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COLEÇÃO EDUCAÇÃO PÓS-CRíTICA


Coordenadores: Tomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili Tomaz Tadeu da Silva (org.)
Stuart Hall
- Gênero, sexualidade e educação
Guacira Lopes Louro Kathryn Woodward
- Liberdades reguladas - A pedagogia construtivista
e outras formas de governo do eu
Tomaz Tadeu da Silva (org.)
~ Imagens do outro
JW Jorge Larrosa e Nuria Pérez de Lara
- Afalsificação do consenso - Simulacro e imposição
na reforma educacional do neoliberalismo
Pablo Gentili .
- Utopias provisórias - As pedagogias críticas num IDENTIDADE E
cenário pós-colonial
Peter McLaren
- Identidade e diferença - A perspectiva dos Estudos Culturais
DIFEFlÉNÇA
Tomaz Tadeu da Silva (org.)
- Pedagogias críticas e subjetivação - Uma perspectiva foucaultiana
A perspectiva dos Estudos Culturais
Maria Manuela Alves Garcia

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Traduções: Tomaz Tadeu da Silva


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silva, Tornaz Tadeu da


Identidade e di fcrcnça : a perspectiva dos estudos culturais / Tomaz 2" Edição
Tadeu da Silva (org.). Stuart Ilall, Kathryn Woodward. - Petrópolis, RJ :
Vozes, 2000.
SBD-FFLCH-USP
ISBN 85.326.2413-8
1111111111111111111111111111111111111111
I. Diferenças individuais 2. Identidade I. Hall, StlJa11.Il. Woodward, 241224
Kathryn. III. Título.

00-3345

Índices para catálogo sistemático:


CDD-302
lb
Y
EDITORA
VOZES
I: Diferença e identidade: Sociologia 302
2. Identidade e diferença: Sociologia 302 Petrópalis
2003
2:
_~ produção social da identidade
e da diferença
Tomaz Tadeu da Silva

As questões do multiculturalismo e da diferença toma-


ram-se, nos últimos anos, centrais na teoria educacional crí-
tica e até mesmo nas pedagogias oficiais. Mesmo que trata-
das de forma marginal, como "temas transversais", essas
questões são reconhecidas, inclusive pelo oficialismo, como
legítimas questões de conhecimento. O que causa estranhe-
za nessas discussões é, entretanto, a ausência de uma teoria
da identidade e da diferença.
Em geral, o chamado "multiculturalismo" apóia-se em
um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para
com a diversidade e a diferença. É particularmenteproble-
mática, nessas perspectivas, a idéia de diversidade. Parece
difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a
existência da diversidade possa servir de base para uma
pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da
identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a
diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, crista-
lizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos
da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em
geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente re-
comendada é de respeito e tolerância para com a diversida-
de e a diferença. Mas será que as questões da identidade e
da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo:
essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma
pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes

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de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade que estou fazendo referência a uma ídentídadc que se es-
e da diferença? Quais as implicações políticas de concei- gota em si mesma. "Sou brasileiro" - ponto. Entretanto, eu
tos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres
O que está em jogo na identidade? Como se configuraria . humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário
uma pedagogia e um currículo que estivessem centrados totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhas-
não na diversidade, mas na diferença, concebida como sem a mesma identidade, as afirmações de identidade não
processo, uma pedagogia e um currículo que não se limi- fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre
tassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que com nossa identidade de "humanos". É apenas em circuns-
buscassem problematizá-las? É para questões como essas tâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar que
que se volta o presente ensaio. "somos humanos".
A afirmação "sou brasileiro", na verdade, é parte de uma
Identidade e diferença: aquilo que é e aquilo que extensa cadeia de "negações", de expressões negativas de
não é identidade, de diferenças. Por trás da afirmação "sou brasi-
Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir leiro" deve-ser ler: "não sou argentino", "não sou chinês",
"identidade". A identidade é simplesmente aquilo que se é: "não sou japonês" e assim por diante, numa cadeia, neste
"sou brasileiro", "sou negro", "sou heterossexual", "sou jo- caso, quase interminável. Admitamos: ficaria muito compli-
vem", "sou homem". A identidade assim concebida parece cado pronunciar todas essas frases negativas cada vez que
ser uma positividade ("aquilo que sou"), uma característica eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade.
independente, um "fato" autônomo. Nessa perspectiva, a A gramática nos permite a simplificação de simplesmente
identidade só tem como referência a si própria: ela é auto- dizer "sou brasileiro". Como ocorre em outros casos, a gra-
contida e auto-suficiente. mática ajuda, mas também esconde.

Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fa-
concebida como uma entidade independente. Apenas, nes- zem sentido se compreendidas em sua relação com as afir-
te caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que mações sobre a identidade. Dizer que "ela é chinesa" significa
o outro é: "ela é italiana", "ela é branca", "ela é homosse- dizer que "ela não é argentina", "ela não é japonesa" etc.,
xual", "ela é velha", "ela é mulher". Da mesma forma que a incluindo a afirmação de que "ela não é brasileira", isto é, que
identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida ela não é o que eu sou. As afírmações sobre diferença também
como auto-referenciada, como algo que remete a si própria. dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações
A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe. negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade
depende da diferença, a diferença depende da identidade.
É fácil compreender, entretanto, que identidade e dife-
Identidade e diferença são, pois, inseparáveís.
rença estão em uma relação de estreita dependência. A for-
ma afirmativa como expressamos a identidade tende a es- Em geral, consideramos a diferença como um produto
conder essa relação. Quando digo "sou brasileiro" parece derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a
referência, é o pon to original relativamente ao qual se define

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a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que so- a identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas
mos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avalia- por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a
mos aquilo que não somos. Por sua vez, na perspectiva que diferença como tais. A definição da identidade brasileira,
venho tentando desenvolver, identidade e diferença são por exemplo, é o resultado da criação de variados e comple-
vistas como mutuamente determinadas. Numa visão mais xos atos lingüísticos que a definem como sendo diferente de
radical, entretanto, seria possível dizer que, contrariamente outras identidades nacionais.
à primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro Como ato lingüístico, a identidade e a diferença estão
lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não sujeitas a certas propriedades que caracterizam a linguagem
simplesmente como resultado de um processo, mas como o em geral. Por exemplo, segundo o lingüista suíço Ferdinand
processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a de Saussure, a linguagem é, fundamentalmente, um sistema.
diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produ- de diferenças. Nós já havíamos encontrado esta idéia quan~
zidas. Na origem estaria a diferença - compreendida, agora, do falamos da identidade e da diferença como elementos
como ato ou processo de diferenciação. É precisamente essa que só têm sentido no interior de uma cadeia de diferencia-
noção que está no centro da conceituação lingüística de ção lingüística ("ser isto" significa "não ser isto" e "não ser
diferença, como veremos adiante. . aquilo" ~ "não ser mais aquilo" e assim por diante).
De acordo com Saussure, os elementos - os signos - que
Identidade e diferença: criaturas da linguagem
constituem uma língua não têm qualquer valor absoluto, não
Além de serem interdependentes, identidade e diferen- fazem sentido se considerados isoladamente. Se considera-
ça partilham uma importante característica: elas são o resul- mos apenas o aspecto material de um signo, seu aspecto
tado de atos de criação lingüística. Dizer que são o resultado gráfico ou fonético (o sinal gráfico "vaca", por exemplo, ou
de atos de criação significa dizer que não são "elementos" seu equivalente fonético), não há nele nada intrínseco que
da natureza, que não são essências, que não são coisas que remeta àquela coisa que reconhecemos como sendo uma
estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou vaca - ele poderia, de forma igualmente arbitrária, remeter
descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a a um outro objeto como, por. exemplo, uma faca. Ele só
diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são adquire valor - ou sentido - numa cadeia infinita de outras
criaturas do mundo natural ou de um mundo transcenden- marcas gráficas ou fonéticas que são diferentes dele. O
tal, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fa- mesmo ocorre se consideramos o significado que constitui
bricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A um determinado signo, isto é, se consideramos seu aspecto
identidade e a diferença são criações sociais e culturais. conceitual. O conceito de "vaca" só faz sentido numa cadeia
Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o infinita de conceitos que não são "vaca". Tal como ocorre
resultado de atos de criação lingüística significa dizer que com o conceito "sou brasileiro", a palavra "vaca" é apenas
elas são criadas por meio de atos de linguagem. Isto parece uma maneira conveniente e abreviada de dizer "isto não é
uma obviedade. Mas como tendemos a tomá-Ias como da- porco", "não é árvore", "não é casa" e assim por diante. Em
das, como "fatos da vida", com freqüência esquecemos que outras palavras, a língua não passa de um sistema de dife-

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renças. Reencontramos, aqui, em contraste com a idéia de sença". Essa "ilusão" é necessária para que o signo funci~ne
diferença como produto, a noção de diferença como a ope- como tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra COIsa.
ração ou o processo básico de funcionamento da língua e, Embora nunca plenamente realizada, a promessa da pre-
por extensão, de instituições culturais e sociais como a iden- sença é. parte integrante da idéia de signo. Em outras
tidade, por exemplo. palavras, podemos dizer, com Derrida, que a plena pres~nça
(da "coisa", do conceito) no signo é indefinidamente ad~ada.
É também a impossibilidade dessa presença que obriga o
Mas a linguagem vacila ...
signo a depender de um processo de dif~renciação, de
A identidade e a diferença não podem ser compreendi- diferença, como vimos anteriormente. Dernda acrescenta
das, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adqui- a isso, entretanto, a idéia de traço: o signo carrega sempre
rem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também
dos sistemas simbólicos que a compõem. Dizer isso não o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente. da
significa, entretanto, dizer que elas são determinadas, de diferença. Isso significa que nenhum signo pode ser SIm-
uma vez por todas, pelos sistemas discursivos e simbóli- plesmente reduzido a si mesmo, ou seja, à identidade. Se
cos que lhes dão definição. Ocorre que a linguagem, quisermos retomar o exemplo da id~ntidade .e ~a ~iferen~a
entendida aqui de forma mais geral como sistema de cultural, a declaração de identidade sou brasileiro , ou seja,
significação, é, ela própria, uma estrutura instável. É pre- a identidade brasileira, carrega, contém em si mesma, o
cisamente isso que teóricos pós-estruturalistas como Jac- traço do outro, da diferença - "não sou italiano", "não sou
ques Derrida vêm tentando dizer nos últimos anos. A lin- chinês" etc. A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o
guagem vacila. Ou, nas palavras do lingüista Edward Sapir traço da outridade (ou da diferença). .
(1921), "todas as gramáticas vazam". .
O exemplo da consulta ao dicionário talvez ajude a
Essa indeterminação fatal da linguagem decorre de uma compreender melhor as questões da presença e da diferença
característica fundamental do signo. O signo é um sinal, em Derrida. Quando consultamos uma palavra no dicioná-
uma marca, um traço que está no lugar de uma outra coisa, rio o dicionário nos fornece uma definição ou um sinônimo
a qual pode ser um objeto concreto (o objeto "gato"), um daquela palavra. Em nenhum dos casos, o dicionário nos
conceito ligado a um objeto concreto (o conceito de "gato") apresenta a "coisa" mesma ou o "conceito?' mesmo. A defi-
ou um conceito abstrato ("amor"). O signo não coincide com nição do dicionário simplesmente nos remete para ,?u:ra~
a coisa ou o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida, palavras, ou seja, para outros signos. A presença da COIsa
poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja, mesma ou do conceito "mesmo" é indefinidamente adiada:
a coisa ou o conceito não estilo presentes no signo. ela só existe como traço de uma presença que nunca se
"Ias ;\ nul urczn da lingllagclI\ 0 tal quc n.iopodemos concretiza. Além disso, na impossibilidade da presença, um
deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto determinado signo só é o que é porque ele não é um outro,
é, de ver no signo a presença do referente (a "coisa") ou do nem aquele outro etc., ou seja, sua existência é marcada
conceito. É a isso que Derrida chama de "metafísica da pre- unicamente pela diferença que sobrevive em cada signo
como traço, como fantasma e assombração, se podemos assim

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dizer. Em suma, o signo é caracterizado pelo cliferimento ou A identidade e a diferença: o poder de definir
adiamento (da presença) e pela diferença (relativamente a Já sabemos que a identidade e a diferença são o resultado
outros signos), duas características que Derrida sintetiza no de um processo de produção simbólica e díscursíva, O pro-
conceito de différance. cesso de adiamento e diferenciação lingüísticos por meio do
Toda essa conversa sobre presença, adiamento e dife- qual elas são produzidas está longe, entretanto, de ser
rença serve para mostrar que se é verdade que somos, de . simétrico. A identidade, tal como a diferença, é uma relação
certa forma, governados pela estrutura da linguagem, não social. Isso significa que sua definição - discursiva e lingüís=
podemos dizer, por outro lado, que se trate exatamente tica - está sujeita a vetores de força, a relações de poder.
de uma estrutura muito segura. Somos dependentes, nes- Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas
te caso, de uma estrutura que balança. O adiamento in- não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo
definido do significado e sua dependência de uma ope- sem hierarquias; elas são disputadas.
ração de diferença significa que o processo ele significa-
Não se trata, entretanto, apenas do fato de que a defini-
ção é fundamentalmente indeterminado, sempre incerto
ção da identidade e da diferença seja objeto de disputa entre
e vacilante. Ansiamos pela presença - do significado, do
referente (a coisa à qual a linguagem se refere). Mas na grupos sociais assimetricamente situados relativamente ao
medida em que não pode, nunca, nos fornecer essa desejada poder. Na disputa pela identidade está envolvida uma dis-
presença, a linguagem é caracterizada pela indeterminação puta mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais
e pela instabilidade. da sociedade. A afirmação da identidade e a enuncíação da
diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
Essa característica da linguagem tem conseqüências
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado
importantes para a questão da diferença e da identidade
aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em
culturais. Na medida em que são definidas, em parte, por
estreita conexão com relações de poder. O poder de definir
meio da linguagem, a identidade e a diferença não podem
a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado
deixar de ser marcadas, também, pela indeterminação e pela
instabilidade. Voltemos, uma vez mais, ao nosso exemplo da das relações mais amplas de poder. A identidade e a dife-
identidade brasileira. A identidade "ser brasileiro" não rença não são, nunca, inocentes.
pode, como vimos, ser compreendida fora de um processo Podemos dizer que onde existe diferenciação - ou seja,
de produção simbólica e discursiva, em que o "ser brasilei- identidade e diferença - aí está presente o poder. A diferen-
ro" não tem nenhum referente natural ou fixo, nâõ é um ciação é o processo central pelo qual a identidade e a di-
absoluto que exista anteriormente à linguagem e fora dela. ferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de outros
Ela só tem sentido em relação com uma cadeia de significa- processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela
ção formada por outras identidades nacionais que, por sua guardam uma estreita relação. São outras tantas marcas da
vez, tampouco são fixas, naturais ou predeterminadas. Em presença do poder: incluir/excluir ("estes pertencem, aque-
suma, a identidade e a diferença são tão indeterminadas e les não"); demarcar fronteiras ("nós" e "eles"); classificar
instáveis quanto a linguagem da qual dependem. . ("bons e maus"; "puros e impuros"; "desenvolvidos e primi-

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tivos": "racionais e irracionais"); normalizar ("nós somos rida analisou detalhadamente esse processo. Para ele, as
normais; eles são anormais"). oposições binárias não expressam uma simples divisão
do mundo em duas classes simétricas: em uma oposição
A afirmação da identidade e a marcação da cfifcrença
binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo
implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir.
um, valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga
Como vimos, dizer "o que somos" significa também dizer
negativa. "Nós" e "eles", por exemplo, constitui uma
"o que não somos". A identidade e a diferença se traduzem,
típica oposição binária: não é preciso dizer qual termo é,
assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem
aqui, privilegiado. As relações de identidade e diferença
não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluí-
ordenam-se, todas, em torno de oposições binárias: mas-
do. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, sig-
culino/feminino, branco/negro, heterossexual/homosse-
nifica fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica
xual. Questionar a identidade e a diferença como relações
fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação
de poder significa problematizar os binarismos em torno dos
entre "nós" e "eles". Essa demarcação de fronteiras, essa
quais elas se organizam.
separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam
e reafirmam relações de poder. "Nós" e "eles" não são, neste Fixar uma determinada identidade como a norma é uma
caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes "nós" e das formas privilegiadas de hierarquização das identidades
"eles" não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas e das diferenças. A normalização é um dos processos mais
evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identi-
marcadas por relações dc poder. dade e ela diferença. Normalizar significa eleger - arbitra-
riamente - uma identidade específica como o parâmetro em
Dividir o mundo social entre "nós" e "eles" significa relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierar-
classificar. O processo de classificação é central na vida quizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade
social. Ele pode ser entendido como um ato de significação todas as características positivas possíveis, em relação às
pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos, quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma
em classes. A identidade e a diferença estão estreitamente negativa. A identidade normal é "natural", desejável, única.
relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é
utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a vista como uma identidade, mas simplesmente como a iden-
partir do ponto de vista da identidade. Isto é, as classes nas tidad~. Paradoxalmente, são as outras identidades que são
quais o mundo social é dividido não são simples agrupamen- marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a su-
tos simétricos. Dividir e classificar significa, neste caso, premacia branca, por exemplo, "ser branco" não é conside-
também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar sig- rado uma identidade étnica ou racial. Num mundo gover-
nifica também deter o privilégio de atribuir diferentes va- nado pela hegemonia cultural estadunidense, "étnica" é a
'. lores aos grupos assim classificados. música ou a comida dos outros países. É a sexualidade
A mais importante forma de classificação é aquela que homossexual que é "sexualizada", não a heterossexual. A
se estrutura em torno de oposições binárias, isto é, em torno força homogeneizadora da iden tidade normal é diretamente
de duas classes polarizadas. O filósofo francês J acques Der- proporcional à sua ínvisíbilidade.

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N a medida em que é uma operação de diferenciação, de . de gênero (quando se justifica a dominação masculina por
produção de diferença, o anormal é inteiramente constitu- meio de argumentos biológicos, por exemplo), ele é menos
tivo do normal. Assim COmO a definição da identidade de- utilizado nas tentativas de estabelecimento das identidades
pende da diferença, a definição do normal depende da de- nacionais, onde são mais comuns essencialismos culturais.
finição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre No caso das identidades nacionais, é extremamente co-
parte da definição e da constituição do "dentro". A definição mum, por exemplo, o apelo a mitos fundadores. As identi-
daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é dades nacionais funcionam, em grande parte, por meio
inteiramente dependente da definição daquilo que é consi- daquilo que Benedith Anderson chamou de "comunidades
derado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemô- imaginadas". Na medida em que não existe nenhuma "co-
nica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem munidade natural" em torno da qual se possam reunir as
cuja existência ela não faria sentido. Como sabemos desde pessoas que constituem um determinado agrupamento na-
o início, a diferença é parte ativa da formação da identidade. cional, ela precisa ser inventada, imaginada. É necessário
criar laços imaginários que permitam "ligar" pessoas que,
Fixando a identidade sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem
O processo de produção da identidade oscila entre dois nenhum "sentimento" de terem qualquer coisa em comum.
movimentos: de um lado, estão aqueles processos que ten- A língua tem sido um dos elementos centrais desse
dem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os proces- processo - a história da imposição das nações modernas
sos que tendem a subvertê-h e a descstabilizá-ln .. É um coincide, em grande parte, com a história da imposição de
processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos uma língua nacional única e comum. Juntamente com a"
discursivos e lingüísticos nos quais se sustenta a produção língua, é central a construção de símbolos nacionais: hinos,
da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da iden- bandeiras, brasões. Entre esses símbolos, destacam-se os
tidade é para a fixação. Entretanto, tal como ocorre com a chamados "mitos fundadores". Fundamentalmente, um mi-
linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação to fundador remete a um momento crucial do passado em
é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. que algum gesto, algum acontecimento, em geral herói-
A teoria cultural e social pós-estruturalista tem percor- co, épico, monumental, em geral iniciado ou executado
rido os diversos territórios da identidade para tentar descre- por alguma figura "providencial", inaugurou as bases de
ver tanto os processos que tentam fixá-Ia quanto aqueles que uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os
impedem sua fixação. Têm sido analisadas, assim, as identi- fatos assim narrados são "verdadeiros" ou não; O que im-
dades nacionais, as identidades de gênero, as identidades porta é que a narrativa fundadora funciona para dar à
sexuais, as identidades raciais e étnicas. Embora estejam em identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe
funcionamento, nessas diversas dimensões da identidade garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela
cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obede- não teria a mesma e necessária eficácia.
cem a dinâmicas diferentes. Assim, por exemplo, enquanto Os mitos fundadores que tendem a fixar as identidades
o recurso à biologia é evidente na dinâmica da identidade nacionais são, assim, um exemplo importante de essencia-

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lismo cultural. Embora aparentemente baseadas em argu- . mente teóricos; eles são parte integral da dinâmica da pro-
mentos biológicos, as tentativas de fixação da identidade que dução da identidade e da diferença.
apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a
O hibridismo, por exemplo, tem sido analisado, sobre-
inferiorizaçâo das mulheres ou de certos grupos "raciais" ou
tudo, em relação com o processo de produção das identida-
étnicos nalguma suposta característica natural ou biológica não
des nacionais, raciais e étnicas. Na perspectiva da teoria cul-
é simplesmente um erro "científico", mas a demonstração da
tural contemporânea, o híbridismo - a mistura, a conjunção, o
imposição de uma eloqüente grade cultural sobre uma nature-
intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes
za que, em si mesma, é - culturalmente falando - silenciosa.
etnias, entre diferentes raças - coloca em xeque aqueles pro-
As chamadas interpretações biológicas são, antes de serem
cessos que tendem a conceber as identidades como fundamen-
biológicas, interpretações, isto é, elas não são mais.•do que a
talmente separadas, divididas, segregadas. O processo de hi-
imposição de uma matriz de significação sobre uma matéria
brídízação confunde a suposta pureza e insolubilidade dos
que, sem elas, não tem qualquer significado. Todos os essen-
grupos que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais,
cialismos são, assim, culturais. Todos os essencialismos nas-
raciais ou étnicas. A identidade que se forma por meio do
cem do movimento de fixação que caracteriza o processo de
hibridísmo não é mais integralmente nenhuma das identi-
produção da identidade e da diferença.
dades originais, embora guarde traços delas.

Subvertendo e complicando a identidade Não se pode esquecer, entretanto, que a híbrídízação se


dá entre identidades situadas assimetricamente em relação
Mais interessantes, entretanto, são os movimentos que ao poder, Os processos de híbridízação analisados pela teo-
conspiram para complicar e subverter a identidade. A teoria ria cultural contemporânea nascem de relações conflituosas
cultural contemporânea tem destacado alguns desses movi- entre diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles
mentos. Aliás, as metáforas utilizadas para descrevê-Ios
estão ligados a histórias de ocupação, colonização e destrui-
recorrem, quase todas, à própria idéia de movimento, de ção. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridização
viagem, de deslocamento: diáspora, cruzamento de frontei-
forçada. O que a teoria cultural ressalta é que, ao confundir
ras, nomadismo. A figura do flaneur, descrita por Baudelaire
a estabilidade e a fixação da identidade, a hibridização, de
e retomada por Benjamin, é constantemente citada como
alguma forma, também afeta o poder. O "terceiro espaço"
exemplar de identidade móvel. Embora de forma indireta,
(Bhabha, 1996) que resulta da hibridização não é determi-
as metáforas da híbridízação, da miscigenação, do sincretis-
nado, nunca, unilateralmente, pela identidade hegemônica:
mo e do travestis mo também aludem a alguma espécie de
ele introduz uma diferença que constitui a possibilidade de
mobilidade entre os diferentes territórios da identidade. As
seu questionamento.
metáforas que buscam enfatizar os processos que compli-
cam e subvertem a identidade querem enfatizar - em con- O hibridismo está ligado aos movimentos demográficos
traste com o processo que tenta fíxá-las - aquilo que trabalha que permitem o contato entre diferentes identidades: as
para contrapor-se à tendência a essencializá-Ias. De acordo díásporas, os deslocamentos nômades, as viagens, os cruza-
com essas perspectivas, esses processos não são simples- mentos de fronteiras. Na perspectiva da teoria cultural con-
temporânea, esses movimentos podem ser literais, como na

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diáspora forçada dos povos africanos por meio da escraviza- Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a
ção, por exemplo, ou podem ser simplesmente metafóricos. instabilidade da identidade, é nas próprias linhas de fron-
"Cruzar fronteiras", por exemplo, pode significar simples- teira, nos limiares, nos interstícios, que sua precariedade se
mente mover-se livremente entre os territórios simbólicos torna mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a chegada,
( de diferentes identidades. "Cruzar fronteiras" significa não é cruzar a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que
respeitar os sinais que demarcam - "artificialmente" - os é o acontecimento crítico. Neste caso, é a teorização cultural
\ limites entre os territórios das diferentes identidades. contemporânea sobre gênero e sexualidade que ganha cen-
Mas é no movimento literal, concreto, de grupos em tralidade. Ao chamar a atenção para o caráter cultural e
movimento, por obrigação ou por opção, ocasionalmente ou construído do gênero e da sexualidade, a teoria feminista e
constantemente, que a teoria cultural contemporânea vai a teoria queer contribuem, de forma decisiva, para o ques-
buscar inspiração para teorizar sobre os processos que ten- tionamento das oposições binárias - masculino/feminino,
dem a desestabilizar e a subverter a tendência da identidade heterossexuallhomossexual- nas quais se baseia o processo
à fixação. Diásporas, como a dos negros africanos escraviza- de fixação das identidades de gênero e das identidades sexuais.
dos, por exemplo, ao colocar em contato diferentes culturas A possibilidade de "cruzar fronteiras" e de "estar na fronteira",
e ao favorecer processos de miscigenação, colocam em mo- de ter uma identidade ambígua, indefinida, é uma demonstra-
vimento processos de híbridização, sincretismo e criouliza- ção do caráter "artificialmente" imposto das identidades fixas.
ção cultural que, forçosamente, transformam, desestabílí- O "cruzamento de fronteiras" e o cultivo propositado de iden-
zam e deslocam as identidades originais. Da mesma forma, tidades ambíguas é, entretanto, ao mesmo tempo uma podero-
movimentos migratórios em geral, como os que, nas últimas sa estratégia política de questionamento das operações de
décadas, por exemplo, deslocaram grandes contingentes fixação da identidade. A evidente artifícialidade da identi-
populacionais das antigas colônias para as antigas metrópo- dade das pessoas travestidas e das que se apresentam como
les, favorecem processos que afetam tanto as identidades drag-queens, por exemplo, denuncia a - menos evidente-
subordinadas quanto as hegemônicas. Finalmente, é a viagem artíficialídade de todas as identidades.
em geral que é tomada como metáfora do caráter necessaria-
mente móvel da identidade. Embora menos traumática que a Identidade e diferença: elas têm que ser
diáspora ou a migração forçada, a viagem obríga quem viaja a representadas
sentir-se "estrangeiro", posicionando-o, ainda que temperaria-
Já sabemos que a identidade e a diferença estão estrei-
mente, como o "outro", A viagem proporciona a experiência do tamente ligadas a sistemas de significação. A identidade é
"não sentir-se em casa" que, na perspectiva da teoria cultural um significado - cultural e socialmente atribuído. A teoria
contemporânea, caracteriza, na verdade, toda identidade cul-
cultural recente expressa essa mesma idéia por meio do
tural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de
conceito de representação. Para a teoria cultural contempo-
forma limitada, as delícias - e as inseguranças - da instabi-
rânea, a identidade e a diferença estão estreitamente asso-
lidade e da precariedade da identidade.
ciadas a sistemas de representação ..

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o conceito de representação tem uma longa história, o sentação mental ou interior. A representação é, aqui, sempre
que lhe confere uma multiplicidade de significados. Na marca ou traço visível, exterior.
história da filosofia ocidental, a idéia de representação está Em segundo lugar, na perspectiva pós-estruturalista, o
ligada à busca de formas apropriadas de tomar o "real" presen- conceito de representação incorpora todas as características
te - de apreendê-lo o mais fielmente possível por meio de de indeterminação, ambigüidade-e instabilidade atribuídas
sistemas de significação. Nessahistória, a representação tem-se à linguagem. Isto significa questionar quaisquer das preten- .
apresentado em suas duas dimensões - a representação exter- sões miméticas, especulares ou reflexivas atribuídas à re-
na, por meio de sistemas de signos como a pintura, por exem- presentação pela perspectiva clássica. Aqui, a representação
plo, ou a própria linguagem; e a representação interna ou não aloja a presença do "real" ou do significado. A repre-
mental- a representação do "real" na consciência. sentação não é simplesmente um meio transparente de
O pós-estruturalismo e a chamada "filosofia da diferen- expressão de algum suposto referente. Em vez disso, a
ça" erguem-se, em parte, como uma reação à idéia clássica representação é, como qualquer sistema de significação,
de representação. É precisamente por conceber a lingua- uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a repre-
gem - e, por extensão, todo sistema de significação - sentação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário,
como uma estrutura instável e indeterminada que o pós-es- indeterminado e estreitamente ligado a relações de .poder.
truturalisn~o questiona a noção clássica de represen tação. É aqui que a representação se liga à identidade e à
Isso não impediu, entretanto, que teóricos e teóricas ligados diferença. A identidade e a difer~nça são estreitamente
sobretudo aos Estudos Culturais como, por exemplo, Stuart dependentes da representação. E por meio da repre-
HalI, "recuperassem" o conceito de representação, desen- sentação, assim compreendida, que a identidade e a dife-
volvendo-o em conexão com uma teorização sobre a identi- rença adquirem sentido. É por meio da representação que,
dade e a diferença. por assim dizer, a identidade e a diferença passam a existir.
Nesse contexto, a representação é concebida como um Representar significa, neste caso, dizer: "essa é a identida-
sistema de significação, mas descartam-se os pressupostos de", "a identidade é isso".
realistas e miméticos ass~ciados com sua concepção filosó- É também por meio da representação que a identidade
fica clássica. Trata-se de uma representação pós-estrutura- e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o
lista. Isto significa, primeiramente, que se rejeitam, so- poder de representar tem o poder de definir e determinar
bretudo, quaisquer conotações mentalistas ou qualquer as- a identidade. É por isso que a representação ocupa um lugar
sociação com uma suposta interioridade psicológica. No tão central na teorização contemporânea sobre identidade
registro pós-estruturalista, a representação é concebida uni- e nos movimentos sociais ligados à identidade. Questionar
camente em sua dimensão de significante, isto é, como a íden tidade e a diferença significa, nesse contexto, questio-
sistema de signos, como pura marca material. A repre- nar os sistemas de representação que lhe dão suporte e
sentação expressa-se por meio de uma pintura, de uma sustentação. No centro da crítica da identidade e da dife-
fotografia, ele um filme, de um texto, de uma expressão oral.
rença está uma crítica das suas formas de representação.
A representação não é, nessa concepção, nunca, repre-
Não é difícil perceber as implicações pedagógicas e curri-

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culares dessas conexões entre identidade e representação. posições luzem com que algo se efetive, se realize. Austin
A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer chama a essas proposições de "performativas". São exem-
oportunidades para que as crianças e os/as jovens desen- plos típicos de proposições performativas: "Eu vos declaro
volvessem capacidades de crítica e questionamento dos marido e mulher", "Prometo que te pagarei no fim do mês",
sistemas e das formas dominantes de representação da iden- "Declaro inaugurado este monumento".
tidade e da diferença. Em seu sentido estrito, só podem ser consideradas per-
formativas aquelas proposições cuja enunciaçâo é absoluta-
Identidade e diferença como performatividade mente necessária para a consecução do resultado que anun-
Remeter a identidade e a diferença aos processos dís- ciam. Entretanto, muitas sentenças descritivas acabam
cursivos e lingüísticos que as produzem pode significar, funcionando como performativas. Assim, por exemplo, uma
entretanto, outra vez, simplesmente fixá-Ias, se nos limitar- sentença como "João é pouco inteligente", embora pareça
mos a compreender a representação de uma forma pura- ser simplesmente descritiva, pode funcionar - em um sen-
mente descritiva. Será o conceito de performatividade, tido mais amplo - como performativa, na medida em que
desenvolvido, neste contexto, sobretudo pela teórica Judith sua repetida enunciação pode acabar produzindo o "fato"
Butler (1999), que nos permitirá contornar esse problema. que supostamente apenas deveria descrevê-Ia. É precisa-
O conceito de performatividade desloca a ênfase na identi- mente a partir desse sentido ampliado de "performativida-
dade como descrição, como aquilo que é - uma ênfase que de" que a teórica Judith Butler analisa a produção da iden-
é, de certa forma, mantida pelo conceito de representação tidade como uma questão de performatividade.
- para a idéia de "tornar-se", para uma concepção da iden- Em geral, ao dizer algo sobre certas características íden-
tidade como movimento e transformação. titárias de algum grupo cultural, achamos que estamos sim-
A formulação inicial do conceito de "performativídade" plesmente descrevendo uma situação existente, um "fato"
deve-se a J.A. Austin (1998). Segundo Austin, contrariamen- do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que di-
te à visão que geralmente se tem, alinguagem não se limita zemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüís-
a proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma ticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou
situação ou um estado de coisas. Assim, se nos pedirem para reforçar a identidade que supostamente apenas estamos
dar um exemplo de uma proposição típica, provavelmente descrevendo. Assim, por exemplo, quando utilizamos
. nos sairíamos com algo como "O livro está sobre a mesa". uma palavra racista como "negrão" para nos referir a uma,
Trata-se, tipicamente, de uma proposição que Austin chama pessoa negra do sexo masculino, não estamos simples-
de "constatativa" ou "descritiva". Ela simplesmente descre- mente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa.
ve uma situação. Mas a linguagem tem pelo menos uma Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lin-
outra categoria de proposições que não se ajustam a essa güístico mais amplo que contribui para reforçar a negativi-
definição: são aquelas proposições que não se limitam a da de atribuída à identidade "negra".
descrever um estado de coisas, mas que fazem com que Esse exemplo serve também para ressaltar outro ele-
alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas pro- mento importante do aspecto performativo da produção da

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identidade. A eficácia produtiva dos enunciados performa- sempre retirada de um determinado contexto e inserida em
tivos ligados à identidade depende de sua incessante repe- um contexto diferente.
tição. Em termos da produção da identidade, a
É exatamente essa "citacionalidade" da linguagem que
ocorrência de uma única sentença desse tipo não teria
se combinacom seu caráter performativo para fazê-Ia tra-
nenhum efeito importante. É de sua repetição e, sobre-
balhar no processo de produção da identidade. Quando
tudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a força
utilizo a expressão "negrão" para me referir a um homem
que um ato lingüístico desse tipo tem no processo de
negro, não estou simplesmente manifestando uma opinião
produção da identidade. É aqui que entra outra noção
que tem origem plena e exclusiva em minh~ in/tenç~o, em
semiótica importante, uma noção que foi especialmente
minha consciência ou minha mente .. Ela nao e a simples
ressaltada por Jacques Derrida. Uma característica es-
expressão singular e única de minha soberana e livre 0r:.i-
sencial do signo é que ele seja repetível. Isto quer dizer
niâo. Em um certo sentido, estou efetuando uma operaçao
que quando encontro um signo como "vaca", eu devo ser
de "recorte e colagem". Recorte: retiro a expressão do
capaz de reconhecê-Io como se referindo, de forma relati-
contexto social mais amplo em que ela foi tantas vezes
vamente estável, sempre, à mesma coisa, apesar de variações
enunciada. Colagem: insiro-a no novo contexto, no contexto
"acidentais" - diferenças de caligrafia, por exemplo. Se as
em que ela reaparece sob o disfarce de minha exclusiva
palavras ou os signos que utilizamos para nos referir às
opinião, como o resultado de minha exclusiva operação
coisas ou aos conceitos tivessem que ser reinventados, a
mental. Na verdade, estou apenas "citando". E essa citação
cada vez e por cada indivíduo - isto é, se não fossem re-
que recoloca em ação o enunciado performativo que reforça
petíveis - já não seriam signos tais como os concebemos.
o aspecto negativo atribuído à identidade negra de nosso
Derrida (1991) estende essa idéia para a escrita, em exemplo. Minha frase é apenas mais uma ocorrência de uma
particular, e, mais geralmente, para a linguagem. Para Der- citação que tem sua origem em um sistema mais amplo de
rida, o que caracteriza a escrita é precisamente o fato de operações de citação, de performatividade e, finalmente, de
que, para funcionar como tal, uma mensagem escrita qual- definição, produção e reforço da identidade cultural.
quer precisa ser reconhecível e legível na ausência de quem
Segundo Judith Butler (1999), a mesma repetíbílídade
a escreveu e, na verdade, até mesmo na ausência de seu
que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam
suposto destinatário. Mais radicalmente, ela é inde-
pendente até mesmo de quaisquer supostas intenções que as identidades existentes pode significar também a possibi-
a pessoa que a escreveu pudesse ter tido no momento em lidade da interrupção das identidades hegemônicas. A repeti-
que o fez. Tudo isso é sintetizado na fórmula de que "a ção pode ser interrompida. A repetição pode ser questionada
escrita é repetível". Segundo Derrída, isso vale para a lin- e contestada. É nessa interrupção que residem as possibilida-
guagem em geral. Ele chama essa característica, essa repe- des de instauração de identidades que não representem =.
tibilidade da escrita e da linguagem, de "cítacionalidade". plesmente a reprodução das relações de poder existentes. E
Nesses termos, o que distingue a linguagem (como uma essa possibilidade de interromper o processo de "recorte e
extensão 'da escrita) é sua citacionalidade: ela pode ser colagem", de efetuar uma parada no processo de "citacionali-
dade" que caracteriza os atos performativos que reforçam

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as diferenças instauradas, que torna possível pensar na pro- identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsis- \
dução de novas e renovadas identidades. tente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas dís- \
cursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
Pedagogia como diferença representação. A identidade tem estreitas conexões com í
relações de poder.
Se prestarmos, pois, atenção à teorização cultural con-
temporânea sobre identidade e diferença, não poderemos Como tudo isso se traduziria em termos de currículo e
abordar o multiculturalismo em educação simplesmente pedagogia? O outro cultural é sempre um problema, pois
como urna questão de tolerância e respeito para com a coloca permanentemente em xeque nossa própria identida-
diversidade cultural. Por mais edifícantes e desejáveis que de. A questão da identidade, da diferença e do outro é um
possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que problema social ao mesmo tempo que é um problema pe-
vejamos a identidade e a diferença como processos de dagógico e curricular. É um problema social porque, em um
produção social, como processos que envolvem relações de mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estra-
poder. Ver a identidade e a diferença como uma questão de nho, com o diferente, é inevitável. É um problema pedagó-
produção significa tratar as relações entre as diferentes gico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens,
culturas não como uma questão de consenso, de diálogo ou em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente
comunicação, mas como uma questão que envolve, funda- interagem com o outro no próprio espaço da escola, mas
mentalmente, relações de poder. A identidade e a diferença também porque a questão do outro e da diferença não pode
não são entidades preexistentes, que estão aí desde sempre deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricu-
ou que passaram a estar a aí a partir de algum momento lar. Mesmo quando explicitamente ignorado e reprimido, a
fundador, elas não são elementos passivos da cultura, mas volta do outro, do diferente, é inevitável, explodindo em
têm que ser constantemente criadas e recriadas. A identi- conflitos, confrontos, hostilidades e até mesmo violência. O
dade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao reprimido tende a voltar - reforçado e multiplicado. E o
mundo social e com disputa e luta em torno dessa atribuição. problema é que esse "outro", numa sociedade em que a
identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada,
Nessa perspectiva, podemos fazer uma síntese, descre-
expressa-se por meio de muitas dimensões. O outro é o ou-
vendo o que a identidade - tudo isso vale, igualmente, para
tro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra
a diferença - não é e o que a identidade é.
sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacio- )
Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é nalidade, o outro é O corpo diferente.---/
um dado ou um fato - seja da natureza, seja da cultura. A
Uma primeira estratégia pedagógica possível, que po-..
identidade não é fixa, estável, coerente, uníficada, perma-
deríamos classificar como "liberal", consistiria em estimular
nente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
e cultivar os bons sentimentos e a boa vontade para com a
acabada, idêntica, transcendentaI. Por outro lado, podemos
chamada "diversidade" cultural. Neste caso, o pressuposto
dizer quy a identidade é uma construção, um efeito, um
processo de produção, uma relação, um ato pcrformativo. A básico é o de que a "natureza" humana tem urna variedade
de formas legítimas de se expressar culturalmente e todas

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devem ser respeitadas ou toleradas - no exercício de uma grupo, exercícios corporais, dramatizações são estratégias
tolerância que pode variar desde um sentimento pateruulis- comuns nesse tipo de abordagem.
ta e superior até uma atitude de sofisticação cosmopolita de Em algum lugar intermediário entre essas duas aborda-
convivência para a qual nada que é humano lhe é "estranho". gens, situa-se a estratégia talvez mais comumente adotada
Pedagogicamente, as crianças e os jovens, nas escolas, se- na rotina pedagógica e curricular das escolas, que consiste
riam estimulados a entrar em contato, sob as mais varia- em apresentar aos estudantes e às estudantes uma visão
das formas, com as mais diversas expressões culturais dos superficial e distante das diferentes culturas. Aqui, o outro
diferentes grupos culturais. Para essa perspectiva, a di- aparece sob a rubrica do curioso e do exótico. Além de não
versidade cultural é boa e expressa, sob a superfície, nos- questionar as relações de poder envolvidas na produção da
sa natureza humana comum. O problema central, aqui, é identidade e da diferença culturais, essa estratégia as refor-
que esta abordagem simplesmente deixa de questionar ça, ao construir o outro por meio das categorias do exotismo
as relações de poder e os processos de diferenciação que,
e da curiosidade. Em geral, a apresentação do outro, nessas
antes que tudo, produzem a identidade e a diferença. Em
abordagens, é sempre o suficientemente distante, tanto no
geral, o resultado é a produção de novas dicotomias, como
espaço quanto no tempo, para não apresentar nenhum risco
a do dominante tolerante e do dominado tolerado ou a da
de confronto e dissonância.
identidade hegemônica mas benevolente e da identidade
subalterna mas "respeitada". Finalmente, gostaria de argumentar em favor de uma
estratégia pedagógica e curricular de abordagem da identi-
Uma segunda estratégia, que poderíamos chamar de
dade e da diferença que levasse em conta precisamente as
"terapêutica", também aceita, liberalmente, que a diversi-
contribuições da teoria cultural recente, sobretudo aquela
dade é "natural" e boa, mas atribui a rejeição da cJHcrença
de inspiração pós-estruturalista. Nessa abordagem, a peda-
e do outro a distúrbios psicológicos. Para essa perspectiva,
gogia e o currículo tratariam a iden tidade e a diferença como
a incapacidade de conviver com a diferença é fruto de
questões de política. Em seu centro, estaria uma discussão
sentimentos de discriminação, de preconceitos, de crenças
da identidade e da diferença como produção. A pergunta
distorcidas e de estereótipos, isto é, de imagens do outro
crucial a guiar o planejamento de um currículo e de uma
que são fundamentalmente errôneas. A estratégia pedagó-
pedagogia da diferença seria: como a identidade e a diferen-
gica correspondente consistiria em "tratar" psicologicamen-
ça são produzidas? Quais são os mecanismos e as Instituições
te essas atitudes inadequadas. Como o tratamen to pre-
que estão ativamente envolvidos na criação da identidade e
conceituoso e discriminatórío do ou tro é um desvio ele
de sua fixação?
conduta, a pedagogia e o currículo deveriam proporcionar
atividades, exercícios e processos de conscíentizaçâo que Para isso é crucíal a adoção de uma teoria que descreva
permitissem que as estudantes e os estudantes mudassem e explique o processo de produção da identidade e da di-
suas atitudes. Para essa abordagem, a discriminação e o ferença. Uma estratégia que simplesmente admita e reco-
preconceito são atitudes psicológicas inapropríadas e de- nheça o fato da diversidade torna-se incapaz de fornecer os
vem receber um tratamento que as corrija. Dinâmica de instrumentos para questionar precisamente os mecanismos
e as instituições que fixam as pessoas em determinadas

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identidades culturais e que as separam por meio da diferen- cidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversi-
ça cultural. Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença, dade é um dado - da natureza ou da cultura. A multiplicidade
é preciso explicar como ela é ativamente produzida. A é um movimento. A diversidade reafirma o idêntico. A multi-
diversidade biológica pode ser um produto da natureza; o plicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com
mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. A diver- o idêntico. Como diz José Luis Pardo:
sidade cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em Respeitar a diferença não pode significar "deixar que o
vez disso, o ponto final de um processo conduzido por outro seja como eu sou" ou "deixar que o outro seja diferente
operações de diferenciação. Uma política pedagógica e cur- de mim tal como eu sou diferente (do outro)", mas deixar que
o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro
ricular da identidade e da diferença tem a obrigação de ir
que não pode ser eu, que eu não posso ser; que não pode ser
além das benevolentes declarações de boa vontade para com um (outro) eu; significa deixar que o outro seja diferente,
a diferença. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença
que permita não simplesmente reconhecer e celebrar a di- entre duas identidades, mas diferença da identidade, deixar
ferença e a identidade, mas questioná-Ias. ser uma outridade que não é outra "relativamente a mim" ou
"relativamente ao mesmo", mas que é absolutamente dife-
Por outro lado, os estudantes e as estudantes deveriam rente, sem relação alguma com a identidade ou com a
ser estimulados, nessa perspectiva, a explorar as possibili- mesmídade (Pardo, 1996, p. 154).
dades de perturbação, transgressão e subversão das identi-
Essas poderiam ser as linhas gerais de um currículo e
dades existentes. De que modo se pode desestabílízá-las,
uma pedagogia da diferença, de um currículo e de uma
denunciando seu caráter construído e sua artíficinlidade?
pedagogia que representassem algum questionamento não
)
Um currículo e uma pedagogia da diferença deveriam ser
apenas à identidade, mas também ao poder ao qual ela está
J capazes de abrir o campo da identidade para as estratégias
estreitamente associada, um currículo e uma pedagogia da
que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade
em xeque: hibridísmo, nomadisrno, travestismo, cruzamen- diferença e da multiplicidade. Em certo sentido, "pedago-
:l to de fronteiras. Estimular, em matéria de identidade, o gia" significa precisamente "diferença": educar significa
D impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez introduzir a cunha da diferença em um mundo que sem ela
f) o consensual e do assegurado, do conhecido e do assenta- se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo
do. Favorecer, enfim, toda experimentação que torne difícil parado, um mundo morto. É nessa possibilidade de abertura
o retorno do eu e do nós ao idêntico. para um outro mundo que podemos pensar na pedagogia
como diferença. Dessa forma, talvez possamos dizer sobre
'- Aproximar - aprendendo, aqui, uma lição ela chamada
a pedagogia aquilo que Maurice B1anchot (1969, p. 115)
"filosofia da diferença" - a diferença do múltiplo e não elo
disse sobre a fala e a palavra: fazer pedagogia significa
diverso. Tal como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre
"procurar acolher o outro como outro e o estrangeiro como
um processo, uma operação, uma ação. A diversidade é
estrangeiro; acolher outrem, pois, em sua írredutível dife-
estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é
um fluxo, é produtiva. A multíplicídade é uma máquina de rença, em sua estrangeiridade infinita, uma estrangeiridade
produzir 'diferenças - diferenças que são irredutíveis à tal que apenas uma descontinuidade essencial pode conser-'-'
identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multipli- var a afirmação que lhe é própria".

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