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Juarez Daryell O Rap e o Funk Na Socialização Da Juventude PDF
Juarez Daryell O Rap e o Funk Na Socialização Da Juventude PDF
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: juarez@fae.ufmg.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 117
The rap and the funk in the socialization of
youngsters
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais
Abstract
Keywords
Correspondence:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: juarez@fae.ufmg.br
118 E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 117-136, j a n . /
Nos últimos anos, e de forma cada vez Autores como Mannheim (1982) ou
mais intensa, podemos observar que os jovens Melucci (1994) recomendam que devemos estar
vêm lançando mão da dimensão simbólica como atentos às expressões juvenis, pois estas podem
a principal e mais visível forma de comunicação, ser a ponta de um iceberg, que torna visíveis as
expressa nos comportamentos e atitudes pelos tensões e contradições da sociedade em que vi-
quais se posicionam diante de si mesmos e da vem. Se seguimos essa orientação, cabe-nos per-
sociedade. É possível constatar esse fenômeno guntar: O que pode estar significando esse fenô-
nas ruas, nas escolas ou nos espaços de agre- meno? Será que é apenas uma moda passagei-
gação juvenil, onde os jovens se reúnem em tor- ra, como tantas outras patrocinadas pela indús-
no de diferentes expressões culturais, como a tria cultural? Ou pode estar nos dizendo sobre
música, a dança, o teatro, entre outras, e tor- novos modos de ser jovem neste inicio de sécu-
nam visíveis, através do corpo, das roupas e de lo ou mesmo apontando para novas formas de
comportamentos próprios, as diferentes formas socialização vivenciadas por eles?
de se expressar e de se colocar diante do mun- A nossa hipótese é de que a centra-
do. lidade do consumo e a da produção cultural para
O mundo da cultura aparece como um os jovens são sinais de novos espaços, de novos
espaço privilegiado de práticas, representações, tempos e de novas formas de sua produção/for-
símbolos e rituais no qual os jovens buscam de- mação como atores sociais. Ou seja, apontam
marcar uma identidade juvenil. Longe dos olha- para novas formas de socialização, nas quais os
res dos pais, professores ou patrões, assumem grupos culturais e a sociabilidade que produzem
um papel de protagonistas, atuando de alguma vêm ocupando um lugar central. É o que nos
forma sobre o seu meio, construindo um deter- propomos discutir neste texto. Interessa-nos
minado olhar sobre si mesmos e sobre o mun- apreender os significados que os jovens atribu-
do que os cerca. Nesse contexto, a música é a em à experiência de participação nos grupos
atividade que mais os envolve e os mobiliza. musicais, buscando compreender os sentidos que
Muitos deles deixam de ser simples fruidores e adquirem no processo de construção social de
passam também a ser produtores, formando cada um deles. Para tanto, tomaremos como
grupos musicais das mais diversas tendências, objeto de análise jovens da periferia de Belo
compondo, apresentando-se em festas e even- Horizonte que participam de grupos musicais
tos, criando novas formas de mobilizar os recur- ligados aos estilos rap e funk.2 Iniciaremos com
sos culturais da sociedade atual além da lógica uma discussão sobre a noção de socialização,
estreita do mercado.
Esse processo não está presente apenas 1.Nos limites deste texto não cabe desenvolver uma discussão so-
entre os jovens de classe média. Nas periferias bre violência e juventude, que se torna cada vez mais séria, com índi-
ces alarmantes de homicídios envolvendo jovens. Como denunciou o
constatamos uma efervescência cultural
juiz Geraldo Claret, do Juizado da Infância e da Juventude de Belo
protagonizada por parcelas dos setores juvenis. Horizonte, morrem assassinados na cidade, por ano, uma média de
Ao contrário da imagem socialmente criada a 400 jovens de 12 a 20 anos. (E stado de Minas, 13/10/2001). Mas é
importante ressaltar a necessidade de uma maior problematização
respeito dos jovens pobres, quase sempre asso- deste tema, superando as análises reducionistas que fazem uma
ciada à violência e à marginalidade, eles tam- vinculação linear da violência à pobreza ou, pior, levam a generaliza-
ções preconceituosas que fazem de todo jovem pobre um marginal
bém se posicionam como produtores culturais.1 em potencial, aumentando o fosso social já existente na nossa “cida-
Entre eles, a música é o produto cultural mais de partida”.
consumido e em torno dela criam seus grupos 2.Os dados empíricos utilizados são resultado da pesquisa que re-
sultou na tese de doutorado intitulada:A música entra em cena: or a p
musicais de estilos diversos, dentre eles o rap e e o funkna socialização da juventude em Belo Horizonte,apresentada
o funk. Nesses grupos estabelecem trocas, ex- na Faculdade de Educação da USP em julho de 2001. Nela, partimos
de um universo de 146 grupos musicais juvenis, de onde foram esco-
perimentam, divertem-se, produzem, sonham, lhidos seis grupos der a p e f u n k, a partir dos quais discutimos os
enfim, vivem determinado modo de ser jovem. processos de socialização.
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seguida por uma contextualização social dos social. O objeto de análise se constitui em tor-
jovens pesquisados. Com esse pano de fundo, no da religião, da família e/ou da escola, ins-
desenvolveremos uma análise dos estilos rap e tituições que permitem “fabricar” os atores
funk e os significados que adquirem para os pelo sistema.
jovens. O autor propõe uma outra forma de
conceber os processos de socialização no con-
Juventude e socialização texto de uma sociedade em mutação, numa
superação dos limites das teorias clássicas. Para
Na sociologia clássica, desde Durkheim, Dubet, os atores e as instituições não são mais
desenvolveram-se reflexões sobre a socialização redutíveis a uma lógica única, a um papel e a
a partir de diversas perspectivas, de acordo com uma programação cultural de condutas, como
o próprio contexto histórico, com concepções era pensada a socialização na sociedade indus-
distintas de sociedade, dos atores sociais e das trial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade de
interações, exprimindo modelos determinados princípios culturais e sociais que organizam as
de sociedade e de cultura. Vários autores ques- condutas, com os atores podendo adotar si-
tionam se tais paradigmas, produzidos no con- multaneamente vários pontos de vista. Há
texto de certa concepção clássica de socieda- mutações globais dos quadros de referência, e
de, são capazes de explicar os processos soci- nenhuma delas assume uma centralidade. Não
ais que ocorrem na sociedade contemporânea, há mais uma unidade do sistema e do ator. O
no bojo das profundas transformações que ator não é totalmente socializado a partir das
vêm ocorrendo nas últimas décadas. orientações das instituições nem a sua identi-
Van Haetcht (1992), por exemplo, evi- dade é construída apenas nos marcos das ca-
dencia que, nesses paradigmas anteriores, a tegorias do sistema.
teoria da socialização dicotomiza a lógica es- Para o autor existem três sistemas que
trutural e a lógica da atuação, compreenden- formam o conjunto social, cada qual regido
do a socialização reduzida a um treino, que por uma lógica diferente: uma comunidade
gera a interiorização de um “programa” a ser estruturada por uma lógica de integração; um
executado no futuro. Propõe entendê-la como ou mais mercados competitivos, dependendo
um processo adaptativo, articulando ator e es- de uma lógica da estratégia e um sistema cul-
truturas, em que os efeitos da socialização se- tural correspondente a uma lógica da
riam apenas os parâmetros da ação, não sen- subjetivação. Os indivíduos constroem-se soci-
do, assim, irreversíveis. Nessa mesma direção, almente através das experiências sociais, enten-
Dubet (1994) aponta uma série de limites na didas como a capacidade de o indivíduo arti-
sociologia clássica para a compreensão dos cular esses tipos de ação, numa dinâmica que
processos socializadores contemporâneos. Para leva à constituição da subjetividade do ator e
ele, tais teorias buscam entender e explicar a sua reflexividade. É a experiência social que
socialização na perspectiva da reprodução so- articula o trabalho do indivíduo, que constrói
cial, perguntando como as instituições garan- uma identidade, uma coerência e um sentido
tem a continuidade social. Nelas o ator é o sis- às suas ações sempre dialogando com as lógi-
tema, ou seja, a conduta, a subjetividade, os cas de ação que já se encontram determinadas.
sentimentos são interiorizações de uma posi- Nessa medida a socialização e a formação dos
ção objetiva do sistema. Dessa forma, explicar sujeitos são entendidas como o processo me-
os indivíduos é explicar a determinação de seu diante o qual os atores constroem sua experi-
lugar social sobre sua personalidade, uma vez ência, evidenciando uma equação na qual os
que haveria um processo de interiorização do indivíduos se constroem e ao mesmo tempo
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tomava um banho, jantava. Tinha uma gar- Eles fazem uma dissociação entre o
rafa de vinho na geladeira, eu abria, tomava emprego atual e a carreira musical: um é
o vinho, ia pra rua. Chegava e encontrava aquele ao qual se vêem coagidos a exercer,
no Vilarinho com a turma, aí a gente dança- cuja valência é instrumental; a outra, a car-
va e zoava pra caralho... (Nilson, 26 anos, reira musical, aponta para a possibilidade de
rapper) um trabalho que é visto como fonte de sa-
tisfação pessoal e como atividade criativa.
Como evidenciam inúmeras pesquisas, Como diz um deles, gostar de trabalhar eu
o trabalho juvenil não pode ser compreendido até gosto; a questão não é de não gostar de
apenas pelo contexto de pobreza em que vivem trabalhar, é de fazer o que não gosto...
os jovens. Aparece também como condição Podemos entender a postura desses
para maior autonomia e liberdade em relação jovens como uma recusa das condições que
à família, pela possibilidade do consumo de a sociedade lhes oferece para sua inserção
bens e pela garantia de um mínimo de lazer, social. Por intermédio da música, experi-
enfim, é o trabalho que possibilita a vivência mentam a possibilidade de uma atividade
da própria condição juvenil. Mas o que podia com sentido e não querem aceitar a sujei-
ser visto como uma etapa inicial, tornou-se ção às alternativas que lhes são postas. Des-
uma constante em suas trajetórias no merca- sa forma, o trabalho não constitui fonte de
do de trabalho. Nenhum deles conseguiu se expressividade. Reduz-se a uma obrigação
qualificar em alguma profissão e todos sobre- necessária para uma sobrevivência mínima,
vivem ainda de bicos e empregos precários. perdendo os elementos de uma formação
Expressam o contexto de uma crise pela qual humana que derivavam de uma cultura que
passa a sociedade brasileira, o que afeta as ins- se organizava em torno do trabalho.
tituições clássicas responsáveis pela socializa- Esses jovens são exatamente os me-
ção. Essa crise se manifesta na desestru- nos contemplados pela escola. A maioria
turação do mercado de trabalho e no aumen- deles foi excluída da escola nos mais vari-
to do desemprego juvenil, atingindo mais di- ados estágios e, grande parte, antes de
retamente os jovens pobres (Pochmann,1998). completar o ensino fundamental, com uma
Dessa forma, o mundo do trabalho não trajetória marcada por repetências, evasões
lhes aparece como um espaço de escolhas, ao esporádicas e retornos, até a exclusão defi-
contrário, nenhum deles gosta do que faz, não nitiva. Apenas quatro jovens continuam a
vendo nessas atividades nenhuma centralidade estudar, alguns no ensino fundamental e
além da renda. Para muitos deles, o outros no ensino médio, sendo possível per-
envolvimento com a música implicou uma ten- ceber que os significados que atribuem a
são entre o tempo do trabalho e o tempo da essa experiência é bem diversa. Para aque-
música: les que ainda estudam, a escola aparece
como uma instituição distante e pouco sig-
Chegava dentro de uma firma e minha cabe- nificativa:
ça num era pra aquilo lá, trabalhei em mui-
tos lugares, cara, mas minha cabeça num Antes eu não gostava de da escola de jeito
aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso nenhum... Agora, tipo assim, eu tive que
porque eu pensava:“Pô, eu tenho de fazer é gostar porque é uma coisa que eu depen-
música, o meu negócio é aquilo lá, é só com do dela, tipo assim, eu aprendi a gostar
isso que eu me entretenho, é nisso que eu porque eu sei que preciso... mas se desse
tenho uma vontade, cara!” (Pedro, 24 anos, pra viver sem escola eu preferia viver sem
rapper) escola... (Flavinho, 17 anos, funkeiro)
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Nesse contexto, as famílias se vêem to de uma nova desigualdade social: aquela
cada vez mais responsabilizadas por garantir a que implica o esgotamento das possibilidades
reprodução dos seus membros, não contando de mobilidade social para a maioria da popu-
com quem possa “ajudá-las a se ajudar”. Como lação. Nela, a pobreza mudou de forma, de
lembra Telles (1992, p. 89), âmbito e de conseqüências. Se para as gerações
anteriores estava posta, mesmo que remota-
a centralidade da família pode ser vista mente, a perspectiva de mobilidade por meio
como registro de uma sociedade na qual a da escola e/ou do trabalho, para os jovens de
chamada questão social foi equacionada nas hoje essa alternativa não mais se apresenta.
formas de uma pobreza colonizada, Nesse sentido se instaura o quadro da crise4 :
despolitizada e privatizada nas suas formas os velhos modelos nos quais as instituições ti-
de manifestação. nham um lugar socialmente definido já não
correspondem à realidade. O trabalho não ofe-
Nã o é sem razão que para a grande rece mais um tipo de regulação da sociedade,
maioria desses jovens a família ocupa um lu- a escola não cumpre a função de moralização
gar central: as relações que estabelecem, a e mobilidade social, e novos modelos ainda
qualidade das trocas, os conflitos e os arran- não estão delineados. O que antes se caracte-
jos existentes para garantir a sobrevivência são rizava como possibilidade de passagem do
dimensões que marcam a vida de cada um, momento da exclusão para o momento da in-
constituindo-se um filtro por meio do qual clusão, hoje, para parcelas de jovens pobres,
traduzem o mundo social, significando um está se transformando em meio de vida.
espaço de experiências estruturantes. Nesse Vivemos no Brasil uma situação para-
sentido, a família ainda é uma das poucas ins- doxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo uma
tituições do mundo adulto com a qual esses modernização cultural, consolidando uma so-
jovens podem contar. ciedade de consumo, ampliando o mercado de
Uma primeira tendência seria caracteri- bens materiais e simbólicos, mas que não é
zar esses jovens como excluídos. Mas tanto Castel acompanhada de uma modernização social.
(1995) quanto Martins (1997) nos advertem so- Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo que
bre a imprecisão desse conceito, criticando cer- de forma restrita e desigual, em circuitos de
to fetichismo da idéia da exclusão que tende a informações, por meio dos diferentes veículos
suprimir as mediações existentes entre a econo- da mídia, e sofrem o apelo da cultura de con-
mia e outros níveis e dimensões da realidade so- sumo, estimulando sonhos e fantasias, além
cial. Para Martins (1997, p. 20), o modelo dos mais variados modelos e valores de huma-
socioeconômico brasileiro implementa nidade. A esfera do consumo cultural torna-se
um momento importante para as trocas soci-
uma proposital inclusão precária e instável, ais, propiciando o acesso aos estilos, por exem-
marginal. São políticas de inclusão de pes- plo. No caso dos jovens pesquisados, foi como
soas nos processos econômicos, na produção consumidores culturais de músicas, CDs, shows
e circulação de bens e serviços, estritamente d e rap e funk que eles puderam se transformar
em termos daquilo que é racionalmente em produtores e, nessa experiência, ressigni-
conveniente e necessário à mais eficiente re- ficar a sua trajetória, criando formas próprias
produção do capital. de ser jovem.
Assim, é mais esclarecedor caracterizá- 4. A noção de crise é utilizada não no sentido de ruptura, de caos,
mas de mutações e recomposições profundas nas relações sociais,
los como jovens pobres, vivenciando formas nas quais se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadas
frágeis e insuficientes de inclusão num contex- as novas relações, como sugere Melucci (1994).
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posta pela seleção e combinação de partes de sentidos, as formas de sociabilidade possuem
faixas já gravadas, a fim de produzir uma nova especificidades, assim como os rituais que
música. “Mixando”7 os mais variados estilos da constituem cada um desses estilos, ganhando
black music, o rap cria um som próprio, pesa- significados próprios para os jovens que deles
do e arrastado, reduzido ao mínimo, no qual participam. É o que veremos a seguir na des-
são utilizados apenas bateria, scratch8 e v o z . crição dos grupos de rap e duplas de funk em
Mais tarde, essa técnica seria enriquecida com Belo Horizonte. O scratch consiste na obten-
o surgimento do sampler. Desde então, o r a p ção de sons, girando manualmente o disco sob
aparece como um gênero musical que articula a agulha em sentido contrário, produzindo
a tradição ancestral africana com a moderna efeitos sonoros próprios.
tecnologia, produzindo um discurso de denún-
cia da injustiça e da opressão a partir do seu Os jovens e o rap
enraizamento nos guetos negros urbanos.9
No Brasil, a difusão do funk e do hip O r a p começou a d i fundir-se em Belo
hop remonta aos anos 1970, quando da pro- Horizonte a partir do final dos anos 1980.
liferação dos chamados “bailes black” nas pe- Desde então, veio se construindo uma cena rap
riferias dos grandes centros urbanos. Embala- que, mesmo ocupando um espaço marginal no
dos pela black music americana, principalmen- circuito cultural, se mantém viva e atuante,
t e o soul e o funk, milhares de jovens encon- apesar das oscilações entre momentos de
traram nos bailes de finais de semana uma al- latência e de maior visibilidade. Ao mesmo
ternativa de lazer até então inexistente. Desen- tempo, existe uma parte ainda mais submersa,
volveram-se nos mesmos espaços, por jovens formada por um sem-número de jovens que se
de uma mesma origem social: pobres e negros, reúnem e formam seus grupos nos bairros por
na sua maioria. Tanto a música r a p e funk simples diversão, na maioria das vezes com
quanto o seu processo de produção continu- uma curta trajetória, sem se tornarem conhe-
am apresentando algumas semelhanças, fiéis à cidos no próprio meio hip hop. Durante todo
sua origem, tendo como base as batidas, a uti- esse tempo existiu e existe ainda uma
lização de aparelhagem eletrônica e a prática rotatividade de grupos muito grande, vários se
da apropriação musical. Os dois estilos são desfazendo ou mesmo trocando de integran-
mais democráticos, não tendo como pré-requi- tes, e muito poucos permanecendo do início
sito a utilização de instrumentos musicais, o do movimento na cidade.
domínio de habilidades técnicas musicais nem Os três grupos pesquisados expressam
mesmo maiores custos com a montagem e a essa realidade:
organização dos locais para exibição pública. • O grupo Processo Hip Hop – F o r -
Para os jovens da periferia que, geralmente, mou-se no início de 1998 e teve uma vida re-
não têm acesso a uma formação musical, o rap lativamente curta, extinguindo-se no final de
e o funk são dos poucos estilos que lhes per- 1999. Era formado por três jovens, com idade
mitem realizar-se como produtores musicais e variando de 17 a 22 anos, sendo dois negros
artistas. Não é sem razão que grupos de rap e
7.A mixagem é a mistura de músicas feita pelo DJ, que utiliza o
duplas de MCs10 tendem a cantar apenas suas aparelhomixer.
próprias músicas, sendo raro que cantem mú- 8. O s c r a t c hconsiste na obtenção de sons girando manualmente o
sicas de outros grupos. disco sob a agulha em sentido contrário, produzindo efeitos sonoros
próprios.
Mas, no processo da sua elaboração e 9.Para maiores detalhes da história dohip hop;ver, dentre outros,
reelaboração nos grandes centros urbanos bra- Dayrell (2001), Sposito (1993), Silva (1998) e Tella (2000). Para uma
h i s t ó r i a d o f u n k, ver Vianna (1987) e Herschmann (1997, 2000).
s i l e i r o s , o rap e o funk foram assumindo carac- 10. O MC é o mestre de cerimônia, como se autodenominam os
terísticas próprias. As letras expressam outros cantores def u n k, quase sempre formados por duplas.
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condições em que vive: a violência, as drogas, Um momento muito significativo para
o crime, a falta de perspectivas, quando so- todos os grupos são as apresentações que re-
breviver é o fio da navalha. Mas também can- alizam. Para muitos, é no palco que se sentem
tam a amizade, o espaço onde moram, o de- verdadeiramente rappers. A freqüência e o ca-
sejo de um “mundo perfeito”, a paz. Como ráter dos shows são diferentes entre os grupos:
diz um deles, eu sou um mero observador do enquanto o Processo Hip Hop tem um núme-
comportamento do ser humano... num tenho ro limitado de apresentações e sempre em
estudo, num sou nada, mas eu fico observan- eventos no próprio bairro, o Raiz Negra e o
do o comportamento das pessoas. Nesse sen- Máscara Negra se apresentam com mais regu-
t i d o , o r a p pode ser visto como uma crônica laridade tanto em eventos quanto em festas
da realidade da periferia. promovidas em danceterias no centro da cida-
Eles atribuem a si mesmos o papel de de. Todos os jovens reforçam a importância
“porta-vozes” da periferia, um dos elementos dos shows na vida de cada um. Alguns ressal-
da identidade do estilo. Alguns deles se atri- tam a emoção e o prazer – a maior adrenalina
buem a “missão” de problematizar a realida- – de estarem no palco mostrando o resultado
de em que vivem através das músicas que da sua produção. Outros ressaltam a auto-afir-
cantam, com a pretensão de “conscientizar os mação do que os shows representam, sendo
caras” dos problemas e riscos que o meio uma forma de resgatar a própria dignidade:
social lhes impõe:
Trabalhava de faxina e o maior orgulho meu
O que a gente passa com a música é um era estar lá fazendo faxina e quando eu
pouquinho de consciência, de amor pró- chegava no palco eu era um rapper, enten-
prio, de auto-estima... a gente quer levar o deu? Eu tenho pouco estudo, nunca tive um
nosso povo pra frente, a minha vontade é emprego bom, mas eu tenho uma cabeça
essa, de revolucionar, abrir a cabeça de um pra revolucionar, eu tenho dignidade porque
e de outro para eles terem consciência e eu chego em casa e sou um rapper, tenho
saber o que está fazendo, aprender o direi- uma missão... (Pedro, Máscara Negra)
to deles, nem que for um pouquinho, en-
tendeu? (Pedro, 26 anos, rapper) Outros ainda enfatizam a importância
de serem reconhecidos no próprio meio em que
Para muitos desses jovens, o rap t o r - vivem. Podemos dizer que, para esses jovens,
na-se uma forma de intervenção social, mas aderir ao estilo possibilitou-lhes a abertura de
em outros moldes. Por meio da linguagem novos espaços, onde eles passaram a se colo-
poética, do corpo, do lazer propõem uma pe- car na cena pública em outros termos, como
dagogia própria, que tem como um dos ins- artistas, como criadores, como sujeitos de um
trumentos a polêmica. Talvez esteja aí uma projeto. Nesse sentido, o rap é um meio de que
das dificuldades de estabelecerem um diálo- se servem para articular uma auto-imagem po-
go com as organizações políticas do mundo sitiva, uma forma de se afirmarem como “al-
adulto, como sindicatos, partidos e até mes- guém” numa sociedade que massifica e os
mo o movimento negro, diante dos quais se transforma em anônimos. Ao mesmo tempo,
mostram desconfiados, mantendo distancia- através das letras das músicas, do corpo e do
mento. Ao mesmo tempo, os grupos Máscara visual que valorizam a estética negra, na afir-
Negra e Raiz Negra desenvolvem esporadica- mação positiva do espaço da per i f e r i a , o rap
mente algumas atividades sociais, como ofi- possibilita a muitos desses jovens reelaborar a
cinas de hip hop em escolas públicas e festas experiência social imediata em termos cultu-
beneficentes. rais, traduzida em forma de autoconsciência
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mento que desafia a lógica perversa da metró- processos de difusão cultural no contexto de
pole, que tende a segregá-los nos bairros dis- uma sociedade cada vez mais globalizada. O
tantes da periferia, tornando-se uma forma e s t i l o funk, mas também o estilo rap, como ex-
possível de ocupação da cidade. pressões de uma cultura juvenil, não podem ser
vistos como resultado de uma progressiva
Os jovens e o funk homoge-neização e massificação cultural, que
homologaria a um único registro uma produ-
O funk em Belo Horizonte é herdeiro ção cultural juvenil, independentemente das
direto dos bailes black que se difundiram na condições estruturais concretas nas quais es-
periferia da cidade desde os anos 1970. Até ses jovens estariam inseridos.
o início da década de 1990, os jovens fre- Ao contrário, a realidade dos grupos de
qüentadores dos bailes não se identificavam rap e funk e a história de cada um deles na ci-
ainda como funkeiros, agregando-se em tor- dade apontam para a existência de uma iden-
no da música e no prazer da dança. Nos bai- tidade própria a esses rappers e funkeiros. Uma
les não havia, como não há, uma fidelidade a identidade que é fruto de uma reinterpretação
um estilo musical, convivendo os mais dife- dos sons e ícones associados a esses estilos,
rentes sons eletrônicos, além do rock e até do numa construção em que os sentidos que lhe
pagode. Foi nos meados dessa década que co- são atribuídos expressam não só as condições
meçam a aparecer os “mestres de cerimônias” estruturais nas quais se situam, mas também
(MCs) locais, duplas ou grupos que cantavam o próprio contexto cultural do meio social no
suas músicas, influenciados pelo processo de qual vieram se construindo como sujeitos. Nes-
nacionalização do funk iniciado no Rio de Ja- se sentido, concordamos com Sansone (1997,
neiro. Foi quando começou a se delinear, de p. 171), quando questiona as teses de homo-
f a t o , o funk como estilo, com os jovens se geneização de uma cultura juvenil, mostrando
identificando como funkeiros. A cena funk n a que, “ao lado de uma inquestionável globa-
cidade está presente no circuito cultural for- lização do universo da cultura juvenil, man-
mal, em grandes danceterias e programas em tém-se uma série de aspectos locais, determi-
rádios comerciais, mas também no circuito al- nados por uma história local e contextos es-
ternativo, nos bailes promovidos nos bairros, pecíficos”, fazendo com que o “local”
em quadras cobertas ou em escolas. Isso se reinterprete o “global” de formas diferen-
deve à característica do estilo ser baseada nos ciadas.
bailes, um tipo de lazer que tradicionalmen- O funk será refletido a partir da reali-
te atrai uma massa de jovens, quer se identi- dade de três grupos pesquisados:
fiquem como funkeiros, quer não. • A dupla Flavinho e Maninho – Am-
O funk, na forma como veio sendo bos têm 17 anos, são brancos e moram com os
construído em Belo Horizonte, é uma reelabo- pais. Começaram a cantar juntos no início de
ração do estilo difundido no Rio de Janeiro. Não 1998 e atualmente fazem parte da equipe de
significa, porém, que haja uma imposição line- DJ Vitor, a qual acompanham nas festas pro-
ar da mídia na produção do estilo local. O que movidas quase sempre na região norte da ci-
podemos constatar é um processo por meio do dade. Já participaram de uma coletânea, com
qual os jovens se apropriam do estilo difundi- uma música gravada, além de vários CDs demo.
do pelos meios de comunicação e o reelaboram • A dupla Marcos e Fred – Cantavam
a partir das condições concretas em que vivem, juntos desde 1995, separando-se no final de
dos recursos de que dispõem, excluindo elemen- 1998. Marcos é branco e tem 18 anos; Fred é
tos ou ressignificando práticas. negro e tem 19 anos. Eles são um bom exem-
Essa constatação põe em discussão os plo de centenas de duplas que se formam,
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Nó, cara, é bom demais, né, ver aquele povo dançar e, principalmente, a oportunidade de se
lá, a gente entrar e a massa ir ao delírio! mostrarem como MCs. Podemos dizer que o
Depois gritando: “Marcos e Fred! Marcos e baile funk representa, antes de tudo, a celebra-
Fred!” isso e aquilo, é gostoso demais... ção da amizade, o espaço por excelência para
quando a gente sobe a gente treme, vem viverem dimensões constitutivas da condição
uma adrenalina! Dá uma vontade de juvenil: a explosão emocional da alegria, a
esguelar, sair gritando, pular lá em baixo, identificação coletiva, o sentir-se em grupo.
curtir com o pessoal mesmo... (Fred, 18 Vianna (1987, p. 58) reforça essa dimensão ao
anos) afirmar que “as pessoas freqüentam o baile
não por um tipo de música, mas principalmen-
Participar de shows e ter suas músicas te pelo ambiente, isto é, as outras pessoas, os
difundidas nas rádios é o desejo mais imedia- amigos que se encontram e se divertem juntos,
to desses jovens. Essas são formas de partici- a alegria de viver em bando”. Dessa forma, o
pação que os destacam da multidão anônima, b a i l e funk constitui um espaço de sociabilida-
permitindo-lhes que se sintam alguém, com de, uma massa composta por grupos de ami-
reflexos na auto-imagem. Ao mesmo tempo, gos e galeras. Pode ser visto como uma opção
proporciona-lhes descobrir e desenvolver as de agrupamento metropolitano, numa reação
próprias potencialidades, como compor e can- possível à massificação da sociedade contem-
tar, tornando-os sujeitos criativos. porânea.
Como jovens, o grupo de amigos, ou a Mas, afinal de contas, o que é ser
galera, constitui uma referência importante. E funkeiro? A própria definição é fluida, como
para esses MCs o grupo de amigos mais pró- diz o Marcos:
ximo se articula em torno do funk. Os compa-
nheiros de dupla tendem a se tornar os ami- O funk é um modo de pensar, d’ocê estar de
gos mais próximos, sendo com eles que se en- bem com a vida... mas não é uma idolatria,
contram com mais freqüência, conversam so- um tipo de religião como o r a p, é mais um
bre os problemas ou casos afetivos, numa re- modo d’ocê estar solto com a vida, não num
lação mais íntima. Mas, assim como no r a p, modo de não ter responsabilidade, mas
existe uma mobilidade muito grande de gru- d’ocê ser alegre...
pos e duplas, expressão de um momento de
experimentações, típico da condição juvenil. Esse depoimento parece esclarecer os
Também o funk possibilitou a esses jovens a contornos da identidade desses jovens com o
ampliação da rede de relações. Por meio dos funk. S e r funkeiro não implica um conjunto de
bailes e shows, estabeleceram uma rede de re- valores e comportamentos comuns, como uma
lações amplas – os conhecidos – que não pos- “religião”, mas constitui uma forma determi-
sui uma estrutura de coesão tão forte entre nada de vivenciar as demandas dessa fase da
aqueles que dela participam: reconhecem-se no vida. A identidade do funk é a oferecida pelo
funk, compartilham situações lúdicas, encon- estilo de possibilidades de viver e expressar as
tram-se nos bailes, sentindo-se parte de uma pulsões, os desejos e as necessidades que ca-
rede simbólica (Arce, 1999). racterizam a condição juvenil. Tanto é que não
Para esses jovens, o estilo se constrói existe nenhuma exigência de coerência entre o
em torno dos bailes. Este é o elemento central comportamento pessoal e o comportamento
a partir do qual se articula a identidade do como um MC, o que vimos existir entre os jo-
funk. É neles que podem expressar os outros vens que aderem ao r a p. Outro elemento é a
elementos: o encontro com os amigos, o gos- questão da cor e da origem social, quando
to pela música funk, um determinado jeito de parecem não estabelecer relações entre o funk
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entre eles. Uma pedagogia da palavra, emitida condição juvenil. A convivência continuada no
pelas letras, por meio da qual não pretendem grupo ou na dupla possibilitou a criação de re-
impor uma compreensão da realidade, mas “fa- lações de confiança e a aprendizagem de rela-
zer o cara pensar”, como nos disseram vários ções coletivas, servindo também de espelho
deles. Uma pedagogia na qual há o respeito para a construção de identidades individuais.
pela diversidade, quando propõem que o ou- Todos enfatizam que a adesão aos es-
tro, na sua condição de indivíduo, pense por tilos gerou uma ampliação dos circuitos e re-
si mesmo e tire suas próprias conclusões. Essa des de trocas, evidenciando o r a p e o funk
postura é coerente com as relações que esta- como produtores de sociabilidades. A dinâmi-
belecem nos grupos, em que o coletivo não ca das relações existentes, o exercício da razão
subsume o individual, o “nós” não abdica da comunicativa, a existência da confiança, a
condição do “eu”. gratuidade das relações, sem outro sentido que
Apesar dessas especificidades, podemos não a própria relação, são aspectos que apon-
constatar significados comuns aos dois estilos. tam para a centralidade da sociabilidade no
Um deles diz respeito à dimensão da escolha. processo de construção social desses jovens.
O r a p e o funk se colocam como um dos pou- Nesse sentido, os estilos podem ser vistos
cos meios pelos quais os jovens puderam exer- como respostas possíveis à despersonalização e
cer o direito às escolhas, elaborando modos de à fragmentação do sistema social, possibilitan-
vida distintos e ampliando o leque das expe- do-lhes relações solidárias e a riqueza da des-
riências vividas. Essa dimensão se torna mais coberta e do encontro com os outros.
importante quando levamos em conta que é o Podemos concluir constatando que o
exercício da escolha, junto com a responsabi- rap e o funk, mesmo com abrangências diferen-
lidade das decisões tomadas, uma das condi- ciadas, significaram uma referência na elabora-
ções para a construção da autonomia. Se a ção e vivência da condição juvenil, contribuin-
escolha e a autonomia são frutos de aprendi- do de alguma forma para dar um sentido à vida
zagens, podemos nos indagar: Quais os espa- de cada um, num contexto onde se vêem rele-
ços que esses jovens encontram no mundo gados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tem-
adulto onde possam exercitar a prática de es- po, o estilo de vida rap e funk possibilitou a
colhas responsáveis, onde possam ir construin- muitos desses jovens uma ampliação significa-
do-se como sujeitos autônomos? tiva do campo de possibilidades, abrindo espa-
Outra dimensão é a possibilidade que ços para sonharem com outras alternativas de
esses estilos proporcionam de vivência da con- vida que não aquelas, restritas, oferecidas pela
dição juvenil. Para a maioria dos jovens sociedade. Querem ser reconhecidos, querem
pesquisados, os estilos funcionaram como um uma visibilidade, querem ser alguém num con-
rito de passagem para a juventude, fornecen- texto que os torna invisíveis, ninguém na mul-
do-lhes elementos simbólicos, expressos na tidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruir
roupa, no visual ou na dança, para que pudes- dela, transformando o espaço urbano em um
sem construir uma identidade juvenil. Desde valor de uso. Enfim, querem ser jovens e cida-
então, passaram a ser uma referência para a es- dãos, com direito a viver plenamente a sua ju-
colha dos amigos, bem como para as formas de ventude. Este parece ser um aspecto central:
ocupação do tempo livre, duas dimensões – o pelos estilos rap e funk, os jovens estão reivin-
grupo de pares e o lazer – constitutivas da dicando o direito à juventude.
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Recebido em 25.02.2002
Aprovado em 03.05.2002
Juarez Tarcisio Dayrellé formado em Ciências Sociais pela UFMG. Tem vários artigos publicados além do livroMúltiplos olhares
sobre educação e cultura, pela Editora da UFMG. Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Educação da UFMG.