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PARA UMA NOVA CIDADANIA:

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA CIÊNCIA POLÍTICA,


TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

Clovis Gorczevski
Edison Botelho
Mônia Clarissa Hennig Leal
BREVE INTRODUÇÃO
Os autores
........................................................................................................................................... pág.

1. O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO


Clovis Gorczevski

1.1 As origens ................................................................................................................... pág.


1.2 O feudalismo .. ......................................................................................................... pág.
1.3 O Estado moderno .................................................................................................... pág.
1.3.1 O absolutismo.................................................................................................. pág.
1.3.2 As idéias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau .......................................... pág.
1.3.3 O Estado liberal .............................................................................................. pág.
1.3.4 O Estado social .............................................. ................................................ pág.
1.3.5 O Estado neoliberal ........................................................................................ pág.
1.4 A cidadania ................................................................................................................. pág.

2. ASPECTOS ESTRUTURAIS DO ESTADO


Edson Botelho

2.1 Elementos do Estado................................................................................................... pág.


2.1.1 Povo ................................................................................................................... pág.
2.1.2 Território ........................................................................................................... pág.
2.1.3 Soberania ........................................................................................................... pág.
2.2 Formas de governo ..................................................................................................... pág.
2.2.1 Monarquia X República .................................................................................... pág.
2.2.2 Democracia X Autocracia ................................................................................. pág.
2.3 Sistemas de Governo ................................................................................................. pág.
2.3.1 Parlamentarismo ................................................................................................ pág.
2.3.1.1 Desenvolvimento histórico .................................................................... pág.
2.3.1.2 Estrutura de poder e governo ........................................................... pág.
2.3.2 Presidencialismo................................................................................................. pág.
2.3.3 Governo de Assembléia ..................................................................................... pág.
2.4 Formas de Estado ....................................................................................................... pág.
2.4.1 Estado Unitário ................................................................................................. pág.
2.4.2 Estado Composto .............................................................................................. pág.
2.4.2.1 União Pessoal, Real e Incorporada ....................................................... pág.
2.4.3 Estado Federal .................................................................................................. pág.
2.4.3.1 Origem, conceito e características ........................................................ pág.
2.4.3.2 Processos de formação de um Estado Federal ...................................... pág.
2.4.4 Confederação de Estados .................................................................................. pág.
2.4.5 União Européia e Federação .............................................................................. pág.
2.5 Separação de Poderes ................................................................................................. pág.
2.5.1. Desenvolvimento histórico .............................................................................. pág.
2.5.2 O principio da separação dos poderes.............................................................. pág.
2.5.3 Separação de Poderes, forma e sistema de governo........................................ pág.

3. A CRISE DO ESTADO MODERNO


Clovis Gorczevski

3.1 A globalização .............................................................................…........................... pág.


3.1.1 A crise econômica ............................................................................................ pág.
3.1.2 As resistências ................................................................................................. pág.
3.1.3 O fim do Estado-nação? .................................................................................. pág.
3.1.4 As ameaças ao sistema..................................................................................... pág.
3.1.5 A terceira via ................................................................................................. pág.

4. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
Mônia Clarissa Hennig Leal

4.1 Conceito e classificação ............................................................................................. pág.


4.1.1 A constituição ......... ......................................................................................... pág.
4.1.1.1 Conceito material ................................................................................ pág.
4.1.1.2 Conceito formal ................................................................................... pág.
4.1.2 Constituições rígidas x constituições flexíveis ................................................. pág.
4.1.3 Constituições costumeiras x constituições escritas .......................................... pág.
4.1.4 Constituições codificadas x constituições legais .............................................. pág.
4.1.5 Constituições outorgadas x pactuadas x populares........................................... pág.
4.1.6 Constituições concisas x constituições prolixas .............................................. pág.
4.2 Evolução das constituições: do Estado liberal ao Estado democrático de direito..... pág.
4.2.1 Considerações gerais ........................................................................................ pág.
4.3 Evolução histórica do constitucionalismo no Brasil .................................................. pág.
4.3.1 A constituição imperial de 1824 ....................................................................... pág.
4.3.2 A constituição republicana de 1891 ................................................................. pág.
4.3.3 A constituição de 1934 ..................................................................................... pág.
4.3.4 A constituição de 1937 ..................................................................................... pág.
4.3.5 A constituição de 1946 ............................. ....................................................... pág.
4.3.6 A constituição de 1967/69 ................................................................................ pág.
4.3.7 A constituição de 1988 ..................................................................................... pág.
4.4 Poder constituinte ....................................................................................................... pág.
4.4.1 Conceito de poder constituinte ......................................................................... pág.
4.4.2 O pensamento de Sieyés ................................................................................... pág.
4.4.3 A titularidade do poder constituinte ................................................................. pág.
4.4.4 Poder constituinte originário e derivado .......................................................... pág.
4.5 Espécies de normas constitucionais: princípios e regras ............................................ pág.
4.5.1 Espécies de normas constitucionais ................................................................. pág.
4.5.2 Fases de juridicidade dos princípios ................................................................. pág.
4.5.3 Regras x princípios ........................................................................................... pág.
4.6 Classificação das normas constitucionais ................................................................... pág.
4.6.1 Classificação das normas constitucionais no constitucionalismo liberal e no
constitucionalismo social ........................................................................................ pág.
4.6.2 constitucionalismo contemporâneo–a classificação de José Afonso da Silva pág
4.6.3 Normas constitucionais de eficácia plena ...................................................... pág.
..4.6.4 Normas constitucionais de eficácia contida ................................................... pág.
4.6.4.1 Eficácia contida mediante lei ............................................................... pág.
4.6.4.2 Eficácia contida mediante outras normas constitucionais ..................... pág.
4.6.4.3 Eficácia contida mediante conceitos éticos jurídicos ........................... pág.
4.6.5 Normas constitucionais de eficácia limitada ................................................... pág.
4.6.5.1 Normas constitucionais de eficácia limitada definidoras de princípio
institutivo ou organizativo ........................................................................... pág.
4.6.5.2 Normas constitucionais de eficácia limitada definidoras de princípio
programático................................................................................................. pág.
4.6.6 Outras classificações associadas ao tipo .......................................................... pág.
Breve Introdução

Desde os mais remotos tempos a questão do poder, do direito, do


indivíduo e da sociedade civil organizada tem sido objeto de profundas e constantes
reflexões. Estabelecer limites, buscar sentidos, fundamentações, justificações e,
principalmente esclarecer objetivos, tem ocupado o pensamento de filósofos ocidentais e
orientais, de Platão a Confúcio, de Cícero a Nozick, passando por Maquiavel, São Tomás
de Aquino, os Iluministas e tantos outros.

Pensadores modernos dão continuidade a esta incessante busca e,


malgrado os horrores produzidos, o séc. XX foi provavelmente o mais frutífero no avanço
de definições, no estabelecimento de limites ao poder, no questionamento da ação do
Estado e na valorização e proteção ao indivíduo. É neste século que a sociedade finalmente
estabelece como postulados primários de toda ordem moral e jurídico-positiva a questão
dos direitos humanos, da cidadania, da democracia e da paz.

Herdeiros que somos, de tão nobres valores, temos o dever de conhecer,


divulgar e ampliar ainda mais estes questionamentos, pois esta é uma busca sem fim, a
história da humanidade não está restrita unicamente às guerras e as lutas travadas, mas
também aos questionamentos quanto a própria existência, o poder e os limites de cada
indivíduo e a organização de sua sociedade. Novos desafios surgirão e, para tanto, devemos
estar preparados.

Este livro, não tem como objetivo trazer novas idéias ou levantar novas
teses e teorias. Pretende ser uma ferramenta de trabalho, servir como um facilitador para a
compreensão do fenômeno estatal e da sociedade política. Para tanto, procuramos de forma
resumida, clara e objetiva apresentar uma síntese do surgimento e da evolução do Estado,
até sua concepção nos dias atuais, sua estrutura interna e sua situação no mundo
globalizado. É nosso desejo facilitar e, principalmente despertar em nossos alunos o
interesse pelo tema, portanto, embora procurássemos seguir o conteúdo programático das
disciplinas de Ciência Política, Teoria do Estado e Teoria da Constituição, não se esgotam
aqui os questionamentos.

Nosso país é celeiro de grandes mestres onde também buscamos nossas


inspirações, Antonio Carlos Wolkmer, Carlos Ari Sundlfeld, Celso Fernandes Campilongo,
Dalmo de Abreu Dallari, Darcy Azambuja, Ivo Dantas, José Afonso da Silva, José Eduardo
Faria, José Luis Quadros de Magalhães, Lênio Luis Streck, Luis Alberto Warat, Paulo
Márcio Cruz, Paulo Paes de Andrade Bonavides, Ricardo Marcelo Fonseca, Rogério Gesta
Leal, Sahid Maluf, são leituras que devem complementar este trabalho.

Os autores.
1 O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO

1.1 As origens

Tem sido particularmente frutífero o questionamento teórico e filosófico a


cerca do surgimento da sociedade política: o Estado. No decorrer do tempo várias teorias
foram apresentadas, cada qual com seus méritos, com sua fundamentação e argumentos.
Não é nosso objetivo aprofundar o estudo destas teorias, mas não podemos deixar de
conhecer, ainda que de forma superficial os principais pensamentos a cerca da matéria.
Iniciamos, evidentemente, pela mais antiga teoria, que vê no Estado o desenvolvimento e a
ampliação da família. Esta teoria, conhecida como a Teoria da Origem Familiar do
Estado, hoje adotada por poucos autores, sustenta que a primeira organização social
humana é a família, grupamento cujos componentes são aparentados pelo sangue e cuja
autoridade máxima é confiada a um chefe varão. Aqui estaria a origem do Estado: a
derivação de um núcleo familiar; o Estado seria assim a ampliação da família patriarcal.
Grécia e Roma tiveram esta origem, segundo a tradição; o Estado de Israel, exemplo típico,
se originou da família de Jacó, segundo a Bíblia. Uma variante desta teoria refere-se a
origem matriarcal. Para seus defensores, a primeira manifestação de vida coletiva do
homem teria sido a horda. Nesta, o reconhecimento de vínculos de parentesco constituiria
uma etapa muito posterior. O vínculo reconhecido seria a filiação materna. Desta forma, os
filhos teriam a mesma condição social e religiosa da mãe, e a mulher gozaria de relativa
hegemonia. A horda seria portando conduzida pela mulher, pela matriarca. Mas, como bem
lembra Azambuja1, que a sociedade deriva da família não há quaisquer dúvidas, mas não se
pode, contudo, aplicar o mesmo raciocínio ao Estado. É um equívoco identificar a origem
da humanidade com a origem do Estado. É até possível que em alguma região do mundo o
desenvolvimento de uma família tenha dado origem a um determinado Estado, este
processo, entretanto, se ocorreu, não pode ser generalizado.
A Teoria da Origem Contratual do Estado, é uma idéia que já esta
presente na obras de Aristóteles e Epicuro, passa pelos grandes doutores da escolástica,
especialmente São Tomás de Aquino mas ganha notoriedade e destaque com o iluminismo.
O século XVII foi um período de grandes questionamentos. Nesta época, para justificar o
Estado, a sociedade, o poder, a política, partia-se sempre do estado de natureza – situação
em que vivia o homem antes de constituir a sociedade civil, sem nenhuma lei, sem
proteção, mas sem obrigação a qualquer poder civil2. A descrição do homem no estado da
natureza se divide claramente entre otimistas e pessimistas ou positivistas e negativistas.
Para os primeiros, um estado de paz, liberdade, bem-estar, para os segundos um estado de
guerra, violência, opressão e medo. Thomas Hobbes, em sua obra O Leviatã, (1651)
defende radicalmente a segunda corrente. Para ele, no estado da natureza, não existindo
leis, nem limites, a situação era de absoluto caos e desordem. A única salvação é a criação
de um poder superior. Assim, por medo de seus semelhantes e da insegurança perpétua, o
homem cria o Estado. John Locke em seu trabalho Tratado sobre o Governo Civil, I, II -
(1689), também apresenta suas considerações sobre a formação do Estado. Para ele o
estado de natureza não é essencialmente mau. Ocorre que, no estado de natureza, o homem
era proprietário legítimo e inconteste de sua vida e de sua liberdade, mas carecia de
segurança para preservar seus bens e direitos. Então, para garantir estes direitos os homens
reúnem-se em sociedade e convencionam a criação do Estado. Assim, o Estado é criado,
por força da razão, através de um ‘contrato’ entre os homens.

A Teoria da Origem Violenta do Estado considera o Estado nascido da


violência e da força, sustenta que o Estado é o resultado da dominação dos mais fortes
sobre os mais fracos. Para Ward: “o Estado nasce com a conquista de um grupo pelo outro
e com o progresso que constitui a escravidão e não mais a destruição do vencido pelo
vencedor. Organiza-se assim a ordem política, fruto dos interesses econômicos do vencedor
e da resignação do vencido”.3 Na mesma linha de pensamento está Oppenheimer, para
quem o Estado, pela origem e pela essência, não passa daquela “instituição social, que um

1
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre-Rio de Janeiro: Globo. 1991. p. 98.
2
Ensina Bobbio que o conceito de estado de natureza não era desconhecido, mas foi Hobbes que fez dele um
elemento essencial do sistema, adotando-o como ponto de partida; imitado depois por Pufendorf, Locke,
Rousseau e tantos outros. BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2ª ed. Brasília: UnB. 1998.
3
WARD, L., Sociologie Pure, Paris: Giard Brière. 1906, p. 58, Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do
Estado. Op. Cit. p 101.
grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio do
primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões internas e agressões externas”4.
Os críticos desta teoria concordam que a guerra e a dominação dos povos é um modo de
formação de novos Estados; não é, contudo, a origem do Estado. Todos os tratados de
sociologia nos ensinam que nos primeiros estágios da evolução o vencedor sempre matava
o vencido; era, na verdade, um rito religioso dos povos mais atrasados sacrificar aos
guerreiros derrotados. Já em uma fase posterior, por interesses econômicos, que somente as
sociedades relativamente desenvolvidas compreendem, os vencidos tem sua vida poupada
em troca de seu trabalho para os vencedores. A exploração econômica dos grupos vencidos
é um fato que somente se verifica em fases posteriores à evolução social.

Pode-se falar ainda, mesmo que com extrema simplicidade, da Teoria da


Formação Natural do Estado. Para seus adeptos, em toda sociedade primitiva, onde a
autoridade de um chefe ou de um conselho de anciões se consolidou e começou a dirigi-la
permanentemente, ali se formou originariamente um Estado. Evidentemente, somente
passou a existir um Estado quando a população se fixou em um determinado território. Para
Azambuja, “quando as sociedades primitivas, compostas já de inúmeras famílias, possuindo
uma autoridade própria que as dirigia, se fixaram num território determinado, passaram a
constituir um Estado. Este nasce, portanto, com o estabelecimento de relações permanentes
e orgânicas entre os três elementos: a população, a autoridade ou poder político e o
território”5. Entretanto, muitas sociedades até hoje são nômades e, portanto, não formaram
Estado; outras, constituíram sociedades políticas que duraram séculos e desapareceram.
Não houve, nem poderia haver uniformidade absoluta nos processos de formação do poder
e do Estado. E, como ensina o professor Azambuja, somente um fato é permanente e dele
resultam os demais: o homem sempre viveu em sociedade. A sociedade somente sobrevive
pela organização que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a
sociedade que alcança um determinado grau de evolução passa a constituir um Estado. Para
viver fora da sociedade, o homem necessitaria estar abaixo dos homens e acima dos deuses,
disse Aristóteles, e por estar ele vivendo em sociedade, natural e necessariamente, cria a
autoridade e o Estado.

4
OPPENHEIMER, Franz. Der Staat, 4a ed, Stuttgart, 1954, p 5, Apud BONAVIDES, Paulo Paes de Andrade.
Ciência Política, 10a ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 64.
Autores modernos têm defendido a Teoria da Formação Histórica do
Estado, defendendo a idéia de que são três os modos pelos quais historicamente, se formam
os Estados: Modo Originário, Modo Secundário e Modos Derivados. Para Maluf6,
“extinguiram-se os agrupamentos primitivos oriundos de uma ordem natural primitiva e
sobre seus escombros ergueram-se os Estados do modo atual. Na sua maioria, representam
estes o renascimento ou a reformação dos velhos agrupamentos existentes, extintos, mas
conservando muitas vezes o nome e as tradições, porém, ostentando nova configuração
política”. Para estes pensadores, o Modo Originário de surgimento de um Estado, se
confunde com sua própria formação social, mas se distingue em aspectos essenciais. Dar-
se-ia quando, sobre um território que não pertencia a nenhum Estado, uma população se
organizou politicamente, por impulso espontâneo de suas forças sociais e psicológicas.
Atenas e Roma seriam exemplos típicos desta formação originaria. Evidentemente, no
mundo atual é praticamente impossível este processo de formação. O surgimento pelo
Modo Secundário pode ocorrer de duas formas: quando um Estado de divide, o que permite
a formação de outros Estados (servem como exemplo os inúmeros Estados surgidos com a
dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS), ou quando dois ou
mais Estados se unem para formar um novo Estado (como Zanzibar e Tanganica, que se
uniram em 1964 formando o Estado da Tanzânia). Como Modos Derivados, temos o
exemplo dos Estados Americanos que se formaram pela colonização da Espanha, Inglaterra
e Portugal, dos quais se independizaram7.

Existe ainda a Teoria da Formação Jurídica do Estado. Para os


positivistas jurídicos, são inúteis aos juristas as indagações sobre as causas e circunstâncias
que determinaram o nascimento do Estado. Para eles, o Estado nasce no exato momento em
que é provido de uma constituição. Como diz Carré de Malberg8, “De tudo o que precede
ressalta finalmente que o Estado deve antes de tudo sua existência ao fato de possuir uma
Constituição. Eis por que é permitido dizer, em última análise, que o nascimento de um

5
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 107.
6
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 10ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias. 1989.
7
Muitos autores, especialmente os internacionalistas, apresentam grande sub-divisão quanto aos modos de
surgimento histórico dos Estados. O modo secundário, que seria pela União ou Divisão, está sub-dividido em
União Real, União Pessoal, Federação ou Confederação. A Divisão de Estados se sub-divide em Divisão
Nacional ou Sucessoral, enquanto que os modos derivados se sub-dividem em Colonização, Concessão de
Direitos de Soberania ou Atos de Governo.
Estado coincide com o momento preciso em que ele é provido de uma Constituição”. Para
Azambuja,9 do ponto de vista exclusivamente jurídico, ou melhor, formalístico, a teoria é
aceitável, pois têm como objeto determinar com precisão o momento legal em que o Estado
começa a existir como pessoa de direito. Nesta linha, para o Direito Internacional Público o
nascimento jurídico de um Estado se dá no momento em que os demais Estados o
reconhecem como pessoa de direito internacional.

Como se observa são inúmeras as teorias que buscam fundamentar a


origem das primeiras sociedades politicamente organizadas, mas a formação do Estado
pode estar vinculada a várias, e não necessariamente a apenas uma. Miranda simplificando
todo questionamento lembra que no plano da antropologia histórica, revelam-se como
processos mais importantes a conquista, a migração, a aglutinação por laços de sangue ou
por laços econômicos ou a evolução social pura e simples para uma organização mais
complexa e organizada. No plano do direito diz, basta observar-se o Direito Internacional e
o Direito Constitucional comparado dos últimos duzentos anos, e será possível identificar
processos como a elevação a Estado de comunidade dependente, a secessão, ou o
desmembramento do Estado pré-existente10.

Ainda, é importante observar-se que tais questionamentos refletem o


pensamento ocidental, pois que os povos orientais não questionaram este tema. Não tinham,
portanto, uma concepção definida de Estado, seus filósofos não se preocuparam com este
aspecto da vida social.

Antes de Maomé operar a unificação da península Arábica através do


Islamismo, a região era extremamente fragmentada e nela coexistiam diversos reinos e
povos autônomos com governos teocráticos. Podemos citar como exemplo de teocracia, o
Reino de Sabá - cujas origens remontam ao século VIII a.C., constituído pela etnia dos
Sabeus, em torno do seu Rei-Deus – O Reino Mineano, constituído também por volta do
século VIII pela etnia dos Mineanos – O reino de Qataban estabelecido por volta do ano
600 a.C. – o Reino de Hadramaut – criado em torno de 450 a.C. e tantos outros, como o

8
Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 111.
9
Idem. p. 112.
10
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2002. p. 21.
Reino de Petra, Reino dos Gassânidas, Reino de Hira, etc. Todos tendo como governantes
um legítimo representante dos deuses, muitas vezes ele próprio um deus.

Na Pérsia a situação era praticamente a mesma. O governo monárquico


foi estabelecido pelo próprio Ormuz, os reis são seus descendentes e possuem a missão de
praticar o bem em relação aos humildes e deserdados.

Na Índia, o Bramanismo hindu, embora desenvolvesse amplamente a


idéia de pluralidade de existências, partiu da idéia de desigualdade entre os homens e os
dividiu em castas – idéia referendada pelo próprio Brahman. A casta privilegiada é a dos
Brâmanes, encarnação da justiça e designados por Deus para representá-la. Tudo lhes
pertence, são senhores absolutos, mas para evitar rebeliões se colocam atrás de um rei,
designado por Deus e ele mesmo um deus. Assim se trata de um Estado teocrático. O poder
é de Deus e exercido por um deus. Uma rebelião não seria, portanto, contra o Estado e sim
contra a própria divindade.

Na China também não se encontram teorias específicas de política, mas


sua filosofia possui inúmeros preceitos sobre a arte de governar e os deveres dos
governantes. Kong-Fu-Tseu, o Confúcio, e Meng-Tseu, o Mencio, consideravam a política
como uma parte da moral. Confúcio considerava o homem, por natureza, bom e possuidor
do livre arbítrio. Segundo seus preceitos, a parte superior da sociedade (os governantes)
deveriam possuir o amor paterno e a parte de baixo, a obediência de um filho. Para tanto,
faz reiteradas recomendações ao príncipe: ele é o Senhor, não apenas quem reina. O
príncipe deve ser um valor moral. A sua nobreza de alma é o que melhor o qualifica para as
dignas e elevadas funções que exerce. Assegurada sua absoluta retidão pode-se até
dispensar as leis, pois os seus desejos serão prontamente atendidos pelos súditos. Não
precisa, portanto, intimidar ou atemorizar ninguém. Todos sentirão sua inequívoca força
moral, prostrando-se frente a seu caráter superior. Como se observa, Confúcio não se
preocupou com a origem do Estado, mas estabeleceu limites morais aos governantes que,
para ele, devem acima de tudo ser a força moral que constrange o potencial negativo e anti-
social do delinqüente, do malvado e do fraudador, cerceando-os e obrigando-os a seguirem
as regram de bom convívio estabelecidas pela sociedade.
A civilização egípcia distinguiu-se das demais civilizações dos tempos
antigos por diversas características - como ser um Estado forte, centralizado e muito
organizado - mas também era uma teocracia: o poder é de origem divina e o exerce um
deus, conhecido como Faraó, proprietário nominal de todas as terras. As comunidades eram
comandadas por monarcas com autonomia e independência que cooperavam entre si. Estes
monarcas, embora autônomos, tinham autoridade limitada, pois o verdadeiro poder estava
centralizado e era exercido por um deus: o Faraó. Havia outros deuses, cada um governava
invisivelmente certa atividade ou assunto. O Faraó era, pois, um deus entre os deuses, cuja
vontade a classe sacerdotal era a única que sabia interpretar.

Também uma teocracia era o Estado Hebreu. O povo de Israel, de acordo


com a tradição religiosa judaica é descendente de Abraão. A família assume aspectos tribais
com os doze filhos de Jacó e vem a se tornar um povo após a libertação destes do Egito,
pelas mãos de Moisés. Mas é com a conquista de Canaã que os hebreus deixam de ser um
povo nômade para se tornar um povo com uma terra e com Estado. Esta terra, que
confunde-se com o Estado, se tornaria o elemento de união do povo já que foi dada pelo
próprio Deus. Assim, o governo do Estado Hebreu era limitado por um lado, pelos
preceitos da lei divina, e por outro, pela fiscalização dos chefes das doze tribos, que não
permitiam que o rei se afastasse dos livros sagrados.

É com os gregos que efetivamente inicia a ciência política, ainda que


confundida com a moral. Contudo, a idéia grega de Estado, bem como seu próprio Estado,
devem ser analisados com cautela. E, quando nos referimos a sua democracia devemos
redobrar a cautela. Efetivamente existia na Grécia o reconhecimento do direito a participar
ativamente na vida da cidade e na tomada de decisões políticas. Este direito, entretanto,
estava restrito a um número muito reduzido de pessoas - somente os varões adultos, cujos
progenitores também houvessem participado. O sistema excluía os demais filhos, as
mulheres, os estrangeiros e os escravos, o que vale dizer: a maioria absoluta não tinha
direito a participação, pois se sabe que somente os escravos compunham mais da metade da
população. Devemos considerar ainda que os Estados gregos, por sua extensão territorial e
população, não passavam de um município: eram na verdade cidades. A tendência à tirania
era permanente e não se diferenciava a sociedade política da religiosa. Os gregos não
conheceram a verdadeira liberdade política, o Estado os absorvia integralmente.

Nos primeiros séculos o Estado Romano não se diferenciava do grego;


também havia uma certa participação. Em Roma usava-se a palavra cidadania para indicar a
situação política de uma pessoa e os direitos que esta pessoa tinha ou podia exercer. As
pessoas eram classificadas para efeito de cidadania: estrangeiros e escravos estavam
excluídos, enquanto os demais, ainda que cidadãos romanos, somente uma pequena parte
possuía o direito a participar das decisões políticas através do voto e a gozar de cargos
públicos11. Com sua expansão territorial pela conquista de novas terras e populações,
Roma se transforma em verdadeiro Estado. Contudo, a coragem dos romanos não foi
suficiente para obstruir o nepotismo de seus imperadores que passaram a personificar o
Estado. A decadência do Império Romano, devido às invasões bárbaras selou o fim do
Estado na Europa ocidental. Os bárbaros, em suas invasões demolidoras, enterraram todo o
passado Romano, reerguendo sobre os escombros uma nova ordem. Como ensina Maluf
“Se alguma coisa sobreviveu ou ressurgiu, da velha Roma, ostentando um caráter vigoroso
de eternidade, foi o direito romano, não sem antes passar pelo crivo dos glosadores
germânicos”.12 Assim, os primeiros séculos da era medieval não foram próprios para o
desenvolvimento político dos Estados. A fragmentação do Império Romano, a enorme
convulsão social e política dali resultante, não permitiam o desenvolvimento de teorias e
sistemas. A força domina e se impõe: a noção de Estado desaparece. As tradições romanas
pouco ou nada influenciaram.

1.2 O Feudalismo

11
Martin ensina que as instituições do Império Romano não faziam referencia a um modo de vida, e sim a
uma relação bilateral estabelecida entre o individuo e a sociedade. “La ciudadanía romana contenia el
presupuesto normativo básico de la condición civil moderna: reconocía la pertenencia del individuo a la
comunidad en virtud de una relación bilateral de Derecho entre el ciudadano y el Estado, excluyente en la
medida en que diferenciaba legal y politicamente al ciudadanos del no ciudadano, pero inclusiva en el
sentido de que convivía con el resto de identidades colectivas participadas por la comunidad civil, que no
debían ser necesariamente identidades universalistas”. (MARTÍN, Nuria Belloso. “Hacia una Ciudadanía
Renovada”In Los Nuevos Desafios de la Ciudadania. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Universidad de
Burgos. 2001. p. 4)
12
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p.123.
Os reis bárbaros - francos, hunos, godos, estrogodos, visigodos,
lombardos, vândalos, suevos, anglos e saxões - uma vez completada a dominação dos
vastos territórios que integravam a órbita de hegemonia do extinto império Romano,
passaram a distribuir cargos, vantagens e privilégios a seus chefes guerreiros, o que
resultou na fragmentação do poder. Como eram imensos os territórios e impossível a
manutenção de sua unidade sob um comando central único, criaram uma hierarquia
imperial de condes, viscondes, marqueses, barões e duques, que dominavam determinadas
zonas territoriais como concessionários do poder jurisdicional do Rei. Em compensação se
comprometiam a defender o território, dar ajuda militar, pagar tributos e manter o principio
de fidelidade ao Rei. O senhor feudal era o proprietário exclusivo das terras, e todos os
habitantes seus vassalos. Exercia as atribuições de chefe de Estado, decretava e arrecadava
tributos, administrava a justiça, expedia leis, promovia guerras. Era um monarca absoluto
em seus domínios13.

Assim, um sistema de poderes superpostos e uma autoridade dividida


dominou a ocidente (Europa) entre os séculos VIII e XIV, adotando várias formas. Segundo
Held,14 provavelmente seja legítimo dizer que, em geral se distinguiu por uma rede de
obrigações e vínculos vinculados a sistemas de governos fragmentados em várias pequenas
partes autônomas. O poder político era local e personalizado e configurava um mundo
social de pretensões e poderes superpostos. Alguns destes poderes e pretensões entravam
em conflito entre si; e nenhum governante ou Estado era soberano no sentido de deter a
supremacia absoluta sobre um território e uma população. O ponto de partida de todos os
feudos foi a crise interior e exterior que pôs fim ao Império Romano, outro traço comum a
todos foi a utilização de um direito romano vulgar, recolhido, adaptado, resumido e
positivado, constituindo-se na primeira herança normativa que receberam os medievos

13
Analisando a estrutura jurídica do feudo, Pérez-Prendes refere-se a ‘necessidade’. Para ele, a fim de atingir
a máxima estabilidade e segurança possível naquele tempo histórico, se unem naturalmente os vassalos,
configurando o contrato do feudo, mediante mútua obrigação de fidelidade, porque não são os vassalos
simples elementos, possuem o caráter de intensidade-estabilidade necessário para a relação que se
instrumenta: o nascimento de um contrato bilateral, que cria obrigações para ambas partes. O vassalo deve
tanta fidelidade e lealdade a seu senhor como este para com seu vassalo. ( PÉREZ-PRENDES, José Manoel.
Instituiciones Medievales. Madrid: Sintesis, 1997, p. 53-54).
14
HELD, David. La Democracia y el Orden Global. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós, 1997, p. 54.
ocidentais.15 O direito que os regulava se originava de diferentes fontes de produção
jurídica e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos – que em geral eram
originários e autônomos, como o dos feudos, das comunidades, das corporações. A
jurisdição pertencia ao senhor da terra e era exercida sobre todas as pessoas que ali viviam.
Não havia a noção de interesse público em punir os delitos, assim o direito acusatório
pertencia a pessoa lesionada, ou, em caso de morte, a seus descendentes. O sistema
processual era ‘acusatório’, dotado das seguintes características: necessidade de iniciativa
por parte da vítima, igualdade de direitos entre as partes e formalismo, que se destinava
unicamente a satisfazer o interesse individual do lesionado. Evidentemente estamos nos
referindo aos nobres, aos cavalheiros e aos homens livres; os membros das classes servis
estavam inteiramente submetidos a vontade de seus senhores e as medidas punitivas
exercidas.

Neste período a economia estava baseada na agricultura já que as


invasões e as guerras internas tornavam difícil o desenvolvimento do comércio. Como
conseqüência, a terra é enormemente valorizada, pois é de onde todos, ricos e pobres,
poderosos ou não, tiram seu sustento. Assim lembra Dallari16, toda a vida social passa a
depender da propriedade ou da posse da terra, o que fez desenvolver-se um sistema
administrativo e uma organização militar estreitamente ligados a situação patrimonial.
Todo o excedente estava sujeito a ser reivindicado pelo senhor feudal, que distribuía justiça
e garantia proteção, e cujo poder somente era limitado pela Igreja que, em todo o período
da Idade Media procurou impor uma autoridade espiritual sobre o poder senhorial,
transferindo a suprema autoridade e sabedoria a Deus, ao qual também o senhor feudal
deveria submeter-se. Neste sentido a igreja era a principal rival do feudalismo. Assim,
quando a cristandade ocidental foi desafiada, especialmente pelos conflitos que deram
origem ao surgimento dos Estados nacionais e a Reforma, tomou corpo a idéia de Estado
Moderno, e se criaram as condições necessárias para o desenvolvimento de uma nova
forma de identidade política – a identidade nacional.

15
O conceito de direito vulgar foi introduzido por Enrique Brunner em 1880 quando ao estudar a história da
documentação romana e germânica, aplicou ao direito uma analogia filológica, o latim vulgar falado nas
províncias, que apresentava já muitos dos germes que dariam lugar mais tarde as línguas românicas. (PÉREZ-
PRENDES, José Manoel. Instituiciones Medievales Op. Cit. p. 26-32).
16
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.
69.
Na verdade, as condições começaram a criar-se a partir do século XI, com
o aumento da produtividade econômica dos feudos e a expansão das vilas e cidades, que
determinam uma nova dinamização das atividades e da vida social, oportunizando o
crescimento do comércio e a organização dos ofícios em Corporações. O crescimento das
cidades produz o desenvolvimento de jurisdições municipais, com regras próprias e outras
formas de juízo. No período entre os anos 1000 e 1300, vão se formando vários elementos
essenciais ao Estado Moderno. Foi se fortalecendo também o poder dos Reis que
começaram a impor-se, inclusive na administração da justiça. Lembra Gonzaga17 que o
meio inicial para dominar as cortes senhoriais consistiu na criação de recursos das decisões
proferidas nos feudos; surge a apelação ao Rei, o que, desde logo, obrigou a adoção de
processos escritos. Também neste período se desenvolve o intercâmbio com o oriente,
especialmente a partir das cruzadas, o que dá início a uma nova classe social: a burguesia.

As entidades públicas, ensina Strayer18, cada uma com seu núcleo básico
de gentes e de terras, adquiriram legitimidade pelo fato de se manterem ao longo de muitas
gerações. Estabeleceram-se instituições permanentes para assuntos financeiros e jurídicos.
Surgiram grupos de administradores profissionais; nasce um organismo central de
coordenação, a chancelaria, com uma equipe de funcionários extremamente qualificados.
Estes administradores profissionais constituíam um número muito pequeno, mas eram
auxiliados por funcionários eventuais – fundamentalmente por religiosos, barões de menor
expressão, cavaleiros e ricos burgueses. Muitos estavam dispostos a trabalhar por um
período como administradores de terras, agentes financeiros, administradores locais,
registradores ou juízes, como forma de ganhar favores reais e aumentar seus rendimentos.
Mas ao lado destes trabalhadores eventuais, havia homens que consagravam a maior parte
de seu tempo à profissão de administrador público e seu número aumentou
consideravelmente à partir do século XIII.

Um período de esclarecimento toma conta do cotidiano das cidades, o que


faz surgir centros de reflexão e distribuição de conhecimento como as Universidades de
Bolonha – que no século XII ressuscitou o Direito Romano, ou seja, o direito imperial

17
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 25.
18
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969. p.
39-40.
consolidado no Corpus Juris Civilis, que havia caído no esquecimento, o que fez com que
os juristas compreendessem o quanto os costumes medievais eram rudimentares e
inconfiáveis - Salamanca, Paris, Coimbra e Oxford. Mas, sem dúvida, o Cisma na igreja
promovido por Urbano VI e Clemente VII (1378-1417), foi definitivo para o surgimento do
Estado Moderno. Com a eleição, em 1378, de Urbano VI, apoiado e reconhecido pelo
Imperador do Sacro Império e a eleição pelos franceses de Roberto de Genebra, que adotou
o nome de Clemente VII e estabeleceu sua sede em Avigon, com cada Papa nomeando seus
próprios cardeais, cada monarca se aliou a um Papa, visando essencialmente seus interesses
políticos. Isto minou as bases do poder clerical, dando oportunidade ao surgimento de um
novo poder, em especial com os acordos bilaterais firmados entre a Igreja e os Estados,
onde a primeira reconhecia a soberania dos últimos, com isso diz Leal, “se institui uma
sociedade de homens que já se movimentam com suas próprias pernas, independentemente
do auxílio de Deus”19.

Mas o período histórico era extremamente difícil. Lembra Strayer que os


europeus criaram o seu sistema de Estados num momento particularmente crítico. A grande
depressão econômica – a mais prolongada da história – tem início em 1280. A Europa tinha
atingido o limite de suas possibilidades em matéria de produção agrícola, de trocas
comerciais e de atividade industrial. Até que se descobrissem novas técnicas, novos
mercados e novas fontes de abastecimento, a estagnação era certa e a regressão inevitável.
O excesso de população exercia uma grande pressão sobre a terra; a fome e as pestes que
acabaram por reduzir um grande número de habitantes, em nada contribuíram para
melhorar a moral dos sobreviventes. A peste negra que irrompeu violentamente em meados
do século, voltou a atacar em várias ocasiões, fazendo desaparecer vários governos locais.
A insegurança física e econômica refletiu-se na instabilidade política. Nenhum governo
poderia ter evitado a depressão, a fome e as pestes, porque os conhecimentos e as técnica
necessárias ainda não existiam, mas poderiam evitar as longas e custosas guerras dos
séculos XIV e XV, que vieram a aumentar em muito os sofrimentos e a desmoralização da
população. Mas para Strayer20, estas guerras foram necessárias para completar o

19
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997, p. 47.
20
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969. p.
63-65.
desenvolvimento de um sistema de Estados soberanos. A soberania implica na
independência perante toda e qualquer potência estrangeira e na autoridade absoluta sobre
os homens que vivem dentro de determinado território. Neste período não se sabia bem
quem era independente e quem não era, pois não haviam limites claros e em muitas zonas
as autoridades se sobrepunham.

1.3 O Estado Moderno

Ao iniciarmos nosso estudo sobre o Estado Moderno, cabe a primeira


interrogante. Por que a denominação de Estado Moderno? Para diferenciar de um Estado
Antigo? A resposta é positiva. Não se pode negar a existência de Estados no mundo antigo.
Como afirma Strayer, a polis grega era, inegavelmente um Estado, assim como o Império
Han, na China e o Império Romano. Estes Estados dividiam-se, de um modo geral, em duas
categorias: os impérios grandes, mas dificilmente integrados e as unidades pequenas, mas
com um elevado grau de coesão, como as cidades-estados gregas. Entretanto, estes Estados
antigos, não foram influência para o moderno. Os homens que criaram os primeiros Estados
modernos europeus, nada sabiam do Extremo Oriente e, embora conhecessem alguma coisa
do Direito Romano e dos tratados aristotélicos, estavam muito longe, no tempo, da Grécia e
de Roma. Assim, tiveram que inventar seu próprio modelo e “o tipo de Estado que criaram
acabou por funcionar melhor do que a maioria dos antigos modelos”21.

A denominação Estado Moderno é também defendida por Gruppi22. Para


ele o Estado, como hoje conhecemos, dotado de um poder próprio e independente de
quaisquer outros poderes, efetivamente começa a nascer a partir do século XV e apresenta
algumas características que o diferem dos Estados antigos. A primeira refere-se à sua
soberania – um poder que não admite e não permite nenhuma outra autoridade. A segunda é
a distinção entre o Estado e a sociedade – o Estado se torna uma organização distinta da
sociedade. Uma terceira distinção é perfeitamente visível em relação ao Estado moderno e
aquele da Idade Média – o Estado medieval é propriedade do Senhor é, pois, um Estado

21
Idem. p. 16-17.
patrimonial; o Senhor é identificado com o território e tudo que o integra. No Estado
moderno, a identificação do Senhor é com a soberania, portanto com o próprio Estado.
Strayer23 apresenta ainda outra importante característica: os Estados europeus combinaram,
em certa medida, as virtudes dos impérios e das cidades-estado. Eram suficientemente
vastos e poderosos para terem excelentes possibilidades de sobrevivência, e, ao mesmo
tempo, não tão vastos a ponto de não manter a coesão. Assim conseguiram integrar, ou pelo
menos envolver no processo político, boa parte de seus habitantes e criar, nas comunidades
locais, um certo sentimento de identidade comum. Conseguiram mais de seus povos - quer
no que diz respeito à atividade política, quer no tocante à lealdade - do que os antigos
impérios, sem contudo, terem alcançado a participação total que caracterizava uma cidade
como Atenas.

Então, a partir do século XV ao XVIII surgem novos regimes políticos: as


monarquias absolutas, como na França, Espanha, Rússia e outros, e as monarquias
constitucionais, como na Inglaterra e Holanda24.

O Estado nasce, pois, como uma construção; é desse modo, um sujeito


artificial, centralizador, institucionalizado, que se fortalece cada vez mais, na medida em
que detém o monopólio da força e da burocracia. Se consolidou, como ensina Bobbio25,
mediante um duplo processo de unificação: 1) unificação de todas as fontes de produção
jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano. Dessa forma, são gradualmente
rechaçadas as fontes tradicionais do direito – aos costumes se atribuem efeitos jurídicos
somente quando os reconhecer a lei; a ciência do direito é cada vez mais considerada
unicamente como um complexo de opiniões que, mesmo valiosas, nunca são vinculativas; à
jurisdição se reconhece o poder meramente secundário e derivado de aplicar as normas

22
GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. Porto Alegre: L&PM Editores. 1980. Apud STRECK,
Lenio Luis e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora. 2003. p. 24-25.
23
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit. p. 18.
24
Se para alguns autores o Estado Moderno surge com o tratado de Westphalia, em 1648 pondo fim a Guerra
dos Trinta Anos e consagrando o princípio da igualdade entre os Estados, por outro lado, não são poucos os
que identificam em Frederico II de Suábia seu fundador, isto em razão de que ele ter implantado na Sicília,
em pleno século XIII, um Estado que já apresentava características plenamente modernas: governo
rigidamente centralizado, com burocracia complexa, superação da dispersão feudal-estamental e com o
monopólio do Estado na distribuição da justiça.
25
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 2ª ed. São Paulo: Mandariam.
2000. Op. Cit. p. 18-19.
jurídicas de origem legislativa; 2) unificação de todos os ordenamentos jurídicos superiores
e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja expressão máxima é a vontade
do príncipe. Para Bobbio, este processo de unificação se desenvolveu em duas direções: na
liberação operada pelas monarquias absolutas em relação aos poderes superiores e na
absorção dos ordenamentos jurídicos inferiores. O ordenamento jurídico aparecerá, então,
como produto desta nova realidade: o Estado. Será este novo poder, incontestável, quem
dirá o Direito e o positivará. Este deixa de ser algo “natural” e passa a ser produto da
racionalidade. Seu conteúdo deixará de ser inerente a natureza das coisas; passará a se
produzido pelo poder soberano e aplicado por seus representantes. O Estado, portanto, se
atribui e assume a obrigação de dizer o Direito e de dar a tutela jurisdicional. Passa, então, a
harmonizar os conflitos, as tensões e as contradições da sociedade, a estabelecer os
parâmetros para a ordem, o direito, a justiça, a segurança, a liberdade e a propriedade. Se
transforma pois, em uma poderosa organização que regra a vida social, impelido pela
racionalidade instrumental. Se constitui no arcabuz legal-institucional que mantém e
articula o monopólio da racionalidade. Como ensina Held26, no centro da idéia de Estado
Moderno se encontra uma ordem impessoal, legal ou constitucional, delimitando uma
estrutura comum de autoridade, que define a natureza, a forma do controle e a
administração de uma determinada comunidade.

1.3.1 O Absolutismo

O absolutismo marcou uma forma de Estado baseada na absorção das


unidades políticas menores, constituindo uma estrutura maior e mais forte, com capacidade
de governar sobre um território unificado, um sistema legal efetivo e vigente em todo
território e com a formação de um governo unitário, contínuo e efetivo, exercido por uma
única cabeça soberana. Neste período, todos os defeitos e virtudes do monarca absoluto se
confundiam com as qualidades do Estado. A legitimidade do soberano se baseava no direito
divino e ele estava acima do sistema, seu direito ao poder era supremo e absoluto. As
principais características deste Estado, segundo Wolkmer27 são: a) centralização de todos os

26
HELD, David. La democracia y el orden global Op.Cit. p. 60.
27
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25.
poderes na pessoa do rei; b) o Estado é territorial e nacional (surge a consciência de nação e
nacionalidade); c) o Estado se reveste de um poder supremo e ilimitado; d) o processo da
secularização, marcando a separação entre Estado e Igreja; e) se materializa um conceito de
direito laicizado, produto da generalidade, dessacralização e racionalização burguesa; f) se
desenvolve o mercantilismo econômico e a chegada da economia monetária. Para Weber,
um único instituto serve para definir o Estado, assim como toda associação política: a força,
e não seu conteúdo28. Todo Estado se fundamenta na força disse Trotsky, e Weber, citando-
o de forma literal, lhe da toda razão, ressaltando, contudo, que a violência não é o
instrumento único do Estado, mas lhe é específico. No passado sim - diz o pensador – a
violência foi um meio inteiramente normal entre os mais distintos grupos.29 O Estado
Moderno racionalizou o emprego da violência ao mesmo tempo em que o fez legítimo.
Valendo-se de tais reflexões, Max Weber afirma que uma associação política obrigatória
com uma organização contínua, se chamará ‘Estado’, nos termos em que sua equipe
administrativa assume com êxito a monopolização do uso legítimo da força física para
reforçar sua autoridade30, e o definiu como: “uma associação de domínio, que tratou, com
êxito, de monopolizar, dentro de um território, a violência física legítima como meio de
domínio e que, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos de seu dirigente e
expropriou todos os funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por direito
próprio, substituindo-os pelas hierarquias supremas”. 31

A partir desta definição, Barroso32 retira alguns elementos para comentar,


principalmente, o monopólio da violência física legítima. Para ele, isto revela um contraste
com o anterior poder feudal, que era bastante fragmentado e dividido em vários centros
políticos e jurídicos. Quando o Rei consegue reunir um exército forte, patrocinado em
grande parte pela burguesia nascente, vai conseguir dominar um vasto território, colocando-
o sob seu poder direto. Então, entende-se que com isso, ele passa a deter legitimamente o
poder, porque é interessante que haja esta nova ordem, que é essencial para a formação do
Estado moderno. Outro aspecto que se pode retirar da definição de Weber, diz Barroso,

28
Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Op. Cit.
29
Idem
30
WEBER, M., Basic concepts in sociology. New York: The Citadel, 1964, p. 119, In AGUIAR, Roberto. A.
R. (de), Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 43.
31
WEBER, M. O Político e o Cientista. Lisboa: Presença, 1979, p. 17.
32
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 29.
como conseqüência do primeiro elemento, é o fato de que existe, para a execução e garantia
do sistema imposto, um corpo de funcionários, com a função de usar a violência física,
quando seja necessário. Com isso pode-se verificar que a estrutura do Estado esta garantida
por um tipo de Direito, ainda que um Direito primasiadamente punitivo, com o objetivo de
garantir, de qualquer forma, a coesão do novo status quo do novo Estado.

Então, no Estado absolutista, o direito era o poder da força, baseado em


um tipo de dominação tradicional, legitimado pelo direito divino dos Reis. Neste Estado a
ideologia existente pode perfeitamente resumir-se na famosa frase de Luis XIV “L’Etat
c’est moi”. Diferentemente, estaria a dominação racional-legal, perpetrada por meio da lei,
entendida como a expressão máxima da razão humana.

Ainda que óbvio, é importante lembrar, alerta Barroso, que a passagem do


mundo feudal ao mundo moderno não vai ocorrer de um modo rápido e instantâneo, é um
fenômeno que não vai ocorrer em todos os lugares ao mesmo tempo, pelo que não se pode
determinar una data exata para o nascimento do Estado moderno. Inclusive porque, na
França pré-revolucionária existiam ainda instituições feudais. A França, que foi um dos
primeiros Estados europeus, a aceitar o novo modelo - a consolidação do poder absoluto -
ainda assim se encontrava a existência de poderes feudais menores – não como
anteriormente quando dispunham de exército e moeda próprios, e sim com uma estrutura
administrativa tipicamente feudal. Isto se verifica porque, em toda passagem de um modelo
para outro, a ruptura nunca é completa, há um período de convivência entre instituições
antigas e instituições novas. Ademais, as velhas formas se mantém também para que não
pareça, aos olhos da povo, que houve uma alteração tão grande, e vá assimilando aos
poucos o novo modo de vida.

É neste período de grandes transformações que surge uma nova doutrina


orgânica e objetiva do Estado moderno, estabelecida por Maquiavel (1513). A idéia de uma
ordem natural é abandonada e substituída por outro pressuposto da modernidade: a ordem
política provém do poder e resulta da imposição de uma vontade: a vontade que a exerce.
Desprezando qualquer escola filosófica ou política como referencial teórico 33 e valendo-se
somente da observação e desenvolvida psicologia humana, o escritor florentino, em O
Príncipe, faz uma exposição das condições necessárias para que se possa construir um
Estado forte e unitário. Maquiavel defende que, para a construção de um Estado, o poder
deve ser absoluto, justamente para a manutenção da nova ordem, para que não haja uma
tentativa de voltar a situação antiga por parte daqueles que foram derrotados. Sugere que as
forças anteriores sejam dizimadas de modo a não poderem se reorganizar, caso contrário,
pode ocorrer uma tentativa de rebelião “mediante conluio com alguns barões do reino, pois
sempre se encontrarão descontentes e desejosos de mudanças” 34. Nas Repúblicas, diz
Maquiavel, há maior ardor, maior ódio e mais sede de vingança, e a memória da antiga
liberdade não dá tréguas. Assim, o meio mais seguro de dominá-las é aniquilá-las. Ao
separar a política da ética, Maquiavel se desliga de todos os valores morais, tradicionais e
princípios éticos, propagando o oportunismo e o cinismo como arte de governar. Aconselha
o Monarca a mentir, a praticar toda sorte de crueldade ao mesmo tempo e dissimular
fazendo crer que sua conduta é virtuosa. Ao apossar-se de um Estado, diz, o Príncipe deve
“verificar todas as ofensas que precisa fazer; e fazê-las todas de uma vez, a fim de não ter
que repeti-las todos os dias e poder, assim, não as repetindo, conquistar seus súditos” 35.
Recomenda ao Soberano pensar uma maneira de fazer com que os cidadãos, sempre e em
qualquer circunstância tenham necessidade do Estado e dele, com o que lhe serão depois,
sempre fiéis. Ao questionar-se sobre ser o Príncipe amado ou temido responde que deveria
ser uma e outra coisa. Mas como isso é difícil de ocorrer, conclui que “é muito mais seguro
ser temido” porque os homens em geral são ingratos, volúveis, dissimulados, ambiciosos,
falsos e tementes ao perigo. O amor está vinculado à gratidão e este vínculo, por serem
míseros os homens, rompe-no toda ocasião conveniente, ao passo que o temor é mantido
pelo receio dos castigos. Assim os homens receiam menos ofender aquele que amam do
que aquele a que temem.36 Então, “é necessário a um Príncipe, para manter-se, aprender a
não ser bom..”. Em suma, ao Príncipe tudo é permitido, inclusive a infâmia, a hipocrisia, a

33
“Maquiavel não parte de um sistema filosófico, como fará Hobbes, para explicar a natureza do homem.
Incrédulo, ele não se baseia no pecado original e no dogma da natureza decaída” (CHEVALIER, J-J.,
História do Pensamento Político. Tomo I, Rio de Janeiro: Guanabara, 1982, p. 266).
34
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d. p. 52.
35
Idem. p. 72.
36
Idem. p. 108.
crueldade, a mentira, desde que consiga atingir seu objetivo. Todos os meios que lhe sejam
úteis no exercício do poder são admissíveis e justificados. Fernández Pardo37, referindo-se
ao pensamento de Maquiavel, disse que ele “faz da política um objeto de desejo e um
palanque para a satisfação de suas paixões. Em suma, um espaço onde objetivar sua
vontade”. É um político que faz da decisão a instância suprema do exercício político. Para
Bobbio38, em termos políticos, o maquiavelismo, assim entendido, chega a formar parte da
teoria da razão de Estado, que acompanhou a consolidação do Estado absoluto. Como
‘razão de Estado’, deve-se entender que o Estado possui suas próprias razões, que o
indivíduo desconhece. Em nome de tais razões, o Estado pode atuar de maneira diferente
daquela que o individuo deveria comportar-se nas mesmas circunstâncias. Dito de outro
modo, a moral do Estado, ou seja, daqueles que detêm o poder supremo sobre os outros
homens, é diferente da moral dos indivíduos comuns. O individuo possui obrigações que o
soberano não possui. A teoria da razão de Estado é, portanto, outra maneira de firmar o
absolutismo do poder do soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem as leis
jurídicas nem as morais. Identificado inicialmente como um manual de técnicas de
despotismo ou de defesa da tirania, e condenado pela Igreja, Maquiavel foi glorificado
como herói nacional pelo povo italiano durante o movimento de unificação da Itália. Sua
doutrina não foi somente o sustentáculo do absolutismo monárquico que surgiu no início do
mundo moderno. Em pleno século XX ressurgiu nos Estados autoritários; Mussolini
reconheceu em Maquiavel um precursor do fascismo, enquanto Gramsci via em suas teorias
uma antecipação da teoria do partido do proletariado.

Assim, como ensina Wolkmer39, o Estado moderno surge inicialmente


absolutista devido a condições ambientais necessárias para sua consolidação, evoluindo,
posteriormente, para o chamado Estado Liberal Capitalista. Deste modo, o Estado
Absolutista é um Estado em transição: sua estrutura prepara a chegada do Estado Liberal,
fundada no modo de produção capitalista. Embora a organização absolutista comporte
matizes marcadamente capitalistas, a burguesia não é ainda, a classe política e
economicamente dominante. Se num primeiro momento houve uma aliança entre o Rei e a

37
FERNÁNDEZ PARDO, C. A., (organizador) Teoria Política y Modernidad: del siglo XVI al siglo XIX.
Buenos Aires: Entro Editor de América Latina, 1977. p. 12.
38
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Op. Cit. p. 23.
39
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25.
burguesia em função de interesses comuns, com o passar do tempo, tais interesses foram se
afastando mais e mais uns dos outros. Roth40 distingue o Estado Moderno do feudal por
três elementos principais: primeiro, se institui a separação entre a esfera pública, dominada
pela racionalidade burocrática do Estado, e a esfera privada, domínio dos interesses
pessoais; segundo, o Estado Moderno dissocia o poder político (poder de dominação
legítima legal-racional) do poder econômico (que possui os meios de produção e os meios
de subsistência), que se encontravam reunidos no sistema feudal e, terceiro, o Estado
Moderno realiza uma estrita separação entre as funções administrativas e políticas, fazendo-
se autônomo da sociedade civil.

Então, por volta do ano 1700, a Europa já tinha implementado e


desenvolvido - ainda que embrionárias - as estruturas características do Estado moderno;
estruturas que estão na base da maioria dos Estados atuais. É claro que aqueles Estados
estavam longe do que hoje entendemos por Estado democrático, mas já não era um
despotismo total. As ações de governo – salvo raras exceções – deviam ser explicadas e
justificadas perante os membros das classes dominantes, além de seguir os preceitos legais.
Finalmente, o que Strayer considera o mais importante: o Estado se convertera numa
necessidade vital41. Conquistou a lealdade suprema dos seus súditos. A intensidade dessa
lealdade era variável, mas sequer aqueles que se limitavam a uma obediência passiva,
conseguiam conceber um mundo sem Estado. A Europa estava então preparada para o
fortalecimento e a multiplicação das funções do Estado. As políticas podiam ser atacadas, e
os governos derrubados; porém, as convulsões políticas, jamais poderiam destruir o
conceito de Estado.

1.3.2 As idéias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau

Tomas Hobbes (1588 – 1679).


De privilegiada educação - estudou nos melhores colégios da Inglaterra -
afastou-se da escolástica e manteve-se sempre próximo dos conhecimentos exatos e

40
ROTH, A-N, “O direito em Crise: Fim do Estado Moderno?” In Direito e Globalização Econômica.
(Organizador: José Eduardo Faria) São Paulo: Malheiros. 1996,. p.16.
41
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit.. p.115-116.
científicos, aproximou-se da lógica, física, matemática e geometria. Privou da companhia
de Descartes, Galileu Galilei e outros grandes pensadores de sua época. Dedicou grande
parte de seus estudos à questão do direito natural
Preocupado com a já fragmentada unidade do Estado, em 1640 põe-se na
defesa do Rei Carlos I contra um levante liberal sustentado por ricos comerciantes
burgueses que contestam o poder aproveitando-se do conflito entre protestantes e católicos
e a intromissão político-administrativa da coroa. É neste episódio que busca inspiração para
sua obra Elementos da Lei Natural e Política. (somente publicada em 1650). Diante da
manifestação dos revoltosos, Hobbes se vê obrigado a refugiar-se em Paris onde publica
Sobre o Cidadão (1642) e O Leviatã (1651).
Embora jusnaturalista, é considerado o precursor do positivismo
jurídico, pois como explica Bobbio, Hobbes adota a doutrina do direito natural não para
limitar o poder civil, mas para reforçá-lo. Usa meios jusnaturalistas para alcançar objetivos
positivistas. “A mesma idéia pode ser expressa de outra forma, dizendo que Hobbes é um
jusnaturalista ao partir e um positivista ao chegar”.42 Ocorre, diz Leal, que Hobbes parte da
assertiva de que antes da formação da sociedade política organizada, existia uma situação
de caos e desordem entre os homens, inviabilizando a própria existência, o que o afasta dos
teóricos que até então garantiam que o homem se caracterizou por seu um animal político e
social por natureza43. Para Hobbes, ao contrário, o homem se distingue dos animais sociais,
como as abelhas e as formigas, por exemplo, por não possuir instinto social. Ele não é
sociável, afirma, e somente o será por acidente. Então, no estado da natureza a situação era
de absoluto caos e desordem entre os homens, o que inviabilizava a própria existência. A
natureza humana é perversa, egoísta e perniciosa diz, e todo homem é concorrente do outro;
ávido de poder sob todas as formas. Concorrência, má-fé, desconfiança recíproca, avidez de
glória e fama tem por resultado a guerra perpétua de cada um contra cada um e de todos
contra todos. Para Hobbes, “homo homini lupus” – o homem é o lobo do homem, então
“bellum omnium contra omnes” – é guerra de todos contra todos. Não há qualquer
possibilidade de criar-se uma sociedade organizada com o homem em estado de natureza.
Mesmo existindo leis naturais, não há qualquer garantia de que serão seguidas. A única

42
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 41.
43
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora. 1997. p. 68
salvação para o homem é a criação de um poder superior, cada um deve renunciar ao direito
absoluto que tem sobre todas as coisas em favor de um soberano, que ao herdar o direito de
todos terá um poder absoluto e ilimitado. Assim, por medo de seu semelhante e da
insegurança perpétua, o homem desiste do direito total, de livre postura e livre agir,
renuncia a seus direitos, transferindo-os a um soberano que em troca lhe garantirá
segurança.
Para Hobbes assim surgiu o Estado, que agarra para si o poder e a
violência que os indivíduos detinham quando na natureza e, coercitivamente, impõe regras
que irão nortear o campo social. O soberano cria o direito positivo e os indivíduos são
obrigados a obedecê-lo. Isto significa que somente existe um direito: aquele imposto pelo
soberano, o direito positivo. Assim, a segurança e as obrigações se tornaram eficazes: todos
sabem que quem não cumprir a lei será punido. Bobbio resume assim o pensamento
hobbesiano: “de uma concepção totalmente pessimista do estado da natureza, como a de
Hobbes, só podia derivar uma exaltação do homo artificialis, isto é, do poder político, na
qual o indivíduo resumir-se-ia no súdito, quase sem deixar resíduo”.44
O Estado de Hobbes, detém o monopólio do aparato legal, ele é fonte
única do direito. Ele não reconhece direitos preexistentes, ele os cria. A única lei oriunda do
direito natural que permanece é a de obedecer ao soberano. Este Estado, de poderes
ilimitados, transforma-se no grande Leviatã45.

John Locke (1632 – 1704)


Filósofo e teórico político foi um defensor do liberalismo político e da
tolerância religiosa; questionou também a questão da educação, onde propôs também um
método de ensino que partisse dos fatos, embasado nas ciências da Natureza.
Seguindo a tendência da época, John Locke – um jusnaturalista do
princípio até o fim46 - apresenta suas considerações sobre a formação da sociedade política,
partindo também dos referenciais de comportamentos existentes na natureza. Mas suas
conclusões são a princípio ambíguas. De início deixa claro que o estado da natureza nada
tem a ver com o estado de guerra: “Temos aqui bem clara a diferença entre o estado da

44
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 172.
45
Grande monstro mitológico devorador de homens – Crocodilo, descrito na Bíblia, Livro de Jó, cap. 40-41.
46
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 75.
natureza e o estado de guerra, os quais, embora já tenham sido objeto de confusão por
algumas pessoas, estão muito distantes um do outro: um é um estado de paz, benevolência,
assistência e conservação recíprocas; o outro, um estado de hostilidade, maldade, violência
e mútua destruição”47. Entretanto, mais tarde reconhece que “por falta de leis positivas e de
julgamento por parte da autoridade a que se possa apelar, o estado de guerra, uma vez
iniciado, perdura”48. Ocorre que Locke estava frente a duas fortes correntes: de um lado
Hobbes – para quem o estado da natureza era um estado de guerra, de outro Pufendorf –
para quem ao contrário, era um estado de paz. A posição de Hobbes era pouco aceitável e
antipática aos teólogos, enquanto se a de Pufendorf fosse absolutamente verdadeira, porque
os homens sairiam do estado da natureza? Diante desta dificuldade real, diz Bobbio49, é
natural que Locke fosse tentar uma solução intermediária onde o estado da natureza não é
um estado de guerra, mas pode tomar este rumo e ocorrendo tal transformação se torna
difícil reconduzi-lo ao estado de paz original. Se os homens fossem sempre racionais
bastariam às leis da natureza - que estabelecem que “ninguém deve prejudicar a outrem em
sua vida, saúde, liberdade ou propriedade” - contudo isso nem sempre acontece; no estado
da natureza, reconhece Locke, “algumas pessoas transgridem os limites, usurpando direitos
de outrem, prejudicando-se mutuamente...”. Então, o estado da natureza não é
essencialmente mau, mas apresenta inconvenientes. “Ao percebermos, em um certo ponto,
que suas desvantagens superam as vantagens, torna-se necessário abandona-lo”. Daí
conclui: “reconheço plenamente que o governo civil constitui o remédio apropriado”. Mas
lembra que o homem, desde o estado de natureza foi proprietário legítimo e inconteste de
sua vida e de sua liberdade – liberdade no sentido “de organizar seus atos e dispor de seus
bens como julgasse conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou
depender da vontade de qualquer outro homem”, - o que significa: o direito de agir à sua
própria vontade, sem restrições nem coações. Os homens nascem iguais e nenhum tem
poder sobre os demais, portanto os homens são livres para agir, tendo como único limite a
lei da natureza. Esta e outras tantas situações preexistem ao Estado, portanto estão
consumadas na ordem do mundo e não podem ser alteradas. O poder civil, portanto, está

47
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Cap. III, § 19 e Cap. IX, § 123. Apud BOBBIO,
Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 117-181
48
Idem
49
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 179.
impedido de alterar ou inovar neste campo, pois sua constituição ocorreu exclusivamente
para satisfazer as necessidades humanas (de segurança e estabilidade) e assegurar os
direitos do indivíduo. Ele foi criado de modo convencional, momento em que o homem
abre mão de sua liberdade ilimitada para delegar poder à autoridade pública, que assume a
tarefa de proteger os direitos naturais. Portanto este é o poder e o limite do Estado. Caso ele
transgrida o limite de sua competência, perde a legitimidade, consequentemente sua função,
pois os homens não abririam mão de seus direitos, seus bens e sua liberdade do estado de
natureza colocando grilhões em si mesmos, sem a garantia de rompimento do acordo, para
a preservação de seus direitos naturais, até porque os direitos que constituem a natureza
humana são inalienáveis. Os homens renunciaram unicamente ao direito de defesa e de
fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis fossem melhor garantidos.
Em resumo, para Locke, (a) os direitos do homem derivam da lei da natureza,
que é a expressão da vontade de Deus e são universais, isto é, estendem-se a todos os
homens, independente de sua condição social; (b) Deus ofertou o mundo a todos os
homens, em iguais condições. Os homens trabalharam e o fruto de seu trabalho é sua
propriedade; (c) para preservar e garantir esses direitos os homens se reuniram em
sociedade e convencionaram a criação do Estado; (d) a função do Estado é proteger e
garantir os direitos naturais dos homens, não o fazendo, perde sua legitimidade e a
convenção pode ser rompida. O que se observa é que para Locke, “a finalidade máxima e
principal que buscam os homens ao reunir-se em Estados ou comunidades, submetendo-se
a um governo, é a de salvaguardar seus bens; esta salvaguarda era muito incompleta no
estado de natureza”50.
O que se verifica é que ao contrário de Hobbes, para quem o Estado é a única
fonte do direito, não reconhecendo direitos fora dele, sendo tudo uma convenção, para
Locke o direito que o homem tem sobre si mesmo traz como conseqüência o direito sobre
as coisas, sendo então naturalmente proprietário e não graças a uma convenção. Deve-se
observar que o conceito de propriedade em Locke tem um sentido muito amplo,
englobando não somente os bens materiais, mas o próprio corpo, a vida, a liberdade, a
consciência.

50
FERNÁNDEZ-LARGO. Antonio Osuna. Teoría de los Derechos Humanos. Conocer para practicar.
Salamanca: San Esteban - Madrid: Edibesa. 2001. p. 91.
Assim, se para Hobbes o indivíduo acata o poder e entra em sociedade por medo
de seu semelhante, para Locke isto se dá para garantir seus interesses, seus bens e seus
direitos. É claro que a primeira razão pela qual o homem abandona o estado de natureza e
se reúne com os outros no estado civil, submetendo-se a uma autoridade é o desejo de
conservar sua vida, um dos primeiros direitos naturais, mas o homem não constituiu o
Estado somente para conservar sua vida, mas também para conservar outro direito natural
fundamental que é a propriedade. O estado civil nasce, portanto, segundo Locke, do desejo
que os homens tem de conservar os direitos naturais fundamentais, ou seja, a vida e a
propriedade51. Assim Locke se opõe a Hobbes apresentando uma teoria antagônica ao
absolutismo do Leviatã. O homem livremente agregou-se em sociedade para garantir
segurança pessoal e proteger seus bens (vida, liberdade, propriedade) e este é o limite e a
função do Estado. Para Dias52, o objetivo principal de Locke “era proteger o indivíduo
contra o poder ilimitado do governo ou de outros indivíduos”. Usando o direito natural ele
fixa os limites deste poder. Os homens devem ser livres para escolher sua forma de vida,
seu governo e sua própria comunidade.
Contudo, Hobbes e Locke estão de acordo que o interesse individual é, e
deve ser o propulsor da sociedade. Concordam que a propriedade privada é a base de toda
sociedade e que o único Estado legítimo é o que surge de um livre contrato entre os
cidadãos e que a única razão de existir do Poder Estatal reside em assegurar o cumprimento
da leis53.

Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778)


Nascido em Genebra, em uma família calvinista de origem francesa, fica
órfão de mãe ainda criança e é abandonado pelo pai aos 10 anos. Já adulto, peregrinou pela
França e Suíça até que em 1741 instala-se em Paris, onde conhece Voltaire, Diderot e
outros filósofos do iluminismo e tem a oportunidade de familiarizar-se com os clássicos da
época (Spinoza, Platão, Aristóteles, Montesquieu, Hobbes, Locke), o que formou sua base
teórica. Embora tenha incursionado por diversos ramos do conhecimento como a música,

51
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Op. Cit. p. 60.
52
DIAS, Maria Clara. Os Direitos Sociais Básicos. Uma investigação filosófica da questão dos direitos
humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2003. p. 33.
53
ANTÓN, Joan et al. El liberalismo. Madrid: Tecnos. 1996. p. 193.
educação, literatura e poesia, a filosofia de Rousseau encontra-se em dois discursos: Sobre
as Ciências e as Artes e Sobre as Origens da Desigualdade.
Como se disse, neste período recorrer ao estado de natureza é lugar
comum para explicar a origem e as bases da sociedade. Mas para Rousseau, ensina Leal54, o
estado de natureza não tem a mesma função que seus predecessores. Para os iluministas,
defensores do direito natural, os homens no estado de natureza são livres e iguais. Nenhum
é dotado de poder de comandar os outros. Portanto a autoridade política não tem origem
natural, ela deriva de uma convenção, da qual os homens se despojam de uma parte de sua
soberania em benefício de um terceiro. Assim, diz Rousseau: “Uma boa constituição será
aquela que garanta a liberdade e a desigualdade natural dos homens”. Pufendorf afirmava
que os homens na natureza eram dotados de razão e sociáveis, por isso uniram-se para sair
daquela condição infeliz; para Locke os homens se uniram para garantir direitos que já
possuíam; Hobbes afirmava que o homem na natureza não era sociável, era ávido e
orgulhoso em constante guerra com os outros assim, temendo seu semelhante, criou o
Estado.
Rousseau recusa estas concepções do estado de natureza. Para ele o
homem no estado de natureza não é nem sociável, nem dotado de razão, nem egoísta ativo.
Para Rousseau, os demais pensadores pecaram ao atribuir ao homem natural, características
que só surgiram com a sociedade, como o egoísmo, a razão, a paixão, a sociabilidade. Para
ele o homem natural é desprovido de todas as características do homem social; ele é
solitário, independente e ocioso por natureza, somente se agita para satisfazer suas
necessidades naturais, seus sentidos são proporcionais a suas necessidades; ele não tem
sequer consciência de ser homem. “Na natureza não há nenhuma espécie de relação entre
os homens, conseqüentemente não conheciam a vaidade, nem a consideração, nem a
estima, nem o desprezo, não tinham a menor noção do teu, e do meu, nenhuma idéia de
justiça”. Assim, nem a linguagem, nem a razão, nem a família, nem o trabalho, nem a
propriedade, nem a moral são naturais ao homem; são criações posteriores.
Paradoxalmente, o homem natural é superior aos animais apenas por sua nulidade, por sua
ausência de determinações. Não possuindo nenhuma característica exclusiva, pode adquirir
todas. Para construir a evolução do homem, Rousseau parte daqui acrescentando as duas

54
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Op. Cit. p. 86
características que julga distinguirem o homem dos outros animais: a liberdade da vontade
e a perfectibilidade.
A desigualdade entre os homens surge com os progressos no seio do
próprio estado de natureza. A descoberta da metalurgia, o desenvolvimento da agricultura,
a divisão de trabalho estão na origem da propriedade e da desigualdade. Mas, nesta fase o
homem já está se desfigurando. O bom selvagem, o estado de natureza como um estado de
bondade pura já não existe mais. A civilização arruinou o homem. “No estado de natureza o
homem não conhece mais que os prazeres simples e inocentes. O homem é bom por
natureza; a sociedade o corrompe”. Agora a ganância, o ciúme, a inveja e a violência
imperam. A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de guerra. Ricos e
pobres possuem interesses conflitantes entre si e esta nova situação força os ricos
proprietários a conceberem “um projeto de empregar a seu favor as próprias forças que os
atacavam, de fazer seus adversários seus defensores de lhes dar instituições que lhes fossem
tão favoráveis quanto eram contrárias ao direito natural.” A instituição desta proteção deu-
se por um pacto de associação, feito, evidentemente, em favor de quem dos mais fortes,
pois “o mais forte não será para sempre o amo e senhor se não transformar sua força em
direito”.55 Assim, buscou-se encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com
a força comum das pessoas os bens de cada associado onde, cada um, unindo-se a todos,
não obedeça senão a si mesmo e permaneça livre como antes. Esta associação, instituída
por um ‘Contrato Social’, é que cria o Estado. Assim “o homem perde sua liberdade
natural de direito ilimitado a tudo que deseja e ganha em troca a garantia e a segurança da
liberdade civil e da propriedade que possui”56
Para Fortes57, a teoria de Rousseau é, sob vários aspectos, uma síntese de
Hobbes e Locke, pois para Rousseau, o contrato social é “uma associação de seres humanos
inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de sociedade, à qual
passam a prestar obediência mediante o respeito da vontade geral”. O contrato social, ao
considerar que todos os homens nascem livres e iguais, encara o Estado como objeto de um
contrato no qual os indivíduos não renunciam a seus direitos naturais, mas ao contrário,

55
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrat social ou principis du droit politique. Versão espanhola El Contrato
Social. Barcelona: Edicomunicaciones. 1994. p. 31.
56
Idem. p.42.
57
FORTES, Luiz Roberto Salinas. In www.culturabrasil.pro.br. Acessado em 02.05.2006.
entram em acordo para a proteção desses direitos, que o Estado é criado para preservar.
Então, o Estado é a unidade, e como tal expressa a “vontade geral”, porém esta vontade é
posta em contraste e se distingue da “vontade de todos”, a qual é meramente o agregado de
vontades, o desejo acidentalmente mútuo da maioria. Ocorre que a institucionalização do
convívio social, na verdade se consubstancia no processo de persuasão, desencadeado por
aqueles que mais se beneficiam com esta associação: os ricos. Esta é a forma que Rousseau
apresenta o surgimento do Estado.

Thomas Hobbes John Locke Jean-Jacques Rousseau


O Leviatã (1651) Tratado sobre o Governo Civil, Do Contrato Social
I, II (1689) (1762)
O Estado é a única fonte de Os direitos são naturais, A lei vincula a todos
direito anteriores ao Estado.
O homem constituiu a O homem constituiu o Estado A vontade geral cria o
sociedade (Estado) por medo de para garantir suas propriedades Estado
seu semelhante e realizar seus interesses.
Ao constituir o Estado o homem O homem constituiu o Estado
Os ricos concebem um
abriu mão de seus direitos para garantir seus direitos
projeto para proteger
suas posses
Estado = Leviatã. Tudo pode. O Estado tem como limite sua O Estado (governo)
Sem limites. finalidade = promover o bem deve buscar uma justiça
que sirva a todos

Tradicionalmente se admite que o Estado Moderno tomou duas formas


principais: o Estado Liberal e o Estado Social. Para Perez Luño58 é nas Declarações de
direitos do século XVIII que se encontra presente o embrião dos princípios que formaram o
substrato ideológico do moderno regime constitucional. Estes textos representam a síntese
das idéias e tendências responsáveis por apagar os vestígios arbitrários do absolutismo e de
encaminhar o Estado para a uma lenta e trabalhosa conquista dos princípios da liberdade e
democracia. Segundo ele, o Estado absolutista foi substituído pelo Estado de Direito, que
supõe uma delimitação e regulamentação das funções de poder e na adoção de formas
representativas, tudo voltado diretamente para a defesa dos direitos dos cidadãos. O
substrato teórico do Estado de Direito estaria na filosofia de Immanuel Kant que aceita, a
principio, a tese do jusnaturalismo iluminista, de que o Estado é um meio e uma condição
para assegurar a liberdade dos cidadãos. Mas, ao referir-se aos fins do Estado, rechaça
qualquer paternalismo, para reivindicar como seu objetivo prioritário a garantia da
liberdade através do direito. Para Kant, a situação dos cidadãos, considerada como situação
puramente jurídica, se fundamenta, a priori, nos seguintes princípios: 1) a liberdade de cada
membro da sociedade, como homem; 2) a igualdade dele, frente a qualquer outro, como
súdito; 3) a independência de cada membro da comunidade, como cidadão. Kant concebe
um Estado de Direito como um Estado da razão, isto é, como a condição primeira
(exigência universal da razão) para uma coexistência livre através do direito, entendido, por
sua vez, como normatividade racional “porque a razão constitui o único fundamento de
qualquer legislação positiva”.59 Para Perez Luño, o que se desprende da tese de Kant é que
“é o direito, como condição de coexistência das liberdades individuais, que atribui o
Estado, a garantia, mediante sua não ingerência, do livre desenvolvimento da liberdade”. 60
Para Bobbio61, Kant reflete em sua obra a coexistência de uma noção de liberdade como
autonomia de inspiração democrática, com um conceito de liberdade como não ingerência,
de inequívoco sentido liberal.

Seguindo o pensamento Kantiano, em 1792 Wilhelm Von Humboldt


escreve “Ideen zu einem Versuch die Grenzen der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen” -
Idéias para um ensaio a fim de definir os limites da ação do Estado, publicada apenas em
1852, 17 anos após sua morte. Esta obra, que discute a função do Estado, foi crucial para o
desenvolvimento do liberalismo na Europa no século XIX, e teve influência direta em outro
clássico do liberalismo “A liberdade” (1859) de John Stuart Mill. Jusnaturalista, é o
indivíduo, não o Estado que está no centro do pensamento político de Humboldt. Defende
que “as atividades humanas mais bem conduzidas são aquelas que mais fielmente lembram
as operações do mundo natural”62. Ele parte do conceito do homem como um animal social,
empenhado em progredir e desenvolver-se. Daí discute a ação do Estado no cerceamento da

58
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 2ª ed. Madrid:
Tecnos, s/d. p. 212-245.
59
Idem p. 217.
60
Idem
61
BOBBIO, Norberto. “Kant e le due libertà” In Da Hobbes a Marx. Napoli: Morano, 3a ed. 1974, p. 147.
62
HUMBOLDT, Wilhelm Von. Os Limites da Ação do Estado. Liberty Classics. 2004. Rio de
Janeiro:Topbooks. s/d. p. 135.
liberdade dos cidadãos e sugere instrumentos para frear este papel, pois “seria correto dizer
que a liberdade da vida privada sempre cresce na exata proporção em que declina a
liberdade pública”63, assim, qualquer interferência do Estado em assuntos particulares
deveria ser absolutamente condenada. Defende que o objetivo básico de todo governo é
abster-se de buscar a felicidade e o bem-estar para os cidadãos. “A felicidade para a qual o
homem está simplesmente destinado não é nenhuma outra além daquela que suas próprias
energias buscam para ele”. O único setor onde o Estado faz-se necessário é na garantia da
segurança individual, deve, portanto, limitar sua atuação ao que for necessário para a
segurança interna e externa, não restringindo a liberdade individual sob nenhum pretexto.
“O Estado deve abster-se de todo esforço por interferência positiva no bem-estar dos
cidadãos, e não dar nenhum passo além do necessário para garantir-lhes a segurança mútua
e a proteção contra inimigos externos, visto que, nenhum outro objetivo deveria constituir
motivo para imposição de restrição à liberdade”64. Depreende-se de seu pensamento que
toda intervenção do Estado induz a uma artificialidade que leva a uma violação da
originalidade natural. O desenvolvimento, a realização pessoal e a própria auto-estima são
desvirtuadas. Em resumo, para Humboldt a razão não pode desejar para o homem qualquer
outra condição além daquela em que cada indivíduo desfrute da mais absoluta liberdade
para desenvolver-se a si mesmo a partir de suas próprias energias, em sua perfeita
individualidade, restrito apenas aos limites de seus direitos. Para Perez Luño, é a partir de
Humboldt que o Estado de Direito vai perdendo sua pretensão a um caráter formal-racional,
para ir aproximando-se de um conteúdo político concreto e expressamente manifesto: a
ideologia liberal.65

1.3.3 O Estado Liberal

Surge como uma reação ao Estado absoluto e teve sua origem na


Inglaterra. De acordo com Maluf66 o próprio termo liberalismo teve como origem o
segundo Bill of Rights que o Parlamento impôs a coroa em 1689. Em um de seus treze

63
Idem. p. 136
64
Idem. p. 180.
65
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit. p.212-
245.
66
MALUF, Sahid., Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 139.
artigos, que estabeleciam os princípios de liberdade individual, autorizava o porte de armas
aos cidadãos para que pudessem defender seus direitos constitucionais. Foi precisamente
este sistema de liberdade, defendida pelas armas, que recebeu, na época, a denominação de
liberalismo. Especificando os direitos essenciais, o Bill of Rights firmava os seguintes
princípios: (1) o Rei não pode, sem o consentimento do Parlamento, cobrar impostos, ainda
que seja sob a forma de empréstimos ou contribuições voluntárias; (2) ninguém poderá ser
perseguido por haver-se recusado a pagar impostos não autorizados pelo Parlamento; (3)
ninguém poderá ser destituído de seus juízes naturais; (4) o Rei não instituirá, em hipótese
alguma, jurisdições excepcionais ou extraordinárias, civis ou militares; (5) o Rei não
poderá, em nenhuma circunstância, alojar em casas particulares, soldados ou marinheiros.

Tais princípios passaram mais tarde a figurar nas constituições dos


Estados Liberais que vão se constituindo a partir da implementação das idéias vitoriosas
das revoluções (a americana, 1776, e a francesa, 1789, são os grandes exemplos). E se
mantiveram definitivamente, em grande parte pela vontade de se criar uma esfera privada,
independente do Estado, assim como pela preocupação de reformular-se o próprio Estado,
isto é, liberar a sociedade civil – a vida pessoal, familiar, religiosa e econômica – de toda
interferência política não necessária e, simultaneamente delimitar a autoridade estatal. O
constitucionalismo, a propriedade privada e a economia de mercado, junto com um modelo
de família patriarcal, se consagraram como pilares do Estado liberal67. Mas lembra Held
que mesmo tendo o liberalismo celerado os direitos dos indivíduos, a vida, a liberdade, e a
propriedade, foi o proprietário varão quem ocupou o centro de toda atenção; e as novas
liberdades se atribuíram primeira e principalmente aos varões das novas classes médias ou
da burguesia.68 Para ele, o mundo ocidental foi primeiro liberal e, somente mais tarde,
depois de grandes conflitos, democrático liberal, isto é, somente com o tempo se obteve o
sufrágio universal que permitiu a todos os adultos expressar sua opinião a respeito da
atuação daqueles que os governavam.

67
Entre os traços que comumente identificam o Estado Liberal, Wolkmer cita: a) a ascensão social da
burguesia enriquecida; b) consagração do individualismo e da tolerância; c) descentralização democrática e
separação dos poderes; d) principio da soberania popular e do governo representativo; e) supremacia
constitucional e o império da lei; f) doutrina dos direitos e garantias individuais; g) existência de um
liberalismo econômico, movido pela lei de mercado e com a mínima intervenção estatal (Wolkmer, Antonio
Carlos. Elementos para uma crítica ao Estado. Porto Alegre: Antonio Sergio Fabris Editor. 1990. p. 25).
68
HELD, David. La democracia y el orden global Op. Cit. p. 21.
Do ponto de vista eminentemente político ensina Dallari69, o liberalismo
se afirma como doutrina somente no século XIX, mais especificamente a partir de 1859,
com a publicação da obra de John Stuart Mill, ‘A Liberdade’70. Adepto entusiasta do
jusnaturalismo Mill, o maior filósofo inglês do século XIX, com inequívoca influência do
pensamento de Humboldt, questiona a natureza e os limites do poder que a sociedade pode
legitimamente exercer sobre o indivíduo. Defensor da liberdade individual, afirma que a
interferência do governo nos assuntos privados é quase sempre equivocada e condenável.
Para ele o único propósito aceitável de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer
membro de uma comunidade, contra sua vontade, é evitar dano aos demais. “Seu próprio
bem, físico ou moral não é garantia suficiente”. Ninguém pode ser compelido a fazer ou
deixar de fazer algo por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos
outros, fazê-lo seria sábio ou mesmo acertado. No que diz respeito ao indivíduo, “sua
independência é, de direito absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo
é soberano”.71 Para Mill, seja qual for a forma de governo nenhuma sociedade é livre se tais
liberdades não existirem em caráter absoluto e sem reservas. Afirma que “cada um é o
guardião adequado de sua própria saúde, seja física, mental ou espiritual. A humanidade
ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que compelindo
cada um a viver conforme pareça bom ao restante”.72 Referindo-se expressamente a
doutrina de Humboltd ratifica a idéia de que cada indivíduo deve imprimir em seu modo de
vida e na condução de seus interesses, algo do seu próprio julgamento, ou do seu caráter
individual. Como conclusão, Mill apresenta três objeções fundamentais à interferência do
Estado na sociedade: a) ninguém é mais capaz de conduzir qualquer negócio, ou determinar
como ou por quem deverá ser conduzido, que aquele que tem interesse pessoal. Assim, “a
coisa a se fazer será provavelmente mais bem feita pelos indivíduos do que pelo governo”;
b) ainda que os indivíduos não realizem tão bem os negócios que desejam, ainda assim é
melhor que eles o façam, não o governo, como elemento de sua própria educação; c) a que
considera a mais convincente de todas, se refere ao grande mal de se aumentar o poder do
Estado sem necessidade, pois, “toda função que se acrescenta às já exercidas pelo governo

69
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado.Op. Cit. p. 275-278.
70
MILL, John Stuart. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo Martins Fontes. 2000.
71
Idem. p. 18.
72
Idem. p. 22.
promove maior difusão de sua influência sobre as esperanças e medos, e transforma, mais e
mais a parte ativa e ambiciosa do público em dependentes do governo, ou de algum partido
que pretenda chegar ao governo”.73

Mas, o ponto principal da filosofia liberal, como bem lembra Barroso74, é,


sem dúvida, o respeito ao direito de propriedade (entendido como direito natural). Nesta
linha de pensamento, os direitos naturais dos homens, são limites naturais ao poder
(sobretudo porque se foi pela segurança da propriedade que os homens constituíram o
Estado, não poderiam aceitar limitações de nenhum órgão ao gozo deste direito) e este é,
então, vigiado e cobrado, o que leva a apregoar a proeminência do legislativo sobre o
Executivo75. Se o poder é um mal e deve ser controlado para não impedir a felicidade dos
homens, a melhor forma de fazê-lo é isolá-lo. Aí está a separação – elevado ao máximo, por
razões liberais - entre o âmbito político, configurado no Estado, e o econômico, reino da
liberdade dos indivíduos e da sociedade civil.

Streck lembra também, que foi com o Estado liberal que se desenvolveu
uma nova concepção da função jurisdicional, a partir de certos princípios que
representavam a própria negação do que ocorria no período absolutista. Em lugar de juizes
leigos, escolhidos dentre os nobres, juízes profissionais, capazes de dominar uma técnica
elaborada; em lugar de juízes interventivos, quase sempre politicamente comprometidos,
juizes reativos e imparciais. Esta nova postura reabilitou o Judiciário aos olhos do povo que
deixa de considerá-lo uma longa manus da realeza e abriu o caminho para torná-lo um
poder independente, ao lado do executivo e do legislativo.

Tornando-se o Estado liberal uma realidade, com o mínimo de


interferência na vida social, cria-se uma gama de inegáveis benefícios: ocorre um progresso
econômico acentuado, onde surgem as condições para a revolução industrial; o indivíduo
foi valorizado, despertando-lhe a consciência para a importância da liberdade do homem;

73
Idem. p. 165-168.
74
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 21.
75
As idéias do filósofo inglês John Locke (1632-1704) são fundamentais para as revoluções liberais do
século XVIII. Sua influência é visível na teoria da separação de poderes de Montesquieu, no iluminismo
francês e na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. (Ver MARTINS, C. E. e
MONTEIRO, J. P. “Vida e Obra”. In LOCKE, John Ensaio acerca do entendimento humano. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996).
desenvolvem-se novas técnicas de poder, surgindo a dominação legal em lugar da
dominação pessoal. Mas, com a ascensão da burguesia surgiram também as críticas a este
modelo, por transformar a cidadãos teoricamente livres em monetariamente escravizados. O
que ocorre é que, com a revolução industrial surge um cidadão até então desconhecido: o
operário de fábrica; e o aparecimento das máquinas produziu o desemprego em massa.
Cada máquina introduzida na indústria, jogava na rua milhares de desempregados. O
trabalho humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito a lei da oferta e da
procura. O operário se vê compelido a aceitar salários ínfimos e a trabalhar quinze ou mais
horas por dia para ganhar o mínimo necessário à sua sobrevivência. Por outro lado, fortunas
imensas se acumulavam nas mãos dos dirigentes do poder econômico. Enquanto o Estado
Liberal a tudo assiste de braços cruzados, limitando-se a cuidar da ordem pública. 76

Surge então a reação, primeiro com o socialismo utópico, apenas no


campo literário, que alcança seu clímax com o Manifesto Comunista de Marx e Engels, em
1848. Neste manifesto, depois de afirmar que a história de todas as sociedades é a história
das lutas de classes, Marx e Engels fazem uma análise da política econômica-social então
vigente, e denunciam que o sistema transformou a dignidade pessoal em um valor de troca,
que as liberdades foram substituídas “por uma única e desalmada liberdade de comércio” e
que se estabeleceu um “regime de exploração aberto, descarado, direto e brutal”. Concluem
apoiando a união dos movimentos revolucionários de todo mundo contra o regime social e
político imperante.77 Mais tarde, a partir da segunda metade do século XIX as correntes
socialistas se cristalizam no marxismo, que dá inicio ao socialismo científico. Ainda que
não se possa falar de uma teoria marxista de Estado - até porque o objetivo almejado pelo
grande filósofo alemão era uma sociedade sem classes, depois da derrubada do Estado - se
tem em seus trabalhos e nos de Engels, uma visão de peso sobre o Estado, em especial o
liberal. Para ele, “Como o Estado surgiu da necessidade de pôr fim à luta de classes, mas

76
Segundo Dallari, no Estado Liberal a valorização do individuo chegou ao ultra-individualismo que ignorou
a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os
mais hábeis, os mais audazes ou menos escrupulosos. Ademais, a concepção individualista da liberdade
impede ao Estado de proteger aos menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois,
concedendo-se a todos o direito de ser livre, não assegurava a ninguém o poder de ser livre. Na verdade, sob o
pretexto de valorização e proteção da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os
economicamente mais fortes. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p.
277-278).
surgiu também no meio da luta de classes, normalmente o Estado é a classe dominante,
economicamente mais poderosa, que por seu intermédio se converte também em classe
politicamente mais forte e adquire novos meios para submeter e explorar a classe
oprimida”.78

Para Engels, que se vale de um argumento histórico para dar sustentação


a tese socialista, nem sempre existiu Estado, assim como a propriedade privada não era
conhecida entre os povos antigos. A partir do momento em que existe a apropriação de
bens, surge a organização política para resguardar e garantir a propriedade. Nesta visão
socialista, o fenômeno do poder, da dominação do homem sobre o homem, nasce junto com
a apropriação privada dos bens materiais, em uma fase em que a exploração econômica
permite a existência de excedentes e em que as guerras trazem como espólio dos vencidos,
a escravidão humana. Então, a história não é nada mais que a sucessão dialética de classes
de dominadores e de dominados, impulsionada pelas condições econômicas79. Assim, o
Estado liberal se compreende como a dominação dos proprietários dos meios de produção
(capitalistas) sobre os não proprietários, obrigados a vender sua força de trabalho (única
mercadoria que dispõem) para garantir seu sustento mínimo80.

Neste contexto, a igualdade jurídica é vista como uma falácia que permite
mascarar a dominação de classes. Marx detecta a separação entre a vida econômica do
homem (a posição do homem nas relações de produção) de sua figura jurídica de cidadão, o
que faz desta uma abstração. As contradições do Estado Liberal apontadas pelo marxismo,
são determinantes para sua transformação. Este modelo de dominação não teria lugar na
nova realidade que se desenha com o fim do modelo político liberal no fim do século XIX.

Como sucessores deste modelo, vão aparecer soluções muito diferentes.


De um lado, o totalitarismo de esquerda, representado pela ditadura burocrática que se
instalou na Rússia à partir da Revolução de 1917. De outro, o totalitarismo de direita,
representado pelo nazi-facismo (anti-liberal e anti-comunista). E a solução encontrada pelos

77
MARX, C. y ENGELS, F. Das Kommunistische Manifest. Edição espanhola El Manifiesto Comunista.
Barcelona: Edicomunicación. 1998.
78
ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 11 Ed. São Paulo: Civilização
Brasileira. 1987. p .196.
79
Idem p. 108.
80
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 23.
países do velho esquema liberal: a necessidade de regulação da economia pela atuação do
Estado (uma grande heresia do ponto de vista do liberalismo clássico). A verdade é que o
individualismo, assim como a neutralidade do Estado Liberal de Direito, não podiam
satisfazer as exigências de liberdade e igualdade dos setores sociais e economicamente mais
fracos. Para Perez Luño81 a aparente neutralidade política que, ante as transformações
sócio-econômicas, adotou o Estado Liberal de Direito, se traduziu em uma série de
conflitos de classe que, a partir da segunda metade do século passado e no início do atual,
mostraram ser insuficientes às liberdades burguesas quando se inibe o reconhecimento da
justiça social.

1.3.4 O Estado Social

A Segunda Guerra Mundial que marcou a derrota do nazi-facismo,


também dividiu o mundo em dois grandes blocos: o capitalista e o socialista. Ao mesmo
tempo nasce outro capitalismo, mais ‘organizado’, controlado pelo Estado, que intervém na
economia não somente para regulá-la, mas passa a fazê-lo com o objetivo de promover o
crescimento dos Estados arrasados pelo conflito, que se deve ao investimento de políticas
sociais e redistribuitivas. Assim começa o Estado Social de Direito que segundo Perez
Luño82, teve uma origem híbrida, fruto de um compromisso entre tendências ideológicas
opostas: por um lado representou uma conquista do socialismo democrático, por outro uma
vitória do pensamento liberal mais progressista.

Evidentemente que o surgimento deste novo modelo de Estado não


ocorreu de um dia para outro, foi um processo de décadas e surgiu em um contexto
determinado. Para muitos autores, seu início está na Constituição Mexicana de 1917,
outros, como Quadros de Magalhães83 defendem o inicio do Estado Social na Constituição
de Weimar, de 1919, que marca o inicio do Estado Social Alemão, e que serviu de modelo

81
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit. p. 223.
82
Idem
83
QUADROS DE MAGALHÃES, J. L., Direitos Humanos: sua história, sua garantia e a questão da
indivisibilidade. São Paulo: Juarez, 2000, p. 30.
para diversos Estados europeus. Mas para Martinez de Pinsón84, foi a crise econômica de
1923 que evidenciou as limitações e contradições do primeiro capitalismo, um capitalismo
selvagem, desigual e injusto, e a Segunda Guerra foi o momento ideal para testar novas
estratégias que superaram o velho Estado liberal. E, mesmo reconhecendo a existência de
antecedentes afirma que o Estado Social não seria possível sem o contexto de crise geral e
global do capitalismo e sem as soluções propostas nos anos trinta para resolver os
angustiantes problemas sociais, políticos e econômicos85.

Percebe-se então que o Estado deve abandonar sua conduta abstencionista


e passar a garantir os Direitos Sociais mínimos à população. Para que os direitos
individuais possam realmente ser usufruídos por todos, deveriam garantir-se os meios para
que isso se faça possível. Começam a despontar os instrumentos característicos do Estado
Social, como: 1) proteção ao cidadão contra riscos individuais e sociais, como o
desemprego, a doença ou a invalidez; 2) a promoção de serviços essenciais para os
cidadãos como a educação, saneamento básico, habitação, acesso a cultura, e 3) a promoção
do bem-estar individual no sentido moderno. Desta forma, na passagem do Estado Liberal
ao Estado Social, uma das mais evidentes mutações operacionais que se observa é a
atribuição ao Estado da tarefa de proporcionar aos cidadãos em geral, as condições
necessárias e os serviços públicos adequados para o pleno desenvolvimento de sua
personalidade, reconhecida não somente através das liberdades tradicionais, mas também a
partir da consagração constitucional dos direitos fundamentais de caráter econômico, social
e cultural; ao mesmo tempo o Estado Social assume a responsabilidade de reestruturar e
equilibrar as contas públicas mediante o exercício de políticas fiscais. Neste novo Estado
supõe-se a abolição da separação entre o Estado e a sociedade, e então, a possibilidade da
exigência de que o Estado assuma a responsabilidade da transformação econômica-social
no sentido de uma realização material da idéia democrática de igualdade. Implica também
na superação do caráter negativo dos direitos fundamentais que deixam, deste modo, de
serem considerados uma limitação ao poder do Estado para definir limites que o principio
democrático da soberania popular impõe aos órgãos que dependem deles. Assim lembra

84
MARTÍNEZ DE PISÓN, J., “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema 160.
Colección Politeia. Madrid: Sistema, 2001, p. 75-93.
85
Referindo-se a teoria econômica de Keynes e o trabalho de Beveridge (1942) que definiu as bases de um
modelo público de previdência social em substituição ao sistema privado de mutualismo.
Martín86, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a crise econômica dos anos setenta,
houve uma significativa redução das desigualdades sociais e econômicas, ao menos nos
países desenvolvidos da Europa.

Este Estado Social, também chamado Estado Intervencionista, de Bem-


Estar-Social, Estado Providência ou Assistencial, começa a apresentar algumas
características peculiares, bem identificadas por Wolkmer87: a) uma preponderância do
Executivo sobre os demais poderes, o que gera uma crise de legitimidade; b) uma
progressiva burocratização da administração pública. O Estado se transforma em uma
máquina pesada. Iniciam as denúncias sobre os vícios da burocracia, em especial o grande
número de funcionários públicos trabalhando em uma enormidade de institutos de
assistência social. Dá-se a impressão que o dinheiro dos cidadãos é gasto para manter uma
classe de funcionários ociosos. c) expansão do intervencionismo estatal na economia, na
política sindical e nos fundos de pensão da Previdência Social. Ressurgem as objeções
liberais contra o assistencialismo, principalmente a idéia de que a assistência serve para
manter os pobres preguiçosos, castrando qualquer iniciativa econômica, criando legiões de
mendigos e aproveitadores. Em vez de estimular a preguiça é necessário estimular o
trabalho. Suprimindo a ajuda social todos buscariam trabalho e produção. d) crescente
complexidade dos conflitos sociais e aumento das demandas populares88.

86
MARTÍN, Nuria Belloso., “Igualdades Injustas o Igualdades Justas: Breves Apuntes Sobre el Post-
Liberalismo”, In Júris Poiesis, Revista Jurídica da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro:UES, 2000. p.
15.
87
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 26.
88
Julios-Campuzano, explica de forma didática: A fórmula política do Estado Social de Direito, supôs um
crescimento espetacular das funções do Estado com o correspondente aumento das elites tecnocráticas na
estrutura burocrática estatal. Na medida em que o Estado se expandia foi surgindo uma nova elite social de
especialistas e tecnocratas cujo poder decisório na adoção de acordos e na execução de políticas públicas foi
erosionando paulatinamente o princípio democrático e adonando-se do espaço reservado a legitimação das
decisões na vontade majoritária. Tratou-se, certamente, de um dos efeitos mais perversos do Estado benfeitor
que, no afã de virtualizar os espaços de liberdade com doses crescentes de igualdade, terminou afastando
amplas zonas da liberdade que pretendia conquistar. E continua o professor Sevilhano, a conformação
fortemente hierárquica dos partidos políticos permitiu que este processo se consolidasse, pois com freqüência,
as estruturas partidárias foram blindadas frente as aspirações democráticas da militância e da cidadania. Deste
modo, os mecanismos de representação da vontade popular ficaram obstruídos na medida em que se produziu
uma fratura entre representantes e representados, pois a cúpula dirigente dos partidos, com freqüência, deixou
de representar os interesses dos governados e se erigiu em porta-voz de um grupo reduzido, cada vez mais
isolado do resto da cidadania, com interesses específicos da classe: a classe política enquanto setor
diferenciado da sociedade. Esta mecânica de representação gerou uma fratura entre governantes e governados,
entre a elite dirigente, que ocupava cargos políticos, e os cidadãos, cujas possibilidades de acesso democrático
Por tudo isso, e especialmente pela impossibilidade de equilibrar os
vultosos gastos públicos – pois o Estado Social criou direitos à aposentadoria, ao seguro
desemprego, a saúde gratuita, ao ensino gratuito, a férias remuneradas, a um salário mínimo
ou mínimo vital e quando aumentou o número de velhos, o desemprego, o custo da
medicina, a carga do sistema de benefícios sociais se fez muito pesada. O Estado chegou ao
limite de suas possibilidades e já não era possível aumentar os tributos, dando início aos
debates sobre a extensão e os limites dos benefícios sociais. As demandas populares
crescentes e a evolução gradual do capitalismo mercantil e industrial para a prática de um
capitalismo financeiro e monopolista, sustentado por grandes corporações transnacionais,
levaram ao fracasso as políticas de bem-estar social, causado em grande parte pelo custo do
capital dirigido ao suporte dos gastos públicos que dificultava sua reprodução, aliado a
eclosão do mundo soviético, que permitiu o surgimento dos velhos princípios do
liberalismo, sob uma nova roupagem: o neoliberalismo. Neste sentido, lembra Martinez de
Pisón89, que um dos aspectos mais surpreendentes da teoria e do debate político nos últimos
tempos, é a coincidência entre conservadores, liberais, e a esquerda marxista na tese sobre a
crise e o fim do Estado Social. Mas, considerando que as funções do Estado Social foram
adequadamente cumpridas, isto faz com que seu desaparecimento não seja tão fácil, até
porque ainda são visíveis e chocantes os efeitos de seu desmonte, dando lugar a um Estado
mais débil e omisso.

1.3.5 O Estado Neoliberal

Como observamos, o Estado deve ser encarado como um processo


histórico a par de outros processos históricos. Bem lembra Miranda que o Estado, quer
como concepção jurídica ou política, quer como sistema institucional, não se cristaliza
nunca numa forma acabada; está sempre em contínua mutação através de várias fases de

ao poder ficaram de fato, drasticamente limitadas.(Julios-Campuzano. Alfonso (de). En las encrucijadas de la


modernidad. Política, Derecho y Justicia. Sevilla: Universidad de Sevilla. 2000, p. 129-171).
89
MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op. Cit.,
p. 75.
desenvolvimento progressivo (às vezes regressivo) para melhor atingir os fins que lhe
compõem. 90

O neoliberalismo é o modelo mais recente, ao menos em sua aplicação


real. Assim como no século XIX o liberalismo serviu para justificar a dominação do
comércio mundial pela Inglaterra, o neoliberalismo justifica a ascensão do poder comercial
dos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial. Prega, em resumo, uma
diminuição drástica das funções do Estado, centrado basicamente na segurança dos
indivíduos (entenda-se: propriedade), para permitir uma maior liberdade dos intercâmbios
comerciais, em escala mundial. É o capitalismo ‘desregulado’, sem fronteiras, sem pátria.
São exemplos as políticas levadas a efeito nos anos oitenta por Ronald Reagan nos Estados
Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra, de desmonte do Estado Social. Giddens91
apresenta como principais características do neoliberalismo: a) governo mínimo, b)
sociedade civil autônoma, c) fundamentalismo de mercado, d) mundo do trabalho
desregulado, e) aceitação da desigualdade, f) nacionalismo tradicional, g) Estado de bem-
estar como rede de segurança, h) modernização linear, i) fraca consciência ecológica e, j)
teoria realista da ordem internacional.

A oposição ao Estado de Bem-Estar é uma de suas principais


características. O Estado Social é visto como a origem de todos os males, assim como foi o
capitalismo para a esquerda revolucionária. “Lembraremos o Estado de Bem-estar com o
mesmo tom depreciativo que hoje lembramos da escravidão como meio de organizar um
trabalho eficaz e motivado”92. Isto porque, segundo Marsland,93 o Estado de Bem-Estar
inflige um dano enormemente destrutivo em seus supostos beneficiários: os fracos, os
marginalizados, os excluídos..., pois debilita o espírito empreendedor e valente dos homens
e mulheres e põe uma carga de profundidade de ressentimento explosivo sob os
fundamentos de nossa sociedade livre. Cruz94 lembra que esta crítica possui dois aspectos:
um deles é o gasto público gerado pela intervenção estatal. O financiamento da seguridade

90
MIRANDA. Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Op. Cit. p. 23.
91
GIDDENS, Anthony. La tercera via. La renovación de la socialdemocracia, Madrid: Taurus, 1999, p 18.
92
“Um escritor”, citado por Giddens, Anthony. Op. Cit. p. 24.
93
MARSLAND, D. Welfare or welfare state? Basingstoke: Macmillan, 1996, p. 197.
94
CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. 3ª ed. Curitiba: Juruá. 2005. p.
234-235.
social absorve a poupança interna impedindo sua utilização na atividade produtiva. O outro
aspecto é mais filosófico, já que entende o Estado de Bem-Estar como uma ameaça à
liberdade individual ou, pelo menos, inibidor da livre iniciativa. Os cidadãos, ao se
acostumarem com a ampla proteção do Estado, perdem a capacidade de competição e o
estímulo ao trabalho e tornam-se menos aptos para assumir os riscos e obterem vantagens
num mundo competitivo.

Na década de noventa a receita neoliberal foi imposta aos países


periféricos e semi-periféricos, como condição inevitável de modernização, de avanço, de
ingresso no mundo desenvolvido, portanto, de sobrevivência. Para Correas95, “o
neoliberalismo se parece e se diferencia do velho liberalismo. Se parece quando ambos
usam a mesma prestigiosa palavra – liberdade. Mas se diferenciam quando aquele a usava
para referir-se a todas as manifestações da vida humana, a liberdade de propriedade em
primeiro plano, é claro. Enquanto o modelo contemporâneo a usa exclusivamente para falar
de comércio e de circulação ampliada de capital”.

O neoliberalismo, que tem sido apresentado como uma teoria econômica,


como utopia, como ética ou como filosofia do ser humano, é, na realidade, uma filosofia
que se apresenta como teoria econômica, com todo o valor científico que o mundo atual
atribui a economia. É uma utopia, mas que pretende estar fundamentada na ciência pura.
Defende a liberdade de mercado por entender que somente esta assegura a justiça nas
relações humanas; estabelecida na liberdade de negociação, todos os problemas serão
superados. Assim tende a destruir os coletivos, que servem para defender aos indivíduos. A
meta é deixar o indivíduo isolado no mercado “é cada um por si”, daí seu ataque ao Estado.
Para o neoliberalismo o ideal seria um Estado reduzido a função de polícia: que se limita a
defender os direitos de propriedade. Como comumentemente dizia Reagan: “Não temos
problemas com o Estado, mas o Estado é o problema”, Entretanto nos lembra Martínez de
Pisón96, que as políticas neoliberais de desmantelamento do Estado Social produziram, sem
dúvida, um alto desenvolvimento econômico nos países ocidentais, mas, ao mesmo tempo,
um vertiginoso aumento da desigualdade social.

95
CORREAS, Óscar. “El neoliberalismo en el imaginario juridico” In Direito e Neoliberalismo. Elementos
para uma leitura interdisciplinar. Agostinho Ramalho Marques Neto et all, Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 7.
Para Comblin97, obstinado crítico do neoliberalismo, “a liberdade de
mercado não significa que os Estados Unidos querem abrir o seu mercado a todas as
nações, mas que todas as nações devem abrir seus mercados aos Estados Unidos”.
Enquanto a receita imposta aos demais Estados, se refere principalmente a desestatização
de empresas públicas, entregando-as à iniciativa privada; a privatização também dos
serviços públicos como aposentadoria, saúde, educação transportes, correios; redução ou
supressão dos sindicatos e organizações de trabalhadores e desintegração de associações
independentes. Para o modelo, segundo Comblin, somente o indivíduo isolado é realmente
livre.

O modelo chega à América Latina na década de 90 como um furacão.


Liberto dos regimes autoritários, os povos americanos se viram envolvidos por governos
populistas que após uma série de fracassos e aventuras econômicas levaram a uma inflação
altíssima, ao desemprego e a recessão, causando perturbações de toda ordem. A população,
preocupada e nervosa, busca tranqüilidade e estabilidade e, em eleições diretas e
democráticas manifesta seu apoio ao novo modelo. Assim ocorreu com a eleição e reeleição
de Fujimori, em Peru98, eleição e reeleição de Menem, na Argentina, eleição e reeleição de
Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, eleição de Jorge Batlle no Uruguai99, inclusive a
eleição de Vicente Fox100 no México, isto somente para citar os principais Estados do

96
MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op. Cit.
p. 83.
97
COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes, 2000, p.
18-24.
98
Depois da renuncia de Fujimori, foi eleito, em 03 de junho de 2001, Alejandro Toledo, obstinado defensor
do livre mercado, da política neoliberal e da globalização.
99
O Uruguai era a única exceção na onda de privatizações que varreu a América do Sul nos anos 90. Em 19
de janeiro de 2001, o presidente Batle publicou por decreto a chamada Lei de Urgência, feita para
desregulamentar setores da economia e desmontar os monopólios nas mãos do Estado. A lei abriu o capital
das estatais a investidores privados, inclusive estrangeiros e distribuiu concessões públicas em áreas como
telefonia, combustíveis, portos, ferrovias e cassinos. E, não se pode esquecer que, diferentemente de muitos
países as estatais uruguaias eram motivo de orgulho da população, a maioria possuía índices de aprovação
superior a 70%. (“Um país a Venda”. In Revista Veja, Ed. 07 de março de 2002, p.56).
100
No México, o Partido Revolucionário Institucional – PRI manteve-se no poder por 71 anos, embora
acusado de inúmeras fraudes eleitorais. Trata-se de um partido que se proclama centro-esquerda, entretanto
seus últimos governantes, em especial Ernesto Zedillo (1994-2000), sempre adotaram políticas econômicas
neoliberais. Em 02 de julho de 2000, foi eleito Vicente Fox, pelo partido de Ação Nacional (centro-direita).
Embora Fox tenha demonstrado simpatia pelos rebeldes Zapatistas (grupo guerrilheiro de tendência marxista),
e ser um político comprometido com as causas sociais, em seus discursos sempre deixou muito claro sua
tendência de manter a política econômica do país – liberal.
continente. Para Comblin101, este apoio popular tem várias razões, e cita especialmente a
frustração provocada pelos governos populistas e porque na América Latina as expectativas
populares são fracas; os pobres não esperam nem exigem muito das autoridades, o Estado
de Bem-Estar nunca foi completo. Mas estas conclusões valem para América Latina e ainda
assim com reservas, não justificam a eleição de Batle no Uruguai, onde a economia sempre
foi estável nem a eleição de neoliberais no Chile, país com os melhores índices econômicos
da América Latina102; tampouco justificam o expressivo apoio popular ao neoliberalismo na
Europa.

No início deste novo século, a América Latina encontra-se em uma


encruzilhada e se divide. De um lado governos ditos de esquerda - como Brasil, México,
Colômbia e Uruguai – que, na busca de estabilidade financeira e desenvolvimento, tem
adotado políticas ortodoxas tipicamente liberais: ajuste e equilíbrio fiscal, atração de
investidores estrangeiros, aumento da exportação, redução de despesas públicas..... De
outro lado, também sob um intenso clamor popular, ressurgem os caudilhos
populistas/nacionalistas, como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia,
Ollanta Humala no Peru, Rafael Correa no Equador e até mesmo Kirchner na Argentina.

Contudo, parece que a ideologia neoliberal tende a prosperar e tornar-se a


ideologia dominante neste novo século, talvez com uma pequena preocupação social, face
às pressões de grupos organizados, mas não se vislumbra num futuro próximo qualquer
modelo alternativo. Assim também pensa George103 quando afirma possuir sérias dúvidas
de que, nas próximas décadas, um sistema político-econômico mundial alternativo possa
competir razoavelmente com a economia de mercado global, quer no terreno teórico quer
no prático. O que ocorre é que as pessoas, em sua maioria, crêem fervorosamente que
podem melhorar sua vida. Assim, o capitalismo não é uma mera doutrina econômica ou um

101
COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Op. Cit. p. 72.
102
Desde a década de 70, enquanto os regimes de força instalados na América Latina (Brasil, Argentina,
Uruguai, Paraguai, Bolívia y outros) apregoavam uma política protecionista e nacionalista, o Chile de
Pinochet se abria (economicamente) ao mundo. Com a saída do ditador, os governos democráticos que o
sucederam, mantiveram a política econômica neoliberal. Apesar do sonho frustrado de converter-se em um
tigre econômico, as sinais de prosperidade no Chile são visíveis: Seu PIB cresce em media 7% al ano desde o
inicio dos anos 90; neste período mais de 2 milhões de chilenos deixaram a linha de pobreza, o que representa
uma ascensão social de 15% da população; o analfabetismo caiu de 6,3% a 4,5%, a mortalidade infantil foi
reduzida em 1/3 do que era na década de 80 e a esperança de vida equivale a do primeiro mundo (75 anos).
103
GEORGE, Susan. Informe Lugano, Barcelona: Içaria-Intermón Oxfam, 2001, p. 22
logro intelectual, é sim uma forma revolucionária e milenar e uma fonte de esperanças. A
aspiração ao bem estar material aqui e agora é mais poderosa – por que não dizer mais
veraz – que as promessas do comunismo ou da religião, que prometem a gratificação em
um radiante futuro ou em outra vida. Nestes confrontos, a reação e o estrondo do mercado
sempre ganhará dos coros terrenos ou celestiais do paraíso prometido104. Ao menos, um
pouco nos tranqüilizam e nos confortam as palavras de Bobbio: “o Estado Liberal é o
pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado Democrático”, para concluir que “é
pouco provável que um Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da
democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz
de garantir as liberdades fundamentais”.105 Neste sentido também Reynold afirma que “O
liberalismo e a democracia nasceram juntas. Ele é o espírito, ela é a forma. Só se separam
artificialmente, graças às confusões sobre os sentidos dos dois termos, às distorções
infringidas à história”. 106

Assim, com uma política neoliberal dominante, com a internacionalização


cada vez más acelerada da economia e a interdependência mundial, torna-se volátil a
tradicional definição de soberania estatal, sendo que os governos detêm o poder de fato
muitas vezes menor que o dos grandes conglomerados industriais e financeiros, ficando a
mercê das ondas de investimentos destes oligopólios, completamente reféns do ritmo do
mercado o que tem levado muitos países a bancarrota.

Evidentemente que isso não significa o fim do Estado como apregoou


Engels, independentemente do juízo de valor positivo ou negativo que tenhamos do Estado,
sendo ele um mal necessário ou não. Mas, parece-nos que a sociedade civil, sob a forma de
sociedade de livre mercado, segue com a pretensão de restringir os poderes do Estado ao
mínimo necessário. Neste sentido, obra moderna de notável impacto é Anarchy, State and
Utopia, de Robert Nozick, que utiliza a teoria do contrato social para questionar a
legitimidade do Estado moderno, que utiliza seu aparato coercitivo-jurídico para conduzir
os cidadãos e violar seus direitos. Tece severas críticas aos modelos constituídos que, fruto

104
Idem, p. 23.
105
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma defesa das regras do jogo. Trad.de Marco Aurélio
Nogueira, São Paulo: Paz e Terra, 5ª ed. 1992, p. 20.
106
In CORRÊA, Oscar Dias. O Sistema Político-Econômico do Futuro: O Societarismo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1994. p. 36.
do contrato social, o desrespeitam, em detrimento das liberdades individuais. Defende a
idéia de um Estado-mínimo, com a única função de proteger os direitos individuais e não
para obter condições de igualdade entre os indivíduos, nem mesmo para alcançar objetivos
políticos de uma maioria, com a limitação dos direitos individuais. Seguindo o pensamento
de Locke, propõe um direito natural reduzido a “inviolabilidade da pessoa”. Pretende
limitar as possibilidades e faculdades do Estado, que não possui o direito de erigir-se em
estado socializador de bens nem mesmo promotor da justiça social, uma vez que ele não
possui possessão natural sobre nada ou ninguém, pois todos os títulos residem
exclusivamente no ser humano.
Em suas conclusões Nozick afirma que somente um Estado mínimo respeita os
direitos invioláveis das pessoas, com a dignidade que isso pressupõe. “Tratando-nos com
respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite individualmente ou em conjunto com
aqueles que escolhemos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e nossas
concepções de nós mesmos…”107. Em seu entendimento qualquer outro modelo de Estado,
que não o Estado-mínimo, viola os direitos da pessoa. Para Nozick os direitos naturais têm
sempre absoluta prevalência sobre os poderes do Estado. Assim, “somente um Estado-
mínimo é moralmente legítimo, inspirador e certo ... nenhum Estado mais extenso poderia
ser moralmente justificado, pois qualquer um deles violaria (violará) os direitos do
indivíduo”.108 Em resumo: todo Estado que ultrapasse as fronteiras do Estado mínimo é
imoral e ilegítimo; em termos práticos, redistribuir a riqueza é um ato imoral. Quanto aos
direitos humanos são os direitos de liberdade, mas sem garantia de defesa nem proteção. A
jurisdicidade destes direitos somente acontece através da organização política, que não é
produto de um hipotético contrato, mas de uma complexa e progressiva organização por
parte de grupos que vão introduzindo instituições de proteção jurídica com sucessiva
complexidade, até chegar a formação do Estado que, formalmente, não é mais que um
organismo de proteção e segurança mas todo o conteúdo dos direitos humanos deriva da
situação pré-estatal e está fundado na radicalidade do indivíduo e de sua liberdade.

Estado Liberal Estado Social Estado neoliberal

107
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1994. p. 357.
108
Idem
Estado Omisso Estado Interventivo Estado Mínimo
Sociedade Livre Sociedade Assistida Sociedade Autônoma
Economia de Mercado Intervenção Estatal na Economia de mercado
Nacional Economia global
A desigualdade é natural Redução da desigualdade Aceitação da desigualdade
social
Função do Estado: Função do Estado: Bem Função do Estado: Garantias
Segurança Estar Social Mínimas
Direito Natural Direito nacional-social Direito Internacional
Lex Mercatória

1.4. A Cidadania

De uma maneira geral se define cidadania como a qualidade ou o direito


do cidadão; e cidadão, como o indivíduo no gozo de direitos civis e políticos de um Estado.
A idéia de cidadania está sempre ligada a um determinado Estado, e em geral expressa um
conjunto de direitos que dá ao indivíduo a possibilidade de participar ativamente da vida e
do governo de seu Estado. Como ensina Guerra: “é o conjunto de condições que o direito
político de um Estado estabelece para que as pessoas naturais possam exercer, dentro dele,
os direitos políticos”.109 O que se verifica, é que cidadania está muito próxima do
nacionalismo, até porque a forma de se adquirir cidadania é pela nacionalidade, que é um
conceito jurídico, enquanto aquele seria um conceito político. Para Silva 110 cidadania é
atributo de pessoa integrada na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de
participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política. Nesta linha diz
Carracedo: “Por cidadania entende-se habitualmente o reconhecimento por parte do Estado
aos indivíduos que o integram, do direito ao gozo das liberdades fundamentais, em especial
dos direitos civis e políticos” .111 É esta capacidade política e juridicamente reconhecida
que transforma indivíduos em cidadãos.

A definição dada por Manzini-Covre é ampla e vaga: “cidadania significa


ter direitos e deveres, ser súdito e ser soberano” .112 Para Dimenstein é “o direito de viver

109
Apud CARVALHO, A. Dardeau de. Nacionalidade e Cidadania. São Paulo: Freitas Bastos. 1956. p. 295.
110
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20a ed. 2001. São Paulo: Malheiros p.
345.
111
CARRACEDO. José Rubio. Ciudadanía, Nacionalismo y Derechos Humanos. Madrid: Trotta. 2000. p. 10.
112
MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense. 7a ed. 1998. p. 9.
decentemente”.113 Bem lembra Peirano114, que os próprios cientistas políticos encontram
dificuldades para definir cidadania. Mesmo reconhecendo o fenômeno como resultado de
um processo histórico, há uma tendência à simplificação, que discorre sobre os direitos do
cidadão.115

Não há como conceituar cidadania sem se considerar o contexto social a


que se está referindo e, com isso a mesma adquire características próprias que se
diferenciam conforme o tempo, o lugar e as condições socioeconômicas. Araújo lembra que
“o status de cidadão se contrapõe geralmente a outra condição que varia segundo as épocas
e lugares. Ser escravo, estrangeiro ou mulher, tem sido em diferentes épocas o ‘oposto’ de
ser cidadão”.116 Ocorre que o conceito de cidadania nasce, historicamente, como o oposto
de súdito, mas sem a aspiração de incluir a todas as pessoas da sociedade. Pelo contrário,
referia-se aos homens (varões) livres, proprietários e cabeças de família. Por isso diz Warat
que, falar em cidadania, em qualquer época, significa fazer referência aos que tem opinião,
pois ser cidadão é ter voz, poder opinar e decidir – o que exclui a maioria (os pobres) e
grupos de minorias (étnicas-culturais-nacionais). Para ele “a cidadania em todos os tempos
sempre foi uma classe VIP” 117.

A principal dificuldade ao tratar-se de cidadania é o caráter pluriforme do


próprio termo, dada a variedade de dimensões espaciais e funcionais que se pode
desenvolver, assim como as situações empíricas que designa. E, como conseqüência das
diferentes concepções políticas há uma falta de clareza sobre o significado de cidadania.
Para Dulce118 isso ocorre porque o conceito de cidadania não corresponde a uma categoria

113
DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de Papel. 20a ed. São Paulo: Ática. 2002. p. 22.
114
PEIRANO, M.G. “Sem lenço e sem documento. Reflexões sobre a cidadania no Brasil”. In Sociedade e
Estado. Brasília: UnB. 1986.
115
Como para Dimenstein: “Cidadania é o direito a ter uma idéia e poder expressá-la. É poder votar em quem
quiser sem constrangimento. É processar um médico que age com negligência. É devolver um produto
estragado e receber o dinheiro de volta. É o direito de ser negro, índio, homossexual, mulher sem ser
discriminado. De praticar uma religião sem ser perseguido”. DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de Papel.
Op. Cit. p. 22.
116
ARAÚJO, J. A Estévez. “Una Nueva Ciudadania” In Para que algo se cambie en la Teoría Jurídica.
MARTÍN, Nuria Belloso (coordinadora) Burgos: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Burgos.
1999. p. 138.
117
WARAT. Luis Alberto. “Ciudadania y Derechos Humanos de la Otredad”. In MARTIN, Nuria Belloso.
Los Nuevos Dasafios de la Ciudadania. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Univesidad de Burgos. 2001.
Op. Cit. p. 9.
118
DULCE, Maria José Fariñas. Globalización, Ciudadania y Derechos Humanos. Madrid: Instituto de
Derechos Humanos “Bartolomé de las Casas”. Universidad Carlos III de Madrid: Dykinson. 2000. p. 37
natural, se trata de uma construção metafórica que surge como conseqüência de processos
históricos de negociação, mediante a qual se estabelece um duplo vínculo de caráter
abstrato entre os ‘cidadãos’ e sua organização jurídico-política: de um lado o Estado
protege seus cidadãos, de outro, os cidadãos participam da criação e da direção da atividade
jurídica e política do Estado.

Na verdade, a idéia de cidadania remonta às primeiras comunidades


sedentárias e define quem é, e quem não é membro de uma determinada comunidade. As
sociedades grega e romana, ainda que escravagistas promoveram em suas cidades um certo
exercício de cidadania. Na Grécia existia o reconhecimento do direito do cidadão de
participar ativamente na vida da cidade, de onde se podiam tomar decisões políticas. Este
direito era restrito a um pequeno número de pessoas, pois que no modelo grego somente se
considerava cidadãos, os varões adultos cujos progenitores por sua vez haviam também
sido cidadãos, o que excluía evidentemente, as mulheres, os demais filhos varões, os
escravos e os estrangeiros. Assim, cidadãos livres e iguais, era somente um número ínfimo
de homens gregos e não os demais habitantes da cidade. Nas instituições do Império
Romano não havia referência a um modo de vida, mas a uma relação bilateral estabelecida
entre o indivíduo e a sociedade. A cidadania romana continha o pressuposto normativo
básico da condição civil moderna: reconhecia pertencer o individuo à comunidade em
virtude de uma relação bi-lateral de direito entre o cidadão e o Estado, excludente na
medida em que diferenciava legal e politicamente o cidadão do não cidadão no entanto,
inclusiva, no sentido que convivia com todas as identidades coletivas participantes na
comunidade civil que não deviam ser necessariamente identidades universalistas.119

No período que vai da queda do Império Romano ao século XII


predomina a sociedade feudal, eminentemente rural; não há, pois, qualquer manifestação de
cidadania, uma vez que esta condição está relacionada com a vida na cidade e na
capacidade dos indivíduos exercerem direitos e deveres em sua comunidade. Mesmo
quando a Europa inicia os tempos modernos, a partir do séc. XVII, a divisão de classes
permanecia e com ela a divisão de direitos. Neste sentido lembra Dallari120 que a própria

119
MARTIN, Nuria Belloso. “Un’approssimazione alla cittadinanza sociali: alcune proposte”. In Annali del
Seminario Giuridico. 2001-2002. p. 665.
120
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna. 1999. p. 13.
Constituição francesa de 1791, feita pouco depois da Declaração de Direitos de 1789,
contrariando a afirmação de igualdade de todos, estabeleceu que somente os cidadãos
ativos poderiam votar e serem eleitos para a Assembléia Nacional. E, para ser cidadão
ativo, era necessário além de ser francês, ser do sexo masculino, proprietário de bens
imóveis e ter uma renda mínima elevada. As mulheres, os trabalhadores e os pobres foram
excluídos da cidadania ativa. Então, cidadão poderia definir-se simplesmente como
membro de uma comunidade. Era a cidadania ativa que lhes atribuía direitos. O mesmo
ocorria na Espanha. Até por volta de 1878, somente eram reconhecidos como cidadãos
eleitores os varões maiores de 25 anos, com dois anos de residência fixa num determinado
lugar e que pagassem a Fazenda Pública o mínimo de 25 pesetas anuais como imposto
territorial ou 50 como imposto industrial. Isto atingia a 5,1% da população121.

Os teóricos liberais, seguidores principalmente de Hobbes, Locke,


Montesquieu e Rousseau, fundamentaram a cidadania na igualdade e no exercício da
liberdade. Ainda que divididos em duas correntes distintas, ambas mantém os mesmos
fundamentos, atribuindo-lhes apenas pesos diferentes. Os liberais puros ou neoliberais
defendem mais o papel da liberdade individual na sociedade com a conseqüente limitação
dos âmbitos de atuação do Estado, enquanto que os liberais igualitários ou igualitaristas,
tentam equilibrar o papel atribuído à liberdade e conciliá-la com a igualdade. Em resumo,
para os liberais, cidadão é o indivíduo que tem liberdade e todos os cidadãos são iguais.

Influenciados principalmente pela teoria Marxista os teóricos socialistas


priorizam os direitos econômicos e sociais (saúde, educação, moradia, trabalho...) Para
Marx, os direitos do cidadão não são universais, mas direitos históricos da classe burguesa
ascendente em sua luta contra a aristocracia. Comungando o pensamento do sofista
Trasimaco para quem “as leis eram criadas pelos homens ou grupos que estavam no poder,
com o objetivo de fomentar seus próprios interesses” e que portanto justiça “não é senão o
que convém ao mais forte”122, para Marx o direito é apenas um conjunto de normas
impostas pelo Estado como instrumento de interesse das classes dominantes. Para criticar
radicalmente o Estado liberal Marx contrapõe ao sujeito monumental que é o Estado, outro

121
MORENO, Isidoro. “Derechos Humanos, Ciudadania e Interculturalidad”. In DÍAZ, Emma Martín y
SIERRA, Sebastian de la Obra. Repensando la Ciudadania. Sevilha: Fundación El Monte. 1998. p. 21.
sujeito monumental: a classe operária. Mais tarde, com Lênin, a classe operária dá
surgimento a outro sujeito monumental: o partido operário. Mas como ensina Santos123: “se
nos termos em que foi formulada, a subjetividade coletiva da classe tendeu a destruir a
subjetividade individual dos seus membros, a titularidade política do partido, nos termos
em que foi formulada, tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania”. Na
verdade a tensão entre a subjetividade individual e a cidadania se resolveu pela destruição
de ambas.

Existem também os pensadores comunitaristas. Para estes, o cidadão das


sociedades complexas não pode ser entendido à margem de suas vinculações sociais, que o
fazem sujeito. São os valores morais, culturais ou religiosos os que devem determinar as
políticas públicas e o ordenamento jurídico do Estado. Defendem, portanto, a primazia do
coletivo sobre o individual; “reclama la primacía de la esfera cultural para entender el
orden político” 124. Para Ruiz Miguel125, as características básicas desta corrente são duas:
a primeira é o princípio aristotélico da prioridade do todo sobre as partes, traduzindo: da
sociedade sobre o cidadão; e a segunda se refere a suas crenças, a presunção de que as
comunidades humanas são diferentes e estão submetidas a culturas específicas e, portanto a
critérios morais particulares e distintos. Para Martin, “uma das teses mais importantes dos
comunitaristas, é precisamente que a salvação e a realização do individual, depende da
salvação e realização do coletivo”126.

Há, ainda, uma concepção republicana de cidadania. Cidadão é o


indivíduo que participa ativamente na configuração do futuro de sua sociedade, através do
debate e da participação e na tomada de decisões políticas. Então, “republicanismo significa
autogoverno de cidadãos iguais que em sua gestão política, colocam o bem comum acima

122
MAGALHÃES. José Luiz Quadros de. Direitos Humanos. Sua história, sua garantia e a questão da
indivisibilidade. São Paulo: Juarez de Oliveira. 2000. p. 9.
123
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O Social e o Político na pós-modernidade. São Paulo:
Cortez. 1999. p. 242.
124
“I pensatori comunitaristi hanno sottolineato che il cittadino delle società complesse non può essere
inteso al margine dei vincoli sociali che lo constituiscono come soggetto. Sono questi valori morali, culturali
o religiosi quelli che devono determinare le politiche pubbliche e il tessuto normativo di queste società”.
MARTÍN, Nuria. “Un’approssimazione alla cittadinanza sociale: alcune proposte. In Annali del Seminario
Giuridico. 2001-2002. p. 675.
125
RUIZ MIGUEL, A. Derechos Humanos y Comunitarismo. In Doxa, 12 (1992). p. 87.
126
MARTÍN, Nuria. “Un’approssimazione alla cittadinanza sociale: alcune proposte. In Annali del Seminario
Giuridico. 2001-2002.
dos interesses particulares”. Em linhas gerais Martin nos apresenta duas idéias básicas do
núcleo do republicanismo. A primeira é a concepção antitirânica, contrária a toda
dominação, pois reivindica a liberdade e a vida em um Estado livre, assim como a defesa de
certos valores cívicos como a coragem, a honestidade, o patriotismo, a prudência, a
igualdade, o amor, a justiça, a solidariedade, a nobreza, enfim, o compromisso com a sorte
dos demais. A segunda idéia é que o republicanismo oferece novas formas de organizar a
sociedade. O que se observa é que na concepção republicana, toda idéia de cidadania está
centrada na participação política do indivíduo. Cidadão é aquele que tem uma inserção na
comunidade política, não há referências aos demais princípios e garantias fundamentais.127
O que temos aqui é um cidadão que somente ocupa o lugar de cidadão quando em uma fila
para exercer seu poder político, que como diz Warat é simplesmente o cínico exercício de
votar128. Neste sentido, com propriedade lembra Silva: “Cidadão, no direito brasileiro, é o
indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas
conseqüências”129. Carvalho diz que, no Brasil, cidadania designa uma faculdade específica
do nacional: a faculdade de gozar e exercer direitos políticos. “Cidadão, portanto, seria o
brasileiro que tem direitos políticos”130. Por fim, veja-se a garantia constitucional expressa
no inc. LXXIII do artigo 5º “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular
que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural...”. Como
se comprova a cidadania? O parágrafo 3° da lei n° 4.717 de 29.06.1965, esclarece: “a prova
da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral ou com documento
que a ele corresponda”.

Como se observa há uma grande dificuldade em definir-se ‘cidadania’,


pela ambigüidade e ideologia que o termo encerra. Assim ficamos com a opinião sustentada
por Garcia y Lukes131 que consideram a cidadania como uma conjunção de três elementos:

127
Idem p. 25.
128
WARAT. Luis Alberto. “Ciudadania y Derechos Humanos de la Otredad”. In MARTIN, Nuria Belloso.
Los Nuevos Dasafios de la Ciudadania. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Univesidad de Burgos. 2001.
p. 9.
129
SILVA, José Afonso da. Curso de Direitos Constitucional Positivo. 20ª ed. São Apulo: Malheiros. 2001. p.
345.
130
CARVALHO, A. Dardeau de. Nacionalidade e Cidadania. São Paulo: Freitas Bastos. 1956. p. 294.
131
GARCIA, S. y LUKES, S. Ciudadania: justicia social, identidad y participación. Madrid: Signo XXI,
1999. p. 1.
(1) pertencer a uma determinada comunidade política (normalmente um Estado); (2)
possuir direitos desta comunidade, assim como a obrigação de cumprir certos deveres, e (3)
contribuir na vida pública desta comunidade através da participação.
2. ASPECTOS ESTRUTURAIS DO ESTADO

2.l Elementos do Estado

A organização política moderna dos povos europeus nos levou a criação do


Estado, em uma concepção que leva em conta três elementos básicos: povo, território e
soberania. Gruppi132 indigita o Estado como “a maior organização política que a
humanidade conhece”, sendo “um poder político que se exerce sobre um território e um
conjunto demográfico” , por isso estes elementos também são chamados de pressupostos de
existência do Estado, utilizados para determinar se uma organização pode ser considerada
como Estado ou não, bastando, portanto, que este possua tais pressupostos.133

Desta forma, há três dimensões do Estado: o povo como dimensão humana,


o território como dimensão geográfica e o governo como dimensão política.134 Os dois
primeiros são considerados elementos materiais e a soberania um elemento formal.

Contudo, deve-se anotar a advertência de Dallari135: “existe uma grande


diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto do número”. A doutrina é
pacífica quanto aos elementos materiais, restando ao formal a controvérsia, pois este se
refere ao poder exercido pelo Estado, que subordina povo e território ao ordenamento
jurídico e sobre estes se estabelece o vínculo jurídico e político. Assim, na verdade, este
elemento seria um sistema de vínculos, que ora é denominado de soberania, de poder, de
governo e até de ordenamento jurídico. Quanto ao número, há quem eleja um quarto
elemento, que seria a finalidade. Filomeno segue esta corrente afirmando que “não se
admite a existência do Estado sem um fim específico: o bem comum”136. Kelsen137, além
do povo, do território e do poder, identifica o tempo como um elemento do Estado.

132
GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel. As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e
Gramsci. 8.ª ed. Porto Alegre e São Paulo: L&PM Editores, 1987, p. 7.
133
Roberto Luiz Silva alerta que são estes elementos que distinguem um Estado de uma Organização
Internacional. SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 164.
134
FRIEDE, Reis. Curso de Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e relações
internacionais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.49
135
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 71
136
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 82.
Povo

O povo consiste na totalidade dos seres humanos que habitam o território


de um Estado, que formam uma unidade. Assim como o território do Estado é um só, assim
é o povo, os habitantes do Estado, ambos constituindo uma unidade.138

Os termos população e povo são claramente distintos139, pois o primeiro é


constituído pelo conjunto de todos os habitantes do território de um Estado, independente
do vínculo político, enquanto que o segundo consiste no conjunto de cidadãos, ou seja, os
habitantes com vínculo político com o Estado. Da mesma forma, Figueiredo 140 distingue
povo e população, no qual este incluiria tanto os estrangeiros quantos os nacionais
residentes, enquanto que o conceito de povo, para o autor, exclui os estrangeiros, visto que
estes não possuem direitos políticos. Sob esta ótica tem-se o povo como o conjunto dos
cidadãos, que por sua vez é todo o indivíduo a quem se atribui direitos e deveres.

Junto aos termos povo e população surgiu o termo “Nação”, que possui
dois prismas: o primeiro seria em sentido cultural, onde há uma identidade desta natureza,
formando um laço entre os seus componentes, mas não se firmando vínculos jurídicos ou
políticos; o segundo em uma noção jurídica e política, onde tais laços culturais, ultrapassam
as relações sociais, pois além de se identificarem entre si, formam uma identidade com o
Estado a que pertencem e estabelecem vínculos jurídicos e políticos.141

Fazer parte de uma nação, em seu sentido jurídico e político, é o que


condiciona a cidadania de um individuo, tornando-o cidadão de um Estado. Segundo
Figueiredo142 são dois os critérios utilizados pelos Estados para determinar a nacionalidade:
o jus soli e o jus sanguinis. Ou seja, adquiri-se a nacionalidade nascendo no território de
um Estado (jus soli), ou por laço sangüíneo, com o nacional de um país (jus sanguinis).

137
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 314 et seq.
138
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 334.
139
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. Op. cit.,p. 65.
140
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 38.
141
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p.. 95-96.
142
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 39.
Quem assim o determina é o ordenamento do Estado, que também pode estabelecer a
naturalização, que é o processo que concede a nacionalidade a um estrangeiro.

Desta forma, o povo é determinado pela nacionalidade, que condiciona os


direitos políticos e o vínculo com o Estado. Portanto, assim constituem-se a nacionalidade e
a cidadania, onde a nacionalidade é a identidade com o Estado, estabelecendo o vínculo
jurídico, enquanto que a cidadania compreende a capacidade do exercício deste vínculo. O
conceito de povo engloba tanto a nacionalidade quanto a cidadania

Território

O elemento espacial do Estado é denominado território, que seria “a base


física, a porção do globo por ele ocupada, que serve de limite à sua jurisdição e lhe fornece
recursos materiais” 143. É sobre esta base física que se constituem os demais elementos do
Estado, sobre o qual se organiza a sociedade política e juridicamente, e é dentro de seus
limites que se estabelece a ordem política e jurídica de um povo, através do Estado.
Bastos144 assevera que “no território de cada Estado vige, tão somente, a sua ordem
jurídica.” Diante disto, não é lícito a um país estrangeiro “praticar atos coativos dentro do
território nacional”. É o que se chama de “impenetrabilidade da ordem jurídica estatal”,
expressa no princípio da territorialidade do ordenamento jurídico, que se infunde sobre todo
o território nacional. Por isto Kelsen145 entende este elemento como a esfera territorial de
validade da ordem jurídica nacional.

Assim, “o aspecto da autoridade estatal é o mais importante no estudo do


território” 146, pois o território firma os limites do poder estatal no espaço e também quanto
ao povo. Primeiro pois é através da definição das fronteiras que se estabelecem as relações
internacionais de vizinhança e definindo, portanto, os primeiros deslindes da segurança
internacional, bem como de segurança interna. Segundo pois toda pessoa se encontra no
território de um Estado e assim acaba por se sujeitar à autoridade do Estado, pois, em tese,

143
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p.37.
144
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 13.
145
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000,Op. Cit. p. 299.
146
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001,Op. Cit. p. 36.
onde há um território há um poder estatal147. De outra forma, deve-se lembrar que o poder
do Estado também se dá sobre todos os que estão em seu território,na definição da
nacionalidade, quando se adota o critério do “jus soli”.

O território não se restringe à superfície148, podendo se observar sete partes que o compõe:
solo; subsolo; espaço aéreo; mar territorial; embaixadas; navios e aviões militares em
qualquer lugar; navios e aviões de uso comercial ou civil em espaço não pertencente a outro
Estado.149

O solo seria delimitado pelas fronteiras internacionais e pelo mar. O solo


delimita também o subsolo, que seria a camada subjacente do solo, e o espaço aéreo, área
sobrejacente. Horizontalmente o espaço aéreo é delimitado pelas fronteiras e o pelo mar,
conforme os limites do solo, porém, verticalmente esse limite não existe, o que traz
questões como a da “superveniência dos satélites artificiais”150 sobrevoando o espaço aéreo
sem autorização e sem se submeter a soberania do Estado.

O mar territorial é a extensão do solo sob o mar, ou, como nas palavras de
Bastos, “a plataforma continental é aquela porção do solo marinho que apresenta idêntica
constituição geológica à dos terrenos não coberto pelas águas”.151 Ainda que delimitado tal
conceito, a delimitação do mar territorial constitue uma polêmica. Antigamente o critério
seria o alcance das armas (“usque armorum potestas”), tendo o poderio bélico como
delimitador concreto de tal distância. Hoje isto não é possível, sobretudo pois as armas já
não encontram fronteiras, cabendo aos tratados e ordenamentos jurídicos nacionais definir o
alcance da plataforma continental. No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro esta
questão é regulada pela lei n.° 8.617 de 4 de janeiro de 1993.

As embaixadas também representam o solo de um Estado. Roque152


indigita que “o local da embaixada é considerado território do país dessa embaixada;
qualquer pessoa que entrar no recinto de uma embaixada, situa-se no país dela, inclusive as

147
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 36.
148
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 13.
149
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003,p. 82.
150
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 14.
151
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986,Idem. p.
15.
autoridade do país creditado.” Ou seja, mesmo estando em um outro país, o local onde se
estabelece uma embaixada é reconhecido como território do Estado desta embaixada,
submetendo-se ao ordenamento jurídico. Portanto, dentro de um país, toda embaixada é
considerada território de outro Estado.

Da mesma forma como as embaixadas, os navios e aviões militares em


qualquer lugar do globo representam território do Estado de sua bandeira, ou seja, a que
pertencem. Com relação aos navios e aviões de uso comercial ou civil em espaço, estes se
submeteram ao ordenamento jurídico do Estado em que estiverem situados, caso sua
navegação seja em território internacional, estarão submetidos ao ordenamento do Estado
de origem e representarão território deste Estado.

Finalizando, segue a lição de Azambuja153, que lembra que “o território é o


país propriamente dito, e, portanto, país não se confunde com povo ou nação, e não é
sinônimo de Estado, do qual constitui apenas um elemento.” É, conseqüentemente, sobre o
país que se assenta um Estado e seu povo.

Soberania

Historicamente os povos fixaram-se em territórios, estabelecendo


autoridades com poderes que garantissem a ordem social. Segundo Bastos154, “o poder
consiste na faculdade de alguém impor a sua vontade a outrem”, por meios que não sejam
necessariamente a força física, podendo se realizar através da persuasão. Este poder é o
elemento formal que garante a existência do Estado, a coexistência dos indivíduos que o
compõem e a manutenção dos limites do Estado. Este poder é exercido sobre todos aqueles
que se situam no interior deste território, que é a soberania interna, e se impõe sobre as
forças externas que pretendem interferir na ordem interna, chamada de soberania externa,
que se consubstancia em uma independência internacional.155

152
ROQUE, Sebastião José. Direito Internacional Público. São Paulo: Hemus, 1997, p. 217.
153
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p.37.
154
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986 p. 24.
155
SOBERANIA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p.
494.
A soberania é concebida em duas dimensões: jurídica e política.156
Figueiredo157 recorre à história, explicando que “quem detém o poder necessita sempre de
uma justificação político-jurídica que alicerce sua pretensão”. Ou seja, faz-se mister tanto
de instrumentos jurídicos quanto políticos, portanto, de poderes de fato e de aparato
jurídico para exercer sua vontade. Na verdade, não por uma realização da autoridade, mas
por uma questão de atingir o objetivo primordial do Estado, que é a ordem social, que se
concretiza por meio de um ordenamento jurídico e de uma estrutura de poder e comando.

A dimensão jurídica, por conseguinte, conceitua a soberania como “o poder


de decidir em última instância sobre a atributividade das normas e, vale dizer, sobre a
eficácia do direito”158. Seguindo um viés normativista, Kelsen159 identifica este poder como
sendo “a validade e a eficácia da ordem jurídica, de cuja unidade resultam a unidade do
território e a do povo.” Esta concepção constitu, para Filomeno160, um elemento formal à
parte, denominado de ordenamento jurídico, que conceitua “como sendo o conjunto das
normas constitutivas e comportamentais criadas pelo Estado, mediante processo adequado,
e por meio de órgãos aos quais a Constituição confere poderes para tanto.” Tal
ordenamento garante ordem social, unidade territorial e humana.

Bastos lembra que “jamais houve um Estado que se governasse só pela


força das leis”161, o que legitima a dimensão política da soberania, conceituado por
Dallari162 como “poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu
território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”.
Filomeno163 também defende que esta seria uma face diversa do elemento formal, dividido
em governo e soberania. O governo como face visível do Estado, formado pelo conjunto de
órgãos que executam concretamente o poder, e a soberania como expressão máxima do

156
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005,Op. Cit. p.
80.
157
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 32.
158
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 80.
159
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000,Op. Cit. p. 364.
160
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003,p. 78.
161
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 30.
162
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 80.
163
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 82.
poder, de caráter incontestável e incontrastável, exercido pelo Estado no seu território e
sobre uma população, lhe permitindo “criar, executar e aplicar o seu ordenamento jurídico
visando o bem comum”164.

Isto enseja a compreensão de que estas dimensões não sobrevivem


separadas, mas a conjunção destas dimensões forma o conceito apropriado de soberania. Já
que o direito e o poder de fazer valer este direito-dever consubstanciam a soberania de um
Estado sobre seu território e seu povo, mantendo sua unidade.

Jean Bodin165 definiu, no século XVI, que “o Estado é a sede da soberana


potência, ponto focal da ordem pública” e o poder político “como forma necessária a
existência social”. Os contratualistas, como Rousseau, definiram que é o povo a fonte deste
poder e o Estado o exerce. Tal força está contida no povo e deve tender à organização
social e política, para que se mantenha e se desenvolva a convivência, o que se estabelece
através da soberania, delimitando o Estado. Nicola Matteucci166 afirma que “de fato, a
soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido de transformação da
força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito”. Ou seja, uma correlação
direta entre detentor do poder, que hodiernamente se reconhece como sendo o povo e o
próprio poder em si, garantindo sua legitimidade. De tal ordem se convencionou chamar
este poder de soberania popular. Este conceito corresponde a inversão da perspectiva do
poder ex parte principis para o poder ex parte populi167ocasionada pelo fim do absolutismo.
Ou seja, do poder advindo do soberano, de cima para baixo, pelo poder vindo de baixo, do
povo. Esta é base da soberania popular, o poder com legitimidade popular. Segundo
Corrêa168, o indivíduo – e não o Estado – é a base da sociedade e do poder, reconhecido
como anterior e superior ao Estado. A Soberania do povo “se manifesta no seu poder

164
FILOMENO, José Geraldo Brito. Op. Cit
165
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, º PISIER-KOUCHNER, E. História das Idéias Políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 47.
166
MATTEUCCI, Nicola. Soberania. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco Dicionário de Política. Vol. II. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2004, p. 1179.
167
VIEIRA, Liszt. Direito, Cidadania, Democracia: Uma Reflexão Crítica. In.: Revista Direito, Estado e
Sociedade nº 9. Disponível em: <http://sphere.rdc.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/online/
rev09_listz.html>. Acesso em: 21 ago. 2005.
168
CORRÊA, Darcísio. A Construção da cidadania. Reflexos Histórico-Políticas. Ijuí: Unijuí, 2000, p. 60.
constituinte”169, ou seja, seu poder de constituir a sociedade e o Estado (ex parte populi).
Assim sendo, o Estado também deve obedecer a leis e ser sujeito de deveres. Conforme
Granrut: “Même si l'État est maître du droit, il doit également s'y soumettre. C'est le droit
qui organise ses pouvoirs et qui protège l'individu contre la tout-puissance de l'État.”170
Assim, além de sede do poder, também é o destinatário, nesta visão atual da soberania

É ainda com a pena de Bodin171 que a teoria sobre a soberania toma traços
definitivos, onde a caracteriza como indivisível e perpétua. Hoje estas características são
aclaradas e completadas, como pela doutrina de Dallari172, que as lista como sendo quatro:
una, indivisível, inalienável e imprescritível. A soberania é una pois se constitui como um
poder único e unitário, ou seja, o Estado é um só, assim como o é o povo e seu território,
sendo, portanto, uno o seu poder. O Estado possui uma única soberania. Por conseqüência é
indivisível, não se admitindo partes distintas desta soberania. É inalienável pois, o povo é o
titular da soberania e não transfere a sua titularidade, mas apenas o seu exercício, através do
Estado. Imprescritível, pois não se limita pelo tempo, não perecendo no decurso dos anos.

 FORMAS DE GOVERNO

Dentre as teorias de Estado destacam-se aqui as que respondem sobre as


formas de governo, que revela como se constitui o governo de um Estado, como se
organizam suas instituições de poder e os órgãos através de sua estrutura fundamental.

Bobbio173 explicita que este estudo nos leva a uma tipologia apresentadas
em dois aspectos: descrito e prescritivo, respectivamente. O primeiro elabora uma
classificação das formações políticas existentes na história; enquanto que o segundo

169
MATTEUCCI, Nicola. SOBERANIA. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. Vol 2. São Paulo: Unb, 2004, p. 1185
170
“Embora o estado seja principal do direito, também tem que se submeter. É o direito que o organiza e lhe
dá poder e protege o indivíduo contra o abuso do estado.” [tradução nossa] Granrut, Claude du. La
Citoyenneté Européenne. Une application du principe de subsidiarité. Paris: LGDJ, s/d, p. 39.
171
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, O. PISIER-KOUCHNER, E. História das Idéias Políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 47.
172
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005,Op. Cit. p.
81.
173
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. 10.ª ed. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UnB, 2000, p.
31 et seq.
expressa um julgamento de fato, estabelecendo um quadro comparativo com juízo das
melhores e piores formas de governo.

Hodiernamente esta classificação se pontua em duas formas de governo: o


republicano e o monárquico. Estas duas, a princípio, estão ligadas a figura da autoridade,
daquele que conduz o governo, que ora se identifica com o povo e ora com monarca,
respectivamente. Isto acaba por desencadear uma outra classificação, que divide em
democracias e autocracias as formas de governo exisnte. Eric Weil, citado por
Azambuja174, afirma que “os governos dos Estados modernos ou são autocráticos ou
constitucionais.” Ou seja, que Weil denominou de constitucionais, aqui está enquadrado
nos governos democráticos. Constitucional por se submeterem aos ditames do direito e não
da vontade do soberano, sendo a lei um instrumento da democracia para efetivar a
soberania popular. Hans Kelsen175 afirma que estas “duas formas básicas de governo,
democracia e autocracia, são modos diferentes de criar a ordem jurídica”, que, no primeiro
caso, se legitima na soberania popular, enquanto que a segunda com soberania fundada na
própria autoridade.

Enquanto que as primeiras formas de governo, monarquia e república, tem


por fim examinar os prismas do titular do poder e, por conseqüência, do governo, estes
acabam por observar sob a ótica do destinatário do poder. Tais estudos não são estanques,
nem representam uma dicotomia, mas apenas prismas diferentes de observação das formas
de governo.

 Desenvolvimento Histórico

A doutrina aponta a classificação de Aristóteles como a mais antiga, a mais


célebre e a melhor176, que combina o critério moral e o numérico. Assim ter-se-iam seis
formas assim divididas:

Formas Puras:

- Monarquia: um governo puro de uma só pessoa;

174
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 204.247
175
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Op. cit., p. 433.
176
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001,p. 204.
- Aristocracia: um governo puro de um grupo de pessoas;
- Democracia: um governo puro de todas as pessoas, ou melhor, do povo.

Formas Impuras:
- Tirania: um governo impuro de uma só pessoa;
- Oligarquia: um governo impuro de um grupo de pessoas;
- Demagogia: um governo impuro de todas as pessoas, ou melhor, do povo.

Assim, analisando os governos precedentes de vários Estados estrangeiros


e Cidades-Estados gregas, Aristóteles chegou a este quadro, delimitando a diferença entre
puro e impuro com base no interesse público, a ser alcançado pelos governos puros, e no
interesse particular da autoridade presente nos governos impuros.

Azambuja177 ressalta que o termo “Democracia” é diferente do que


Aristóteles usou, sendo alterado pelos doutrinadores atuais para atingir o significado que
buscava em seu tempo. Assim, ao invés de democracia, Aristóteles usou “politia”,
significando a cidade e, portanto, a totalidade dos cidadãos, ou seja um governo conduzido
pelos cidadãos. Por sua vez, apenas alguns eram considerados cidadão. Na verdade o
filósofo grego não admitia um governo de pessoas que não fossem ‘habilitadas para tal’,
mas apenas aqueles que possuíssem “virtude política, que é a sabedoria para mandar e
obedecer”, jamais admitindo um artesão entre os chamados cidadão, pois um cidadão
deveria ser aquele dispusesse de tempo e dedicação a vida pública, o que o trabalho
impediria.178 Já o que hoje chamamos de demagogia, ele chamou de democracia, ou seja
um governo de um grupo não tão qualificado quanto os dos cidadãos, visto que o termo
“demos” se referia a totalidade do povo comum, incluindo até mesmo aqueles que não eram
considerados como aptos a tal participação, como um artesão. Então, Aristóteles chamou de
“politia” o governo puro de todos os cidadão e de democracia o governo impuro exercido
por todos. Hoje chamamos de democracia o governo puro de todos e demagogia o governo
impuro de todos.

177
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001,p. 205.
178
Neste sentido: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 146.
Contribuindo para este estudo, Maquiavel foi categórico, afirmando que
“Todos os Estados, todas as dominações que tiveram e têm império sobre os homens foram
e são repúblicas ou principados”179. Propôs uma teoria das formas evidenciando os ciclos
iniciados pela anarquia, que redundaram em principados e monarquias, bem como uma
espécie de manual para “o Prioncípe”, para que este alcançasse a ordem do governo, da
ordem e por conseguinte, do Estado.

Outrossim cabe destacar a obra de

Montesquieu, que também faz um estudo sobre as formas de governo, “O


Espírito das Leis”, onde propõe um trinômio, formado pela república, monarquia e a forma
despótica.

– República: o povo, como um todo, ou através de uma parcela do


povo, possui o poder soberano;
– Monarquia: apenas um governa, seguindo leis preestabelecidas e
prefixadas;
– Despótico: apenas um governa, ilimitadamente, sem obedecer a leis e
regras, seguindo sua vontade e caprichos.

República e Monarquia

Inicialmente a monarquia era conceituada como “a forma de governo em


que o poder supremo encontrava-se nas mãos de uma só pessoa, o monarca, ou rei”180.
Porém este representou um conceito presente até o Estado absolutita, mas não atende às
monarquias atuais. Faz-se mister conceituar a Monarquia sucintamente por duas
características comuns hodiernas: a vitaliciedade e hereditariedade do governante e,
portanto, do poder que enverga. Exclui-se, deste modo, a irresponsabilidade, por não estar
presente em todas as espécies de monarquia. Segundo Sousa et. Alli, “A hereditariedade e a
vitaliciedade tipificam a monarquia e conferem ao governo unidade, continuidade e
estabilidade, pelo fato de haver uma única família responsável pelo exercício do poder.”181

179
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Antonio D’Elia. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 37.
180
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 59.
181
MONARQUIA. SOUSA, SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 358.
A história nos trás diferentes formas de Monaquia, com destaque para as
três seguintes:
– Absoluta: caracterizada pela concentração de poder sobre o soberano
e pela irresponsabilidade, pois este não atende a limites jurídicos, sendo considerado acima
do Estado e do Direito, desconsiderando o primado do Direito. Muitas vezes é considerado
também como autoridade religiosa, ou de origem divina. O governo não segue a lei, mas a
vontade da autoridade;
– Constitucional: é caracterizada pela responsabilidade do soberano,
em vista da obediência ao primado do direito, submetendo-o ao ordenamento jurídico e às
limitações jurídicas constitucionais;

– Parlamentar: monarquia cujo exercício efetivo do poder é realizado


pelo Parlamento e o monarca tem apenas a função de representar o Estado e a unidade
deste, muitas vezes um papel figurativo. Via de regra é também uma monarquia
constitucional.

A República é uma forma de governo que se contrapõe à monarquia e,


portanto, segue um conceito diametralmente diverso, sendo a forma de governo
caracterizada pela eletividade e temporariedade. A primeira se refere ao fato de que o
governante é eleito, direta ou indiretamente, pelo povo. Sendo a República uma forma de
realizar o governo do povo, a eleição é meio de tornar viável o exercício da função
governamental pelo povo, impresso na representatividade, ou seja, na escolha pelo povo do
seu melhor governante. Também é caracterizada pela temporariedade do governante, que
deverá substituído por outro eleito. A alternância de poder, que marca temporariedade é
uma característica tende a buscar a soberania popular, pois: busca evitar a absorção do
poder por um governante que pretende se estabelecer perpetuamente; visa permitir a que se
tenha sempre a possibilidade de, ao final de um mandato, ter-se um governante que atenda
os anseios do povo; fortalece o caráter de eletividade, já que gera a cultura política da
eleição no seio da sociedade. Há quem introduza a responsabilidade como característica
obrigatória de uma república, pois para atender a coletividade, o governo deve estar
submetido ao ordenamento jurídico.
A República, segundo Azambuja182, pode ser classificada em duas
espécies: aristocrática e democrática. A primeira refere-se aquelas em que o governo é
conduzido por uma “classe privilegiada por direitos de nascimento ou de conquista.“ Esta
forma de República tem exemplos históricos, como Gênova, Florença e Veneza, não
apresentando modelos atuais.

A República democrática é a espécie mais comum, atualmente, pois


representa a maior parte das repúblicas hodiernas. É a espécie de república em que o poder
emana do povo e por este é exercido. Enquanto que a espécie aristocrática pode corromper
o caráter eletivo e temporário do seu conceito de república, a democrática é a espécie que
torna completo a definição desta forma de governo. Em regra tem-se na democracia um
sinônimo de república, justamente pelas características de ambas.

Democracia e

Autocracia

O termo Democracia vem do grego “demo”, que significa povo, e “kratía”,


que representa governo, tendo, assim, o conceito de governo do povo. Destarte, é uma
forma de governo onde as decisões políticas buscam a participação do povo. Tem-se como
objetivo concretizar a idéia do povo como governante, construindo, para isso, instrumentos
que permitam a efetivação do poder político popular, que vão desde o voto que estabelece a
representatividade e determinadas decisões diretas, até o controle dos atos do Estado.

A democracia é um ideal que pretender dar ao governo a maior proximidade possível com a
vontade da coletividade, estabelecido a partir da reação ao absolutismo e a construção de
uma soberania popular, onde o poder do Estado é fundado na Sociedade. Os valores
tutelados pela democracia são a liberdade, a responsabilidade, a igualdade e a participação.
Valores inerentes a condição de governo conduzido pelo povo.183

182
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 213.
183
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 146.
Esta se firma principalmente na República, chegando a ser um sinônimo
para alguns doutrinadores, porém, diante do advento da monarquia parlamentar, em que o
governo é realizado pelo primeiro ministro, que, em conjunto com outros órgãos e
instituições, imprime um caráter democrático a este espécie de monarquia.

Existem três espécies distintas de democracia, sendo a primeira delas a


Democracia Direta, onde todos os cidadãos participam diretamente do governo, sem
intermediários. O grande exemplo vem da Grécia Antiga, onde a totalidade dos cidadãos
participavam diretamente da condução do governo. Contudo, apenas os homens livres eram
considerados cidadãos e possuíam o direito de tal participação. Poder-se-ia dizer que neste
caso o Estado era o próprio povo.

A segunda espécie é a Democracia semi-direta ou semi-indireta, onde as


deliberações de interesse coletivo são tomadas pelos representantes do povo, mas há a
possibilidade de que algumas sejam tomas pelo povo diretamente. Assim, além da eleição
dos representantes do povo, são erigidos instrumentos que possibilitam a participação direta
do povo nas decisões, como por exemplo:

– O plebiscito, que é a consulta popular sobre matéria que ainda será


objeto de apreciação pelo órgão da função legislativa do Estado;
– O referendo popular, onde a participação popular ocorre através da
aprovação ou não de matéria já apreciada pelo legislativo;
– O veto popular, em que ser realiza a desaprovação de matéria já
votada pelos órgãos que exercem função legislativa do Estado;
– O “recall”, termo que significa “chamar de volta”, sendo a perda de
cargo político por iniciativa de votação popular, que desaprova ou censura o desempenho
de determinado representante;
– A iniciativa popular, que é a possibilidade do povo apresentar um
projeto de lei.

Por fim, tem-se a Democracia Indireta ou Representativa. Esta é a


democracia mais difundida na atualidade, sendo caracterizada pela representação do povo
em várias funções do Estado, sobretudo a legislativa e a governamental. Neste caso, o povo
estabelece representantes, através de mandatos temporários. Tais mandatários devem atuar
de forma que realizem a vontade popular, sendo-lhes permitido tomar decisões em seu
nome, pretendendo, com isso, fazer como que se o próprio povo estivesse governando.184

Sendo assim, o mandando é o instrumento político que transfere o


exercício do poder ao representante, de forma eletiva e temporária, mantendo sobre o povo
a titularidade de tal poder. Destarte, o mandato e a representação não são ilimitados, mas
adstritos à representação conferida. No entanto O sistema de representação tem, também,
certa limitação quanto a relação representante e representado. Primeiro, por que não há uma
relação direta entre mandatário e a parcela do povo que o elegeu, mas a toda a coletividade,
sendo portanto representante de todo o povo. De outra forma, este possui absoluta
autonomia e independência em sua atuação, prescindindo de autorização e ratificação de
seus atos, fazendo que com seus atos lícitos, que não atendam a demandas da coletividade,
sejam válidos, cabendo ao povo o chamado “controle das urnas”. Ou seja, não estando
presente o instrumento do “recall”, ao povo que não estiver satisfeito com seu
representante cabe apenas a possibilidade de não elegê-lo na eleição seguinte. 185

As formas de governo que se contrapõe à democracia são várias e de


variadas definições, como o absolutismo, a ditadura, o totalitarismo. Assim, resumem-se
estas formas através da autocracia. Stoppino186 lembra que a doutrina comumente tem
designado a autocracia “como o termo mais apropriado para designar toda classe de
regimes antidemocráticos ou não-democráticos”. Assim, a Autocracia tem um conceito
absolutamente diverso, sendo o “governo em que o detentor da autoridade exerce um poder
fundado exclusivamente na própria vontade”187. Ou seja, é a vontade da autoridade que
guia o governo e não, necessariamente, a vontade popular. Enquanto que na democracia os
limites jurídicos são fundamentais para a fundação do governo, na autocracia é a
inexistência destas limitações que fundam o governo, onde a própria vontade da autoridade

184
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 156.
185
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 156.
186
STOPPINO, Mario. Ditadura. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de Política. Vol. I. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 373.
187
AUTOCRACIA. SOUSA, SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 49.
que estabelece tais restrições. Portanto, se diz um governo de poder amplo, total e
ilimitado.188

As autocracias possuem por características básicas: a exclusão do povo nas


decisões políticas e, por conseqüência, falta de representação; a concentração de poder
governamental sobre a autoridade, podendo também concentrar os poderes legislativos e
judiciários; o abandono do princípio do primado do direito, já que a vontade do governante
é a regra máxima do governo, limitando o princípio da legalidade ao povo.189

Os governos autocratas podem ser denominadas de governos de


dominação, que “são aqueles em que, juridicamente, o poder não pertence ao povo”190, ou
seja não há representação do povo, mas um governo por si, daí o termo autocracia: “o que
tem poder — kratía — em sim mesmo — autos”191..

As autocracias, em regra, têm como instrumentos a existência de um


partido único, controle absoluto dos meios de comunicação de massa e polícia política. 192
Estes instrumentos viabilizam a manutenção do poder concentrado Com o monopólio do
partido único, evita-se a liberdade política e mantém o domínio do poder pela vontade
autoridade, fazendo do partido um instrumento de difusão e impressão das posições
políticas do governo. O controle dos meios de comunicação complementa esta função, bem
como a polícia política.

Em tese, todos os governos dissociados da vontade popular podem ser


designados como autocracias. Portanto, a ditadura, o absolutismo e o totalitarismo são
formas de autocracia.

O totalitarismo se enquadra perfeitamente neste padrão de governo, pois é


definido como “poder político concentrado e absoluto”, realizando-se sobre todos os
indivíduos e todas as coisas, suprimindo as liberdades individuais e coletivas e possuindo a

188
STOPPINO, Mario. Ditadura. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de Política. Vol. I. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004 p. 372.
189
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 117.
190
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 209.
191
AUTOCRACIA. SOUSA, SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 49.
192
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003,p. 118.
totalidade dos bens,193 inclusive do pensamento individual, haja vista que não é possível um
Estado totalitário sem uma ideologia sistemativamente propagada pelo governo.194 É o que
pregou o líder italiano fascista, Benito Mussolini (1883-1945): “tutto nello Stato, niente
contro lo Stato, nulla al di furo dello Stato” (tudo no Estado, nada contra o Estado, nada
fora do Estado).195 Por isso não se confunde com as demais formas de autocracia, pois
impõe-se, aqui, uma onipresença do Estado na sociedade,196 eliminando inclusive as
individualidades.197 Bastos afirma que “o Estado Totalitário caracteriza-se por absorver no
seu todas as manifestações da vida social e, até mesmo, individual.”198

É possível identificar, claramente, a relação entre autocracia e totalitarismo,


através das características desta, arroladas por Carl Friedrich, citado por Azambuja199: uma
ideologia oficial; partido único, monopólio dos meios de comunicação de massa e dos
armamentos; economia planejada e centralizada; sistema de terror policial.

A ditadura é uma forma transitória de governo200, tendente a instaurar uma


nova concepção de Estado, através de uma autocracia. Sua natureza temporária vem da sua
origem no Império Romano, quando era utilizada como um meio de resolver uma
emergência de guerra externa ou de instabilidade interna.201 Stoppino202 lembra, porém, que
existem ditaduras que não são autocracias, “nas quais o poder está nas mãos de um pequeno
grupo de chefes, que dependem reciprocamente um do outro”.

Outra forma de governo que se enquadra na definição de autocracia é o


governo absoluto, que se empregou na história política da humanidade, através do

193
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 249.
194
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 432.
195
TOTALITARISMO. SOUSA, SOUSA, J. P. G. de et al. Dicionário de Política. Op. cit. p. 432.
196
TOTALITARISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998,
p. 432.
197
STOPPINO, Mario. Totalitarismo. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. II. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2004, p. 1248.
198
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 66.
199
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 249.
200
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 245.
201
STOPPINO, Mario. Ditadura. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de Política. Vol. I. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 368.
202
STOPPINO, Mario. Ditadura. In.: Dicionário de Política. Vol. I. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2004,p. 372.
absolutismo. O governo absoluto coloca a autoridade como detentor único do poder
público, confundindo autoridade e Estado em uma figura única. Assim, o poder conferido a
autoridade não conhece limites nem responsabilidades. Não tem caráter temporário, como a
ditadura, nem onipresente, como o totalitarismo. Historicamente os governos absolutos se
estruturaram através de monarquias. Aliás, não sendo constitucionais, as monarquias
tendem ao absolutismo, pois a hereditariedade e a vitaliciedade fazem do soberano uma
pessoa distinta do povo.

Democracia
Direta Semi-Direta Indireta

O cidadão decide O cidadão decide através Os representantes decidem


de instrumentos

Não há representação Há representação Há representação

Democracia Autocracia

Vontade popular Vontade do soberano

Primado do Direito Autoridade acima do Direito

Responsabilidade Irresponsabilidade

Desconcentração de Poder Concentração de Poder

A teoria dos sistemas de governo é o estudo das estruturas de poder, de


como o governo se organiza para realizar as suas funções, implicando numa análise dos
principais órgãos com função governamental. Isto implica também na correlação com o
estudo dos órgãos de representação do Estado, pois é esse um dos pontos primordiais da
diferenciação entre os principais sistemas de governo: o Parlamentarismo, o
Presidencialismo e o Regime de Assembléia. Barthélemy, citado por Azambuja, afirma
que:

“se a constituição dá predominância ao legislativo, há o governo de


assembléia, chamado também de governo diretorial. Se a constituição
consagra a predominância do executivo, há o governo presidencial, e se
estabelece a colaboração equilibrada entre os dois Poderes temos o
governo parlamentar.”203

Deve-se lembrar parte da doutrina confere denominação diferente,


chamando de regimes de governo,204 Todavia, constituindo-se, da mesma forma, como um
estudo da organização do governo.

Parlamentarismo

O Parlamentarismo é um sistema de governo que é fruto de um


desenvolvimento histórico, ao contrário do presidencialismo, que é um “produto
teórico”205. Este modelo histórico foi construído na Inglaterra, através da limitação do Rei
pelo Parlamento em conjunto com as instituições gradativas das “Cartas Constitucionais”:
Magna Carta Libertatum – 1215; Petition of Rights – 1618; Habeas Corpus Amendment
Act – 1679: Bill of Rights – 1689. Neste desenvolvimento histórico foram limitados e do
Rei e instituído um órgão de representatividade popular e aristocrática para realizar o
governo do Estado.

Desenvolvimento Histórico

Antes do século X se tem notícia, na Inglaterra, da existência dos grandes


conselhos (Great Council, em inglês, ou Magnum Concilium, em latim)206, formado por
nobres e sábios. Era um conselho privado (“Privy Council” ou “Curia Regis”)207 de
natureza extra-legal, que por afinidade obtinham a confiança do rei.208

203
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 295.
204
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9.ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 305.
205
Não se trata de um produto teórico único, mas um conjunto de teorias que postas em prática formou o
presidencialismo, como se verá adiante.
206
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 186.
207
PARLAMENTARISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 400.
208
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 298.
Em 1213, o Rei João Sem-Terra, por pressão dos barões209, convocou
“quarto cavaleiros discretos”210 de cada condado, que não eram pares do reino e, portanto,
não tinham ligação direta com o rei, para com eles deliberar sobre questões do reino.
Retomava-se, assim o costume dos grandes conselhos, de forma a interligar o rei e os
barões, tentando arrefecer as revoltas quanto aos desmandos do rei. João Sem-Terra, em
1215, foi obrigado, pelos barões, a instituir direitos, através da Magna Carta Libertatum.
Esta lista de deveres do rei, instituía liberdades ao povo, sobretudo aos barões e mantinham
o conselho, gérmen do Parlamentarismo, obrigando a representação.

Henrique III fechou o Parlamento e, em 1265, Simon de Monfort liderou


uma revolta contra este rei, restabelecendo o conselho, denominando-o de “parliamenum”,
cuja composição teria representação popular: dois cavaleiros de cada cidade, dois cidadãos
de cada cidade e dois burgueses de cada burgo, eleitos. Em 1295 Eduardo I oficializou o
Parlamento211. Em 1332, além dos Lordes (bispos, condes e barões que eram pares do
reino), os comuns (cavaleiros, cidadão e burgueses, eleitos dois de cada, mais o baixo clero)
passaram a ter representação no parlamento. Portanto, Câmara dos Lordes e dos Comuns,
respectivamente.

Aumentando demais os componentes do Parlamento, “o rei passou a fazer


consultas sobre os assuntos de maior gravidade exclusivamente a uma parte restrita de
conselheiros”212, em reuniões na antecâmara, que seria denominado de “comitee of State”
ou “gabinet”.

Porém, o período que se seguiu foi de eclosão do absolutismo, arrefecendo


os poderes do Parlamento, sobretudo com a passagem da dinastia Tudor (de Henrique VII,
1485, até a morte de Elisabet, em 1603), de aparente caráter popular,213 para a Stuart,
“última dinastia absolutista da Inglaterra”. O primeiro dos Stuart foi Jaime VI, primo de
Elisabet, rei da Escócia, que na Inglaterra recebeu o nome de Jaime I. De origem católica,

209
No feudalismo, por conseqüência do subenfeudamento, os barões eram os senhores feudais que
efetivamente tinham o poder sobre a terra e os servos. Ainda que considerados como a parte mais baixa da
nobreza, os barões dominavam o poder econômico em diversos reinos.
210
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005,. p. 232.
211
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 232.
212
PARLAMENTARISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 400.
buscou fundamentar seu governo em uma origem divina, aumentou o caráter absolutista,
esvasiou e depois dissolveu o Parlamento diversas vezes.

O segundo Stuart foi seu filho, Carlos I, também de natureza despótica, que
acabou por ser obrigado a assinar a Petition of Rights, em 1628. Desde sua instituição, foi
firmado o costume de se ratificar a Magna Carta pelos reis que assumiam o trono. O Rei
Carlos I não obedecia aos ditames deste documento, causando a ira dos nobres e ao
parlamento. Assim, o Parlamento conseguiu impor a Petition of Rights

No entanto, isto não diminui os conflitos que mergulharam a Inglaterra em


uma guerra civil, entre parlamento e o rei. Em 1645 o exército do parlamento, liderado por
Oliver Cromwell, venceu o rei, que foi condenado à morte 1649, quando foi proclamada a
república, governada pelo Parlamento e os ministros indicados por ele.214 Esta república foi
superada por uma ditadura imposta por Cromwell, de caráter autoritário e pessoal.215 Com a
morte de Cromwell e a destituição de seu filho, o Parlamento, convocado a restabelecer a
ordem, restaurou a monarquia, através do filho de Carlos I, Carlos II, em 1660, que se
comprometeu a respeitar o Parlamento.

Em 1679 foi editado o Act of Habeas Corpus, que regulamentava este instrumento de
defesa da liberdade contra ato arbitrário. Mesmo após a elaboração da Petition of Rights,
que visava aumentar as ainda tímidas garantias, os monarcas não atendiam aos pedidos de
habeas corpus, tornando letra morta as leis existentes e que cuidavam desse instituto.
Elaborado pelo Parlamento e sancionado pelo rei, ninguém poderia ser mantido preso sem
que fosse logo conduzido à presença de um tribunal.

Sucedeu Carlos II, Jaime II, em 1685. Porém, em 1688, o Parlamento


articula a deposição de Jaime II e institui Guilherme de Orange como rei da Inglaterra. Este
período, conhecido como Revolução Gloriosa, instituindo uma nova dinastia, liderada por
Guilherme de Orange, que representou um avanço para o parlamentarismo,216 pois se

213
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Trad. L. G. Machado, L S. Machado e L. V.
Vallandro. 2.ª ed. Porto Alegre: Globo, 1970, 522.
214
Idem.
215
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 85.
216
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 85.
instalava uma monarquia parlamentar, eliminando com o tempo os vestígios da monarquia
absoluta.

Logo em seguida, em 1689 é assinado o Bill of Rights, impondo um


conjunto de imposições ao poder real. Sem haver uma forma definida nas suas imposições,
tinha três direitos bem claros e definidos: a liberdade, a defesa da propriedade e segurança
coletiva.

Se no início o parlamento era um conselho privado do Rei, agora é


considerado uma instituição política do Estado inglês. Evoluindo em conjunto com a
constituição inglesa. Possuía uma assembléia bicameral, com representação do povo,
através da Câmara dos Comuns (câmara baixa), e uma representação aristocrática, pela
Câmara dos Lordes (câmara alta).

Com a morte de Guilherme III (de Orange) e a rainha Ana, foi erigido o
“ato de estabelecimento, em 1701, o rei Jorge I, da dinastia Hanôver, que por sua vez era
alemão, sendo a Inglaterra e seu idioma um desconhecido. Isto dificultou o governo do rei,
que passou a ser apenas um elemento figurativo. Depois de 36 anos de reinado, sobreveio o
reinado de 33 anos de seu herdeiro, Jorge II, que seguiu o exemplo de seu pai.

Assim o Parlamento se fixou definitivamente como governo, pois o rei


reinava, mas não governava. Toda articulação entre rei e gabinete deixou de existir,
passando o gabinete a exercer o poder efetivamente. As normas constitucionais e demais
atos e jurisprudências firmaram uma constituição consuetudinária, construindo, neste
processo histórico, um parlamentarismo que serviu de modelo para outros Estados.

Estrutura de poder e governo

Todo o processo histórico findou por construir um sistema de governo


baseado na atuação do Legislativo em funções governamentais e na distinção entre Chefe
de Estado e Chefe de Governo, ou seja, de representante do Estado e representante de
Governo, respectivamente. Logo, o Chefe de Estado tem por função primordial a de
representar o Estado interna e externamente. Portanto, ter-se-ia no Chefe de Estado uma das
faces do Poder Executivo: a representação.217 Além disto, teria a função de “atuar como
vínculo moral do Estado”218, garantindo a unidade do Estado, seja em tempos de paz,
quanto em crises internas e externas. Todavia, Figueiredo219 apresenta como formais as
suas funções: “declarar guerra, assinar tratados, representar oficialmente o país”. Contudo,
em muitos dos exemplos deste sistema, suas funções são mais simbólicas, não possuindo
grandes poderes na prática, visto estarem destituídas da função de governar.

Em uma República, a chefia do Estado caberia ao presidente, enquanto que


na Monarquia caberia ao monarca. A forma de escolha segue a forma de Governo, que na
monarquia terá o chefe de Estado determinado pelo critério da hereditariedade, enquanto
que na República vale o critério da eletividade.

A função do Chefe de Governo é mais ampla, cabendo, tanto na República,


quanto na Monarquia, ao Primeiro-ministro, também chamado de chefe de gabinete,
premier ou chanceler. É o primeiro-ministro que exerce a função governamental e a quem
cabe nomear os ministros que lhe auxiliaram. Portanto, exerce efetivamente o poder
Executivo, executando a função governamental, e é quem possui responsabilidade política
de governo, sendo eximida do Chefe de Estado tais responsabilidades.220

No entantoo primeiro-ministro é escolhido pelos parlamentares entre seus


pares. É um “primus inter pares”221, em relação aos parlamentares. Portanto, é um
parlamentar que exerce a função governamental. Pode-se ter sua escolha de duas formas:
um parlamentar é indicado pelo Chefe de Estado, necessitando da aprovação pelo
Parlamento para ser nomeado Primeiro-Ministro222; ou o parlamento elege um parlamentar
como Primeiro-Ministro. Em alguns casos exige-se que o Primeiro-Ministro eleito seja
aprovado pelo Chefe de Estado.

217
Marcelo Figueiredo chama de Executivo de representação. FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do
Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 98.
218
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 236.
219
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 98.
220
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p.304.
221
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 189.
222
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 236.
De qualquer forma o Chefe de Gabinete necessita da maioria parlamentar
para ser eleito. Todavia só governa se mantiver esta maioria a seu favor223, ou que pelo
menos que não lhe seja contra. Em regra, o Chefe de Governo não tem mandato fixo,
podendo terminar seu mandato se perder a maioria no parlamento, ou por voto de
desconfiança. Como as eleições para o parlamento são periódicas, o Primeiro-Ministro
pode perder sua maioria. Neste caso, alguns regimes determinam a perda automática do
cargo, devendo haver eleições para o novo chanceler, pois tal chefe de Estado não teria
condições de governar, por falta de suporte político no parlamento. Em outros sistemas
parlamentaristas este Chefe de Gabinete não perderia seu cargo automaticamente, mas
estaria correndo o risco de perder seu mandato através de um voto de desconfiança. Ou
seja, o Parlamento aprova um voto de desconfiança, que, conforme as regras adotadas,
poderá propor um pedido de demissão, ou impor a demissão do Chefe de Governo.

Portanto, o Chefe de Governo tem responsabilidade jurídica, em face do


ordenamento jurídico adotado pelo Estado, e sobretudo política, pois está atrelado ao
arcabouço político de sua eleição e de sua manutenção do Poder. O Chefe de Governo tem
que atender as expectativas de seus pares, que são os representantes do povo.

Contudo, deve-se ressaltar que o Chefe de Governo, em alguns sistemas,


possui o poder de dissolver o Parlamento, sobretudo diante da perda da maioria
parlamentar. O Chefe de Governo solicita que o Chefe de Estado convoque eleições
gerais224, buscando a renovação do Parlamento e a maioria parlamentar, tentando superar
possíveis crises políticas entre o Chefe de Governo e o Parlamento. Tais eleições
determinarão a permanência do Chefe de Governo.

Destarte, nota-se que há, no parlamentarismo, um certo equilíbrio entre o


Poder Executivo e o Poder Legislativo, podendo, conforme o sistema adotado, haver uma
preponderância de um deste poderes. Geralmente, os sistemas parlamentaristas adotados
geram uma supremacia do Poder Legislativo. Menezes225, neste sentido, define o
parlamentarismo como “o tipo de governo representativo que, com base nas relações
estreitas dos poderes, coloca o executivo sob a confiança do legislativo”. Portanto, pode

223
MENEZES, Aderson. Teoria Geral do Estado. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Foresne, 199, p. 308.
224
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 99.
também ser considerado como um sistema em que o poder Executivo está submetido ao
Poder Legislativo.226

Presidencialismo

Ainda que não tenha sido erigido através de um longo processo histórico, o
presidencialismo não é fruto de uma criação teórica única, porém, é uma construção das
idéias democráticas e libertárias norte-americanas, em repulsa ao modelo monárquico de
governo, buscando realizar a República, através de um sistema garantisse a democracia e a
soberania da vontade popular. Assim, no século XVII, ao construir sua República, os norte-
americanos elaboraram um sistema de governo que seguisse a teoria da Separação de
Poderes, com uma autoridade única, porém limitada e com mecanismos que assegurasse a
soberania popular. Assim criou-se o presidencialismo.227

O presidencialismo exige uma unificação das funções de chefia de Governo


e de Estado, sendo ambas exercidas pela Presidência da República, que é um órgão
unipessoal, em regra escolhido pelo povo, cumprindo um mandato determinado. Assim, o
presidencialismo é um sistema próprio da República, atendendo a eletividade e a
temporariedade do governo. O termo presidente vem dos governadores das províncias
romanas, que aqui foi adaptado, significando aquele que dirigi. O presidente é o chefe da
República, que é um “primus inter pares” do povo, eleito para dirigi-lo.

Desta forma, o povo elege o Chefe de Estado e o Chefe de Governo,


através de uma única autoridade. Este, além de representar o Estado, também o governa,
exercendo o conjunto das funções compreendidas no Poder Executivo. O Presidente da
República é o responsável político e jurídico do governo e do Estado, ocupando “uma
posição plenamente central em relação a todas as forças e instituições políticas.”228

225
MENEZES, Aderson. Teoria Geral do Estado. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Foresne, 199, p. 307.
226
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 83.
227
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 240.
228
PASQUINO, Gianfranco. Formas de Governo. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. I. 5.ª ed. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2004, p. 518.
Para garantir tais responsabilidades e evitar que a instituição de um órgão
único e unipessoal para gerir a república sofresse a concentração de poder, restabelecendo
um governo autocrático, como nas monarquias absolutas, o presidencialismo norte-
americano, modelo para os demais que surgiram, criou o sistema dos freios e contrapesos
(“checks and balances”)229, como forma de manter a separação dos Poderes e a limitação
da autoridade, segundo a soberania popular. Este sistema estabelece uma estrutura de
governo e de poder que permite a vigilância recíproca entre os Poderes230. Assim, ainda que
Presidência e Congresso sejam órgãos autônomos231, atendendo aos Poderes Executivos e
Legislativos, respectivamente, o Presidente está sujeito ao Congresso e vice-versa. Tanto o
Presidente tem poderes sobre a atuação do Congresso, quanto o contrário.

A submissão do Presidente ao ordenamento é a justificativa do sistema dos


freios e contrapesos, que permite a responsabilidade jurídica, como nas questões penais, do
Presidente, mediante julgamento do Poder Judiciário. A submissão do Presidente ao
Congresso reside, sobretudo, na sua responsabilidade política, permitindo o Congresso
votar o “impeachment” do Presidente da República e decidir pela sua destituição. Além
deste grau máximo de interferência, há também a função fiscalizadora das contas do
Executivo, realizadas anualmente sobre a execução do orçamento, que por sua vez, tem que
ser aprovado sob forma de lei, podendo sofrer alterações do Legislativo.

De outra parte, cabe ao Presidente, em regra, nomear os membros da Corte


Suprema do Estado, com referendo do Legislativo, resultando em clara interferência dos
Poderes, como preceitua o sistema dos freios e contrapesos. No entanto, deve-se destacar,
que o Poder Judiciário é autônomo, restringindo-se a interferência apenas nesta nomeação.

Sobre o Legislativo, o Presidente tem poder de iniciativa de projeto de lei e


poder de veto. Ou seja, na atuação elementar do Legislativo, que é a realização do processo
de criação de normas, o Presidente da República interfere diretamente, pois: pode propor
projetos de lei, que serão apreciados pelo Legislativo, da mesma forma como os demais

229
Ver o item 2.5.2, O Princípio da Separação de Poderes.
230
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 5.ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 189.
231
PARLAMENTARISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 400.
projetos; terá poder de vetar a maioria dos projetos de lei, pois em regra o processo
legislativo depende da sanção do Presidente da República.

Não se deve confundir tal sistema com uma dependência dos Poderes.
Azambuja232 lembra que o presidencialismo é caracterizado pela independência, “mas
colaboram e se limitam reciprocamente”. Destarte, o sistema dos freios e contrapesos
mantêm a Separação dos Poderes, ao mesmo tempo que garante fiscalização recíproca e
conjunta dos Poderes, buscando eliminar os perigos da concentração de poder, promovendo
uma atuação conjunta.

Outro instrumento adotado, para evitar concentração de poder, foi impedir


que houvessem reeleições indeterminadas. Nos EUA e no Brasil há a possibilidade de
apenas uma reeleição, sendo que outros Estados não há possibilidade alguma de reeleição.
Assim, garante-se a alternância de poder, através da troca de presidentes, evitando o
surgimento de ditaduras espontâneas, através de infindáveis reeleições, “que daria caráter
vitalício à investidura”233.

Ao contrário do parlamentarismo, verifica-se aqui o fortalecimento do


poder executivo.234 O Presidente é figura centra nas decisões políticas, tendo inclusive
poder na deliberação legislativa, ainda que fiscalizado pelo Legislativo e Judiciário.

Governo de Assembléia

O regime que se denomina Governo de Assembléia é caracterizado pela


estruturação do governo através de um órgão coletivo, eleito pelo Legislativo. Inicialmente
se distingue do Presidencialismo, pois não é um órgão unipessoal, muito menos está
alocado estritamente no Executivo.

Por outro lado, se distingue do Parlamentarismo, em faces dos caracteres


que Pasquino235 levanta: “não pode dissolver as Câmaras, é eleito tida em conta a

232
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 296.
233
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 244.
234
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 245.
235
PASQUINO, Gianfranco. Formas de Governo. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Op. cit., p. 521.
representação proporcional da consistência dos diversos partidos e funciona com
revezamento periódico rotativo do presidente do Conselho.” Sousa et. all inclui o fato do
órgão colegiado não responder politicamente ao Legislativo.236

O Governo de Assembléia, também denominado governo diretorial ou


colegiado, hoje, restringe-se ao exemplo suíço.237 Neste caso, há um Presidente da
República, que encerra as funções de Chefe de Estado, cabendo ao órgão colegiado eleito
pelo legislativo, a função de Chefe de Governo.

No exemplo da Suíça, tem-se o Conselho Federal (Bundesrat), que é o


órgão do governo, composto por sete membros, eleitos para exercer a função
governamental. A Assembléia Federal é o órgão bicameral legislativo que elege os
componentes do Conselho Federal, buscando uma representatividade dos grupos políticos.
Por fim, tem-se o Presidente da República, que exerce a função de Chefe de Estado, eleito
pela Assembléia Federal anualmente.238

Parlamentarismo Presidencialismo Governo de Assembléia

Distinção entre Chefe de Fusão Chefe de Estado e Distinção entre Chefe de


Estado e Chefe de Chefe de Governo Estado e Chefe de
Governo Governo

O Primeniro-Ministro O Presidente governa A Assembléia governa


governa

Equilíbrio entre o Poder Predominância do Poder Predominância do Poder


Legislativo e Executivo Executivo Legislativo

Pode se dar na República Pode se dar apenas na Pode se dar apenas na


ou Monarquia República República

No exemplo da Suíça, tem-se o Conselho Federal (Bundesrat), que é o


órgão do governo, composto por sete membros, eleitos para exercer a função
governamental. A Assembléia Federal é o órgão bicameral legislativo que elege os

236
GOVERNO COLEGIADO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 249.
237
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 296.
componentes do Conselho Federal, buscando uma representatividade dos grupos políticos.
Por fim, tem-se o Presidente da República, que exerce a função de Chefe de Estado, eleito
pela Assembléia Federal anualmente.239

 FORMAS DE ESTADO

O Estado, como dito antes, é formado pela conjunção de três elementos:


povo, território e soberania. O estudo das formas de Estado é um meio de classificar esta
conjunção de elementos, tendo por norte a soberania. Deste modo, tem-se dois tipos de
Estado: unitário e composto. O unitário se revela como um Estado onde o poder soberano é
estruturado de forma unitária, sem divisões autônomas internas de poder. O Estado
composto é uma formação de Estado em que se encontram mais de uma organização
soberana ou autônoma de poder, ainda que seja um Estado só. Destas formas de Estado o
federal tomou tal relevância que aqui será discutido em separado, ainda que seja
classificado como um Estado Composto. Mas não se deve esquecer a Confederação de
Estados, que serve de um ótimo parâmetro para a federação, sem contar sua própria
conceituação. Diante da importância que a União Européia vem tomando e a sua
comparação com o modelo federal, faz-se mister entender os pontos que autorizam tal
comparação.

Assim, este estudo está estruturado de forma que sejam analisados cinco
temas em destaque: o Estado Unitário, o Estado Composto, o Estado Federal, a
Confederação de Estados e a União Européia.

Estado Unitário

O Estado Unitário é aquele que possui apenas uma autoridade a exercer a


soberania, sendo também chamado de Estado simples, pois não comporta mais de um

238
GOVERNO COLEGIADO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 249.
239
GOVERNO COLEGIADO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1998, p. 249.
governo, pois em sua estrutura não há divisão de poderes, ou repartição da soberania que
permita identificar mais de um Estado em seu interior.240 Azambuja241 concorda, afirmando
que Estados simples são aqueles que não há divisão em partes internas que mereçam o
nome de Estado, nem estão unidas por um vínculo de sociedade. Ou seja, mesmo que haja
divisões internas de território, com administração própria, não há divisão da soberania,
sendo esta exercida pela autoridade central, não havendo autonomia das autoridades
inferiores.

Este tipo de Estado é assinalado pelo poder central, que exerce, com
exclusividade, as funções legislativa, executiva e judiciária.242 Azambuja243 explicita que “o
tipo puro do Estado Simples é aquele em que somente existe um Poder Legislativo, um
Poder Executivo e um Poder Judiciário, todos centrais, com sede na capital.” Não se trata
de um Estado autocrático, onde todas estes poderes estão concentrados, mas refere-se a
centralização dos poderes estatais. Portanto não há uma descentralização do poder,
distinguida nos Estados composto.244

A centralização do poder consiste em uma unicidade de ordenamento


jurídico e de estrutura de poder, não sendo concedida autonomia de poder. Portanto, não há
possibilidade de divisões internas do Estado tem a faculdade de legislar, nem de ter
estrutura judiciária própria, ou poderes e funções governamentais. Isto implica em um
ordenamento jurídico central e único.245 Isto deriva da existência de um “único pólo
constitucionalmente capacitado a produzir, com autonomia, normas jurídicas”.246

Por conseguinte, as autoridades locais, são meros administradores, que obedecem a


comandos da autoridade central. Em regra não são eleitos, não são agentes políticos, não
possuindo autonomia. Da mesma forma, havendo divisões territoriais, estas são

240
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1972, p. 205.
241
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 363.
242
ESTADO UNITÁRIO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998 p. 217.
243
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 364.
244
Kelsen não se refere a essa dicotomia entre Estados unitários e compostos, mas a Estados centralizados e
descentralizados, que corresponderiam àqueles, respectivamente. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e
do Estado. Op. cit., p. 432 et seq..
245
ESTADO UNITÁRIO. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 217.
administradas por órgãos administrativos secundários247, executando os comandos do
governo central. Ou seja, pode haver uma descentralização, mas apenas administrativa, não
política.248

Com isso, mesmo diante de descentralizações administrativas, toda


expressão política, governamental, legislativa, jurídica e jurisdicional se estabelece no
Estado Unitário, no governo nacional.249

Estado Composto

No Estado Composto ocorre a descentralização de poder250, isto é, não há


uma única esfera de poder, mas, no mínimo, duas, ou seja, dois campos de autoridade do
Estado, com autonomia política, que se equilibra e se harmoniza,251 havendo a
preeminência252 de uma destas. Em contraposição ao Estado Unitário, Azambuja253 afirma
que este pode ser dividido em partes internas de forma que seja possível ser chamado de
Estados, sendo unidas entre si por um vínculo de sociedade.

Lembrando que a soberania é una, indivisível e inalienável, além de


imprescritível, não comportando divisões, o que ocorre nos Estados Compostos é que o
exercício deste poder não ocorre de forma centralizada, mas através de autoridades com
autonomia para governar e legislar. O poder do Estado continua uno e indivisível, mas é
exercido por mais de uma autoridade, permitindo que se entende que há mais de uma
unidade de poder. Geralmente esta ocorre de forma vertical, havendo uma autoridade
superior, que detém a soberania externa e interna, e autoridades inferiores, com autonomia
interna.

246
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. Op.
cit., p. 244.
247
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 365.
248
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. Op.
cit., p. 244.
249
MENEZES, Aderson. Teoria Geral do EstadoOp. Cit., p. 185.
250
Neste sentido: KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 432 et seq..
251
MENEZES, Aderson. Teoria Geral do Estado. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Foresne, 199, p. 186.
252
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Op. cit., p. 205.
253
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 363.
Dentre as formas compostas são assinaladas: a união pessoal de Estados; a
união real de Estados; a união incorporada de Estados; e a Federação. A Federação é a
principal forma composta de Estado, compreendendo a mais disseminada união de Estados
na atualidade e, por isso tratada em um item à parte. Além destas, alguns autores incluem a
Confederação de Estados, que não representa a formação de um Estado com os elementos
requisitados, pois inexiste soberania. Tal tema também será tratado adiante, após estudo
sobre Estado Federal.

União Pessoal, Real e Incorporada

A união pessoal de Estados ocorre quando dois Estados passam a ser


governados pela mesma autoridade, sem fundir governos, mantendo os ordenamentos
jurídicos254. Neste caso é a figura pessoal da autoridade que comanda e determina esta
união. Além de manter a ordem jurídica interna de cada Estado, determina também uma
soberania própria de cada um, refletindo-se em uma identidade distinta na sociedade
internacional, sendo cada Estado uma pessoa jurídica de direito internacional independente
e distinta.255

Assim, o soberano atende a cada Estado de uma forma distinta, conforme o


ordenamento de cada Estado, podendo ser constitucional em um e absoluto em outro,
podendo receber um nome dinástico em um, e outro nome em outro.256

Esta classificação refere-se a exemplos presentes apenas na história, em


regra de monarquias,257 não apresentando casos atuais. Foram os casos das sucessões
hereditárias, que acabavam por conferir ao monarca de um outro reino, o trono vago de um
ascendente. Assim, um rei acabava sendo o soberano de dois reinos. De outra parte,
também pode se dar pelo casamento dos soberanos, ou, também, por tratado
internacional258. Em regra estas uniões eram temporárias, durando conforme os fatos que

254
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001 p. 367.
255
UNIÃO DE ESTADOS. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 539.
256
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1972, p. 207.
257
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 367.
258
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1972, p. 207.
geraram a união, geralmente se desfazendo com a interrupção da linha sucessória259 ou
vínculo entre os soberanos. Por isto acaba sendo precária tal união, podendo ser desfeita a
união, perdurando enquanto permanecerem as causas originárias260.

Os exemplos que a história nos fornece são: Portugal e Espanha (1580-


16401); Inglaterra e Escócia (1603-1707); Inglaterra e Hannover (1714-1837); Holanda e
Luxemburgo (1816-1890).

A união real de Estados tem caráter definitivo e perpétuo, constituindo uma


pessoa jurídica única de direito internacional, ainda que, internamente, mantenha-se a
organização jurídico-política.261 O sentido deixa de ser pessoal da figura do rei (rex), para
chegar às coisas (res) 262 dos Estados.

Constrói-se uma soberania única externamente, com identidade de


território e povo, nas relações externas. Mas internamente há a identidade de cada Estado
que constitui a união, mantendo-se os ordenamentos jurídicos originários, sua ordem
política interna própria, ainda que prevalecendo a autoridade que governa a união.

Também pode se dar pela linha sucessória dos monarcas263, mas neste caso
não há a possibilidade de quebra do vínculo, pois os dois Estados se fundem em um só.
Contudo, existiram casos de união real de repúblicas, como dos Estados de Tanganica e
Zanzibar, “sob o nome de Tanzânia, desde 1964”264. Ademais, tem-se os exemplos das
uniões reais monárquicas: Brasil e Portugal (1815-1822); Austria e Hungria (1867-1918);
Suécia e Noruega (1815-1905); Dinamarca e Islândia (1918-1944).

A União incorporada pressupõe a união de Estados em que prevalece a


identidade do Estado que surge, em detrimento dos Estados originários. Segundo

259
UNIÃO DE ESTADOS. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 539.
260
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1972, p. 207.
261
UNIÃO DE ESTADOS. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 539. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 367.
262
o termo real vem da palavra latina “res”, que significa coisa.
263
PANSARDI, Mário Artur. Iniciação ao Estudo do Direito. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1972, p. 208.
264
UNIÃO DE ESTADOS. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 539.
Azambuja265, “resulta da fusão de dois ou mais Estados independentes para formar um
novo Estado, conservando aqueles virtualmente a designação de Estados ou reinos”, pois de
fato ao incorporarem-se, deixam de existir como Estados, figurando apenas
protocolarmente, sem subsistirem poderes soberanos, ou autonomia política. Resta aos
Estados originários autonomia administrativa e a designação anterior, de reino ou república,
de caráter honorífico.266 O melhor exemplo é o da Grã-Bretanha, que incorporou a
Inglaterra, a Escócia e a Irlanda do Norte, que se mantiveram apenas como reinos, sendo
governadas pela Grã-Bretanha, que é o Estado soberano.

Estado Federal

O Estado Federado é a mais importante forma de Estado Composto e há


muito deixou de ser uma novidade na organização política das sociedades dos mundo, para
ser uma das mais bens sucedidas formas de Estado, abrangendo uma grande parte das
Repúblicas atuais.

Origem, conceito e características

Estado Federal tem sua denominação tirada do termo latino “foedus”, que
significa aliança, união, tratado de união. Na verdade, a federação é uma união de Estados,
porem, seu liame se dá de forma constitucional, formando um terceiro Estado, chamado de
União, que é o Estado Composto. Este Estado Federal é uma “entidade política soberana,
formada pela união constitucional de Estados, que a integram com poderes autônomos”.267

Desta forma, reforça-se seu caráter de Estado Composto, pois em uma


federação convivem dois níveis de Estados: os primeiros seriam os Estado originários, que
se unem entre si, formando o Estado Federal; este, por conseguinte, seria o nível superior, a
União, que coordena estes Estados-membros. Assim, acima de todos está a União,
representando o Estado Federal e, abaixo, os Estados membros.

265
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 367.
266
UNIÃO DE ESTADOS. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998, p. 539.
O Estado Federal é fruto direto da formação histórica dos Estados Unidos
da América, não sendo um “resultado de modelos teóricos” 268, mas da construção de uma
aliança de Estados, que, ao se tornaram independentes, desejavam a união, ainda que não
fosse de forma tão absoluta como um Estado unitário, nem tão frágil, como uma
confederação. O primeiro instante da formação do Estado Federal norte-americano ocorreu
com a formação de uma confederação269 norte-americana, em 1781, criada após a
independência das treze colônias norte-americanas, em 1776. No entanto, a união
confederativa não atendia os interesses norte-americano, pois possuía a fragilidade de
qualquer tratado, que pode ser encerrado com a vontade das partes e não tem força
normativa obrigatória, dependendo da ratificação dos Estados-membros e, por conseguinte,
dos ordenamentos pátrios. Logo a federação tornou-se a opção segura para a união dos
Estados norte-americanos, já que “os laços estabelecidos pela confederação eram
demasiado frágeis e que a união dela resultante era pouco eficaz” 270. Neste sentido afirma
Sousa et alli271: “o mecanismo da Confederação, revelou-se ineficaz, pois era desprovido de
aparelhamento executório, de recursos financeiros e de instrumentos coercitivos para,
quando necessário, reduzir à obediência os Estados confederados”.

Assim, em 1787, os representantes dos Estados confederados reuniram-se


em um congresso para revisar os atos que fundavam a confederação e promulgaram uma
constituição de um Estado Federal, unindo de forma inequívoca estes Estados, instaurando
um poder central acima dos Estados-membros. Ou seja, um poder central não subordinado
aos Estados que o compõe, mas subordinando-os, consistindo em transferência de soberania
dos Estados partícipes para a união federal (poder central). A federação criada pela
constituição dos Estados Unidos da América, de 1787 272, consiste na formação de um
Estado soberano composto por Estados-membros, sem soberania, mas com autonomia
sobre assuntos internos.

267
ESTADO FEDERAL. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz,
1998 p. 211.
268
SOBERANIA. MATTEUCCI, Nicola. In. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.. Dicionario
de Política. Trad. Carmen C. Varriale... [et al]. Vol. II. 5.ª ed. Brasilia: Universidade de Brasilia: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 1186.
269
Ver o item seguinte.
270
DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit , p. 257..
271
ESTADO FEDERAL. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op. cit. p. 211
A construção do Estado norte-americano, com a convivência de dois níveis
de poder, formando único Estado, acabou se tornando modelo de Federação, onde se
coabita dois níveis de soberania e os Estados membros detêm autonomia para a gestão em
seu território, possuindo a União soberania externa e interna. Ou seja, o Estado Federal é
um Estado Composto, onde os Estados-membros constitui uma descentralização política,
em face da sua autonomia. Kelsen273 aduz que é o grau de descentralização que diferencia o
Estado Unitário do Federal, pois na descentralização federal, as unidades inferiores
possuem autonomia política, conduzindo-se, enquanto que na descentralização do Estado
unitário as unidades inferiores possuem apenas uma autonomia administrativa, executando
os comandos do poder central.

Desta forma, Filomeno274 define: “Federação é a união permanente e


indissolúvel de Estados autônomos, mas não soberanos, sob a égide de uma Constituição,
sendo certo que, entre eles, já há uma repartição interna de atribuições governamentais”. A
constituição federal é o instrumento de ligação e fusão dos Estados, onde cada um deixa de
ser soberano interna e externamente, figurando como entidade autônoma. Tal autonomia, é
importante frisar, se fundamenta na soberania que o Estado Federal enverga, que é exercida
por este poder central, visto que não se pode falar em divisibilidade da soberania. Assim,
não se se permite dizer que os Estados-membros possuem soberania, mas recebem, através
da Constituição, uma autonomia política fundada na soberania do Estado Federal.

Cabe a constituição, em tese, desfilar as competências dos âmbitos federal


e estadual275, respectivamente. Subsistem as constituições estaduais, que atuam em
conformidade com a constituição federal, se subordinando ao ordenamento jurídico
comandado por esta. Portanto, prevalece a constituição federal, cabendo à constituição
estadual as competências que lhe são destinadas.

Se no Estado unitário os poderes Legislativos, Executivos e Judiciários são


exercidos pelo poder central, aqui esta organização se dá nos dois âmbitos, federal e

272
Neste sentido: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 256. ESTADO FEDERAL. SOUSA, J. P. G. de et al. loc. cit.
273
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Op. cit., p. 451.
274
FILOMENO, José Geraldo Brito. Op. cit., p. 87.
275
“O adjetivo estadual refere-se aos Estados-membros, e federal ao Estado composto.” AZAMBUJA, Darcy.
Teoria Geral do Estado. Op. cit. p.371.
estadual. Assim, além do poder central, denominado União, os Estados-membros também
envergam os três Poderes. Contudo, é mister esclarecer, que o Legislativo é exercido no
âmbito federal, criando normas para toda a federação, e no âmbito estadual, criando normas
para o respectivo Estado-membro. Tanto as normas federais, quanto as estaduais compõe o
ordenamento jurídico do Estado Federal, que é um só. Persiste apenas uma ordem jurídica
composta por fontes jurídicas federais e estaduais.

O mesmo ocorre com os demais poderes276, que são exercidos


soberanamente pela União e autonomamente pelos Estados-membros, havendo tribunais
(judiciário) e governos (executivo) estaduais e federais. Além disso, mais um exemplo da
autonomia política assumida pelos Estados-membros é a eletividade de seus governantes e
legisladores, que não são meros executores dos comandos da União, mas administram e
governam autonomamente os respectivos Estados-membros.

Destarte, pode-se resumir que há um poder federal, exercido pela União,


organizado em Três Poderes. Tal poder tem soberania externa, representando o Estado
internacionalmente, tendo personalidade jurídica de direito internacional, possuindo,
também, soberania interna, condutora da federação. Coexiste com o poder federal o poder
estadual, exercido pelos Estados-membros, também organizado em três Poderes, mas
exercido apenas de forma autônoma, fundada na soberania da federação. Não deve haver
conflito entre estes poderes, federal e estadual, pois a constituição federal delimita as
respectivas competências, havendo uma relação harmônica, onde o papel da federação é
coordenar as atuações estaduais. Contudo, em caso de conflito entre União e Estado-
membro, prevalece o poder federal, pois é quem detém o papel de unificadora do Estado.

A Constituição também garante o caráter permanente do vínculo


federativo, onde nenhum dos Estados tem o direito de secessão, sendo um indissolúvel tal
vínculo.277 O Estado Federal, nessa ótica, é uma formação definitiva de organização
política e social, a possibilidade de quebra do vínculo entre os Estados causaria uma

276
“No Estado federal não apenas a competência legislativa é dividida entre a federação e os Estados
componentes, mas também a competência judiciária e administrativa.” KELSEN, Hans. Teoria Geral do
Direito e do Estado. Op. cit., p. 456.
277
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. Op.
cit., p. 251.
instabilidade de grande vulto, transformando o Estado Federal em uma situação transitória.
A manutenção da soberania e do território de um Estado Federal deve ocorrer da mesma
forma que um Estado Unitário, onde não há a possibilidade de parcelamento do território,
do povo e da soberania.

Por fim, cabe tratar da questão da representatividade, dentro do sistema


jurídico-político de federação, que foi uma dos problemas que os norte-americanos tiveram
que resolver na elaboração de seu modelo. O problema era saber se haveria uma
representação por Estados, que poderia fazer com que um Estado grande tivesse a mesma
representação na federação que um pequeno. Ou fazer uma representação do povo, que
tornaria um grande Estado possuidor de mais representatividade que um pequeno. Qualquer
uma das soluções deixaria alguns Estado insatisfeitos com o sistema. Assim, resolveram
adotar o bicameralismo, nos moldes do parlamento inglês, onde se teria uma espécie de
Câmara dos Lordes, que teria a função de representar os Estados, de forma igual, sendo
chamado de Casa dos Estados ou Senado, além de uma Câmara dos Comuns, representando
o povo, sendo chamado de Casa dos Representantes ou Câmara dos Deputados, onde cada
Estado teria um número de representantes conforme a população. 278 Assim, o Legislativo
Federal seria bicameral, com representação dos Estados e do povo. Contudo Azambuja tem
uma outra posição, onde afirma que em ambas as casas há uma representação dos Estados,
onde na Câmara dos Deputados representa-se a população dos Estados, enquanto que no
Senado os Estados representam-se igualmente. 279

Processos de formação de um Estado Federal

Um Estado Federal, em regra, pode se formar através de dois processos


distintos. O primeiro, chamado de ‘federalismo por agregação’, onde Estados
independentes sofrem uma aglutinação, transferindo suas soberanias originais para o Estado
Federal. É o exemplo da formação federal dos Estados Unidos, que se repetiu na Suíça e na

278
Sobre a Casa dos Representantes, ou Câmara dos Deputados, e a Casa dos Estados, ou Senado, ver:
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Op. cit., p. 454.
279
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p.375.
Alemanha. Zimmermann280 os nomeia como a “tríade clássica” do federalismo por
agregação, visto terem iniciado seu processo através de uniões confederais, tendo adotado,
então, uma união federativa, através de pactos constitucionais, garantindo a sobrevivência
de uma nova e mais forte unidade federativa. É o que Baracho281 chama de “federalismo
por associação”, citando Benoit Jeanneau.

O segundo processo vem da descentralização política de um Estado


originariamente unitário, através da criação de unidades de poder, com autonomia política
limitada, constituindo-se Estados-membros de uma União Federal. São exemplos o México,
a Argentina e o Brasil. É o “federalismo por dissociação”, segundo denominação de
Baracho282, ainda citando Benoit Jeanneau, ou “federalismo por desagregação”, nas
palavras de Zimmermann283.

Neste último caso os Estados-membros nunca foram Estados soberanos.


Marcelo Figueiredo284 demonstra que tal processo acaba por não formar um federalismo
verdadeiro, visto que há uma grande concentração de poder na União, quase que se
verificando um Estado unitário, não se realizando a descentralização almejada.

Identificam-se, nestes dois processos de formação federal, motivos


distintos. Sousa et alli285, ao tratar da federação brasileira, afirma que “com a federação,
buscava-se, contrariamente aos federalistas norte-americanos, não a integração, mas a
desintegração do poder, a fim de chegar à descentralização.” Em verdade esta
descentralização significa uma distribuição de poder, de forma regional, que venha
desenvolver regiões mais afastadas dos grandes centros, buscando um desenvolvimento
mais uniforme.

280
ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrátivo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris,
1999, p. 54.
281
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p.
146.
282
Ibidem.
283
ZIMMERMANN, Augusto. Op. cit., p. 54.
284
FIGUEIREDO, Marcelo. Op. cit., p. 120.
285
FEDERALISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. Op. cit., p. 230.
No processo norte-americano há uma clara resistência dos Estados-
membros quanto à centralização de poderes pela União. Segundo Zimmermann286: “os
Estados-membros dos sistemas federais por agregação, que, portanto, exerciam soberania
anterior à composição federal, apresentam, em geral, uma maior resistência à centralização
política”.

Conclui-se que o processo de formação federal por dissociação acaba por


manter um poder central muito forte, em face da transferência incompleta de poder para as
unidades federativas. Destarte, a relação de poder entre Estados-membros e União se torna
desigual, na medida em que esta acaba por concentrar a maior parte da força política. Por
outro lado os Estados-membros de uma federação por associação são resistentes na
transferência de poder para a União, o que gera um certo equilíbrio de poder entre União e
Estados-membros.

Há, deste modo, como identificar duas formas de federalismo, quanto a


relação de poder entre Estados-membros e União: ou se tem uma Federação onde há
centralização de poder pela União, absorvendo as competências estaduais, ou se tem um
equilíbrio de poder entre União e Estados Membros. Porém, vale a lição de Zimmerman287,
que diz que “verifica-se uma aparente tendência centralizadora em quase todas as
Federações hoje existentes” e de Sousa et alli et al288, quando declara que o “federalismo é
incapaz de impedir a crescente totalização de poderes no âmbito do Estado”. Isto se
depreende do próprio processo histórico norte-americano, que inicia com uma
confederação, que fortalece o poder central, criando uma federação, que continuamente
vem reforçando suas competências.

Confederação de Estados

A Confederação é retratada por parte da doutrina como um Estado


Composto, mas esta não agrega totalmente os elementos de um Estado, pois o poder central
não contempla a soberania segundo o modelo aqui traçado. É legítimo afirmar que é uma

286
ZIMMERMANN, Augusto. Op. cit., p. 54.
287
ZIMMERMANN, Augusto. Op. cit., p. 56.
288
FEDERALISMO. SOUSA, J. P. G. de et al. Op. cit., p. 230.
integração de Estado, através de um tratado internacional, buscando um resultado comum,
sem natureza constitucional, também não sendo indissolúvel. Conforme Filomeno289” trata-
se, portanto, de uma união efêmera, porque admissível a secessão, ao contrário do que
ocorre na federação.” Sendo um tratado o instrumento que une os Estados confederados,
fica garantido que cada signatário preserve sua soberania, liberdade e independência,
podendo a qualquer momento desligar-se da confederação. 290

Lucio Levi291 afirma que o que diferencia a Confederação de uma simples


aliança entre Estado soberanos é a instituição de um “órgão político de caráter diplomático,
composto de representantes de cada Estado, com a incumbência de tomar decisões de
interesse comum”. O autor lembra que: “o princípio político em que se baseia a
Confederação é o da subordinação do órgão central ao poder dos Estados.”292

Logo, é primordial entender a diferença entre Federação e Confederação. A


primeira trata de uma união de Estados-membros, através de uma Constituição, cabendo o
exercício da soberania ao poder federal central, denominado União, cabendo aos Estados
partícipes as competências fixadas pela Constituição, que não excedem a autonomia
política limitada. Por ser formada por uma Constituição, significa a criação de um novo
Estado e os Estados-membros deixam de existir como pessoas jurídicas para a Sociedade
Internacional. Outrossim, fica claro que um Estado-membro não pode se separar da união.
Na Confederação não se forma um novo Estado, não há a elaboração de uma Constituição,
existe apenas a celebração de um tratado de cooperação entre Estados, com a formação de
um congresso ou órgão deliberativo, que, em via de regra, não tem poder vinculante sobre
os Estados Confederados. Por ser um acordo, qualquer um pode deixar a confederação a
qualquer momento.293

289
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Teoria do Estado e Ciência Política. Op. cit., p. 86.
290
DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit , p. 257.
291
CONFEDERAÇÃO. LEVI, Lucio. In. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.. Dicionário de
Política. Trad. Carmen C. Varriale... [et al]. Vol. I. 5.ª ed. Brasilia: Universidade de Brasilia: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 218-219.
292
Loc. cit.
293
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. Op.
cit., p. 252.
União Européia e Federação

Seguindo a análise da Confederação, não se pode afirmar que a União


Européia seja um Estado, pois lhe falta o elemento soberania, ainda que esta tenha recebido
uma parcela dos poderes soberanos dos Estados que a compõe. Trata-se de um processo de
integração “sui generis”, que alguns assemelham a uma federação incompleta. Em
verdade, ainda é uma i integração econômica com avanços da integração política.

Os elementos intergovernamentais demonstram que não se pode identificar


na União Européia de hoje um Estado Federal. Por elementos intergovernamentais
entendem-se os processos de tomada de decisão e de produção de normas que necessitam
do acordo entre os Estados, já que a União Européia não tem plena soberania. Funciona,
muitas vezes, como se fosse uma confederação de Estados.

Contudo, a integração européia conseguiu, logo em 1951, através da


primeira Comunidade (a Comunidade Européia do Carvão e do Aço) uma organização
supranacional, com transferência de parcela de poderes dos Estados-membros. Portanto,
algo só alcançado nas integrações federativas. Diante da impossibilidade histórica de
formação federal294, houve a adoção de uma alternativa setorial ao processo de integração
federal, que é a integração funcionalista. Assim, estabeleceu-se uma estrutura
supranacional, com poderes soberanos sobre um setor da economia européia, inicialmente o
carbo-siderúrgico

A supranacionalidade é o traço distintivo da unificação européia, comum à


federação, que também forma uma estrutura de poder sobre os Estados-membros. Porém,
“não é legitima a confusão entre os dois conceitos”, supranacionalidade e federalismo”,
afirma Fausto Quadros. .295 “É certo que a supranacionalidade se serve da ‘técnica jurídica
federal’. Mas não é o bastante para afirmar que a supranacionalidade importa em federação.

294
Deve-se lembrar que a União Européia é composta por Estados soberanos consolidados, diferente das treze
colônias que constituíram a federação americana. FEDERAÇÃO. LEVI, Lucio. In. BOBBIO, N.;
MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.. Dicionario de Política. Trad. Carmen C. Varriale... [et al]. Vol. I. 5.ª ed.
Brasilia: Universidade de Brasilia: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 484.
295
QUADROS, Fausto de. Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público. Contributo
para o estudo da natureza jurídica do direito comunitário europeu. Coimbra: Almedina, 1991.p. 120.
Outro dado de sua organização sui generis é o caráter constitucional de seu
Tratado (1992), como afirma Ana Maria Guerra Martins296, lembrando que a constituição
da União é contratual, “produto de um pacto inicial entre os Estados membros”, através de
um tratado, sendo também uma “constituição em formação”. Deve-se recordar que o
modelo de integração que adota a constituição como instrumento de união é a federação,
mas que também não pode ser definida, ainda, como uma constituição federal.

Seguem-se outros pontos desta unificação, irrenunciáveis e irreversíveis,


que coincidem com o modelo federal, como a adoção de uma moeda única, o “euro”, e um
Banco Central Europeu, que configura uma integração além da econômica, atingindo níveis
políticos fundamentais na soberania dos Estados-membros, assinalando um viés federalista,
pois o Banco Central Europeu pode ser considerado“a única instituição da União com
caráter realmente federal”. 297

O Parlamento Europeu é outro ponto, pois, segundo Lucio Levi298, “todas


as uniões de Estado que se baseiam no voto são, de fato, federações” e afirma
categoricamente que: “pode-se afirmar que, após o voto europeu, a Comunidade já seja
uma federação, mesmo se ainda não for dotada de todas as prerrogativas constitucionais”.

A cidadania européia é outro caráter federalista da União, já que é “uma


etapa, um meio, um índice revelador do processo de integração européia em direção a um
Estado federal, em relação ao qual se está já constituindo-se um núcleo mínimo de direitos
políticos próprios e peculiares a todos os seus cidadãos.” 299 A União Européia, com a
instituição de uma cidadania européia, abraça a todos os indivíduos que sejam cidadãos de

296
MARTINS, Ana Maria Guerra. A Natureza Jurídica da Revisão do Tratado da União Européia. Lisboa:
Lex, 2000, p. 377.
297
D’ARCY, François. União Européia. Instituições, políticas e desafios. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer
Stiftung, 2002, p. 122.
298
UNIFICAÇÃO EUROPÉIA. LEVI, Lucio. In. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G..
Dicionario de Política. Trad. Carmen C. Varriale... [et al]. Vol. I. 5.ª ed. Brasilia: Universidade de Brasilia:
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 1273.
299
BAREL, Bruno. CIDADANIA EUROPÉIA: a dupla cidadania dos cidadão dos Estados-membros da
União Européia e a identidade nacional. Trad. Naiara Posenato. In.: DAL RI JUNIOR, Arno; OLIVEIRA,
Odete Maria de. (org). Cidadania e Nacionalidade: efeitos e perspectivas nacionais – egionais – globais. 2.ª
ed. Ijuí: Unijuí, 2003, p. 333.
qualquer dos Estados-membros, garantido-lhes direitos comuns. Tal prerrogativa é
compartilhada pelas integrações federalistas300.

Complementando estes pontos, deve-se levar em conta o que Campos e


Campos301 chamam de “‘federalismo jurídico’ comunitário”. Segundo os autores,
obedecendo ao princípio da primazia do direito federal sobre o direito dos Estados, o direito
comunitário se integra automaticamente, de pleno direito, na ordem jurídica dos Estados, o
que o torna exigível pelos sujeitos de interesse, assim como “exclui a aplicação de qualquer
norma nacional contrária” e possui “interpretação uniforme e de uma uniforme apreciação
de validade”. Tal prerrogativa dá um caráter federal ao direito comunitário, ainda que não
seja federal a União Européia.

José Souto Maior Borges302 chega a traduzir o modelo de integração


européia como análogo ao de uma federação. Como afirma, não há igualdade, mas reveste-
se de analogia “com o regime federal de governo e a separação tradicional entre as funções
legislativas, executiva e jurídicional”. Porém o autor admite: “se essas caracterizações são
prematuras, há porém um tendencial no sentido dessa confederalização ou federalização
européia, na convergência dos esforços dos Estados-membros para a unificação
institucional dos ordenamentos jurídico-comunitário europeu”.

Assim, parece ser mais coerente adotar uma posição mais conservadora e
ver que o atual estágio da União Européia não de federação de Estados, lembrando que o
processo de integração não está finalizado e, portanto a federação, pode ser vista como uma
próxima etapa, mas não a atual realidade. Os elementos intergovernamentais estão
presentes no seio da União e ainda lhe resta alguns elementos, que por hora são de
competência dos Estados, como a soberania militar, que lhe permitiria a completa
independência de política exterior.303 Neste sentido Paulo Borba Casella entende que a
União Européia “se propõe como objetivo médio a progressiva integração econômica entre

300
Neste sentido: KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 458.
301
CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito comunitário. 4.ª ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2004, p.363 et. seq.
302
BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 85-87
303
UNIFICAÇÃO EUROPÉIA. LEVI, Lucio. Loc. Cit..
os Estados-membros, tem como fim último a unificação política”.304 Logo parece inevitável
a previsão de uma união política.

De qualquer forma, este é apenas um exercício de comparação da União


Européia com o modelo federal de Estado. Assim como os norte-americanos construíram
um modelo “sui generis” à época de integração, os europeus o realizam nesta virada de
milênio.

Estado Unitário Estado Composto

Há uma autoridade a exercer a soberania Mais de uma autoridade a exercer


soberania

Um único governo Mais de um governo

Não há divisões internas com poderes Há divisões internas com poderes


soberanos ou autônomos soberanos ou autônomos

Federação Confederação

Liame constitucional Laime contratual

Subordinação dos Estados ao Poder Subordinação do Poder Central aos


Central Estados

Indissolúvel Solúvel

Soberana Não soberana

De certo que o elemento formal do Estado é o que mais preocupou a


Humanidade, pois dele depende a plena realização da sociedade. A soberania, o poder, o
governo e as instituições políticas sempre conduziram, para o bem ou para o mal, o povo e
o território. A história mostrou que a melhor concepção desta soberania, aquela que poderia
levar o Estado ater-se à realização da sociedade, seria a de soberania popular. Logo, o poder
envergado pelo Estado deveria ter legitimidade popular, assim entendido como erigido pela
sociedade. No entanto, não é suficiente uma concepção teórica, sem que haja construção

304
CASELLA, Paulo Borba. União Européia: instituições e ordenamento jurídico. São Paulo: LTr, 2002, p.
215.
efetiva da soberania popular. A estrutura de poder deve se realizar segundo um modelo que
prestigie o domínio do poder pelo seu titular, o povo, e que seu exercício seja limitado e
controlado por este.

Deste modo, se formou, no conjunto das idéias libertárias, a teoria da


Separação do Poderes, onde o poder do Estado dever ser limitado e desconcentrado, de
forma que não haja uma única autoridade a exercer todas as faces deste Poder, mas dividir a
sua execução, instituindo várias autoridades, através da organização de estruturas com
funções bem delimitadas. Destarte, dividiu-se a organização do Poder do Estado em três
conjuntos de órgãos, chamados de Três Poderes: o poder executivo, com função
governamental e administrativa; o poder legislativo, com a função de legislar e de controle;
e o poder judiciário com função de julgar.

Desenvolvimento histórico

Esta construção teórica remonta a Grécia antiga, com obra de Aristóteles


chamada “Política”, que refutava a possibilidade de um homem realizar com eficiência o
exercício do poder.305 Aristóteles, segundo Figueiredo306, afirmava que nos governos há
três poderes essenciais: o primeiro de deliberar sobre os negócios do Estado; o que
compreende as magistraturas ou poderes constituídos; e, por último, aquele que abrange as
tarefas de jurisdição. Bastos307, de forma semelhante, relata que o filósofo tratou de uma
função consultiva, uma judiciária e de um magistrado incumbido dos restante assuntos da
administração. O poder deliberativo ou consultivo, seria, na tradução de Azambuja308, “a
assembléia de cidadãos, o corpo deliberante, o verdadeiro soberano”, seria uma espécie de
legislativo, que além da função de legislar, teria mais algumas funções que hoje são
destinadas ao governante e aos juizes, como o confisco e pena de morte, respectivamente.
A magistratura seria o poder de governar, atribuído, hodiernamente, ao executivo.
Coincidente seria a função judiciária, que não percebe maiores distinções terminológicas.

305
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 218.
306
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. Op. cit. p. 14.
307
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 74.
308
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 177.
Conduto, Azambuja309 critica tal definição, posto que todas as atribuições eram delegadas a
Assembléia, constituindo a magistratura e os juízes apenas delegados, não sendo
propriamente, portanto, uma divisão de poderes.

No decorrer da história, inúmeros autores apresentaram teorias que


distinguem diferentes faces do poder do Estado: como foi Marsílio de Pádua, que separou
as funções legislativas e executivas; Maquiavel, que elogia os três poderes distintos na
França, revelados pelo Parlamento, pelo rei e pelos juízes;310 Jean Bodin, que considerava
conveniente separar a administração da justiça das atribuições do rei. 311 Todavia, algumas
doutrinas marcam o inglês John Locke como o precursor da teoria da separação de poderes,
combatendo o absolutismo monárquico.312 Suas idéias advinham da teoria contratualista,
onde os homens, no hipotético estado de natureza, estabeleceriam um pacto, constituindo o
poder legitimado pela coletividade. Este poder seria exercido pelo legislativo, além do
poder executivo, de aplicar as leis, e o federativo, de garantir a segurança externa.313

A clareza da teoria veio com Montesquieu, que seguindo o pensamento de


Aristóteles, afirma que “tudo estaria perdido se uma só pessoa, ou um só corpo de notáveis,
de nobres ou do povo, exercesse estes três podes: o de fazer as leis, o de executar as
decisões públicas e o de punir os delitos ou contendas entre os particulares” 314. O espírito
da teoria da Separação de Poderes vem da limitação do poder do soberano, daquele que
exerce a soberania popular, buscando evitar o abuso. Montesquieu “preconiza que um
poder venha a ser contido por outro poder”.315 Bobbio316 entende que o poder deve ser
“distribuído de modo que o poder supremo seja conseqüência de um jogo de equilíbrio
entre diversos poderes parciais, e não se concentre nas mãos de uma só pessoa”. Nota-se o
entendimento que o poder soberano é apenas um (uno e indivisível), que é composto pelo

309
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 177.
310
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 218.
311
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41.ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 177.
312
SEPARAÇÃO DOS PODERES, TEORIA DA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. Op.
cit. p. 483.
313
SEPARAÇÃO DOS PODERES, TEORIA DA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 484.
314
MATTEUCCI, Nicola. Constitucionalismo. In.: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. Op. cit., p. 248.
315
SEPARAÇÃO DOS PODERES, TEORIA DA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 484.
conjunto de poderes públicos organizados harmonicamente, de tal forma que não haja
concentração, mas um exercício que privilegie a soberania popular. Desta feita,
Montesquieu distingue três espécies de poderes, que chama de potencias: potência
legislativa, potência executiva e potência de julgar.317

Esta concepção de organização estatal foi tomando forma definitiva, onde o


exercício do poder seria delimitado conforme o órgão, limitando, seja porque nenhum
poderia exercer função que não fosse a sua, seja pela faculdade de estatuir e de impedir.
Estas faculdades, denominadas por Montesquieu, consistiam: no “direito de ordenar por si
mesmo ou corrigir aquilo que foi ordenado por outro” (estatuir); no “direito de considerar
nula uma resolução tomada por qualquer outro poder”.318 Este representou o gérmen do
sistema de freios e contrapesos, que os americanos instituíram em seu presidencialismo.

Outra forma de limitar o poder da autoridade é instituir órgãos com


composição representativa. Desde Aristóteles, com relevo em Locke, o legislativo seria o
“lócus” do poder popular, onde os representantes, capazes de frear os atos do povo
(faculdade de estatuir) e ser freados pelo povo. Se a potência executiva não é órgão
representativo, na realidade de Montesquieu, poderá ser freado pelo legislativo, pela
faculdade de impedir. 319

Esta teoria acabou por se tornar um dos elementos constitutivos do Estado


de Direito, por limitar o poder do Estado, atrelando-o ao poder do povo. A república
presidencialista norte-americana, a Revolução Francesa e o parlamentarismo inglês
tornaram a teoria uma prática democrática, de manutenção do poder do povo na condução
do Estado.

da Separação dos Poderes

316
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. 10.ª ed. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UnB, 2000, p.
136.
317
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, O. PISIER-KOUCHNER, E. História das Idéias Políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 66.
318
SEPARAÇÃO DOS PODERES, TEORIA DA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 484.
319
CHÂTELET, F.; DUHAMEL, º PISIER-KOUCHNER, E. História das Idéias Políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 66.
Para Aristóteles, ainda que as funções fossem exercidas por órgãos diferentes, o poder
continua uno.320
Poder uno

Freios e contrapesos

Independência e harmonia

 Separação de Poderes, Forma de Governo e Sistema de Governo

Segundo Bobbio321 a teoria da Separação de Poderes compreende


historicamente duas doutrinas diferentes: uma teoria das formas de governo, onde se busca
equilibrar as classes que compõem a sociedade, portanto o rei, os aristocratas e o povo; e
uma teoria da organização estatal, onde o melhor modo de organizar o poder é fazer com
que as várias funções sejam exercidas por diferentes órgãos.

A primeira concepção resultou na teoria da forma de governo,


apresentando a dicotomia entre república e monarquia, onde o primeiro propõe um governo
eletivo e temporário, enquanto que o segundo vitalício e hereditário. Alternativamente têm-
se, como formas de governo, a autocracia e a democracia, onde o governo se dá em função
do governante ou do povo, respectivamente. Nota-se a relação direta da monarquia
parlamentar e da república com a democracia, como formas complementares do exercício
da soberania popular.

Assim, como forma de governo, a Separação de Poderes visa evitar o


domínio do poder por classes e elites, tendendo construir instituições de poder e órgãos
através de uma estrutura conduza o governo conforme a coletividade, indistinta de classes.
É claro que a Separação de Poderes se identifica com a Democracia e a República, pois

320
SEPARAÇÃO DOS PODERES, TEORIA DA. SOUSA, J. P. G. de et al. In: Dicionário de Política. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 484.
321
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Trad. Daniela B. Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.
286.
nestes casos lhes garante a funcionalidade da soberania popular, da eletividade e da
temporariedade, evitando concentração de poder e retorno a hereditariedade, vitaliciedade e
autocracia.

A segunda concepção apontada por Bobbio, que traduz a teoria da


Separação dos Poderes como uma teoria da organização estatal, a identifica, mais uma vez,
com a soberania popular. Assim como o parlamentarismo e o presidencialismo, esta teoria
estabelece um modo de organização do Estado, que lhe permita manter sua legitimidade
democrática. Os sistemas de governo estão diretamente ligados a Separação de Poderes,
visto que em ambos se arquiteta as formas de tomada de decisões e de estabelecimento da
autoridade de governo. A Separação de Poderes não determina quem governa, pois isto
cabe ao sistema, presidencial ou parlamentar. A esta cabe determinar como que se dará o
estabelecimento dos órgãos de poder de governar, administrar, legislar, fiscalizar e julgar,
sem ocorrer concentração.
3 A CRISE DO ESTADO MODERNO322

3.1 A globalização323

Mudanças extraordinárias vêm ocorrendo nas últimas décadas em várias


partes do mundo e em diferentes dimensões da vida humana. O fim da guerra fria e o
colapso do comunismo levaram o presidente norte americano George Bush a anunciar, em
11 de setembro de 1990, no Congresso, uma nova ordem internacional.

O fim do antigo regime, cuja característica principal era a bipolarização,


inicia na década de 80. Para Ricupero,324 os anos fatídicos são 1979 e os três seguintes,
durante os quais vimos consternados a derrota do Xá e as humilhações da invasão da
embaixada dos Estados Unidos em Teerã, a vitória sandinista na Nicarágua, a solidificação
do Solidariedade na Polônia, a inflação norte-americana que chegou, em 1981 aos
escandalosos níveis de 13% e as cotações dos produtos primários desabaram a níveis
inferiores aos da depressão de 30. A partir de 1985 surge, na URSS, a vigorosa liderança de
Gorbachov e abre perspectivas de reforma no regime socialista. Duas palavras novas
incorporam o léxico Mundial: “glasnost” e “perestroika”. Sobre os países do leste

322
CRISE, como define Gramsci, “consiste justamente no fato de que o velho não morre e o novo não pode
nascer”. Ensina Barroso que é uma situação intermediaria entre dos modelos, portanto, possui como
característica a transitoriedade. É sempre um rito de passagem que, por conseqüência, não é pacífico nem
tranqüilo, daí ligar-se a idéia de ruptura, de quebra da ordem. Convivem ao mesmo tempo o velho, em
decadência e o novo, em gestação. Uma crise pode ter graus variados de intensidade. Assim será operatória se
restringe-se ao funcionamento de um determinado sistema, ao passo que se estrutura, quando recai sobre a
própria natureza do sistema. De qualquer maneira, as crises são sempre contextuais e relacionais, o seja, não
ha uma crise isolada em um determinado setor que não tenha reflexo em outros domínios. (AGUIAR, R. A
Crise da Advocacia no Brasil, 2a ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1992, p. 17; BARROSO, Pérsio Henrique.
Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 31-32.)
323
Muitos autores tem discutido o termo “globalização”. Surgem definições terminológicas distintas, análises
lingüísticas e a defesa de termos como “internacionalização”, “mundialização”, “transnacionalização” e
outros. Optamos por manter o termo globalização por entender que é o mais acertado. Ademais, trata-se
apenas de uma discussão terminológica sobre o mesmo processo. Em uma única página da internet encontra-
se 274 menções ao termo “globalização” em diversas obras publicadas. O problema, diz Martins, é que esta
literatura parece estar produzindo mais desentendimentos que avanços conceituais. Estes desentendimentos
vão desde a definição da natureza e da importância do fenômeno à desqualificação do que possui de novo e
até a simples e pura negação de sua existência. Não há dúvidas que existe um uso ideológico da globalização,
mas isto não significa que o fenômeno se destitua de originalidade histórica ou que não exista. (MARTINS, L.
“Globalização: a importância do fenômeno”. In A Globalização entre o Imaginário e a Realidade. Serie
Pesquisas, São Paulo: Fundação Adenauer Konrad. 1998. p. 47).
324
RICUPERO, Rubens. “A década de 80 e a crise da América Latina”. In MOISÉS, José Álvaro (org.) O
Futuro do Brasil. A América Latina e o fim da guerra fria. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. p. 17
Europeu se abate então um formidável vendaval que conduz a lutas emancipacionistas e
raciais, culminando com as declarações de independência de Estados como a Ucrânia,
Letônia, Lituânia e tantos outros; Na Polônia, a vitória do Solidariedade e a formação do
primeiro governo não-comunista em 40 anos; na Hungria, o pluralismo partidário e a
adesão dos comunistas à Internacional Socialista; na Alemanha Oriental, a queda de um
regime sinônimo de rigidez e imobilismo e a derrubada do Muro de Berlim; na Bulgária e
Checoslováquia, a substituição dos dirigentes de linha dura.

A debilidade une os líderes dos dois blocos: Reagan y Gorbachov


mantém quatro encontros de cúpula, onde decidem pela eliminação dos mísseis
intercontinentais, a retirada de Exército Vermelho do Afeganistão, cortes nos investimentos
de defesa e a redução de armas estratégicas e forças convencionais325.

Com a decaída econômica dos blocos imperialistas e a distinção entre


poder militar e seu suporte econômico, surgem potências militares economicamente fracas
(URSS) e potências econômicas sem força militar (Japão). Inicia também, a formação de
blocos comerciais, provocando um progressivo desequilíbrio do centro de gravidade
econômica do mundo. O surgimento do Japão - como a primeira potência financeira - e dos
“tigres asiáticos” (Coréia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Cingapura) seguidos da Malásia e
Tailândia, provocou a mudança do eixo econômico-comercial do Atlântico para o Pacífico.
Também surge a nova Europa. Acaba a separação artificial e anti-econômica entre Europa
Ocidental e Oriental. A nova Europa ganha importância e conquista seu macroespaço
econômico, bem estruturado.

Para Fonseca326, são estas transformações radicais que, unidas a outras


forças poderosas decorrentes da revolução tecnológica (processamento, difusão e
transmissão de informações, inteligência artificial, engenharia genética) e a crescente
interligação e interdependência dos mercados financeiros em escala planetária que formam
o fenômeno que chamamos de globalização.

325
Os encontros de cúpula para desarmamento iniciaram na década de 70 com Nixon e Brezhnev, entretanto,
se intensificaram e produziram resultados positivos a partir do Reagan e Gorbachov.
326
FONSECA, Eduardo Gianetti. Caderno Especial do Jornal Folha de São Paulo. Edição 02.11.1997. p. 3.
A idéia de globalização não é nenhuma novidade, e não se trata de uma
palavra da moda mas a síntese do que vem ocorrendo no mundo a partir dos anos 90. Afinal
o comércio é tão velho como o mundo, os transportes intercontinentais rápidos existem a
várias décadas e as empresas multinacionais prosperam a mais de um século e a televisão,
os satélites e a informática são invenções dos anos 40/50.327

A novidade é o perecimento do único sistema que disputava com o


capitalismo liberal e que não permitia que esse existisse em escala planetária. O
desaparecimento do comunismo permitiu globalizar de fato o capitalismo.

E, com a queda das barreiras político-militares-ideológicas, inicia-se um


processo capitalista jamais visto. Agora o produtor compra matéria-prima em qualquer
lugar do mundo, onde seja melhor e mais barata. Instala sua fábrica nos países onde a mão-
de-obra custa menos, não importa se no Vietnã ou no Paraguai e vende sua mercadoria para
o mundo inteiro. É este fenômeno que chamamos de globalização.

Também neste sentido é o pensamento de Moore328, diretor geral da


Organização Mundial do Comércio. Para ele “globalização não é algo novo. A novidade
são as transações financeiras feitas de um lado a outro do mundo ao toque de um botão.

327
Para o sociólogo Octávio Ianni, a história mostra haver raízes da globalização no Império Romano. Para
ele o exemplo mais apropriado é o cristianismo, pois o Papa até hoje percorre o mundo para reafirmar o
projeto de globalização da Igreja Católica. (palestra realizada no Instituto Latino Americano de Estudos
Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). A mesma opinião manifesta o economista
argentino Juan Carlos Cachanosky: “globalização é um termo novo para algo tão antigo que remonta ao
Império Romano”, ressaltando que a diferença é a tecnologia (Entrevista ao Correio do Povo. ed. 11.11.1997,
p. 18). Também o antropólogo Renato Ortz afirma que “a globalização é um processo que tem raízes no
passado, mas no presente mostra sua originalidade, tendo no neoliberalismo sua ideologia predominante” (“A
globalização tem raízes no Império Romano”. Correio do Povo. ed. 28.04.1997. p. 13). A verdade é que a
história do ocidente mediterrâneo e da cristandade medieval está cheia de tentativas imperialistas com
pretensões mundiais – mundo aqui entendido como delimitado pelos limites conhecidos e ocupados pelas
potências dominadoras do momento. Os Romanos, a Santa Sé, os Estados nascentes da Idade Média,
Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, tiveram todos, a seu tempo, tais pretensões (ARNAUD, A-
J, O Direito entre a modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro: Renovar. 1999. p. 7).
Não podemos deixar de lembrar aqui as palavras de Marx e Engels em seu Manifesto Comunista de 1848:
“Graças a exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita a produção e ao consumo
de todo mundo. Arrancaram a indústria de sua base nacional.... As velhas industrias nacionais foram
destruídas e estão destruindo-se continuamente. São suplantadas por novas industrias, cuja instalação se
converte em um problema vital para todas as nações civilizadas, por industrias que já não empregam matéria
prima do país, mas matérias primas ventidas nas mas longínquas regiões do mundo e cujos produtos não são
consumidos somente no próprio país, mas em todas as partes do globo”. (MARX, K. y ENGELS, F. Das
Kommunistische Manifest. Op. Cit. p.100).
328
MOORE, Mike. “Entrevista Especial”. Revista Veja. Edição 1.653. 14 de junho de 2.000. p. 11
Desde que o homem é homem há trocas comerciais. Não estamos inventando a roda. No
começo dos anos 30 o volume do comércio internacional em relação ao PIB mundial era
maior que o de hoje”.

Ferrandérry329 esclarece que a globalização a que nos referimos é um


conceito que apareceu em meados dos anos 80, nas escolas de negócios norte-americanas e
na imprensa anglo-saxônica. A expressão designa um movimento complexo de aberturas de
fronteiras econômicas e de desregulamentação, que permite que as atividades econômicas
capitalistas estendam seu campo de ação a todo o planeta. O surgimento de instrumentos de
telecomunicações extremamente rápidos e eficientes possibilitou a viabilidade deste
conceito, reduzindo as distâncias a nada. O fim do bloco soviético e o triunfo mundial do
modelo neoliberal no início dos anos 90, deram a este fenômeno uma validade global.

A globalização nos remete a um processo social, econômico, cultural e


demográfico que se instala no coração das nações e as transcende ao mesmo tempo, de tal
forma que uma atenção limitada aos processos locais, as identidades locais e as unidades de
análises locais, faz incompleta a compreensão local. Assim estamos de acordo com
Pacheco330, para quem “globalização não é um fenômeno que possa ser explicado linear ou
unilateralmente. A ele convergem muitos e diversos fatores; é um processo em marcha, não
finalizado, um processo em transição a uma nova fase do capitalismo, cujo significado esta
muito longe de ser unívoco”. Então, a globalização não é uma ideologia, nem tampouco
um programa econômico a defender-se, é sim, um fenômeno que está ocorrendo no mundo.

Assim também é o entendimento de Thesing331, o conceito de


globalização descreve um processo. Outra coisa é globalização. Para ele, “globalização
designa a crescente integração de nações e regiões. Globalização significa, sobretudo, uma
revolução econômica e estrutural. A economia mundial encontra-se em transformação, e
cresce em conjunto, formando uma rede. No mundo todo, surgem mercados gigantescos,

329
FERRANDÉRRY, J.L. Le point sur la mondialisation. Paris: Presses Universitaires de France. 1996. p. 3.
330
PACHECO, P.M., “Transformaciones económicas y función de lo político en la fase de la globalización”
In Mundialización econômica y crisis político-jurídica,. Anales de la Cátedra Francisco Suárez. Universidad
de Granada, n° 32/2005. p. 103.
331
THESING, Josef. “Globalização, Europa e o Século 21”. Conferência proferida em 18.11.1997 na
Academia Teológica Católica de Varsóvia, Polônia. In A Globalização entre o Imaginário e a realidade.
Série Pesquisas. n° 13. São Paulo: Fundação Adenauer Konrad. 1998. p. 5.
ofertas de produtos e de trabalho e modernas possibilidades de comunicação. Nos
diferentes países, os mercados e a produção tornam-se cada vez mais interdependentes.
Através da dinâmica do comércio de bens e serviços e através dos movimentos de
tecnologia, surgem no mundo todo novas estruturas de poder”. Também neste sentido é o
pensamento de Macedo Júnior332, que descreve a globalização como uma nova fase para
onde caminha o capitalismo mundial, marcada pela transformação dos arranjos
institucionais (econômicos e políticos), hábitos, cultura e apreensão teórica de um mundo
anteriormente inexistente.

Aldo Ferrer333, ensina que há uma visão fundamentalista da globalização,


segundo a qual a economia atual responderia a forças inexoráveis que estão fora de controle
dos sistemas políticos e dos Estados nacionais. Estar-se-ia na presença de uma nova ordem
natural e o acatamento destas leis é o fundamento da racionalidade.

Segundo esta visão fundamentalista:

l. A globalização da ordem mundial atual, não tem antecedentes


históricos, pois a revolução tecnológica que estamos vivendo provocou uma ruptura no
desenvolvimento histórico da humanidade;

2. Nesta nova situação, os espaços nacionais ficaram dissolvidos na


ordem global. A acumulação de capital, a produção e a distribuição de bens e serviços se
realizam hoje, predominantemente, no mercado mundial;

3. Por isso, o desenvolvimento econômico e a concorrência alteraram sua


natureza, o que obriga às políticas nacionais a seguir as expectativas do mercado global;

4. Hoje em dia a desregulamentação plena dos mercados é a única ordem


possível e nesta nova ordem a mão invisível se encarregará de contabilizar os diversos
interesses.

Efetivamente são inúmeras as alterações impostas pela globalização.


Entre as principais se destacam:

332
MACEDO JUNIOR. Ronaldo Porto. “Globalização e Direito do Consumidor” In Direito Global.
(coordenadores: Carlos Ari Sundlfeld e Oscar Vilhena Vieira). São Paulo: Max Limonad. 1999. p. 227.
1. Alteração dos padrões de produção e do mercado de trabalho. Os novos
sistemas de especialização flexível e a fábrica global tornaram mais fáceis a produção local
em muitas partes do mundo, o que permite a terceirização e a sub-contratação, dando
surgimento a uma nova relação de trabalho. As empresas, mais dinâmicas e o mercado cada
vez mais integrado tendem a usar unidades autônomas, de produção, menor, mais flexível,
mais especializada e sub-contratam grande parte do trabalho de outras empresas. Esta
utilização de mão de obra mais flexível implica também uma tendência de tornar o emprego
de tempo parcial e inseguro.

2. União de mercados financeiros: a criação de mercados de capitais


unidos globalmente facilita o livre fluxo de investimentos através de fronteiras e escapa
totalmente ao controle dos governos.

3. Aumento da importância das empresas multinacionais: devido ao fato


das grandes multinacionais estarem agora capacitadas a expandir tanto a produção como
outras operações por todo mundo, além de mudar as fábricas de um país para outro, seu
potencial de negociação aumentou consideravelmente. Cada importante grupo industrial ou
financeiro tem, hoje, estratégias para atuação em todas as regiões do mundo. O número
destas empresas multinacionais aumentou vertiginosamente nas últimas décadas e o forte
deste crescimento ocorreu pelo aumento de organizações multinacionais de tamanho médio,
não por mega-empresas como a General Motors ou a Toyota334.

4. Aumento da importância do intercâmbio e crescimento dos blocos


regionais de comércio: as transações internacionais aumentaram sua proporção no PIB da
grande maioria dos Estados. As barreiras de comércio vêm diminuindo aceleradamente. O
conceito de comércio se ampliou e abarca serviços e a propriedade intelectual. As regras
internacionais que promovem o livre comércio de mercadorias, bens e serviços têm efeitos
diretos na legislação interna dos Estados, que se adaptam às regras internacionais.

333
In CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la Globalización? Santiago de Chile: LOM. 1999. p.31.
334
Segundo Capella Hernández, nos anos setenta o número de empresas multinacionais não passava de umas
poucas centenas. Em 1997 eram mais de 40.000. As duzentas multinacionais mais importantes possuem um
volume de negócios superior a quarta parta da atividade econômica mundial, ainda que empreguem apenas
18,8 milhões de pessoas, o que é menos de 0,75 da mão de obra do planeta. Ademais, em 1992, apenas setenta
destas empresas interviram na metade das vendas em todo o mundo (CAPELLA HERNÁNDEZ, J.R.
Transformaciones del derecho en la mundialización. Op. Cit. p. 94).
5. Expansão da democracia liberal e dos conceitos neoliberais – dando
ênfase ao mercado privado, a redução do papel dos Estados e o livre comércio -
influenciaram substancialmente toda a política não apenas ocidental, mas da antiga União
Soviética e da própria China.

6. Ajuste estrutural e privatização: todo o antigo bloco soviético e quase a


totalidade do mundo em desenvolvimento sofrem fortes pressões para estabilizar a
macroeconomia e reduzir o envolvimento direto do Estado na economia. Esta situação
aumentou consideravelmente a eficiência da produção, mas também atacou os salários e
aumentou o desemprego. A retirada do Estado da economia agravou principalmente o
problema dos mais pobres que viram reduzir os subsídios concedidos aos produtos básicos
como transporte e alimentos e o corte de muitos serviços de bem estar social.

Em resumo: favorecida pelas comunicações modernas, a grande indústria


se encaminha para uma produção pulverizada, ao redor do mundo, segundo suas
conveniências de custo, assim como o grande comércio adota uma política de vendas
voltada para tantos mercados nacionais quanto possível e a grande finança paira acima das
fronteiras.

Para Lamounier globalização é a culminação de um processo histórico


essencialmente benfazejo: a possibilidade de concretizar, finalmente, aquela promessa de
interdependência e desenvolvimento com que sonharam e a que tão enfaticamente se
referiram os grandes economistas e filósofos do século XVIII. O que eles anteviram não foi
nada menos que a superação das carências materiais mais agudas da humanidade e a
definitiva planificação do mundo, graças ao comércio e a divisão de trabalho. Esta utopia
ganhou outra dimensão importante no século XIX, notadamente através do marxismo: a
idéia de que esta formidável expansão de forças produtivas exigia a prévia e concomitante
redução das desigualdades sociais existentes dentro de cada país335.

A globalização é hoje o tema central nas discussões entre cientistas


sociais e políticos, e lembra Andrade336, que há uma forte tendência de crer que o mundo

335
LAMOUNIER. Bolívar. Gazeta Mercantil. p. A-3. ed. 26.11.99
336
ANDRADE, Manoel Correia de. Apud DANTAS, I. Direito Constitucional Econômico: Globalização &
Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 1999. p. 108.
passa por uma fase histórica e que caminha para a união e integração de vários Estados e
nações. Os arautos da globalização prenunciam que a nova ordem mundial caminhará até a
formação de uma aldeia global, onde sob a autoridade de uma única autoridade – o mercado
– todos os povos se confraternizarão e viverão felizes, em níveis sócio-econômicos e em
situações políticas ideais. Alcançar-se-ia um novo estágio da modernidade, onde a
sociedade abandonaria suas tradições e crenças e se integraria psicológica e culturalmente.

É verdade que o mundo nunca foi tão pequeno e encolhe cada vez mais
por causa da tecnologia. A indústria da informática e da telecomunicação vive uma
explosão sem precedentes, o que acarreta baixo custo e sua conseqüente popularização.
Paralelamente se começa a esboçar uma convergência entre a infra-estrutura de
comunicação e a indústria, à medida que ambas se digitalizam. É essa a conjunção que
torna possível um mundo globalizado, o que condenará à morte a localização geográfica.
Com os novos satélites, desaparecerão os pontos negros de comunicação, o planeta inteiro
estará apto a comunicação por celular. As teleconferências progredirão, as pessoas
participarão interativamente de congressos internacionais sem sair de sua casa, se fará
cirurgias a distância, se dará consultoria, aulas, notícias de qualquer ponto do planeta. Tudo
isso, evidentemente, tem um custo, como veremos a seguir.

3.1.1 A crise econômica

Contudo, a globalização também apresenta uma face perversa. Enquanto a


economia mundial está em processo de integração e de enriquecimento global, a
distribuição de riquezas está cada vez mais desigual. Assevera Chonchol337, que cada vez
mais são as grandes empresas multinacionais as principais criadoras e controladoras de
tecnologias e do capital e que essas são cada vez mais preocupadas com seus interesses que
com suas responsabilidades. Longe de buscar uma solução ao problema da disparidade
crescente entre ricos e pobres, as estruturas de seus negócios e investimentos aumentam
ainda mais estas distâncias.

337
CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 11.
E, segundo o Relatório do Programa de Desenvolvimento Humano da
ONU os perdedores não estão somente nos países pobres. Mais de 100 milhões de pessoas
vivem abaixo da linha da pobreza nos países desenvolvidos. Em alguns países, como na
Inglaterra e EUA, esse número tem aumentado. Os países da União Européia ficaram mais
ricos nos últimos anos, num percentual de 50% a 70%. A economia cresceu muito mais que
a população. Mas, para onde foi este aumento da riqueza? Nos Estados Unidos o
crescimento econômico somente beneficiou os 10% mais ricos da população. Estes 10%
ficaram com 96% do aumento da riqueza. Na Alemanha os benefícios às empresas
aumentaram, desde 1979 em 90%, enquanto que os salários médios aumentaram em 6%.
Entretanto, os impostos incidentes sobre os salários dobraram nos últimos 10 anos,
enquanto que os impostos por atividade empresarial foram reduzidos à metade: somente
representam 13% da arrecadação global; em 1980 representavam 25% e antes, em 1960,
35%338.

Mais assustadora é a revelação de Martin & Schumann: no final de


setembro de 1995, no hotel Fairmont, em São Francisco, Califórnia, realizou-se uma
reunião a portas fechadas, onde estavam aproximadamente 500 representantes da elite
mundial (cientistas, líderes políticos, mega-empresários). Dentre as autoridades que se
sobressaiam estavam: Michail Gorbachev, George Bush, Margaret Thatcher, Ted Turner,
John Gage, David Packard, representantes de Cingapura, Pequim, Saxônia, além de grandes
nomes da informática e das finanças mundiais, os sacerdotes da economia, os maiores
pensadores de Stanford, Harvard e Oxford. Em uma reunião de três dias debateram as
perspectivas do mundo para o próximo século. A avaliação foi devastadora e pode ser
resumida como “20 por 80”. Vinte por cento da população em condições de trabalhar no
século XXI, bastará para manter o ritmo da economia mundial. Mão de obra adicional não
será necessária. Um quinto de todos os candidatos a emprego poderá produzir todas as
mercadorias e prestar todos os serviços qualificados que a sociedade mundial poderá
demandar. Assim estes 20% participarão ativamente da vida e do consumo, seja em que
pais for. Outros 1% a 2%, admitem os debatedores, poderão ser agregados, por herdarem
alguma fortuna. Os restantes, em torno de 80% das pessoas aptas a trabalhar, terão enormes

338
Fonte: BECK, Ulrich. Que és la Globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización.
Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós. 1999. p. 21.
problemas e deverão contentar-se com um pouco mais que pão e circo. A discussão é como
manter os supérfluos 4/5 da população entretidos, às custas do esforço de 1/5 de
privilegiados. Está absolutamente fora de questão o engajamento social das empresas
privadas, já sobrecarregadas pela concorrência mundial. Outras organizações que cuidem
dos desempregados. Os debatedores esperam uma forte colaboração de fundações
beneficentes, dos voluntários de serviços sociais, das comunidades de bairros e grêmios
desportivos de toda espécie, assim como de eventuais alianças entre estes grupos339.

A concorrência internacional para atrair investidores, aumentar os


empregos e manter a arrecadação, gerou, nas últimas décadas uma guerra fiscal entre os
Estados, que reduziram impostos e obrigações a níveis insuportáveis, além de conceder
isenções e subvenções inimagináveis a algumas décadas. Esta tendência tem como marco
1986, quando os EUA reduziram os impostos sobre a renda das sociedades de capital, de
46% para 34%, estabelecendo um novo padrão internacional, pois com o passar dos anos a
maioria dos países precisaram acompanhar o modelo. Isto ocorre, lembra Aguirre340,
porque os Estados necessitam lutar para que as grandes empresas multinacionais se
instalem em seu território e ainda lutar para que suas próprias empresas não se mudem para
outros Estados que lhes ofereça vantagens mais competitivas. Esta situação conduz a
alianças entre as empresas multinacionais e os Estados e supõe uma ruptura no modelo
tradicional de diplomacia. As grandes empresas possuem alta tecnologia, velozes sistemas
de comunicações e acesso aos grandes mercados consumidores e toda essa capacidade
interessa aos Estados.

Como bem demonstram Martin & Schumann341, na Europa esta


concorrência assumiu formas grotescas. A Bélgica oferece, desde 1990, para empresas
ativas em mais de 4 países, a instalação do que chama “centros de coordenação”. Nestes
centros, as empresas podem concentrar todos os tipos de prestação de serviços -
publicidade, marketing, assessoria jurídica e seus próprios negócios financeiros - isentas de
impostos sobre os lucros obtidos desta maneira. O modelo se transformou em grande êxito;
multinacionais, como a Esso, a Mobil, a Continental, a Opel, a Volkswagen, a BMW, estão

339
MARTIN, H-P & SCHUMANN, H. A Armadilha da globalização. São Paulo: Globo. 1997. p. 7-12.
340
AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. Barcelona: Acaria. 1995. p. 22/25
341
MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 275/281.
entre as beneficiadas. Graças a generosidade belga, as filiais locais tornaram-se as mais
lucrativas do mundo. Mais atrativa ainda é a oferta da Irlanda que oferece aos que
administram seus negócios a partir de um escritório nas docas de Dublim. De cada dólar
ganho formalmente, através de uma sucursal na Irlanda, apenas 10 centavos vão para o
erário. Nos palácios de vidro que circulam o antigo porto da cidade, se instalaram as filiais
de mais de 500 empresas multinacionais: a Mitsubishi, o Chase Manhattan, todos os
grandes bancos e seguradoras européias, até a administração da incalculável fortuna da
Associação Creditícia Evangélica ocupa lugar ali. Até 1994, somente empresas alemãs
deixaram de pagar ao fisco Alemão mais de 25 bilhões de marcos utilizando a atalho da
Irlanda. A perda da arrecadação ocorre em todos os Estados. O império Siemens recolhia
até 1991, praticamente a metade de seus lucros aos cofres públicos dos 180 Estados onde
mantinha filiais. Em 4 anos, esta quota encolheu para apenas 20%342.

O ressecamento do tesouro nacional através da economia globalizada não


ocorre somente pelo lado das receitas. A nova economia impõe também gastos crescentes
ao caixa estatal. A concorrência por tributos mais baixos vem acompanhada de generosas
subvenções: a oferta gratuita de terrenos e de toda infra-estrutura urbana, incluindo luz e
água, representa o padrão mínimo mundial. Onde quer que uma empresa deseje se instalar
uma unidade de produção, os planificadores de custos poderão contar sempre com
subvenções e contribuições de todos os tipos.343 Assim, lembra Aguirre344, as empresas
com capacidade internacional podem hoje aproveitar as melhores condições para pesquisar
(nos paises mais avançados), produzir (onde seja mais benéfica a relação entre a

342
Idem. p. 279
343
A multinacional coreana Sansung, por exemplo, recebeu do Ministério da Fazenda Britânico 100 milhões
de dólares para a instalação de uma indústria eletrônica no norte da Inglaterra, investindo 1 bilhão de dólares.
Isto saiu muito barato ao governo britânico. Estados e regiões que desejam receber unidades industriais terão
que investir muito mais. Para a instalação da fábrica de carros pequenos da Mercedes-Benz em Lorena, os
contribuintes da União Européia e da França se comprometeram com 1/4 dos investimentos por meio de
subvenções diretas. Se adicionarmos as isenções fiscais, a participação do Estado chega a 1/3 do investimento
total, e sem direito a voto na administração da empresa. No Alabama, EUA, a Mercedes-Benz pagou somente
55% dos custos incidentes para a instalação de uma nova unidade de produção, mas comparando com a
isenção total de impostos por 10 anos que a General Motors negociou em 1996 chega a ser modesta a
participação do Estado. A Índia não somente oferece aos empresários estrangeiros salários baixos, como
facilita o acesso aos satélites, autoriza sem problemas qualquer produção, concede isenções fiscais por varias
décadas e permite, inclusive, a diminuição de garantias sociais. MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN,
Harald. A armadilha da globalização. Op. Cit. p. 280/285.
344
AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op. Cit.
p. 65.
capacitação da mão de obra, o preço da mesma, a pressão política e social dos sindicatos, a
conflituosidade social, as políticas impositivas do Estado ou a região, a situação geográfica
dos recursos naturais, o regime de investimentos e as normas ambientais) e comercializar
(nos mercados mais abertos e com maior capacidade aquisitiva, com melhor infra-estrutura
e onde se obtenha preços melhores.

O que se observa com isso, é que os governos democraticamente eleitos,


não conseguem mais decidir sobre o valor da tributação no Estado, são os próprios
negociantes de produtos, serviços e capitais, que estabelecem a contribuição que desejam
dar para atender aos encargos sociais, Isto modifica visivelmente a estrutura de poder do
Estado. Ademais, o fortalecimento das mega-corporações as torna muitas vezes, ao menos
economicamente, mais fortes que os Estados. De fato, na história do capitalismo nunca
houve uma concentração tão acentuada de capital. Apenas para ter-se uma idéia, as 200
maiores empresas do mundo faturam 1/3 do PIB mundial, estimado em 24 trilhões de
dólares345.

Nos aspectos econômicos da globalização, assume um papel altamente


relevante o capital internacional, mais precisamente o fluxo dos investimentos
internacionais. Como declara Johanpetter, o irreversível processo de globalização da
economia, impacta diretamente na vida das pessoas e das empresas e do funcionamento de
todos os mercados. O fluxo de investimentos migra para os setores de alto crescimento e
onde a mão de obra propicia maior produtividade e maior flexibilidade nas relações de
trabalho.346 Isto implica em uma reformulação das relações entre o Estado e o mercado. O
Estado abandona uma série de funções que havia assumido e se organiza para lidar com a
economia globalizada. As empresas públicas são privatizadas. As taxas aduaneiras são
reduzidas ou, em muitos casos, abolidas. As políticas econômicas nacionais são
coordenadas em escala internacional.

345
RAMOS. Alexandre Luiz. “Direitos Humanos, neoliberalismo e globalização” In SILVA, Reginaldo
Pereira (org.) Direitos humanos como educação para a justiça. São Paulo: Ltr. 1998. p. 68
346
Guilherme Johanpetter In “Globalização e Competitividade”. Zero Hora. Caderno de Economia p. 2.
17.03.1996.
Como conseqüência, a noção de soberania, mais uma vez é submetida a
uma revisão. Para Seitenfus e Ventura347, duas características da globalização devem ser
destacadas: primeiro, que é de sua própria essência que o processo desconheça fronteiras
nacionais, introduzido a desteriorialização das atividades de produção e consumo. Em
segundo, as decisões do mundo global se devem a centros de interesses privados,
independentes, autônomos e dotados de um poder real, cuja natureza e intensidade,
transcende o tradicional poder dos Estados. A globalização, lembram, contesta a
exclusividade do exercício da soberania do Estado sobre um determinado território. A lex
mercatória, os códigos de conduta e os acordos multilaterais para a proteção de
investimentos e de patentes estrangeiras, por exemplo, podem incorporar-se, na prática, a
todos os Estados, inclusive aqueles que não participaram de sua realização. Externamente, a
globalização obriga ao Estado a adotar uma agenda distinta para suas atividades
internacionais. O Estado, segundo o modelo clássico, representava politicamente o país. Ao
conceder exclusividade à economia e privatizar as atividades produtivas remanescentes dos
Estados, a globalização conduz as relações externas de concorrência, de cooperação ou de
afrontamentos, para uma arena onde as forças privadas predominam.

Assim “o Estado-nação está cada vez mais impotente para controlar a


política monetária, decidir seus investimentos, organizar a produção e o comércio,
arrecadar tributos sobre a sociedade e cumprir seus compromissos de proporcionar
assistência social”348. Em suma, perdeu a maior parte de seu poder, porque os fluxos de
mercadorias, serviços e capitais, o deslocamento da produção, o poder das gigantes
multinacionais, tem seu centro cada vez mais em todas as partes e em parte alguma. Para
Cassem isto representa um grande perigo à democracia, pois está fora de controle do Estado
certos fatores decisivos para a vida dos cidadãos. Quanto mais aberta está economicamente
uma entidade política, mais dependente é de mercados exteriores para suas exportações e de
centros de decisão estrangeiros para suas importações e estratégias em todos os setores de
alta tecnologia e, menos controle sobre si mesma, converte sua governabilidade

347
SEITENFUS, R. e VENTURA, D. Introdução ao Direito Internacional Público. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora. 1999. p. 183.
348
CASTELLS, M. La era de la información: Economía, Sociedad y Cultura. Volumen II. Madrid: Alianza.
1998. p. 282.
democrática em um sério problema349. E como bem lembra Chonchol350, o pensamento
dominante hoje é o pensamento globalizante e neoliberal, cujas idéias básicas são:

(1) o crescimento máximo do produto interno bruto é essencial para o


desenvolvimento da economia, através dele se resolvem todos os problemas econômicos e
sociais dos países;

(2) neste crescimento o papel do governo é secundário, pois depende


fundamentalmente do dinamismo do mercado global e das atividades do setor privado;

(3) sendo o governo ineficiente por natureza, deve privatizar todas as


empresas que controla, inclusive os serviços que anteriormente tinha como sua
responsabilidade como saúde, educação, correios, obras públicas, etc.

(4) deve-se abrir ao máximo as fronteiras para os negócios, os capitais e


os fluxos financeiros do exterior. Isto permitirá que as empresas sejam competitivas e de
alta produtividade. As empresas ineficientes desaparecerão;

(5) a atração de capital estrangeiro é fundamental (especialmente para


países em desenvolvimento). Isto permitirá aumentar os investimentos, o emprego e uso de
novas tecnologias;

(6) também é necessário para ativar a economia aumentar as taxas de


juros, que são necessárias para incentivar o investimento privado;

(7) é importantíssimo flexibilizar ou suprimir a rigidez de origem política


e institucional, tal como o poder dos sindicatos, as legislações protecionistas, a intervenção
estatal, os custos excessivos dos programas sociais, etc.

Neste sentido, o sociólogo Robert Heilbroner, em sua obra Visios of the


future. The distant past, yesterday, end tomorrow351, afirma que o capitalismo será a forma

349
CASSEN, B. “Vivier son el GATT” Cuatro Semanas/Lê monde diplomatique, junio 1993, p. 13. Apud
AGUIRRE, Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización.
Barcelona: Icaria Antrazyt. 1995. p. 151.
350
CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 63.
351
HEILBRONER, Robert. Visiones del Futuro. El pasado lejano, el ayer, el hoy y el mañana. Barcelona –
Buenos Aires-México: Paidós. 1996.
principal de organização socio-econômica ao longo do século XXI - ao menos nos países
desenvolvidos - uma vez que não existem pistas de um possível modelo sucessor. Para o
autor é plausível que todos os capitalismos imagináveis do futuro possuam as três
características que estabeleceram a identidade da ordem social na história: (a) uma ampla
confiança nos mercados como mecanismo que guia a atividade econômica privada; (b) a
presença da sociedade em dois âmbitos distintos - um reservado para as funções
governamentais e o outro para a atividade econômica privada - e, (c) combustível global,
uma dependência da expansão dos capitais privados.

Esta realidade acaba reduzindo o novo papel do Estado a uma função


exclusiva de guardião dos equilíbrios macro-econômicos. São guardiões que se tornam
prisioneiros de sua própria armadilha, e impotentes ou incapazes de definir prioridades e
implementar políticas de incentivo setorial a competitividades, de oferecer proteção social a
suas populações, de dar os serviços públicos básicos ou de garantir a ordem e o respeito às
leis.

Tudo isso leva a sociedade a dar alguns passos para trás quanto aos
avanços alcançados nas relações de trabalho no curso do último século: a semana de 40
horas, aumento dos salários de acordo com o custo de vida, o direito a férias remuneradas,
aposentadoria, assistência social, inclusive a um salário mínimo. Como lembra Aguirre352,
em nome da modernização e adaptação às novas circunstâncias, se modificam as leis para
cortar o seguro desemprego, as pensões, facilitar a contratação por curtos períodos de
tempo e aliviar as responsabilidades dos empregadores; trata-se de uma transformação
regressiva do Estado Social. Ante esta tendência, os sindicatos reagem com uma política de
resistência, tratando de defender, em primeiro lugar, aos que tem emprego.

Ocorre que os orçamentos públicos seguem uma linha decrescente, só que


aumentam, ao invés de diminuir, as tarefas do Estado. Novas tecnologias encarecem a
manutenção da infra-estrutura, danos ambientais exigem medidas abrangentes, a elevação
crescente da expectativa de vida da população exige maiores gastos com assistência médica
e aposentadorias. O que resta aos Estados senão encurtar a oferta de serviços públicos? Os

352
AGUIRRE. Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op.
Cit. p. 147/148.
países que até agora pagavam pensões, tratam de reformar o sistema, diminuindo os
benefícios e conduzindo as pessoas que estão em idade de trabalhar a contratar seguros
privado353. O que se vê é que os Estados estão impotentes frente aos fenômenos da
globalização, e se adaptam às linhas econômicas impostas pelo mundo globalizado.
Acontece, diz Estefanía, que a essência da globalização é o processo pelo qual as economia
nacionais se integram progressivamente à econômica internacional, de modo que sua
evolução dependerá, cada vez mais dos mercados internacional e menos das políticas
econômicas governamentais354.

Em resumo, o que se vê é que a globalização é, ao mesmo tempo, uma


fonte de acumulação de riquezas e um dínamo de produção de pobreza e marginalização
social. O mercado globalizado exclui imensa parcela da população mundial não só na
África ou na América Latina, mas também na Ásia, na Europa e no próprio EUA.

Para Chonchol a nova ordem mundial, a do capital, está desestabilizando


países inteiros e a ordem social pré-existente. Em não se tomando medidas urgentes, a
nunca estabelecida ditadura do proletariado será substituída pela ditadura do mercado
mundial. Ademais, lembra, a economia de mercado e a democracia não são irmãos de
sangue inseparáveis, que buscam juntas a prosperidade de todos. Hoje o equilíbrio entre
ambas é muito frágil, e faz com que nos Estados mais fracos, a balança se incline mais para
o lado dos poderosos355. De maneira radical e contundente, Beck entende que a
globalização não pretende somente eliminar o poder dos sindicatos, mas também o poder
do próprio Estado nacional. Para ele a retórica dos representantes econômicos contra a
política social estatal revela suas reais intenções: “pretendem, definitivamente desmantelar
o aparato e as tarefas estatais com vistas a realização da utopia do anarquismo mercantil do
Estado mínimo”.356

Mas para muitos pensadores, as desigualdades e injustiças sociais não são


conseqüências da globalização. Isto tem a ver com condutas equivocadas dos governantes,

353
MARTIN, Hans-Peter & SCHUMANN, Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p.287.
354
ESTEFANÍA, J. La nueva economia.. La globalización. 1996. p. 14. Apud DANTAS, Ivo. Direito
Constitucional Econômico: Globalização & Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 2000. p. 114.
355
CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 96.
356
BECK, Ulrich. Qué es la globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización.. Op. Cit
com as guerras, com a taxação injusta de impostos, com a falta de educação e com os
privilégios de grupos internos. Assim é o pensamento de Lewis357. Para ele, é demagogia
política dizer que o desenvolvimento econômico, crescente, o aumento da produtividade, a
globalização e a abertura dos mercados, são bons apenas para a classe média e para os mais
ricos e que nada trazem de positivo para os pobres. A evidência é contrária. É a de que o
progresso beneficia aos pobres numa taxa ao menos igual senão pouco maior que os ricos.
O que determina quem terá maior proveito das oportunidades de crescimento são as
políticas internas adotadas. Lafontaine e Müller, depois de apresentar uma série de
vantagens e benefícios da globalização para a Alemanha e para seus trabalhadores
concluem: “A globalização não é nenhuma desgraça. A globalização oferece aos países
mais oportunidades que riscos. Por isso afirmamos: nenhum medo da globalização”358.

Entretanto, como se observa o poder econômico acaba sobrepondo-se ao


poder político e acaba determinando os âmbitos de decisão democrática nas políticas
nacionais, até o ponto de fazer do âmbito político uma esfera dependente das pulsações da
economia internacional. Com isso, o destino dos cidadãos fica cada vez mais a mercê de
forças que não podem controlar, porque não são sequer identificáveis.

3.1.2 As Resistências
As lutas, as manifestações e alianças contra a globalização são
absolutamente estéreis, pois se trata de negar o óbvio, geralmente por aqueles que estão
contra o que desconhecem inteiramente. Como dissemos a globalização não é uma
ideologia ou um programa econômico e sim um processo e que não apresenta nenhuma
novidade já que quando o primeiro grupo sedentário procurou manter relação com outro

357
Lewis, B. Diretor Presidente da McKinsey Global Intitute, cuja função e produzir estudos comparativos do
funcionamento do mercado em diferentes países e regiões do mundo. Nos últimos 10 anos, o instituto entrou
nos segredos de dezenas de economias nacionais entre elas a do Japão, Coréia, Brasil, Polônia, Estados
Unidos, Suécia, Canadá e Dinamarca. Seus economistas visitam fábricas, prédios em construção, bares de
esquina, feiras livres, grandes companhias de produção, para entender as razões do crescimento ou da
resistência ao desenvolvimento dos países. Lewis é foi assessor especial do Departamento de Defesa dos
Estados Unidos da América no governo Klinton e está entre as pessoas que mais conhecem a economia
mundial. Revista Veja. ed. de 14.06.200l. p. 11.
358
LAFONTAINE, Oskar & MÜLLER, Christa. No hay que tener miedo a la globalización. Bienestar y
trabajo para todos. Madrid: Biblioteca nueva. 1998. p. 311.
grupo sedentário, para intercâmbio, comércio ou aliança, iniciou a globalização, apenas
acelerada neste século pelos avanços tecnológicos que permitiram a transmissão de
informações com extrema rapidez. Repetimos Mirc: “Não suporto mais as estimativas
intelectuais, as hipocrisias e as ambigüidades da extensa legião de políticos, industriais,
universitários e romancistas, prontos a lutarem contra a evidência, como essas crianças que
insistem em negar a força da gravidade. Em matéria de economia, o princípio galileano
equivale a um postulado muito simples: a globalização está aí”.359

Evidentemente que se deve controlar e restringir o “capitalismo de


rapina”, aquele capital que como disse o ex-chanceller alemão, Helmut Schmidt, “realiza as
anexações hostis de empresas, planta boatos, participa da ciranda financeira desenfreada,
ganha rios de dinheiro sem levar em conta as conseqüências de suas decisões”. Também o
“capital andorinha”, que é aquele que, sem restrições, migra sem outro propósito a não ser o
de aproveitar as vantagens dos sistemas bancários e monetários, podendo desestabilizar
completamente qualquer país. Mas também se deve combater o desemprego, a violência, a
injustiça e a miséria gerada pela má distribuição de riquezas360. Mas isso tem mais a ver
com a política interna adotada pelos Estados - muitas vezes equivocada, injusta e
beneficiadora de grupos - do que propriamente com a globalização.

O que ocorre é que há uma confusão propositadamente gerada, seja pela


paixão, pela emoção ou por má fé, que atribui o mesmo conceito à globalização e à política
econômica pregada pelo neoliberalismo A adoção de uma política liberal pelos Estados
facilita o fenômeno da globalização, assim que vemos sempre juntos globalização e
neoliberalismo. Mas ambos mesmo sendo irmãos, não são siameses inseparáveis, e se trata
de ingenuidade o ataque generalizado. Todo conflito se dá porque há uma tendência
generalizada de confundir os efeitos da economia mundial com os da globalização. Muitos
lhe atribuem os principais males do presente, como a crise social, o desemprego, a ruptura
das solidariedades, a proliferação da criminalidade, o aniquilamento de culturas e dos
valores tradicionais e a destruição do Estado-nação. Esta visão tende a conceber a
globalização como um fenômeno unilateral e negativo, imposto por empresas

359
MIRC, Alian. As vantagens da Globalização. Rio de Janeiro: Bertran Brasil. 1997. p. 7.
transnacionais e pelo neoliberalismo, violando o direito dos povos. O que ocorre é que
quando se fala de globalização quase a totalidade das pessoas pensam exclusivamente nas
transformações econômicas, esquecendo-se dos fenômenos de globalização pouco ou nada
econômicos. (e a globalização do conhecimento? da solidariedade? da democracia? dos
direitos humanos?).

Höffe361 divide estes fenômenos não econômicos da globalização em três


grupos.

O primeiro, efetivamente representa uma ameaça ao bem-estar humano e


se refere a violência, a criminalidade em escala mundial e aos danos ecológicos que não se
detêm entre fronteiras nacionais. Mas neste grupo também se inclui a ‘memória crítica
mundial’ que não se esquece dos grandes atos violentos e criminosos, contribuindo assim
para prevenir futuros atos semelhantes.

O segundo grupo se compõe dos fenômenos que estão a serviço do bem-


estar individual e coletivo, onde se encontram não somente o mundo da economia e das
finanças, o mercado de trabalho, os sistemas de transporte, comunicações e o turismo, aqui
também se incluem as ciências – e não somente as ciências naturais, medicina ou a técnica
– mas todas as ciências humanas e os sistemas escolar e universitário. Para ele, estes
fenômenos a muito tempo já se difundiram no mundo. Inclui-se ainda neste grupo, a
democracia liberal, já que dela emana uma forte pressão para a globalização e, ainda que as
violações aos direitos humanos não sejam combatidas com igual intensidade em todo
mundo, são ao menos objeto de protestos mundiais e, em alguns casos, se observa
inclusive, um esforço de intervenção humanitária.

Os fenômenos do terceiro grupo são conseqüências da nova fase mundial.


Lembra Höffe que a comunidade global não pode ser confundida com um grupo de amigos,
muito ao contrário. Em todos estes âmbitos reina uma feroz concorrência, atribuindo
especial importância a luta e a vitória nacional e regional. Daí a importância de alguns
elementos, como as políticas fiscais e a densidade de ajuste, o nível de educação e

360
Não se pode esquecer que até o século XVIII a riqueza produzida pelo mundo dobrava a cada 500 anos.
No século XIX dobrou a cada 40 anos e no século XX a produção de riquezas alcançou um ritmo jamais
imaginado. O PIB Global vem dobrando a cada 25 anos.
formação, a infra-estrutura e o valor do tempo livre. A concorrência não somente estimula
estes elementos como deles espera uma riqueza coletiva, tais como o esforço, o risco e a
criatividade. Mas, tudo isto tem um custo, que em alguns casos, como o surgimento de
greves, são problemas de economia interna e noutros, como de contaminação ambiental,
são de índole econômica externa. E, com as conseqüências externas da economia, se chega
aos fenômenos do terceiro grupo, que se constituem nos grandes movimentos migratórios e
de refugiados, cujas causas pode-se buscar principalmente na religião, na política e na
economia; nas guerras civis, em muitos lugares conseqüência da colonização ou
descolonização ou ainda como resposta a corrupção e a má administração e, por último, nas
catástrofes naturais, na fome, na pobreza no sub-desenvolvimento econômico incluindo o
cultural e o político.

Na mesma linha Vieira apresenta uma nova visão distinguindo, por um


lado, os propósitos subjetivos das empresas transnacionais e governos que instrumentam a
marcha da globalização e, por outro, os aspectos mais profundos do processo, que
expressam necessidades irreversíveis do gênero humano, como a democratização e a
universalização dos direitos humanos, a solidariedade dos movimentos sociais, novas
necessidades de desenvolvimento, maior cooperação e regulação mundial. A partir da
compreensão desta diferença, apresenta quatro razões positivas do fenômeno:

(1) o processo de globalização é fundamentalmente o resultado de forças


materiais e espirituais que não podem ser revertidas sem causar custos econômicos, sociais,
ecológicos e culturais maiores que os causados pela globalização;

(2) a deteriorização ecológica do planeta, as condições mundiais de


salubridade, extrema pobreza e marginalização dos países mais pobres, além da explosão
demográfica impõem a necessidade de maiores níveis de cooperação internacional,
desenvolvimento tecnológico e investimentos mundiais, o que requer uma reorientação da
globalização e não sua reversão;

361
HÖFFE, O. Derecho Intercultural. Madrid: Gedisa. s/d. p. 219-246.
(3) a pesar de sua forma atual, é a própria globalização que deve
fortalecer o crescimento econômico, a democratização política, o saneamento ambiental, e a
internacionalização dos movimentos sociais dos países em desenvolvimento e,

(4) a globalização é a precondição objetiva das transformações futuras


para um mundo solidário e pacífico362.

Evidentemente não foi a globalização que inventou a desigualdade,


tampouco a injustiça social no planeta. É imperioso ressaltar que tais fenômenos a
precederam. Ela, a globalização, é o fenômeno dominante do nosso tempo que, por
inexistência de um modelo alternativo e coerente lhe faça sombra, tornou-se a vilã da
modernidade.

3.1.3 O fim do Estado-nação?


Para Lamounier,363 a globalização implica em graves riscos para o
Estado-nação, vale dizer, para o sistema mundial de Estados, que é o arcabouço mediante o
qual a humanidade conseguiu, após séculos e séculos de problemática evolução, organizar,
bem ou mal, a coexistência não beligerante das sociedades humanas. Na balança do poder
do mundo, o Estado enfraquece diante do sistema financeiro. Um sistema maior, porque
disseminado, além de um governo ou país, enfim, globalizado. Mesmo assim, afirma
Dallari que, no presente, não há elementos concretos que permitam afirmar que
caminhamos para a extinção do Estado. Um mundo sem Estados não é plausível, sendo
apenas um ideal utópico e sem apoio na realidade364.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso


reconheceu que a globalização limita efetivamente o poder dos Estados nacionais, mas, “a
globalização ainda não é o fim do Estado”.365 A verdade é que o Estado e seu governo
continuam sendo a única instância junto à qual os cidadãos e eleitores podem reivindicar
justiça e reformas. Mesmo a idéia de que o condomínio de empresas mundiais possa

362
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 2ª ed. São Paulo-Rio de Janeiro: Record. 1998. p. 102.
363
LAMOUNIER, Bolívar, Gazeta Mercantil, Edição de 26.11.1997. p. A-3.
364
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Futuro do Estado. São Paulo: Saraiva. 2001. p. 95.
365
Jornal Folha de São Paulo, edição de 02.11.1997. Caderno Especial. p. 9.
assumir funções de governo não passa de ilusão. Nenhum diretor de empresa, por mais
poderoso que seja, desejaria assumir a responsabilidade por processos que ocorrem fora de
sua alçada. Ele não é pago para isso. Diz Cardoso, com experiência de chefe de Estado, que
“os líderes empresariais são os primeiros a exigir intervenção governamental quando as
coisas pegam fogo”.

Assim também pensa Campilongo366. Para ele seria um erro imaginar que
o processo de internacionalização da vida atual tenha eliminado ou descartado a
importância do Estado-nação. Os acontecimentos do Leste Europeu em 1990, a guerra na
Iugoslávia em 1991 e a luta das Repúblicas Soviéticas servem para exemplificar o quanto é
contínua e importante a afirmação dos nacionalismos.

Em termos ideológicos, interessante a conclusão a que chegaram Cruz e


Sirvent367. Destacam que os autores tidos como de ‘esquerda’ são os mais ‘estatalistas’ no
sentido de preservar o Estado que outros mais identificados com a ‘direita’. Este
posicionamento, lembram, é contraditório, pois foram os liberais capitalistas os maiores
beneficiados pelo Estado moderno. Os socialistas apenas se instalaram nas estruturas
públicas, mas não se pode dizer que estas funcionaram a seu favor.

Mas, reconhecer a importância do Estado-nação não significa que o


conceito de soberania a ele inerente não tenha sofrido o forte impacto da globalização. A
soberania una, indivisível, inalienável e imprescritível, apontada por praticamente todos os
estudiosos368, é incompatível com a realidade contemporânea. Qualquer concepção de
soberania que a tome como uma forma indivisível, ilimitada, exclusiva e perpétua do Poder
Público está morta369, pois como bem diz Knoerr, “o Estado moderno não é mais soberano,
mas um sócio, um parceiro do capital privado”.370 Contudo, deixamos claro que não há a

366
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 98.
367
“Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional
moderno”. Trabalho desenvolvido pelo Prof. Paulo Márcio Cruz a partir das pesquisas realizadas durante seu
estágio de Pós-doutoramento junto à Universidade de Alicante, Espanha, com a colaboração do Prof. José
Francisco Chofre Sirvent. 2006. Inédito. p. 8.
368
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 69
369
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. .
370
KROERR, Fernando Gustavo. “Representação Política e Globalização” In FONSECA, Ricardo Marcelo
(org). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum. 2004. p. 176. Apud Paulo Márcio Cruz e
José Francisco Chofre Sirvent. “Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do
Estado constitucional moderno”. Op. Cit. .p. 13.
negação da soberania, há sim uma adequação a algo superior. Assim também pensa Pereira:
“entramos na fase em que se faz necessário uma reforma do aparelho do Estado”. E, esta
reforma, “provavelmente significará reduzir o Estado, limitar suas funções como produtor
de bens e serviços e, em menor extensão, como regulador, mas implicará também ampliar
suas funções no financiamento de atividades que envolvam externalidades ou direitos
humanos básicos e na promoção da competitividade internacional das indústrias locais” 371.

O processo de globalização exige ainda, segundo Chanial372, uma


reflexão sobre a definição das formas de cidadania e da própria concepção de democracia,
uma vez que o enfraquecimento do Estado, enquanto instituição democrática, dá-se também
pela rapidez e agilidade das transformações: a discussão democrática é incompatível com o
tempo dos negócios, decorrendo daí o fugimorismo, quando não a defesa pura e simples dos
regimes autoritários, ou a íntima relação (corrupção) entre autoridades públicas e grupos
financeiros, pois, afinal, não se pode perder tempo com estéreis discussões democráticas.

3.1.4 As Ameaças ao sistema

Nosso entendimento é que a globalização é um progresso para a condição


humana. É uma alternativa à manutenção a qualquer custo da soberania do Estado, ao
serviço militar obrigatório, a ameaça de destruição do planeta em uma guerra nuclear, à
subordinação dos interesses individuais aos dos governantes sem que fosse possível
neutralizar este poder. Com a globalização há uma maior liberdade e oportunidades de
realização. Mas há, ainda um longo caminho a percorrer e quando se fala da ‘aldeia global’
se está fazendo um diagnóstico simplificador. Contudo, segundo a maioria quase absoluta
dos cientistas políticos, filósofos, economistas, políticos, pensadores das mais diversas
áreas do conhecimento, o mais provável é que, ao longo das próximas décadas, a

371
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. “Gestão do Poder Público: Estratégia e Estrutura de um novo Estado”. In
Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 21/38
372
CHANIAL, Philippe. “Todos os direitos por todos e para todos: Cidadania, solidariedade social e
sociedade civil em um mundo globalizado”. In A Nova ordem social: Perspectivas da solidariedade
contemporânea. Paulo Henrique Martins Ferreira Nunes, e outros (Organizadores) Brasília: Paralelo 15,
2004. p. 61.
globalização e o neoliberalismo sejam a forma principal de organização socio-econômica,
uma vez que não existem pistas de um possível sucessor.

As ameaças à globalização, não provêm, como se poderia pensar, da


união dos excluídos, dos desempregados, dos pobres, dos famintos, da esquerda radical ou
dos sindicatos. Por mais paradoxal que possa parecer, a maior ameaça ao sistema é o
próprio sistema: aquecimento global, degradação ambiental explosão demográfica, tudo
isso provoca o surgimento de novas enfermidades, o debilitamento do ser humano e do
planeta. Para George373, o perigo é muito maior do que comumente se crê, e apresenta o
que julga serem as maiores ameaças ao sistema neoliberal global:

1) A ecologia – A natureza é a maior ameaça para o futuro do sistema de


livre mercado. Negar as enormes pressões que exercem sobre a natureza as economias
capitalistas é uma insensatez. Os cálculos econômicos tratam o consumo dos recursos
renováveis e não renováveis como se fossem aportes e contribuições para o crescimento. As
atuais técnicas de descrição, cômputo e contabilidade não dizem o que necessitamos saber.
São ferramentas inadequadas porque as contabilidades empresariais e nacionais são
construções matemático-mecânicas e partem do pressuposto de que a economia atua com
independência da natureza. Assim, subestimam os bens e serviços obtidos da biosfera ou
não os valorizam em absoluto; a contaminação, os resíduos e o calor que se devolve a
biosfera não são medidos como custos. Neste sistema, uma floresta cortada e vendida, sob
qualquer forma, somente figura na coluna de crédito nos livros contábeis. A destruição do
capital natural e dos ‘serviços’ que está presta como sua capacidade de absorver o gás
carbônico, estabilizar o solo, dar abrigo a várias outras espécies, não aparece em lugar
algum. O ar, a água e o solo são considerados gratuitos, não se reconhece nem se calcula
seu valor em função de sua escassez. A diminuição das reservas de pescado, da camada
superficial do solo, dos minerais, da camada de ozônio, de espécies animais e vegetais, são
consideradas como investimentos ou se compensa com subvenções para que estes mesmos
produtores sigam provocando sua diminuição. As tensões ecológicas poderão levar a uma
maior estabilidade política e ao aumento dos conflitos armados: 70% da população vive em
zonas onde a água é escassa. Para George, os eco-conflitos ocorrerão primeiro no Oriente

373
GEORGE, Susan. Informe Lugano. 3a ed. Barcelona: Acaria. 2002. p. 22-36.
Médio, na África e na Ásia, depois afetarão outras regiões, o que trará resultados
imprevisíveis para a economia. Parece que os teóricos do neoliberalismo globalizado estão
cegos ante este perigo ecológico, comportando-se como se quanto menos se falar do
assunto melhor, ou temem que revelar ou analisar esta importante contradição do sistema,
vá em detrimento de sua manutenção. Para que o sistema alcance êxito a longo prazo, esta é
uma atitude suicida.

2) O crescimento pernicioso – Outro paradoxo é a constatação de que a


economia de livre mercado está ameaçada pelo crescimento. O que ocorre é que o
crescimento é o motor de nossas economias, portanto não crescer significa parar e cair.
Quem não crescer será eliminado do mercado. Assim, o crescimento se converteu na eterna
busca do sistema, não obstante, grande parte do que se toma por crescimento reflita
tendências não somente contraproducentes, mas também daninhas e destrutivas. A
fabricação de dispositivos anti-roubos, produtos de defesa pessoal, a construção de prisões,
centros de reabilitação para drogados, e até reconstruções de atentados terroristas figuram
como ‘crescimento da atividade econômica’ no PIB dos Estados. George ironiza: “Assim,
provavelmente a forma mais eficaz de aumentar rapidamente o PIB seja fazer uma
guerra”374. O crescimento deve possuir estreita relação com os aumentos do conjunto de
bem-estar e não como se tem apresentado. O crescimento econômico atual está provocando
cada vez mais fenômenos sociais que a maioria das pessoas poderia prescindir. É o
crescimento pelo crescimento, que despreza o bem-estar, que desconsidera os custos
ecológicos e sociais. Este é um crescimento pernicioso.

3) Os extremos sociais – Para George, o futuro do livre mercado depende


também de que recebe os benefícios do crescimento. Se os lucros vão para a metade
inferior da população, esta imensa maioria de pessoas relativamente pobres usará seu
dinheiro para o consumo, consequentemente manterão a demanda, o que gera mais
produção. Se, ao contrário, os bônus do crescimento se destinar somente a camada superior
da escala social, os beneficiados colocarão somas ainda maior nos mercados financeiros ao
invés de adquirir bens e serviços. Como conseqüência a demanda cairá, trazendo consigo o
aumento das ofertas, a superprodução e o estancamento da economia. Assim, a forma de

374
Idem
distribuição dos benefícios do sistema, é crucial para sua manutenção a longo prazo. Este é
também um perigo real, pois como vimos a globalização, com suas economias desreguladas
e competitivas, ao mesmo tempo em que beneficia muitos, beneficia sobretudo os ricos.
Para se ter uma idéia, em 1960 os ricos ganhavam 30 vezes mais que os pobres; em 1994,
sua renda era 78 vezes superior a dos 20% mais pobres. Os 20% mais ricos, possuíam 86%
de tudo o que havia sido produzido no mundo. No período pós-guerra, o comércio mundial
cresceu 12 vezes, chegando a U$ 4 trilhões por ano na década de 90, mas foi também o
vilão que mais acentuou as desigualdades entre países pobres e ricos. Com 10 da população
do planeta, os países mais pobres do mundo detêm apenas 0,3% do comércio mundial, isto
é metade do que tinham a 20 anos. Esta extrema divisão social constitui uma autêntica
ameaça ao sistema. Na Europa, onde os extremos sociais são menos flagrantes, o
desemprego crônico, o estancamento dos salários, o predomínio dos empregos temporários
e o grande número de trabalhadores pobres, já provocam ressentimento e temos. Na
América Latina, onde os extremos de pobreza e riqueza sempre foram a norma, os
benefícios da prosperidade já manifestam por seus inconvenientes. A segurança privada
tornou-se indispensável, filhos de pais ricos temem ir a escola desacompanhados por medo
de seqüestros, empresas pagas subornos de proteção, as mulheres não podem portar jóias
nas ruas, correr ou andar de bicicleta em parques públicos é quase impossível, mesmo
tomar um transporte público é tarefa arriscada. Nos Estados Unidos, embora a grande
separação social existente, parece haver ainda capacidade de absorver os conflitos sociais
não obstante a existência de milhares de condomínio privados, auto-suficientes, murados e
vigiados o que revela um profundo temor. Por quanto tempo ainda poderá durar esta
relativa tranqüilidade? Em escala global há poucos vencedores e muitos perdedores. A ira
dos pobres aumenta em todas as partes, fomentada pelos meios de comunicação que exigem
mais e mais consumo, mostrando opulentos estilos de vida. Milhões de pessoas crêem
nestas publicidades e crêem que uma minoria se apropriou injustamente das riquezas, e que
a maioria também a merece. Alerta George que estas grandes massas de excluídos, cedo ou
tarde procurarão compensar a situação. Os meios que escolherão podem ser diversos: desde
o suicídio individual à migração maciça, desde protestos políticos e manifestações pacíficas
à criação de milícias armadas e ao terrorismo aberto. Assim os excluídos – que são maioria
absoluta – poderão invariavelmente, desestabilizar o sistema.
4) O gansterismo – O crime em grande escala é uma ameaça a atividade
econômica legítima. A alguns anos, desde o fim do império soviético e da adoção da China
de alguns aspectos da economia de mercado, que as máfias – ou como prefere George, o
capitalismo gangster – tomou o controle de grandes zonas mundiais e ameaçam tomar
muito mais. Esta ‘economia paralela’, baseada no narcotráfico, no contrabando, na lavagem
de dinheiro e na corrupção de todo tipo, manipulam bilhões de dólares e atraem novos
adeptos a cada minuto. Segundo Martin & Schumann375, somente dentro do G 7, as sete
nações mais ricas do mundo, de 1970 a 1990, cresceu mais de 20 vezes o volume de venda
de heroína e 50 vezes o comércio de cocaína. Quem sabe vender drogas tem condições de
dominar qualquer outro mercado ilegal. Cigarros, armas, automóveis roubados, imigrantes
ilegais disputam com o tráfico de drogas a posição de principal fonte de renda da economia
clandestina. Na Europa, o desenvolvimento do contrabando do cigarro é uma prova
concreta do poder das multinacionais do crime. Até o início da década de 90 a evasão de
impostos sobre o tabaco era principalmente um problema italiano. A partir de então
surgiram organizações rigidamente administradas no mercado interno Europeu. O déficit
em arrecadação de impostos em toda Europa é calculado hoje entre 7 e 9 bilhões de dólares.
O crime organizado está hoje no ramo da economia que mais rápido se expande no mundo
gerando lucros anuais superiores a 700 bilhões de dólares e estudos realizados demonstram
a tendência de aumento especialmente nos crimes de tráfico de trabalho escravo, aluguel
ilegal de mão de obra, receptação de automóveis roubados e extorsão de taxas de proteção.
Segundo dados da ONU, desde a década de 80 o crime organizado é a indústria que mais
cresce no mundo. No 10° Congresso para a Prevenção ao Crime e Tratamento dos
Criminosos, realizado em Viena, de 10 a 14 de abril de 2000, sob o patrocínio da ONU,
representantes de 188 países tomaram conhecimento de estudos realizados pela ONU que
concluíram que o crime internacional organizado movimenta mais de l trilhão de dólares
por ano. Sua espantosa disseminação em escala planetária se deve em grande parte à
globalização, às políticas liberais e aos avanços tecnológicos em áreas como as
telecomunicações. O delito mais lucrativo continua sendo a tráfico de drogas, que fatura em
torno de 400 bilhões de dólares/ano. Apesar de seu fantástico poder financeiro e de
dominação de consciências, não é esta, segundo estudos da ONU, a modalidade criminosa

375
MARTIN, Hans-Peter & SCUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 288-289
de mais rápida disseminação no mundo. O maior incremento aponta para o tráfico de seres
humanos, particularmente de crianças e mulheres, para a escravidão econômica e a
prostituição. O delito de maior potência é, sem dúvida o digital, via internet. Dele se pode
afirmar que apenas está dando os primeiros passos ainda que já movimente algo em torno
de 500 milhões de dólares anuais376. Com tudo isso formam-se impérios clandestinos, que
já dominam regiões do mundo, fora da jurisdição de qualquer Estado. Podem contratar
qualquer mão de obra que necessitem, inclusive exércitos privados. Assim vão adquirindo
não somente poder econômico, mas também militar e estratégico, a ponto de afrontar ao
próprio Estado. George lembra a existência de rumores de que um poderoso barão da droga
chantageou a um Estado sul-americano, ameaçando abater aviões civis/comerciais com
mísseis comprados no mercado negro, caso seguisse a ‘pressão’ do Estado contra suas
atividades377. É assim que a desregulamentação, um fim desejável em si mesmo, poderia
frustrar sua própria finalidade. O grande capital acumulado pelo crime organizado pode
converter-se em algo autenticamente explosivo, um perigo claro e presente para o sistema
legal de mercado. Se o capital gangster suplantar o das empresas legítimas, as normas de
concorrência tradicionais cairão por terra e o terrorismo empresarial estará implantado.

Como se observa, são ameaças presentes e reais, mas ameaças à


manutenção do sistema por um longo período, não para sua implantação, que já é presente.

3.1.5 A Terceira Via

Por fim, a globalização está aí, não há como negá-la. Os arautos da


modernidade trombeteiam a chegada de uma nova era, que combinara a estabilidade
política com a abundância econômica – a era da globalização. Os nostálgicos do socialismo
soviético lamentam a chegada de uma nova era, que combinara a hegemonia das potências
capitalistas com a pobreza das massas trabalhadoras – a era da globalização. Estão de
acordo que a nova era marca uma profunda mudança no Estado-nação, sua submissão e dos
territórios nacionais às forças internacionais da globalização.

376
“A globalização do crime” Zero Hora. 11.04.2000. p. 16.
377
Segundo o Instituto Small Arms Survey, o comércio legal de armas pequenas e armamento leve, gira em
torno de U$ 4 bilhões ano, mas a estima que outro tanto é comercializado no mercado paralelo.
É neste cenário que surge uma ‘terceira via’, expressão comum nos anos
20 entre grupos de direita, mas a usaram também os social-democratas e os socialistas. No
período pós-guerra, os social-democratas estavam convencidos de que haviam encontrado
um caminho distinto e alternativo ao capitalismo norte-americano e ao comunismo
soviético. A internacional socialista, no momento de sua fundação (1951) também se referia
expressamente a terceira via com este sentido. Durante os anos 70 a terceira via tinha a
conotação de um socialismo de mercado. Ao final dos anos 80 os social-democratas
europeus muito se referiam a ela como uma importante renovação pragmática. A terceira
via, portanto, representava um marco de pensamento e políticas práticas que buscavam
adaptar a social-democracia a um mundo que mudava muito rapidamente e tornava-se mais
pragmático. Como diz Giddens “é uma terceira via enquanto tentativa de transcender, tanto
a antiga social-democracia como ao neoliberalismo”378. Trata-se, portanto, de uma política
de meio termo, não liberal nem paternalista. Enquanto a social-democracia clássica
considera a criação de riquezas quase como um acessório de suas preocupações básicas de
segurança, e redistribuição econômica, por outro lado os neoliberais se preocupam
exclusivamente com a competitividade e a geração de riquezas; mas a política de terceira
via, sugere uma economia mista – diferente da antiga economia mista que implicava na
separação do Estado e os setores privados, e com uma grande parte da indústria sob o
controle público. A nova economia mista, diz Giddens, busca um ponto comum entre
setores públicos e privados, aproveitando o dinamismo dos mercados, mas tendo em conta
o interesse público379. Requer um equilíbrio entre regulação e desregulação, tanto a nível
nacional como transnacional e local e um equilíbrio entre o econômico e a vida social.
Também deve a terceira via ajudas aos cidadãos a conduzir-se com segurança neste novo
mundo, tendo em vista principalmente a globalização, as transformações da vida pessoal e
as relações do homem com a natureza. Seus valores: a igualdade, a proteção aos mais
fracos, liberdade com autonomia, nenhum direito sem responsabilidade, nenhuma atividade
sem democracia, pluralismo cosmopolita e conservadorismo filosófico.

Nesta nova política, a globalização seria vista como um fenômeno


positivo; responderia ao protecionismo econômico e cultural – discurso da extrema direita –

378
GIDDENS, Anthony. The third way. Op. p. 37
379
Idem. p. 119.
que vê a globalização como uma ameaça a integridade nacional e aos valores tradicionais.
É evidente que a globalização econômica pode trazer alguns efeitos destrutivos a auto-
suficiência local, mas o protecionismo não é nem sensato nem desejável. Entretanto, pelo
perigo que apresenta ao poder social e cultural, não se aprovaria a globalização em
qualquer circunstância, suas conseqüências mais gerais seriam sempre examinadas. Em
resumo, a globalização não seria identificada unicamente com o livre comércio, o social e o
cultural também devem participar.

Não se podem negar as enormes transformações na vida pessoal moderna;


a política de terceira via teria que preocupar-se com a justiça social e com o Estado de
Bem-estar, mas avaliando suas críticas, especialmente as da direita. Abandonando o
coletivismo, apresentaria uma nova relação entre o indivíduo e a comunidade – redefinindo
direitos e deveres. Nesta nova sociedade, que teria dois lemas – o primeiro: nenhum direito
sem responsabilidade - o Estado assume uma série de responsabilidades para com os
cidadãos, mas ao contrário da antiga social-democracia, estes direitos não seriam
exigências incondicionais. O cidadão, por sua vez, deve ser ativo, por exemplo, em caso de
desemprego, tem a obrigação de buscar ativamente um novo trabalho. O Estado deverá
criar mecanismos para que o sistema de Bem-estar não desestimule a competitividade. Na
política de terceira via os benefícios seriam estendidos a todos e não – como comumente
pensa a direita – somente aos que necessitam de Bem-estar. O segundo lema seria:
nenhuma autoridade sem democracia. Políticos e pensadores de direita sempre defenderam
que sem tradição e formas tradicionais de respeito, a autoridade desmorona. – as pessoas
perdem a faculdade de diferenciar entre o que esta certo e o que esta errado. A terceira via
se oporia a esta concepção. Em uma sociedade onde a tradição e o costume estão perdendo
forças, o único caminho para restabelecer a autoridade é a democracia. O novo
individualismo não coroe a autoridade, mas exige que se configure em uma base
participativa.

Quanto a relação homem x natureza, reconhece a terceira via que o


processo de modernização é essencial, mas a modernização em todas as áreas, em especial
a modernização ecológica, que é a consciência dos problemas e limites dos demais
processos modernizadores. A modernização não é o oposto do conservadorismo, a nova
sociedade deverá usar as ferramentas da modernidade para poder conviver em um mundo
que está além da tradição e do outro lado da natureza, onde o risco e a responsabilidade
formam uma nova mescla.

Bill Clinton e Tony Blair referiram-se expressamente a terceira via em


suas campanhas eleitorais. Luis Inácio Lula da Silva e outros líderes de esquerda a
denominaram ‘governança progressista’. No poder, Clinton se esforçou para acabar com o
pouco do sistema de Bem-estar que ainda havia em seu país, afinando sua política com a
dos conservadores neoliberais. Por sua vez o novo trabalhismo de Blair preservou e
aprofundou a política econômica de Thatcher, enquanto Lula, em seus discursos segue
defendendo os interesses pragmáticos de governo. Ao que parece, razão total aos críticos
desta nova alternativa: em sua nova versão, a terceira via é apenas um neoliberalismo
requentado.
4. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

4.1 Constituição: conceitos e classificação

4.1.1 A Constituição
A palavra Constituição abrange toda uma gradação de significados (modo
de ser das coisas, origem, fundamento; aqui, estas questões dizem respeito ao Estado).
Enquanto Constituição em sentido estrito (relacionado ao Estado), existem dois conceitos
diferenciados: o conceito material e o conceito formal.

4.1.1.1 Conceito material

Do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas


pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da
autoridade, forma de governo, direitos da pessoa humana. Trata-se do conteúdo básico de
composição e de funcionamento da ordem política.380 Sob este aspecto, não há Estado sem
Constituição381, pois toda sociedade politicamente organizada possui uma estrutura mínima
de poder e de funcionamento382, ainda que não institucionalizada juridicamente.

380
A noção de Constituição material não se confunde, contudo, com a noção de constitucionalismo material,
pensamento constitucional surgido na Alemanha no começo do século XX representado por autores como
Rudolf Smend e Hermann Heller, dentre outros, que se caracteriza por compreender a Constituição como um
fenômeno político e demandar uma ampliação das fontes desse mesmo direito, a fim de se superar o
formalismo exacerbado caracterizado pelo constitucionalismo liberal. Sobre estes aspectos, ver notadamente o
primeiro capítulo de nossa obra LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição constitucional aberta. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007, onde são enfrentados os principais elementos teóricos atinentes à questão.
Recomendamos, ainda, para um aprofundamento da temática, a leitura do texto de BERCOVICI, Gilberto. A
Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [et all].
Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003.
381 Neste sentido LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 2 ed. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988
. ; o autor distingue
e diferencia a Constituição real – oriunda dos fatores reais de poder – da Constituição “folha de papel”, de
caráter jurídico.
382
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
Em suma, a Constituição, em seu aspecto material, diz respeito ao
conteúdo, mas só o das determinações mais importantes (aquelas tidas especificamente
como matéria constitucional).

4.1.1.2 Conceito formal

A partir do critério formal, o status constitucional é atribuído a


determinadas normas e a determinadas matérias pelo simples fato de estarem contidas no
texto da Constituição (e não porque sejam referentes a elementos básicos e fundamentais da
organização política). Estas normas adquirem um status diferenciado não por sua natureza,
mas por integrarem o corpo da Constituição – critério formal.383

Assim, mesmo não tendo uma natureza fundamental para a organização


do Estado, estas normas possuem uma hierarquia superior, em princípio igual à das demais
normas constitucionais. Sua supressão, portanto, também fica submetida a procedimentos
especiais, comuns à Constituição (Emendas à Constituição). Dito de outra forma, uma vez
postas no texto constitucional, estas normas, embora não sejam necessariamente
materialmente constitucionais (com base no critério do item anterior, por exemplo),
somente podem ser suprimidas ou alteradas mediante um processo diferenciado, mais
solene e complicado do que o atinente às demais leis ordinárias.384

Assim, no aspecto formal, as normas constitucionais se diferenciam das


demais apenas por seu procedimento qualificado de alteração e pelos efeitos que provocam.
Este conceito se aproxima, por conseguinte, conforme já dissemos, da noção de
Constituição escrita.

383
Pode-se estabelecer, portanto, uma relação entre o conceito formal de Constituição e a noção de
Constituição jurídica, escrita, a partir da qual se entende como sendo constitucional tudo aquilo que está
contido em seu texto. Assim, o critério para se definir o que é norma constitucional não é o conteúdo, mas sim
o aspecto formal de integrar ou não o texto constitucional.
Da mesma forma, cabe, ainda, traçar-se uma conexão entre o conceito formal de Constituição e as
constituições prolixas (que são alvo de análise em momento próprio do presente capítulo), pois é possível
asseverar-se que, em certa medida, aquele justifica e torna possível a existência destas últimas (somente se se
adotar o conceito formal de Constituição é possível que se incluam na Constituição matérias não tão
fundamentais ou propriamente constitucionais, tornando-a mais extensa). Cf. CARVALHO, Márcia Haydée
Porto de. Hermenêutica constitucional. Florianópolis: Obra Jurídica??????????????????????????????
384
O conceito de Constituição rígida é enfrentado logo a seguir, no presente capítulo.
OBS: segundo este entendimento, a Constituição, para ser legítima,
prescinde do aspecto material, mas o aspecto formal é variável (as matérias constitucionais
de cunho material podem existir sem as formais, mas as formais não podem existir sem as
materiais – pois, do contrário, tratar-se-ia de um mero ordenamento diferenciado, perdendo
o seu caráter de Constituição).

4.1.2 Constituições rígidas x Constituições flexíveis

Constituições rígidas Constituições flexíveis


• Não podem ser modificadas da mesma • Não exigem nenhum requisito especial
maneira que as leis ordinárias. de reforma (seguem o mesmo
• Forma adotada por quase todos os procedimento da legislação ordinária).
Estados modernos. • Ex.: Inglaterra.
• OBS: rigidez não significa • A flexibilidade é possível tanto nas
imutabilidade (somente dificuldade de Constituições costumeiras como nas
alteração)!!! escritas, positivadas (nem toda
• OBS: esta “dificuldade” também não Constituição escrita é rígida, basta que ela
possui critérios absolutos, objetivos (o não preveja critérios mais difíceis para sua
fator determinante é sempre o contraste alteração do que aqueles reservados às
com a legislação ordinária). demais leis).

A Constituição brasileira de 1988 é uma Constituição rígida, pois o art. 60


prevê que as Emendas à Constituição devem ter aprovação de 3/5 dos membros (não dos
presentes) das duas casas legislativas (Senado Federal + Câmara dos Deputados). Já as Leis
Complementares – segundas na hierarquia dos tipos normativos estabelecidos no art. 59 da
Constituição de 1988 – são aprovadas por mera maioria absoluta385 (art. 69 da
Constituição), restando comprovada, assim, a tentativa de proteção destacada do texto
constitucional, por meio da maior exigência com relação às Emendas – noção de rigidez.

OBS: a Constituição brasileira previu a possibilidade de se fazer uma


Revisão Constitucional (art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias386 -
ADCT/88) após o período de cinco anos da promulgação da Constituição, por aprovação da

385
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2006.
maioria absoluta dos membros do Congresso (sessão unicameral), constituindo-se, assim,
num modo facilitado de alteração e de modificação das disposições constitucionais; nem
por isso, contudo, nossa Constituição deixa de ser rígida.

Já com relação às cláusulas pétreas (art. 60, §4º da Constituição de 1988),


pode-se dizer que elas conformam uma forma de “rigidez material”, porquanto estabelecem
algumas matérias que sequer ficam submetidas a esses procedimentos especiais de
alteração, pois sequer podem constituir objeto de Emenda à Constituição (art. 60, parágrafo
1º da Constituição de 1988).

Existem, ainda, por fim, as chamadas Constituições semi-rígidas, tidas


como aquelas que possuem uma parte de seu conteúdo dotada de rigidez (certos capítulos
ou matérias exigem, por conseguinte, um quorum qualificado para modificação ou
alteração), enquanto outras matérias não exigem qualquer requisito especial de alteração se
comparadas às leis ordinárias. Exemplo de uma tal espécie de Constituição é a Constituição
imperial de 1824, que possuía, ao mesmo tempo, uma parte rígida e outra flexível.387

4.1.3 Constituições costumeiras x Constituições escritas

Até os fins do século XVIII, preponderavam as Constituições


costumeiras, sendo raras as leis constitucionais escritas. Elas coincidem (as Constituições
costumeiras), em larga parte, com os regimes absolutistas.

As Constituições escritas surgem e se consolidam com o ideário liberal de


limitação do poder, identificadas com a noção do Estado de Direito. Isto não significa que
antes disso não houvesse Constituições (ex.: Atenas, etc.), mas a idéia não era como a de
hoje, associada a uma noção jurídica de organização do poder e da sociedade (em Atenas,
por exemplo, a paidéia388 visava ao bem comum, dentro do espírito de solidariedade

386
Trata-se de uma forma especial de poder constituinte derivado, conhecido como revisional, conforme se
verá no capítulo quarto do presente livro.
387
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
388
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto
Alegre: Fabris, 1993.
cívica389 característico daquele momento histórico, porém não era vista como um
instrumento propriamente jurídico).

As Constituições costumeiras normalmente recebem a denominação de


não-escritas (embora haja Constituições que tenham o costume reduzido a escrito, como
memória).390

Crítica às Constituições escritas: as Constituições escritas teriam


dificuldade de acompanhar a evolução da sociedade; por isso, em alguns países, a
Constituição é escrita, mas complementada pelos costumes (ex.: EUA). Mas, nesse ponto,
atualmente tem-se na interpretação constitucional e na figura dos princípios um importante
elemento de abertura, que permite a sua atualização e contextualização.

Constituições escritas Constituições costumeiras


• São promulgadas pelo órgão • São sancionadas pela prática, pela
competente. tradição.

As Constituições escritas foram, em parte, fruto das lutas políticas


inglesas e, por outra, produto doutrinário do contrato social de Rousseau (crença de que era
mais adequado consolidar num contrato as normas de convivência entre governantes e
governados). A primeira Constituição escrita foi o Instrument of Government (1633) de
Cromwell, na Inglaterra.391 Foi a primeira Constituição “moderna” escrita, no sentido de ser
dotada de um caráter nacional e limitativo do poder, servindo de inspiração para a
Constituição dos Estados Unidos.

Com o tempo, o termo Constituição foi sendo identificado, cada vez mais,
com a idéia de Constituição escrita (tanto que Tocqueville afirmou que a Inglaterra não
possuía uma Constituição, assim como os EUA e a França); mas o fato de um país não

389
FINLEY, Moses. Economia e sociedade na Grécia Antiga. Tradução de Marylene Pinto Michael. São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
390
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
391
STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
possuir uma Constituição escrita não significa que ele não possua uma Constituição (ao
menos no sentido material, conforme visto nos itens anteriores do presente capítulo).

A supremacia da Constituição escrita se deve a alguns fatores históricos:


a) crença na superioridade da lei escrita sobre o costume (herança liberal; racionalismo); b)
Constituição como instrumento formal do contrato social.392 Isto porque a Constituição
escrita atendia aos ideais de certeza e de segurança jurídica, próprios do período liberal e de
ruptura com o absolutismo.

4.1.4 Constituições codificadas x Constituições legais

codificadas (num só texto)


Constituições escritas
legais (esparsas)

As Constituições codificadas são aquelas que estão inteiramente contidas


em um só e único texto393, com suas disposições sistematicamente ordenadas e articuladas
(títulos, capítulos, seções), formando um único corpo de lei. É o caso da Constituição
brasileira, que tem todos os dispositivos constitucionais contidos em um único texto
articulado e organizado sistematicamente.

Este modelo de Constituição é fruto da tradição moderna, baseada no


racionalismo e no método dedutivo, típico da codificação.394 Por possuírem uma
organização lógica, permitem que se identifiquem algumas partes que lhe são comuns.

 Partes:

- preâmbulo (profissão de fé);

392
Ver nosso texto LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição constitucional aberta. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2007.
393
AGRA, Walber de Moura.?????????????????????????????????????????????????????????
394
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad,
2000.
- parte introdutória (disposições preliminares como
regime político, forma de governo, separação dos poderes, etc.);
- parte dogmática (reflete o caráter da Constituição,
através da declaração de direitos e garantias dos cidadãos – cada modelo
de Estado possui características próprias);
- parte orgânica (descrição dos órgãos, competências,
etc. – Título III da CF/88);
- disposições gerais (disposições gerais transitórias).

Já as Constituições legais são escritas, porém esparsas, isto é, não formam


um corpo único e sistematizado, tendo os seus conteúdos organizados em diversas leis
autônomas, independentes entre si. Esta modalidade de Constituição é rara, sendo um dos
exemplos históricos a Constituição Francesa de 1875, que era composta por leis criadas em
momentos distintos (ex.: uma versava sobre os poderes públicos, outra sobre a organização
do Senado, outra sobre as relações entre os poderes, e assim por diante).395 Tomadas em seu
conjunto, porém, essas leis passaram a ser designadas como “Constituição da Terceira
República”.

4.1.5 Constituições outorgadas x pactuadas x populares

As Constituições outorgadas são característica do absolutismo, onde o rei


ou Chefe de Estado enfeixa em sua mão poderes absolutos, mas consente em desfazer-se de
uma parcela de suas prerrogativas (em princípio ilimitadas) em favor do povo, concedendo-
lhe alguns direitos e garantias.396 Trata-se, portanto, mais de uma concessão do que de uma
conquista (embora seja inegável a existência de uma pressão antagônica, pois, do contrário,
não haveria tal condescendência).

Trata-se de um ato unilateral do governante. O Chefe de Estado,


outorgando a Constituição, a ela se sujeita (jurídica e politicamente); sendo ele, no entanto,

395
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
396
CHIMENTI, R. C.; CAPEZ, F.; ROSA, M. F.; SANTOS, M. F. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2004.
o autor da Constituição, entende-se que ele também pode alterá-la (mesma noção que a de
Hobbes397 com relação aos direitos individuais no contrato social).

Exemplos característicos deste modelo são a Carta de Luís XVIII (que


restaurou a monarquia francesa em 1814) e a Constituição do Império de 1824 (outorgada
por Dom Pedro I após a dissolução da Assembléia Constituinte que havia sido convocada
para sua elaboração, com a participação de representantes das Províncias).398

Constituição pactuada é aquela que exprime um compromisso instável de


duas forças políticas rivais (ex.: monarquia decadente e burguesia ascendente), passando a
monarquia, então, a ser limitada. O equilíbrio, porém, é precário, pois há sempre uma
oposição de forças. Como exemplo temos a Constituição francesa de 1791 e o Bill of
Rights (1689).399

Por fim, Constituições populares ou democráticas são aquelas que se


baseiam no consentimento dos governados, traduzindo a vontade soberana do povo. São,
via de regra, produto de uma Assembléia Constituinte (critério da representação popular –
embora nem sempre este critério seja suficiente). Já não se trata de um equilíbrio entre duas
forças opostas, mas sim de uma negociação ampla, abrangente, dos diversos setores da
sociedade que, dialogando entre si, chegam a um “consenso” com relação às normas
fundamentais de organização do Estado e da sociedade.

O primeiro exemplo histórico de Constituição fruto de uma convenção é a


Constituição Americana de 1787.400

397
Ver LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
398
Proclamada a Independência do Brasil, foi necessário instituir-se uma legislação própria para o país, a
começar pela Constituição. Para tanto, foi convocada uma Assembléia Constituinte, ainda no mesmo ano,
vindo, contudo, a ser dissolvida em 1823, em virtude da ameaça liberal. Assim é que a primeira Constituição
brasileira, da Constituição imperial de 1824, acabou por ser uma Constituição outorgada. Cf. LOPES, José
Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000.
Maiores detalhes acerca do tema podem ser encontrados, ainda, no capítulo deste livro que trata
especificamente da história do constitucionalismo no Brasil.
399
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
400
HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado
Constitucional. Traducción de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Trotta, 1998.
É a noção de Constituição que prevalece especialmente desde a II Guerra
Mundial, quando se deu uma refundação e uma revalorização dos direitos fundamentais e
da democracia.

4.1.6 Constituições concisas x Constituições prolixas

Fala-se em Constituição concisa quando ela abrange apenas princípios


gerais ou enuncia apenas regras básicas de organização e de funcionamento do sistema
jurídico estatal, ficando a parte de pormenorização e detalhamento dos conteúdos reservada
para a legislação complementar e para a legislação ordinária.401 Com isso, permite-se uma
maior estabilidade, pois a sua flexibilidade e abertura permitem uma adaptação a novas
situações, imprevistas por ocasião de sua elaboração.

Neste sentido, quanto menos especificados forem os regramentos


contidos na Constituição, menos alterações o seu texto precisa sofrer, pois a sua atualização
se torna possível com base tão-somente na interpretação402 (como os princípios são
genéricos, permitem uma interpretação e aplicação ampla, que se prolonga no tempo).

Assim, este modelo de Constituição abrange, em princípio, unicamente a


matéria tida como constitucional em sentido estrito (valendo-se, portanto, via de regra,
notadamente de um critério material de Constituição).

Como exemplo, pode-se citar a Constituição dos EUA (além da da França


de 1946 e da República Dominicana de 1947), famosa por conter poucos artigos e perdurar,
sem alterações e com poucas emendas, já desde 1787.403

As Constituições prolixas, por sua vez, possuem um detalhamento e uma


ampla abrangência de conteúdos, trazendo em seu texto matérias em princípio alheias ao
direito constitucional propriamente dito404 (isto é, matérias não necessariamente
constitucionais), que poderiam perfeitamente ficar de fora da Constituição e ser tratadas em

401
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2006.
402
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1995.
403
HAMILTON, Alexander. O federalista. Brasília: Universidade de Brasília, 1984.
legislação complementar ou ordinária (exemplo disso é a Constituição brasileira de 1988,
que determina, inclusive, o percentual de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas –
art. 220).

Elas contêm, portanto, minúcias de regulamentação, além de contarem


com matérias inseridas no texto constitucional por arbítrio do constituinte, como forma de
lhes assegurar a garantia jurídica que somente a Constituição oferece, dada a dificuldade
que traz para sua alteração.

Pode-se dizer, assim, que as Constituições prolixas se valem do conceito


formal de Constituição, atribuindo status e força constitucional a todos os seus dispositivos,
independentemente da matéria de que se trata. Além disso, é possível associar-se esta
característica com o fenômeno de constitucionalização do Direito, verificado nas últimas
décadas, onde a Constituição tende a incorporar algumas matérias como família, igreja,
educação, direitos das minorias, partidos políticos, etc., como ocorre com a Constituição
brasileira.

Como exemplos, além da Constituição brasileira de 1988, têm-se a


Constituição do México de 1917 e a da Índia de 1950.405

4.2 A Evolução das Constituições: do Estado liberal ao Estado


democrático de direito

4.2.1 Considerações gerais406

Nós iniciamos a análise evolutiva da Constituição a partir do Estado de


Direito liberal porque, apesar de haver alguns precedentes e variantes históricos a que

404
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000.
405
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
406
Para maiores e detalhadas informações acerca do tema, remetemos à leitura do primeiro capítulo de nossa
obra LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio: os limites da jurisdição constitucional
brasileira. São Paulo: Manole, 2003, onde estas questões são abordadas em profundidade.
fazemos menção no texto, acreditamos que a Constituição em sua concepção atual nasce
com o Estado Moderno, mais precisamente com a Revolução Francesa de 1789407 (até
porque muitos de seus conteúdos permanecem presentes nas Constituições até os dias
atuais).

Esta Constituição tem sua base, por sua vez, na idéia do contrato social
que, partindo de uma concepção antropocêntrica (em oposição ao teocentrismo vigente na
Idade Média), coloca o Estado como sendo criado por um pacto firmado entre homens
livres e iguais, anteriores a ele.408

O Estado está, portanto, a serviço do homem, e não o contrário, o que


permite que se lhe imponham limites. Daí a máxima de que “ao indivíduo é permitido tudo
aquilo que não é proibido”, ao passo que, para o Estado, “é proibido tudo aquilo que não é
permitido”, e a idéia da separação dos poderes.409

Neste contexto, o melhor instrumento para assegurar tais prerrogativas é a


lei, especialmente a lei constitucional410, que se reveste das características de generalidade e
de neutralidade para assegurar a manutenção da igualdade natural que existe entre os
homens, por meio de um exacerbado formalismo.

A Constituição consiste, portanto, neste sentido, mais em um instrumento


de manutenção da ordem estabelecida, de manutenção das conquistas obtidas com a
revolução, do que em um instrumento de transformação social. Trata-se, pois, de uma
“imparcialidade parcial”.411

Este falso absenteísmo imposto à figura do Estado gera, por sua vez, uma
extrema desigualdade social, alavancando, no começo do século XX, fortes movimentos
sociais, que vão resultar em um novo modelo estatal, denominado de Estado social.

407
HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado
Constitucional. Traducción de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Trotta, 1998. p. 59.
408
MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno.
Traducción de Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Tortta, 1998. p. 25.
409
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Traducción de
Rafael Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 2000. p. 19.
410
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. pp. 123-124.
411
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Revista de Derecho Privado, [s.d.]. p. 145.
Cria-se um novo conceito para o princípio da igualdade, que passa a ser
concebido não mais em seu aspecto formal, mas sim em seu aspecto material (ou seja,
pretende-se não mais a igualdade perante a lei, mas sim através dela). Não se trata, assim,
de uma renúncia ao Estado de Direito, mas de uma adaptação de seu conteúdo no sentido
econômico e social.412

Diante de tal quadro, o Estado não pode mais ser tido como mero
espectador, cabendo-lhe intervir diretamente nas questões sociais como promotor de bens e
de serviços, assegurando-os a uma parcela mais abrangente da sociedade.413 Tem-se, pois, a
idéia de que devem ser tratadas desigualmente situações desiguais.

Na esteira desta evolução, constitucionalizam-se direitos econômicos


sociais e culturais, tendo como meta a correção ou transformação da ordem social e
econômica vigente no sentido de consecução de uma real igualdade, de modo que também
à Constituição passa a ser atribuída uma nova função, mais dirigente, no sentido de ser um
programa de ação para governados e governo.414

Trata-se, contudo, de uma “revolução prometida” (Calamandrei), de uma


utopia concreta cuja realização depende da ação política. Com o tempo, no entanto, a essas
norme di scopo (Lavagna)415 foi atribuída plena eficácia, conferindo aos princípios
constitucionais valor igual ou superior ao das demais regras, dando origem ao Estado
Democrático de Direito. Prevalece a idéia de que a sociedade deve participar ativamente da
formação da vontade geral do Estado, sendo que a função estatal não está mais vinculada só
ao aspecto da legalidade, mas também da legitimidade.416

412
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na
ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 71.
413
PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da
Constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 163.
414
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza, 1996. p.
18.
415
LAVAGNA, Carlo. Constituzione e socialismo. Bologna: Il Mulino, 1977. p. 53.
416
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 12.
Este elemento democrático se reflete, por sua vez, também no conceito de
Constituição, que passa a ser tida como a expressão máxima dos valores eleitos pela
comunidade que a adota.417

Ela é, neste sentido, um produto cultural, cuja abertura vai assegurar sua
evolução em meio a uma sociedade extremamente plural e complexa.418

CONSTITUIÇÃO LIBERAL
• A Constituição está associada à noção de Estado de Direito.
• Surgimento da noção tradicional (moderna) de Constituição.
• Existem outros precedentes (especialmente com base nos costumes), mas não com a
mesma noção.
• A Idade Moderna também se caracteriza pela universalização da idéia de Constituição.
• As primeiras constituições da Idade Moderna surgem ainda no Absolutismo, como
resultado da pressão de alguns grupos (mas eram outorgadas).
• Com a Revolução Francesa, no entanto, a burguesia assume o poder.
• Tentativa de segurança jurídica (codificação; lei racional; igualdade formal).
• Os direitos naturais – fundamento da revolução – passam a ser positivados (passam a
ser direito positivo).
• Possibilidade de serem acionados (direito subjetivo).
• Necessidade de uma lei que vincule o Estado no respeito e na obediência a esses
direitos fundamentais (noção de oposição entre Estado e Sociedade – o Estado é uma
ameaça).
• Assim, é preciso que se crie uma lei superior (capaz de vincular ao Estado) onde
constem os direitos fundamentais do homem (garantia da liberdade – ao indivíduo é
permitido fazer tudo aquilo que não é proibido) e os limites de atuação e a organização
pormenorizada do Estado – aí incluída a separação dos poderes – segundo o

417
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 37.
418
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Serio Antonio Fabris, 1997. p. 24.
entendimento de que ao Estado é permitido fazer somente aquilo que a lei autoriza
(tentativa de ruptura com o modelo absolutista).
• A subordinação do Estado está associada à idéia de que o homem é anterior a ele
(contrato social).
• A Constituição tem um caráter eminentemente jurídico (os seus conteúdos têm estrito
valor jurídico e devem ser rigorosamente observados).
• Destaque para o fato de ser escrita (reforça a segurança), seguindo a tendência própria
do racionalismo (em oposição às leis fundamentais consuetudinárias, próprias e
características da Idade Média).
• À codificação do direito privado segue-se a codificação constitucional.

• CONSTITUIÇÃO SOCIAL
• Manutenção das características e conteúdos da Constituição liberal (escrita, rígida,
direitos individuais).
• Movimentos operários e revolução bolchevique.
• Incorporação de uma noção de igualdade material (direitos sociais).
• Idéia de que a igualdade material é um objetivo a ser alcançado a longo prazo, não
possuindo suas disposições valor jurídico imediato (normas programáticas).

CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA
• Ampliação do rol de direitos; incorporação de novas dimensões, como direitos
transindividuais.
• Centralidade na noção de dignidade humana em sentido amplo.
• Previsão de inúmeros instrumentos de garantia e de realização dos direitos
fundamentais (ações constitucionais).
• Base em valores e no reconhecimento das minorias e da heterogeneidade que
caracteriza a sociedade (daí o seu caráter político); este valores, contudo, são dotados de
eficácia jurídica, de normatividade (resgate do seu aspecto jurídico).
• Democracia em sentido amplo; participação da sociedade em diversas instâncias e
esferas, e não apenas por meio do voto.
• Aproximação entre Estado e sociedade.

QUADRO ESQUEMÁTICO
Estado Absolutista ➔ Constituição outorgada
Estado Liberal ➔ Constituição jurídica (garantia dos interesses da burguesia); caráter
legalista e formalista e limitação dos poderes do Estado
Estado Social ➔ Constituição política (normas programáticas); ausência de eficácia
jurídica
Estado Democrático de Direito ➔ Constituição política e jurídica (assume uma feição
política, porém suas normas são dotadas de plena normatividade); incorporação de valores

4.3 Evolução histórica do constitucionalismo no Brasil

4.3.1 A Constituição imperial de 1824


Quando o Brasil se tornou independente, em 1822, precisou estruturar-se
enquanto país, isto é, ele necessitava criar uma organização e estrutura que lhe fossem
próprias, com instituições, cargos e legislação. Para tanto, fez-se necessário, antes de mais
nada, elaborar uma Constituição, documento jurídico próprio para o estabelecimento de
todas estas novas realidades inauguradas com a autonomia em relação a Portugal.

Neste sentido, havia dois grandes exemplos históricos recentes de


revoluções e rupturas bem-sucedidas que poderiam servir de inspiração e de referência para
esta reestruturação: o modelo norte-americano (republicano, dotado de um regime
presidencialista e descentralizado, com base no sistema federativo) e o francês (unitário,
monárquico, centralizado).419 Na América Latina, por sua vez, as novas nações adotaram,
todas, a forma republicana. Dentro deste contexto, a questão que se punha era: qual desses
exemplos deveria ser seguido pelo Brasil?

Apesar de ambos os modelos se prestarem para uma adoção pelo novo


Estado e também apesar de o referencial norte-americano ser historicamente mais próximo
do nosso (dimensões territoriais, independência com relação à metrópole), alguns fatores
foram decisivos nesta opção em terras brasileiras.

Primeiramente, é preciso ressaltar que os Estados Unidos eram um país


republicano e haviam introduzido na sua carta de direitos a figura do Estado laico, abolindo
e proibindo, assim, a existência de religião oficial.420 Isto, naturalmente, parecia inaceitável
para o clero brasileiro, acostumado, desde séculos, ao patrocínio oficial do rei. Além disso,
como o clero era uma parte importante da elite letrada, sua presença precisava ser também
politicamente considerada. Assim, o modelo mais estável era o americano, mas lá não havia
religião oficial, situação que o que o clero brasileiro não admitiu.

Além disso, é importante lembrar que, ao contrário dos outros países


latino-americanos, que aboliram a escravidão por ocasião de suas declarações de
independência, o Brasil manteve esta forma de servidão, o que consistia em um grande
embaraço à forma republicana, reforçando, desta forma, a tendência de opção pela adoção
de um modelo menos liberal.421

Neste sentido, o grande temor era o de que um sistema instável, fraco,


fizesse deflagrar uma guerra civil, reforçando-se, desta forma, ao final, a escolha pelo
sistema monárquico, mais centralizador.

419
COSTA, Maria Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
420
HAMILTON, Alexander. Sobre a Constituição dos Estados Unidos. São Paulo: IBRASA, 1964.
421
O Brasil compartilhava com os EUA o grande problema dos negros escravos; a única diferença é que nos
EUA os negros eram os únicos discriminados (pois a sociedade era igualitária); já no Brasil eles configuraram
apenas mais uma dentre as classes de excluídos – daí a manutenção da escravidão não ser algo tão fora do
comum (apesar de a Constituição de 1824 haver incorporado o conteúdo das Declarações de Direitos). Cf.
SOUZA, Otávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1972.
Por outro lado, o Brasil não possuía vínculos históricos com o modelo
unitário francês, que possuía, ainda, a dificuldade de adequar o seu poder centralizado a um
país de dimensões continentais.422

Diante de tal quadro, tem-se, em resumo, que o Brasil precisava criar um


modelo original, próprio, sendo o que, de certa forma, veio a acontecer. Pode-se dizer,
portanto, que o constitucionalismo deste período é contrário ao Antigo Regime, mas não é
radical.

Assim, a Constituição calou sobre a questão dos escravos, mas garantiu


aos “cidadãos passivos” os direitos civis (de propriedade, liberdade e segurança em suas
vidas e bens), consagrando em seu texto a incorporação da declaração de direitos típica do
direito liberal. De outro lado, a monarquia garantiu, ainda – mesmo que sem caráter
hereditário – formas estamentais de divisão social, tais como a nobreza titulada, reforçando
o seu caráter conservador.423

Como resultado da relação entre estes fatores, o Brasil imperial acabou por
constituir-se na forma de um Estado unitário, sendo as províncias meras divisões
administrativas do mesmo governo e do mesmo Estado. Embora tivessem os seus próprios
Conselhos, elas dependiam dos atos da Assembléia Geral para terem suas deliberações
transformadas em leis, ou da aprovação do Executivo (o Presidente da Província submetia o
assunto ao Executivo imperial).

Ao contrário do que ocorria com as províncias, algum poder era dado, por
sua vez, às Câmaras Municipais – forma estratégica de desconcentração administrativa
adotada pelo governo central para viabilizar a administração e o controle em todo o
território, já que as províncias não poderiam ser fortalecidas, pois representavam a essência
do modelo republicano liberal (tanto isto é verdade, que foram as Câmaras Municipais que
referendaram o projeto de Constituição apresentado por D. Pedro I, a fim de garantir,
minimamente, a sua legitimidade, em substituição à Assembléia Constituinte dissolvida);

422
NOVAIS, F. A.; MOTA, C. G. A independência política do Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
423
SEGURADO, Milton Duarte. O Direito no Brasil. São Paulo: José Bushatsky, 1973.
além disso, cabia às Câmaras Municipais, ainda, nomear os juízes municipais e os juízes de
paz, reforçando-se, assim, o seu poder.424

Tem-se, por conseguinte, que o fato de não se adotar o federalismo faz


com que as províncias tenham um papel muito reduzido (em oposição ao modelo
republicano); como, no entanto, o poder não pode ser absolutamente centralizado (devido à
imensidão do território), o elemento descentralizador acabou por situar-se, exatamente, nos
Municípios.

Antes disso, contudo, D. Pedro I havia convocado, em 1822, logo após a


proclamação da independência, o chamado Conselho de Procuradores Gerais das
Províncias, encarregado de examinar e de propor os grandes projetos de reformas
administrativas, bem como propor medidas e planos estruturais. É deste Conselho de
Procuradores que sai, por sua vez, a proposta de convocação de uma Assembléia
Constituinte, destinada a elaborar e pensar a nova Constituição do país.

A Constituinte foi, então, convocada, ainda em 1822, sendo feita uma


eleição nas paróquias para a indicação dos representantes. Esta Assembléia Constituinte foi,
no entanto, dissolvida pelo imperador em 1823, sob a alegação de estar tomando feições
demasiadamente liberais. Diante desse quadro, foi elaborado, então, o projeto da Carta
Constitucional de 1824, que veio a ser uma Constituição outorgada.

Esta Carta foi remetida, conforme já referido, a algumas Câmaras


Municipais, para serem ouvidas sobre o projeto, visando esta manifestação a substituir a
legitimação da Assembléia Constituinte propriamente dita.

Nesta oportunidade, foram feitas inúmeras objeções ao projeto,


especialmente por parte de Frei Caneca, que tinha uma concepção contratualista de
Constituição. As críticas425 mais comuns diziam respeito aos seguintes aspectos: a) falta
clara de determinação do território (o que punha em risco a Independência, já que D. Pedro
poderia facilmente reunir Portugal e o Brasil); além disso, apontava-se uma aparente
contradição, pois o imperador jurava preservar a integridade do Brasil, mas poderia ceder

424
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. São Paulo; Niterói: Edusp; EUFF, 1987.
ou trocar o território do império sem autorização da Assembléia Geral); b) caráter
centralizador (retirada de autonomia das províncias, que não poderiam mais legislar sobre
assuntos de seu interesse); c) existência de um senado vitalício (indicado pelo imperador) e
câmaras (eleitas pelas províncias, de caráter eletivo), sujeita à dissolução, em virtude das
competências atribuídas ao Poder Moderador.

No discurso de Frei Caneca já se encontram evidentes, portanto, os temas


que atravessaram o debate jurídico e político do Império: poder moderador e centralismo,
soberania popular e representação política.
Ao final, algumas Câmaras rejeitaram o projeto da Constituição, mas ele
finalmente terminou por ser jurado pelo imperador em 1824, nascendo, assim, a primeira
Constituição brasileira.

A Constituição aprovada previa a divisão de poderes nos moldes pensados


por Montesquieu, com existência de poder executivo, legislativo e judiciário; não se
tratava, todavia, de poderes autônomos e independentes entre si, de um sistema de checks
and balances como originariamente proposto pelo pensador francês, constituindo-se, antes,
em um um modelo de organização política que se aproximava daquele proposto por
Benjamim Constant, qual seja, o da repartição tetradimensional de poderes, com a adição
de um poder moderador.

Neste contexto, ao Imperador cabia a titularidade do Poder Executivo


(juntamente com uma comissão de ministros) e do já referido Poder Moderador, a quem
competia manter a harmonia entre os poderes (com poderes reconhecidos de dissolução da
Câmara, de nomeação dos integrantes vitalícios do Senado, bem como de direitos como o
de adiamento e de convocação de eleições, de suspender e de nomear magistrados e de
escolher livremente os ministros).426 Pode-se dizer, portanto, com base nas informações
acima, que traduzem o esquema de centralização do poder verificado naquela época, que,
ao contrário do que ocorre no sistema inglês, onde o Rei reina, mas não governa, no Brasil,
o Imperador reinava, governava e administrava. Complementando esta estrutura, havia,
ainda, o chamado Conselho de Estado, encarregado de aconselhar o Imperador.

425
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad,
2000.
O Poder Moderador427 era, portanto, a chave de toda a organização
política, sendo tido como um “quarto poder” (apesar de ser superior aos demais), ao lado
Executivo, do Legislativo e do Judiciário; ele era tido, contudo, como um poder neutro, que
se sobrepunha aos demais poderes no interesse da nação (para evitar abusos de maiorias
eventuais, já que o Império adotou o sistema legislativo representativo). Este poder era, por
sua vez, delegado privativamente ao Imperador, para que, incessantemente, velasse pela
manutenção da independência, do equilíbrio e da harmonia dos demais poderes políticos.
Ao desempenhar tal função, o Imperador é, pois, chefe supremo e representante da nação, e
não de grupos particulares.

Neste sentido, pode-se dizer que, ao contrário da doutrina federalista


norte-americana, em que cabia ao Judiciário o arbitramento de certas disputas, o sistema
brasileiro delegou ao Imperador uma representação não-eleitoral dos interesses gerais da
nação, sobrepondo-se às partes e aos partidos. Assim, o Poder Moderador não era tido
como um poder absoluto, mas sim como um remédio aos impasses do partidarismo
(decorrentes do sistema representativo), ou seja, ele era um poder que se sobrepunha aos
interesses dos grupos, daí representar a NAÇÃO.

O seu fundamento residia no argumento de que, se os outros três poderes


estivessem em acordo, poderiam abusar do poder (e, para coibir os abusos, fazia-se
necessário o Poder Moderador); por outro lado, se eles estivessem em desacordo, então não
haveria ação, haveria anarquia, fazendo-se necessário, então, um poder interventor, forte,
como o Poder Moderador.

Apesar de serem titularizados pela mesma pessoa – no caso, o Imperador –


contudo, o Poder Moderador não se confunde e nem se identifica com a Chefia do
Executivo, porque, ao exercer as prerrogativas do primeiro, a sua função é, exatamente, a
de inspecionar e fiscalizar os demais, incluído aí o Executivo. Assim, teoricamente, até
mesmo o Imperador, enquanto chefe do Executivo, está sujeito ao Poder Moderador.

426
VASCONCELOS, Zacarias de Góes e. Da natureza e limites do Poder Moderador. Brasília: Senado
Federal, 1978.
427
SOUZA, Braz Florentino de Henriques. Do Poder Moderador. Brasília: Senado Federal, 1978.
Ademais, a pessoa do Imperador era tida como inviolável e sagrada, não
estando ela sujeita a responsabilidade alguma.

Já o Poder Legislativo era composto por duas câmaras, a dos deputados,


eletiva e temporária, e a dos senadores, integrada por membros vitalícios nomeados pelo
Imperador em lista tríplice elaborada pela província. A eleição para os cargos era indireta e
censitária, isto é, o direito de voto e a extensão dos direitos políticos era determinada por
uma série de requisitos (tais como ser homem, livre, católico, etc.), além de condicionada
pela renda.428

Dependendo de sua condição429, a pessoa poderia exercer mais ou menos


funções políticas. Assim, as assembléias paroquiais se reuniam para eleger o grupo que
ficaria encarregado de eleger os deputados. A estrutura que se tinha, à época, portanto, era a
seguinte:

Assembléias paroquiais ➔ votação dos representantes para a


eleição dos deputados ➔ eleição dos deputados.

Assembléias paroquiais Eleição dos Deputados Deputados


• homens livres; • Renda de duzentos mil • renda de quatrocentos
• maiores de 25 anos; réis; mil réis;
• que não vivessem com • Não ser liberto (ser • ser brasileiro nato (não
os pais; livre de nascimento); podia ser naturalizado);
• renda superior a cem • Não estar pronunciado • ser católico.
mil réis. criminalmente.
Finalmente, traduzindo a inspiração das declarações de direitos
característica da época, nossa Constituição previa – embora como disposições finais de seu
texto – um capítulo destinado às garantias individuais e aos direitos políticos.

Administrativamente, o território era dividido em províncias, sendo o


presidente da Província escolhido pelo Imperador, fato que confirma, por sua vez, a
estratégia de ausência de autonomia às províncias.

428
PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império. Rio
de Janeiro: Typographia de J. Villeneuve e Cia., 1857.
429
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad,
2000.
Na Reforma constitucional de 1834, decorrente da abdicação do Imperador
D. Pedro I em 1831, gestada durante o período da Regência, os liberais prepararam algumas
mudanças, mas não foram capazes de extinguir o Poder Moderador.430

Somente com o advento da República é que este poder foi abolido, sendo
as suas funções, em parte, transferidas para o Judiciário, que passou a ter competência para
arbitrar conflitos entre os poderes e para rever a constitucionalidade das leis, com base no
modelo do judicial review do modelo norte-americano.

Pode-se dizer, por fim, que a longevidade do Poder Moderador se deveu,


em parte, ao fato de que o modelo que inspirou os liberais brasileiros era o inglês, onde não
havia a figura da revisão judicial; em virtude disso, acredita-se que nem mesmo os liberais
tentaram transferir esse poder para o Judiciário durante o Império, resultando, daí, a sua
longa permanência no sistema constitucional431 brasileiro, mesmo após as transformações
políticas ocorridas após a abdicação de Dom Pedro.

CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS:
• Centralização total do Poder.
• Presença de influências inglesas e francesas (Parlamentarismo, Liberalismo,
Constitucionalismo, Federalismo, Democracia, República).
• Período de 7 de setembro de 1822 a 15 de novembro de 1889.
• Instalação da Constituinte em 3 de maio de 1823.
• “Golpe de Estado” do imperador e dissolução da Assembléia Constituinte (por ser
avançada demais) em 12 de novembro de 1823.
• Consulta às “bases nos Municípios”, como forma de legitimação.
• outorga da Constituição, em 25 de março de 1824.

ALGUNS TRECHOS IMPORTANTES:

Art. 1º: O império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros. Eles
formam uma nação livre e independente, que não admite qualquer outro laço de união ou
federação, que se oponha à sua independência.

430
TRIPOLI, César. História do Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1947.
431
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. São Paulo; Niterói: Edusp; EUFF, 1987.
Art. 5º: A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas
as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.
Art. 10º: Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são
quatro: o Poder Legislativo, O Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial.
Art. 98: O Poder Moderador é a chave de toda a organização política e é delegada
privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante,
para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia
dos mais poderes políticos
Art. 99: A pessoa do imperador é inviolável e sagrada; ele não está sujeito a
responsabilidade alguma.
Constituição mista (semi-rígida):
Art. 267: “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições
respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais”.

Art. 268: “Tudo o que não é constitucional pode ser alterado pelas legislaturas ordinárias,
concordando dois terços de cada uma das salas”.

4.3.2 A Constituição republicana de 1891

A República alterou substancialmente algumas instituições. Como


elemento de destaque, tem-se que a federalização rompeu com a tradicional unidade de
fontes legislativas e introduziu uma política estadual legitimada pela Constituição. A
organização judiciária e o processo tornam-se, então, matéria estadual, ao mais típico estilo
republicano.

Mesmo assim, era inevitável que a cultura jurídica continuasse


praticamente a mesma, inalterada. Isto porque todos os republicanos haviam sido
socializados nos mecanismos do foro e nas faculdades de Direito que seguiam as leis
definidas nacionalmente, originárias do sistema imperial. Ou seja, mudou o regime e
mudou a legislação, mas a prática jurídica e o ensino jurídico ainda eram os mesmos do
regime anterior.
O mesmo se pode dizer com relação às instituições políticas, que passaram
a ser diretamente inspiradas432 no modelo norte-americano, enquanto que esta “importação”
do modelo constitucional fez-se para uma cultura saturada de familiaridade com as
instituições européias. Assim, o sistema era norte-americano, mas a cultura jurídica era
européia.

Uma das reformas mais importantes verificadas com a República foi a


separação que se deu entre Igreja e Estado, criando-se um regime político laico.

Além disso, a República trouxe o mais completo triunfo do laissez faire


(liberalismo), silenciando completamente sobre qualquer direito social.433 Matérias próprias
do direito constitucional eram apenas as questões tais como soberania nacional, separação
de poderes, sistema representativo, liberdades civis.

O triunfo do liberalismo na República era, portanto, inquestionável, sendo


tão profundo, que os tribunais chegavam até mesmo a questionar as modernizações, tidas
como necessárias, e que competiam ao Estado fazer, como sanitarização (os tribunais, por
inúmeras vezes, proibiram o exercício da polícia sanitária em nome da liberdade
individual)434, urbanização. Tudo era considerado ingerência desnecessária no mercado.

CRONOLOGIA:

• Proclamação da República, por Deodoro da Fonseca, em 15 de novembro de 1889:


“Concidadãos! O povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita comunhão de
sentimentos com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a
deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico
representativo”.

• Proclamação dos membros do governo provisório (15 de novembro 1889).

432
MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República: 1870-1889. 2. ed. Brasília: Edunb, 1985.
433
WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica,
1989.
434
FREIRE, Felisbelo. História constitucional da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília: Edunb,
1983.
• Marechal Deodoro da Fonseca – governo provisório (25 de fevereiro a 23 de novembro
de 1891).

• Presidente Marechal Deodoro da Fonseca e vice-presidente Marechal Floriano Peixoto


(23 de novembro de 1891 a 15 de novembro de 1894); Floriano Peixoto assumiu a
presidência em face da renúncia do titular.

• Sessão solene de instalação da Constituinte (15 de novembro de 1890).

• Constituição republicana (24 de novembro de 1891).

CARACTERÍSTICAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1891:


• Influência norte-americana (“Estados Unidos do Brasil”).
• O texto continha disposições da Constituição norte-americana, combinada com a suíça e
argentina.
• Caráter liberal – Rui Barbosa – admirador da organização política dos EUA.
• Luta dos liberais contra o centralismo; diversificação econômica, sociedade menos
rígida.
• Federalismo; república; presidencialismo; regime representativo; Suprema Corte
(espécie de controle difuso de constitucionalidade).
• Extinção dos privilégios; abolição da exigência de renda para o voto; voto direto
(embora não permitisse que analfabetos nem mulheres votassem); os Estados
organizavam as eleições.
• Instituição do casamento civil.

Art 1º: A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a
República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união
perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art 3º: Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400
quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabeIecer-se a
futura Capital federal.
Parágrafo único - Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a
constituir um Estado.

Art 9º: É da competência exclusiva dos Estados decretar impostos:

1 º ) sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção.

Art. 15: são órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário,
harmônicos e independentes entre si”.

Art 28: A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo eleitos pelos
Estados e pelo Distrito Federal, mediante o sufrágio direto, garantida a representação da
minoria.

Art 47: O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos por sufrágio direto da
Nação e maioria absoluta de votos.

§1º: A eleição terá lugar no dia 1º de março do último ano do período


presidencial, procedendo-se na Capital federal e nas Capitais dos Estados a apuração dos
votos recebidos nas respectivas circunscrições. O Congresso fará a apuração na sua
primeira sessão do mesmo ano, com qualquer número de membros presentes.

§2º: Se nenhum dos votados houver alcançado maioria absoluta, o Congresso elegerá, por
maioria dos votos presentes, um, dentre os que tiverem alcançado as duas votações mais
elevadas na eleição direta.

Ainda na Primeira República, estabelece-se a chamada “República do

Café-com-Leite”, marcada pelo coronelismo; neste contexto, a


independência dos Estados tornou-se independência com relação às leis, conformando-se
um paternalismo435 traduzido pela relação pessoal dos governantes com os governados
(corrupção e violência nas eleições e voto de cabresto).
HISTÓRICO DOS PRESIDENTES DA PRIMEIRA REPÚBLICA:
• 1894 a 1898 - Prudente José de Morais e Barros
• 1898 a 1902 - Manuel Ferraz de Campos Sales
• 1902 a 1906 - Francisco de Paula Rodrigues Alves
• 1906 a 1909 - Afonso Augusto Moreira Pena
• 1909 a 1910 - Nilo Procópio Peçanha (o presidente do Senado assume com a morte do
Presidente da República)
• 1910 a 1914 - Marechal Hermes da Fonseca
• 1914 a 1918 - Venceslau Brás Pereira Gomes
• 1918 a 1919 - Francisco de Paula Rodrigues Alves (15 de novembro de 1918 a 28 de
julho de 1919; com o adoecimento e morte de Francisco, assume Delfim Moreira da
Costa Ribeiro)
• 1919 a 1922 - Epitácio da Silva Pessoa
• 1922 a 1926 - Arthur da Silva Bernardes
• 1926 a 1930 - Washington Luís Pereira de Souza

4.3.3 A Constituição de 1934

Os anos 30 foram de transformação profunda, não só no Brasil, mas, de


forma geral, no mundo ocidental. Os movimentos operários se ampliavam em toda parte.
Na Europa, o fim da Primeira Guerra Mundial foi marcado pela Revolução Russa e pelo
movimento revolucionário na Alemanha.

O México já havia adotado, em 1917, uma Constituição436 que inseria,


pela primeira vez na história, os direitos sociais dentro da carta de direitos fundamentais.
Em 1919, a Alemanha, para pôr fim ao processo revolucionário437, adotou a Constituição de
Weimar.

435
CARONE, Edgard. A República Velha. 4. ed. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
436
URBINA, Alberto Trueba. La primera Constitución político-social del mundo. México: Porrúa, 1971.
437
MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno.
Traducción de Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 1998.
Seguindo na mesma linha, também no Brasil os anos 30 foram de muita
insatisfação, especialmente no que dizia respeito ao sistema eleitoral, ao predomínio das
oligarquias cafeeiras e ao tenentismo; além disso, verificou-se a criação do Partido
Comunista (1922), o que gerou profundas discussões438 entre liberais e comunistas.

Nas primeiras décadas do século XX, o movimento operário conseguiu


avanços consideráveis, sendo que a revolução se estabeleceu mais notadamente no final da
I Guerra Mundial.

Além de realçar o papel do Estado como dirigente dos rumos sociais,


diminui-se – ou ao menos permitiu-se a restrição – das garantias liberais individuais,
embora implementar os direitos sociais não significasse sacrificar os direitos individuais;
antes pelo contrário, ambos precisavam ser compreendidos numa perspectiva dialética e
complementar439 (ou seja, não poderia haver tanta liberdade que sacrificasse a igualdade, e
vice-versa); além disso, os próprios direitos sociais eram tidos como um elemento (um
pressuposto) da existência de direitos individuais.

Neste contexto, surgiu, então, a noção de que a representação política não


poderia ser reduzida ao indivíduo; ela deveria ser estendida também às corporações, que
não poderiam ser autônomas em relação ao Estado. Assim, criaram-se os sindicatos como
unidade representativa de organização das categorias profissionais, constituindo um elo
forte de ligação com o governo e estabelecendo um canal de comunicação com os
trabalhadores, ao mesmo tempo em que eram subordinados ao governo.

É assim que o socialismo se incorporou às Constituições brasileiras, ainda


que elas não fossem democráticas.

438
BELLO, José Maria. História da República. 7. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976.
439
Sobre a historicidade e a complementariedade como característica dos direitos fundamentais, ver
HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado
Constitucional. Traducción de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Trotta, 1998.
Conseqüentemente, o modelo constitucional de 1934 foi corporativo, com
a assunção, por parte do Estado, de setores estratégicos da economia440 (como, por
exemplo, a Companhia Siderúrgica Nacional, Petrobrás, etc.).

No plano judicial, a Suprema Corte era composta de onze ministros


nomeados. Criou-se, igualmente, uma Justiça Eleitoral (em resposta às exigências da
Revolução de 30 contra o voto de cabresto e o coronelismo), bem como a Justiça do
Trabalho441, instituída não como um poder autônomo, mas como um órgão administrativo,
composto de Tribunais do Trabalho e de Comissões de Conciliação (somente em 1946 é
que a Justiça do Trabalho foi incorporada ao Poder Judiciário).

Foi criado, ainda, o Mandado de Segurança enquanto ação autônoma442,


separada do habeas corpus.

Foi a Constituição de 1934 que contemplou, pela primeira vez, portanto,


diversos direitos sociais (salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas diárias, férias,
amparo à maternidade, sindicatos), sob a forma de diretrizes políticas. Tanto que foi a
primeira vez em que uma Constituição brasileira contou com um capítulo especialmente
destinado à ordem social. Assim, ela já previa preocupações de ordem social – tais como
educação e cultura – embora elas ainda não constituíssem precisamente um “dever” para o
Estado.

Constituição de 1934: • sufrágio universal (para eleição dos deputados);

• voto da mulher;

• concurso público;

• estabilidade para os servidores;

• Corte Suprema (onze ministros nomeados);

• Justiça Eleitoral;

• Justiça do Trabalho (órgão administrativo);

440
WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica,
1989.
441
MACHADO NETO, Antonio Luiz. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo: Grijalbo; Edusp,
1969.
442
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1998.
• garantias para os magistrados estaduais (vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos);

• Mandado de Segurança;

• direitos sociais (salário mínimo, férias, sindicatos) – normas


programáticas.

REVOLUÇÃO DE 30:
• Novas oligarquias + tenentes X velhas oligarquias.
• General Afonso Tasso Fragoso, General João de Deus Mena Barreto, Almirante José
Isaías de Noronha – junta governativa da revolução de 30 (24 de outubro a 3 de
novembro de 1930).
• Getúlio Vargas – governo provisório (3 de novembro de 1930 a 17 de julho de 1934).
• Getúlio Vargas (1934 a 1937).

CONSTITUIÇÃO DE 16 DE JULHO DE 1934:


• Influência do constitucionalismo social alemão.
• Influência das idéias socialistas e de idéias totalitárias (nazismo, integralismo).
• Criação do Ministério do Trabalho; direitos sociais.
• A Constituinte tinha representação classista.
• “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”.
• Ampliação dos poderes da União.
• A Câmara dos Deputados virou o principal órgão, sendo o Senado consultor desta.
• Voto feminino.
• Criação da Justiça Eleitoral.
• Criação de novos títulos na Constituição: Da Ordem Econômica e Social, da Família,
Educação e Cultura.
• Compromisso entre o liberalismo econômico e o intervencionismo.

Preâmbulo: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa


confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um
regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar
social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil.”

Art 1º: A Nação brasileira, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territórios em Estados Unidos do Brasil, mantém como forma de
Governo, sob o regime representativo, a República federativa proclamada em 15 de
novembro de 1889.

Art 2º: Todos os poderes emanam do povo e em nome dele são exercidos.

Da Ordem Econômica e Social

Art 115: A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as
necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro
desses limites, é garantida a liberdade econômica.

Art 121: A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na


cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses
econômicos do País.

Art. 149: A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes
públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no
país, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e
desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana.

4.3.4 A Constituição de 1937

A vida da Constituição de 1934 foi curta, pois, já em 1937, o golpe do


Estado Novo impôs a criação de uma nova Constituição; tratou-se, no entanto, de uma
“Carta Constitucional”, pois ela foi outorgada, não sendo fruto de um verdadeiro processo
constitucional.

Ademais, as instituições representativas – tais como o Parlamento –


previstas na Carta, nunca chegaram a funcionar, pois este jamais chegou a ser eleito. Como
não foram realizadas eleições, o processo legislativo foi completamente delegado ao
Presidente da República, que governou exclusivamente por meio de Decretos e de
Decretos-lei.443

Mesmo assim, criou-se um arcabouço institucional que não foi


desmontado nas décadas seguintes e que acabou por ser legitimado com a democratização
de 1946.

No que diz respeito aos direitos sociais, ficaram mantidos aqueles criados
pela Constituição anterior.

• Getúlio Vargas ➔ Golpe de Estado ➔ Estado Novo (10 de novembro de 1937 a 29 de


outubro de 1945).
• Dissolução do Congresso e fortalecimento do Poder Executivo (expedição de decretos-
leis).
• Intervenção na economia.
• Proteção dos interesses nacionais.
• Constituição de 10 de novembro de 1937, elaborada por Francisco Campos e inspirada
na Constituição da Polônia.

PREÂMBULO

“O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil:

- Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social,


profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem resultantes da crescente
agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura
desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu
desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a noção sob a
funesta iminência da guerra civil [...];

- Atendendo ao estado de apreensão criado no pais pela infiltração comunista, que se torna
dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente;

443
SCHWARTZMAN, Simon. Estado Novo, um auto-retrato. Brasília: Edunb, 1982.
- Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de meios normais
de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo [...];

- Com o apoio das Forças Armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e
outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da
rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e
políticas;

Resolve assegurar à nação a sua unidade, o respeito a sua honra e a sua


independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições
necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e a sua prosperidade [...]”

DA ORGANIZAçãO NACIONAL
Art 1º: O Brasil é uma República. O poder político emana do povo e é exercido em nome
dele e no interesse do seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua
prosperidade.
Art 2º: A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o
País. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos
símbolos nacionais.
Art 9º: O Governo federal intervirá nos Estados, mediante a nomeação pelo Presidente da
República de um interventor, que assumirá no Estado as funções que, pela sua Constituição,
competirem ao Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades
de cada caso, lhe forem atribuídas pelo Presidente da República.
Art 13: O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução
da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir
decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as
seguintes:
a) modificações à Constituição;
b) legislação eleitoral;
c) orçamento;
d) impostos;
e) instituição de monopólios;
f) moeda;
g) empréstimos públicos;
h) alienação e oneração de bens imóveis da União.
DA ORDEM ECONÔMICA

Art 136: O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual


tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de
subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo,
constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e
meios de defesa.

Art 137: A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos:


a) os contratos coletivos de trabalho concluídos pelas associações, legalmente reconhecidas,
de empregadores, trabalhadores, artistas e especialistas, serão aplicados a todos os
empregados, trabalhadores, artistas e especialistas que elas representam;
b) os contratos coletivos de trabalho deverão estipular obrigatoriamente a sua duração, a
importância e as modalidades do salário, a disciplina interior e o horário do trabalho;
d) o operário terá direito ao repouso semanal aos domingos e, nos limites das exigências
técnicas da empresa, aos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local;
e) depois de um ano de serviço ininterrupto em uma empresa de trabalho contínuo, o
operário terá direito a uma licença anual remunerada;
f) nas empresas de trabalho contínuo, a cessação das relações de trabalho, a que o
trabalhador não haja dado motivo, e quando a lei não lhe garanta, a estabilidade no
emprego, cria-lhe o direito a uma indenização proporcional aos anos de serviço;
g) nas empresas de trabalho contínuo, a mudança de proprietário não rescinde o contrato de
trabalho, conservando os empregados, para com o novo empregador, os direitos que tinham
em relação ao antigo;
h) salário mínimo, capaz de satisfazer, de acordo com as condições de cada região, as
necessidades normais do trabalho;
i) dia de trabalho de oito horas, que poderá sér reduzido, e somente suscetível de aumento
nos casos previstos em lei;
j) o trabalho à noite, a não ser nos casos em que é efetuado periodicamente por turnos, será
retribuído com remuneração superior à do diurno;
k) proibição de trabalho a menores de catorze anos; de trabalho noturno a menores de
dezesseis, e, em indústrias insalubres, a menores de dezoito anos e a mulheres;
l) assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta, sem
prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto;
m) a instituição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de acidentes do
trabalho;
n) as associações de trabalhadores têm o dever de prestar aos seus associados auxílio ou
assistência, no referente às práticas administrativas ou judiciais relativas aos seguros de
acidentes do trabalho e aos seguros sociais.
Art 139: Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados,
reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e
à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao
recrutamento e às prerrogativas da Justiça comum.

4.3.5 A Constituição de 1946

A Constituição brasileira de 1946, por ser fruto do segundo pós-guerra, é


marcada pela influência do constitucionalismo ocidental, que encontra na democracia e na
proteção dos direitos fundamentais a sua pedra de toque. Internamente, por sua vez, o
período é marcado pela redemocratização do país, com o fim do Estado Novo.

Em termos de direitos, ela preserva as conquistas das Constituições


anteriores, especialmente em termos de direitos sociais, porém incorpora alguns elementos
de caráter democrático. No mais, como já referido, ela se valeu da estrutura institucional
deixada pelo modelo anterior.

Ressaltem-se, neste sentido, as palavras de Paulo Bonavides, para quem a


terceira República, pelos seus três primeiros presidentes – Dutra, Getúlio e Juscelino – não
passou de um Estado Novo constitucionalizado.444 Em outras palavras, a máquina do poder
ficou sempre com os homens que haviam dominado politicamente o período
correspondente à ditadura civil de 1937.

444
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. São Paulo: Malheiros, 1997.
• Derrubada de Getúlio pelos Militares, assumindo a presidência o ministro presidente do
STF, José Linhares (29 de outubro de 1945 a 31 de janeiro de 1946).
• Convocação de eleições pelo ditador.
• Eleições presidenciais, havendo sido eleito Eurico Gaspar Dutra (1946-1951).
• Constituinte plural, com predominância dos conservadores; o Congresso foi
transformado em Constituinte; discutida sem prévio projeto.
• “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil” (18 de setembro de 1946).
• Participação na Guerra contra o nazi-fascismo.
• Reorganização do constitucionalismo no mundo.
• Getúlio Dornelles Vargas (1951-1954).
• Suicídio de Getúlio em 24 de agosto de 1954; tentativa de reformas de base pela
oposição conservadora.
• João Fernandes Campos Café Filho assume a presidência (25 de agosto de 1954 a 9 de
novembro de 1955).
• Carlos Coimbra da Cruz, presidente da Câmara dos Deputados, assume a presidência
por ocasião da doença de Café Filho (9 a 11 de novembro de 1955).
• O Congresso afasta Carlos Coimbra da Cruz e nomeia em seu lugar Nereu de Oliveira
Ramos (11 de novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956).
• Juscelino Kubitschek de Oliveira é eleito presidente (1956-1961).
• Jânio da Silva Quadros (31 de janeiro a 25 de agosto de 1961).
• Com a renúncia de Jânio Quadros, Pascoal Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos
Deputados, assume a presidência até a volta do vice-presidente eleito, João Goulart, do
exterior (25 de agosto a 7 de setembro de 1961).
• Após, inicia-se um período parlamentarista – em decorrência de Emenda Constitucional
– sendo presidentes do Conselho de Ministros: Tancredo Neves, Francisco de Paula
Brochado da Rocha e Hermes Lima (7 de setembro de 1961 a 6 de janeiro de 1963).
• João Goulart assume a presidência até o golpe militar (6 de janeiro de 1963 a 1º de abril
de 1964).

PREÂMBULO
“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em
Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e
promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil.”
Art 1º: Os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regime representativo, a Federação e a
República. Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
Art 28: A autonomia dos Municípios será assegurada:
I - pela eleição do Prefeito e dos Vereadores;
II - pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente,
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação das suas
rendas;
b) à organização dos serviços públicos locais.

4.3.6 A Constituição de 1967/69

Com o golpe militar, em 31 de março de 1964, institui-se, no Brasil, o


regime militar, tipicamente ditatorial, rompendo-se, assim, com a característica democrática
alcançada sob a Constituição anterior.

Apesar disso, contudo, num primeiro momento, o novo regime manteve a


Constituição de 1946, dando a falsa impressão de que não instituiria um regime
verdadeiramente autoritário, fato revelado nas intenções contidas no chamado Ato
Institucional 1 (AI 1), datado de 9 de abril de 1964. Nele se lêem os seguintes termos: “[...]
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não
o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade de uma Nação [...] A
revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela
eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder
Constituinte [...] Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo
revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946 [...] Fica, assim, bem claro que a
revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato
institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções,
a sua legitimação[...].”
Apesar desta aparência inicial, no entanto, o período foi marcado por
perseguições políticas e pelo autoritarismo.

• Constituição de 24 de janeiro de 1967.


• Constituição outorgada, apesar da aprovação do Congresso; apenas trinta dias para
discussão e promulgação.
• Preocupação com a segurança nacional.
• Centralização na União e no Poder Executivo.
• Manutenção de alguns direitos dos trabalhadores (caráter social).
• Autorizou a desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública.

Em 1968, por sua vez, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) rompeu com a


ordem constitucional estabelecida, marcando a cassação e a restrição de uma série de
direitos individuais.

Art 58: O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante,


e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre
as seguintes matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas.

Parágrafo único - Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso


Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse
prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado.

Art. 76: O Presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão pública e
mediante votação nominal.
§1º: O Colégio Eleitoral será composto dos membros do Congresso Nacional e de
Delegados indicados pelas Assembléias Legislativas dos Estados.
§2º: Cada Assembléia indicará três Delegados e mais um por quinhentos mil eleitores
inscritos, no Estado, não podendo nenhuma representação ter menos de quatro Delegados
Art. 89: Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites
definidos em lei.
Art. 91: Compete ao Conselho de Segurança Nacional:
I - o estudo dos problemas relativos à segurança nacional, com a cooperação. dos órgãos de
Informação e dos incumbidos de preparar a mobilização nacional e as operações militares;

Já em 1969, entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 1, alterando a


Constituição de 1967 (outorgada). Apesar de tratar-se de uma Emenda, na verdade a
alteração foi tamanha, que ela praticamente consistiu em uma nova Constituição, bem mais
conservadora e autoritária do que a versão original: a “Constituição da República
Federativa do Brasil”, que ainda foi modificada outras vinte e cinco vezes.445

Art. 8º: Compete à União: d) prover a censura de diversões públicas.

Art. 46: O processo legislativo compreende a elaboração de:


I - emendas à Constituição;
II - leis complementares à Constituição;
III - leis ordinárias;
IV - leis delegadas;
V - decretos-leis;
VI - decretos legislativos;
VII - resoluções.
Art. 55: O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante,
e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes
matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§1º: Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou
rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver
deliberação, o texto será tido por aprovado.

445
AGRA, Walber de Moura.???????????????????????????????????????????????????????????
§2º A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados
durante a sua vigência.

Art. 153: A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade,
nos têrmos seguintes:

§8º: É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou


filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo
quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos
abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e
periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda
de guerra, de subversão a ordem ou preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as
publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes

• Com o golpe de Estado, Pascoal Ranieri Mazzilli assume provisoriamente a presidência


(2 a 9 de abril de 1964).
• General Artur da Costa e Silva, Almirante Hamann Radmaker Grünewald e Brigadeiro
Francisco de Assis Correia de Melo (9 a 15 de abril de 1964).
• Humberto de Alencar Castelo Branco (1964 a 1967).
• Artur da Costa e Silva (15 de março de 1967 a 31de agosto de 1969).
• Almirante Hamann Radmaker Grünewald, General Aurélio de Lira Tavares e
Brigadeiro Márcio de Souza e Melo (31 de agosto de 1969 a 14 de outubro de 1969).
• Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
• Ernesto Geisel (1974-1979).
• João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985).

4.3.7 A Constituição de 1988

O Brasil viveu, a partir de 1984, um processo de redemocratização,


marcado pelo movimento das “Diretas Já”, que impulsionou as ações de transição para o
novo regime.
Em virtude do contexto histórico em que se insere, a Constituição
brasileira de 1988 possui amplo caráter democrático, tendo como elemento central a
questão da dignidade humana446 e prevendo uma extensa gama de direitos fundamentais e
de mecanismos de garantia, bem como abrindo espaço institucional para a participação
política dos cidadãos, não apenas por meio do voto447, mas também por meio de
mecanismos diversos (tais como a ação popular, por exemplo).

Foi marcada por um processo que teve, num primeiro momento, a


convocação de uma Comissão de Estudos Constitucionais, que elaborou um anteprojeto448
bastante criticado; depois consolidou-se a Assembléia Nacional Constituinte, que teve seu
processo caracterizado por amplos debates e discussões, resultando, daí, o projeto que teve
aprovação e deu origem à nossa Constituição atual.

• Tancredo Neves é eleito presidente, mas não chega a governar (15 de março a 21 de
abril de 1985).
• Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney, seu vice, é quem assume a presidência
(21 de abril de 1985 a 15 de março de 1990).
• Nova República: crise econômica, desgaste político, luta pela consolidação da
democracia, preocupação com os direitos fundamentais.
• Sarney nomeia uma Comissão de Estudos Constitucionais.
• Emenda Constitucional n.º 26: convocação da Assembléia Nacional Constituinte,
composta pelos membros da Câmara e do Senado.

• Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, presidida por Afonso Arinos,


contando com quarenta e nove membros (trinta advogados; cinco empresários; quatro
sociólogos; três jornalistas; três economistas; dois religiosos; um escritor e um médico).
• Politicamente, a Comissão tinha um perfil misto, porém notadamente de centro (cinco
de direita, seis de centro-direita, dezesseis de centro, quinze de centro-esquerda e sete
de esquerda).

446
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988.
2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
447
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004.
448
Sobre o histórico deste projeto, ver a síntese constante em CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e
justiça distributiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000.
• Vitória dos progressistas (mais empenho e assiduidade); o anteprojeto, de início
criticado pela esquerda, passa a ser criticado pela direita.
• Preocupações com a efetividade das normas.
• O anteprojeto previa uma Corte Constitucional nos moldes europeus, com quinze
juízes, sendo cinco magistrados de carreira, cinco nomeados pelo Congresso Nacional e
cinco pelo Conselho de Ministros, todos lotados em uma investidura de nove anos,
renováveis de três em três anos; houve lobby do STF para não mudar o nome, além da
garantia da vitaliciedade.
• O Projeto Afonso Arinos acabou por manter o status quo, retirando, porém, algumas
competências do STF e transferindo-as ao STJ, a ser criado; ao STF coube
precipuamente a guarda da Constituição (art. 102 da CF).
• Anteprojeto previa “um regime social justo, fraternal e participativo”.
• Sarney não enviou o projeto à Assembléia Nacional Constituinte, impedindo-o de que
fosse publicamente discutido; todavia parlamentares tiveram acesso ao texto e ele serviu
de inspiração na criação do texto constitucional.

ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
• Contribuições de juristas: José Afonso da Silva (PMDB); Carlos Roberto de Siqueira
Castro (PDT); Eduardo Seabra Fagundes (PDT); Fábio Konder Comparato (PT).
• Vinte e quatro subcomissões, agrupadas em oito comissões – comissão de
sistematização.
• Centrão: grupo predominante na Constituinte > apoio do empresariado e do governo >
formado pelo PMDB, PFL, PDS, PDC, PTB e PL > permitiu a entrada de valores no
texto por considerá-los mera retórica; além disso, muitos deputados estavam exercendo
mandato pela primeira vez, estando descontentes com o centralismo do Presidente
Ulysses Guimarães; Mário Covas foi o líder da maioria, indicando, para a liderança da
maior parte das comissões, políticos progressistas; o regimento interno descentralizava
as decisões.
• Abertura à participação direta e semi-direta, estabelecimento de meios judiciais de
tutela de direitos fundamentais.
• Intensa participação da população, com 122 emendas populares e 10 milhões de
assinaturas.

CONSTITUIÇÃO
• Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988).
• Converteu os direitos humanos previstos na Declaração da ONU de 1948 em Direitos
Fundamentais.
• Princípios.
• Fratura na tradição libertariana e positivista; inserção de valores e programas no texto
da Constituição por princípios e objetivos, os quais têm relevância imediata para a ação;
busca do bem-estar e da igualdade material.
• Influência do pensamento constitucional português e espanhol (que, por sua vez,
possuem influência da Lei Fundamental alemã); busca de realizações na sociedade via
Direito.
• Reconhecimento, pelo constitucionalismo, de uma pluralidade de concepções de vida –
caráter conflitivo da realidade social.
• Plêiade de novas ações constitucionais para efetivar direitos

4.4 Poder Constituinte

4.4.1 Conceito de poder constituinte

O Poder Constituinte é o poder que cria, que elabora, a Constituição. Ele


se baseia numa vontade absolutamente primária, isto é, ele retira de si próprio os seus
limites e as suas formas de ação.

Apesar de já se poder falar em Constituição em outras sociedades


(tomando-se como referência a noção de Constituição real desenvolvida por Lassale449), é a

449
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 2ª edição. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro:
Liber Juris, 1988.
partir da noção de Constituição formal que se pode falar, verdadeiramente, em poder
constituinte enquanto poder especial encarregado da elaboração da Constituição.

A noção de poder constituinte remonta, pois, ao período das revoluções


burguesas. Somente a partir desta compreensão é que foi possível a construção de uma
teoria sobre o assunto, porque, até então, ele estava disperso na própria sociedade, não
estando organizado e, portanto, não podendo ser identificado como tal.

Por se tratar de um poder especial, o poder constituinte somente é


exercitado também em ocasiões muito especiais, quando se justifica a criação ou
elaboração de um novo documento constitucional.450

A primeira reflexão sistemática acerca do tema pode ser encontrada na


obra do abade francês Emanuel Joseph Sieyés, especialmente em um panfleto intitulado
Qu’est-ce que le Tiers État?, datado de 1788 e traduzido para o português como “A
constituinte burguesa”.451

4.4.2 O pensamento de Sieyès

No contexto pré-revolucionário francês, a burguesia era excluída ou


muito limitada nas relações de poder, pois a nobreza havia usurpado os direitos do povo
(privilégios). Neste período, os votos eram dados por ordem (e não por cabeça), o que fazia
com que a nobreza e o clero vencessem sempre.

Assim, uma das principais reivindicações revolucionárias era o direito de


votar paritariamente – aspecto que, no ideal revolucionário, se refletia na pretensão de
igualdade, notadamente jurídica. A burguesia queria, portanto, ter seus próprios
representantes, em igual número com os deputados dos outros dois Estados.

A partir daí, Sieyès distingue entre os poderes constituintes e os poderes


constituídos, sendo que somente um poder constituinte (e não um poder constituído) pode

450
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998.
451
SIEYÈS, Emmanuel Joseph Sieyès. A Constituinte burguesa. Tradução de Norma Azeredo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1997.
fazer as alterações necessárias e criar a Constituição; este entendimento é baseado, por seu
turno, numa idéia representativa de exercício do poder. Esta noção representativa, para
Sieyès, corresponde, por sua vez, ao terceiro período de organização da sociedade (segundo
ele, num primeiro momento, a sociedade é composta por indivíduos isolados; depois, os
indivíduos se reúnem para deliberar sobre as necessidades públicas – poder direto – e, no
terceiro momento, a vontade comum que atua já não é mais a vontade real, mas sim a
vontade representativa – noção de sistema representativo).

• Primeiro período: indivíduos isolados.


• Segundo período: exercício direto do poder (os indivíduos exercem diretamente a sua
vontade).
• Terceiro período: poder representativo (já não é mais possível o exercício direto da
vontade, por isso passa-se a uma noção de vontade representativa).

Apesar de esta vontade ser representativa, contudo, ela continua sendo do


povo452, e não dos representantes; estes não exercem a vontade comum por direito próprio,
mas sim em nome dos demais. E é esta noção representativa que é aplicada para a
elaboração da Constituição, na forma do poder constituinte.

Para justificar a existência de um tal poder, Sieyès busca no direito


natural a explicação para o direito da nação de se auto-organizar, ou seja, conforme ele,
assim como o indivíduo, segundo as teorias do direito natural, possui determinados direitos
naturais que lhe são imanentes, anteriores a qualquer organização social e independentes de
reconhecimento pela ordem jurídica, também a nação (noção coletiva) possui alguns
direitos, dentre eles o de se auto-organizar e de estabelecer as leis sob as quais se
constituem a organização social e o Estado.

452
Sieyès utiliza, em seu texto, a palavra Nação (que, por sua vez, remete a uma idéia de base étnica,
cultural); atualmente, contudo, entende-se o termo num sentido mais amplo, mais abrangente, razão pela qual
se emprega, normalmente, o termo povo (que engloba a totalidade de habitantes de determinado lugar,
independentemente de suas origens ou características culturais). Interessante notar, ainda, neste sentido, com
Negri, como a noção de soberania popular rapidamente foi incorporada pela teoria política/jurídica ocidental.
Cf. NEGRI, Antonio. El poder constituyente: ensayo sobre las alternativas de la modernidad. Madrid:
Libertarias, 1994.
É nesta perspectiva que se afirma que a tese de Sieyès foi a primeira
teorização da história acerca do poder constituinte, travando uma discussão sobre a
titularidade do mesmo, a sua natureza, as condições para o seu exercício e os seus limites.

4.4.3 A titularidade do poder constituinte

Conforme o pensamento de Sieyès, ainda, a titularidade do poder


constituinte – em qualquer de suas modalidades – pertence sempre ao povo, enquanto
comunidade de eleitores.

Neste contexto, a “vontade constituinte” se identifica sempre com a


vontade do povo, pois os representantes agem em seu nome. Assim, a titularidade do poder
constituinte não cabe à Assembléia (aos representantes pessoalmente), mas sim ao povo
propriamente dito (representados). Assim, pode-se dizer que a assembléia é somente o
instrumento por meio do qual o povo exerce a sua vontade, concretamente, sendo ela o
próprio povo.453

Pode-se considerar, ainda, seguindo nesta mesma trilha, que o poder


constituinte é o fundamento de todos os demais poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário), uma vez que é a sua vontade que lhes dá origem. Daí se falar em poder
constituinte e em poderes constituídos.

4.4.4 Poder constituinte originário e derivado

Poder Constituinte originário: destina-se a instaurar o Estado e a


inaugurar a ordem jurídica da sociedade politicamente organizada. Ele decorre, segundo a
doutrina tradicional454, de um poder metajurídico (não-instituído juridicamente), não
estando sujeito a qualquer outro poder preexistente, pois ele é anterior à própria
Constituição. Em virtude destes aspectos, atribuem-se a ele as seguintes características:

453
Ver LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio: os limites da jurisdição constitucional
brasileira. São Paulo: Manole, 2003.
454
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 1985.
- inicial (pois ele é a primeira lei, a lei de referência de todo o ordenamento jurídico
➔ princípio da recepção);
- autônomo (ele não está vinculado a nenhuma outra lei ou a qualquer outro aspecto
ou poder);
- ilimitado (juntamente com as demais características, tem-se como resultado a
noção de que ele não possui limites, podendo agir livremente).

Como decorrência da característica de ser ele um poder inicial, tem-se a


figura do chamado princípio da recepção das leis, isto é, em sendo o poder constituinte
inicial, estabelece-se um “marco zero” com relação a todo o ordenamento jurídico; a partir
daí, todas as normas preexistentes, anteriores à Constituição, somente podem existir e ser
consideradas válidas se forem recepcionadas pelo novo texto constitucional, sendo, do
contrário, descartadas.455

Já no que concerne ao fato de ser ele ilimitado, deve-se levar em


consideração, ainda, a observação feita por Canotilho456 no sentido de que esta
ilimitabilidade e autonomia são conceituais e presumidas, não acontecendo efetivamente
assim na prática. Neste ponto, o autor português faz menção à existência de determinadas
supraconstitucionalidades autogenerativas, que, em face da realidade, acabam por
funcionar como barreiras à atuação irrestrita do poder constituinte: a) fáticas (a
Constituição não pode estabelecer, por exemplo, que cada brasileiro terá direito a um carro
novo no final de cada ano; juridicamente isto é possível, porém faticamente não pode ser
estabelecido); b) jurídicas (como exemplo de tal restrição, poder-se-ia citar a noção de
proibição de retrocesso com relação aos direitos fundamentais, que não permitiria, na
prática, a retirada de determinados direitos já consagrados).

Além disso, tem-se que o poder constituinte é permanente, isto é, ele não
se extingue com a criação da Constituição, permanecendo latente, porém plenamente capaz
de ser exercido a qualquer tempo457 (especialmente porque, conforme já referido, a sua

455
Para uma abordagem mais específica sobre o fenômeno da recepção, ver o texto de CERQUEIRA,
Marcello. A Constituição e o Direito anterior: o fenômeno da recepção. In: GRAU, E. R.; CUNHA, S. S. da
(Org.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2003. pp. 177 et seq.
456
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1994.
457
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1998.
titularidade pertence ao povo, e não aos representantes, razão pela qual ele não se extingue
com o mandato458 ou com a realização da tarefa de elaboração do texto constitucional).

Neste contexto, ele pode manifestar-se em dois momentos distintos: a)


criação de um novo Estado; b) modificação profunda na estrutura política e social de um
determinado Estado.

Destas duas hipóteses diferenciadas de ocorrência é que se originam,


portanto, as duas classificações possíveis com relação ao Poder Constituinte originário.

fundacional

Poder constituinte originário

revolucionário

• Poder constituinte originário fundacional: é o poder constituinte de fundação459 do


Estado; quando o Estado é criado (ex.: independência, secessão, aquisição de
soberania).

 É a elaboração da primeira Constituição do país.


 Características:
- não há tradições jurídicas próprias a serem consideradas;
- não há poderes já constituídos (ao menos juridicamente);
- não há direitos adquiridos;
- não há um ordenamento constitucional anterior que possa servir
como paradigma.

458
SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo:
Malheiros, 2000.
459
CRUZ, Paulo Márcio.??????????????????????????????????????????????????????????
• Poder constituinte originário revolucionário: dá-se quando um processo revolucionário
rompe com a ordem constitucional anterior e exige uma nova Constituição (implantação
de um novo ordenamento jurídico-constitucional).
 Neste caso, porém, a elaboração da nova Constituição fica vinculada (apesar de ser
nova) a parâmetros anteriores, já impregnados na cultura geral da sociedade.
 OBS: teoricamente, o poder constituinte originário revolucionário é tão independente e
ilimitado quanto o fundacional, mas, na prática, não é bem assim.
 Ele ocorre em momentos de profunda transformação da sociedade.
 OBS: esta profunda transformação não precisa ser provocada por meios revolucionários
(violentos); bastam acontecimentos marcantes ou uma mudança de paradigma.
 OBS: para tanto, é ilustrativo analisarem-se os exemplos históricos brasileiros:
- Constituição de 1891 (ruptura com o Império e instauração da República em
1889);
- Constituição de 1934 (ruptura com a “República Velha” e alterações no
poder provocadas pela Revolução de 30);
- Constituição de 1937 (Estado Novo, autoritarismo de Getúlio Vargas);
- Constituição de 1946 (redemocratização do país, período pós II Guerra
Mundial);
- Constituição de 1967/69 (golpe militar, regime ditatorial);
- Constituição de 1988 (redemocratização do país, “Diretas Já”).

Já o poder constituinte derivado pressupõe uma Constituição anterior, já


em vigor, que lhe dá os limites e os modos de atuação. Trata-se de um poder
essencialmente jurídico, porquanto instituído e autorizado pela própria Constituição. Ele é
previsto pelo próprio poder constituinte originário, ficando condicionado, em razão disso, a
restrições e exigências impostas no texto constitucional.
Assim, as suas características, em oposição às do poder constituinte originário, são as
seguintes:
- derivado (deriva da Constituição, somente existindo em virtude de uma autorização
expressa de ocorrência por parte desta e sendo limitado por ela);
- subordinado (ele é vinculado à Constituição e às suas determinações, podendo agir
somente dentro dos limites e das condições estabelecidos por ela);
- limitado (ele deve observar os limites contidos em sua previsão legal).460

Ainda com relação aos limites, podem-se perceber, em regra, três espécies
de limitação com relação ao poder constituinte derivado: a) materiais (existem
determinados conteúdos que lhe são vedados, como ocorre com o poder constituinte
derivado reformador em face das cláusulas pétreas e com o poder constituinte derivado
decorrente estadual em face da competência que lhe é reservada, por exemplo); b)
circunstanciais (algumas circunstâncias especiais podem trazer óbices ao exercício do poder
constituinte, como no caso da vedação de emendas à Constituição em caso de Estado de
Sítio – art. 60, parágrafo 1º); e c) temporais (normalmente, há um limite de prazo
estabelecido para sua consolidação, como o prazo de seis meses a contar da promulgação
da Constituição para a elaboração das Constituições estaduais pelo poder constituinte
derivado decorrente e de cinco anos para a realização da revisão constitucional pelo poder
constituinte derivado revisor – art. 11 e art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, respectivamente).

decorrente
Poder constituinte derivado revisor
reformador

• Poder derivado decorrente: destina-se aos entes federados (Estados-membros e


municípios).
 Ex.: Constituição Estadual (até um ano após a Constituição) e Lei Orgânica Municipal
(até seis meses depois da Constituição Estadual).
 A sua possibilidade é prevista pela própria Constituição.
 Art. 11 dos ADCT/88.

460
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1994.
• Poder constituinte revisor: destina-se a revisar a Constituição.
 OBS: revisar não significa, necessariamente, reformar (revisar significa reavaliar).
 Pode haver revisão sem reforma.
 Art. 3º do ADCT/88.
 OBS: algumas constituições prevêem uma revisão de tempos em tempos (a brasileira
não).

• Poder constituinte reformador: é aquele destinado a modificar os dispositivos


constitucionais (por meio das Emendas à Constituição).
 A Emenda é o meio ordinário de modificação da Constituição (obedecidos os limites
previstos).
 Sua competência é estabelecida pela própria Constituição, ao prever a possibilidade de
Emendas.
 Não é um poder constituinte especialmente eleito para esse fim (é uma função paralela,
desempenhada pelos próprios integrantes do Poder Legislativo federal).

4.5 Espécies de normas constitucionais: Princípios e regras

4.5.1 Espécies de normas constitucionais

Pode-se dizer que existem duas espécies de normas constitucionais –


apesar de haver outras classificações, que tomam como referência a questão da eficácia461,
como normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada –
consideradas em sentido amplo: princípios e regras.462

461
Esta classificação será alvo de análise específica no capítulo seguinte do presente livro.
462
Para uma abordagem mais profunda sobre a temática que envolve as regras e os princípios, remetemos à
leitura do segundo capítulo de nossa obra LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio: os
limite da jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Manole, 2003, onde este tema é tratado a partir de
uma ampla análise com base na literatura nacional e estrangeira. Como este é um livro que pretende ter um
caráter mais didático, optamos por enfrentar esta matéria mais a partir de uma perspectiva que seja acessível
também aos alunos da graduação, iniciando-os na discussão.
Os princípios podem ser considerados como aquelas normas que estão
associadas aos aspectos valorativos da sociedade, isto é, eles manifestam, representam, na
Constituição, aqueles valores maiores, aqueles traços que norteiam e fundamentam 463 a
nossa sociedade, como, por exemplo, o princípio da dignidade humana, do respeito aos
direitos fundamentais, liberdade, igualdade, pluralismo, etc. (arts. 1º a 4º da Constituição de
1988).

Nesta perspectiva, eles configuram nortes, são indicativos464, de qual é a


característica pretendida pela sociedade brasileira, o que é importante respeitar (e, portanto,
dão um indicativo de como se pode agir em determinadas situações).

É preciso ressaltar, ainda, que estes princípios não estão colocados


somente no começo da Constituição; eles estão espalhados por todo o seu texto, conforme
forem sendo tratados os temas regrados pela Constituição (ex.: princípios gerais da
atividade econômica – art. 170; política urbana – art. 182; sistema financeiro nacional – art.
192; educação – arts. 205 e 206). Assim, pode-se afirmar que os princípios estão dispersos.

Da mesma forma, pode-se apontar como característica o fato de que nem


sempre os princípios encontram-se explícitos no corpo da Constituição, podendo eles,
também, ser “inferidos” do conjunto constitucional, como ocorre no caso de proteção dos
hipossuficientes, por exemplo. Trata-se do que poderíamos nominar de princípios
constitucionais implícitos, sendo tidos como aqueles que não aparecem expressa e
literalmente previstos no texto constitucional, porém podem ser inferidos a partir de uma
leitura sistemática da Constituição (no caso brasileiro, conforme já referido, o princípio de
proteção dos hipossuficientes pode ser inferido se se perceber a previsão expressa de
cuidado com figuras como o consumidor e a mulher por parte da ordem constitucional, o
que permite depreender-se que, embora não previsto formalmente, a Constituição também
se destina a proteger outras formas de fragilidade, embora não especificamente nominadas).

463
VERDU, Pablo Lucas. Estimativa y política constitucionales. Madrid: Universidad de Madrid, 1984. pp.
103-104 passim.
464
PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da
Constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 143.
Neste caso, o princípio não está previsto ou escrito em nenhum inciso, mas está lá,
valendo.465

Além destes princípios de caráter marcadamente material existem, ainda,


alguns princípios tidos como instrumentais466, que estão a serviço da consecução destes
outros, ou seja, servem para uma melhor operacionalização daqueles, como ocorre com os
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.467 Conforme o princípio da
proporcionalidade, a operacionalização de todo o ordenamento e, notadamente, a restrição
dos direitos fundamentais deve se dar de forma proporcional, pois não se admitem
interpretações ou restrições de direitos abusivas ou incoerentes com o sistema jurídico-
constitucional como um todo.468 Já o princípio da razoabilidade demanda, por parte dos
intérpretes e operadores do Direito e da Constituição, uma atividade hermenêutica razoável,
levando-se em consideração o contexto em que se insere a norma, bem como a sua
finalidade ou telos, não se admitindo interpretações meramente literais ou que possam
conduzir a absurdos.469 Trata-se, em verdade, de uma decorrência e exigência da
materialidade própria do Estado Democrático de Direito.

465
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:
Coimbra, 1994. p. 70.
466
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2002.
467
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
restritivas de Direitos Fundamentais. 2ª edição. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
468
No caso do princípio da igualdade, assegurado pelo art. 5 de nossa Constituição, tem-se, por exemplo,
como decorrência, que o estabelecimento de critérios ou limites de idade ou de altura para a realização de
concursos públicos viola o princípio isonômico; em certos casos, contudo, o STF (Súmula 683) tem
reconhecido e admitido a constitucionalidade de tais requisitos, em casos excepcionais, desde que a natureza
do cargo os justifique. Assim, entendeu-se como constitucional o estabelecimento, por edital, de altura
mínima para a realização do concurso de delegado (fato que, em princípio, restringe o direito de igualdade
anteriormente citado). Apesar disso, com base no imperativo da proporcionalidade, tem-se que não se pode
admitir como requisito qualquer altura, devendo esta exigência ser proporcional, isto é, realmente compatível
com as exigências do cargo, sob pena de ser considerada inconstitucional.
469
Um exemplo ilustrativo e bastante didático com relação à exigência de razoabilidade como fundamento
interpretativo nos é trazido por Luiz Alberto Warat, que propõe a seguinte situação: na entrada de uma
fábrica, encontra-se uma placa que diz “PROIBIDA A ENTRADA DE CÃES”. Neste caso, um especial
desafio se revela com relação à interpretação desta norma no que tange aos demais animais (sim, porque a
placa é clara no que concerne a cães); porém seria possível e permitida, então, a entrada de ursos, já que a
proibição diz respeito especificamente aos cães? Se se fizesse uma interpretação literal ou exegética e
formalista de tal regra, facilmente poder-se-ia concluir que a vedação diz respeito expressamente a cães,
estando liberada a entrada de qualquer outro animal. Por outro lado, considerando-se todo o contexto e a
finalidade de tal proibição, seria razoável não permitir a entrada de cães e permitir a de ursos? Estaria, neste
caso, a finalidade da norma sendo atendida? Claro que não. Portanto, a exigência de uma interpretação
razoável de todos os dispositivos do ordenamento jurídico é fundamental para que a principiologia da
Já as regras podem ser indicadas como sendo as disposições outras da
Constituição, que regulamentam, detalham, pormenorizam os grandes temas e conteúdos
genericamente estabelecidos pelos princípios.470 Dito de outro modo, as regras se destinam
a regular situações concretas, mais pontuais do que aquelas em que incidem os princípios
(normalmente mais diretivos).471

Durante muito tempo, acreditou-se que os princípios não tinham valor


jurídico: primeiro, foi-lhes atribuído mero caráter retórico, político, sem valor; mais tarde,
eles passaram a ser considerados como simples referenciais para a produção legislativa,
dependendo de uma atuação concreta do legislador, sendo, portanto, desprovidos de força
normativa direta, impositiva.472 Atualmente, contudo, a teoria constitucional lhes reconhece
plena e ampla normatividade.473

4.5.2 Fases de juridicidade dos princípios

jusnaturalista

Fases juspositivista

pós-positivista

Constituição possa ser preservada. Ver WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito. Vol. I. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.
470
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 2ª edição.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 113.
471
É possível dizer que há uma unidade através da Constituição (enquanto parâmetro unificador de todas as
normas do sistema em conformidade com seu conteúdo) e uma unidade da Constituição (em razão da estreita
conexão que se dá entre regras e princípios). Neste sentido, a obra de MAGALHÃES FILHO, Glauco
Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001. pp. 83 e
ss.
472
Como afirma ROJO, Margarita Beladiez. Los principios jurídicos. Madrid: Tecnos, 1994. p. 19, “Hasta el
siglo XIX, por tanto, el Derecho se fundamenta en un Derecho ideal, compuesto por un conjunto de verdades
primeras, eternas e inmutables, ya se considere que se derivaban de la ley eterna.”
473
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 211.
Na chamada fase jusnaturalista, alguns princípios – tais como o direito à
vida, à liberdade – não dispunham de um status jurídico, sendo desprovidos, portanto, de
normatividade. Eles constituíam simples postulados éticos de justiça474, de cunho
declaratório, portanto não juridicamente obrigatórios, vinculantes.

Já na Idade Média (teocentrismo) eles tinham fundamento na vontade


divina, segundo a compreensão de que Deus assegura aos homens alguns direitos (até
mesmo baseados nos Dez Mandamentos) e que constituem alguns limites com relação ao
poder e à atuação monárquica e estatal. Eles não possuíam, no entanto, um caráter jurídico,
legal.

Com o Iluminismo, a fonte destes direitos, destes princípios, passou a


residir na própria natureza humana (antropocentrismo), constituindo-se em um limite de
ordem metafísica (ex.: a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da
Revolução Francesa não possuía valor de lei, possuindo, como o próprio nome já indica,
mero caráter declaratório, isto é, não juridicamente vinculante).

Na fase juspositivista, por sua vez, os princípios – enquanto


generalizações – passam a ser incorporados aos Códigos, porém como fontes supletivas,
tendo por função a colmatação de eventuais lacunas (ex.: art. 5º da LICC). Eles são
incorporados pelo sistema não como uma verdadeira lei, regramento, mas sim como algo
que dela decorre, uma generalização. Somente por isso é que eles são aceitos como sendo
pertencentes ao “direito positivo” (porque, na verdade, eles não conformam um verdadeiro
“direito”). Seu papel era meramente secundário.

Mais tarde, ainda nesta fase, no âmbito da Constituição, os princípios


passam a ser incorporados, também, pelos textos constitucionais, porém como meras
normas programáticas, sendo desprovidos, portanto, de qualquer força normativa. Dito de
outra forma, ao invés de se buscarem fundamentos fora do direito, eles são percebidos
como estando dentro do sistema, porém desprovidos de juridicidade. Tem-se, então, como
conseqüência, um caráter compromissório dos princípios e da Constituição.

474
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999.
Por derradeiro, tem-se que a fase pós-positivista atribui aos princípios um
valor idêntico ao das demais normas.475 Se a Constituição é uma lei, se ela vale como lei
(ou seja, se o Direito Constitucional é direito positivo), então também os princípios devem
obter normatividade, ser compreendidos como vinculantes e obrigatórios.

Pode-se buscar, em Rui Barbosa, a justificação para uma tal postura:


segundo ele, “não há, na Constituição, proposições ociosas, sem força cogente.” Nesta
perspectiva, se se considerar, na Constituição, a existência de normas desprovidas de valor
jurídico, então estar-se-á retirando da própria Constituição o status de norma, a sua
natureza jurídica (ocasionando-se, assim, uma quebra da sua unidade normativa).

Conforme prega o pós-positivismo – expressão cunhada pelo


constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides – mais do que um reconhecimento da
normatividade dos princípios, tem-se o reconhecimento de que há uma hegemonia dos
princípios, que passam a ser a referência e o fim de todo o manejamento do sistema, quer
dizer, eles constituem o ponto de partida e de chegada de todo o ordenamento jurídico.476

Assim, tanto princípios como regras podem ser considerados como sendo
espécies do gênero norma jurídica; a diferença que se verifica com relação a eles não diz
respeito à sua força normativa, mas sim à sua natureza e amplitude.

4.5.3 Regras x princípios

Regras: apesar de as regras também terem um caráter de generalidade (lei


geral, incidência indeterminada), elas regulam situações jurídicas determinadas,
pormenorizadas. Elas contêm uma série de pressupostos de fato, de situações que precisam
se verificar para configurar sua incidência.

475
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 211.
476
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. 3ª
edición. Madrid: Trotta, 1999. p. 109.
Princípios: já os princípios podem incidir sobre uma série de situações477
concretas, pois não prevêem, estabelecem, situações específicas que devam ser reguladas.
Sua incidência é possível em um série de situações, com pressupostos fáticos diferenciados.
A sua generalidade, portanto, é mais ampla, mais abrangente do que a das regras.478 Apesar
disso, eles não deixam, sempre, de incidir sobre um pressuposto de fato; estes pressupostos
podem variar, ser amplos, mas sempre deve haver, necessariamente, um pressuposto sobre
o qual eles incidem.

Além disso, a natureza dos princípios também é diferenciada, pois eles


estão associados, mais destacadamente, a uma idéia de materialidade, de conteúdo, de
valores.

 Regras X princípios:

- quantitativo (grau de generalidade);

- qualitativo (natureza, mais ou menos material).

É preciso considerar, ainda, ao se contrastarem princípios e regras, que,


para Dworkin, regras e princípios se distinguem segundo a lógica do “tudo ou nada” e
também pela dimensão de peso e de importância de que se revestem. 479 Neste sentido,
segundo ele, as regras ou são aplicadas por completo ou não o são (desde que os seus
pressupostos fáticos estejam atendidos e a norma seja válida, a regra incide e incide,
necessariamente, por completo). Em razão disso, a própria regra já deve pormenorizar, em
seu próprio dispositivo, todas as suas exceções, pois estas são as únicas hipóteses em que a
sua incidência fica excluída. Em razão disso, conseqüentemente, todas as demais normas

477
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. São Paulo: Celso Ribeiro Bastos
Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000. pp. 128-129 passim.
478
ROTHEMBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1999. p. 16.
479
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de Direito Administrativo. 2ª edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999. p. 300.
em sentido contrário ficam afastadas, com base e a partir de critérios de aplicação objetivos,
predefinidos e determinados pela própria ordem jurídica.

Assim, tem-se que somente é possível a incidência de uma única regra


(ou se aplica uma, ou a outra), não sendo possível uma “composição” entre regras
antinômicas.

Estes critérios objetivos, referidos por Dworkin480, são: a) o da


especialidade (a lei especial prevalece sobre a lei mais geral); b) o da temporalidade (a lei
mais nova revoga a lei mais antiga); c) o da espacialidade ou localidade (a lei local, desde
que não contrarie a lei geral, se sobrepõe àquela); d) o hierárquico (a lei superior prevalece
sobre a lei inferior).

Já com relação aos princípios não se têm critérios objetivos para a solução
de eventual antinomia ou contrariedade481 entre princípios opostos, resolvendo-se o conflito
por meio de um sopesamento482, que, portanto, possui uma dimensão subjetiva, isto é, não
há critérios predefinidos e predeterminados que indiquem, de antemão, a sua solução.

Os princípios não se excluem em caso de conflito, eles não deixam de


existir ou são revogados pelos princípios contrários. O que pode acontecer é um ceder um
pouco em favor de outro, mas nem por isso ele deixa de ser aplicado, de valer no caso
concreto. Ele continua valendo dentro do sistema.483

Trata-se, por conseguinte, aqui, de uma valoração ou ponderação (que é


de natureza subjetiva, ao contrário dos critérios de aplicação e de exclusão das regras, que
são de natureza objetiva, postos pelo próprio sistema).

480
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University, 1978. pp. 24-25 passim.
481
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1997. p. 81.
482
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 103.
483
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
Por fim, alguns autores, especialmente Robert Alexy484, diferenciam entre
valores e princípios, ao afirmar que os primeiros estão associados a uma idéia de bom, do
que é melhor, enquanto que os segundos, àquilo que é devido. Assim, tem-se que ambos
não se confundem, embora se possa estabelecer entre eles a relação de que os valores
passam a ter caráter jurídico por meio dos princípios, sendo os princípios a expressão
jurídica daqueles. Desta forma, percebe-se que o âmbito de localização de ambos é distinto,
pertencendo os princípios estritamente à esfera do jurídico.485 E, se os princípios são
jurídicos, eles têm normatividade, devendo eles servir como referência para a interpretação
e também para a atuação de todos os entes sociais e estatais. Além disso, eles valem, então,
como verdadeiro direito486, funcionando, também, como parâmetro para a
inconstitucionalidade e como elementos de tutela jurisdicional.

4.6 Classificação das normas constitucionais

4.6.1 Classificação das normas constitucionais no constitucionalismo


liberal e no constitucionalismo social

Ao longo do tempo, muitas foram as tentativas de classificação


verificadas com relação às normas constitucionais. Aqui, colacionamos, brevemente, as
duas classificações tradicionais mais conhecidas, a primeira referente à tipologia clássica,
prevalente no período do constitucionalismo liberal e do constitucionalismo social, que se
vale da compreensão simplificada de existência de normas constitucionais propriamente
ditas – denominadas de operativas – em contraposição às normas de cunho meramente

484
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 103.
485
Uma análise crítica de tal concepção pode ser encontrada em HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez:
sobre el derecho y el Estado democrático de Derecho en términos de teoría del discurso. Traducción de
Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998. p. 328.
486
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. 3.
ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 109.
programático487 – típicas do constitucionalismo social – e que, segundo a concepção
tradicional, seriam desprovidas de eficácia normativa imediata, consistindo, mais, em
programas de ação política para o futuro, em compromissos a serem cumpridos a longo
prazo, sine die. É neste sentido que elas traduzem exortações ao legislador, indicativos de
ação para serem realizados mediante a edição de leis e de regulamentações, porém sem
qualquer caráter obrigatório ou valor jurídico enquanto normas constitucionais.

Normas programáticas (exortações ao legislador)


1ª tipologia histórica(clássica)
Normas operativas (eficácia para ação)

Já a segunda tipologia aqui estudada se vale da classificação típica do


direito norte-americano, que reconhece a existência de normas constitucionais tidas como
auto-executáveis (as assim chamadas normas self executing), em que o texto constitucional
basta por si só para regular as situações por ele abrangidas, e de normas não-auto-
executáveis (normas non self executing), que demandam uma intervenção complementar do
legislador no sentido de lhes conferir aplicabilidade.488 Em certa medida, estas últimas se
aproximam da classificação anterior, que fala em normas programáticas (estas, no entanto,
possuem uma dimensão mais política, em virtude de sua vinculação ao constitucionalismo
social, e que não se verifica na tradição jurídica norte-americana, que, diga-se, desconhece
em seu texto a existência de direitos propriamente sociais).

Normas auto-executáveis (o texto constitucional gera efeitos por si


só)
2ª tipologia histórica
(norte-americana)

487
A respeito das normas constitucionais programáticas e de sua vinculatividade, ver LAVAGNA, Carlo.
Constituzione e socialismo. Bologna: Il Mulino, 1977. p. 53, quando afirma que “lo sono anche sotto il
profillo impositivo. Quali norme diretti al legislatori (...) esse, non solo vietano di legiferari in senso contrario,
ma ‘impogno’ di emanare le leggi e agli atti necessari per raggiungere i fini indicati.” Também
CALAMANDREI, Piero. Opere giuridique. Napoli: Morano, 1965. Vol. III, pp. 513-514.
488
MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G. Hermenêutica constitucional e Direitos
Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
Normas não auto-executáveis (necessidade de intervenção do
legislador)

Esta concepção abre, contudo, espaço para algumas críticas, justificadas,


sobretudo, pelo fato de que essas classificações tradicionais: a) fazem pouco caso das
normas constitucionais, desconhecendo sua importância e relevância no contexto de
estruturação da ordem jurídica; b) não percebem e desconsideram a normatividade dos
princípios constitucionais; c) são simplistas, porque não percebem os efeitos mínimos
gerados pelas normas não auto-executáveis, tampouco concebem que, às vezes, as normas
auto-executáveis não são capazes de provocar todos os efeitos possíveis.

4.6.2 Constitucionalismo contemporâneo – a classificação de José


Afonso da Silva

Na teoria constitucional atual, uma das teorias mais aceitas e conhecidas,


no Brasil, é a desenvolvida por José Afonso da Silva489, que tem na questão da eficácia o
seu ponto de partida e critério referencial. Segundo esta concepção, normas constitucionais
são todas as regras e princípios que integram uma Constituição rígida.

Esta teoria toma, inicialmente, como ponto de partida, a noção de


aplicabilidade, entendida como a possibilidade de aplicação da norma. Seguindo nesta
trilha, tem-se que, para uma norma ser aplicável, ela precisa atender três requisitos, isto é,
ela precisa satisfazer três dimensões distintas, quais sejam: a) vigência (regularidade da
estatuição, observância dos procedimentos formais de elaboração e criação; ingresso no
mundo jurídico); b) validade e legitimidade (aspecto material, adequação do conteúdo à
norma superior, notadamente à Constituição); c) eficácia jurídica (aptidão, capacidade da
norma de produzir efeitos jurídicos – o que não se confunde com a efetividade social de
seus resultados, com o fato de ela ser observada e respeitada); neste sentido, eficácia é
diferente de efetividade.

489
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. A
classificação adotada neste capítulo toma por base o pensamento do autor, portanto as classificações não-
mencionadas se atribuem ao constitucionalista aqui citado.
É exatamente neste terceiro item – na questão da eficácia – que se baseia
a presente classificação, considerando que as normas constitucionais são diversas e distintas
em sua capacidade de produzir efeitos na forma como aparecem estatuídas no texto
constitucional.

Apesar desta diferenciação, pode-se dizer que todas as normas


constitucionais possuem algum tipo de eficácia, isto é, possuem capacidade de produzir
efeitos jurídicos. O que se verifica, na visão de José Afonso da Silva, é que, por vezes, “a
eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos
pretendidos pelo constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou
complementar executória, prevista ou requerida”.490

Assim, tem-se a seguinte classificação.

Normas constitucionais de
eficácia plena
Classificação das normas constitucionais Normas constitucionais de eficácia contida
Normas constitucionais de
eficácia limitada

As normas constitucionais de eficácia plena são aquelas normas que podem


produzir todos os seus efeitos jurídicos.

Já as normas constitucionais de eficácia contida também produzem todos os


efeitos pretendidos, mas abrem espaço para a criação de algumas exceções, a serem
estabelecidas em lei (exemplo: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações que a lei estabelecer”; neste dispositivo do art. 5º,
inciso XIII da Constituição de 1988, percebe-se que o direito já está plenamente
assegurado, porém pode vir a sofrer determinadas restrições, a serem estabelecidas em lei
própria, pois o próprio texto constitucional já assim o autoriza).

490
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
Por fim, as normas constitucionais de eficácia reduzida são aquelas que não
produzem, por si sós, todos os efeitos possíveis, deixando ao legislador a tarefa de
complementá-las (por exemplo: quando a Constituição estabelece, em seu art. 5º, inciso
XXXII, que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, o próprio
texto já indica, claramente, que este é um dispositivo que pressupõe uma regulamentação,
um detalhamento, pelo legislador ordinário, para que possa ser aplicado).

Uma vez estabelecido este panorama geral, passaremos, agora, a analisar


separadamente cada um dos tipos de normas constitucionais dessa classificação.

4.6.3 Normas constitucionais de eficácia plena

A maior parte das normas constitucionais tem eficácia plena e


aplicabilidade direta e imediata. “Completa, nesse sentido, será a norma que contenha todos
os elementos e requisitos para a sua incidência direta. Todas as normas regulam certos
interesses em relação a determinada matéria. Não se trata de regular a matéria em si, mas de
definir certas situações, comportamentos ou interesses vinculados a determinada matéria.
Quando essa regulamentação normativa é tal que se pode saber, com precisão, qual a
conduta positiva ou negativa a seguir, relativamente ao interesse descrito na norma, é
possível afirmar-se que esta é completa e juridicamente dotada de plena eficácia, embora
possa não ser socialmente eficaz. Isso se reconhece pela própria linguagem do texto, porque
a norma de eficácia plena dispõe peremptoriamente sobre os interesses regulados”.491

As normas de competência são um exemplo. Facultam ou obrigam a


criação de órgãos e proíbem que outros assumam a mesma competência. Exemplos: arts.
21, 25, 28, 29 e 39, 145, 153, 101 da Constituição brasileira de 1988.

Da mesma forma, pode-se dizer que a maioria dos princípios492 tem,


igualmente, aplicabilidade plena, bastando a existência de órgãos estatais (inclusive a
jurisdição) para se assegurar a sua aplicabilidade. Além disso, todas as normas

491
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
492
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
constitucionais têm eficácia plena493 no que toca ao aspecto da não-recepção e na
orientação de uma nova interpretação das normas antigas – toda e qualquer norma
constitucional, independentemente de sua classificação, possui eficácia plena e imediata
quanto a: a) recepção (servem de parâmetro para a recepção ou não das demais normas); b)
interpretação (vinculam e condicionam a interpretação das demais leis do ordenamento
jurídico, servindo como parâmetro, inclusive, para a aferição da inconstitucionalidade).

4.6.4 Normas constitucionais de eficácia contida

Caracterizam-se pela possibilidade de contenção de sua eficácia: “normas


de eficácia contida, portanto, são aquelas em que o legislador constituinte regulou
suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à
atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que
a lei estabelecer ou nos termos dos conceitos gerais nelas enunciado”.494

Elas apresentam como características principais, por conseguinte: a)


solicitam intervenção do legislador ordinário, fazendo expressa menção quanto à
possibilidade de sua regulamentação futura; b) enquanto não houver restrição, a eficácia da
norma é plena; c) possuem aplicabilidade direta e imediata, salvo aquelas que contêm
conceitos ético-jurídicos, que já limitam a sua eficácia; d) sua eficácia pode ser limitada por
outras normas constitucionais.

4.6 4 1 Eficácia contida mediante lei

Por serem as normas constitucionais de eficácia contida normas que


abrem espaço para eventuais restrições, tem-se que a forma mais comum de se
determinarem tais restrições é pela via legal, isto é, pela via da legislação ordinária. Neste
caso, o dispositivo em questão, na maioria das vezes, faz menção expressa a tal
possibilidade, fazendo referência à expressão “lei”.

493
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra:
Almedina, 1998.
Assim, o nosso texto constitucional estabelece, por exemplo, que
“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, inciso VIII). E mais: “é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais
que a lei estabelecer” (art. 5º, inciso XIII). Nestes dois casos, verifica-se uma contenção
mediante lei.

4.6. 4. 2. Eficácia contida mediante outras normas constitucionais

Nem sempre, no entanto, a contenção em questão se dá pela via da


legislação ordinária; também é possível constatarem-se restrições no próprio texto
constitucional, caso em que se trata de eficácia contida mediante outras normas
constitucionais.

Como exemplos, pode-se citar o art. 5º, inciso XI de nossa Constituição,


quando afirma que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar
sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” e também o art. 5º, incisos
XXIV do mesmo diploma legal, onde consta que “a lei estabelecerá o procedimento para
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa
e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.” Em
ambos os casos, conforme se depreende da leitura dos dispositivos citados, é a própria
Constituição quem prevê as possibilidades e as hipóteses de exceção, não sendo necessário
remeter-se tal função para a legislação ordinária.

4.6. 4. 3 Eficácia contida mediante conceitos éticos jurídicos

494
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
É quando o condicionamento se dá com base em conceitos ético-
jurídicos, como ocorre com as expressões “função social” (art. 5º, inciso XXIII), “paz
social” (art. 136, caput), “necessidade pública” (art. 5º, inciso XXIV), dentre outras.

6. 5 Normas constitucionais de eficácia limitada

As normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que, conforme


já referido anteriormente, demandam, para a sua aplicabilidade, uma regulamentação, a
cargo de legislação complementar ou ordinária, atendendo a determinação expressa contida
no próprio texto constitucional.

As normas constitucionais de eficácia limitada podem ser definidoras de


princípios organizativos (facultativos ou impositivos) ou, ainda, definidoras de princípios
programáticos.

facultativas
Definidoras de princípios organizativos
Normas de eficácia limitada impositivas
Definidoras de princípios programáticos

4.6.5.1 Normas constitucionais de eficácia limitada definidoras de


princípio institutivo ou organizativo

São aquelas que contêm apenas o esquema de organização de


determinado órgão, deixando a sua complementação e detalhamento para a lei ordinária.
Elas indicam a criação de uma legislação futura que lhes complete a eficácia e dê efetiva
aplicação. Possuem âmbito de eficácia imediata, dependendo a extensão dessa eficácia da
experiência caso-a-caso.

Como exemplos, temos o dispositivo que assevera que “a lei disporá


sobre a organização administrativa e judiciária dos territórios” (art. 33, caput), assim como
o que determina que “a lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da
República” (art. 90, parágrafo 2º) e o que diz que “a lei disporá sobre a constituição,
investidura, jurisdição, competência, garantias e condições de exercício dos órgãos da
Justiça do Trabalho” (art. 113).

Além disso, como já referimos, estas definições de princípios institutivos


ou organizativos podem ser impositivas (obrigatórias, peremptórias, determinantes), ou
facultativas (possibilidade, e não obrigação).

As de caráter impositivo, por sua vez, podem, se não realizadas conforme


determinado, ocasionar a declaração de inconstitucionalidade por omissão, dando-se
ciência ao poder competente; da mesma forma, tem-se, como conseqüência, que as normas
porventura já existentes e que suprem a imposição constitucional não podem ser revogadas.
Exemplo característico é o do art. 32, parágrafo 4º, da Constituição brasileira de 1988: “lei
federal disporá sobre a utilização, pelo governo do Distrito Federal, das polícias civil e
militar e do corpo de bombeiros militar”.

Por fim, as normas definidoras de princípio institutivo ou organizativo


tidas como facultativas abrem espaço para uma regulamentação, porém não de forma
obrigatória, deixando margem à discricionariedade do legislador. É o caso do art. 22,
parágrafo único, e do art. 125, parágrafo 3º, da Constituição, que dispõem, respectivamente,
que “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das
matérias relacionadas neste artigo” e que “a lei estadual poderá criar, mediante proposta do
Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de
direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça,
ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte
mil integrantes”.
4.6.5.2 Normas constitucionais de eficácia limitada definidoras de
princípio programático

São normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de


regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os
princípios a serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e
administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins
sociais do Estado.

Dentre elas, algumas mencionam, expressamente, a criação de uma


legislação futura, outras não. As primeiras dependem da atividade do legislador e estão
vinculadas ao princípio da legalidade, enquanto que as outras ora são referidas aos Poderes
Públicos ou aos agentes da ordem econômica e social em geral. Sua eficácia e
aplicabilidade dependem muito de seu enunciado e de sua conexão com outras normas.495

Neste contexto, podem-se atribuir a elas as seguintes características: a)


orientam todo o ordenamento, possuindo eficácia negativa imediata (não podem ser
violadas ou contrariadas, ainda que não tenham sofrido regulamentação); b) impõem
deveres ao legislador ordinário; c) condicionam a legislação futura; d) informam a
concepção de Estado e de sociedade; e) orientam a interpretação; f) condicionam a
atividade discricionária da Administração e do Judiciário.

Elas podem se apresentar com as seguintes variações:

- normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade (art. 7º, incisos XI


e XX da Constituição);

- normas programáticas referidas aos poderes públicos (art. 21, inciso IX; art.
184 e art. 215 da Constituição);

- normas programáticas dirigidas à ordem econômico-social em geral (art. 193 da


Constituição).

495
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989.
Além disso, elas podem se apresentar: a) sem tutela das situações
subjetivas (caso em que não há possibilidade de invocação judicial específica – art. 170,
caput; art. 218 e art. 184 da Constituição); e b) com tutela das situações subjetivas

(quando há possibilidade de invocação judicial específica, todavia apenas


em sentido negativo, para evitar que o poder público pratique atos que as contrariem – art.
205; art. 215; art. 208, parágrafo 1º, da Constituição).

4.6.6 Outras classificações associadas ao tipo

A referida classificação ainda se vale, em seu desenvolvimento, de outras


classificações, de caráter secundário. Neste sentido, fala-se em normas proibitivas e em
normas permissivas, sendo que, conforme o autor, a maior parte das normas constitucionais
contém os dois conteúdos.496 Esta tipologia não tem, contudo, relação direta com a noção
de eficácia das normas constitucionais, servindo, portanto, mais como uma
complementação do que como uma parte integrante dessa teoria.

Normas proibitivas

Tipologia secundária
Normas permissivas
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