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O discurso filosófico
da modernidade
Doze lições
Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEI NASCIMENTO
Martins Fontes
São Paulo 2002
Esta obra foi pubtiaitta originalmente em alemão com o titulo
DER PHILOSOPHISCHE DtSKVRS DER MODERNE, por Suhrkamp Verias.
CopYríjthl <& Suhrkamp Verias. Frankfurt am Main. 1985.
Copyright O 2000. Urraria Martins Fontes Editora Lula..
Suo Paulo, para a presente edição.
1
I edição
junho de 2000
2' tiragem
abril de 2002
Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEl NASCIMENTO
Revisão da tradução
Karina Jannini
Marlene Holzhausen
Preparação do original
Andréa Stahef Si. da Silva
Revisão grafica «*=a
Márcia da Cru: Nôboa Leme
Ana Maria de 0. M. Barbosa
Produção gráfica
Geraldo Alves
PaginaçãVFotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
00-2286 CDD-193
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia alenta 193 0
II
tarde, a p r o x i m a d a m e n t e n o s m e a d o s do s é c u l o X I X e, pela
primeira v e z , ainda no d o m í n i o das belas-artes, Isso explica
p o r que as expressões Moderne ou Modernitàt, modernité,
conservaram até hoje um núcleo de significado estético, m a r -
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c a d o pela a u t o c o m p r e e n s ã o da arte de v a n g u a r d a .
Para B a u d e l a i r e a e x p e r i ê n c i a estética cpnfundia-se,
nesse m o m e n t o , c o m a e x p e r i ê n c i a histórica da m o d e r n i d a -
de. Na experiência fundamental da m o d e r n i d a d e estética,
intensifica-se o p r o b l e m a da a u t o f u n d a m e n t a ç ã o , pois aqui
o horizonte da experiência do t e m p o se r e d u z à subjetivida-
de descentrada, que se afasta das convenções cotidianas. Para
Baudelaire, a obra de arte m o d e r n a ocupa, por isso, um lu-
gar notável na intersecção do eixo entre atualidade e eterni-
dade: "A modernidade é o transitório, o efêmero, o contigen-
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te, é a m e t a d e da arte, sendo a outra o eterno e o i m u t á v e l . "
O ponto de referência da m o d e r n i d a d e jtorna-se agora u m a
atualidade q u e se c o n s o m e a si m e s m a , c u s t a n d o - l h e a ex-
tensão de um p e r í o d o de transição, de um t e m p o atual, c o n s -
tituído no centro dos t e m p o s m o d e r n o s :e q u e dura a l g u m a s
d é c a d a s . O presente não p o d e m a i s obter sua consciência de
si c o m b a s e na oposição a u m a época rejeitada e ultrapassa-
da, a u m a figura do p a s s a d o . A atualidade só pode se c o n s -
tituir c o m o o p o n t o de intersecção entre o t e m p o e a eterni-
dade. C o m esse contato sem mediação entre o atual e o eterno,
c e r t a m e n t e a m o d e r n i d a d e n ã o se livra do seu caráter precá-
í
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 17
m o d e r n i d a d e que se t o r n o u e m i n e n t e m e n t e transitória. E n -
q u a n t o B a u d e l a i r e se contentara c o m a idéia de q u e a c o n s -
telação de t e m p o e eternidade se realiza na obra de arte au-
têntica, Benjamin quer retraduzir essa experiência estética
fundamental em u m a relação histórica. Constrói o conceito
de " t e m p o - p r e s e n t e " (Jetztzeif), em q u e se depositaram os
fragmentos de um t e m p o m e s s i â n i c o ou a c a b a d o , c o m a
ajuda do t e m a da mímesis, q u e se t o r n o u , por a s s i m dizer,
tênue e que fora p r e s s e n t i d o nos f e n ô m e n o s da m o d a : "A
R e v o l u ç ã o F r a n c e s a s e via c o m o u m a R o m a ressurreta. Ela
citava a R o m a antiga c o m o a m o d a cita um vestuário anti-
g o . A m o d a t e m um faro p a r a o atual, o n d e quer que ele es-
teja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em
direção ao p a s s a d o . ... O m e s m o salto, s o b o livre céu da
história, é o salto dialético da R e v o l u ç ã o , c o m o o c o n c e b e u
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M a r x . " B e n j a m i n n ã o se rebela a p e n a s contra a empresta-
da n o r m a t i v i d a d e de u m a c o m p r e e n s ã o da história q u e r e -
sulta da imitação de m o d e l o s "passados; ele luta i g u a l m e n t e
contra aquelas d u a s c o n c e p ç õ e s q u e , j á n o terreno d a c o m -
p r e e n s ã o r n o d e r n a da história, i n t e r r o m p e m e n e u t r a l i z a m a
p r o v o c a ç ã o do n o v o e do a b s o l u t a m e n t e inesperado. Ele se
volta, p o r um l a d o , contra a idéia de um t e m p o h o m o g ê n e o
e vazio, p r e e n c h i d o pela "obstinada fé no p r o g r e s s o " do evo-
lucionismo e da filosofia da história, m a s t a m b é m , por outro,
contra aquela n e u t r a l i z a ç ã o de t o d o s os critérios q u e o h i s -
t o r i c i s m o opera q u a n d o encerra a história em um m u s e u e
desfia "entre os d e d o s os a c o n t e c i m e n t o s , c o m o as contas de
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um r o s á r i o " . O m o d e l o é Robespierre, que, citando a R o m a
antiga, invocou um p a s s a d o correspondente, c a r r e g a d o de
24. BENJAMIN, W. " Ü b e r den Begriff der Geschichte". In: Ces. Schriften,
vol. I, 2, p. 7 0 1 . Trad., " S o b r e o conceito da história". In: Obras escolhidas.
São Paulo, Brasiliense, vol. I, p. 230.
2 5 . Ibid., p. 7 0 4 ; trad., p. 232.
18 JÜRGEN HABERMAS
Excurso sobre
as teses de filosofia da história de Benjamin
N ã o é fácil classificar a c o n s c i ê n c i a do t e m p o e x p r e s -
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sa nas teses b e n j a m i n i a n a s de filosofia da h i s t ó r i a . Incon-
fundíveis são as experiências surrealistas e os motivos da
mística j u d a i c a q u e e s t a b e l e c e m u m a peculiar aliança c o m
o conceito de " t e m p o - p r e s e n t e " . Dessas d u a s fontes se ali-
menta aquela idéia de que o instante autêntico de um presen-
te inovador interrompe o continuum da história e se desprende
de seu c u r s o h o m o g ê n e o . Tal c o m o o c o r r e na u n i f i c a ç ã o
mística c o m a c h e g a d a do M e s s i a s , a i l u m i n a ç ã o profana do
c h o q u e força a u m a s u s p e n s ã o , a u m a cristalização do a c o n -
tecer m o m e n t â n e o . Para B e n j a m i n n ã o se trata a p e n a s da
renovação enfática de u m a consciência para a qual " c a d a se-
g u n d o é a p o r t a estreita pela qual podia penetrar o M e s s i a s "
(tese 18). Pelo contrário, B e n j a m i n inverte a o r i e n t a ç ã o ra-
dical para o futuro, que em geral caracteriza a época m o d e r -
I
O DISCURSO FJL O SÓ FICO DA MODERNIDA DE' 2 1
III
of
Na m o d e r n i d a d e , p o r t a n t o , a vida religiosa, o E s t a d o e
a s o c i e d a d e , assim c o m o a ciência, a m o r a l e a arte transfor-
41. Ibiil.
42. H., vol. VII, p. 204.
43. H., vol. XIII, p. 9 5 .
44. H., vol. XIII, p. 94.
28 JURGEN HABERMAS
IV
K a n t e x p r e s s a o m u n d o m o d e r n o e m u m edifício d e
p e n s a m e n t o s . De fato, isto significa apenas que na filosofia
kantiana os traços essenciais da é p o c a se refletem c o m o em
um espelho, s e m q u e Kant tivesse conceitifado a m o d e r n i -
d a d e e n q u a n t o tal. S ó m e d i a n t e u m a visão retrospectiva H e -
gel p o d e e n t e n d e r a filosofia de K a n t c o m o auto-interpreta-
ção decisiva da m o d e r n i d a d e . Hegel visa conhecer t a m b é m o
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lado de si ou se p ô s ao lado d e l a " . O r e b a i x a m e n t o da reli-
gião c o n d u z a u m a d i s s o c i a ç ã o entre fé e saber q u e o Ilu-
m i n i s m o não é c a p a z de superar por m e i o de suas p r ó p r i a s
forças. Por isso a p a r e c e na Fenomenológia do espirito s o b
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0 título de m u n d o do espírito a l i e n a d o de s i : " Q u a n t o mais
p r o g r i d e a f o r m a ç ã o , m a i s diverso é o d e s e n v o l v i m e n t o das
manifestações vitais em que a cisão p o d e se entrelaçar, m a i o r
é o p o d e r da cisão ••• è m a i s i n s i g n i f i c a n t e s e e s t r a n h o s ao
t o d o da f o r m a ç ã o são" os esforços da vida (outrora a cargo
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d a religião) para s e r e p r o d u z i r e m h a r m o n i a . "
E s s a frase p r o v é m de um escrito p o l ê m i c o contra
Reinhold, o c h a m a d o Differenzschrift, de 1801, em que H e g e l
c o n c e b e a h a r m o n i a d i l a c e r a d a da vida c o m o s e n d o o desa-
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fio p r á t i c o e a n e c e s s i d a d e da f i l o s o f i a . A circunstância
de que a c o n s c i ê n c i a do t e m p o se d e s t a c o u da t o t a l i d a d e e o
espírito se alienou de seu si constitui p a r a ele j u s t a m e n t e
u m p r e s s u p o s t o d o filosofar c o n t e m p o r â n e o . Outro p r e s s u -
p o s t o n e c e s s á r i o s o b r e o qual a filosofia p o d e e m p r e e n d e r
sua tarefa é, para H e g e l , o conceito de absoluto, t o m a d o de
e m p r é s t i m o i n i c i a l m e n t e de Schelling. C o m ele, a filosofia
p o d e a s s e g u r a r de a n t e m ã o a m e t a de apresentar a razão c o -
mo o p o d e r unificador. A razão deve c e r t a m e n t e s u p e r a r o
estado de cisão em q u e o princípio da subjetividade arre-
m e s s a r a n ã o só a p r ó p r i a razão imís* t a m b é m "o s i s t e m a in-
teiro das relações vitais". C o m sua crítica, dirigida diretamen-
4 7 . H „ vol. II, p. 2 3 .
4 8 . H., vol. III, p p . 3 6 2 ss.
4 9 . H „ vol. II, p. 2 2 .
50. " Q u a n d o o p o d e r de unificação desaparece da vida do h o m e m , e as
antíteses p e r d e m sua relação vital e reciprocidade e g a n h a m independência,
origina-se a necessidade da filosofia. Até aqui esta necessidade foi u m a con-
tingência; p o r é m , sob a cisão dada, é a tentativa necessária de superar a oposi-
ção entre subjetividade e objetividade fixas e de conceber como um devir o
ser-que-deveio do m u n d o intelectual e r e a l " (H., vol. II, p. 22).
32 JÜRGEN HABERMAS
i
te aos sistemas filosóficos de K a n t e Fichte, H e g e l quer, ao
m e s m o t e m p o , e n c o n t r a r a a u t o c o m p r e e n s ã o da m o d e r n i d a -
de q u e neles se e x p r i m e . Ao criticar as o p o s i ç õ e s filosóficas
entre natureza e espírito, sensibilidade e entendimento, enten-
d mejito e razão, razão prática e razão teórica, j u í z o e imagi-
n a ç ã o , eu e não-eu, finito e infinito, saber e fé, H e g e l p r e -
t e n d e responder à crise que está na cisão; da p r ó p r i a vida. De
o u t r o m o d o , a crítica filosófica não se p o d e r i a p r o p o r a sa-
tisfação da necessidade que a suscitou objetivamente. A críti-
ca ao idealismo subjetivo é, ao m e s m o , t e m p o , a crítica de
u m a m o d e r n i d a d e que só por esse c a m i n h o p o d e se certificar
do seu conceito e, c o m isso, estabilizar-se sobre si m e s m a .
Para isso, a crítica n ã o p o d e n e m deve se servir de outro ins-
t r u m e n t o senão d a q u e l a reflexão na qual r e c o n h e c e a m a i s
1
pura expressão do princípio dos novos tempos* . Sé a moder-
n i d a d e deve se fundar por seus p r ó p r i o s m e i o s , e n t ã o Hegel
tem de desenvolver o conceito crítico de m o d e r n i d a d e , par-
t i n d o de u m a dialética i m a n e n t e ao próprio princípio do es-
clarecimento.
Veremos comoJHegel executa esse p r o g r a m a e, com isso,
e n r e d a - s e em um dilema. U m a vez efetuada a dialética do
e s c l a r e c i m e n t o , o i m p u l s o para a crítica do t e m p o presente
se esgotará, i m p u l s o que, entretanto, a c o l o c o u em m o v i -
m e n t o . De início, é p r e c i s o m o s t r a r o q u e se oculta naquela
" a n t e c â m a r a d a filosofia", e m q u e H e g e l a c o m o d a " o p r e s -
s u p o s t o do a b s o l u t o " . Os m o t i v o s da filosofia da unificação
r e m o n t a m às e x p e r i ê n c i a s de crise do j o v e m Hegel. Elas
estão atrás da c o n v i c ç ã o de que a r a z ã o p o d e ser convocada,
e n q u a n t o puder reconciliador, contra as positividades da é p o -
r
c a dilacerada. No e n t a n t o , a versão m i t o - p o é t i c a de uma re-
c o n c i l i a ç ã o d a m o d e r n i d a d e , que H e g e l p a r t i l h a inicialmen-