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Teoria do Agir Comunicativo 1

ROGERIO VALLE

A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO


DE JÜRGEN HABERMAS

Tradução do primeiro capítulo da tese “La Théorie de l'agir communicatif face aux
apports d'une sociologie comparative des organisations”
(Universidade Paris V - Sciences Humaines Sorbonne, junho 1989).

1. Introdução: Revendo a problemática da racionalidade, a partir de uma nova


relação entre a Filosofia e as Ciências Sociais.............................................................3
2. A Teoria da Racionalização em Max Weber............................................................8
3. A Primeira Consideração Intermediária: o conceito de Agir Comunicativo.........15
4. De Lukács a Adorno: o Esgotamento da Filosofia da Consciência.......................18
5. Mead e Durkheim: a Mudança de Paradigma na Teoria da Ação..........................20
6. A Segunda Consideração Intermediária: a relação entre o Sistema e o Mundo da
Vida.............................................................................................................................24
Teoria do Agir Comunicativo 2

7. Parsons e a Construção de uma Teoria da Sociedade............................................28


8. A Consideração Final..............................................................................................31
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1. Introdução: Revendo a problemática da racionalidade, a


partir de uma nova relação entre a Filosofia e as Ciências
Sociais

A “Teoria do Agir Comunicativo” (TAC) constitui uma reformulação parcial do


projeto teórico de Habermas. Em “A Lógica das Ciências Sociais”, ele pensava ainda em
uma fundamentação das Ciências Sociais numa teoria da linguagem. Agora, não se trata
mais de dar continuidade, com outros meios, à Teoria do Conhecimento; tal “interesse
metodológico” cedeu lugar a um “interesse substancial”:
“A Teoria do Agir Comunicativo não é nenhuma metateoria, mas o ponto de partida para uma teoria da
sociedade que se esforça em justificar seus parâmetros críticos.” (I,17)
A análise dos conceitos não pode mais prescindir da história da teoria da
sociedade; a obra será portanto construída em torno de uma releitura dos clássicos da
Sociologia (Weber, Mead, Durkheim, Parsons).
Fique claro, no entanto, que esta associação com a análise conceitual não é
imposta arbitrariamente às Ciências Sociais. Na Introdução, Habermas insiste que a
problemática conceitual de sua teoria, a da racionalidade, não é exterior à Sociologia. Ela
foi, pelo contrário, retirada do próprio Weber: trata-se do problema das formas tomadas
pela racionalização, durante a evolução social.
O conceito de agir comunicativo só será portanto desenvolvido na “primeira
consideração intermediária”, após um estudo da teoria weberiana da racionalização. Ele
abrirá caminho para a abordagem de três temáticas interligadas.
- Em primeiro lugar, o conceito de racionalidade comunicativa deverá
revelar-se céptico diante dos apelos às “últimas instâncias”, por parte da metafísica e da
religião; mas opor-se também a toda forma de redução instrumental da razão, por parte da
ciência e da técnica.
- O segundo tema a ser tratado é a obtenção de um modelo social “de dois
níveis”, i.e., integrando, “de modo não apenas retórico”, os paradigmas fundamentais das
abordagens fenomenológica e sistêmica em Ciências Sociais (respectivamente, o “Mundo
da Vida” e o “Sistema”).
- Finalmente, o autor deseja elaborar uma teoria da modernidade que
explique os fenômenos, cada vez mais evidentes, de “patologia social”, através da idéia
de uma submissão dos “domínios da vida que são estruturados pela comunicação” aos
“imperativos dos sistemas de ação que são formalmente organizados e que se tornam
autônomos” (I,8).
São estas três temáticas que explicam o interesse do autor pela problemática da
racionalidade. Porém, de que forma esta vem sendo tratada no debate teórico
contemporâneo? São analisadas a tradição filosófica (1) e a sociológica (2).
(1) A Razão foi sempre o tema fundamental da Filosofia. Hoje, entretanto, a crise
das visões de mundo totalizantes, e a exigência de uma racionalidade própria às ciências,
transformaram o pensar filosófico numa “Metafilosofia”, i.e., numa “teoria da
racionalidade”. Contudo, Habermas considera abstrata e estreita toda concepção da
racionalidade enquanto propriedade daqueles enunciados que podem ser verificados, ou
falsificados, por qualquer observador. Em outras palavras, não se pode admitir que
“pretensões à validade” (Geltungsansprüche) apoiadas numa trans-subjetividade ideal (p.
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ex., quando alguém invoca a verdade ou a eficiência para justificar suas afirmações)
sejam uma garantia de relações pretensamente objetivas com os fatos.
À esta concepção da racionalidade, Habermas substitui a de uma racionalidade
comunicativa, desenvolvida a partir da visão fenomenológica: a objetividade de um
mundo está ligada ao fato de que ele vale como um único e mesmo mundo, para toda
uma comunidade de sujeitos capazes de falar e de agir.
“Neste modelo, os enunciados racionais têm o caráter de ações dotadas de sentido, compreensíveis em seu
contexto, graças às quais o ator relaciona-se com qualquer coisa no mundo objetivo. As condições de validade
(Gültigkeitsbedingungen) dos enunciados simbólicos remetem a um saber de fundo, intersubjetivamente partilhado pela
comunidade de comunicação. Para este pano de fundo do Mundo da Vida, cada dissenso representa um desafio de
natureza própria.” (I,32)
Entretanto, o conceito de racionalidade proposto por Habermas deve ser capaz de
englobar também o conceito não -fenomenológico de racionalidade, o cognitivo-
instrumental, desenvolvido a partir da visão “realista” do mundo, i.e., da pressuposição
ontológica de um mundo objetivo.
“Há, na verdade, certas relações internas entre, por um lado, a capacidade de perceber de forma descentrada, e
de manipular, as coisas e os fatos, e por outro lado, a capacidade de uma inter--compreensão (Verständigung) inter-
subjetiva, a respeito das coisas e dos fatos. É por esta razão que Piaget escolheu o modelo combinado da cooperação
social, segundo o qual vários sujeitos coordenam, através da atividade comunicativa, suas intervenções no mundo
objetivo.” (I,32)
De qualquer forma, a racionalidade própria à prática comunicativa se estende
sobre um espectro maior. Para obter e renovar, sob o pano de fundo do Mundo da Vida,
um consenso que repousa sobre o reconhecimento intersubjetivo de pretensões à
validade, dispõe -se não apenas dos atos de linguagem constativos (aqueles que tendem
apenas a descrever uma coisa ou fato)1, mas também das ações reguladas por normas, das
representações do eu expressivas e dos enunciados avaliadores. Mesmo assim, é preciso
que, em todos estes casos, que cada membro da comunidade de práticas comunicativas
“dê uma razão para” justificar seus pontos de vista em cada um de três domínios: o
cognitivo-instrumental, o moral-prático e o estético. É preciso convencer os outros a
aceitar, num certo contexto, a pretensão à validade ligada à sua declaração. A TAC é
portanto dependente de uma teoria da argumentação.
(2) Entre as Ciências Sociais, é a Sociologia que é mais ligada a uma teoria da
racionalidade, pois ela não se limita a um único subsistema, como a Antropologia, a
Economia ou a Ciência Política. Seu tema é as transformações da integração social nos
países europeus, provocadas pelo desenvolvimento sistêmico do estado e da regulação
econômica pelo mercado; assim, ela defronta inevitavelmente as estruturas do Mundo da
Vida e não pode evitar uma tríplice consideração da problemática da racionalidade:
¨ (a) do ponto de vista metateórico, pode-se constatar que todas as vezes que o
sociólogo se encontra face ao problema, primordial, da definição do conceito de ação, ele
deve empregar algum conceito de racionalidade. Mas os inúmeros conceitos de ação
utilizados, em geral de forma implícita, nas teorias das Ciências Sociais, podem ser
essencialmente reduzidos a quatro conceitos fundamentais (I,126-151) :
- o conceito de agir teleológico, segundo o qual um ator isolado se
encontra diante do problema da escolha dos meios que lhe permitirão atingir seu objetivo.
Neste caso, o conceito central para a problemática da racionalidade é o da decisão entre
1 Foi Austin quem opôs os enunciados performatórios (performative utterances) aos enunciados
constativos. Uma expressão é dita constativa se ela tende a simplesmente descrever uma coisa ou um
fato; ela é dita performatória se, além dela descrever uma certa ação de seu locutor, sua simples
enunciação significa a realização desta ação (p. ex. a frase “eu prometo que...”, ou o “sim” dos noivos
diante do altar, etc).
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alternativas de ação. O agir teleológico pressupõe a existência de um só mundo, o mundo


objetivo. As relações entre o ator e este mundo objetivo permitem apenas expressões
podendo ser julgadas segundo os critérios da verdade e da eficiência. Este modelo possui
uma variante moderna, onde o ator inclui em seus cálculos a expectativa que ele possui
da decisão de outros atores: é o modelo estratégico (teoria da decisão, teoria dos jogos,
etc), que prevê uma certa coordenação das ações, mas unicamente na medida em que isto
corresponda ao cálculo egocêntrico de utilidade efetuado por cada ator.
- o conceito de agir regulado por normas apóia-se na idéia de que os
membros de um grupo social orientam sua ação segundo normas ou valores comuns. Para
a problemática da racionalidade, o conceito central é, aqui, o de obediência a normas. A
teoria dos papéis sociais, p. ex., está baseada neste modelo. Do ponto de vista das
pressuposições ontológicas, trata-se de um modelo com dois mundos: ao mundo objetivo
dos fatos existentes vem juntar-se o mundo social, i.e., um contexto normativo que
classifica as interações segundo sua conformidade com as relações interpessoais
legítimas.
- o conceito de agir dramatúrgico supõe a idéia de um ator que produz em
seu público uma certa imagem dele mesmo, desvelando, de forma mais ou menos
intencional, sua subjetividade. Neste caso, o conceito central para a problemática da
racionalidade é o de “representação do eu” estilizar a expressão de suas próprias
experiências, tendo em vista o espectador. Este conceito, criado por Goffman, é o
primeiro a admitir a existência de um mundo subjetivo ao lado dos dois outros. A auto-
encenação comporta uma pretensão à veracidade subjetiva, mesmo se o ator não é
“sincero” e manipula falsas impressões.
- o conceito de agir comunicativo supõe sujeitos que buscam um acordo
acerca de uma situação de ação, a fim de coordenar, de forma consensual, suas ações. O
conceito central para a problemática da racionalidade é, neste caso, o de interpretação,
uma vez que a linguagem tem um papel fundamental para a obtenção do consenso.
Segundo o próprio Habermas, foram Mead e, mais tarde, Garfinkel, os que primeiro
admitiram esta pressuposição suplementar de um medium de linguagem. Antes, a
problemática da racionalidade interessava apenas ao sociólogo; agora, ela torna-se
patente para os próprios atores. Todos os outros modelos concebem a linguagem de
forma unilateral, ou mesmo reducionista; eles lidam portanto com casos-limite da
atividade comunicativa e podem ter suas dimensões -chave integradas neste quarto
modelo.
(b) do ponto de vista metodológico, a questão da racionalidade ressurge todas as
vezes que o sociólogo decide ter acesso ao domínio dos objetos simbólicos através da
compreensão do sentido, pois nestes casos ele assume que a compreensão das orientações
racionais da ação é o horizonte de referência para a compreensão de todas as orientações
de ação (o que não significa que ele considere todas as ações empíricas como racionais).
Esta forma de acesso ao objeto quer esclarecer as relações internas entre a explicação da
significação de uma expressão simbólica, e a tomada de posição em relação às pretensões
à validade, levantadas por esta expressão. A questão que se coloca é, portanto, de saber
como a compreensão pode ser objetiva.
Por um lado, Habermas admite que as relações entre um ator estratégico e seu
mundo objetivo, ou entre um ator agindo segundo normas e o mundo social, ou entre um
ator dramatúrgico e o mundo subjetivo, podem sempre, em princípio, ser objetivamente
apreciadas, não somente pelo observador, como pelo próprio ator (I,157). Mas, por outro
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lado, ele faz ver que, quando confrontamos o desdobramento efetivo de uma ação com
modelos capazes de estilizá-la de acordo com um único aspecto da racionalidade (i.e., de
acordo com a verdade da proposição, a eficiência ou o sucesso instrumental, no caso do
primeiro modelo; de acordo com a exatidão normativa, no segundo; de acordo com a
autenticidade ou veracidade, no terceiro), precisamos invocar uma descrição da ação que
não dependa da interpretação racional. Ora, estes três modelos não problematizam tal
atividade hermenêutica prévia, mas apenas a pressupõem, de maneira ingênua.
“A descrição do desenrolar efetivo de uma ação exige uma interpretação complexa, que já se serve,
implicitamente, da conceituação ligada à racionalidade comunicativa e que, à exemplo das interpretações cotidianas,
possui as características de uma interpretação em princípio racional. A possibilidade de escolher entre uma interpretação
descritiva e uma interpretação racional só surge quando um dos modelos não -comunicativos de ação obriga o
observador à abstração, i.e., a acentuar cada vez um só aspecto do complexo constituído por uma interação desenvolvida
através de pretensões à validade.” (I,174)
No quarto modelo, o próprio êxito de uma interação depende da possibilidade de
um entendimento mútuo dos participantes, a respeito de uma apreciação
intersubjetivamente válida de suas relações com o mundo. Ele é o único a exigir, desde o
começo, uma interpretação racional: o agir orientado para a intercompreensão possui uma
estrutura interna racional. Ora, para que a exigência de racionalidade seja respeitada,
torna-se necessário atribuir um valor universal a esta estrutura racional interna: o próprio
uso do discurso implica numa exigência de universalidade. O próprio Habermas
reconhece que
“esta é uma exigência muito forte para alguém que opera sem cobertura metafísica e que não confia mais
tampouco na executabilidade de um programa rigoroso de Pragmática transcendental que assumisse as exigências de
última instância.” (I,198)
Se não se deseja recorrer, portanto, às garantias da grande tradição filosófica,
restam ainda três caminhos de pesquisa, capazes de fundamentar a universalidade da
racionalidade comunicativa:
- reconstruir, hipoteticamente, o saber pré-teórico empregado pelos
locutores competentes, quando eles utilizam frases nas ações orientadas para a
intercompreensão;
- tentar avaliar o valor da utilização empírica das análises obtidas pela
Pragmática Formal;
- lançar-se numa releitura da história das teorias sociológicas, vendo-as
como teorias da racionalização social. Esta foi a escolha de Habermas.
“Aliás, a vantagem de reconstruir a história das teorias é de nos permitir um vai-e-vem na Teoria da Ação,
entre os conceitos, as hipóteses teóricas e suas evidências empíricas ilustrativas; e ao mesmo tempo poder tomar como
ponto de referência o seguinte problema fundamental: saber se e, eventualmente, como, a modernização capitalista pode
ser concebida como um processo de racionalização unilateral.” (I,202)
¨ (c) do ponto de vista empírico-teórico, a problemática da racionalidade traduz-se
na seguinte questão: em que sentido a modernização própria das sociedades ocidentais
pode ser compreendida como um processo de racionalização cultural e social, tendendo a
propagar-se universalmente? Sem dúvida alguma, o agir orientado para a
intercompreensão não é o caso normal na prática da comunicação: há, por um lado, uma
contradição entre a compreensão mítica do mundo (sociedades arcaicas) e a compreensão
moderna do mundo (sociedades modernas) e, por outro lado, contradição, no seio mesmo
da sociedade moderna, entre o Mundo da Vida (Lebenswelt) e o Sistema.
Habermas examina a seguir apenas a primeira destas contradições, deixando a
outra para a “Segunda Consideração Intermediária” (cap. VI). Para isto, ele introduz o
importante conceito de imagens do mundo (Weltbilder): sistemas culturais de
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interpretação, que refletem o saber de fundo dos grupos sociais e que garantem uma linha
coerente na multiplicidade de suas orientações de ação.
“Os limites da racionalidade de cada imagem do mundo não são dados por suas propriedades
lógicas e semânticas, mas pelos conceitos fundamentais que ela coloca à disposição dos indivíduos, para a interpretação
de seu mundo.” (I,75)
Habermas procura a pré-compreensão que se encontra no nível mais profundo das
posições modernas da consciência. Tal pré-compreensão se distingue claramente das
imagens do mundo das sociedades primitivas, pois as práticas mágicas desconhecem a
diferença entre ação teleológica e ação comunicativa: segundo a descrição da
compreensão mítica do mundo feita por M. Godelier, o mito impediria uma diferenciação
conceitual entre os objetos manipuláveis e os sujeitos da ação.
Porém, se Habermas quer adotar uma teoria da evolução, quer também evitar um
pré-julgamento das questões relativas à dinâmica da evolução, ou seja: ele deseja rejeitar
o relativismo generalizado, sem cair no entanto em uma causalidade idealista (um
progresso contínuo, necessário, etc). Ele introduz então a hipótese de que a racionalização
das imagens do mundo se dá através de processos de aprendizagem. Desta forma ele
poderá, p.ex., ler a teoria weberiana da evolução das imagens religiosas do mundo, a
partir de uma analogia com o modelo de aprendizagem que Piaget desenvolveu para
descrever a ontogênese das estruturas da consciência, no qual as etapas do
desenvolvimento cognitivo são caracterizadas não pelos novos conteúdos, mas pelos
níveis de capacidade de aprendizagem, descritos em termos de estrutura (I,104).
O mito, que era o sistema conceitual de base das sociedades primitivas, perdeu sua
capacidade de explicar e de justificar; foi desta forma que se passou às grandes
civilizações, onde se interpreta as tradições por meio de figuras de pensamento religiosas,
cosmológicas ou metafísicas; mais tarde, estas seriam por sua vez desvalorizadas;
entramos assim na modernidade. Segundo Habermas, não é esta ou aquela razão que não
convence mais, mas o tipo de razão empregada. Estas ondas de desvalorização das
interpretações da tradição se explicam pela passagem a novos níveis de aprendizagem: as
condições de aprendizagem se modificam, seja na dimensão do pensamento objetivante,
seja na do discernimento moral-prático, seja na da experiência estética.
A analogia com a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget prossegue
através do conceito de descentração de uma compreensão “egocêntrica” do mundo. A
concepção “descentrada” é aquela que não se considera mais como “o centro do mundo”,
mas que reconhece ser apenas uma das interpretações possíveis do mundo, jamais
idêntica a ele. Trata-se de uma conquista maior da modernidade, que supera o
dogmatismo “realista” dos primitivos. Piaget compreende o desenvolvimento cognitivo
não apenas como a construção de um universo exterior, mas sobretudo como a
construção de um universo de referência, permitindo demarcar, ao mesmo tempo, os
limites entre os mundos subjetivo e objetivo, e entre os mundos subjetivo e social. A
descentração das imagens do mundo provoca a racionalização do Mundo da Vida: ela
provoca a crise da tradição, insensível a toda forma de crítica, e traz a necessidade de um
acordo racional (i.e., obtido de forma comunicativa) a fim de restaurar o pacto social.
Habermas chega mesmo a elaborar uma lista das propriedades formais que uma
tradição cultural deve possuir para que o Mundo da Vida possa ser racionalizado,
permitindo assim que as orientações de ação se condensem em torno de uma conduta
racional de vida: ela deve ser capaz de consentir a sua própria crítica; ela deve permitir
um desenvolvimento autônomo de suas componentes cognitivas e avaliadoras (i.e., das
relações com os mundos objetivo e subjetivo); finalmente, ela deve dar uma margem de
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liberdade à atividade orientada para o sucesso, eximindo-a, ao menos parcialmente, dos


imperativos de uma intercompreensão (Verständigung) que está sempre se renovando
através da comunicação.
“Quando utilizamos o conceito piagetiano de descentração como fio condutor para explicar a relação interna
entre as estruturas de uma imagem do mundo, o Mundo da Vida como contexto de processos de intercompreensão e as
possibilidades de uma conduta racional de vida, deparamo-nos novamente com o conceito de racionalidade
comunicativa. Este conceito relaciona a compreensão descentrada do mundo com a possibilidade do resgate discursivo
das pretensões criticáveis à validade.” (I,110)
Habermas admite, porém, que o egocentrismo se renova em todas as etapas da
evolução; portanto, a modernidade possui também sua “ilusão específica”: uma
racionalidade unilateral, limitada à dimensão cognitiva-instrumental. No entanto, a crítica
desta ilusão poderá ser feita por uma teoria do agir comunicativo, onde a descentração da
compreensão do mundo e a racionalização do Mundo da Vida sejam as condições
necessárias para a emancipação da sociedade. Este é o propósito de Habermas.

2. A Teoria da Racionalização em Max Weber

É na obra de Weber que Habermas identifica a articulação exemplar dos três


níveis da problemática da racionalidade na Sociologia. Segundo ele, Weber seria o único
sociólogo clássico que teria conseguido pensar a modernização como o resultado de um
processo universal de racionalização, sem sucumbir à filosofia da história ou ao
evolucionismo. Mesmo assim, haveria uma inconsistência na utilização weberiana do
conceito de racionalidade: ela seria bastante complexa na análise do “desencantamento do
mundo” (i.e., da história da religião), mas muito limitada, na análise da racionalização
social (i.e., do fenômeno da “burocratização”). De qualquer forma, Weber não aprofunda
a elucidação do conceito em nenhum dos dois casos.
A redução da racionalidade a uma simples racionalidade segundo um fim
(Zweckrationalität) seria comum a Weber, Marx, Horkheimer e Adorno. Para Marx, a
racionalização obra através do desenvolvimento das forças produtivas, mas as relações de
produção (i.e., as instituições) a entravam; para Weber, ao contrário, o centro do processo
de extensão do racionalismo ocidental está nas instituições da economia capitalista e do
Estado moderno, impregnadas da racionalidade segundo um fim. Mas o próprio Weber
irá logo temer que a burocratização reifique as motivações que impulsionam a “conduta
racional de vida”. É a partir desta perspectiva weberiana que Horkheimer, Adorno e
Marcuse interpretam Marx: a autonomia da razão instrumental provoca, por meio das
forças produtivas desenfreadas, uma estabilização das relações de produção alienantes.
De Marx à Escola de Frankfurt, passando por Weber, a racionalização perde seu caráter
positivo e torna-se uma forma de violência. Habermas acusa todos estes autores, de
confundirem racionalização social e crescimento da racionalidade instrumental e
estratégica. Além disto,
“seja com o conceito de associação de livres produtores, seja com os modelos históricos de uma conduta de
vida ética e racional, seja enfim com a idéia de uma relação fraternal com a natureza redimida, todos estes autores
manifestam a mesma vaga idéia de uma racionalidade social e global, através da qual é medido o valor relativo dos
processos de racionalização descritos empiricamente. Mas este conceito englobante de racionalidade deveria ter sido
estabelecido no mesmo plano dos conceitos de forças produtivas, de subsistemas de ação racional segundo um fim e de
suportes totalitários da razão instrumental. Isto não ocorre. A primeira razão que vejo para isto são os impasses da teoria
da ação: os conceitos de ação empregados por Marx, Max Weber, Horkheimer e Adorno não são suficientemente
complexos para captar todos os aspectos das ações sociais, aos quais pode se aplicar a racionalização social. A outra
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razão que vejo é a mistura de conceitos fundamentais da teoria da ação e da teoria dos sistemas: a racionalização das
orientações de ação e das estruturas do Mundo da Vida não é a mesma coisa que o crescimento de complexidade dos
sistemas de ação.” (I,209)
O primeiro passo nesta releitura de Weber consiste em situá-lo do ponto de vista
da História das Ciências. Quando Weber retoma a temática da racionalização e a
transforma num problema a ser trabalhado experimentalmente, seu ponto de partida é a
crítica das duas correntes que a haviam introduzido entre os séculos XVIII e XIX: a
filosofia da história e o evolucionismo. Foi através de “tomadas de posição” em relação
às controvérsias sobre o determinismo evolucionista, sobre o naturalismo ético, sobre o
relativismo e sobre o racionalismo, que Weber veio a colocar sua questão central, sobre a
relação entre racionalização e modernização: por que o desenvolvimento científico,
estético e político não engendrou, fora do espaço cultural do ocidente, certas
manifestações típicas do racionalismo ocidental?
Segundo Habermas, haveria dois grandes impulsos a distinguir no processo de
racionalização descrito por Weber:
- a racionalização das imagens do mundo (trata-se do “desencantamento
do mundo” e da diferenciação e autonomização das ordens cognitiva, normativa e
expressiva), a qual elabora as “estruturas de consciência” modernas;
- a corporificação destas “estruturas de consciência” modernas, nas
instituições: trata-se da institucionalização do agir racional segundo um fim.
Distinguir estes dois impulsos equivale a supor que a racionalização cultural (no
interior do domínio religioso) se converte em racionalização social (praticamente, no
interior da empresa capitalista e do Estado) (I,225-239).
(a) Por um lado, Weber aplica a problemática da racionalização no plano das
estruturas de consciência, i.e., nos planos da personalidade e da cultura:
(i) no plano da personalidade, a manifestação típica do racionalismo
ocidental é a constituição de uma conduta metódica de vida, cujas raízes se encontram
entretanto em um outro plano, o da cultura, ou mais exatamente, na ética da convicção
(Gesinnungsethik), de origem religiosa. A ética protestante e sua representação da
“vocação” se concretizam, no que diz respeito às interações sociais no mundo do
trabalho, em uma atitude cognitiva-instrumental. A conduta metódica de vida tem
portanto um tal poder motivador (ela cria orientações axiológicas e disposições de ação),
que Weber foi levado a considerá-la como o fator mais importante do capitalismo.
(ii) no plano da cultura, a manifestação típica do racionalismo ocidental é
a diferenciação de três esferas de valor, cada uma seguindo uma lógica própria: a ciência
e a técnica; a arte autônoma e os valores ligados a uma “representação do eu” expressiva;
finalmente, a consciência jurídica e moral pós-convencional. Trata-se aqui não da
“racionalidade de orientações de ação”, como no plano da personalidade, mas de uma
“racionalidade dos pontos de vista sobre o mundo” e de uma “racionalidade das esferas
de valor”.
(b) Por outro lado, os fenômenos de racionalização que Weber quer explicar se
situam no plano da sociedade:
(iii) no plano da sociedade global, a manifestação típica do racionalismo
ocidental é aquela estudada em “Economia e Sociedade”: a diferenciação entre uma
economia capitalista e um Estado moderno, cujas relações serão reguladas pelo direito
formal. Estes fenômenos da racionalização social serão relacionados com os conceitos
elaborados a partir de outros fenômenos, principalmente, dos fenômenos da
racionalização das motivações e da cultura (I,226-252).
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Realmente, se Weber elevou a figura histórica da conduta de vida própria à ética


protestante ao patamar de “tipo de ação”, é porque ela seria a melhor representação do
conjunto das ações capazes de preencher integralmente as condições da racionalidade
prática, i.e., capazes de unir a “atividade racional segundo um fim” e a “atividade racional
segundo um valor”.
Compreendamos: há três dimensões a considerar (o emprego dos meios, a fixação
dos objetivos e a orientação segundo os valores), as quais se combinam entre elas, de
forma a criar três critérios de avaliação das ações:
- a racionalidade instrumental de uma ação se mede pela eficiência na
planificação dos meios empregados, dados certos fins prefixados;
- a racionalidade na escolha (Wahlrationalität) de uma ação se mede pela
exatidão dos cálculos que fixam os fins, dados certos valores bem precisos, certos meios
e certas condições;
- a racionalidade normativa de uma ação se mede pelo poder (força e
profundidade) unificador e sistematizador exercido pelas escalas de valores e pelos
princípios que servem de base às preferências de ação (I,245).
As ações que satisfazem aos dois primeiros critérios de avaliação são chamadas
por Weber de “racionais segundo um fim”; as que satisfazem ao terceiro critério são
chamadas de “racionais segundo um valor”. Weber teme que a cultura ocidental moderna
se desenvolva de forma a fazer com que os progressos na racionalização “segundo os
fins”, sejam obtidos em detrimento da racionalização “segundo os valores”. No entanto, a
ascese calvinista-puritana da vocação era ainda capaz de ligar o aspecto “formal” da
racionalidade (i.e., tudo que diz respeito à instrumentalidade e à escolha dos fins) e seu
aspecto “material” (i.e., tudo que diz respeito à escolha de um sistema de valores).
É neste ponto que surge a crítica de Habermas a Weber, à qual já aludimos: o
conceito englobante de racionalidade (formal e material) não é desenvolvido de forma
explícita e aprofundada. Ele é retirado de “estruturas de consciência” que não se
exprimem imediatamente nas ações e nas formas de vida, mas nas tradições culturais.
Weber interrompe aqui a teoria da ação e transfere o estudo da racionalização para uma
teoria da cultura, i.e., para uma sistematização das imagens do mundo pelos intelectuais
(os quais elaboram as relações internas dos sistemas simbólicos) e para um progresso
autônomo de cada uma das esferas de valor (ciência, moral e arte) a partir de seus
próprios critérios.
Na obra de Weber, este conceito englobante de racionalidade é decisivo para a
questão da situação da cultura ocidental diante das outras culturas. Weber julga que o
pluralismo dos sistemas de valor é irredutível e escapa à esfera das escolhas racionais;
porém, podemos avaliar a maneira mais racionalizada ou menos racionalizada como as
pessoas, no interior de cada sistema de crenças, se referem aos seus próprios valores
fundamentais. Habermas julga que a conceituação empregada por Weber em sua
problemática da racionalidade é incompatível com todas as formas de relativismo. A
posição universalista não implica, entretanto, em ocultar a incompatibilidade “material”,
i.e., dos conteúdos culturais; ela afirma que cada cultura, ao atingir um determinado grau
de “conscientização” (Bewußtmachung) ou de sublimação, passa a partilhar certas
propriedades formais da compreensão moderna do mundo.
“O universalismo se refere portanto às características estruturais necessárias do Mundo da Vida moderno, em
geral.” (I,255)
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Uma consistência formal das “estruturas de consciência” universais exprime-se


nestas esferas de valores culturais que, por seu próprio movimento, desenvolvem-se
segundo os critérios abstratos da verdade, da exatidão normativa e da autenticidade; ou
seja, tal consistência formal exprime-se, respectivamente, no pensamento científico, nas
representações pós-tradicionais do direito e da moral, e na arte autônoma, que seriam
assim propriedade da “comunidade dos homens de cultura” (die Gemeinschaft der
Kulturmenschen, I,254).
Weber dá mostras, é verdade, de certas restrições relativistas, que podem dar
mesmo a impressão de uma posição culturalista, como p. ex. quando ele escreve, no
ensaio sobre a ética protestante: “a vida pode ser racionalizada sob pontos de vista
últimos extremamente diferentes e segundo direções muito diferentes”. Elas se explicam,
no entanto, pelo fato de que Weber atribui a uma especificidade cultural a particularidade
do racionalismo ocidental. Habermas retoma portanto sua crítica:
“Porém, saber se e, eventualmente, como o relativismo dos conteúdos de valor atinge o caráter universal da
direção do processo de racionalização, é uma questão que depende do plano sobre o qual se estabeleceu o pluralismo
dos “pontos de vista últimos”. Uma posição culturalista deve exigir que possa ser designado para cada forma de
racionalidade, e no mesmo plano, ao menos um ponto de vista abstrato sob o qual esta forma poderia ter sido
simultaneamente descrita como 'irracional'. É exatamente isto que Weber parece querer afirmar para os conceitos de
racionalidade que nós percorremos. Mas ele não pôde manter esta afirmação.” (I,256)
Entretanto, quando Weber admite a existência de elementos “irracionais” na ética
protestante da vocação (a repressão interna do indivíduo), ele deveria situá-los no mesmo
plano conceitual dos traços racionais desta figura histórica exemplar. Esta lacuna em
Weber revela a necessidade de um conceito comunicativo de racionalidade.
Habermas corrige ainda Weber no que diz respeito à compreensão moderna do
mundo. Weber dá uma grande importância ao papel desempenhado pelas esferas culturais
de valor (a ciência, o direito e a moral, a arte) na diferenciação e na autonomização dos
sistemas parciais, ou esferas de vida modernas. Habermas julga que os “pontos de vista
últimos” da compreensão moderna do mundo não devem ser considerados como
conteúdos particulares de valores culturais, mas como critérios abstratos que orientam o
desenvolvimento autônomo das esferas de valor: trata-se da verdade e do sucesso, para as
esferas de valor cognitivas (ciência); da legitimidade e da exatidão normativa em geral,
para as esferas de valor moral-práticas (direito e moral); da beleza, da autenticidade e da
veracidade para as esferas de valor expressivas (arte, literatura, etc).
“Estas pretensões à validade formam um sistema, ainda que cheio de tensões internas, que provavelmente
aparece primeiro na figura do racionalismo ocidental, mas que, indo além da especificidade desta cultura determinada,
reivindica uma validade universal, que se impõe para todos os 'homens de cultura'“ (I,259)
Segundo Habermas, isto não retira a validade da tese que Weber desenvolve em
suas “Considerações Intermediárias” (segundo a qual, do ponto de vista de cada esfera de
vida singular, a racionalização de todas as outras pode parecer “irracional”), pois a
autonomia das esferas de valor modernas conduz a uma incompatibilidade geral que é
fonte de conflitos. No entanto, ele julga que esta crítica não pode se referir ao
desdobramento racional da lógica própria às esferas de valor singulares, mas sim, à
autonomização de certas esferas de vida, em detrimento de outras.
Para Weber, por trás do racionalismo ocidental e de sua diferenciação das esferas
de valor, há uma racionalização das imagens religiosas e metafísicas do mundo. É
portanto preciso explicar a racionalização religiosa, antes de passar à racionalização
social (i.e., ao fenômeno da burocratização).
Weber não explicita seu pano de fundo teórico: a filosofia neo-kantiana dos
valores. O conceito sociológico de “ordem de vida” (Lebensordnung) deve ser entendido
Teoria do Agir Comunicativo 12

a partir do conceito filosófico de “realização de valor” (Wertverwirklichung). Segundo


Rickert, os atores referem os fatos vividos, de maneira incessante, ao sistema de valores
que lhes é próprio. Assim surge a cultura. O sociólogo pode tirar proveito desta
característica de seu objeto de relacionar-se com os valores, se ele ligar a descrição das
ordens de vida sociais, com uma reconstrução das idéias e valores que nelas estão
incorporadas.
“Weber não poderia jamais ter elaborado uma Teoria da Racionalização, se ele não estivesse convencido,
enquanto um neo-kantiano, que ele podia contemplar de dentro e de fora, simultaneamente, os processos de 'realização
de valor'; que ele podia ainda examiná-los como fenômenos empíricos e, ao mesmo tempo, como objetivações do saber;
que ele podia unir os aspectos da realidade e os aspectos da validade. É este o tipo de exame exigido pelo
desencantamento de imagens religioso-metafísicas do mundo.” (I,263)
Este pano de fundo neo-kantiano se exprime através da articulação das idéias e
dos interesses: esta é definida como uma articulação entre as respostas às necessidades
interna e externa do homem, dentro portanto de uma antropologia que reflete
perfeitamente o dualismo kantiano. As necessidades materiais dependem de idéias para
poderem ser legítimas; as idéias, por sua vez, dependem de instrumentos de poder para
poderem se impor. Contudo, o ponto de vista da legitimação é, para Weber, o mais
decisivo:
- o agir é movido pela “dinâmica dos interesses”, mas esta quase sempre
só se põe em ação no interior de regras normativas, cujo valor é efetivo;
- a validade destas regras normativas baseia-se na força de convicção das
idéias que podem ser mobilizadas para fundamentá-las;
- tal força de convicção das idéias depende também, por sua vez, do
potencial de fundamentação e de justificação que estas idéias, num dado contexto,
representam.
Portanto, para Weber, uma ordem legítima depende, para se manter, das
limitações estruturais que resultam do potencial de legitimação das idéias e imagens do
mundo disponíveis (I,271).
Mas, segundo Habermas, para analisar melhor a articulação entre idéias e
interesses (i.e., entre necessidades humanas internas e externas) no processo histórico de
racionalização religiosa, é preciso separar os aspectos estruturais dos aspectos
substanciais. É preciso distinguir, mais claramente do que Weber, entre entre a
problemática dos conteúdos, que dão o fio condutor para realizar a racionalização, e as
estruturas de consciência, que provêm da conversão ética (Ethisierung) das imagens do
mundo. Os conteúdos de imagens do mundo refletem as diversas soluções trazidas para o
problema da Teodicéia; os aspectos estruturais, por sua vez, indicam a direção universal
da racionalização religiosa: uma compreensão desencantada do mundo.
“Se admitirmos então que a direção do desenvolvimento das religiões pode ser explicado pela lógica própria
do problema central e das estruturas de imagens do mundo, enquanto que a inscrição, nos conteúdos, das possibilidades
estruturalmente circunscritas, deve, por sua vez, ser remetida a fatores externos, então obteremos uma clara distinção
metodológica: o trabalho de reconstrução racional se estende até as ligações internas de sentido e validade, com o
objetivo de ordenar as estruturas de imagens do mundo segundo uma lógica evolutiva e de ordenar os conteúdos
segundo uma tipologia; a análise empírica, i.e., sociológica, no sentido estrito, volta-se, ao contrário, para os
determinantes externos dos conteúdos de imagens do mundo e para as questões da dinâmica da evolução.” (I,275)
Temos assim, de um lado, as estruturas de consciência oriundas das sínteses,
cheias de tensões, das tradições judaico-cristãos, árabes e gregas; de outro lado, os fatores
externos que favoreceram a diferenciação de um sistema econômico de mercado e de um
aparelho de Estado que o complementa.
Sabendo-se que Weber considera idéias e interesses como fatores de igual
preeminência, o processo de modernização poderia ser lido tanto “por cima”, como “por
Teoria do Agir Comunicativo 13

baixo”, i.e., tanto enquanto consolidação motivacional e corporificação institucional de


estruturas de consciência, como enquanto solução inovadora para superar os conflitos de
interesse, que resultam dos problemas da reprodução econômica e da luta política pelo
poder. Utilizados convenientemente, os dois caminhos podem levar a uma explicação
complexa da modernidade, i.e., a uma explicação que leve em conta a interpenetração de
idéias e interesses, sem fiar-se em apriorismos a respeito da dependência causal (no
sentido de um idealismo ou de um materialismo ingênuos). Mas Weber preferiu tomar as
coisas “por cima”: ele descreveu a modernização como uma racionalização, segundo a
perspectiva à qual foi conduzido por seus estudos sociológicos sobre a religião.
Habermas não desaprova esta escolha; no entanto, ele lamenta que Weber não
tenha sido capaz de empregar toda a riqueza teórica de seu projeto. Weber se propôs a
estudar como o potencial cognitivo oriundo da racionalização das imagens do mundo
tornou-se socialmente eficaz. Ora, a compreensão descentrada do mundo, elaborada no
plano da tradição cultural, pode ser transferida para o plano do agir social seja através do
surgimento de movimentos sociais, seja através da diferenciação de esferas culturais
autônomas, seja através da institucionalização da atividade racional segundo um fim na
economia capitalista e no Estado moderno. Entretanto, só este último fenômeno reteve a
atenção de Weber. Na empresa capitalista e na administração estatal moderna, os meios
materiais são concentrados nas mão de um empresário ou de um chefe que calcula
racionalmente. Em “Economia e Sociedade”, podemos ler que
“o capitalismo moderno baseia-se essencialmente sobre o cálculo. Para existir, ele precisa de uma Justiça e de
uma Administração cujo funcionamento poderia, ao menos em princípio, ser calculado a partir de normas fixadas e
gerais, da mesma forma como se calcula o rendimento previsível de uma máquina.” (Weber, apud Habermas I,302)
Esta é a leitura “pelo alto” da articulação entre idéias e interesses, no processo de
modernização: uma racionalização ética das imagens do mundo dá origem a uma
corporificação institucional das estruturas de consciência. Tal interpretação certamente
distingue Weber dos funcionalistas, mas não esgota o potencial explicativo de sua própria
teoria da modernização.
Habermas não aceita esta consideração apenas parcial do horizonte de
possibilidades abertas pela compreensão moderna do mundo. Weber só as leva em conta,
na medida em que elas servem para explicar o fenômeno nodal que ele identificou
previamente: a institucionalização da “racionalidade dos meios em relação aos fins”,
racionalidade que é característica do empresário. Weber julga que a explicação desta
institucionalização é a chave da explicação da modernização e que aí deve ser visto uma
forma exemplar e unívoca de manifestação de uma racionalidade socialmente eficaz; mas
isto ocorre, segundo Habermas, porque Weber exagerou o papel da racionalidade
instrumental na orientação da ação. A passagem da racionalização cultural à
racionalização social é explicada sob o pano de fundo de um conceito “abreviado” de
racionalidade. Weber não considera as figuras históricas do racionalismo ocidental
segundo o ponto de vista das possibilidades “contrafatuais” (kontrafaktische) de um
Mundo da Vida racionalizado, as quais são uma conseqüência direta (e feliz) de um novo
nível de possibilidades de aprendizagem, atingido dentro da lógica da evolução.
Habermas lamenta que Weber limite a racionalização das imagens do mundo à
perspectiva de conversão ética, sem examinar a transformação das componentes
cognitivas e expressivas (i.e., ciências modernas e artes autônomas). Engenheiros e
artistas da Renascença foram tão importantes quanto as seitas protestantes para a
liberação do potencial de imagens do mundo racionalizadas (I,298). Além disto, Weber
Teoria do Agir Comunicativo 14

omite a possibilidade de que a ética protestante da convicção possa ser substituída por
uma forma não-religiosa, mas regida por princípios, de consciência moral.
Se acompanharmos a linha de argumentação que Weber abandonou, podemos
chegar a um modelo de racionalização social capaz de avaliar a via ocidental de
desenvolvimento. Para representar a racionalização social tal qual ela é estruturalmente
possível, Habermas propõe três complexos de racionalização: a racionalidade
cognitiva-instrumental, a racionalidade moral-prática e a racionalidade estético-prática.
Todo modelo “seletivo” de racionalização pode ser considerado como um
desenvolvimento desequilibrado destas três componentes (I,324-329).
Isto não impede que Habermas reconheça que, nas “Considerações
Intermediárias” de Weber, os problemas refreados ressurgem, através da análise do
capitalismo da época. Neste texto, Weber utiliza implicitamente critérios capazes de
medir e criticar uma racionalização restrita à forma totalizante da atividade racional
segundo um fim. Esta crítica o conduz a julgar que a racionalização tende para uma perda
do sentido e da liberdade.
A tese da perda do sentido reflete a experiência nihilista de uma geração,
exprimida por Nietzsche. Com a diferenciação das esferas culturais autônomas de valor, a
coerência de uma visão de mundo baseada na unidade metafísica dos transcendentais dá
lugar a um politeísmo dos valores, devido à irreconciabilidade das últimas instâncias. A
razão desencantada se decompõe em uma pluralidade de esferas de valor e destrói assim
sua própria universalidade. Weber sugere que se busque na esfera privada da própria
história individual, a unidade que não pode ser mais encontrada na sociedade. Mas, ao
mesmo tempo, ele constata que nas sociedades modernas é impossível viver tal
autonomia interior, pois a liberdade do indivíduo encontra-se assediada pela
autonomização dos subsistemas de atividade racional segundo um fim. A eficácia
cognitiva-instrumental das organizações econômicas e estatais encerra os indivíduos
numa prisão de aço.
Mesmo reconhecendo o valor empírico das teses da perda do sentido e da perda
da liberdade, Habermas insiste em sua crítica fundamental a Weber: ao passar da
racionalização cultural à racionalização social, Weber abandona o conceito complexo de
racionalidade. Este foi utilizado para a análise da religião, mas não para a análise das
instituições. O fim do “carisma da razão” não significa que esta tenha explodido, porque
no interior de cada esfera de valor, uma forma particular de pretensão à validade é
resgatada, através de argumentos. Eis o plano formal, onde a unidade perdida é
reencontrada. Deve-se distinguir, mais claramente do que Weber, entre os conteúdos de
valor, particulares, e os critérios de valor, universais: a pluralidade das pretensões
diferenciadas à validade (verdade das proposições; exatidão das normas; veracidade ou
autenticidade) se opõe à unidade do caráter procedural da razão (i.e., a intenção de
encerrar o debate em torno das pretensões hipotéticas à validade, através de um acordo,
racionalmente motivado, entre os membros de uma comunidade de comunicação).
“Falta até hoje uma Lógica pragmática da Argumentação, capaz de captar satisfatoriamente as relações
internas entre formas de atos de fala. Só uma tal teoria do discurso poderia indicar, explicitamente, em que consiste a
unidade da argumentação e o que nós denominamos de racionalidade procedural, uma vez que todos os conceitos
substanciais de razão terão sido criticamente dissolvidos.” (I,340)
Habermas quer corrigir Weber, no que tange à passagem da racionalização
cultural à racionalização social. Num primeiro momento, ele desenvolverá o conceito de
agir comunicativo, para eliminar os limites da teoria weberiana da ação, e deparar-se-á
assim com Mead e Durkheim. Num segundo momento, ele desenvolverá os conceitos
Teoria do Agir Comunicativo 15

opostos de Mundo da Vida e de Sistema, a fim de suprimir os limites da teoria weberiana


das instituições, e defrontar-se-á desta vez com Parsons. Finalmente, relendo Marx, ele
tentará integrar as duas perspectivas, com o intuito de retomar a problemática da
racionalização social, lançada por Weber.

3. A Primeira Consideração Intermediária: o conceito de Agir


Comunicativo

O ponto de partida para a introdução do conceito de agir comunicativo é a crítica


da teoria weberiana da ação: é em conseqüência de uma conceituação inadequada, que ela
acaba por supor que um dos três complexos de racionalidade, que se diferenciaram após a
decadência das imagens do mundo tradicionais, determina mais do que os outros, as
ordens de vida das sociedades modernas. Quando Weber define o agir como “o
comportamento humano provido de sentido”, este “sentido” não se refere a um medium
linguístico da intercompreensão possível, mas às intenções de um sujeito isolado. Weber
parte de um modelo teleológico; por conseguinte, a atividade racional segundo um fim
ganha um valor fundamental. A teoria das intenções da consciência, sobre a qual está
baseado o conceito de sentido subjetivo, não permite que Weber introduza o conceito de
agir social através da explicação do sentido. Para passar ao plano das interações sociais,
será preciso que ele amplie o modelo da atividade racional segundo um fim, seja através
da orientação segundo o comportamento de outros sujeitos, seja através da relação
reflexiva das orientações de ação que estabelecem, entre si, os vários participantes da
interação (I,378). Na versão oficial de sua teoria da ação, Weber se limita aos aspectos
racionalizáveis do agir que podem ser fornecidos pelo modelo do agir segundo um fim;
mas na versão oficiosa, um Weber hesitante se pergunta se haveria outros aspectos
segundo os quais as ações poderiam ser racionalizadas (I,377-385).
A versão oficial propõe uma tipologia em função das características formais do
“ator racional segundo um fim”, i.e., do ator que escolhe seus fins a partir de um conjunto
de valores perfeitamente definido, e que organiza os meios apropriados a partir das
conseqüências esperadas de cada alternativa. Os tipos possíveis de ação correspondem
portanto a uma contração gradual da consciência do sujeito da ação: a ação racional em
valor não leva em conta as conseqüências; a ação afetiva, nem as conseqüências nem os
valores; enfim, a ação tradicional, nem as conseqüências, nem os valores, nem os fins,
mas somente os meios.
A versão oficiosa distingue as ações sociais em função dos mecanismos de
coordenação da ação: uma relação social pode apoiar-se exclusivamente em situações de
interesse ou também em um acordo normativo. É desta forma que Weber distingue entre
o mero engrenamento efetivo de situações de interesse, na ordem econômica, e o
reconhecimento de pretensões normativas à validade, na ordem jurídica.
A conceituação desta segunda versão é bem menos estreita que a da versão
oficial, mas Weber não a desenvolveu. Habermas quer substitui-lo nesta tarefa,
encontrando um conceito de racionalidade mais vasto do que a mera atividade racional
segundo um fim e capaz, p. ex., de captar corretamente os efeitos, nos sistemas sociais de
Teoria do Agir Comunicativo 16

ação, de uma racionalização ética. Para isto, a nova tipologia deve analisar as motivações
racionais que permitem a entrada num jogo de linguagem.
Para uma teoria do agir comunicativo que queira avançar nas questões
fundamentais de uma teoria sociológica da ação, o ponto essencial é admitir que a
coordenação da ação se dê através da intercompreensão pela linguagem. É preciso
portanto recorrer à Teoria da Significação, disciplina central da Filosofia Analítica, desde
que esta nos forneça uma análise da estrutura da expressão linguística, e não uma análise
das intensões do locutor. Uma teoria do agir orientado para a intercompreensão deve
conseguir generalizar o conceito de validade, não o limitando mais unicamente à verdade,
ou não, das proposições. Tal teoria deve ser capaz de identificar as condições de validade
no plano pragmático, e não apenas no plano semântico2.
“Minha sugestão é de que o papel ilocutório não seja mais oposto, como uma força irracional, à componente
da proposição que fundamenta sua validade; ele deve, ao contrário, ser concebido como a componente que especifica
qual pretensão à validade é levantada pelo locutor, através de sua expressão, e ainda: como ele a levanta e para quê. Pela
a força ilocutória de uma expressão, um locutor pode motivar um ouvinte a aceitar a oferta de seu ato de fala e, desta
forma, iniciar uma ligação racionalmente motivada.” (I,375)
Passamos assim, de uma classificação de atos de fala, a uma de tipos de ação: à
oposição entre ato perlocutório e ato ilocutório, corresponde a distinção entre dois tipos
fundamentais de ação: ações orientadas para o sucesso (erfolgsorientiert) e ações
orientadas para a intercompreensão (verständigungsorientiert). É importante ressaltar
que:
- trata-se de tipos de ação diferentes, e não apenas de duas dimensões de
uma mesma ação;
- sob condições apropriadas, esta distinção deve poder ser percebida com o
simples auxílio do saber intuitivo dos próprios participantes. A atitude dos participantes
possui, portanto, uma importância conceitual elevada.
“A intercompreensão é inerente à linguagem humana, como seu telos.” (I,387)
A intercompreensão equivale a um processo que visa obter um acordo entre
sujeitos capazes de falar e de agir. Há, sem dúvida, interações mediatizadas pela
linguagem que não são orientadas para a intercompreensão; para explicá-las, Habermas
sustenta a tese de que o modo “intercompreensivo” da linguagem é o modo original, em
relação ao qual as “insinuações” e “indiretas” são simples “parasitas”.
A distinção entre orientação para o sucesso e orientação para a intercompreensão
serve de base para todas as outras tipologias do agir; assim, p. ex., a “racionalidade
segundo um fim” de Weber pertence certamente ao primeiro tipo. Habermas prefere, no
entanto, trabalhar com uma tipologia derivada, que distingue:
- dois tipos de ação no plano social, o agir estratégico e o agir
comunicativo;
2 Após haver oposto enunciados constativos e performatórios, Austin desenvolveu esta última noção,
incluindo-a dentro de uma teoria da pragmática dos atos da fala. Estes foram classificados da seguinte
maneira:
- um ato locutórios é simplesmente a articulação e combinação de sons para referir
determinados significados, ou a evocação e associação sintáxica de noções representadas pelas palavras;
- num ato ilocutório, ao se enunciar uma frase (p. ex., “eu te prometo que...”), cumpre-se
igualmente um determinado ato (no caso, uma mudança nas relações entre os dois interlocutores);
- o ato perlocutório contempla a possibilidade de que a enunciação sirva a outros fins,
geralmente não explicitados (p. ex., perguntar algo de forma a embaraçar alguém, ou a bajulá-lo).
Num ato ilocutório, o locutor visa obter diretamente um efeito sobre os sentimentos, os
pensamentos ou a ação de quem o escuta; num ato perlocutório, o ato locutório serve para a obtenção de
um efeito indireto.
Teoria do Agir Comunicativo 17

- um tipo de ação não-social, o agir instrumental.


“Incluo no agir comunicativo aquelas interações mediatizadas pela linguagem, onde todos os participantes
visam, através de suas ações de fala (Sprechhandlungen), objetivos ilocutórios, e apenas estes. Considero, pelo
contrário, como agir estratégico mediatizado pela linguagem, as interações onde pelo menos um dos participantes quer
suscitar, através de suas ações de fala, efeitos perlocutórios sobre seu interlocutor.” (I,396)
“Chamamos instrumental uma ação orientada para o sucesso, quando a consideramos sob o aspecto do
seguimento de regras técnicas de ação e avaliamos o grau de eficiência de uma intervenção em uma conexão de
situações e de acontecimentos; chamamos estratégica uma ação orientada para o sucesso, quando a consideramos sob o
aspecto do seguimento de regras de escolha racional e avaliamos o grau de eficiência da influência sobre as decisões de
um adversário racional. As ações instrumentais podem ser ligadas a interações sociais, enquanto que as ações
estratégicas representam, elas próprias, ações sociais. Falo ao contrário de ações comunicativas, quando os planos de
ação dos atores participantes não são coordenados por cálculos de sucesso egocêntricos, mas por atos de
intercompreensão. No agir comunicativo, os participantes não estão orientados primordialmente por seu próprio
sucesso; eles seguem seus objetivos individuais, sob a condição de, tomando como base definições comuns de situação,
poder conciliar mutuamente seus planos de ação. Por esta razão, o ajuste de definições de situação é uma componente
essencial do trabalho de interpretação requerido pelo agir comunicativo.” (I,385)
São “constitutivas” para o agir comunicativo apenas as ações de fala às quais o
locutor associou pretensões criticáveis à validade, i.e., as ações de fala onde o locutor
pode motivar racionalmente um ouvinte a aceitar a oferta de seu ato de fala, porque ele
pode assegurar que dará, se preciso for, as razões convincentes, que garantem, contra uma
crítica do ouvinte, a pretensão à validade. Todo locutor pode oferecer uma tal garantia,
graças à existência de uma relação interna entre a validade de uma ação (ou da norma que
a subentende), a pretensão à validade (i.e., a pretensão de que as condições para a
validade da ação estejam cumpridas) e o resgate da pretensão à validade (i.e., as provas
de que a pretensão à validade foi resgatada. Eis porque tais ações de fala podem se tornar
eficazes como mecanismos de coordenação das ações: porque a força do vínculo criado
pela ilocução do locutor não é devida à validade do que é dito, mas ao efeito de
coordenação que resulta da garantia oferecida de resgatar, se preciso for, a pretensão à
validade levantada por sua ação de fala (I,406).
Ocorre, entretanto, que estejamos diante de uma ação de fala onde o locutor não
levante pretensões criticáveis à validade:
- seja porque ele visa objetivos não declarados, através de atos
perlocutórios (em relação aos quais o ouvinte não tem a possibilidade de tomar posição),
- seja porque ele visa abertamente influenciar as decisões de seu
adversário, através de atos ilocutórios (p. ex., as expressões imperativas da vontade, onde
o ouvinte não pode tomar uma posição fundamentada na razão e onde é preciso, portanto,
apoiar-se sobre sanções complementares).
Nestas condições, o potencial mantido permanentemente através da comunicação
pela linguagem fica inexplorado para fins de uma ligação motivada pela inteligência de
razões (I,397-410).
Concluímos que, a partir do ponto em que Habermas estabeleceu sua classificação
fundamental das ações (os tipos “orientada para o sucesso” e “orientada para a
intercompreensão), ele pôde prolongar a análise das condições de verdade dos
enunciados, já proposta anteriormente por Frege e Wittgenstein, em direção a uma análise
do reconhecimento intersubjetivo das “pretensões à validade” correspondentes.
Compreende-se portanto que ele tenha substituído a tipologia das ações de fala
estabelecidas anteriormente por áustin e Searle, por uma nova tipologia. Esta
classificação das ações de fala permite a introdução de outra tipologia: a dos tipos puros
de interações mediatizadas pela linguagem. Esta compreende três “casos-limite puros” de
agir comunicativo e três “casos-limite puros” de agir estratégico (cf. tabela).
Teoria do Agir Comunicativo 18

Ao fim desta “Consideração Intermediária”, Habermas não pode evitar uma


primeira avaliação de seu projeto: será que este recurso à Pragmática Formal pode
realmente contribuir para uma teoria sociológica da ação, um pouco mais complexa? Ele
vê ao menos dois méritos neste recurso:
- se o agir estratégico for subdividido em agir estratégico aberto e agir
estratégico dissimulado, podemos perceber facilmente que este último compreende não
apenas a ilusão engendrada conscientemente (i.e., a manipulação), mas que é preciso
admitir ainda a existência de uma ilusão inconscientemente produzida. Trata-se da
comunicação sistematicamente deformada, que Habermas considera como as “patologias
da comunicação”: ao menos um participante ilude a si mesmo, não vendo que sua atitude
na ação é voltada para o sucesso e que ele apenas mantém a aparência de um agir
comunicativo. Antes, este fenômeno dizia respeito à Psicanálise; ele pode agora ser
esclarecido pela Pragmática Formal.
- Mas a principal vantagem da Pragmática Formal é outra: destacar os
aspectos segundo os quais as ações sociais materializam tipos diferentes de saber. A
Teoria do Agir Comunicativo pode emendar os pontos fracos da teoria weberiana da
ação, porque ela não se apóia sobre a racionalidade segundo um fim, fazendo desta o
único aspecto sob o qual as ações podem ser criticadas; ao contrário, ela respeita os
diferentes aspectos da racionalidade da ação, através dos tipos puros de interação
mediatizada pela linguagem.

4. De Lukács a Adorno: o Esgotamento da Filosofia da


Consciência

Entre a introdução do conceito de agir comunicativo, na Primeira Consideração


Intermediária, e seu desenvolvimento, a partir de uma leitura de Mead e Durkheim,
Habermas insere uma importante digressão, destinada a sustentar a tese de que a
racionalização social teria sido sempre pensada em termos de uma alienação ou reificação
da consciência. Isto seria conseqüência de uma linha alemã de pensamento social,
iniciada por Kant e Hegel e continuada inicialmente por Marx e Weber, mais tarde, por
Lukács e pela Escola de Frankfurt. Segundo Habermas, esta Filosofia da Consciência
leva a paradoxos que não permitem um desenvolvimento satisfatório do tema da
racionalização social; fica assim justificado seu recurso a uma outra vertente da História
das Teorias Sociais, onde ele descobrirá, ainda que apenas subentendido, o paradigma da
comunicação tão desejado.
Ao fazer a passagem da crítica da teoria da ação à crítica da teoria das instituições,
Habermas deseja acompanhar o curso da história da teoria social; para provar que o
“paradoxo da racionalização” deve-se a uma concorrência entre princípios de integração
social, e não entre tipos de ação, ele pretende não recorrer a nenhum elemento de fora da
teoria weberiana. Lukács, Horkheimer e Adorno fizeram uma primeira tentativa neste
sentido, pois eles retomaram a teoria weberiana da racionalização e ligaram-na à dialética
do trabalho morto e do trabalho vivo (i.e., do capital e do Mundo da Vida dos
trabalhadores) que eles buscaram em Hegel e Marx.
Teoria do Agir Comunicativo 19

Horkheimer e Weber possuem fundamentalmente o mesmo diagnóstico


ambivalente sobre nossa época, no qual os processos de racionalização cultural e de
racionalização social são derivados respectivamente das teses da perda do sentido e da
perda da liberdade. Mas, enquanto Weber passa do diagnóstico da perda da liberdade a
considerações terapêuticas (ele desejava um modelo de organização onde o carisma dos
chefes pudesse rearticular, sobre a base de valores interpretados na história de vida, os
domínios de ação), Horkheimer e Adorno dão um passo adiante, ao propor a crítica da
autonomização dos subsistemas de ação racional segundo um fim: esta autonomização
conduz a um depauperamento da individualidade, que não encontra mais apoio no
domínio da reprodução cultural.
Lukács realça o fato de que os indivíduos deparam com um mecanismo de
coordenação da ação que eles consideram como exterior a eles próprios. Na medida em
que as interações não são mais coordenadas por normas e por valores, mas pelo valor de
troca, os indivíduos são obrigados a assumir uma atitude objetivante em relação aos
demais. Lukács se aproxima portanto de uma teoria do agir comunicativo, mas,
infelizmente, seu entusiasmo pela relação marxista entre teoria e práxis revolucionária irá
desviá-lo.
Ainda assim, Lukács restringe o otimismo de Marx em relação ao futuro da
modernização. Para Marx, as condições objetivas de superação do capitalismo são as
forças produtivas desencadeadas pelo próprio capitalismo, as quais incluem tanto o
progresso técnico-científico, quanto o potencial subjetivo dos operários. Portanto, o
capitalismo produz, contraditoriamente, todas as condições, tanto objetivas quanto
subjetivas, da libertação. Ainda que sem se afastar, fundamentalmente, desta posição,
Lukács assevera que o progresso técnico-científico provoca não apenas um aumento da
produtividade material, mas também uma tendência à reificação universal.
Esta crítica será ampliada por Horkheimer, Adorno e Marcuse; para estes, as
forças produtivas da ciência e da técnica fusionam com as relações de produção. Para
Lukács, ao contrário, há um limite interno para a racionalização: o seu “caráter formal”.
Lukács considera a natureza subjetiva do homem como uma reserva de resistência à
reificação, enquanto Horkheimer e Adorno, ao invés, consideram-na como importante
base de apoio para a reificação, pois esta é a única forma que têm para explicar a
ascensão do fascismo e, mais tarde, a estabilidade das sociedades capitalistas: no primeiro
caso, a revolta da natureza subjetiva é desviada e utilizada em benefício da racionalização
social, contra a qual ela se voltava anteriormente; no segundo caso, a integração social da
consciência pelos “meios de comunicação de massa” provoca uma redução da cultura aos
padrões do “fetichismo da mercadoria”.
Em todo caso, para Habermas foram certas aporias, herdadas da Filosofia da
Consciência, que levaram ao fracasso a “Teoria Crítica” da Escola de Frankfurt:
“A Filosofia que se recolhe atrás das linhas do pensamento discursivo e se concentra sobre a "Recordação da
Natureza", paga caro pela força excitante de seu exercício: ela abandona o próprio objetivo do conhecimento teórico- e
assim, também o programa de um "Materialismo Interdisciplinar". (...) O fracasso do programa da primeira Teoria
Crítica não se deve ao acaso; ele não vingou, devido ao esgotamento do paradigma da Filosofia da Consciência.
Mostrarei que uma troca de paradigmas, dirigida para a Teoria da Comunicação, permite o retorno a um
empreendimento que foi a seu tempo interrompido com a crítica da razão instrumental; esta troca permite retomar as
tarefas deixadas de parte de uma teoria crítica da sociedade.” (I,516-518)
O conceito de racionalidade comunicativa permite a elucidação das idéias de
reconciliação e de liberdade, que Adorno não conseguia explicar. Preso, em última
análise, ao pensamento hegeliano, ele as capta unicamente através de sua “dialética
Teoria do Agir Comunicativo 20

negativa”: o conceito de mimesis, que deveria dar conta de tudo o que foi destruído pela
razão instrumental, se mostra incapaz de gerar uma verdadeira teoria.
“Adorno não pode esclarecer a faculdade mimética a partir da oposição abstrata à razão instrumental. As
estruturas de uma razão, às quais Adorno apenas alude, só se tornam accessíveis à análise, quando as idéias de
reconciliação e de liberdade são decifradas como indícios de uma forma, ainda que utópica, da intersubjetividade, a qual
permite tanto uma intercompreensão não-coercitiva dos indivíduos em suas relações mútuas, quanto a identidade de um
indivíduo que se entende consigo mesmo, sem coerção - socialização sem repressão. Isto tem um duplo significado: por
um lado, uma mudança de paradigma na teoria da ação, passando-se de um agir dirigido para um objetivo, para um agir
comunicativo; por outro lado, uma mudança de estratégia na tentativa de reconstruir o conceito moderno de
racionalidade, conceito que se tornou possível com a descentração da compreensão do mundo. Os fenômenos que
precisam ser explicados não são mais o conhecimento e o tornar disponível uma natureza objetivada, tomados em si
mesmos; mas a intersubjetividade da intercompreensão possível - tanto nos planos interpessoal como intrapsíquico. O
foco da investigação se desloca assim da racionalidade cognitivo-instrumental para a racionalidade comunicativa. Para
esta, o que é paradigmático não é a relação do sujeito solitário com algo, representável e manipulável, no mundo
objetivo; mas sim, a relação intersubjetiva estabelecida por sujeitos capazes de falar e de agir, quando eles se entendem,
mutuamente, sobre algo. Neste caso, os agentes comunicativos movem-se no medium de uma linguagem natural; fazem
uso de interpretações culturalmente legadas; e se referem simultaneamente a algo no mundo objetivo único, em seu
mundo social comum e em cada mundo subjetivo próprio.” (I,524-525)
Lembramos novamente que a crítica de Habermas aos teóricos clássicos da ação é
de somente subentenderem uma outra racionalidade que, do ponto de vista lógico, deve
ser explicitada. Segundo ele, só com G.H. Mead surgiria uma teoria da ação propondo-se
a desenvolver esta outra racionalidade; ora, tal propósito faz com que se depare,
inevitavelmente, com a utopia de uma comunidade ideal de comunicação.

5. Mead e Durkheim: a Mudança de Paradigma na Teoria da


Ação

Quando buscamos completar a teoria da ação mediante o desvelar de outra forma


de racionalidade, somos levados à hipótese de uma comunidade de comunicação. O
caráter utópico desta comunidade de comunicação é admitido pelo próprio Habermas; em
todo caso, trata-se de uma utopia que serve à reconstrução de uma “intersubjetividade
intacta” e isto basta ao autor (I,524; II,9). Esta utopia de uma comunidade de
comunicação deve também levar ao extremo e depois substituir, a dialética tradicional
entre liberdade e reconciliação, entre mundo pessoal e mundo social, entre representação
do eu e identidade social.
Contudo, a “comunidade de comunicação” é também um modelo prático, que
deve ser capaz de fornecer um conceito empiricamente controlável, do qual a sociologia
possa se valer. Habermas julga que este modelo pode explicar a reprodução simbólica dos
grupos sociais, por meio de uma reconstituição, a partir de um ponto de vista interno, do
Mundo da Vida destes grupos; no entanto, a dimensão sistêmica da reprodução da
sociedade situa-se fora do alcance deste modelo. Habermas vai buscar esta explicação
“reconstrutiva”3 da reprodução simbólica em G.H. Mead, o qual teria conseguido inserir
no behaviourismo uma concepção não-reducionista da linguagem, reunindo assim as
3 Em alemão, “reconstruir” um processo significa relatá-lo de memória; já “reconstruir” um ser vivo é
reproduzi-lo segundo sua natureza. O termo Rekonstruktion empregado por Habermas refere-se a uma
explicitação puramente teórica das regras generativas de uma competência cognitiva. A Psicologia
Cognitiva de Piaget é sem dúvida o modelo que Habermas tem em mente, ao falar de “ciências
reconstrutuivas”. Habermas fala ainda de uma reconstrução do materialismo histórico (título de um livro
lançado em 1976).
Teoria do Agir Comunicativo 21

duas correntes que atacaram, no começo do século XX, o modelo sujeito-objeto da


filosofia da consciência: a psicologia do comportamento e a filosofia analítica da
linguagem.
A reconstrução realizada por Mead comporta dois níveis. Primeiramente, ele
explica a passagem da interação mediada por gestos à interação mediada por símbolos:
um novo medium emerge, quando a comunicação passa dos gestos expressivos que
simulam o comportamento, ao emprego de símbolos. Em seguida, os papéis sociais
tornam obrigatórias, por meio de normas, certas significações do comportamento (na
caça, na reprodução sexual, etc); este segundo nível corresponde portanto ao agir
regulado por normas. Agora são estruturados simbolicamente não apenas os meios de
comunicação, mas também o comportamento.
No entanto, Habermas julga excessivamente rápida a forma como Mead passa da
linguagem gesticulada ao comportamento regulado por normas, sem analisar
suficientemente a interação mediatizada por símbolos.
“Mead acompanha o desenvolvimento iniciado com a interação mediada por símbolos apenas segundo a linha
que conduz à ação regulada por normas, desprezando a linha que conduz a uma comunicação pela linguagem, através de
proposições diferenciadas.” (II,41)
Mead procura explicar o surgimento da linguagem de uma forma bem simples: o
potencial semântico estabelecido pelas interações mediatizadas por gestos torna-se
simbolicamente disponível para os participantes da interação, graças a uma interiorização
da linguagem gesticulada. Para aumentar a precisão desta explicação, Habermas utilizará
as pesquisas de Wittgenstein sobre o conceito de regra. Há uma conexão interna entre a
competência para seguir uma regra e a capacidade de tomar posição, através de um sim
ou de um não, diante da questão de saber se um símbolo está ou não bem empregado, i.e.,
se ele está empregado segundo a regra mencionada. Pode-se assim aperfeiçoar a tese de
Mead, supondo-se que os participantes da interação produzem enunciados simbólicos
segundo regras, i.e., na expectativa de que eles sejam reconhecidos pelos outros, como
enunciados conforme às regras. Uma vez que o emprego de símbolos está fixado por
convenções significantes, a identidade da significação está assegurada e o caminho para a
intercompreensão está aberto.
É assim possível distinguir, melhor do que Mead, entre a linguagem como meio
de intercompreensão e a linguagem como meio para coordenar a ação e socializar os
indivíduos. Habermas parece querer assim corrigir o behaviourismo social de Mead,
incapaz de valorizar o aspecto da linguagem que mais lhe interessa: a comunicação
voltada para o consenso.
Sem esta distinção, a reconstrução de Mead revela uma lacuna importante. Para a
análise das relações com os mundos objetivo, normativo e subjetivo, Mead adota a
perspectiva ontogenética de uma criança que cresce, abandonando assim o ponto de vista
filogenético utilizado para sua teoria da significação. Daí resulta, apesar de todas as
afirmações contrárias, um verdadeiro primado metodológico do indivíduo socializado
sobre a sociedade.
Mead reconhece que o agir instrumental não pode ser analisado
independentemente do fenômeno da cooperação, e que esta exige um controle social
regulando as atividades do grupo; entretanto, para abordar este controle social, a
perspectiva ontogenética de Mead dispõe apenas do conceito do “Outro generalizado”. O
controle social do trabalho em comum será portanto explicado através da autoridade
moral do Outro generalizado. Ora, Habermas adverte que esta explicação só pode ser
válida no plano ontogenético: é preciso que primeiro os grupos se tenham constituído em
Teoria do Agir Comunicativo 22

unidades capazes de ação, para só então haver ameaças de sanções em seu nome... O
programa de “reconstrução” exige portanto que seja dada uma explicação da constituição
do grupo.
Para completar esta lacuna filogenética de Mead, Habermas vai buscar a
sociologia da religião de Durkheim, que explica a constituição da identidade de um grupo
através da consciência coletiva religiosa, profundamente enraizada em sua história. Mead
não tratou do surgimento do simbolismo sagrado a partir da interação mediatizada por
símbolos, surgimento que é anterior ao das normas e que constitui portanto a expressão
mais arcaica do Outro generalizado. Durkheim, ao contrário, atribui uma grande
importância à consciência religiosa: ela garantiria a identidade coletiva, que por sua vez
permitiria a solidariedade social em sua forma “mecânica”. Inicialmente, Durkheim viu
na consciência coletiva o conjunto das representações impostas pela sociedade e
partilhadas por todos os seus membros; mais tarde, após sua análise dos ritos, ele verá
nela nem tanto um conteúdo determinado, mas uma estrutura capaz de assegurar a
identidade do grupo. Esta estrutura se constitui e se renova no rito, por meio de uma
identificação comum com o sagrado. A identidade coletiva tem portanto a forma de um
consenso normativo, que se desenvolve através semântica do sagrado.
Entretanto, trata-se de um consenso não visado, porque a identidade da pessoa é
apenas a “imagem no espelho” da identidade coletiva. Assim, se Durkheim nos permite
encontrar, no fenômeno da consciência coletiva, a raiz pré-linguística do agir
comunicativo, para dar cabo da questão clássica das relações entre indivíduo e sociedade
será necessário voltar a Mead e distinguir entre a comunidade baseada na prática ritual e a
intersubjetividade do saber produzida por atos de fala. A parte ilocutória de um ato de
fala diz respeito à relação interpessoal entre Eu e Tu, logo, a uma estrutura de
intersubjetividade pela linguagem, a qual exerce uma pressão sobre a criança, no sentido
da individualização.
Esta dimensão intersubjetiva da consciência coletiva se imporá progressivamente,
deixando ao rito o papel de sistema de comunicação residual. A evolução vai da interação
mediatizada por símbolos, à interação regulada por normas. Por um lado, o sagrado
torna-se um domínio isolado na vida cotidiana; seu nível de comunicação já foi superado
pelo da cooperação social profana, onde as relações com os objetos perceptíveis e
manipuláveis é cada vez mais estruturado através de proposições. Por outro lado, o
sistema de instituições e a estrutura dos indivíduos socializados constituem-se ambos a
partir da normalização da ação.
Ora, para Habermas, toda ação regulada por normas pressupõe o discurso
gramatical como medium da comunicação. Assim, a grande limitação de Durkheim é de
não perceber que o agir comunicativo é o lugar onde todas as energias da solidariedade
social se cruzam (II,90). A sociologia da religião de Durkheim permitiu-nos corrigir uma
lacuna na reconstrução de Mead, mas agora é preciso voltar a este último, a fim de
retomar a explicação da interação regida por normas e mediatizada pela linguagem. O
ponto de passagem para este retorno a Mead será a teoria durkheimiana da evolução
social do Direito.
Durkheim havia visto a generalização dos valores, a universalização do Direito e
da Moral e a autonomia crescente do indivíduo como conseqüências da substituição da
integração social pela fé, pela integração por um acordo mútuo e uma cooperação obtidos
através da comunicação. Habermas deseja compreender esta mudança como um processo
de racionalização e portanto ele o interpreta na linha de Mead: é a mediação linguajar do
Teoria do Agir Comunicativo 23

agir regulado por normas que deu o primeiro impulso para a racionalização do Mundo da
Vida.
Habermas imagina inicialmente o “estado zero” da sociedade, simplesmente
postulado por Durkheim, como uma sociedade onde o domínio sagrado não tem ainda
necessidade da mediação linguajar do rito e onde o domínio profano não permite ainda
uma mediação linguajar da cooperação. Em seguida, ele imagina o efeito de
desintegração que os atos de linguagem provocam necessariamente sobre tal sociedade,
devido à estrutura que possuem (analisada acima: §3). Através deste
“Gedankenexperiment”, a lógica da mudança analisada por Durkheim passa a ser vista
como uma modificação da estrutura da ação regida por normas, à medida que as funções
de reprodução cultural, de integração social e de socialização do indivíduo passam da
esfera do sagrado à esfera da prática comunicativa corrente.
Para Habermas, a razão comunicativa se serve do rito para realizar seus objetivos
próprios: após haver tornado possível a cooperação social, a comunidade de crença se
transforma em comunidade de comunicação, submetida às exigências da cooperação. A
autoridade do sagrado é progressivamente substituída pela autoridade do consenso tido
em sua época como fundamentado. O desencantamento é compreendido então como o
processo pelo qual o consenso normativo fundamental, até então garantido pelo rito, vai
progressivamente assumindo uma forma linguajar (“eine Versprachlichung des rituell
gesicherten normativen Grundeinverständnisses”, que poderíamos traduzir por: uma
"linguagerização" do consenso normativo fundamental garantido pelo rito). O
desencantamento significa portanto uma entrada em ação do potencial de racionalidade
presente no agir orientado para a intercompreensão:
“A aura de encanto e de atemorização que o sagrado irradia, a força de fascínio do que é santo, são sublimadas
pela força unificante das pretensões criticáveis à validade e, ao mesmo tempo, por ela tornadas cotidianas.” (II,119)
Ainda que Durkheim tenha captado o sentido da evolução social, ele não podia
compreender a passagem das formas de solidariedade mecânica às de solidariedade
orgânica como uma transformação da consciência coletiva, transformação que pode ser
reconstruída no interior do Mundo da Vida. Ele chega a evocar a "linguagerização"
(Versprachlichung) do sagrado, mas não consegue elaborá-la. Só mesmo a perspectiva
“reconstrutiva” de Mead permite mostrar que, à medida que a linguagem assume as
funções de intercompreensão, de coordenação da ação e de socialização dos indivíduos, é
a própria racionalização do Mundo da Vida dos grupos sociais que se coloca em marcha.
Trata-se sobretudo da diferenciação das componentes estruturais do Mundo da Vida, que
estavam antes imbricadas na consciência coletiva: separam-se a cultura, a sociedade e a
pessoa. A racionalidade desta tendência à "linguagerização" pode ser apreciada através do
fato de que estas três componentes do Mundo da Vida tornam-se cada vez mais
dependentes de atitudes que, quando problematizadas em termos de afirmação ou
negação, remetem a pretensões crtiticáveis à validade.
A superioridade da teoria de Mead aparece ainda na sua capacidade de explicitar
uma ética do discurso, a partir da explicação da lógica da evolução social. Apesar de ter
várias vezes sublinhado a necessidade de uma “moral universalista” para que uma
sociedade secularizada possa se manter unida, Durkheim não foi capaz de mostrar que
esta “moral universalista” é o resultado da racionalização comunicativa. Mead, ao
contrário, esboçou o fundamento genético de uma ética discursiva, apoiando-se numa
crítica de Kant: o fato de que a autoridade das normas morais dependa da capacidade
destas em encarnar o interesse geral é muito importante no plano da socialidade, pois o
Teoria do Agir Comunicativo 24

que está em jogo com a salvaguarda deste interesse geral é a unidade do grupo. Ora, à
medida que a linguagem se impõe como princípio de socialização, as condições de
socialidade convergem com as condições da intersubjetividade criada pela comunicação.
O imperativo categórico kantiano deve ser substituído por uma formação da vontade
mediante as condições idealizadas de um discurso universal. Ao contrário do que é
afirmado pela filosofia da consciência, não é jamais na sua pura individualidade, mas
somente numa comunidade de intersubjetividade, que o sujeito pode saber se uma norma
corresponde ou não ao interesse geral e se ela, por isso, adquire uma validade social.
A relação entre a moral universalista e a teoria da evolução é apresentada
simultaneamente como um imperativo moral e como uma tendência histórica:
“O conceito teórico de base da ética comunicativa é o discurso universal, o "ideal formal da intercompreensão
linguajar". Como esta idéia de uma intercompreensão racionalmente motivada já está presente na estrutura da
linguagem, ela não é uma simples exigência da razão prática; pelo contrário, ela está instalada na reprodução da vida
social. Quanto mais o agir comunicativo toma à religião o fardo da integração social, mais eficácia empírica deve
ganhar, no seio da comunidade de comunicação real, o ideal de uma comunidade de comunicação ilimitada e sem
distorções. Tal como Durkheim, Mead prova isto através da difusão das idéias democráticas, através das reformaulações
das bases de legitimação do estado moderno.” (II,147)
Contudo, Habermas nega que o projeto utópico de uma comunidade de
comunicação ideal possa servir de “fio condutor” a uma filosofia da história, pois ele teria
um valor metodológico bem definido:
“A construção do discurso ilimitado e sem distorções pode ser atribuída às sociedades modernas que
conhecemos, como um fundo cujo objetivo é fazer sobressair as tendências vagas da evolução, dando-lhes contornos
mais claros. Mead se interessa pelo modelo comum a estas tendências, a dominação progressiva das estruturas do agir
orientado para a intercompreensão ou, como dissemos, seguindo Durkheim, a "linguagerização" do sagrado.” (II,163)
De qualquer forma, Habermas procura se afastar de Mead no que se refere ao
caráter puramente formalista de sua ética do discurso, que só reconhece o critério da
universalização comprovado nas formas de vida concretas das sociedades modernas. Mas
Habermas critica ainda mais fortemente o idealismo da teoria da sociedade de Mead: sua
reconstrução negligencia as limitações externas, às quais está sujeita a lógica da mudança
de forma da integração social. Habermas refere-se aqui a tudo que diz respeito à
reprodução material da sociedade, que não pode ser compreendida a partir de uma
imagem da sociedade como Mundo da Vida estruturado pela comunicação.
“Os aspectos funcionais da evolução social devem ser opostos a seus aspectos estruturais, se não se deseja cair
na ilusão de uma impotência da razão comunicativa. Este é o tema hoje dominante na Teoria Sistêmica.” (II,165)
Neste aspecto, a teoria da divisão do trabalho de Durkheim é mais profunda do
que a reconstrução de Mead; ela será portanto o ponto de partida para uma nova tarefa:
tomar em conta o ponto de vista sistêmico.

6. A Segunda Consideração Intermediária: a relação entre o


Sistema e o Mundo da Vida

A mudança de paradigma introduzida por Mead e Durkheim deu-se no seio da


teoria da ação: tratava-se da passagem de um conceito de atividade orientada para uma
finalidade, para um conceito de agir comunicativo. Devemos agora abordar o segundo
problema fundamental de toda teoria da sociedade: a necessidade de conciliar o ponto de
vista da ação e a abordagem sistêmica.
Teoria do Agir Comunicativo 25

Durkheim opôs inicialmente as sociedades com diferenciação segmentar às


sociedades com diferenciação funcional: aquelas seriam integradas através do consenso
normativo fornecido pela consciência coletiva; estas, através da conexão sistêmica dos
diferentes domínios da divisão do trabalho. Mais tarde, seu debate com Spencer fê-lo
acrescentar uma precisão importante: mesmo esta segunda forma de solidariedade social,
que ele chamou de orgânica, só pode ser garantida através de normas e valores. A
existência de mecanismos sistêmicos (p. ex., um mercado coordenando ações guiadas por
interesses) não implica no desaparecimento da consciência coletiva, pois a diferenciação
crescente do sistema social provocaria a formação de uma moral intrínseca à cooperação
social. Entretanto, Durkheim não conseguiu encontrar evidências empíricas em favor
desta tese; ao contrário, ele via as sociedades industriais capitalistas encaminharem-se
para um estado de anomia.
Durkheim não pôde resolver este dilema, que corresponde ao paradoxo weberiano
da racionalização social. Entretanto, o que reteve a atenção de Habermas é a maneira
como o problema foi colocado: Durkheim tente encontrar conexões empíricas entre os
estratos de diferenciação do sistema e as formas de integração social, relacionando
portanto uma integração sistêmica (p. ex., o mercado) e uma integração social (p. ex., a
consciência coletiva). Esta última forma de integração corresponde à perspectiva dos
sujeitos que agem, os quais concebem a sociedade como o Mundo da Vida de um grupo
social; a primeira forma de integração, à perspectiva de um observador não-participante,
o qual só pode ver a sociedade como um sistema de ações com um valor funcional (i.e.,
definido segundo sua contribuição à conservação do sistema). A TAC pretende
justamente trazer um ponto de vista capaz de integrar estas duas perspectivas.
Vimos na introdução que o modelo do agir comunicativo (e apenas ele) se apóia
num processo de interpretação cooperativo: os participantes se referem simultaneamente
aos três mundos (objetivo, social e subjetivo), ainda que em sua enunciação eles utilizem
tematicamente apenas uma das três componentes. Por exemplo, o consenso não se
realizará se um participante, ao ouvir uma afirmação, reconhece sua verdade, mas ao
mesmo tempo duvida da veracidade do locutor ou da justeza normativa de sua asserção.
Este processo de interpretação cooperativa pressupõe uma definição comum da situação:
o pano de fundo de uma enunciação deve ter um valor intersubjetivo e para isto os atores
atribuem conteúdos a cada um dos três mundos, definindo-se ao mesmo tempo em
relação a estes mundos.
Os participantes têm portanto necessidade de convicções profundas que sejam
não-problemáticas e comuns, de maneira a que elas constituam sempre o contexto dos
processos de intercompreensão. Este reservatório de saber é o Mundo da Vida. Ele coloca
à disposição dos participantes uma dada interpretação dos conteúdos dos três mundos,
assim como da conexão destes; esta interpretação deve ser levada em conta mesmo
quando os participantes decidem negociar uma nova definição da situação.
Ao contrário de Husserl, criador do conceito, Habermas julga que o Mundo da
Vida é constituído pela linguagem e pela tradição cultural, em relação às quais os
participantes não podem tomar a mesma distância “objetivante” que eles tomam em
relação aos fatos, às normas ou às experiências vividas.
“Este Mundo da Vida é como que o lugar transcendental onde se encontram locutor e ouvinte, onde eles
podem pretender reciprocamente que seus enunciados ajustam-se com o mundo (o mundo objetivo, o social e o
subjetivo), e onde eles podem criticar e confirmar estas pretensões à validade, resolver seus dissensos e visar um
acordo.” (II,192)
Teoria do Agir Comunicativo 26

Logo, é preciso distinguir os conceitos comunicativo e fenomenológico do


Mundo da Vida. Este último se situa dentro de uma filosofia da consciência: Alfred
Schütz parte do modelo de uma subjetividade ativa, para a qual as estruturas universais
do Mundo da Vida são dadas como condições subjetivas necessárias da experiência
corrente possível. Se, ao contrário, introduzimos o conceito de Mundo da Vida como
noção complementar do conceito de agir comunicativo, podemos não apenas explicar os
traços fundamentais do Mundo da Vida descritos pela fenomenologia, mas também evitar
a redução culturalista desta última.
De fato, a sociedade e a personalidade têm uma dupla situação, pertencendo ao
mesmo tempo ao Mundo da Vida e a um dos mundos (respectivamente: ao mundo social
e ao mundo subjetivo). Elas devem ser consideradas não apenas como restrições, mas
também como recursos para a realização das prestações de intercompreensão entre os
participantes.
Assim, Habermas enumera três “componentes estruturais do Mundo da Vida”: a
cultura, a sociedade e a pessoa, às quais correspondem três “aspectos funcionais” do agir
comunicativo:
- sob o aspecto da intercompreensão, o agir comunicativo serve para transmitir e
renovar o saber cultural;
- sob o aspecto da coordenação da ação, ele serve para integrar socialmente e
estabelecer solidariedades;
- sob o aspecto da socialização, ele serve para formar identidades pessoais
(II,208).
O conjunto das práticas comunicativas correntes constitui o medium graças ao
qual cultura, sociedade e personalidade se reproduzem. Esta reprodução das estruturas
simbólicas do Mundo da Vida não deve ser confundida com a reprodução de seu
substrato material, cujo medium é a atividade orientada para um fim.
A TAC procura integrar estas três dimensões, ao contrário da tradição da
sociologia compreensiva, que sempre privilegiou uma delas:
- o aspecto cultural, na sociologia do conhecimento de Peter Berger;
- o aspecto da integração social, em Durkheim e Parsons;
- o aspecto da personalidade, em Mead.
Contudo, a TAC quer também superar a representação da sociedade como sendo
simplesmente o Mundo da Vida de um grupo social. Esta perspectiva é incapaz de
considerar tudo que exerça uma influência externa sobre o Mundo da Vida sócio-cultural
e reduz-se muitas vezes uma simples reformulação, mais ou menos trivial, do saber
cotidiano. Quando se identifica a sociedade ao Mundo da Vida, pressupõe-se três ficções:
autonomia dos agentes, independência da cultura e transparência da comunicação. Por
isto, é preciso recorrer também a uma teoria dos sistemas, i.e., à perspectiva externa de
um observador, na qual a sociedade é representada segundo o modelo de um sistema
autoregulado.
É preciso dispor destas duas estratégias conceptuais para começar a abordar o
paradoxo de uma racionalização que parece fazer as sociedades encaminharem-se para a
anomia. A evolução social se apresenta como um duplo processo de diferenciação:
- de um lado, a evolução do Sistema é medida pela capacidade deste em conduzir
sua própria evolução, enquanto que a evolução do Mundo da Vida consiste na
diferenciação progressiva da cultura, da sociedade e da personalidade;
Teoria do Agir Comunicativo 27

-de outro lado, o Mundo da Vida e o Sistema se diferenciam um em relação ao


outro.
Em outras palavras, o aumento da complexidade do Sistema e a racionalização do
Mundo da Vida dão-se de forma independente.
O nível inicial da evolução é o das sociedades tribais. Que elas sejam
consideradas (a) como Mundos da Vida sócio-culturais ou (b) como Sistemas
autoregulados, há neste nível uma estreita imbricação entre integração social e sistêmica:
no caso (a), deve-se constatar que o mito impede a separação entre a ação orientada para
o sucesso e a orientada para a intercompreensão; no caso (b), deve-se concluir que os
mecanismos sistêmicos (como os que regem a formação do poder ou a troca) ainda estão
ligados às instituições voltadas para a integração social, tais como a religião ou o sistema
de parentesco. A partir deste estado inicial, uma dupla diferenciação progressiva vai levar
as sociedades ao nível da organização tradicional ou estatal e, em seguida, ao da
modernidade.
A evolução da integração sistêmica é comandada por quatro mecanismos
sucessivos: a diferenciação segmentar, a estratificação, a organização do estado e
finalmente o medium de regulação. Cada novo plano de diferenciação no sistema exige
uma base institucional que lhe seja própria: a aparição do quadro institucional das
sociedades de classes (classes políticas e, mais tarde, classes econômicas) depende de
uma passagem a representações convencionais, mais tarde, pós-convencionais do Direito
e da Moral. Isto se explica pelo fato de que os novos planos de diferenciação do Sistema
só podem se estabelecer quando a racionalização do Mundo da Vida tiver atingido um
nível correspondente. Habermas supõe assim que a racionalização do Mundo da Vida vai
também no sentido do universalismo.
É preciso portanto passar a uma análise da evolução social pelo lado do Mundo da
Vida. A racionalização deste pode ser compreendida como a liberação progressiva do
potencial de racionalidade presente no agir comunicativo. Quanto mais as componentes
estruturais do Mundo da Vida se diferenciam, mais os contextos de interação
submetem-se às condições de uma intercompreensão racionalmente motivada, logo, às
condições de formação de um consenso que se apóia, em última análise, sobre a
autoridade do melhor argumento. O consenso, em caso de conflito, é garantido num nível
cada vez mais abstrato; por conseguinte, assistimos a uma universalização e formalização
das orientações segundo os valores sugeridos institucionalmente aos agentes. Esta
tendência, que Parsons chamou de “generalização dos valores”, tem, no plano da
interação, duas conseqüências contrárias: por um lado, ela permite que o agir
comunicativo se destaque das normas religiosas; por outro lado, ela provoca a separação
entre o agir orientado para o sucesso e o agir orientado para a intercompreensão, criando
assim subsistemas de ação racional segundo um fim. A pressão no sentido da
racionalização se torna tão forte, que acaba-se por solicitar demasiadamente o mecanismo
da intercompreensão pela linguagem; este deve portanto ser substituído por outros
mediuns de comunicação4, sobretudo pelo dinheiro.
É portanto a busca da intercompreensão e a necessidade de evitar o risco de
dissenso que provoca a substituição da linguagem pelos mediuns reguladores na
coordenação da ação. Daí resulta uma desvalorização do Mundo da Vida, pois agora há

4Talvez para evitar qualquer confusão com os Mass Media, Habermas não utiliza o plural latino de
medium. Assim, traduziremos Steuerungsmedien por “mediuns de regulação”.
Teoria do Agir Comunicativo 28

interações que não dependem dele para a coordenação das ações. Do ponto de vista do
Mundo da Vida, este “golpe” aparece como uma “tecnicização do Mundo da Vida”.
Chegamos assim ao coração do paradoxo weberiano da racionalização: o Mundo
da Vida racionalizado possibilita o surgimento e crescimento de subsistemas, cujos
imperativos se tornarão autônomos e se voltarão contra ele, para destruí-lo. Mas
Habermas tenta mostrar que esta evolução, apesar de causar uma violência estrutural, não
deve ser vista como um destino trágico.
Para tratar da questão da “reificação”, Habermas introduz o conceito de “forma da
intercompreensão”:
“A discreção subjetiva diante das exigências sistêmicas que instrumentalizam um Mundo da Vida estruturado
pela comunicação toma o caráter de uma ilusão, de uma consciência objetivamente falsa. Os efeitos do Sistema sobre o
Mundo da Vida, que transformam na sua estrutura os contextos de ação dos grupos socialmente integrados, devem
permanecer ocultos. As exigências da reprodução, que instrumentalizam um Mundo da Vida sem prejudicar a aparência
autárquica deste último, devem se ocultar como que nos poros do agir comunicativo. Daí resulta uma violência
estrutural que, sem tornar-se aparente, apodera-se da forma de intersubjetividade de toda intercompreensão possível. A
violência estrutural se exerce por meio de uma redução sistemática da comunicação; ela a tal ponto se incrusta nas
condições formais do agir comunicativo que, para os participantes da interação, a conexão entre os mundos objetivo,
social e subjetivo acaba por ser predeterminada de maneira típica. Para este a priori relativo da intercompreensão, eu
gostaria de introduzir o conceito de forma da intercompreensão (Verständigungsform), por analogia com o a priori do
conhecimento representado pela forma do objeto (Lukacs).” (II,278)
As formas de intercompreensão aparecem ao longo de toda a História, sempre nos
espaços onde as condições sistêmicas da reprodução material penetram, furtivamente, nas
formas de integração social; ainda assim, elas estão associadas à progressiva liberação do
potencial de racionalidade presente no agir comunicativo.
Ora, nas sociedades modernas, esta violência estrutural não pode mais se
dissimular atrás da racionalização: a forma moderna da intercompreensão é muito
transparente e a concorrência entre as formas de integração sistêmica e as formas de
integração social torna-se mais visível. Quando a “mediatização” atinge os domínios
onde a coordenação consensual da ação é insubstituível, ela torna-se uma colonização do
Mundo da Vida, ameaçando assim sua reprodução simbólica.
Antes de apresentar, na Consideração Final, sua última palavra sobre a
problemática da reificação, Habermas retoma o curso da História das Teorias, a fim de
encontrar na obra de T. Parsons uma mediação mais concreta entre a teoria do sistema e a
teoria da ação.

7. Parsons e a Construção de uma Teoria da Sociedade

Segundo Habermas, a construção teórica de Parsons impressiona por conseguir


unir as teorias da ação e do sistema, sem cometer o erro dos teóricos sistêmicos da recente
geração: estes omitem a constituição do domínio do objeto chamado “ação” ou “sistema”,
interessando-se apenas pela aplicação do modelo sistêmico a este domínio.
A questão da relação entre as duas formas de integração foi respondida por Hegel
com a passagem idealista do espírito subjetivo ao espírito objetivo e, por Marx, com a
noção de valor. Desde então, estas respostas não são mais plausíveis. Assim, podemos ver
na teoria do Sistema (p. ex., a teoria econômica) e na teoria da ação (p. ex., a sociologia
alemã mais antiga) os membra disjecta da herança hegeliana e marxiana, incapazes de
atingir um nível aceitável de complexidade. O mérito de Parsons é o de ter novamente
Teoria do Agir Comunicativo 29

“religado os fios da História da Teoria”; contudo, sua solução não satisfaz ainda às
exigências de uma TAC.
No fim dos anos 50, Parsons decide substituir o primado da teoria da ação pelo da
teoria do Sistema; isto ocorreu, segundo Habermas, porque nenhuma das duas versões de
sua teoria da ação era suficientemente complexa para permitir a dedução de um conceito
de sociedade, como nos casos de Durkheim e Mead. Parsons foi assim levado a crer que a
passagem conceptual de ação para a conexão da ação representava toda uma mudança de
perspectiva analítica. Habermas julga entretanto que esta assimilação da conexão da ação
aos sistemas é fruto de um desconhecimento das capacidades da teoria da ação e,
sobretudo, da questão metodológica da relação entre uma perspectiva objetivista e uma
perspectiva interna. Os pattern-variables de Parsons servem apenas para descrever o
núcleo estrutural onde cultura, sociedade e personalidade se interpenetram, sem contudo
explicar a contribuição específica de cada um destes três “sistemas de ação” para a
orientação das ações. Estas três ordens permanecem portanto separadas; Parsons fará
delas “sistemas autônomos”, que se influenciam mutuamente, mas sem mediação alguma.
“Se os pattern-variables têm apenas o sentido elementar de fazer considerar as diferentes culturas como
combinações diferentes dos mesmos modelos de decisão, se eles não descrevem também uma estrutura que submete a
mutação destes modelos de decisão às limitações internas, Parsons acaba sem nenhum instrumento teórico para explicar
a resistência dos modelos culturais contumazes diante dos imperativos funcionais.” (II,346)
Para evitar estes problemas, a TAC busca resolver a tensão entre as duas
abordagens através da idéia de que as estruturas simbólicas do Mundo da Vida se
reproduzem por meio do agir comunicativo. Trata-se de ter um ponto de referência para
analisar as contribuições devidas à cultura, à sociedade e à personalidade na realização
das orientações de ação, mas mais ainda, de ver como estas três ordens resistem, em
conjunto, como elementos do Mundo da Vida estruturado simbolicamente. No plano
metodológico, trata-se de distinguir entre duas perspectivas, uma e outra indispensáveis:
uma interna, que elabora uma integração social como parte da reprodução simbólica do
Mundo da Vida, e uma externa, que elabora uma integração funcional como reprodução
material do Mundo da Vida (concebida como “conservação do Sistema”).
Sentindo a ausência de um conceito que correspondesse ao de Mundo da Vida,
Parsons tentou valer-se do de “sistema cultural”, mas a conseqüência desta tentativa foi o
surgimento de uma ambivalência: o sistema cultural deveria ser um sistema cobrindo o
sistema da ação e, simultaneamente, um sistema interno aos sistemas de ação. Tal
fracasso fez com que Parsons não reivindicasse mais uma situação particular para o
sistema cultural e passasse a rever sua construção teórica, dando primazia aos princípios
da Teoria dos Sistemas. Contudo, Parsons não consegue abandonar a idéia, tomada a
Durkheim, Freud e Weber, de considerar os sistemas de ação como encarnações de
modelos de valores culturais. Ele deseja portanto ligar seu funcionalismo sistêmico a uma
teoria da cultura neo-kantiana. Este compromisso se exprime no arranjo linear de quatro
subsistemas, cultura, sociedade, personalidade e organismo, onde o subsistema cultural
mantém uma posição dominante no que diz respeito à regulação do conjunto, mas ao
mesmo tempo depende do fornecimento de energia pelos outros subsistemas.
Habermas busca mostrar que a fragilidade deste compromisso deve-se a uma
articulação falha entre as conceptualizações da ação e do sistema na obra de Parsons. Esta
fragilidade é levada ao extremo em sua filosofia antropológica tardia, quando ele pede
um estatuto transcendental para as estruturas “finais”. Mas a análise de Habermas
concentra-se evidentemente sobre a teoria dos mediuns de comunicação, elaborada por
Parsons nos anos sessenta.
Teoria do Agir Comunicativo 30

Esta teoria se caracteriza por uma generalização do conceito de medium. Cada


meio de comunicação corresponderia a um subsistema social: o dinheiro ao sistema
econômico, o poder ao sistema político, a influência ao sistema de integração social e o
compromisso axiológico (value- commitment) ao sistema de conservação dos modelos
culturais. Mas, de um ponto de vista heurístico, estes quatro meios não são equivalentes:
as Ciências Econômicas já analisaram bastante o dinheiro como um meio que regula a
aplicação ótima de recursos raros; além do mais, de um ponto de vista histórico, o
dinheiro foi o primeiro meio a ser institucionalizado. Por conseguinte, Parsons conclui
que o dinheiro poderia servir como paradigma para compreender o funcionamento de
todos os outros mediuns.
Entretanto, esta analogia estrutural com o medium dinheiro se mostrará muito
deficiente, sobretudo em sua filosofia antropológica tardia. Habermas compreende esta
teoria como uma hipergeneralização, pois ele não crê que exista algo como um sistema de
mediuns de regulação.
“Uma vez que os teóricos do sistema consideram a comunicação linguajar e, com ela, a intercompreensão
(como mecanismo de coordenação da ação), apenas sob o ponto de vista da regulação, eles só podem partir do
pressuposto de que todo tipo de mediuns de regulação pode se diferenciar a partir da linguagem. Eles não consideram
nem mesmo a possibilidade de que a própria estrutura da linguagem coloque limites a tal processo. Eu gostaria de
mostrar que, pelo contrário, só as esferas funcionais da reprodução material se deixam diferenciar do Mundo da Vida
através de mediuns de regulação. As estruturas do Mundo da Vida só podem se reproduzir através do medium
fundamental do agir orientado para a intercompreensão.” (II;391)
Em outras palavras, a linguagem é insubstituível para explicar os sistemas de ação
orientados para a reprodução cultural, a integração social e a socialização.
Sem dúvida, através da crítica de Parsons insinua-se a controvérsia entre
Habermas e Luhmann. Por um lado, Habermas condena a abordagem deste último, pois a
linguagem não pode ser considerada como um subsistema entre outros: ela é a condição
de possibilidade de uma teoria das sociedade. Por outro lado, Habermas reconhece, de
forma irrestrita, a pertinência do conceito de “tecnicização do Mundo da Vida”,
introduzido por Luhmann. Se o preço a pagar por uma dada tentativa de
intercompreensão é o risco de dissenso, é preciso admitir que este risco aumenta à medida
em que aqueles que agem comunicativamente não aderem mais, de forma ingênua, ao
consenso que eles já encontram dado no Mundo da Vida. É preciso portanto que os
participantes da ação recorram a mediuns como o dinheiro e o poder, que lhes poupam a
alternativa entre acordo e fracasso na intercompreensão. Ainda assim, Habermas insiste
que, apesar das organizações ou tecnologias da comunicação que vêm racionalizá-la, a
intercompreensão não pode ser substituída por mediuns, i.e., não pode ser tecnicizada,
nos lugares onde se trata da coordenação da ação nos domínios da reprodução cultural, da
integração social e da socialização.
Em suma, Habermas julga que o dualismo dos mediuns é irredutível. Somente
assim podemos explicar a resistência que as estruturas do Mundo da Vida opõem, em
certos domínios de ação, à conversão da integração social em integração sistêmica.
Sem instrumentos para explicar as patologias sociais, a teoria da modernidade
desenvolvida por Parsons só pode sugerir uma idéia de harmonia. Parsons explica por
uma teoria da evolução, aquilo que Weber havia explicado como uma passagem de uma
racionalização cultural a uma racionalização social; mas, ao mesmo tempo, ele associa a
modernização a um processo de diferenciação do Sistema. As sociedades modernas
desenvolvidas se distinguem por uma forte complexidade que lhes seria inerente e que
elas aumentariam simultaneamente em quatro dimensões: capacidade de adaptação,
diferenciação de subsistemas regulados por mediuns, inclusão e generalização de valores.
Teoria do Agir Comunicativo 31

Haveria assim uma relação analítica entre, de um lado, a grande complexidade do sistema
e, de outro lado, as formas universalistas de integração social e o individualismo
institucionalizado sem coerção.
“É este esquema analítico que obriga Parsons a projetar uma imagem harmoniosa de tudo o que cai sob a
descrição das sociedades modernas.” (II,432)
Mas, segundo Habermas, quando se assimila a racionalização do Mundo da Vida
a um crescimento de complexidade do Sistema social, não se dispõe mais de certas
distinções indispensáveis para captar as patologias da modernidade. Estas serão reduzidas
por Parsons a simples desequilíbrios intra-sistêmicos. Ora,
“só uma resistência interna pertinaz contra as revisões funcionalmente propostas, onde as imagens do mundo e
da sociedade são orientadas de forma unilateral, poderia explicar as crises, i.e., as perturbações que têm um caráter
sistemático e que representam algo bem diferente de simples desequilíbrios temporários.” (II,436)

8. A Consideração Final

Diante da incapacidade de Parsons em explicar o surgimento das patologias


sociais, Habermas propõe “uma segunda tentativa de acolhimento de Weber no espírito
do marxismo ocidental” (II,448). Mesmo ressaltando que esta tentativa é igualmente uma
crítica à própria tradição marxista, Habermas julga trazer um “aperfeiçoamento crítico
das hipóteses fundamentais do marxismo”. Neste sentido, é interessante observar que as
últimas linhas desta “Consideração Final” serão dedicadas a uma retomada do projeto da
“Teoria Crítica” da Escola de Frankfurt.
Na análise que dela havia feito Habermas, a sociologia de Weber apresentava
quatro tipos de dificuldades:
- a correta explicação da ética protestante da vocação (e da condução metódica de
vida que lhe corresponde) como encarnação de uma consciência moral guiada por
princípios, é incompatível com a falta de uma elaboração mais sistemática da explicação
do ascetismo nos negócios (Berufsaskese) como uma encarnação fortemente irracional da
ética religiosa da fraternidade;
- Weber supôs erroneamente que a secularização traria o desaparecimento da
“ética da vocação” (Berufsethik), pois ele não podia imaginar uma consciência moral
guiada por princípios que não estivessem ligados ao interesse pessoal pela salvação;
- a polarização das condutas de vida entre a especialização e o prazer era
explicada por Weber através do antagonismo entre as esferas autônomas de valores
culturais; contudo, Habermas crê que uma “racionalidade procedural” pode salvaguardar
a unidade de uma “razão substancial” em decomposição;
- finalmente, a oposição weberiana entre racionalização formal e racionalização
material não está à altura dos problemas de legitimação suscitados por uma soberania
legal minada pelo positivismo, pois o próprio Weber estava preso a concepções
positivistas do Direito.
As respostas trazidas por Habermas se desenvolvem em torno dos conceitos de
“Moral e Direito pós-tradicionais” e de mediatização e colonização do Mundo da Vida
(II,451/2). Habermas quer assim “lançar uma nova luz sobre o surgimento e
desenvolvimento da modernidade”.
A tese da burocratização, em especial, pode ser reformulada por meio dos
conceitos de Sistema e Mundo da Vida. Weber supõe uma dependência linear da
Teoria do Agir Comunicativo 32

racionalidade da organização em relação à racionalidade da ação de seus membros; ora, a


moderna teoria das organizações abandonou este modelo de explicação pela finalidade,
ligando-se pelo contrário a um funcionalismo que tem como ponto de referência a
racionalidade do sistema. Assim, quando Weber afirma que com a burocratização se
impõem ao mesmo tempo a racionalidade social máxima e a subsunção mais eficaz dos
sujeitos agentes sob o poderio de uma máquina burocrática sem vida, ele está se apoiando
num emprego ambivalente da expressão “racionalização”.
Habermas julga que, ao contrário, a tese da perda da liberdade só pode ser
plausível se considerarmos a burocratização como o sinal de um nível mais elevado de
diferenciação do Sistema. Mas ele acredita também que, mesmo no seio das
organizações, onde é o Direito formal que constitui os contextos de ação, as interações
formam redes, graças ao mecanismo da intercompreensão.
“Se todos os processos genuínos de intercompreensão fossem banidos do interior da organização, nem se
manteriam as relações sociais formalmente reguladas, nem se atingiriam os objetivos da organização. No entanto, o
modelo clássico da burocratização tem razão quando afirma que o agir organizacional está sob as premissas de um
domínio de interação formalmente regulado. Como este domínio é eticamente neutralizado por uma organização de
forma jurídica, o agir comunicativo perde sua base de validade no quadro interno das organizações. Os membros das
organizações podem agir comunicativamente com reservas. Eles sabem que eles podem recorrer às regulamentações
formais, não apenas em casos excepcionais, mas mesmo rotineiramente: eles não são obrigados a alcançar um consenso
por meios comunicativos. Nas condições do Direito moderno, a formalização das relações interpessoais significa a
delimitação legítima dos espaços de decisão, que podem eventualmente ser utilizados estrategicamente. (...) Com a
organização informal, o Mundo da Vida dos membros da organização, que não é jamais aniquilado, penetra na realidade
da organização. Em resumo, podemos dizer que as tendências à burocratização se apresentam, do ponto de vista da
organização, como uma autonomia crescente face às componentes do Mundo da Vida, relegadas ao meio ambiente do
Sistema. Na perspectiva contraditora do Mundo da Vida, o mesmo processo se apresenta como autonomização.”
(II,459/61)
As relações internas das empresas não eliminam a comunicação, mas deixam as
bases de validade do agir comunicativo sem nenhum poder e privilegiam os mediuns de
comunicação que independem da linguagem.
Quanto à possibilidade de que esta tendência à burocratização atinja o grau
previsto por Orwell, trata-se de uma questão em aberto.
“Vejo a fraqueza metodológica de um funcionalismo sistêmico colocado em absoluto, justamente no fato de
que ele escolhe seus conceitos teóricos de base como se aquele processo, cujos pontos de partida foram apontados por
Weber, estivesse já concluído, como se uma burocratização já total tivesse desumanizado toda a sociedade (...). Este
"Mundo administrado" era para Adorno a própria visão do terror; em Luhmann, ele se transformou em uma hipótese
trivial”. (II,462).
Se o futuro da racionalização é uma questão em aberto, sua história pode ser
explicada por diferentes modelos: o de Marx parte dos problemas de integração do
Sistema (a teoria dos modos de produção), enquanto que o de Weber parte dos problemas
da integração social (racionalização segundo um fim). O método reconstrutivo de
Habermas, inspirado em Piaget, propõe um processo de aprendizado ao longo da
evolução histórica, o qual se traduz pelo aproveitamento de um potencial de
aprendizagem. Este modelo possui os traços seguintes (II,463/4):
- As capacidades de aprendizagem adquiridas por uma parte da sociedade acabam
por se difundir; as estruturas de consciência e reservas de saber são partilhadas
coletivamente, instituindo um potencial cognitivo que é colocado a serviço da sociedade.
- Ao longo de sua evolução histórica, as sociedades podem aprender
evolucionariamente, resolvendo problemas sistêmicos que ultrapassam as capacidades de
regulação disponíveis nos limites de uma dada formação social. Para isto, elas assimilam
em suas instituições as estruturas de racionalidade que já estavam presentes na cultura.
Um novo nível de aprendizagem é assim atingido.
Teoria do Agir Comunicativo 33

- A instauração de uma nova forma de integração social permite o


desenvolvimento do saber técnico-organizacional necessário ao aumento das forças
produtivas. Os processos de aprendizagem no campo da consciência moral-prática têm
portanto uma função precursora para a evolução social.
O caminho da racionalização estudado por Weber explica-se assim por uma
diferenciação das estruturas simbólicas do Mundo da Vida que, a partir de certo ponto,
permite que as esferas de ação formalmente organizadas se separem dos contextos do
Mundo da Vida. A formalização jurídica das relações sociais exige um certo nível de
generalização dos valores, de liquidificação da tradição cultural e de separação entre
moralidade e legalidade.
Quanto ao paradoxo a que Weber se referia com sua tese da perda da liberdade,
ele diz respeito não a uma diferença nos tipos de orientação da ação (racionalidade
segundo os fins / segundo os valores), mas a uma diferença nos princípios de socialização
(Sistema / Mundo da Vida). Mas como determinar o ponto a partir do qual a mediatização
do Mundo da Vida se transforma em colonização?
A monetarização e a burocratização da ação na vida cotidiana (i.e., na esfera
privada ou no espaço público) é a causa dos modos de vida unilaterais e das necessidades
insatisfeitas de legitimação, e não o caráter irreconciliável das esferas de valores culturais.
As deformações estudadas por Marx, Durkheim e Weber não podem ser atribuídas
propriamente nem à racionalização do Mundo da Vida, nem ao aumento de
complexidade do Sistema: a racionalização unilateral ou a reificação não são uma
conseqüência da separação entre o Mundo da Vida e os subsistemas regulados pelos
mediuns. Estas deformações são atribuíveis apenas à entrada à viva força da
racionalidade econômica e administrativa nas esferas de ação que são especializadas na
transmissão cultural, na integração social e na educação, que dependem da
intercompreensão para a coordenação da ação e que portanto resistem a uma conversão
aos mediuns dinheiro e poder.
Habermas critica a indiferença de Weber a respeito do mecanismo que dá impulso
a esta expansão sem freios dos sistemas econômico e estatal e o opõe a Marx, que ao
contrário sublinhou este aspecto e acabou por descobrir que a racionalização do Mundo
da Vida leva não apenas a uma reificação induzida pelo Sistema, mas também a uma
perspectiva utópica: as esferas de ação formalmente organizadas do “bourgeois” (a
economia e o aparelho de Estado) constituem as bases para o Mundo da Vida
pós-tradicional de um “Homme” (esfera privada) e de um “Citoyen” (espaço público)
(II,485).
Mas a adesão de Habermas à tradição marxista não é sem reservas: se a dinâmica
do conflito de classes pode explicar o crescimento hipertrofiado da economia e do
Estado, é preciso no entanto admitir que os efeitos da reificação não são específicos das
classes sociais.
Apesar de sua concepção da sociedade combinar Sistema e Mundo da Vida, o
marxismo não chega a explicar o capitalismo avançado, devido a três pontos falhos na
Teoria do Valor:
- ela impede que Marx aprecie o valor próprio, para a evolução histórica, dos
subsistemas regulados pelos mediuns, pois ela concebe a sociedade capitalista como uma
totalidade. A imbricação dialética entre análise do Sistema e análise do Mundo da Vida
impede uma separação rigorosa entre o nível de diferenciação do Sistema no mundo
moderno e as formas de sua institucionalização, específicas das classes sociais;
Teoria do Agir Comunicativo 34

- ela impede a Marx de distinguir entre destruição das formas de vida tradicionais
e reificação dos Mundos da Vida pós-tradicionais, pois ela não dispõe de um conceito de
racionalização para contrabalançar o de alienação;
- ela introduz um conceito muito limitado de reificação, que subestima a esfera
privada e o espaço público e se interessa apenas pelo mundo do trabalho.
Habermas propõe a substituição da Teoria do Valor marxista por seu modelo de
trocas entre, de um lado, economia e Estado, e de outro, esfera privada e espaço público,
ao qual deve ser incorporada ainda a dinâmica de um processo de acumulação que se
tornou seu próprio fim. Poderiam ser então explicados o intervencionismo do Estado, a
democracia de massas e o Estado-providência, três características do capitalismo
avançado que a ortodoxia marxista não pode captar, devido ao seu economicismo (a) e
seu desconhecimento do papel da cultura (b).
(a) o economicismo consiste em não compreender que o capitalismo avançado
utiliza à sua maneira a disjunção entre Sistema e Mundo da Vida:
“A estrutura de classes, removida do Mundo da Vida para o Sistema, perde sua figura historicamente
identificável. A distribuição desigual das indenizações sociais reflete um modelo de privilégios, que não se pode mais
associar diretamente com a situação de classe. É claro que as velhas fontes de desigualdade não se esgotaram de forma
alguma; todavia, junto com elas interferem não apenas as compensações do Estado social, mas ainda desigualdades de
um outro modelo.”
Habermas não entra em detalhes a respeito deste outro modelo; ele se interessa
mais pela aparição de uma reificação que não está ligada à problemática das classes
sociais. O Estado social, sustentado pelo crescimento econômico capitalista, transforma
as condições das quatro relações entre Sistema e Mundo da Vida: os papéis de
consumidor e de cliente são exaltados e os de empregado e cidadão são neutralizados. O
mundo do trabalho é pacificado, a participação política é separada do processo de
decisão. Contudo, a dinâmica do capitalismo implica num contínuo aumento do
crescimento do Sistema, que não demora a invadir as esferas do Mundo da Vida,
provocando uma resistência que Habermas chama de obstinada e auspiciosa (II,516).
(b) no que se refere à cultura, o marxismo tradicional dispõe apenas de uma teoria
da consciência de classe, que é de fato uma crítica da ideologia prolongando a teoria da
reificação. Habermas propõe substituí-la por uma teoria centrada em torno da estrutura de
comunicação que ele chamou “forma moderna de intercompreensão”. Segundo ele,
trata-se de explicar o empobrecimento cultural das sociedades modernas e não de criticar
sua ideologia.
Nos começos da modernidade, estamos ainda diante de uma forma de
compreensão global. Sob uma forma secularizada, o sagrado sobrevive numa cultura
burguesa que ainda não se tornou totalmente profana. Mas, à medida que este
desencantamento progride, a racionalidade da vida corrente vem substituir a das
“imagens do mundo” míticas ou religiosas na constituição das motivações e das
orientações axiológicas, provocando assim a “perda de sentido” que preocupava Weber.
Assim, os movimentos de massa modernos, da Revolução Francesa ao fascismo ou ao
anarquismo, foram marcados pela ideologia e apresentavam todos a mesma forma de
representações totalizantes da ordem social, dirigidos à consciência política por
companheiros de luta.
Esta forma desmorona-se necessariamente com a estrutura comunicativa da
modernidade avançada. A forma moderna de intercompreensão caracteriza-se por sua
separação em relação aos contextos normativos e pela diferenciação das formas de
argumentação, segundo as instituições: o discurso teórico nos estabelecimentos
Teoria do Agir Comunicativo 35

científicos, os discursos moral-práticos na vida política e no sistema judiciário, e a crítica


estética no mundo artístico e literário. A cultura desencantada é o apogeu de uma lógica
inscrita na racionalização:
“Uma vez apagados os traços, repletos de aura, do Sagrado, partem voando os produtos da força de
imaginação sintetizadora de imagens do mundo; a forma de intercompreensão, totalmente diferenciada em sua base em
sua base de validade, torna-se tão transparente, que a prática comunicativa cotidiana não guarda mais nenhum nicho
para o poder estrutural das ideologias. Doravante, os imperativos dos subsistemas autonomizados devem exercer, do
exterior, uma influência reconhecível sobre os domínios de ação socialmente integrados; eles não podem mais se
dissimular atrás do declive de racionalidade existente entre os domínios de ação sacral e profano; eles não podem mais
atravessar discretamente as orientações de ação para subsumir o Mundo da Vida em contextos funcionais,
intuitivamente inaccessíveis.” (II,520/1)
Logo, Habermas acredita que o desencantamento traz uma estrutura de
comunicação “desideologizada”. A concorrência entre a integração sistêmica e a social é
aberta. Contudo, ele admite também que o capitalismo avançado desenvolveu um
equivalente funcional para substituir a ideologia: a fragmentação da consciência corrente,
à qual ele retira a capacidade de síntese.
“No lugar da "falsa" consciência há hoje a consciência fragmentada, que evita a Aufklärung por meio de
mecanismos de reificação. Só então são preenchidas as condições para uma colonização do Mundo da Vida: tão logo
caem seus véus ideológicos, os imperativos dos subsistemas autonomizados invadem, do exterior, o Mundo da Vida -
como os colonizadores nas sociedades tribais -e obtêm, pela força, a assimilação; mas as perspectivas dispersas da
cultura local não podem ser de tal forma coordenadas, que o jogo da metrópole e do mercado mundial possa ser
descoberto a partir desta periferia.” (II,522)
A tese da colonização interior é ilustrada pela extensão do Direito aos domínios
da ação estruturados pela comunicação. Habermas justifica esta escolha pela “ausência de
grandes problemas de método e de conteúdo”5; além disto, trata-se de um tema
sociológico “clássico e incontestado” desde Weber e Durkheim (II,523). A substituição
da integração social pela integração sistêmica deu-se através de vários processos de
extensão do Direito (Verrechtlichungsprozessen): o que levou do absolutismo ao Estado
burguês; o que levou ao Estado de Direito (p. ex., a monarquia alemã do século XIX); o
que levou ao Estado de Direito democrático (Revolução Francesa); finalmente, o que está
hoje em curso e que leva a um Estado de Direito democrático e social (o qual é
conseqüência do movimento operário europeu). Habermas explica estes quatro impulsos
de extensão do Direito à luz da disjunção entre Sistema e Mundo da Vida: este,
inicialmente submetido ao mercado e à soberania absolutista, impõe progressivamente
suas pretensões, pois a legitimidade necessária ao Estado burguês deve fazer com que
mediuns como o dinheiro e o poder tenham algum apoio no Mundo da Vida
racionalizado, para que ela própria esteja à altura do nível moderno de justificação.
“No fim sobra, como única fonte de legitimação, o Mundo da Vida estruturalmente diferenciado, do qual
dependem funcionalmente os Estados modernos.”
Mas, a partir de um exame das tendências atuais da extensão do Direito na RFA,
Habermas alerta quanto à possibilidade de que o Direito se transforme num medium
capaz de impor à família, à escola ou à política social um princípio de socialização que
lhes seria disfuncional.
A análise do economicismo e a crítica da ideologia conduzem Habermas a propor
uma substituição da Teoria do Valor, cujo modo de ligação entre as afirmações sobre o
Sistema e as afirmações sobre o Mundo da Vida não corresponde mais à realidade social
e jurídica do capitalismo avançado: para ela, tudo que pode ser descrito nos termos de
uma teoria do Sistema deve ser simultaneamente decifrado como um processo de

5Contudo, no prefácio à edição francesa de TAC, Habermas afirma que, cinco anos após o lançamento
do livro na Alemanha, ele refletia sobre a relação complexa entre Direito, Moral e Eticidade (Sittlichkeit)
e revia suas teses sobre a extensão do Direito, que talvez fossem muito radicais.
Teoria do Agir Comunicativo 36

reificação do trabalho vivo. Ora, segundo Habermas, o problema semântico que consiste
em ligar as descrições a partir do sistema e a partir da ação não deve ter repercussão sobre
as questões de conteúdo:
“(com a premissa do nível avançado de diferenciação do sistema jurídico, inerente ao sistema econômico
capitalista) a questão semântica - como esta ou aquela realidade pode ser traduzida de uma linguagem teórica em uma
outra? - se transforma na questão empírica - a partir de que momento o crescimento do complexo monetário-burocrático
passa a tocar em esferas de ação que não poderiam ser submetidas a mecanismos de integração sistêmica sem que haja
conseqüências patológicas?” (II,548)
Logo, não se pode falar de reificação, i.e., de uma “deformação patológica das
infraestruturas comunicativas do Mundo da Vida” (II,549), senão quando o Mundo da
Vida é obrigado a ceder ao Sistema as funções que dizem respeito à reprodução
simbólica; a reprodução material, entretanto, pode ser abandonada “sem dores” nas mão
do Sistema.
Apesar de sua oposição em relação à Teoria do Valor, a TAC segue o modelo de
Marx no que se refere a sua atitude crítica diante das Ciências Sociais e da realidade
social analisada. Diante da realidade do capitalismo, ela critica a incapacidade das
sociedades desenvolvidas de esgotar o potencial de aprendizagem oferecido por sua
cultura, ao mesmo tempo em que estas se deixam levar por um crescimento de
complexidade que não controlam mais. Diante das Ciências Sociais, a TAC critica a
incapacidade destas de decifrar os paradoxos da racionalização, pois elas a cada vez
escolhem apenas um aspecto abstrato segundo o qual a sociedade será elevada ao nível de
objeto: enquanto a teoria da diferenciação estrutural (R. Bendix, C. W. Mills,...) não
separa suficientemente Sistema e Mundo da Vida, a teoria do Sistema (Luhmann,...) e a
teoria da ação (E. P. Thompson,...) isolam e hipergeneralizam um dos dois aspectos.
Habermas tentou tornar fecundo um quarto caminho de pesquisa, o estruturalismo
genético da Psicologia do Desenvolvimento, para apropriar-se da sociologia da religião
de Weber, da teoria da comunicação de Mead e da teoria da integração social de
Durkheim e assim explicar as patologias da modernidade que as outras correntes, por
razões de método, não podem captar.
Segundo Habermas, os conflitos situam-se hoje na interseção do Sistema e do
Mundo da Vida: eles não nascem dos problemas de redistribuição de bens materiais, mas
de questões que referem-se à “gramática das formas de vida”, i.e., questões ligadas à
reificação das esferas de ação que só a comunicação pode estruturar (II,576). Habermas
julga que a expansão destas esferas de ação nas sociedades modernas torna “praticamente
verdadeira” a resistência do agir comunicativo sublinhada por sua teoria.
É contudo significativo que as últimas linhas do livro seja destinadas a provar, no
plano metodológico, que a TAC não utiliza o conceito de agir comunicativo como um
fundamento original ou último. Por um lado, ele admite que esta é uma questão que pode
ser levantada:
“De fato, a TAC visa este momento de incondicionalidade que, com as pretensões criticáveis à validade,
integra as condições do processo de formação do consenso - estas transcendem, enquanto pretensões, todas as limitações
espaciais e temporais, todas as limitações provinciais do respectivo contexto.” (II,586/7)
Mas, por outro lado, Habermas rebate esta crítica de “fundamentalismo” com dois
argumentos:
- A Filosofia se integra à TAC apenas dentro de uma “divisão de trabalho” com as
“ciências reconstrutivas”, i.e., com as ciências
“cujo ponto de partida se liga tanto ao saber pré-teórico dos sujeitos que falam, agem e julgam com
competência, quanto a sistemas transmitidos de saber coletivo, a fim de captar as bases da racionalidade da experiência e
do julgamento, do agir e da intercompreensão linguajar. (...) Sob a perspectiva da história das teorias, tentei mostrar,
com ajuda dos trabalhos de G. H. Mead, Max Weber e E. Durkheim, como as tarefas de experimentação científica e de
Teoria do Agir Comunicativo 37

análise filosófica-conceptual se engrenam mutuamente, neste tipo de teoria construída simultaneamente de forma
empírica e reconstrutiva. A Teoria genética do Conhecimento de J. Piaget é o melhor exemplo desta divisão do trabalho
cooperativa.” (II,587/8)
- Ainda que ela reivindique a garantia das estruturas universais do Mundo da
Vida, a TAC não se edifica sobre uma base transcendental. Ela deseja simplesmente estar
à altura da ratio essendi de seus objetos, sabendo que para isto é preciso ainda que o
contexto de vida objetivo onde está situado o pesquisador encarregue-se de abrir para este
a ratio cognoscendi. Em outros termos, a TAC tem consciência de sua relação com o
contexto social onde ela emerge; ela leva em conta o fato de que saber de fundo que
constitui o Mundo da Vida só se torna accessível para o pesquisador, quando um desafio
objetivo vem colocar o conjunto do Mundo da Vida numa situação problemática. Tal
desafio pode ser provocado pelo fenômeno da colonização e revelar para nós (für uns),
por razões ainda a precisar, as estruturas do Mundo da Vida.
Alheia a toda forma de transcendentalismo, a TAC está apta, segundo Habermas,
a dar continuidade à crítica do positivismo iniciada pela Teoria Crítica.

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