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Teoria Do Agir Comunicativo A TEORIA DO PDF
Teoria Do Agir Comunicativo A TEORIA DO PDF
ROGERIO VALLE
Tradução do primeiro capítulo da tese “La Théorie de l'agir communicatif face aux
apports d'une sociologie comparative des organisations”
(Universidade Paris V - Sciences Humaines Sorbonne, junho 1989).
ex., quando alguém invoca a verdade ou a eficiência para justificar suas afirmações)
sejam uma garantia de relações pretensamente objetivas com os fatos.
À esta concepção da racionalidade, Habermas substitui a de uma racionalidade
comunicativa, desenvolvida a partir da visão fenomenológica: a objetividade de um
mundo está ligada ao fato de que ele vale como um único e mesmo mundo, para toda
uma comunidade de sujeitos capazes de falar e de agir.
“Neste modelo, os enunciados racionais têm o caráter de ações dotadas de sentido, compreensíveis em seu
contexto, graças às quais o ator relaciona-se com qualquer coisa no mundo objetivo. As condições de validade
(Gültigkeitsbedingungen) dos enunciados simbólicos remetem a um saber de fundo, intersubjetivamente partilhado pela
comunidade de comunicação. Para este pano de fundo do Mundo da Vida, cada dissenso representa um desafio de
natureza própria.” (I,32)
Entretanto, o conceito de racionalidade proposto por Habermas deve ser capaz de
englobar também o conceito não -fenomenológico de racionalidade, o cognitivo-
instrumental, desenvolvido a partir da visão “realista” do mundo, i.e., da pressuposição
ontológica de um mundo objetivo.
“Há, na verdade, certas relações internas entre, por um lado, a capacidade de perceber de forma descentrada, e
de manipular, as coisas e os fatos, e por outro lado, a capacidade de uma inter--compreensão (Verständigung) inter-
subjetiva, a respeito das coisas e dos fatos. É por esta razão que Piaget escolheu o modelo combinado da cooperação
social, segundo o qual vários sujeitos coordenam, através da atividade comunicativa, suas intervenções no mundo
objetivo.” (I,32)
De qualquer forma, a racionalidade própria à prática comunicativa se estende
sobre um espectro maior. Para obter e renovar, sob o pano de fundo do Mundo da Vida,
um consenso que repousa sobre o reconhecimento intersubjetivo de pretensões à
validade, dispõe -se não apenas dos atos de linguagem constativos (aqueles que tendem
apenas a descrever uma coisa ou fato)1, mas também das ações reguladas por normas, das
representações do eu expressivas e dos enunciados avaliadores. Mesmo assim, é preciso
que, em todos estes casos, que cada membro da comunidade de práticas comunicativas
“dê uma razão para” justificar seus pontos de vista em cada um de três domínios: o
cognitivo-instrumental, o moral-prático e o estético. É preciso convencer os outros a
aceitar, num certo contexto, a pretensão à validade ligada à sua declaração. A TAC é
portanto dependente de uma teoria da argumentação.
(2) Entre as Ciências Sociais, é a Sociologia que é mais ligada a uma teoria da
racionalidade, pois ela não se limita a um único subsistema, como a Antropologia, a
Economia ou a Ciência Política. Seu tema é as transformações da integração social nos
países europeus, provocadas pelo desenvolvimento sistêmico do estado e da regulação
econômica pelo mercado; assim, ela defronta inevitavelmente as estruturas do Mundo da
Vida e não pode evitar uma tríplice consideração da problemática da racionalidade:
¨ (a) do ponto de vista metateórico, pode-se constatar que todas as vezes que o
sociólogo se encontra face ao problema, primordial, da definição do conceito de ação, ele
deve empregar algum conceito de racionalidade. Mas os inúmeros conceitos de ação
utilizados, em geral de forma implícita, nas teorias das Ciências Sociais, podem ser
essencialmente reduzidos a quatro conceitos fundamentais (I,126-151) :
- o conceito de agir teleológico, segundo o qual um ator isolado se
encontra diante do problema da escolha dos meios que lhe permitirão atingir seu objetivo.
Neste caso, o conceito central para a problemática da racionalidade é o da decisão entre
1 Foi Austin quem opôs os enunciados performatórios (performative utterances) aos enunciados
constativos. Uma expressão é dita constativa se ela tende a simplesmente descrever uma coisa ou um
fato; ela é dita performatória se, além dela descrever uma certa ação de seu locutor, sua simples
enunciação significa a realização desta ação (p. ex. a frase “eu prometo que...”, ou o “sim” dos noivos
diante do altar, etc).
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lado, ele faz ver que, quando confrontamos o desdobramento efetivo de uma ação com
modelos capazes de estilizá-la de acordo com um único aspecto da racionalidade (i.e., de
acordo com a verdade da proposição, a eficiência ou o sucesso instrumental, no caso do
primeiro modelo; de acordo com a exatidão normativa, no segundo; de acordo com a
autenticidade ou veracidade, no terceiro), precisamos invocar uma descrição da ação que
não dependa da interpretação racional. Ora, estes três modelos não problematizam tal
atividade hermenêutica prévia, mas apenas a pressupõem, de maneira ingênua.
“A descrição do desenrolar efetivo de uma ação exige uma interpretação complexa, que já se serve,
implicitamente, da conceituação ligada à racionalidade comunicativa e que, à exemplo das interpretações cotidianas,
possui as características de uma interpretação em princípio racional. A possibilidade de escolher entre uma interpretação
descritiva e uma interpretação racional só surge quando um dos modelos não -comunicativos de ação obriga o
observador à abstração, i.e., a acentuar cada vez um só aspecto do complexo constituído por uma interação desenvolvida
através de pretensões à validade.” (I,174)
No quarto modelo, o próprio êxito de uma interação depende da possibilidade de
um entendimento mútuo dos participantes, a respeito de uma apreciação
intersubjetivamente válida de suas relações com o mundo. Ele é o único a exigir, desde o
começo, uma interpretação racional: o agir orientado para a intercompreensão possui uma
estrutura interna racional. Ora, para que a exigência de racionalidade seja respeitada,
torna-se necessário atribuir um valor universal a esta estrutura racional interna: o próprio
uso do discurso implica numa exigência de universalidade. O próprio Habermas
reconhece que
“esta é uma exigência muito forte para alguém que opera sem cobertura metafísica e que não confia mais
tampouco na executabilidade de um programa rigoroso de Pragmática transcendental que assumisse as exigências de
última instância.” (I,198)
Se não se deseja recorrer, portanto, às garantias da grande tradição filosófica,
restam ainda três caminhos de pesquisa, capazes de fundamentar a universalidade da
racionalidade comunicativa:
- reconstruir, hipoteticamente, o saber pré-teórico empregado pelos
locutores competentes, quando eles utilizam frases nas ações orientadas para a
intercompreensão;
- tentar avaliar o valor da utilização empírica das análises obtidas pela
Pragmática Formal;
- lançar-se numa releitura da história das teorias sociológicas, vendo-as
como teorias da racionalização social. Esta foi a escolha de Habermas.
“Aliás, a vantagem de reconstruir a história das teorias é de nos permitir um vai-e-vem na Teoria da Ação,
entre os conceitos, as hipóteses teóricas e suas evidências empíricas ilustrativas; e ao mesmo tempo poder tomar como
ponto de referência o seguinte problema fundamental: saber se e, eventualmente, como, a modernização capitalista pode
ser concebida como um processo de racionalização unilateral.” (I,202)
¨ (c) do ponto de vista empírico-teórico, a problemática da racionalidade traduz-se
na seguinte questão: em que sentido a modernização própria das sociedades ocidentais
pode ser compreendida como um processo de racionalização cultural e social, tendendo a
propagar-se universalmente? Sem dúvida alguma, o agir orientado para a
intercompreensão não é o caso normal na prática da comunicação: há, por um lado, uma
contradição entre a compreensão mítica do mundo (sociedades arcaicas) e a compreensão
moderna do mundo (sociedades modernas) e, por outro lado, contradição, no seio mesmo
da sociedade moderna, entre o Mundo da Vida (Lebenswelt) e o Sistema.
Habermas examina a seguir apenas a primeira destas contradições, deixando a
outra para a “Segunda Consideração Intermediária” (cap. VI). Para isto, ele introduz o
importante conceito de imagens do mundo (Weltbilder): sistemas culturais de
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interpretação, que refletem o saber de fundo dos grupos sociais e que garantem uma linha
coerente na multiplicidade de suas orientações de ação.
“Os limites da racionalidade de cada imagem do mundo não são dados por suas propriedades
lógicas e semânticas, mas pelos conceitos fundamentais que ela coloca à disposição dos indivíduos, para a interpretação
de seu mundo.” (I,75)
Habermas procura a pré-compreensão que se encontra no nível mais profundo das
posições modernas da consciência. Tal pré-compreensão se distingue claramente das
imagens do mundo das sociedades primitivas, pois as práticas mágicas desconhecem a
diferença entre ação teleológica e ação comunicativa: segundo a descrição da
compreensão mítica do mundo feita por M. Godelier, o mito impediria uma diferenciação
conceitual entre os objetos manipuláveis e os sujeitos da ação.
Porém, se Habermas quer adotar uma teoria da evolução, quer também evitar um
pré-julgamento das questões relativas à dinâmica da evolução, ou seja: ele deseja rejeitar
o relativismo generalizado, sem cair no entanto em uma causalidade idealista (um
progresso contínuo, necessário, etc). Ele introduz então a hipótese de que a racionalização
das imagens do mundo se dá através de processos de aprendizagem. Desta forma ele
poderá, p.ex., ler a teoria weberiana da evolução das imagens religiosas do mundo, a
partir de uma analogia com o modelo de aprendizagem que Piaget desenvolveu para
descrever a ontogênese das estruturas da consciência, no qual as etapas do
desenvolvimento cognitivo são caracterizadas não pelos novos conteúdos, mas pelos
níveis de capacidade de aprendizagem, descritos em termos de estrutura (I,104).
O mito, que era o sistema conceitual de base das sociedades primitivas, perdeu sua
capacidade de explicar e de justificar; foi desta forma que se passou às grandes
civilizações, onde se interpreta as tradições por meio de figuras de pensamento religiosas,
cosmológicas ou metafísicas; mais tarde, estas seriam por sua vez desvalorizadas;
entramos assim na modernidade. Segundo Habermas, não é esta ou aquela razão que não
convence mais, mas o tipo de razão empregada. Estas ondas de desvalorização das
interpretações da tradição se explicam pela passagem a novos níveis de aprendizagem: as
condições de aprendizagem se modificam, seja na dimensão do pensamento objetivante,
seja na do discernimento moral-prático, seja na da experiência estética.
A analogia com a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget prossegue
através do conceito de descentração de uma compreensão “egocêntrica” do mundo. A
concepção “descentrada” é aquela que não se considera mais como “o centro do mundo”,
mas que reconhece ser apenas uma das interpretações possíveis do mundo, jamais
idêntica a ele. Trata-se de uma conquista maior da modernidade, que supera o
dogmatismo “realista” dos primitivos. Piaget compreende o desenvolvimento cognitivo
não apenas como a construção de um universo exterior, mas sobretudo como a
construção de um universo de referência, permitindo demarcar, ao mesmo tempo, os
limites entre os mundos subjetivo e objetivo, e entre os mundos subjetivo e social. A
descentração das imagens do mundo provoca a racionalização do Mundo da Vida: ela
provoca a crise da tradição, insensível a toda forma de crítica, e traz a necessidade de um
acordo racional (i.e., obtido de forma comunicativa) a fim de restaurar o pacto social.
Habermas chega mesmo a elaborar uma lista das propriedades formais que uma
tradição cultural deve possuir para que o Mundo da Vida possa ser racionalizado,
permitindo assim que as orientações de ação se condensem em torno de uma conduta
racional de vida: ela deve ser capaz de consentir a sua própria crítica; ela deve permitir
um desenvolvimento autônomo de suas componentes cognitivas e avaliadoras (i.e., das
relações com os mundos objetivo e subjetivo); finalmente, ela deve dar uma margem de
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razão que vejo é a mistura de conceitos fundamentais da teoria da ação e da teoria dos sistemas: a racionalização das
orientações de ação e das estruturas do Mundo da Vida não é a mesma coisa que o crescimento de complexidade dos
sistemas de ação.” (I,209)
O primeiro passo nesta releitura de Weber consiste em situá-lo do ponto de vista
da História das Ciências. Quando Weber retoma a temática da racionalização e a
transforma num problema a ser trabalhado experimentalmente, seu ponto de partida é a
crítica das duas correntes que a haviam introduzido entre os séculos XVIII e XIX: a
filosofia da história e o evolucionismo. Foi através de “tomadas de posição” em relação
às controvérsias sobre o determinismo evolucionista, sobre o naturalismo ético, sobre o
relativismo e sobre o racionalismo, que Weber veio a colocar sua questão central, sobre a
relação entre racionalização e modernização: por que o desenvolvimento científico,
estético e político não engendrou, fora do espaço cultural do ocidente, certas
manifestações típicas do racionalismo ocidental?
Segundo Habermas, haveria dois grandes impulsos a distinguir no processo de
racionalização descrito por Weber:
- a racionalização das imagens do mundo (trata-se do “desencantamento
do mundo” e da diferenciação e autonomização das ordens cognitiva, normativa e
expressiva), a qual elabora as “estruturas de consciência” modernas;
- a corporificação destas “estruturas de consciência” modernas, nas
instituições: trata-se da institucionalização do agir racional segundo um fim.
Distinguir estes dois impulsos equivale a supor que a racionalização cultural (no
interior do domínio religioso) se converte em racionalização social (praticamente, no
interior da empresa capitalista e do Estado) (I,225-239).
(a) Por um lado, Weber aplica a problemática da racionalização no plano das
estruturas de consciência, i.e., nos planos da personalidade e da cultura:
(i) no plano da personalidade, a manifestação típica do racionalismo
ocidental é a constituição de uma conduta metódica de vida, cujas raízes se encontram
entretanto em um outro plano, o da cultura, ou mais exatamente, na ética da convicção
(Gesinnungsethik), de origem religiosa. A ética protestante e sua representação da
“vocação” se concretizam, no que diz respeito às interações sociais no mundo do
trabalho, em uma atitude cognitiva-instrumental. A conduta metódica de vida tem
portanto um tal poder motivador (ela cria orientações axiológicas e disposições de ação),
que Weber foi levado a considerá-la como o fator mais importante do capitalismo.
(ii) no plano da cultura, a manifestação típica do racionalismo ocidental é
a diferenciação de três esferas de valor, cada uma seguindo uma lógica própria: a ciência
e a técnica; a arte autônoma e os valores ligados a uma “representação do eu” expressiva;
finalmente, a consciência jurídica e moral pós-convencional. Trata-se aqui não da
“racionalidade de orientações de ação”, como no plano da personalidade, mas de uma
“racionalidade dos pontos de vista sobre o mundo” e de uma “racionalidade das esferas
de valor”.
(b) Por outro lado, os fenômenos de racionalização que Weber quer explicar se
situam no plano da sociedade:
(iii) no plano da sociedade global, a manifestação típica do racionalismo
ocidental é aquela estudada em “Economia e Sociedade”: a diferenciação entre uma
economia capitalista e um Estado moderno, cujas relações serão reguladas pelo direito
formal. Estes fenômenos da racionalização social serão relacionados com os conceitos
elaborados a partir de outros fenômenos, principalmente, dos fenômenos da
racionalização das motivações e da cultura (I,226-252).
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omite a possibilidade de que a ética protestante da convicção possa ser substituída por
uma forma não-religiosa, mas regida por princípios, de consciência moral.
Se acompanharmos a linha de argumentação que Weber abandonou, podemos
chegar a um modelo de racionalização social capaz de avaliar a via ocidental de
desenvolvimento. Para representar a racionalização social tal qual ela é estruturalmente
possível, Habermas propõe três complexos de racionalização: a racionalidade
cognitiva-instrumental, a racionalidade moral-prática e a racionalidade estético-prática.
Todo modelo “seletivo” de racionalização pode ser considerado como um
desenvolvimento desequilibrado destas três componentes (I,324-329).
Isto não impede que Habermas reconheça que, nas “Considerações
Intermediárias” de Weber, os problemas refreados ressurgem, através da análise do
capitalismo da época. Neste texto, Weber utiliza implicitamente critérios capazes de
medir e criticar uma racionalização restrita à forma totalizante da atividade racional
segundo um fim. Esta crítica o conduz a julgar que a racionalização tende para uma perda
do sentido e da liberdade.
A tese da perda do sentido reflete a experiência nihilista de uma geração,
exprimida por Nietzsche. Com a diferenciação das esferas culturais autônomas de valor, a
coerência de uma visão de mundo baseada na unidade metafísica dos transcendentais dá
lugar a um politeísmo dos valores, devido à irreconciabilidade das últimas instâncias. A
razão desencantada se decompõe em uma pluralidade de esferas de valor e destrói assim
sua própria universalidade. Weber sugere que se busque na esfera privada da própria
história individual, a unidade que não pode ser mais encontrada na sociedade. Mas, ao
mesmo tempo, ele constata que nas sociedades modernas é impossível viver tal
autonomia interior, pois a liberdade do indivíduo encontra-se assediada pela
autonomização dos subsistemas de atividade racional segundo um fim. A eficácia
cognitiva-instrumental das organizações econômicas e estatais encerra os indivíduos
numa prisão de aço.
Mesmo reconhecendo o valor empírico das teses da perda do sentido e da perda
da liberdade, Habermas insiste em sua crítica fundamental a Weber: ao passar da
racionalização cultural à racionalização social, Weber abandona o conceito complexo de
racionalidade. Este foi utilizado para a análise da religião, mas não para a análise das
instituições. O fim do “carisma da razão” não significa que esta tenha explodido, porque
no interior de cada esfera de valor, uma forma particular de pretensão à validade é
resgatada, através de argumentos. Eis o plano formal, onde a unidade perdida é
reencontrada. Deve-se distinguir, mais claramente do que Weber, entre os conteúdos de
valor, particulares, e os critérios de valor, universais: a pluralidade das pretensões
diferenciadas à validade (verdade das proposições; exatidão das normas; veracidade ou
autenticidade) se opõe à unidade do caráter procedural da razão (i.e., a intenção de
encerrar o debate em torno das pretensões hipotéticas à validade, através de um acordo,
racionalmente motivado, entre os membros de uma comunidade de comunicação).
“Falta até hoje uma Lógica pragmática da Argumentação, capaz de captar satisfatoriamente as relações
internas entre formas de atos de fala. Só uma tal teoria do discurso poderia indicar, explicitamente, em que consiste a
unidade da argumentação e o que nós denominamos de racionalidade procedural, uma vez que todos os conceitos
substanciais de razão terão sido criticamente dissolvidos.” (I,340)
Habermas quer corrigir Weber, no que tange à passagem da racionalização
cultural à racionalização social. Num primeiro momento, ele desenvolverá o conceito de
agir comunicativo, para eliminar os limites da teoria weberiana da ação, e deparar-se-á
assim com Mead e Durkheim. Num segundo momento, ele desenvolverá os conceitos
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ação, de uma racionalização ética. Para isto, a nova tipologia deve analisar as motivações
racionais que permitem a entrada num jogo de linguagem.
Para uma teoria do agir comunicativo que queira avançar nas questões
fundamentais de uma teoria sociológica da ação, o ponto essencial é admitir que a
coordenação da ação se dê através da intercompreensão pela linguagem. É preciso
portanto recorrer à Teoria da Significação, disciplina central da Filosofia Analítica, desde
que esta nos forneça uma análise da estrutura da expressão linguística, e não uma análise
das intensões do locutor. Uma teoria do agir orientado para a intercompreensão deve
conseguir generalizar o conceito de validade, não o limitando mais unicamente à verdade,
ou não, das proposições. Tal teoria deve ser capaz de identificar as condições de validade
no plano pragmático, e não apenas no plano semântico2.
“Minha sugestão é de que o papel ilocutório não seja mais oposto, como uma força irracional, à componente
da proposição que fundamenta sua validade; ele deve, ao contrário, ser concebido como a componente que especifica
qual pretensão à validade é levantada pelo locutor, através de sua expressão, e ainda: como ele a levanta e para quê. Pela
a força ilocutória de uma expressão, um locutor pode motivar um ouvinte a aceitar a oferta de seu ato de fala e, desta
forma, iniciar uma ligação racionalmente motivada.” (I,375)
Passamos assim, de uma classificação de atos de fala, a uma de tipos de ação: à
oposição entre ato perlocutório e ato ilocutório, corresponde a distinção entre dois tipos
fundamentais de ação: ações orientadas para o sucesso (erfolgsorientiert) e ações
orientadas para a intercompreensão (verständigungsorientiert). É importante ressaltar
que:
- trata-se de tipos de ação diferentes, e não apenas de duas dimensões de
uma mesma ação;
- sob condições apropriadas, esta distinção deve poder ser percebida com o
simples auxílio do saber intuitivo dos próprios participantes. A atitude dos participantes
possui, portanto, uma importância conceitual elevada.
“A intercompreensão é inerente à linguagem humana, como seu telos.” (I,387)
A intercompreensão equivale a um processo que visa obter um acordo entre
sujeitos capazes de falar e de agir. Há, sem dúvida, interações mediatizadas pela
linguagem que não são orientadas para a intercompreensão; para explicá-las, Habermas
sustenta a tese de que o modo “intercompreensivo” da linguagem é o modo original, em
relação ao qual as “insinuações” e “indiretas” são simples “parasitas”.
A distinção entre orientação para o sucesso e orientação para a intercompreensão
serve de base para todas as outras tipologias do agir; assim, p. ex., a “racionalidade
segundo um fim” de Weber pertence certamente ao primeiro tipo. Habermas prefere, no
entanto, trabalhar com uma tipologia derivada, que distingue:
- dois tipos de ação no plano social, o agir estratégico e o agir
comunicativo;
2 Após haver oposto enunciados constativos e performatórios, Austin desenvolveu esta última noção,
incluindo-a dentro de uma teoria da pragmática dos atos da fala. Estes foram classificados da seguinte
maneira:
- um ato locutórios é simplesmente a articulação e combinação de sons para referir
determinados significados, ou a evocação e associação sintáxica de noções representadas pelas palavras;
- num ato ilocutório, ao se enunciar uma frase (p. ex., “eu te prometo que...”), cumpre-se
igualmente um determinado ato (no caso, uma mudança nas relações entre os dois interlocutores);
- o ato perlocutório contempla a possibilidade de que a enunciação sirva a outros fins,
geralmente não explicitados (p. ex., perguntar algo de forma a embaraçar alguém, ou a bajulá-lo).
Num ato ilocutório, o locutor visa obter diretamente um efeito sobre os sentimentos, os
pensamentos ou a ação de quem o escuta; num ato perlocutório, o ato locutório serve para a obtenção de
um efeito indireto.
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negativa”: o conceito de mimesis, que deveria dar conta de tudo o que foi destruído pela
razão instrumental, se mostra incapaz de gerar uma verdadeira teoria.
“Adorno não pode esclarecer a faculdade mimética a partir da oposição abstrata à razão instrumental. As
estruturas de uma razão, às quais Adorno apenas alude, só se tornam accessíveis à análise, quando as idéias de
reconciliação e de liberdade são decifradas como indícios de uma forma, ainda que utópica, da intersubjetividade, a qual
permite tanto uma intercompreensão não-coercitiva dos indivíduos em suas relações mútuas, quanto a identidade de um
indivíduo que se entende consigo mesmo, sem coerção - socialização sem repressão. Isto tem um duplo significado: por
um lado, uma mudança de paradigma na teoria da ação, passando-se de um agir dirigido para um objetivo, para um agir
comunicativo; por outro lado, uma mudança de estratégia na tentativa de reconstruir o conceito moderno de
racionalidade, conceito que se tornou possível com a descentração da compreensão do mundo. Os fenômenos que
precisam ser explicados não são mais o conhecimento e o tornar disponível uma natureza objetivada, tomados em si
mesmos; mas a intersubjetividade da intercompreensão possível - tanto nos planos interpessoal como intrapsíquico. O
foco da investigação se desloca assim da racionalidade cognitivo-instrumental para a racionalidade comunicativa. Para
esta, o que é paradigmático não é a relação do sujeito solitário com algo, representável e manipulável, no mundo
objetivo; mas sim, a relação intersubjetiva estabelecida por sujeitos capazes de falar e de agir, quando eles se entendem,
mutuamente, sobre algo. Neste caso, os agentes comunicativos movem-se no medium de uma linguagem natural; fazem
uso de interpretações culturalmente legadas; e se referem simultaneamente a algo no mundo objetivo único, em seu
mundo social comum e em cada mundo subjetivo próprio.” (I,524-525)
Lembramos novamente que a crítica de Habermas aos teóricos clássicos da ação é
de somente subentenderem uma outra racionalidade que, do ponto de vista lógico, deve
ser explicitada. Segundo ele, só com G.H. Mead surgiria uma teoria da ação propondo-se
a desenvolver esta outra racionalidade; ora, tal propósito faz com que se depare,
inevitavelmente, com a utopia de uma comunidade ideal de comunicação.
unidades capazes de ação, para só então haver ameaças de sanções em seu nome... O
programa de “reconstrução” exige portanto que seja dada uma explicação da constituição
do grupo.
Para completar esta lacuna filogenética de Mead, Habermas vai buscar a
sociologia da religião de Durkheim, que explica a constituição da identidade de um grupo
através da consciência coletiva religiosa, profundamente enraizada em sua história. Mead
não tratou do surgimento do simbolismo sagrado a partir da interação mediatizada por
símbolos, surgimento que é anterior ao das normas e que constitui portanto a expressão
mais arcaica do Outro generalizado. Durkheim, ao contrário, atribui uma grande
importância à consciência religiosa: ela garantiria a identidade coletiva, que por sua vez
permitiria a solidariedade social em sua forma “mecânica”. Inicialmente, Durkheim viu
na consciência coletiva o conjunto das representações impostas pela sociedade e
partilhadas por todos os seus membros; mais tarde, após sua análise dos ritos, ele verá
nela nem tanto um conteúdo determinado, mas uma estrutura capaz de assegurar a
identidade do grupo. Esta estrutura se constitui e se renova no rito, por meio de uma
identificação comum com o sagrado. A identidade coletiva tem portanto a forma de um
consenso normativo, que se desenvolve através semântica do sagrado.
Entretanto, trata-se de um consenso não visado, porque a identidade da pessoa é
apenas a “imagem no espelho” da identidade coletiva. Assim, se Durkheim nos permite
encontrar, no fenômeno da consciência coletiva, a raiz pré-linguística do agir
comunicativo, para dar cabo da questão clássica das relações entre indivíduo e sociedade
será necessário voltar a Mead e distinguir entre a comunidade baseada na prática ritual e a
intersubjetividade do saber produzida por atos de fala. A parte ilocutória de um ato de
fala diz respeito à relação interpessoal entre Eu e Tu, logo, a uma estrutura de
intersubjetividade pela linguagem, a qual exerce uma pressão sobre a criança, no sentido
da individualização.
Esta dimensão intersubjetiva da consciência coletiva se imporá progressivamente,
deixando ao rito o papel de sistema de comunicação residual. A evolução vai da interação
mediatizada por símbolos, à interação regulada por normas. Por um lado, o sagrado
torna-se um domínio isolado na vida cotidiana; seu nível de comunicação já foi superado
pelo da cooperação social profana, onde as relações com os objetos perceptíveis e
manipuláveis é cada vez mais estruturado através de proposições. Por outro lado, o
sistema de instituições e a estrutura dos indivíduos socializados constituem-se ambos a
partir da normalização da ação.
Ora, para Habermas, toda ação regulada por normas pressupõe o discurso
gramatical como medium da comunicação. Assim, a grande limitação de Durkheim é de
não perceber que o agir comunicativo é o lugar onde todas as energias da solidariedade
social se cruzam (II,90). A sociologia da religião de Durkheim permitiu-nos corrigir uma
lacuna na reconstrução de Mead, mas agora é preciso voltar a este último, a fim de
retomar a explicação da interação regida por normas e mediatizada pela linguagem. O
ponto de passagem para este retorno a Mead será a teoria durkheimiana da evolução
social do Direito.
Durkheim havia visto a generalização dos valores, a universalização do Direito e
da Moral e a autonomia crescente do indivíduo como conseqüências da substituição da
integração social pela fé, pela integração por um acordo mútuo e uma cooperação obtidos
através da comunicação. Habermas deseja compreender esta mudança como um processo
de racionalização e portanto ele o interpreta na linha de Mead: é a mediação linguajar do
Teoria do Agir Comunicativo 23
agir regulado por normas que deu o primeiro impulso para a racionalização do Mundo da
Vida.
Habermas imagina inicialmente o “estado zero” da sociedade, simplesmente
postulado por Durkheim, como uma sociedade onde o domínio sagrado não tem ainda
necessidade da mediação linguajar do rito e onde o domínio profano não permite ainda
uma mediação linguajar da cooperação. Em seguida, ele imagina o efeito de
desintegração que os atos de linguagem provocam necessariamente sobre tal sociedade,
devido à estrutura que possuem (analisada acima: §3). Através deste
“Gedankenexperiment”, a lógica da mudança analisada por Durkheim passa a ser vista
como uma modificação da estrutura da ação regida por normas, à medida que as funções
de reprodução cultural, de integração social e de socialização do indivíduo passam da
esfera do sagrado à esfera da prática comunicativa corrente.
Para Habermas, a razão comunicativa se serve do rito para realizar seus objetivos
próprios: após haver tornado possível a cooperação social, a comunidade de crença se
transforma em comunidade de comunicação, submetida às exigências da cooperação. A
autoridade do sagrado é progressivamente substituída pela autoridade do consenso tido
em sua época como fundamentado. O desencantamento é compreendido então como o
processo pelo qual o consenso normativo fundamental, até então garantido pelo rito, vai
progressivamente assumindo uma forma linguajar (“eine Versprachlichung des rituell
gesicherten normativen Grundeinverständnisses”, que poderíamos traduzir por: uma
"linguagerização" do consenso normativo fundamental garantido pelo rito). O
desencantamento significa portanto uma entrada em ação do potencial de racionalidade
presente no agir orientado para a intercompreensão:
“A aura de encanto e de atemorização que o sagrado irradia, a força de fascínio do que é santo, são sublimadas
pela força unificante das pretensões criticáveis à validade e, ao mesmo tempo, por ela tornadas cotidianas.” (II,119)
Ainda que Durkheim tenha captado o sentido da evolução social, ele não podia
compreender a passagem das formas de solidariedade mecânica às de solidariedade
orgânica como uma transformação da consciência coletiva, transformação que pode ser
reconstruída no interior do Mundo da Vida. Ele chega a evocar a "linguagerização"
(Versprachlichung) do sagrado, mas não consegue elaborá-la. Só mesmo a perspectiva
“reconstrutiva” de Mead permite mostrar que, à medida que a linguagem assume as
funções de intercompreensão, de coordenação da ação e de socialização dos indivíduos, é
a própria racionalização do Mundo da Vida dos grupos sociais que se coloca em marcha.
Trata-se sobretudo da diferenciação das componentes estruturais do Mundo da Vida, que
estavam antes imbricadas na consciência coletiva: separam-se a cultura, a sociedade e a
pessoa. A racionalidade desta tendência à "linguagerização" pode ser apreciada através do
fato de que estas três componentes do Mundo da Vida tornam-se cada vez mais
dependentes de atitudes que, quando problematizadas em termos de afirmação ou
negação, remetem a pretensões crtiticáveis à validade.
A superioridade da teoria de Mead aparece ainda na sua capacidade de explicitar
uma ética do discurso, a partir da explicação da lógica da evolução social. Apesar de ter
várias vezes sublinhado a necessidade de uma “moral universalista” para que uma
sociedade secularizada possa se manter unida, Durkheim não foi capaz de mostrar que
esta “moral universalista” é o resultado da racionalização comunicativa. Mead, ao
contrário, esboçou o fundamento genético de uma ética discursiva, apoiando-se numa
crítica de Kant: o fato de que a autoridade das normas morais dependa da capacidade
destas em encarnar o interesse geral é muito importante no plano da socialidade, pois o
Teoria do Agir Comunicativo 24
que está em jogo com a salvaguarda deste interesse geral é a unidade do grupo. Ora, à
medida que a linguagem se impõe como princípio de socialização, as condições de
socialidade convergem com as condições da intersubjetividade criada pela comunicação.
O imperativo categórico kantiano deve ser substituído por uma formação da vontade
mediante as condições idealizadas de um discurso universal. Ao contrário do que é
afirmado pela filosofia da consciência, não é jamais na sua pura individualidade, mas
somente numa comunidade de intersubjetividade, que o sujeito pode saber se uma norma
corresponde ou não ao interesse geral e se ela, por isso, adquire uma validade social.
A relação entre a moral universalista e a teoria da evolução é apresentada
simultaneamente como um imperativo moral e como uma tendência histórica:
“O conceito teórico de base da ética comunicativa é o discurso universal, o "ideal formal da intercompreensão
linguajar". Como esta idéia de uma intercompreensão racionalmente motivada já está presente na estrutura da
linguagem, ela não é uma simples exigência da razão prática; pelo contrário, ela está instalada na reprodução da vida
social. Quanto mais o agir comunicativo toma à religião o fardo da integração social, mais eficácia empírica deve
ganhar, no seio da comunidade de comunicação real, o ideal de uma comunidade de comunicação ilimitada e sem
distorções. Tal como Durkheim, Mead prova isto através da difusão das idéias democráticas, através das reformaulações
das bases de legitimação do estado moderno.” (II,147)
Contudo, Habermas nega que o projeto utópico de uma comunidade de
comunicação ideal possa servir de “fio condutor” a uma filosofia da história, pois ele teria
um valor metodológico bem definido:
“A construção do discurso ilimitado e sem distorções pode ser atribuída às sociedades modernas que
conhecemos, como um fundo cujo objetivo é fazer sobressair as tendências vagas da evolução, dando-lhes contornos
mais claros. Mead se interessa pelo modelo comum a estas tendências, a dominação progressiva das estruturas do agir
orientado para a intercompreensão ou, como dissemos, seguindo Durkheim, a "linguagerização" do sagrado.” (II,163)
De qualquer forma, Habermas procura se afastar de Mead no que se refere ao
caráter puramente formalista de sua ética do discurso, que só reconhece o critério da
universalização comprovado nas formas de vida concretas das sociedades modernas. Mas
Habermas critica ainda mais fortemente o idealismo da teoria da sociedade de Mead: sua
reconstrução negligencia as limitações externas, às quais está sujeita a lógica da mudança
de forma da integração social. Habermas refere-se aqui a tudo que diz respeito à
reprodução material da sociedade, que não pode ser compreendida a partir de uma
imagem da sociedade como Mundo da Vida estruturado pela comunicação.
“Os aspectos funcionais da evolução social devem ser opostos a seus aspectos estruturais, se não se deseja cair
na ilusão de uma impotência da razão comunicativa. Este é o tema hoje dominante na Teoria Sistêmica.” (II,165)
Neste aspecto, a teoria da divisão do trabalho de Durkheim é mais profunda do
que a reconstrução de Mead; ela será portanto o ponto de partida para uma nova tarefa:
tomar em conta o ponto de vista sistêmico.
4Talvez para evitar qualquer confusão com os Mass Media, Habermas não utiliza o plural latino de
medium. Assim, traduziremos Steuerungsmedien por “mediuns de regulação”.
Teoria do Agir Comunicativo 28
interações que não dependem dele para a coordenação das ações. Do ponto de vista do
Mundo da Vida, este “golpe” aparece como uma “tecnicização do Mundo da Vida”.
Chegamos assim ao coração do paradoxo weberiano da racionalização: o Mundo
da Vida racionalizado possibilita o surgimento e crescimento de subsistemas, cujos
imperativos se tornarão autônomos e se voltarão contra ele, para destruí-lo. Mas
Habermas tenta mostrar que esta evolução, apesar de causar uma violência estrutural, não
deve ser vista como um destino trágico.
Para tratar da questão da “reificação”, Habermas introduz o conceito de “forma da
intercompreensão”:
“A discreção subjetiva diante das exigências sistêmicas que instrumentalizam um Mundo da Vida estruturado
pela comunicação toma o caráter de uma ilusão, de uma consciência objetivamente falsa. Os efeitos do Sistema sobre o
Mundo da Vida, que transformam na sua estrutura os contextos de ação dos grupos socialmente integrados, devem
permanecer ocultos. As exigências da reprodução, que instrumentalizam um Mundo da Vida sem prejudicar a aparência
autárquica deste último, devem se ocultar como que nos poros do agir comunicativo. Daí resulta uma violência
estrutural que, sem tornar-se aparente, apodera-se da forma de intersubjetividade de toda intercompreensão possível. A
violência estrutural se exerce por meio de uma redução sistemática da comunicação; ela a tal ponto se incrusta nas
condições formais do agir comunicativo que, para os participantes da interação, a conexão entre os mundos objetivo,
social e subjetivo acaba por ser predeterminada de maneira típica. Para este a priori relativo da intercompreensão, eu
gostaria de introduzir o conceito de forma da intercompreensão (Verständigungsform), por analogia com o a priori do
conhecimento representado pela forma do objeto (Lukacs).” (II,278)
As formas de intercompreensão aparecem ao longo de toda a História, sempre nos
espaços onde as condições sistêmicas da reprodução material penetram, furtivamente, nas
formas de integração social; ainda assim, elas estão associadas à progressiva liberação do
potencial de racionalidade presente no agir comunicativo.
Ora, nas sociedades modernas, esta violência estrutural não pode mais se
dissimular atrás da racionalização: a forma moderna da intercompreensão é muito
transparente e a concorrência entre as formas de integração sistêmica e as formas de
integração social torna-se mais visível. Quando a “mediatização” atinge os domínios
onde a coordenação consensual da ação é insubstituível, ela torna-se uma colonização do
Mundo da Vida, ameaçando assim sua reprodução simbólica.
Antes de apresentar, na Consideração Final, sua última palavra sobre a
problemática da reificação, Habermas retoma o curso da História das Teorias, a fim de
encontrar na obra de T. Parsons uma mediação mais concreta entre a teoria do sistema e a
teoria da ação.
“religado os fios da História da Teoria”; contudo, sua solução não satisfaz ainda às
exigências de uma TAC.
No fim dos anos 50, Parsons decide substituir o primado da teoria da ação pelo da
teoria do Sistema; isto ocorreu, segundo Habermas, porque nenhuma das duas versões de
sua teoria da ação era suficientemente complexa para permitir a dedução de um conceito
de sociedade, como nos casos de Durkheim e Mead. Parsons foi assim levado a crer que a
passagem conceptual de ação para a conexão da ação representava toda uma mudança de
perspectiva analítica. Habermas julga entretanto que esta assimilação da conexão da ação
aos sistemas é fruto de um desconhecimento das capacidades da teoria da ação e,
sobretudo, da questão metodológica da relação entre uma perspectiva objetivista e uma
perspectiva interna. Os pattern-variables de Parsons servem apenas para descrever o
núcleo estrutural onde cultura, sociedade e personalidade se interpenetram, sem contudo
explicar a contribuição específica de cada um destes três “sistemas de ação” para a
orientação das ações. Estas três ordens permanecem portanto separadas; Parsons fará
delas “sistemas autônomos”, que se influenciam mutuamente, mas sem mediação alguma.
“Se os pattern-variables têm apenas o sentido elementar de fazer considerar as diferentes culturas como
combinações diferentes dos mesmos modelos de decisão, se eles não descrevem também uma estrutura que submete a
mutação destes modelos de decisão às limitações internas, Parsons acaba sem nenhum instrumento teórico para explicar
a resistência dos modelos culturais contumazes diante dos imperativos funcionais.” (II,346)
Para evitar estes problemas, a TAC busca resolver a tensão entre as duas
abordagens através da idéia de que as estruturas simbólicas do Mundo da Vida se
reproduzem por meio do agir comunicativo. Trata-se de ter um ponto de referência para
analisar as contribuições devidas à cultura, à sociedade e à personalidade na realização
das orientações de ação, mas mais ainda, de ver como estas três ordens resistem, em
conjunto, como elementos do Mundo da Vida estruturado simbolicamente. No plano
metodológico, trata-se de distinguir entre duas perspectivas, uma e outra indispensáveis:
uma interna, que elabora uma integração social como parte da reprodução simbólica do
Mundo da Vida, e uma externa, que elabora uma integração funcional como reprodução
material do Mundo da Vida (concebida como “conservação do Sistema”).
Sentindo a ausência de um conceito que correspondesse ao de Mundo da Vida,
Parsons tentou valer-se do de “sistema cultural”, mas a conseqüência desta tentativa foi o
surgimento de uma ambivalência: o sistema cultural deveria ser um sistema cobrindo o
sistema da ação e, simultaneamente, um sistema interno aos sistemas de ação. Tal
fracasso fez com que Parsons não reivindicasse mais uma situação particular para o
sistema cultural e passasse a rever sua construção teórica, dando primazia aos princípios
da Teoria dos Sistemas. Contudo, Parsons não consegue abandonar a idéia, tomada a
Durkheim, Freud e Weber, de considerar os sistemas de ação como encarnações de
modelos de valores culturais. Ele deseja portanto ligar seu funcionalismo sistêmico a uma
teoria da cultura neo-kantiana. Este compromisso se exprime no arranjo linear de quatro
subsistemas, cultura, sociedade, personalidade e organismo, onde o subsistema cultural
mantém uma posição dominante no que diz respeito à regulação do conjunto, mas ao
mesmo tempo depende do fornecimento de energia pelos outros subsistemas.
Habermas busca mostrar que a fragilidade deste compromisso deve-se a uma
articulação falha entre as conceptualizações da ação e do sistema na obra de Parsons. Esta
fragilidade é levada ao extremo em sua filosofia antropológica tardia, quando ele pede
um estatuto transcendental para as estruturas “finais”. Mas a análise de Habermas
concentra-se evidentemente sobre a teoria dos mediuns de comunicação, elaborada por
Parsons nos anos sessenta.
Teoria do Agir Comunicativo 30
Haveria assim uma relação analítica entre, de um lado, a grande complexidade do sistema
e, de outro lado, as formas universalistas de integração social e o individualismo
institucionalizado sem coerção.
“É este esquema analítico que obriga Parsons a projetar uma imagem harmoniosa de tudo o que cai sob a
descrição das sociedades modernas.” (II,432)
Mas, segundo Habermas, quando se assimila a racionalização do Mundo da Vida
a um crescimento de complexidade do Sistema social, não se dispõe mais de certas
distinções indispensáveis para captar as patologias da modernidade. Estas serão reduzidas
por Parsons a simples desequilíbrios intra-sistêmicos. Ora,
“só uma resistência interna pertinaz contra as revisões funcionalmente propostas, onde as imagens do mundo e
da sociedade são orientadas de forma unilateral, poderia explicar as crises, i.e., as perturbações que têm um caráter
sistemático e que representam algo bem diferente de simples desequilíbrios temporários.” (II,436)
8. A Consideração Final
- ela impede a Marx de distinguir entre destruição das formas de vida tradicionais
e reificação dos Mundos da Vida pós-tradicionais, pois ela não dispõe de um conceito de
racionalização para contrabalançar o de alienação;
- ela introduz um conceito muito limitado de reificação, que subestima a esfera
privada e o espaço público e se interessa apenas pelo mundo do trabalho.
Habermas propõe a substituição da Teoria do Valor marxista por seu modelo de
trocas entre, de um lado, economia e Estado, e de outro, esfera privada e espaço público,
ao qual deve ser incorporada ainda a dinâmica de um processo de acumulação que se
tornou seu próprio fim. Poderiam ser então explicados o intervencionismo do Estado, a
democracia de massas e o Estado-providência, três características do capitalismo
avançado que a ortodoxia marxista não pode captar, devido ao seu economicismo (a) e
seu desconhecimento do papel da cultura (b).
(a) o economicismo consiste em não compreender que o capitalismo avançado
utiliza à sua maneira a disjunção entre Sistema e Mundo da Vida:
“A estrutura de classes, removida do Mundo da Vida para o Sistema, perde sua figura historicamente
identificável. A distribuição desigual das indenizações sociais reflete um modelo de privilégios, que não se pode mais
associar diretamente com a situação de classe. É claro que as velhas fontes de desigualdade não se esgotaram de forma
alguma; todavia, junto com elas interferem não apenas as compensações do Estado social, mas ainda desigualdades de
um outro modelo.”
Habermas não entra em detalhes a respeito deste outro modelo; ele se interessa
mais pela aparição de uma reificação que não está ligada à problemática das classes
sociais. O Estado social, sustentado pelo crescimento econômico capitalista, transforma
as condições das quatro relações entre Sistema e Mundo da Vida: os papéis de
consumidor e de cliente são exaltados e os de empregado e cidadão são neutralizados. O
mundo do trabalho é pacificado, a participação política é separada do processo de
decisão. Contudo, a dinâmica do capitalismo implica num contínuo aumento do
crescimento do Sistema, que não demora a invadir as esferas do Mundo da Vida,
provocando uma resistência que Habermas chama de obstinada e auspiciosa (II,516).
(b) no que se refere à cultura, o marxismo tradicional dispõe apenas de uma teoria
da consciência de classe, que é de fato uma crítica da ideologia prolongando a teoria da
reificação. Habermas propõe substituí-la por uma teoria centrada em torno da estrutura de
comunicação que ele chamou “forma moderna de intercompreensão”. Segundo ele,
trata-se de explicar o empobrecimento cultural das sociedades modernas e não de criticar
sua ideologia.
Nos começos da modernidade, estamos ainda diante de uma forma de
compreensão global. Sob uma forma secularizada, o sagrado sobrevive numa cultura
burguesa que ainda não se tornou totalmente profana. Mas, à medida que este
desencantamento progride, a racionalidade da vida corrente vem substituir a das
“imagens do mundo” míticas ou religiosas na constituição das motivações e das
orientações axiológicas, provocando assim a “perda de sentido” que preocupava Weber.
Assim, os movimentos de massa modernos, da Revolução Francesa ao fascismo ou ao
anarquismo, foram marcados pela ideologia e apresentavam todos a mesma forma de
representações totalizantes da ordem social, dirigidos à consciência política por
companheiros de luta.
Esta forma desmorona-se necessariamente com a estrutura comunicativa da
modernidade avançada. A forma moderna de intercompreensão caracteriza-se por sua
separação em relação aos contextos normativos e pela diferenciação das formas de
argumentação, segundo as instituições: o discurso teórico nos estabelecimentos
Teoria do Agir Comunicativo 35
5Contudo, no prefácio à edição francesa de TAC, Habermas afirma que, cinco anos após o lançamento
do livro na Alemanha, ele refletia sobre a relação complexa entre Direito, Moral e Eticidade (Sittlichkeit)
e revia suas teses sobre a extensão do Direito, que talvez fossem muito radicais.
Teoria do Agir Comunicativo 36
reificação do trabalho vivo. Ora, segundo Habermas, o problema semântico que consiste
em ligar as descrições a partir do sistema e a partir da ação não deve ter repercussão sobre
as questões de conteúdo:
“(com a premissa do nível avançado de diferenciação do sistema jurídico, inerente ao sistema econômico
capitalista) a questão semântica - como esta ou aquela realidade pode ser traduzida de uma linguagem teórica em uma
outra? - se transforma na questão empírica - a partir de que momento o crescimento do complexo monetário-burocrático
passa a tocar em esferas de ação que não poderiam ser submetidas a mecanismos de integração sistêmica sem que haja
conseqüências patológicas?” (II,548)
Logo, não se pode falar de reificação, i.e., de uma “deformação patológica das
infraestruturas comunicativas do Mundo da Vida” (II,549), senão quando o Mundo da
Vida é obrigado a ceder ao Sistema as funções que dizem respeito à reprodução
simbólica; a reprodução material, entretanto, pode ser abandonada “sem dores” nas mão
do Sistema.
Apesar de sua oposição em relação à Teoria do Valor, a TAC segue o modelo de
Marx no que se refere a sua atitude crítica diante das Ciências Sociais e da realidade
social analisada. Diante da realidade do capitalismo, ela critica a incapacidade das
sociedades desenvolvidas de esgotar o potencial de aprendizagem oferecido por sua
cultura, ao mesmo tempo em que estas se deixam levar por um crescimento de
complexidade que não controlam mais. Diante das Ciências Sociais, a TAC critica a
incapacidade destas de decifrar os paradoxos da racionalização, pois elas a cada vez
escolhem apenas um aspecto abstrato segundo o qual a sociedade será elevada ao nível de
objeto: enquanto a teoria da diferenciação estrutural (R. Bendix, C. W. Mills,...) não
separa suficientemente Sistema e Mundo da Vida, a teoria do Sistema (Luhmann,...) e a
teoria da ação (E. P. Thompson,...) isolam e hipergeneralizam um dos dois aspectos.
Habermas tentou tornar fecundo um quarto caminho de pesquisa, o estruturalismo
genético da Psicologia do Desenvolvimento, para apropriar-se da sociologia da religião
de Weber, da teoria da comunicação de Mead e da teoria da integração social de
Durkheim e assim explicar as patologias da modernidade que as outras correntes, por
razões de método, não podem captar.
Segundo Habermas, os conflitos situam-se hoje na interseção do Sistema e do
Mundo da Vida: eles não nascem dos problemas de redistribuição de bens materiais, mas
de questões que referem-se à “gramática das formas de vida”, i.e., questões ligadas à
reificação das esferas de ação que só a comunicação pode estruturar (II,576). Habermas
julga que a expansão destas esferas de ação nas sociedades modernas torna “praticamente
verdadeira” a resistência do agir comunicativo sublinhada por sua teoria.
É contudo significativo que as últimas linhas do livro seja destinadas a provar, no
plano metodológico, que a TAC não utiliza o conceito de agir comunicativo como um
fundamento original ou último. Por um lado, ele admite que esta é uma questão que pode
ser levantada:
“De fato, a TAC visa este momento de incondicionalidade que, com as pretensões criticáveis à validade,
integra as condições do processo de formação do consenso - estas transcendem, enquanto pretensões, todas as limitações
espaciais e temporais, todas as limitações provinciais do respectivo contexto.” (II,586/7)
Mas, por outro lado, Habermas rebate esta crítica de “fundamentalismo” com dois
argumentos:
- A Filosofia se integra à TAC apenas dentro de uma “divisão de trabalho” com as
“ciências reconstrutivas”, i.e., com as ciências
“cujo ponto de partida se liga tanto ao saber pré-teórico dos sujeitos que falam, agem e julgam com
competência, quanto a sistemas transmitidos de saber coletivo, a fim de captar as bases da racionalidade da experiência e
do julgamento, do agir e da intercompreensão linguajar. (...) Sob a perspectiva da história das teorias, tentei mostrar,
com ajuda dos trabalhos de G. H. Mead, Max Weber e E. Durkheim, como as tarefas de experimentação científica e de
Teoria do Agir Comunicativo 37
análise filosófica-conceptual se engrenam mutuamente, neste tipo de teoria construída simultaneamente de forma
empírica e reconstrutiva. A Teoria genética do Conhecimento de J. Piaget é o melhor exemplo desta divisão do trabalho
cooperativa.” (II,587/8)
- Ainda que ela reivindique a garantia das estruturas universais do Mundo da
Vida, a TAC não se edifica sobre uma base transcendental. Ela deseja simplesmente estar
à altura da ratio essendi de seus objetos, sabendo que para isto é preciso ainda que o
contexto de vida objetivo onde está situado o pesquisador encarregue-se de abrir para este
a ratio cognoscendi. Em outros termos, a TAC tem consciência de sua relação com o
contexto social onde ela emerge; ela leva em conta o fato de que saber de fundo que
constitui o Mundo da Vida só se torna accessível para o pesquisador, quando um desafio
objetivo vem colocar o conjunto do Mundo da Vida numa situação problemática. Tal
desafio pode ser provocado pelo fenômeno da colonização e revelar para nós (für uns),
por razões ainda a precisar, as estruturas do Mundo da Vida.
Alheia a toda forma de transcendentalismo, a TAC está apta, segundo Habermas,
a dar continuidade à crítica do positivismo iniciada pela Teoria Crítica.