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Saúde Pública e Saúde Coletiva PDF
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DEBATE DEBATE
campo e núcleo de saberes e práticas
Abstract This paper discusses collective health Resumo O artigo discute o campo e o núcleo
knowledge and practices field and its core based de saberes e de práticas da saúde coletiva a par-
on a dialectics method, beyond positivism and tir de um metodologia dialética, pensando-a
structuralism, to carry out a critical view to- para além do positivismo e do estruturalismo e
wards their trends in assuming a transcendent fazendo uma crítica à sua tendência de assumir
position about the health field. From this posição de transcendência sobre o campo da
analysis on, suggestions for debating are elabo- saúde. A partir dessa análise são elaboradas su-
rated, taking the historical and social elements gestões para debate, relacionadas centralmente
of concrete subjects, in their main relation to com saúde coletiva entendida como construção
what is termed collective health. sociohistórica de sujeitos concretos.
Key words Public Health; Collective Health; Palavras-chave Saúde Pública; Saúde Coleti-
Constructivism va; Construtivismo
1 Departamento de
Medicina Preventiva e
Social – FCM/UNICAMP
gastao@mpc.com.br
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Campos, G. W. S.
lho, 1996) continua sendo ainda uma tarefa crí- se vinculado a um novo paradigma, o da pro-
tica contemporânea, portanto. moção à saúde, imaginando que a incorporação
Nunes (1996) descreveu que o termo Saúde do social à análise dos processos saúde e doen-
Coletiva passou a ser utilizado, no Brasil, em ça criaria práticas distintas, senão antagônicas,
1979, quando um grupo de profissionais, àquelas baseadas na história natural. Um novo
oriundos da saúde pública e da medicina pre- modo de se produzir saúde, que negaria o mo-
ventiva e social procuraram fundar um campo delo clínico e não um modo entre outros não
científico com uma orientação teórica, meto- necessariamente equivalentes, porém úteis, ca-
dológica e política que privilegiava o social co- da uma dentro de seus limites e especificidade.
mo categoria analítica. Agudelo e Nunes (1991), Outro não tem sido o procedimento domi-
ainda que reconhecendo o papel decisivo do nante na medicina, que desautoriza, em princí-
movimento da saúde coletiva no Brasil e em pio, todo o saber e toda a prática sobre saúde,
outros países da América do Sul, na incorpora- produzidos fora de sua própria racionalidade.
ção do social à temática da saúde, não deixa- Ao criticá-lo, com pertinência, a saúde coletiva
ram de apontar que tampouco esta expressão tende a adotar a mesma postura totalitária e
tem podido resolver totalmente a insuficiência disciplinar. Para diversos autores, a epidemiolo-
das denominações em questão. gia e as ciências sociais explicariam o processo
Para Carvalho (1996) a saúde coletiva, ao saúde/doença e fundariam um novo paradig-
incorporar o social ao pensamento sanitário, ma, com um modo de intervenção sobre a rea-
tendeu a fazê-lo segundo cânones objetivistas lidade que superaria – sempre em princípio! –
preconizados pela escola estruturalista e pela todos os outros existentes. De acordo com essa
tradição marxista: a subjetividade aqui admiti- perspectiva a saúde coletiva não seria um saber,
da é aquela que brota da necessidade coletiva e entre outros, sobre os modos como se produz
que se organiza em sujeitos coletivos – no Esta- saúde e doença; mas, o saber. Quase um novo
do, no partido, nas organizações classistas e co- paradigma. Alguns autores e mesmo documen-
munitárias... tos de organismos internacionais chegaram a
De fato, apesar de autores tão influentes co- anunciar o surgimento de um novo paradigma
mo Testa (1993) e Donnangelo (1976) haverem de promoção da saúde que superaria a influên-
divulgado análises em que a saúde pública apa- cia do modelo clínico na organização dos servi-
recia como construção histórica e o exercício ços e práticas (Mendes, 1993; WHO, 1991).
profissional como prática social, não há como Nesse trabalho não se sugere a possibilida-
não concordar com Carvalho quando aponta de de completa superação das tendências des-
que o saber dominante em saúde coletiva ten- critas, o que significaria cair na mesma arma-
deu a subestimar a importância dos sujeitos na dilha metodológica criticada. Tampouco pre-
construção do cotidiano e da vida institucional. tende-se demonizá-las. Não há como se operar
Finalmente, caberia reconhecer a tendência sem objetividade. As estruturas existem e in-
da saúde coletiva em confundir-se com todo o fluenciam a produção do campo da saúde: nor-
campo da saúde. Tal tendência indicaria uma mas, saberes, culturas, sistemas, instituições.
visão de mundo fundada em categorias absolu- Além do mais, não há como desconhecer a im-
tas e transcendentais. Para alguns, a saúde cole- portância (não a transcendência, apenas a im-
tiva se constitui numa espécie de metadiscurso portância) que saberes e práticas advindos da
supostamente capaz de criticar e reconstruir saúde coletiva tiveram e têm para a reformula-
saberes e processos concretos de produção de ção da clínica, da reabilitação e dos sistemas de
saúde. Nesse sentido, ela forneceria metaexpli- saúde em geral. Donnangelo (1983) já havia
cações auto-suficientes sobre a tríade saúde, demarcado que a saúde coletiva influenciava e
doença e intervenção. Por outro lado, seu dis- apoiava práticas de distintas categorias e atores
curso constitutivo tenderia a hipervalorizar a sociais, quer em temas ligados à organização da
determinação social dos processos saúde/doen- assistência, quer na compreensão dos próprios
ça, desqualificando os fatores de ordem subje- meandros da produção de saúde.
tiva e biológica. Neste caso, a saúde coletiva Busca-se, ao contrário, recuperar a velha
não é vista como um modo de intervenção so- dialética, verificando em que medida posições
bre o real mas como um novo paradigma ou e pólos operam em regime de contradição ou
um modelo alternativo aos demais. de complementaridade. Assim, à promessa de
O modelo denominado de vigilância em objetivação asséptica do positivismo é preciso
saúde (Mendes, 1993), por exemplo, proclama- contrapor a subjetividade dos agentes sociais
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tica a práxis. Lefebvre argumentava ainda que do desejo da filosofia de dominar e controlar to-
contradição não significa absurdo, já que tam- talmente a consciência ou a realidade exterior
pouco seria possível eliminar seus dois pólos. (Chaui, 1989).
Sugeria ainda usar-se o contraditório para en- Passando ao campo das práticas sociais, pa-
riquecer o saber, na medida que isso significa- rece que foram as escolas de psicologia e da pe-
ria descobrir um complemento de determinação. dagogia que mais amplamente aplicaram pers-
Por último, ele negava transcendência tan- pectivas análogas em sua prática cotidiana. Em
to à consciência do sujeito quanto ao mundo Freud é possível identificar uma recusa em op-
objetivo, lembrando que conhecimento e mun- tar por qualquer dos pólos responsáveis pela
do são ao mesmo tempo interiores e exteriores fragmentação contraditória dos sujeitos. Entre
aos sujeitos (Lefebvre, 1995). consciente e inconsciente ele nunca deixou de
Inúmeros pensadores vêm desenvolvendo trabalhar em perspectiva dinâmica, em que ló-
esforços para escapar à rigidez quer do objeti- gicas distintas estariam todo o tempo impondo
vismo, quer do subjetivismo. Hegel referia-se à conflitos mais ou menos dilacerantes às pes-
consciência infeliz daqueles que colocam sua vi- soas (Freud, 1969). E o que seria a psicanálise
da nas mãos dos outros. Considerava-os seres senão um método consciente (racional e deli-
presos à determinação do meio natural ou so- berado) para se lidar com o inconsciente e a in-
cial e, portanto, impotentes para reagir contra coerência constitutivos de todo e qualquer su-
o estabelecido criando algo novo (Hegel, 1974). jeito? Entre princípio de realidade e desejo sem-
Foge ao objetivo deste trabalho reconstruir pre haveria espaço para algum grau de deter-
de maneira sistemática a história da dialética; minação e de influência sujeito, aprisionado
mas, sem dúvida, dentro desta trajetória valeria entre essas linhas de força. Sem dúvida, a psi-
destacar Sartre, Merleau-Ponty e o já comenta- canálise e sua aplicação a grupos e instituições
do Bourdieu. O primeiro sugeriu conceitos pa- têm uma importante contribuição à uma teo-
ra articular as estruturas de determinação dos ria que pensasse a saúde coletiva como uma
sujeitos à sua própria capacidade de interven- construção sociohistórica de sujeitos.
ção sobre esses determinantes. Particularmen- Diferentes autores enfatizaram o tema da
te, as categorias de grupo serial, projeto e gru- intersubjetividade e o papel da inter-relação na
po sujeito (Sartre, 1963) seriam fundamentais constituição dos Sujeitos. Para Winnicott, por
para repensar a saúde coletiva. Merleau-Ponty exemplo, somente haveria um sujeito intersub-
buscou articular psicologia e sociologia, modi- jetivo, ao mesmo tempo autoproduzido e pro-
ficando e reconstruindo uma série de conceitos duto das relações humanas (Ogden, 1996). Ou-
originários da antropologia, do marxismo ou tra corrente que trabalhou a inseparabilidade
da ciência política, para aplicá-los em proble- do sujeito e do objeto, do coletivo e do indivíduo,
mas antes tomados exclusivamente pela psica- foi a que se convencionou denominar constru-
nálise, psicodrama, psicologia, e vice-versa tivismo social. Trata-se de um movimento am-
(Merleau-Ponty, 1990). plo, com limites imprecisos e importantes dife-
A saúde coletiva, em analogia ao trabalho renças entre seus aderentes, mas que, em linhas
de Merleau-Ponty e dos mal denominados gerais, sugere que o conhecimento é resultado
freud-marxistas, poderia escapar aos limites do da relação dialética entre o que Vygostsky de-
positivismo e do estruturalismo, articulando nominou de atividades interpessoais (relações
teorias e práticas do campo da política e da ges- sociais as mais variadas) e atividades interpes-
tão com saberes e experiências originários da soais (capacidade de ação reflexiva do próprio
psicanálise, pedagogia e análise institucional. sujeito). De Vygostsky, no começo do século
Combinar política, gestão e epidemiologia (dis- XX, a Paulo Freire, inúmeros autores elabora-
ciplinas que fazem parte da tradição da saúde ram o denominado construtivismo sociohistó-
coletiva) com clínica, psicanálise, pedagogia e rico, com concepções perfeitamente aplicáveis
análise institucional. à saúde coletiva, conforme o vem demonstran-
Marilena Chaui ressalta a crítica elaborada do cientistas e profissionais ligados à denomi-
por Ponty ao pensamento ocidental, que seria nada educação em saúde (Valla, 1999; Vascon-
um pensamento de sobrevôo, e que imporia uma celos, 1999).
separação entre o mundo e a consciência ao re- O construcionismo trabalha com a hipótese
duzir o real a um dos pólos da dicotomia sujei- de uma eterna reconstrução das pessoas, a qual
to-objeto. Neste sentido, ele discordaria tanto ocorreria em virtude da interação dos sujeitos
da pretensão transcendental do cientificismo, com o mundo e dos sujeitos entre si. Porém, es-
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O seu agente, quem seria e como operaria? cialistas capazes de produzir saberes mais sofis-
Na saúde pública tradicional o sanitarista foi ticados sobre saúde pública e de intervir em si-
um especialista isolado, que trabalhava em pro- tuações mais complexas.
gramas verticais com forte grau de imposição
autoritária. Para a Organização Pan-America-
na de Saúde (OPAS, 1994) a principal caracte- Considerações a respeito de uma teoria
rística do sanitarista seria sua capacidade de li- sobre a produção de saúde
derança, devendo os cursos de formação pro-
duzir líderes para o setor saúde. Trata-se de Uma teoria sobre a produção de saúde deveria
mais um exemplo concreto da postura arro- apoiar todos as práticas sanitárias. Essa teoria,
gante e transcendente com que tem se posicio- portanto, seria construída para todo o campo
nado a saúde pública diante dos outros setores da saúde. Não para ser somente utilizada, mas
que compõem o campo. Alguns adeptos do também desenvolvida com a contribuição dia-
agir comunicativo, ao criticar tal perspectiva, lógica de toda a área e transbordando a fron-
chegam a caracterizar o trabalho do sanitarista teira do sistema sanitário propriamente. Mais
como de advocacy, uma espécie de habilidoso que isso, tal teoria deveria incorporar, em sua
defensor da saúde pública. Na prática, cumpri- racionalidade, todos os mecanismos sociais pe-
ria o papel de um assessor de luxo, inerte e im- los quais se geram saúde e enfermidade.
potente frente à dureza do estabelecido. Muitos Pois bem, nesse sentido, a construção de
colocam em pauta, inclusive, a extinção da pro- uma teoria sobre a produção de saúde ou sobre
fissão e da especialidade, já que o estado, a so- o processo saúde/enfermidade/intervenção não
ciedade e as equipes de saúde cumpririam to- deveria ser monopólio nem ferramenta exclu-
das as tarefas da saúde coletiva. siva da saúde coletiva, mas de todo o campo.
Talvez valesse a pena pensar o sanitarista Não há como pensar a superação do paradig-
como um agente de saúde pública, profissional ma biomédico sem a contribuição da própria
com liderança ocasional, conforme os proble- clínica só com aportes da epidemiologia e das
mas e programas em questão, que trabalhasse ciências sociais. Nem somente com o biológico
em equipes interprofissionais mas com papel e o subjetivo se podem pensar modelos e polí-
específico. Atuando tanto em projetos verticais, ticas de atenção integral à saúde. A clínica tem
voltados para promoção e prevenção e coorde- muito a ser criticada, mas tem também muito
nados por eles; quanto em outros de inserção a dizer. O mesmo poder-se-ia comentar sobre a
matricial, intra-sistemas de saúde ou interseto- saúde coletiva. Não há como repensar suas prá-
riais, em que o sanitarista seria um entre outros ticas desconhecendo o acervo da biologia, da
agentes. psicologia e da clínica. Como pensar a AIDS ig-
No Brasil, nota-se um importante enfra- norando ou a cultura ou o funcionamento
quecimento da vertente da saúde pública pen- concreto dos serviços de saúde, ou o compor-
sada como especialidade. O aparelho formador tamento do vírus, ou a potência dos imunobio-
em saúde coletiva tem privilegiado o mestrado lógicos ou dos tratamentos medicamentosos?
e o doutorado, ou cursos de extensão voltados Portanto, uma teoria do processo saúde/
para a equipe de saúde em geral (Nunes, 1996), doença/intervenção deveria constituir o acervo
em detrimento da formação de especialistas e básico e fundamental de todos os campos cien-
de residentes. Há, até mesmo, indefinição de tíficos e de todas as práticas que compõem o
critérios para os diferentes níveis e controvér- campo mais amplo da saúde. Este entendimen-
sia sobre conteúdos e, portanto, descontrole to atenua a pretensão de transcendência e de
sobre a qualidade dos profissionais autorizados auto-suficiência da saúde coletiva. Uma teoria
exercerem as atividades de saúde coletiva. No sobre a produção de saúde funcionaria como
caso de se adotar a primeira acepção, para saú- patrimônio orientador de todas as práticas sa-
de coletiva, considerando-se sua inserção hori- nitárias e não seria construída somente com
zontal, tão contrário a especialização seria fato base em uma perspectiva centrada no social ou
sem importância, já que seu exercício seria ta- na epidemiologia, mas no uso diversificado de
refa de todos os profissionais de saúde e mes- distintos saberes. Ao mesmo tempo, a com-
mo de toda a população. preensão dessa articulação de conhecimentos
Na realidade, seria importante combinar as nega, portanto, a existência automática, e em
duas perspectivas: tanto socializar saberes e princípio, de uma dominância da determina-
práticas, quanto assegurar a existência de espe- ção social no processo saúde/doença. Com cer-
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tiva. Para responder a esta questão haveria que utilidade que bens ou serviços têm para pes-
se investigar sua história concreta. Afinal o re- soas concretas vivendo em situações específi-
corte do objeto da saúde coletiva é bastante in- cas. Ninguém conseguiria fazer circular uma
fluenciado pela dinâmica política (Donnange- mercadoria sem valor de uso. A saúde, mesmo
lo, 1983) e varia conforme a correlação dessas quando entendida como um bem público, ou
forças, a ação do Estado e dos distintos atores seja, quando lhe é socialmente retirada o cará-
sociais, que atuam no setor. ter de mercadoria, como acontece no Sistema
Único de Saúde, já que é produzida como um
direito universal e não em função de seu valor
Para reconstruir o núcleo de de troca, mesmo nestes casos, ela conserva o
saberes e práticas da saúde coletiva: caráter de valor de uso.
algumas sugestões para debate A utilidade de um bem ou serviço não é um
dado intrínseco a ele, mas é socialmente cons-
A saúde coletiva e a defesa da vida (Campos truída. Resultando, portanto, da ação de distin-
GWS,1991). Em primeiro lugar é preciso assu- tos atores sociais em sentido nem sempre con-
mir explicitamente que a saúde pública é uma vergente, marcando cada produto com um cer-
construção social e histórica e que, portanto, to valor de uso. Assim, o valor da vida varia
depende de valores, ou seja, é resultante da as- conforme a época, a classe e o contexto social:
sunção e da luta de alguns valores contra ou- expressa-se sob a forma de necessidades so-
tros. Nesse sentido, sugere-se que os sanitaris- ciais. Necessidades sociais são significadas em
tas e demais profissionais de saúde assumam bens ou serviços a que tal ou qual segmento so-
explicitamente uma visão de mundo fundada cial atribui alguma utilidade.
na radical defesa da vida das pessoas com as Foucault (1995) afirmava que uma das ma-
quais trabalhem. Isso implica a busca da cons- nifestações do poder era a capacidade de pro-
trução de condições sociais que possibilitem duzir verdades. Em analogia, poder-se-ia afir-
aos especialistas em saúde coletiva trabalhar mar que a capacidade de produzir necessidades
com autonomia relativa tanto em relação ao sociais é uma manifestação concreta do poder
Estado, quanto a partidos políticos, ideologias dos distintos grupos e segmentos sociais (Cam-
e outras racionalidades técnicas. Assim, caberia pos, 2000). Nesse sentido, tanto as equipes de
ao sanitarista posicionar-se sobre a existência saúde quanto a sociedade deveriam explicita-
ou não de saberes e de modos concretos para mente cuidar da produção de valores de uso e
se enfrentar tal ou qual problema de saúde; ar- de sua expressão pública sob a forma de neces-
güindo contra os economistas e políticos em sidades sociais. Enganam-se aqueles que atri-
defesa da vida de grupos expostos a riscos. Não buem ao poder dominante a capacidade exclu-
deixar aos economistas a argumentação sobre siva de sempre produzir necessidades sociais.
inviabilidade econômica, e aos políticos, des- Por mais poderoso que sejam o Estado e mer-
culpas fundadas no pragmatismo dos que lu- cado, jamais essas instâncias conseguiram des-
tam pelo poder, mas exercita uma ética assen- conhecer a dinâmica social que resulta na cons-
tada no compromisso explícito com a vida. trução de necessidades. Ainda quando relegam
Não que a perspectiva acima venha a ter desejos e interesses dos usuários, ou o discurso
sempre a última palavra, mas é preciso reco- da saúde coletiva, esses elementos acabam por
nhecer que a sociedade ganharia com promo- mostrar sua lógica. Em alguma medida, os de
tores públicos, em princípio, comprometidos baixo metem sua colher de pau no cozido das
com a defesa da vida. Ou seja, com intelectuais necessidades sociais.
orgânicos (Gramsci, 1978) coerentes, em seus O que se argumenta é que caberia aos tra-
discursos e em suas práticas, com uma teoria balhadores e aos usuários, a partir de seus pró-
de produção da saúde. É óbvio que a resultante prios desejos e interesses, apoiando-se em uma
desses processos nunca será o projetado pelo teoria sobre a produção de saúde, tratar de
discurso sanitário puro, mas uma síntese de construir projetos e de levá-los à prática; obje-
distintas racionalidades. tivariam então a concretização de determina-
Há um segundo aspecto a ser reforçado: re- dos valores de uso, expressos sob a forma de
conhecer que a saúde é um valor de uso. Valor necessidades, bem como dos meios necessários
de uso com o sentido que originalmente Marx para atendê-las. Uma luta sem resultados pré-
(1985) atribuiu ao conceito, no volume primei- vios assegurados. É contrária à razão dialética a
ro de O capital. Valor de uso entendido como a análise que atribui exclusividade de efeitos à
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