turo visto c o m o fonte de inquietude. A p o l ê m i c a de Benja-
m i n contra o n i v e l a m e n t o da a p r e e n s ã o que o m a t e r i a l i s m o
histórico faz da história, em termos de teoria da evolução so-
cial, dirige-se a u m a tal d e g e n e r a ç à o da consciência de tem-
po da m o d e r n i d a d e , a b e r t a ao futuro. O n d e o p r o g r e s s o coa-
gula, t o m a n d o - s e n o r m a histórica, é eliminada da relação do
p r e s e n t e c o m o futuro a q u a l i d a d e do novo, a ênfase no c o -
m e ç o imprevisível. N e s s e sentido, para B e n j a m i n o histori-
c i s m o é m e r a m e n t e um equivalente funcional da filosofia
dairhistória. O historiador e m p á t i c o e q u e c o m p r e e n d e tudo
reúne a m a s s a de fatos, isto é, o curso objetivado da história
e m u m a s i m u l t a n e i d a d e ideal, para p r e e n c h e r desse m o d o
"o t e m p o vazio e h o m o g ê n e o " . A relação do presente c o m o
futuro é assim privada de toda relevância para a c o m p r e e n -
são do p a s s a d o : "O materialista histórico n ã o p o d e renunciar
ao c o n c e i t o de um p r e s e n t e que n ã o é t r a n s i ç ã o , m a s pára
no t e m p o e se imobiliza. Porque esse c o n c e i t o define exata-
m e n t e aquele presente em que ele m e s m o escreve a história.
O historicista apresenta a imagem ' e t e r n a ' do passado, o ma-
terialista histórico faz desse p a s s a d o u m a experiência ú n i c a "
(Tese 16),
V e r e m o s que a c o n s c i ê n c i a m o d e r n a do t e m p o , à m e d i -
da que se articula em d o c u m e n t o s literários, s e m p r e volta a
se afrouxar, e que sua vitalidade é c o n t i n u a m e n t e renovada
por u m p e n s a m e n t o r a d i c a l m e n t e histórico: dos j o v e n s he-
gelianos até Heideggcr, p a s s a n d o por N i e t z s c h e e Yorck von
W a r t h e n b u r g . O m e s m o i m p u l s o d e t e r m i n a as teses de B e n -
j a m i n ; s e r v e m à r e n o v a ç ã o da c o n s c i ê n c i a m o d e r n a do tem-
p o . M a s Benjamin sentia-se insatisfeito c o m a variante "do
p e n s a m e n t o histórico q u e até e n t ã o era c o n s i d e r a d o radical.
O pensamento radicalmente histórico pode se caracterizar pela
idéia de história da recepção (Wirkungsgeschichte). Nietzsche

I
O DISCURSO FJL O SÓ FICO DA MODERNIDA DE' 2 1

deu-lhe o n o m e de c o n s i d e r a ç ã o crítica da história. O M a r x


do 18 Brumário p r a t i c o u esse tipo de p e n s a m e n t o histórico,
o H e i d e g g e r de Ser e tempo o n t o l o g i z o u - o . De fato, r e c o -
n h e c e - s e ainda algo d e evidente m e s m o n a estrutura c o a g u -
lada no existencial da historicidade: aberto ao futuro, o h o -
rizonte de expectativas d e t e r m i n a d a s pelo p r e s e n t e c o m a n -
d a nossa a p r e e n s ã o d o p a s s a d o . A o nos a p r o p r i a r m o s d e
experiências p a s s a d a s para a o r i e n t a ç ã o no futuro, o autên-
tico p r e s e n t e se p r e s e r v a c o m o local de p r o s s e g u i m e n t o da
tradição e da inovação, visto q u e u m a n ã o é possível s e m a
outra, e a m b a s se a m a l g a m a m na objetividade de um c o n -
texto histórico-receptivo.
Ora, há diferentes versões dessa idéia de história da re-
c e p ç ã o , s e g u n d o o g r a u de c o n t i n u i d a d e e d e s c o n t i n u i d a d e
a ser garantido ou p r o d u z i d o : u m a versão conservadora (Ga-
damer), u m a conservadora-revolucionária (Freyer) e u m a re-
volucionária ( K o r s c h ) . Porém o olhar orientado para o futu-
ro dirige-se s e m p r e do presente para um p a s s a d o que está
ligado, e n q u a n t o pré-história, a n o s s o respectivo presente,
c o m o por m e i o da corrente de um destino universal. Para
essa consciência, dois m o m e n t o s são constitutivos: de um
lado, o arco histórico-receptivo de um a c o n t e c e r c o n t í n u o
da tradição, no qual m e s m o o ato revolucionário é assenta-
do; e, de outro, a p r e d o m i n â n c i a do horizonte de expectati-
vas sobre o p o t e n c i a l de experiências históricas que p o d e
ser apropriado.
Benjamin n ã o discute e x p l i c i t a m e n t e essa consciência
histórico-receptiva. M a s seus textos p e r m i t e m concluir que
ele desconfia igualmente tanto do tesouro dos bens culturais
legados, que d e v e m passar a ser posse do presente, c o m o
t a m b é m da a s s i m e t r i a da relação entre as atividades apro-
priadoras de um p r e s e n t e orientado para o futuro e os obje-
tos apropriados do passado. Em virtude disso, Benjamin p r o -
põe uma drástica inversão entre o horizonte de expectativa
22 JÜRGEN HABERMAS

e o c a m p o de experiência. Atribui a todas as épocas passa-


das um h o r i z o n t e de expectativas insatisfeitas, e ao presen-
te o r i e n t a d o p a r a o futuro d e s i g n a a tarefa de reviver na re-
miniscência um passado que cada vez lhe seja corresponden-
te, de tal m o d o que p o s s a m o s satisfazer suas expectativas
c o m nossa débil força messiânica. De acordo c o m essa inver-
são, dois p e n s a m e n t o s p o d e m se c o m b i n a r : a convicção de
que a continuidade dos contextos de tradição é instituída tan-
29
to pela barbárie quanto pela c u l t u r a , e a idéia de que cada
g e r a ç ã o do presente c a r r e g a a r e s p o n s a b i l i d a d e não apenas
pelo destino das gerações futuras, mas t a m b é m pelo destino,
sofrido na inocência, das gerações passadas. Essa necessidade
de r e d e n ç ã o das épocas p a s s a d a s , que m a n t é m suas e x p e c -
tativas a p o n t a d a s para n ó s , l e m b r a aquela r e p r e s e n t a ç ã o , fa-
miliar às m í s t i c a s j u d a i c a e protestante, da r e s p o n s a b i l i d a d e
do h o m e m pelo destino de um deus que, no ato da criação, re-
nunciou à sua o n i p o t ê n c i a em benefício da liberdade do h o -
m e m , t o r n a n d o - a igual à sua.
M a s e s s a s c o r r e l a ç õ e s c o m a história das idéias não
explicam m u i t o . O que B e n j a m i n t e m em m e n t e é a idéia al-
tamente profana de q u e o u n i v e r s a l i s m o ético t a m b é m tem
de levar a sério as injustiças já s u c e d i d a s e, e v i d e n t e m e n t e ,
irreversíveis; de que há u m a solidariedade das gerações c o m
seus a n t e p a s s a d o s , c o m t o d o s aqueles q u e foram feridos
pela m ã o do h o m e m em sua integridade física e pessoal; e de
que essa solidariedade a p e n a s pela r e m i n i s c ê n c i a p o d e ser
efetuada e c o m p r o v a d a . A força libertadora da r e r n e m o r a -
ção não deve servir a q u i , c o m o desde H e g e l até Freud, para
dissipar o p o d e r do p a s s a d o sobre o p r e s e n t e , m a s para dis-

29. " N u n c a houve um m o n u m e n t o da cultura que não fosse t a m b é m um


m o n u m e n t o da barbárie. E, assim c o m o a cultura n ã o está isenta de barbárie,
não o é, t a m p o u c o , o processo de transmissão da cultura" (Tese 7).
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 23

sipar a culpa do p r e s e n t e para c o m o p a s s a d o : " U m a vez que


irrecuperável é u m a i m a g e m do p a s s a d o que a m e a ç a desa-
parecer c o m c a d a instante presente q u e n ã o se r e c o n h e c e
visado p o r ela" (Tese 5).
N o contexto d e s s a primeira lição, esse e x c u r s o deve
mostrar c o m o B e n j a m i n entretece m o t i v o s d e p r o c e d ê n c i a s
inteiramente diversas, a fim de radicalizar mais u m a vez a
c o n s c i ê n c i a histórico-receptiva. O d e s a c o p l a m e n t o entre o
horizonte de expectativas e o potencial de experiência trans-
m i t i d o possibilita a n t e s de tudo, c o m o m o s t r a Koselleck, a
o p o s i ç ã o entre u m t e m p o novo, que vive c o m seus p r ó p r i o s
direitos, e aquelas é p o c a s passada?» c o m as quais a era m o -
derna r o m p e u . C o m isso se alterou e s p e c i f i c a m e n t e a c o n s -
telação do presente na relação c o m o p a s s a d o e o futuro. Por
um lado, sob a p r e s s ã o dos p r o b l e m a s q u e afluem do futu-
ro, um presente c o n v o c a d o para a atividade h i s t o r i c a m e n t e
responsável p r e d o m i n a sobre um p a s s a d o de que se apropria
por interesse p r ó p r i o ; p o r outro, u m presente que s e t o r n o u
s i m p l e s m e n t e transitório se vê p r e s t a n d o contas por suas in-
t e r v e n ç õ e s e o m i s s õ e s ante o futuro. Ora, q u a n d o B e n j a m i n
estende essa responsabilidade orientada para o futuro às é p o -
cas p a s s a d a s , a q u e l a c o n s t e l a ç ã o se altera outra vez: agora a
relação e x t r e m a m e n t e tensa c o m as alternativas do futuro,
em princípio a b e r t a s , tange de i m e d i a t o a relação c o m um
passado que é, p o r sua vez, m o b i l i z a d o p e l a s expectativas.
A pressão dos p r o b l e m a s do futuro intensifica-se j u n t a m e n -
te c o m aquela do futuro que p a s s o u (e n ã o se realizou). Ao
m e s m o t e m p o , p o r é m , o n a r c i s i s m o oculto da c o n s c i ê n c i a
histórico-receptiva é c o r r i g i d o p o r e s s e m o v i m e n t o de rota-
ção. N ã o m a i s a p e n a s as g e r a ç õ e s futuras, m a s t a m b é m as
passadas p o d e m reivindicar a débil força m e s s i â n i c a da ge-
ração p r e s e n t e . A r e p a r a ç ã o a n a m n é s i c a de u m a injustiça,
que de fato não p o d e ser desfeita, m a s ao m e n o s reconciliada
— v i r t u a l m e n t e pela r e m i n i s c e n c i a , integra o presente no con-
24 JÜRGEN HABERMAS

texto c o m u n i c a t i v o de u m a solidariedade histórica univer-


sal. E s s a a n a m n e s e constitui o c o n t r a p e s o d e s c e n t r a l i z a d o r
em face da perigosa c o n c e n t r a ç ã o da r e s p o n s a b i l i d a d e c o m
a qual a consciência m o d e r n a do t e m p o , voltada apenas para
o futuro, sobrecarregou um presente problemático: que c o n s -
30
titui, p o r assim dizer, o nó de u m a t r a m a .

III

Hegel foi o p r i m e i r o a t o m a r c o m o p r o b l e m a filosófico


o p r o c e s s o pelo qual a m o d e r n i d a d e se desliga das sugestões
n o r m a t i v a s d o p a s s a d o q u e lhe são e s t r a n h a s . C e r t a m e n t e ,
na linha de u m a crítica da tradição q u e inclui as experiên-
cias da R e f o r m a e do R e n a s c i m e n t o e r e a g e aos c o m e ç o s da
ciência natural m o d e r n a , a filosofia d o s novos t e m p o s , da
escolástica tardia até K a n t , já expressa a a u t o c o m p r e e n s ã o
da m o d e r n i d a d e . Porém a p e n a s no final do s é c u l o X V I I I o
p r o b l e m a da autocertificação da modernidade se a g u ç o u a
tal p o n t o q u e H e g e l p ô d e p e r c e b e r essa q u e s t ã o como p r o -
b l e m a filosófico e, c o m efeito, c o m o o problema fundamen-
tal de sua filosofia. O fato de u m a m o d e r n i d a d e s e m m o d e -
los ter de estabilizar-se c o m base nas cisões p o r ela m e s m a
p r o d u z i d a s causa u m a i n q u i e t u d e q u e H e g e l c o n c e b e c o m o
31
"a fonte da n e c e s s i d a d e da f i l o s o f i a " . Q u a n d o a m o d e r n i -

30. Cf. o estudo de P E U K E R T , H. "Aporie anamnetischer Solidaritat"


(Aporia da solidariedade a n a m n é s í c a ) . In: Wissenêçhaftstheorie, Handhmgs-
theorie, Fundamentale Theologie (Teoria cia ciência, teoria da ação, teologia
fundamental). Düsseldorf, 1976, p p . 273 ss. E t a m b é m m i n h a réplica a H.
Ottmann, in; H A B E R M A S , J. Vorstudien undErgànzungcn zur Theorie des kom-
munikativen Handelns (Estudos prévios e complementos para a teoria da
ação comunicalivu). Frankfurt am M a i n , 1984, pp. 514 ss.
3 1 . H., vol. II, p. 20.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 25

dade desperta para a consciência de si mesma, surge u m a ne-


cessidade de autocertificação, que Hegel entende c o m o a
n e c e s s i d a d e da filosofia. Ele vê a filosofia diante da tarefa
de apreender em p e n s a m e n t o o seu t e m p o , que, para ele, são
os t e m p o s m o d e r n o s . H e g e l está c o n v e n c i d o de que n ã o é
possível obter o conceito que a filosofia forma de si m e s m a
i n d e p e n d e n t e m e n t e do conceito filosófico da m o d e r n i d a d e .
A n t e s de t u d o , H e g e l d e s c o b r e o princípio dos novos
tempos: a subjetividade. Valendo-se desse princípio explica
s i m u l t a n e a m e n t e a superioridade do m u n d o m o d e r n o e sua
tendência à crise: ele faz a experiência de si m e s m o c o m o o
m u n d o do p r o g r e s s o e ao m e s m o t e m p o do espírito alienado.
Por isso, a primeira tentativa de levar a m o d e r n i d a d e ao nível
do c o n c e i t o é o r i g i n a l m e n t e u m a crítica da m o d e r n i d a d e .
D e m o d o geral, H e g e l v ê o s t e m p o s m o d e r n o s caracte-
rizados p o r u m a estrutura de auto-relação que ele d e n o m i n a
subjetividade: "O p r i n c í p i o do m u n d o m o d e r n o é em geral
a liberdade da subjetividade, princípio segundo o qual t o d o s
os aspectos essenciais presentes na totalidade espiritual se
32
d e s e n v o l v e m para alcançar o seu d i r e i t o . " Q u a n d o H e g e l
caracteriza a fisionomia dos novos tempos (ou do m u n d o m o -
d e r n o ) , elucida a " s u b j e t i v i d a d e " p o r m e i o da " l i b e r d a d e " e
da " r e f l e x ã o " : "A g r a n d e z a de n o s s o t e m p o é o r e c o n h e c i -
m e n t o da l i b e r d a d e , a p r o p r i e d a d e do espírito pela qual este
3 3
está em si c o n s i g o m e s m o . " N e s s e contexto a e x p r e s s ã o
subjetividade c o m p o r t a s o b r e t u d o q u a t r o c o n o t a ç õ e s : a) in-
dividualismo: no m u n d o m o d e r n o , a singularidade infinita-
34
m e n t e particular p o d e fazer valer suas p r e t e n s õ e s ; b) direi-
to de crítica: o princípio do m u n d o m o d e r n o exige que aqui-

of

32. H., vol. VII, p. 4 3 9 , m a i s d o c u m e n t a ç ã o no art. " M o d e r n e W e l t " (O


mundo m o d e r n o ) , Obras, vol. de Índices, pp. 417 ss.
33. H., vol. X X , p. 329'.
1
34. H., vol. VII, p. 311.
26 JÜRGES HABERMAS

lo q u e deve ser r e c o n h e c i d o p o r todos se m o s t r e a cada um


35
c o m o algo l e g í t i m o ; c) autonomia da ação: é próprio dos
t e m p o s m o d e r n o s q u e q u e i r a m o s r e s p o n d e r pelo que faze-
3 6
m o s ; d) por fim, a p r ó p r i a ^ / o s q / i a idealista: Hegel consi-
dera c o m o obra dos tempos m o d e r n o s que a filosofia apreen-
3 7
da a idéia que se sabe a si m e s m a .
Os acontecimentos-chave históricos para o estabeleci-
m e n t o do princípio da subjetividade são a Reforma, o Ilu-
minismo e a Revolução Francesa. C o m L u t e r o , a fé religio-
sa t o r n o u - s e reflexiva; na solidão da subjetividade, o inundo
38
divino se transformou em a l g o p o s t o por n ó s . Contra a fé
na autoridade da p r e d i c a ç ã o e da tradição, o protestantismo
a f i r m a a soberania do sujeito q u e faz valer seu discerni-
m e n t o : a hóstia n ã o é mais q u e farinha, as relíquias não são
39
m a i s q u e o s s o s . D e p o i s , a D e c l a r a ç ã o dos Direitos do H o -
m e m e o Código Napoleônico realçaram o princípio da liber-
d a d e da vontade c o m o o fundamento substancial do Estado,
em detrimento do direito histórico: " C o n s i d e r o u - s e o direi-
to e a eticidade c o m o fundados no solo presente da vontade
d o h o m e m , j á q u e outrora existiam a p e n a s c o m o m a n d a -
m e n t o de Deus, imposto de fora, escrito no A n t i g o e no Novo
Testamento, ou presentes na forma de um diüeito especial em
4 0
velhos pergaminhos, enquanto privilégios, ou em tratados." '
A l é m disso, o princípio da subjetividade d e t e r m i n a as
manifestações da cultura m o d e r n a . P r i m e i r a m e n t e , isso vale
para a ciência objetivante q u e , ao m e s m o t e m p o , desencan-
ta a natureza e liberta o sujeito e o g n o s c e n t e : " A s s i m todos

3 5 . H., vol. VII, p . 4 8 5 .


36. H., vol. X V I I I , p. 493
37. H., vol. X X , p . 4 5 8 .
38. H., vol. X V I , p . 349.
39. H„ vol. XII, p. 522.
40. Ibid.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 27

os m i l a g r e s f o r a m c o n t e s t a d o s ; pois a natureza é agora um


sistema de leis c o n h e c i d a s e r e c o n h e c i d a s , no qual o h o m e m
está em casa, e só é c o n s i d e r a d o o n d e ele se sente em casa;
41
ele é livre p e l o c o n h e c i m e n t o da n a t u r e z a . " Os conceitos
morais dos t e m p o s m o d e r n o s são t a l h a d o s para r e c o n h e c e r
a l i b e r d a d e subjetiva dos indivíduos. F u n d a m - s e , p o r um
lado, no direito do indivíduo de d i s c e r n i r c o m o válido o q u e
ele deve fazer; p o r outro, fundam-se na exigência de q u e
cada u m p e r s i g a o s fins d o b e m - e s t a r particular e m c o n s o -
nância c o m o b e m - e s t a r de t o d o s os outros. A vontade s u b -
jetiva g a n h a a u t o n o m i a sob leis universais; m a s " s ó na v o n -
tade, e n q u a n t o subjetiva, p o d e a liberdade, ou a v o n t a d e q u e
42
é em si, ser e f e t i v a " . A arte moderna revela a sua e s s ê n c i a
no r o m a n t i s m o ; a forma e o c o n t e ú d o da arte r o m â n t i c a são
d e t e r m i n a d o s p e l a absoluta interioridade. Levada ao con-
ceito por F r i e d r i c h S c h l e g e l , a ironia divina espelha a e x p e -
riência de si de um eu d e s c e n t r a d o , " p a r a o qual t o d o s os
laços e s t ã o r o m p i d o s e que s o m e n t e q u e r viver na felicida-
43
de que o g o z o de si m e s m o p r o p o r c i o n a " . A auto-realiza-
ção expressiva torna-se o princípio de u m a arte q u e se a p r e -
senta c o m o forma de vida: " P o r é m , s e g u n d o este princípio,
eu só vivo c o m o artista se toda m i n h a a ç ã o e exteriorização
... p e r m a n e c e r e m para m i m a p e n a s c o m o aparência e assu-
14
m i r e m u m a forma que fique totalmente sob meu p o d e r . "
A realidade efetiva s o m e n t e alcança a e x p r e s s ã o artística na
refraçâo subjetiva da a l m a s e n t i m e n t a l : ela é " u m a mera
aparência p o r m e i o d o E u " .

Na m o d e r n i d a d e , p o r t a n t o , a vida religiosa, o E s t a d o e
a s o c i e d a d e , assim c o m o a ciência, a m o r a l e a arte transfor-

41. Ibiil.
42. H., vol. VII, p. 204.
43. H., vol. XIII, p. 9 5 .
44. H., vol. XIII, p. 94.
28 JURGEN HABERMAS

m a m - s e igualmente em personificações do princípio da sub-


45
j e t i v i d a d e . Sua estrutura é apreendida enquanto tal na fi-
losofia, a saber, c o m o subjetividade abstrata no cogito ergo
sum de D e s c a r t e s e na figura da c o n s c i ê n c i a de si absoluta
em Kant. Trata-se da estruUira da auto-relação do sujeito cog-
n o s c e n t e que se dobra s o b r e si m e s m o e n q u a n t o objeto para
s e c o m p r e e n d e r c o m o e m u m a i m a g e m especular, j u s t a m e n -
te de m o d o " e s p e c u l a t i v o " . Kant t o m a essa a b o r d a g e m da
filosofia da reíle.xão c o m o base de suas três " C r í t i c a s " . Ele
faz da r a z ã o o s u p r e m o tribunal ante o qual deve se justifi-
car t u d o aquilo que em princípio reivindica validade.
C o m a análise d o s f u n d a m e n t o s do c o n h e c i m e n t o , a
crítica da razão pura a s s u m e a tarefa, de criticar o m a u uso
de n o s s a faculdade de c o n h e c i m e n t o , , talhada p a r a a relação
c o m f e n ô m e n o s . Kant substitui o conceito; substancial de ra-
zão da tradição metafísica pelo c o n c e i t o de u m a razão cin-
dida e m seus m o m e n t o s , cuja u n i d a d e n ã o t e m m a i s que u m
caráter formal. Ele s e p a r a do c o n h e c i m e n t o teórico as fa-
culdades da razão prática e do j u í z o e assenta cada u m a delas
sobre seus p r ó p r i o s f u n d a m e n t o s . Ao fundar a possibilidade
do c o n h e c i m e n t o objetivo, do d i s c e r n i m e n t o m o r a l e da ava-
liação estética, a r a z ã o crítica não só assegura suas próprias
f a c u l d a d e s subjetivas e t o r n a t r a n s p a r e n t e ^ arquitetônica da
•íazão, m a s t a m b é m a s s u m e o papel d e u m j u i z s u p r e m o p e -

4 5 . Cf. o r e s u m o no § 124 da Filosofia do direito: "O direito da liber-


dade subjetiva constitui o ponto central e crítico que marca a diferença entre a
A n t i g ü i d a d e e os t e m p o s m o d e r n o s . Esse direito, em sua infinitúde, é pronun-
ciado no cristianismo e converteu-se em princípio universal e efetivo de uma nova
forma do m u n d o . Fazem parte de suas configurações mais p r ó x i m a s o amor, o
r o m a n t i s m o , a meta da eterna felicidade do indivíduo e t c , em seguida a m o -
ralidade e a boa consciência, depois outras formas que se d e s t a c a m em parte
c o m o princípios da sociedade civil e c o m o m o m e n t o s da constituição política,
que, em parte, se apresentam de um m o d o geral na história, particularmente na
história da arte, da ciência e da filosofia" (H., vol. VII, p. 233).
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 29

rante o todo da cultura. C o m o dirá m a i s tarde E m i l Lask, a


filosofia delimita, a partir de p o n t o s de vista e x c l u s i v a m e n -
te formais, as esferas culturais de valor e n q u a n t o ciência e
técnica, direito e moral, arte e crítica de arte, legitimando-as
46
no interior desses l i m i t e s .
Até o final do século XVIII, a ciência, a moral e a arte di-
ferenciaram-se institucionalmente t a m b é m c o m o áreas de ati-
vidade em que questões de verdade, de justiça e de gosto são
e x a m i n a d a s de m o d o a u t ô n o m o , isto é, sob seus aspectos e s -
p e c í f i c o s de validade. Por um lado, essa esfera do saber se
isolara totalmente da esfera da fé e, p o r outro, das relações
sociais j u r i d i c a m e n t e organizadas assim c o m o do convívio
cotidiano. N e s s e s â m b i t o s r e c o n h e c e m o s p r e c i s a m e n t e as
esferas que H e g e l c o m p r e e n d e r á m a i s tarde c o m o e x p r e s -
sões do princípio da subjetividade. Na m e d i d a em q u e a
reflexão t r a n s c e n d e n t a l , na qual o princípio da subjetivida-
de se apresenta, p o r assim dizer, em sua n u d e z , reivindica
ao m e s m o t e m p o c o m p e t ê n c i a j u r í d i c a perante essas esferas,
Hegel vê na filosofia kantiana a essência do m u n d o m o d e r -
n o concentrada c o m o e m u m foco.

IV

K a n t e x p r e s s a o m u n d o m o d e r n o e m u m edifício d e
p e n s a m e n t o s . De fato, isto significa apenas que na filosofia
kantiana os traços essenciais da é p o c a se refletem c o m o em
um espelho, s e m q u e Kant tivesse conceitifado a m o d e r n i -
d a d e e n q u a n t o tal. S ó m e d i a n t e u m a visão retrospectiva H e -
gel p o d e e n t e n d e r a filosofia de K a n t c o m o auto-interpreta-
ção decisiva da m o d e r n i d a d e . Hegel visa conhecer t a m b é m o

46. E. Kant, Critica da razão pura, B 779.


30 JÜRGEN HABERMAS

que restou de i m p e n s a d o n e s s a e x p r e s s ã o m a i s refletida da


época: K a n t não considera como cisõcs as diferenciações
no interior da razão, n e m as divisões formais no interior da
cultura, n e m em geral a dissociação dessas esferas. Por esse
motivo, K a n t ignora a n e c e s s i d a d e que se manifesta c o m as
separações impostas pelo princípio da subjetividade. Essa ne-
cessidade se impõe à filosofia assim q u e a m o d e r n i d a d e se
c o n c e b e c o m o u m a é p o c a histórica, a s s i m que toma c o n s -
ciência da ruptura c o m os p a s s a d o s e x e m p l a r e s e da neces-
sidade de haurir de si m e s m a tudo que é n o r m a t i v o , e n q u a n -
to p r o b l e m a s históricos. C o l o c a - s e e n t ã o a q u e s t ã o de saber
se o princípio da subjetividade e a estrutura de consciência
de si que lhe é imanente são suficientes c o m o fonte de orien-
tações normativas, se bastam para "fundar" não apenas a ciên-
cia, a moral e a arte, de um m o d o geral, m a s ainda estabilizar
u m a f o r m a ç ã o histórica que se desligou de todos os c o m -
p r o m i s s o s históricos. A g o r a a q u e s t ã o é s a b e r se da subjeti-
vidade e da consciência de si p o d e m obter-se critérios pró-
prios ao m u n d o m o d e r n o e q u e , ao m e s m o t e m p o , sirvam
para se orientar nele; m a s isso significa t a m b é m que p o s s a m
ser aptos para a crítica de u m a m o d e r n i d a d e em conflito con-
sigo m e s m a . C o m o é possível construir, partindo do espírito
da modernidade, u m a forma ideal interna que não se limite a
imitar as múltiplas manifestações históricas da m o d e r n i d a d e
n e m lhes seja exterior?
Posta a questão desse m o d o , a subjetividade se revela um
principio unilateral. C o m efeito, este p o s s u i orna força iné-
dita para gerar u m a f o r m a ç ã o da liberdade subjetiva e da
reflexão e minar a religião, que até então se apresentava c o m o ,
o poder unificador por excelência. M a s esse m e s m o princí-
pio não t e m força suficiente para r e g e n e r a r no médium da
razão o p o d e r unificador da religião. A orgulhosa cultura
reflexiva do I l u m i n i s m o r o m p e u c o m a religião e "a p ô s ao
O DISCURSO FILOSÓFICO DA A10 DE RN IDA DE & 31

47
lado de si ou se p ô s ao lado d e l a " . O r e b a i x a m e n t o da reli-
gião c o n d u z a u m a d i s s o c i a ç ã o entre fé e saber q u e o Ilu-
m i n i s m o não é c a p a z de superar por m e i o de suas p r ó p r i a s
forças. Por isso a p a r e c e na Fenomenológia do espirito s o b
48
0 título de m u n d o do espírito a l i e n a d o de s i : " Q u a n t o mais
p r o g r i d e a f o r m a ç ã o , m a i s diverso é o d e s e n v o l v i m e n t o das
manifestações vitais em que a cisão p o d e se entrelaçar, m a i o r
é o p o d e r da cisão ••• è m a i s i n s i g n i f i c a n t e s e e s t r a n h o s ao
t o d o da f o r m a ç ã o são" os esforços da vida (outrora a cargo
40
d a religião) para s e r e p r o d u z i r e m h a r m o n i a . "
E s s a frase p r o v é m de um escrito p o l ê m i c o contra
Reinhold, o c h a m a d o Differenzschrift, de 1801, em que H e g e l
c o n c e b e a h a r m o n i a d i l a c e r a d a da vida c o m o s e n d o o desa-
50
fio p r á t i c o e a n e c e s s i d a d e da f i l o s o f i a . A circunstância
de que a c o n s c i ê n c i a do t e m p o se d e s t a c o u da t o t a l i d a d e e o
espírito se alienou de seu si constitui p a r a ele j u s t a m e n t e
u m p r e s s u p o s t o d o filosofar c o n t e m p o r â n e o . Outro p r e s s u -
p o s t o n e c e s s á r i o s o b r e o qual a filosofia p o d e e m p r e e n d e r
sua tarefa é, para H e g e l , o conceito de absoluto, t o m a d o de
e m p r é s t i m o i n i c i a l m e n t e de Schelling. C o m ele, a filosofia
p o d e a s s e g u r a r de a n t e m ã o a m e t a de apresentar a razão c o -
mo o p o d e r unificador. A razão deve c e r t a m e n t e s u p e r a r o
estado de cisão em q u e o princípio da subjetividade arre-
m e s s a r a n ã o só a p r ó p r i a razão imís* t a m b é m "o s i s t e m a in-
teiro das relações vitais". C o m sua crítica, dirigida diretamen-

4 7 . H „ vol. II, p. 2 3 .
4 8 . H., vol. III, p p . 3 6 2 ss.
4 9 . H „ vol. II, p. 2 2 .
50. " Q u a n d o o p o d e r de unificação desaparece da vida do h o m e m , e as
antíteses p e r d e m sua relação vital e reciprocidade e g a n h a m independência,
origina-se a necessidade da filosofia. Até aqui esta necessidade foi u m a con-
tingência; p o r é m , sob a cisão dada, é a tentativa necessária de superar a oposi-
ção entre subjetividade e objetividade fixas e de conceber como um devir o
ser-que-deveio do m u n d o intelectual e r e a l " (H., vol. II, p. 22).
32 JÜRGEN HABERMAS
i
te aos sistemas filosóficos de K a n t e Fichte, H e g e l quer, ao
m e s m o t e m p o , e n c o n t r a r a a u t o c o m p r e e n s ã o da m o d e r n i d a -
de q u e neles se e x p r i m e . Ao criticar as o p o s i ç õ e s filosóficas
entre natureza e espírito, sensibilidade e entendimento, enten-
d mejito e razão, razão prática e razão teórica, j u í z o e imagi-
n a ç ã o , eu e não-eu, finito e infinito, saber e fé, H e g e l p r e -
t e n d e responder à crise que está na cisão; da p r ó p r i a vida. De
o u t r o m o d o , a crítica filosófica não se p o d e r i a p r o p o r a sa-
tisfação da necessidade que a suscitou objetivamente. A críti-
ca ao idealismo subjetivo é, ao m e s m o , t e m p o , a crítica de
u m a m o d e r n i d a d e que só por esse c a m i n h o p o d e se certificar
do seu conceito e, c o m isso, estabilizar-se sobre si m e s m a .
Para isso, a crítica n ã o p o d e n e m deve se servir de outro ins-
t r u m e n t o senão d a q u e l a reflexão na qual r e c o n h e c e a m a i s
1
pura expressão do princípio dos novos tempos* . Sé a moder-
n i d a d e deve se fundar por seus p r ó p r i o s m e i o s , e n t ã o Hegel
tem de desenvolver o conceito crítico de m o d e r n i d a d e , par-
t i n d o de u m a dialética i m a n e n t e ao próprio princípio do es-
clarecimento.
Veremos comoJHegel executa esse p r o g r a m a e, com isso,
e n r e d a - s e em um dilema. U m a vez efetuada a dialética do
e s c l a r e c i m e n t o , o i m p u l s o para a crítica do t e m p o presente
se esgotará, i m p u l s o que, entretanto, a c o l o c o u em m o v i -
m e n t o . De início, é p r e c i s o m o s t r a r o q u e se oculta naquela
" a n t e c â m a r a d a filosofia", e m q u e H e g e l a c o m o d a " o p r e s -
s u p o s t o do a b s o l u t o " . Os m o t i v o s da filosofia da unificação
r e m o n t a m às e x p e r i ê n c i a s de crise do j o v e m Hegel. Elas
estão atrás da c o n v i c ç ã o de que a r a z ã o p o d e ser convocada,
e n q u a n t o puder reconciliador, contra as positividades da é p o -
r
c a dilacerada. No e n t a n t o , a versão m i t o - p o é t i c a de uma re-
c o n c i l i a ç ã o d a m o d e r n i d a d e , que H e g e l p a r t i l h a inicialmen-

5 1 . H., vol. II. pp. 25 ss.


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O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 33

te c o m H õ l d e r l i n e Schelling, p e r m a n e c e ainda presa a o s


passados e x e m p l a r e s do cristianismo primitivo e da A n t i g ü i -
dade. S o m e n t e durante o p e r í o d o de Jena, H e g e l c o n s e g u e ,
c o m o seu p r ó p r i o conceito de saber absoluto, u m a p o s i ç ã o
que lhe p e r m i t e ultrapassar os p r o d u t o s do e s c l a r e c i m e n t o -
arte romântica, religião racional e sociedade burguesa -, sem se
orientar p o r m o d e l o s estranhos. C o m esse conceito de a b s o -
luto, Hegel retrocede, todavia, em relação às intuições de j u -
ventude: p e n s a em superar a subjetividade dentro dos limi-
tes da filosofia do sujeito. Disso resulta o dilema de ter de n e -
gar afinal à autocompreensão moderna a possibilidade de u m a
crítica da m o d e r n i d a d e . A crítica à subjetividade dilatada em
potência absoluta transforma-se i r o n i c a m e n t e em repreen-
são do filósofo à estreiteza de espírito dos sujeitos, que ainda
não c o m p r e e n d e r a m sua filosofia n e m o curso da história.

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