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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
coloquiletras@yahoo.com.br

REPRESENTAÇÕES E ESTEREÓTIPOS EM UM BONDE CHAMADO DESEJO:


CONFLITO ENTRE PASSADO E PRESENTE NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
NA LITERATURA E CINEMA DO PÓS-GUERRA

José Carlos Felix


(Professor – UNEB – BA)
(Doutorando – IEL – UNICAMP)

RESUMO: Comumente pensadas apenas como estéticas literárias, Romantismo e Realismo


exerceram um forte influência sobre demais expressões artísticas e, particularmente, no cinema
definiram várias formas e códigos de representação. O presente trabalho parte da tese de que,
na medida em que um considerável contingente da produção cinematográfica hollywoodiana —
em particular a das décadas de 1940 e 1950 — serviu a um projeto de reelaboração de
identidade nacional norte-americana, além de contribuir significativamente para criar, reforçar e
perpetuar certos estereótipos que se tornariam apanágios emblemáticos e constitutivos de
diferentes gêneros cinematográficos. O exame pretende investigar a construção e os conflitos
das personagens centrais na peça Um bonde chamado desejo (1947), do dramaturgo
Tennessee Williams, juntamente com sua versão cinematógrafica (1951). Nesse sentido,
observaremos a maneira pela qual cada personagem, alocada num cenário de acelerada
transformação do pós-guerra, conjura e tipifíca instâncias discursivas distintas e expressões
estéticas antagônicas de idearios identitários tanto do passado agrário em decadência
(Romantismo) quanto da modernização e urbanização do presente (Realismo).

PALAVRAS-CHAVE: Literatura norte-americana; identidade; Romantismo vs. Realismo; Cinema


do pós-guerra; Um bonde chamado desejo.

Questões sobre realismo e representação no cinema clássico

Movimento artístico que se manifesta na segunda metade do século XIX nas


artes europeias, sobretudo, na pintura francesa, o Realismo, nas palavras de Antonio
Candido (1997, p. 385), caracteriza-se pela intenção de uma abordagem objetiva da
realidade e pelo interesse por temas sociais. O engajamento ideológico faz com que
muitas vezes a forma e as situações descritas sejam exageradas para reforçar a
denúncia social e assim se contrapor ao subjetivismo caracterizador do romantismo.
Não alheio à dinâmica da constante revitalização, égide catalisadora da sociedade pós-
industrial, esse movimento estético sofreu, nas primeiras décadas do século XX, uma

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transformação, intensificando ainda mais seu caráter ideológico marcadamente de
esquerda, de modo a reconfigurar toda uma produção artística, então denominada
neorrealista. Sem perder os laços e as ramificações com as várias formas de arte que
influenciou, foi no cinema, particularmente no neorrealismo italiano, que esta estética
atingiu seu paroxismo e afetou profundamente as técnicas narrativas fílmicas durante as
décadas de 1950-60.
Enquanto convenção estética, Realismo e Neorrealismo abarcam um conjunto
de técnicas normativas na produção artística, não se diferenciando assim das demais
estéticas antecendentes ou precedentes. Entretanto, é na premissa de uma
representação mais fidedigna da realidade que certamente nos deparamos com sua
maior falácia. Ao ser compreendida como recurso estético, a noção da representação
da realidade inevitavelmente engendra um problema de ordem ontológica, alinhando-se
à tradição filosófica que a compreende como algo singular, apreensível e passível de
uma reprodução mais ou menos fiel. Em sua análise da complexidade do processo de
reconstrução e da representação de identidades na narrativa cinematógrafia, a crítica
norte-americana Ella Shohat considera que “as teorias pós-estruturalistas nos lembram
de que existimos em um espaço permenado pela linguagem e pela representação, e
não temos portanto acesso direto ao real. Filmes, por sua vez, são construções ou
ainda assunções acerca de um possível real em um determinado tempo e espaço,
entrecortados por relações históricas, sociais e culturais” (SHOHAT, p. 179). A noção
artística de representação traz inexoravelmente em sua base o social e, como nos
lembra Bakhtin, engloba uma infinidade de discursos históricos e culturais (BAKHTIN,
2008, p. 74). Não obstante, toda tentantiva de representar um certo grupo, nação ou
povo, via de regra, resultará inevitavelmente em uma redução destes em arquétipos e
estereótipos.
Nesse sentido, o influxo dos Estudos Culturais na análise fílmica nos permitem
invetigar a maneira pela qual um considerável contingente da produção cinematográfica
hollywoodiana, serviu a um projeto de reelaboração de identidade nacional; além
também de contribuir de modo significativo para criar, reforçar e perpetuar certos
estereótipos que se tornariam emblemáticos naquele que se tornou o meio mais
influente de produção ficcional na segunda metade do século XX. Todavia, dentre a
pletora de filmes produzidos no período em questão, a problemática da representação e
dos estereótipos constitui-se como um tema pouco explorado pela crítica da adaptação

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cinematográfica da peça Um bonde chamado desejo (1947; 1951) de Tennessee
Williams, dirigida por Elia Kazan e com Marlon Brando e Vivian Leigh nos papéis
principais. Embora, com o passar das décadas, a fortuna crítica do filme tenha
reconhecido tanto inovações estéticas quanto uma ousadia no tratamento de temas
considerados inapropriados para uma mídia popular e de entretenimento como o
cinema, um exame mais detido dessa adaptação cinematográfica aponta para hipótese
de que parte de sua aceitação pelo público, incluindo aqui também os censores aos
quais o filme foi submetido, esteja na conformação das personagens centrais, a uma
modulação próxima aos tipos já consagrados pelos códigos e convenções do Cinema
Clássico descrito por David Bordwell (cf. BORDWELL; STAIGER; THOMPSON, 1985).
Destarte, faz-se necessário desviar o olhar dos temas amplamente debatidos na peça
de Williams a fim de poder melhor observar as razões pelas quais personagens,
marcadamente intensos da dramaturgia norte-americana, extrapolam os papéis de
indivíduos que se debatem diante de um ambiente rude e decadente para emergirem no
bojo da narrativa fílmica como figuras representativas de um passado notadamente
idealizado.
Diante desse contexto, vale ainda lembrar que a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) engendrou profundas mudanças na vida norte-americana, acelerando, por
exemplo, a mobilidade da população, alterando as relações raciais e, sobretudo,
modificando os papéis das mulheres. Essa mudança se refletiu também nos tipos de
temáticas pelos quais o público passara a se interessar. Ou seja, a fragmentação social
em subgrupos distintos entre si, gerou uma demanda por filmes que tratassem dos
graves problemas sociais enfrentados pela população do país, e não mais apenas
comédias de apelo estreitamente romântico ou de puro entretenimento. Logo, durante o
período pós-guerra, Hollywood produziu um número crescente de filmes abordando
problemas como o preconceito étnico e racial: Boat Show (1936); anti-semitismo:
Crossfire (1947); sofrimentos de doentes mentais maltratados: De repente, no último
verão (1959), Clamor do sexo (1961); além de temáticas sobre problemas com álcool e
drogas, Farrapo humano (1945).
Embora o período inicial do pós-guerra seja frequentemente considerado a
idade de ouro da família americana, os melodramas familiares, muito populares nas
décadas de 1940 e 1950, revelam um padrão de profundo desconforto nas relações
familiares como brilhantemente retratado em A felicidade não se compra (1946),

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clássico de Frank Capra. Filmes dessa época abordavam temas como a frustração
sexual, pais ansiosos, mães dominadoras, adolescentes desafiadores, e os casamentos
por interesse. De acordo com Stern (1984), esta obsessão com o tema do casamento e
da vida familiar como uma espécie de inferno, em parte, “reflete uma forma
popularizada de pensamento psicanalítico, que ofereceu fórmulas simplistas para
explicar o comportamento humano” (p. 132). Dessa maneira, filmes do início do período
pós-guerra insistiam, incessantemente, na tese de que a frustração sexual levava à
neurose e de que os pais rígidos, negligentes, alienados eram incapazes de criar seus
filhos, reforçando assim tais estereótipos.
Além disso, um entretenimento de massas como o cinema, por exemplo, fora
essencialmente importante no período pós-segunda guerra, pois ajudou a conjugar sob
um mesmo alpendre uma galeria de imagens do que significa ser americano. Em
especial, a crítica Patrícia Hern observa que:

[...] essa ideia fora igualmente importante para a primeira e segunda


geração de imigrantes que vieram da Europa e, eventualmente,
conceberam-se como ‘verdadeiros’ americanos com pedigree que
remontava as mais remotas origens dos primeiros ancestrais
pelegrinos que fizeram o mesmo trajeto dois séculos antes. (HERN,
1994, p. 74).

Um bonde chamado desejo e o registro de uma sociedade em transformação

É neste panorama, de uma indústria cinematográfica esforçando-se para se


recuperar daqueles árduos anos afetados pela guerra e, sobretudo, em busca de uma
nova fórmula para se adaptar às novas mudanças sociais, que encontramos as peças
de Tennessee Williams sendo escritas e transpostas para o cinema. Seus primeiros
textos (1940-50) foram aclamados pela crítica e audiência em parte por propiciarem ao
público um espetáculo de violência, moralidade, tragédia e romance em um cenário
tipicamente urbano, encarnados por personagens cuja marca maior configurava-se no
esforço em se apresentarem como indivíduos ou figuras representativas de aspectos
peculiares da vida e da tradição norte-americana. Em certo sentido, Um bonde chamado
desejo pode ser descrito como a primeira mais bem sucedida incursão de Williams na
temática da frustração sexual. Um ácido retrato da desintegração pessoal, essa peça,
assim como The glass menagerie (1943), apresenta um conjunto de personagens
delineadas por uma estética Naturalista, cujas personalidades são adensadas por

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interpretações carregadas de dramaticidade1. Contudo, é definitivamente com a história
de Blanche DuBois, como Phillips aponta, que Williams consegue capturar a imaginação
do público tanto no palco quanto nas telas, transformando-a em uma das personagens
mais legendárias da cultura popular do século XX (PHILLIPS, 1993, p. 232).
Visto em uma ampla perspectiva, Um bonde chamado desejo centra-se em
pelos menos três aspectos da tradição norte-americana típicos da narrativa fílmica do
cinema mainstream e moduladores da questão da representação do cinema pós-guerra.
Primeiramente, sua temática alinha-se a um acentuado interesse nostálgico pelo
passado norte-americano, particularmente o período da Guerra Civil no final do século
XIX embelezados pela exacerbação da épicorromântica do memorável romance de
Margareth Mitchell, E o vento levou, e a não menos emblemática adaptação
cinematográfica em 1939, também sucesso de público e crítica. Tanto a produção
cinematográfica quanto a literária – particularmente a decadência da vida rural sulista e
a proeminência do urbano na vida moderna descrita na literatura de William Faulkner –
descrevem um quadro em que, na primeira metade do século XX, a população das
grandes cidades do norte encontrava-se intrigada e fascinada pelas nostálgicas e
ficcionalizadas imagens do sul. Ou seja, a ficção cinematográfica corroborou para criar
um encantamento e um fetiche pela elegância pitoresca da elite rural que ostentava sua
riqueza adornada pelo refinamento e uma educação de padrões europeus. A
integridade figurava-se em saber que esse brilhantismo encontrava-se fadado à ruína
pela guerra civil, tornando-se então uma mera imagem decorativa de um tableau (Hern,
1994, p. 39). Blanche Dubois e Belle Reve2 pertencem àquela tradição, cristalizada e
midiatizada pela indústria cinematográfica para um público de massa através da
adaptação para o cinema de romances como E o vento levou, que não por puro acaso,
fora interpretado pela atriz inglesa Vivien Leigh, a mesma atriz a encarnar Blanche
Dubois nas telas doze anos mais tarde na versão de cinematográfica de Um bonde em
1951.

1
Williams esquadrinhou os problemas de mulheres solitárias em outras duas peças: Summer and smoke
(1948; revisada em 1965, ganhou um novo título: The eccentricities of a nightingale), um melodrama no qual
uma solteirona esforça-se para reprimir o lado sensual de sua natureza, e The rose tattoo (1951; filme,
1955), uma lasciva comédia na qual uma viúva, depois de muito conflito interno, redescobre sua
sexualidade.
2
Nome da propriedade da família de Blanche e Stella e que fora perdida por Blanche por sua má
administração. Esse nome possui uma forte carga simbólica na peça já que Belle Reve, do francês, significa
“belo sonho”.

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O folclore acerca do oeste selvagem configura-se como um segundo aspecto
do passado americano a ter grande apelo na construção da estrutura narrativa
hollywoodiana nas décadas de 1930-40. A temática recorrente destes filmes,
amplamente estudada pela crítica Laura Mulvey nos textos seminais “Prazer visual e
cinema narrativo” (1975) e “Reflexões sobre ‘Prazer visual e cinema narrativo’
inspiradas por Duelo ao sol, de King Vidor” (1981), conjura-se em uma amostragem de
heróis truculentos provando seu valor em combates contra os selvagens ou ladrões, ao
mesmo tempo em que eram extremamente leais aos seus companheiros de andanças;
a exemplo de Stanley sentir-se ligado a Mitch depois de os dois terem lutado juntos na
segunda guerra mundial. Embora essas construções de estereótipos não tenham
passado incólume entre os grupos de indivíduos retratados, Mulvey observa que
certamente a ideologia constitutiva nesses filmes contribuiu significativamente para
reforçar uma imagem já cristalizada em nossas mentes acerca dos tipos de
personagens que compõem um filme de faroeste, engendrando uma inequívoca
identificação com o espectador. Chama também a atenção o fato de que esses enredos
reforçaram perfis estereotipados e maniqueístas de mulheres em duas categorias
exclusivas, seguindo uma estruturação de narrativa fílmica pautada em dois esquemas
em funcionamento de uma ordem simbólica caracterizadora da figura feminina como
objeto. Seja da mulher como a bela e obediente dona de casa e progenitora ou como as
das prostitutas dos salões de baile. Sem dúvida, esses dois tipos clássicos encontram-
se retratados em Um bonde chamado desejo sendo a doce e indefesa Stella o primeiro
tipo e a desvairada Blanche o segundo.
Além disso, o embate travado entre as duas personagens antagônicas da
narrativa, Blanche e Stanley, centraliza-se justamente na polaridade e na intensificação
das esferas dos tipos que cada personagem representa. Enquanto Blanche pertence ao
universo das grandes e decadentes plantações sulistas e atua como um veículo no qual
o passado norte-americano de século XIX é revivido, resistindo assim ao seu fatídico e
inevitável desaparecimento. Stanley, por sua vez, encapsula a imagem da nova
América, do imigrante e do homem da cidade. No espaço da narrativa, é ele aquele que,
dentro do seu grupo, encontra-se dotado das qualidades ou habilidades necessárias
para vencer no mundo pós-industrializado, no comércio, em um universo reconfigurado
pela máquina, pelos carros e locomotivas. Nesse contexto, ele assevera sua
masculinidade e sua falta de refinamento; e, onde não pode dominar sexualmente, ele

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recorre à violência. Certamente, sua figura representa muito mais a face aceita do típico
macho da selva urbana retratado pelo cinema de Hollywood nos filmes de gangster nas
décadas de 1930, a exemplo de Scarface.
Outro fator significativo a se considerar em relação à questão da construção e
representação identitária no cinema desse período concerne o envolvimento dos
Estados Unidos nas duas guerras mundiais, uma vez que tal conjuntura requeria dos
governos uma revitalização dos valores constitutivos do ideal simbólico da sociedade
norte-americana. O crítico Kolin (1993, p. 15) lembra que entre as décadas de 1920-40,
muitas peças tematizavam aspectos do passado nacional, servindo de alavanca
emocional contra aquele período de depressão e do fracasso do sonho americano.
Frequentemente nos deparamos com personagens agarrando-se tenazmente aos seus
sonhos — Blanche e Scarlet O’Hara são típicos exemplos desta perda. Seus sonhos
nunca são concretizados no plano da realidade, exceto pelas fantasias dos romances
lidos ou das operetas assistidas, posto que a propulsão do materialismo norte-
americano destruiu todas as expectativas e sonhos, deixando o homem abandonado em
um mundo sem alma, semelhante àquele soberbamente retratado por T. S. Eliot em
Waste land, obra seminal do modernismo inglês.
Como já fora mencionado, Um bonde chamado desejo recria uma atmosfera de
conflitos entre os valores tradicionais e uma nova e dinâmica ordem social: um mundo
que fora outrora assentado por elementos como a elegância, a beleza e o floreio do
universo burguês do século XIX e que gradualmente desaparece diante da truculenta
agressividade materialista da sociedade industrial moderna. Na estrutura narrativa da
peça, esse confronto entre duas conjunturas histórico-sociais distintas concentra-se em
uma arena de batalha travada pelos personagens Blanche e Stanley. O verniz que
reveste Blanche é evidentemente o da decadência do passado aristocrata; seu único
meio de sobrevivência em mundo moderno e dinâmico é agarrando-se a um outro ser e
sugando-lhe sua energia física, emocional, ou mesmo material, como um parasito
decorativo. Stanley, por sua vez, é constituído de uma energia viril e agressiva,
características outrora desprezadas e sublimadas pelo pseudocavalheirismo cortês
típico do universo de Belle Reve. Evidentemente, a dramatização desse confronto
ocorre em diversas esferas simbólicas, mas é, sobretudo, em termos sexuais que o
passado aristocrata associa-se à imagem da fragilidade feminina confrontando-se com a
modernidade representada pela masculinidade ao mesmo tempo carismática e brutal.

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Destarte, o turbulento confronto entre dois mundos díspares, representado pelas duas
personagens, vaticina a vitória da modernidade sobre a tradição aristocrática na forma
simbólica em que Blanche sucumbe à força de Stanley no final da peça.
Uma leitura cerrada do texto de Williams evidencia que muitos dos traços
vívidos e marcantes das personagens, em particular sua linguagem simbólica, foram
extensivamente parodiados a ponto de terem ser tornado estereótipos típicos da cultura
sulista dos Estados Unidos. É, no entanto, na transposição da peça para o cinema
(1951) que o esforço em retratar e reafirmar tais estereótipos toma uma dimensão ainda
mais pujante, em especial no que diz respeito à atuação de Marlon Brando, fundamental
para estabelecer Stanley como uma emblemática figura do macho. O ator faz do
personagem um veículo o qual conjura selvageria e sedução, dominando com sua
personalidade singular tanto as personagens da história quanto os espectadores de
teatro e cinema que, segundo a crítica, eram literalmente arrebatados pela força de sua
atuação (cf. ESPECTOR, 1989, p. 548). Em contraposição, a atuação de Vivien Leigh
confere a Blanche uma aura fundamentalmente etérea e mágica contrastante com
brutalidade da força de Stanley. Contudo, embora na superfície Blanche remonte a
longa tradição de personagens românticas, ao longo da narrativa, nos deparamos com
sua metamorfose, na medida em que sua personalidade desvela uma agressividade,
ousadia e sensualidade, típicas do imaginário cinematográfico dos anos de 1950, a
exemplo das inúmeras personagens sensuais e emancipadas representadas por
Elizabeth Taylor ao durante as décadas de 1950-60.
O resultado dessa combinação engendra uma personagem feminina que
provoca um desequilíbrio na estrutura social moderna, dominada agora por um novo
tipo de paradigma masculino acima descrito. Ao longo da diegese, testemunhamos uma
sucessão de cenas marcadas por uma acirrada disputa entre os protagonistas pelo
controle do espaço. A disparidade e o consequente embate entre ambos são
sinalizados já na primeira cena na qual Blanche entra elegantemente vestida com “uma
valise branca, corpo frágil, exibindo um colar e brincos de pérolas, calcando luvas
brancas e um chapéu que, levemente, esconde seu rosto” (WILLIAMS, 1984, p. 15).
Seja através de sua indumentária e adereços ou em seu delicado modo de ser portar,
Blanche demonstra um imenso descompasso com novo lugar e situação, não sabendo
como agir. Indubitavelmente ela percebe imediatamente que não se encontra mais em
seu território. É somente com a chegada de sua irmã Stella, visivelmente mais adaptada

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àquele meio, que Blanche sente-se um pouco mais confortável, pois encontra na irmã
um elo que conecta esses dois mundos diametralmente opostos dos quais,
testemunharemos no desenvolvimento da história, ela e Stanley são as figuras
representativas.
Desse modo, o contra-ataque de Blanche à hostilidade do ambiente realista
que a tudo devora, tornando a adaptação ao meio a única e exclusiva via de
sobrevivência é estabelecido logo na primeira cena. Blanche, por sua vez, afirma seu
poder através de símbolos aristocráticos como a força do nome e da tradição familiar
sobre sua irmã Stella na tentativa de restabelecer uma ordem social aristocrática e
romântica, recobrando assim um status há tempos perdido. Várias são as passagens
ilustrativas acerca desse embate: Blanche criticando a aparência de Stella; sua
desaprovação ao novo estilo de vida da irmã em Nova Orleans junto com o marido
Stanley, visivelmente um homem de uma classe social inferior à delas; Blanche
despreza Stanley por considerá-lo um homem de uma estirpe diferente daquela a qual
ela e sua irmã cresceram sendo cortejadas. A rejeição e desprezo da protagonista, além
de seu esforço para impor-se naquele ambiente, podem ser interpretados como um
evidente enfrentamento dos valores tradicionais diante da nova América que se
sobrepõe a um passado que resiste ao desaparecimento.
Stanley, por sua vez, também afirma seu poder sobre Stella. O ambiente hostil
e sem refinamento reitera seu reinado com seu jogo de poker, suas roupas sujas e
suadas, que prevalece, noite após noite, no pequeno e decadente apartamento onde a
cena transcorre. Ele tem plena noção de seu poder e Williams o descreve como a
essência do domínio, pontuando a trajetória de sua história como um macho:

Puro rejubilo animalesco em sua plenitude e em seus movimentos e


atitudes. Desde os primórdios da humanidade, o centro de sua vida
tem sido o prazer com as mulheres, a pulsão, a troca de fluidos, não
apenas de uma fraca indulgência, dependente, mas pautadas no poder
e no orgulho de ser um galo de penas reluzentes no meio de um bando
de galinhas. (WILLIAMS, 1984, p. 57)

Em certo momento nesta mesma cena, Stanley refere-se literalmente a


Blanche e Stella como galinhas.
Há, enfim, uma infinidade de cenas e passagens em que podemos
testemunhar o exercício de poder entre Stanley e Blanche. Entretanto, o que de fato nos
interessa nessa discussão reside no fato de que o antagonismo entre essas duas

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personagens engendra uma fonte de sustentação no embate simbólico das instâncias
que cada um representa. Ou seja, no confronto que ocorre justamente pela
assertividade reiterada por cada personagem, cena após cena, confirmam as
características constitutivas de estereótipos da estética romântica (Blanche) e realista
(Stanley). Nessa batalha cujo final pode ser preconizado já nas primeiras cenas da
peça, é Blanche que joga em desvantagem, na medida em que percebemos seu
evidente esforço em um papel duplo: um predominantemente feminino, já descrito, e
outro marcado por traços masculinos. Ademais, no duelo com Stanley, ele descobre,
progressivamente, a faceta masculina que Blanche tanto se esforça em esconder; com
a morte de todos os familiares, restou a ela o duro fardo de lidar com todas as questões
legais. Na cena em questão, Blanche desabafa “o mundo do cavalheirismo e da
feminilidade ruiu, destruído pelas fornicações de proporções épicas dos imprudentes
bisavós, avós e sobrinhos e irmão” (WILLIAMS, 1984, p. 32). Assim, ela é forçada a
encarar sozinha todas as consequências e imprudências da família, em especial as
questões atinentes à ruína financeira. Stanley, por sua vez, penetra progressivamente
no mais recôndito dos segredos de Blanche, desencadeando seu processo de
destruição que culminará na cena final do estupro.
Sobre essa passagem fundamental na diegese da peça, o crítico Normand
Berlin (1997, p. 98) observa que a essência do estupro na peça de Williams traduz o
domínio e conquista do poder disputado pelos protagonistas e não a luxuria. Visto em
uma sequência de embates entre as duas personagens, estupro de Blanche
caracteriza-se na culminância do domínio e da eventual vitória de Stanley sobre ela. Ou
ainda, na simbólica vitória da modernidade e do presente sobre a tradição e a nostalgia
do passado. Por fim, a simbologia do irreconciliável confronto entre passado e presente,
tradição e modernidade encontra na figura de Stella uma via de reconciliação entre
ambos. É através dela que a tradição do passado se molda a uma nova configuração
presente a fim de garantir a sobrevivência. Mais precisamente, Williams encontra no
filho que ela e Stanley geram um ponto nodal para reconciliar a tensão antagônica que
permeia toda a história. Desde modo, a criança preconiza o novo modelo de americano
no contexto do pós-guerra: uma figura de identidade não mais impenetrável e sólida
com fora os personagens dos romancistas do século XIX, como Cooper e Hawthorne,
mas de um sujeito constituído a partir da amálgama entre os elementos do passado

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reelaborado pelo presente e que marcará profundamente a estética pós-moderna no
século XX.

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