Você está na página 1de 20

O rap e o funk na socialização da juventude

Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O texto se propõe a discutir a importância dos grupos musicais


juvenis nos processos de socialização vivenciados por jovens
pobres na periferia de Belo Horizonte, problematizando o peso
e o significado de ser membro de um grupo musical no con-
junto da vida de cada um. Tem como foco os integrantes de
três grupos de rap e três duplas de funk, procurando analisar
as suas experiências culturais e o sentido que tais práticas ad-
quirem no conjunto dos processos sociais que os constituem
como sujeitos. Significa compreender como eles elaboram as
suas vivências em torno do estilo, e os significados que atribu-
em a elas, no contexto social onde se inserem como jovens
pobres.
A discussão aponta que os jovens rappers e funkeiros encon-
tram poucos espaços nas instituições do mundo adulto para
construir referências e valores por meio dos quais possam se
construir como sujeitos. Os estilos rap e funk assumem uma
centralidade na vida desses jovens por intermédio das formas
de sociabilidade que constroem, da música que criam, e dos
eventos culturais que promovem.
Esses estilos possibilitaram e vem possibilitando a esses jovens
práticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaços
próprios, significando uma referência na elaboração e vivência
da sua condição juvenil, além de proporcionar a construção de
uma auto-estima e identidades positivas.

Palavras-chave

Juventude – Socialização – Cultura juvenil – Sociabilidade.

Correspondência:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: juarez@fae.ufmg.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 117
The rap and the funk in the socialization of
youngsters
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais

Abstract

The text proposes to discuss the importance of youngster


music bands in the socialization processes experienced by poor
youngsters from the outskirts of Belo Horizonte,
problematizing the weight and meaning of belonging to a
music band in the life of each one of them. The article focuses
on the members of three rap bands and three funk duos,
attempting to analyze their cultural experiences and the
meaning that those practices acquire within the social proces-
ses that constitute them as subjects. That entails
understanding how they elaborate on their experiences related
with their music style and the meanings their attribute to it in
their social context of poor youngsters.
The discussion points out that young rappers and funkers find
few spaces in the institutions of the adult world where they
can build up references and values through which they could
constitute themselves as subjects. The rap and funk styles take
on a central place in the lives of these youngsters by means of
the forms of sociability that those styles build, the music they
create, and the cultural events they promote. Those styles have
made possible to those youngsters practices, relations, and
symbols through which they create their own spaces,
representing a reference in the elaboration and experience of
their situation as youngsters, apart from allowing the
construction of positive identities and self-esteem.

Keywords

Youth – Socialization – Youth culture – Sociability.

Correspondence:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: juarez@fae.ufmg.br

118 E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 117-136, j a n . /
Nos últimos anos, e de forma cada vez Autores como Mannheim (1982) ou
mais intensa, podemos observar que os jovens Melucci (1994) recomendam que devemos estar
vêm lançando mão da dimensão simbólica como atentos às expressões juvenis, pois estas podem
a principal e mais visível forma de comunicação, ser a ponta de um iceberg, que torna visíveis as
expressa nos comportamentos e atitudes pelos tensões e contradições da sociedade em que vi-
quais se posicionam diante de si mesmos e da vem. Se seguimos essa orientação, cabe-nos per-
sociedade. É possível constatar esse fenômeno guntar: O que pode estar significando esse fenô-
nas ruas, nas escolas ou nos espaços de agre- meno? Será que é apenas uma moda passagei-
gação juvenil, onde os jovens se reúnem em tor- ra, como tantas outras patrocinadas pela indús-
no de diferentes expressões culturais, como a tria cultural? Ou pode estar nos dizendo sobre
música, a dança, o teatro, entre outras, e tor- novos modos de ser jovem neste inicio de sécu-
nam visíveis, através do corpo, das roupas e de lo ou mesmo apontando para novas formas de
comportamentos próprios, as diferentes formas socialização vivenciadas por eles?
de se expressar e de se colocar diante do mun- A nossa hipótese é de que a centra-
do. lidade do consumo e a da produção cultural para
O mundo da cultura aparece como um os jovens são sinais de novos espaços, de novos
espaço privilegiado de práticas, representações, tempos e de novas formas de sua produção/for-
símbolos e rituais no qual os jovens buscam de- mação como atores sociais. Ou seja, apontam
marcar uma identidade juvenil. Longe dos olha- para novas formas de socialização, nas quais os
res dos pais, professores ou patrões, assumem grupos culturais e a sociabilidade que produzem
um papel de protagonistas, atuando de alguma vêm ocupando um lugar central. É o que nos
forma sobre o seu meio, construindo um deter- propomos discutir neste texto. Interessa-nos
minado olhar sobre si mesmos e sobre o mun- apreender os significados que os jovens atribu-
do que os cerca. Nesse contexto, a música é a em à experiência de participação nos grupos
atividade que mais os envolve e os mobiliza. musicais, buscando compreender os sentidos que
Muitos deles deixam de ser simples fruidores e adquirem no processo de construção social de
passam também a ser produtores, formando cada um deles. Para tanto, tomaremos como
grupos musicais das mais diversas tendências, objeto de análise jovens da periferia de Belo
compondo, apresentando-se em festas e even- Horizonte que participam de grupos musicais
tos, criando novas formas de mobilizar os recur- ligados aos estilos rap e funk.2 Iniciaremos com
sos culturais da sociedade atual além da lógica uma discussão sobre a noção de socialização,
estreita do mercado.
Esse processo não está presente apenas 1.Nos limites deste texto não cabe desenvolver uma discussão so-
entre os jovens de classe média. Nas periferias bre violência e juventude, que se torna cada vez mais séria, com índi-
ces alarmantes de homicídios envolvendo jovens. Como denunciou o
constatamos uma efervescência cultural
juiz Geraldo Claret, do Juizado da Infância e da Juventude de Belo
protagonizada por parcelas dos setores juvenis. Horizonte, morrem assassinados na cidade, por ano, uma média de
Ao contrário da imagem socialmente criada a 400 jovens de 12 a 20 anos. (E stado de Minas, 13/10/2001). Mas é
importante ressaltar a necessidade de uma maior problematização
respeito dos jovens pobres, quase sempre asso- deste tema, superando as análises reducionistas que fazem uma
ciada à violência e à marginalidade, eles tam- vinculação linear da violência à pobreza ou, pior, levam a generaliza-
ções preconceituosas que fazem de todo jovem pobre um marginal
bém se posicionam como produtores culturais.1 em potencial, aumentando o fosso social já existente na nossa “cida-
Entre eles, a música é o produto cultural mais de partida”.
consumido e em torno dela criam seus grupos 2.Os dados empíricos utilizados são resultado da pesquisa que re-
sultou na tese de doutorado intitulada:A música entra em cena: or a p
musicais de estilos diversos, dentre eles o rap e e o funkna socialização da juventude em Belo Horizonte,apresentada
o funk. Nesses grupos estabelecem trocas, ex- na Faculdade de Educação da USP em julho de 2001. Nela, partimos
de um universo de 146 grupos musicais juvenis, de onde foram esco-
perimentam, divertem-se, produzem, sonham, lhidos seis grupos der a p e f u n k, a partir dos quais discutimos os
enfim, vivem determinado modo de ser jovem. processos de socialização.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 119
seguida por uma contextualização social dos social. O objeto de análise se constitui em tor-
jovens pesquisados. Com esse pano de fundo, no da religião, da família e/ou da escola, ins-
desenvolveremos uma análise dos estilos rap e tituições que permitem “fabricar” os atores
funk e os significados que adquirem para os pelo sistema.
jovens. O autor propõe uma outra forma de
conceber os processos de socialização no con-
Juventude e socialização texto de uma sociedade em mutação, numa
superação dos limites das teorias clássicas. Para
Na sociologia clássica, desde Durkheim, Dubet, os atores e as instituições não são mais
desenvolveram-se reflexões sobre a socialização redutíveis a uma lógica única, a um papel e a
a partir de diversas perspectivas, de acordo com uma programação cultural de condutas, como
o próprio contexto histórico, com concepções era pensada a socialização na sociedade indus-
distintas de sociedade, dos atores sociais e das trial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade de
interações, exprimindo modelos determinados princípios culturais e sociais que organizam as
de sociedade e de cultura. Vários autores ques- condutas, com os atores podendo adotar si-
tionam se tais paradigmas, produzidos no con- multaneamente vários pontos de vista. Há
texto de certa concepção clássica de socieda- mutações globais dos quadros de referência, e
de, são capazes de explicar os processos soci- nenhuma delas assume uma centralidade. Não
ais que ocorrem na sociedade contemporânea, há mais uma unidade do sistema e do ator. O
no bojo das profundas transformações que ator não é totalmente socializado a partir das
vêm ocorrendo nas últimas décadas. orientações das instituições nem a sua identi-
Van Haetcht (1992), por exemplo, evi- dade é construída apenas nos marcos das ca-
dencia que, nesses paradigmas anteriores, a tegorias do sistema.
teoria da socialização dicotomiza a lógica es- Para o autor existem três sistemas que
trutural e a lógica da atuação, compreenden- formam o conjunto social, cada qual regido
do a socialização reduzida a um treino, que por uma lógica diferente: uma comunidade
gera a interiorização de um “programa” a ser estruturada por uma lógica de integração; um
executado no futuro. Propõe entendê-la como ou mais mercados competitivos, dependendo
um processo adaptativo, articulando ator e es- de uma lógica da estratégia e um sistema cul-
truturas, em que os efeitos da socialização se- tural correspondente a uma lógica da
riam apenas os parâmetros da ação, não sen- subjetivação. Os indivíduos constroem-se soci-
do, assim, irreversíveis. Nessa mesma direção, almente através das experiências sociais, enten-
Dubet (1994) aponta uma série de limites na didas como a capacidade de o indivíduo arti-
sociologia clássica para a compreensão dos cular esses tipos de ação, numa dinâmica que
processos socializadores contemporâneos. Para leva à constituição da subjetividade do ator e
ele, tais teorias buscam entender e explicar a sua reflexividade. É a experiência social que
socialização na perspectiva da reprodução so- articula o trabalho do indivíduo, que constrói
cial, perguntando como as instituições garan- uma identidade, uma coerência e um sentido
tem a continuidade social. Nelas o ator é o sis- às suas ações sempre dialogando com as lógi-
tema, ou seja, a conduta, a subjetividade, os cas de ação que já se encontram determinadas.
sentimentos são interiorizações de uma posi- Nessa medida a socialização e a formação dos
ção objetiva do sistema. Dessa forma, explicar sujeitos são entendidas como o processo me-
os indivíduos é explicar a determinação de seu diante o qual os atores constroem sua experi-
lugar social sobre sua personalidade, uma vez ência, evidenciando uma equação na qual os
que haveria um processo de interiorização do indivíduos se constroem e ao mesmo tempo

120 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


são construídos socialmente (Dubet, 1997). é construído socialmente, como se representa
Nessa mesma direção, Charlot (2000) como sujeito, é fruto desses múltiplos proces-
avança ao enfatizar um lugar à questão da sos.
ação do indivíduo sobre o mundo e no mun-
do. É nesse autor que nos inspiramos para O contexto: jovens pobres ou
definir determinada compreensão dos proces- excluídos?
sos de socialização. Acreditamos que a socia-
lização dos jovens pode ser compreendida Para melhor compreensão dos signifi-
como os processos por meio dos quais os su- cados que os jovens pesquisados atribuem à
jeitos se apropriam do social, de seus valores, vivência dos estilos rap ou funk, é necessário
de suas normas e de seus papéis, a partir de contextualizar a realidade deles, apreendendo
determinada posição e da representação das a forma como elaboram o conjunto das expe-
próprias necessidades e interesses, mediando riências que vivenciam no cotidiano. Por mais
continuamente entre as diversas fontes, agên- óbvio que possa parecer, é importante ressal-
cias e mensagens que lhes são disponibilizadas. tar que nenhum deles é um rapper ou funkeiro
Em outras palavras, cada um dos jovens vinte e quatro horas ao dia. No cotidiano, a
rappers ou funkeiros encontra-se em determi- maioria deles trabalha, alguns estudam, possu-
nado grupo social, mas não se reduz a esse em família, vivenciam conflitos, divertem-se,
vínculo e ao que pode ser pensado a partir da amam, sofrem, possuem desejos e propostas de
posição desse grupo em um espaço social. En- melhoria de vida. Privilegiaremos, assim, as
contra-se em uma sociedade cujas agências instâncias do trabalho, da escola e da família
clássicas de socialização, como veremos no para traçar o contexto em que se inserem.3
caso da escola e do trabalho, se mostram frá- Os jovens rappers e funkeiros pesqui-
geis, não sendo uma referência de valores e sados estão situados no limiar da precarie-
normas. Destas, a única instituição que conti- dade. Praticamente, todos eles começaram a
nua tendo forte referência formativa é a famí- trabalhar muito cedo, em ocupações típicas de
lia. Mas nenhuma delas, no contexto de uma adolescentes pobres, tais como lavar carros e
sociedade em mutação, oferece certezas e se- ser office-boy. Além de ser uma forma de con-
guranças como no passado. Como lembra tribuir em casa, o trabalho era a condição para
Melucci (1996), as seguranças de que necessi- a vivência da condição juvenil:
tamos devem ser construídas por nós mesmos.
Por outro lado, esse jovem vai abrindo A época do lava-jato foi a época que eu
outros espaços, nos quais o grupo de pares, o mais tinha condição. Eu ganhava super-
estilo ao qual adere e o consumo dos meios de pouco, eu fazia a feira de casa, eu comprava
comunicação de massa vão cada vez mais se o frango, entendeu, eu tinha a minha roupa,
constituindo como parâmetros de avaliação e eu bebia, eu namorava... Lá a gente ralava
organização das relações interativas com a re- sábado, entendeu, sábado tinha vez que eu
alidade externa. Esse jovem tem acesso a múl- saía oito horas de lá, meu. Chegava em casa,
tiplas referências culturais, constituindo um deitava no tapete do meu quarto, todo sujo
conjunto heterogêneo de redes de significado de graxa. Dormia até umas nove horas, aí
que são articuladas e adquirem sentido na sua
ação coti-diana. Assim, ele interpreta a sua 3.Reafirmo que estou me baseando na realidade dos dezoito inte-
posição social, dá um sentido ao conjunto das grantes dos três grupos der a p e t r ê s d e f u n kpesquisados. Esses
experiências que vivencia, faz escolhas, age na jovens se situam, na sua maioria, na faixa etária entre 17 e 24 anos,
sendo que apenas quatro deles estão acima dessa idade. Catorze deles
sua realidade: a forma como ele se constrói e são solteiros, morando com os pais, e apenas quatro são casados.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 121
tomava um banho, jantava. Tinha uma gar- Eles fazem uma dissociação entre o
rafa de vinho na geladeira, eu abria, tomava emprego atual e a carreira musical: um é
o vinho, ia pra rua. Chegava e encontrava aquele ao qual se vêem coagidos a exercer,
no Vilarinho com a turma, aí a gente dança- cuja valência é instrumental; a outra, a car-
va e zoava pra caralho... (Nilson, 26 anos, reira musical, aponta para a possibilidade de
rapper) um trabalho que é visto como fonte de sa-
tisfação pessoal e como atividade criativa.
Como evidenciam inúmeras pesquisas, Como diz um deles, gostar de trabalhar eu
o trabalho juvenil não pode ser compreendido até gosto; a questão não é de não gostar de
apenas pelo contexto de pobreza em que vivem trabalhar, é de fazer o que não gosto...
os jovens. Aparece também como condição Podemos entender a postura desses
para maior autonomia e liberdade em relação jovens como uma recusa das condições que
à família, pela possibilidade do consumo de a sociedade lhes oferece para sua inserção
bens e pela garantia de um mínimo de lazer, social. Por intermédio da música, experi-
enfim, é o trabalho que possibilita a vivência mentam a possibilidade de uma atividade
da própria condição juvenil. Mas o que podia com sentido e não querem aceitar a sujei-
ser visto como uma etapa inicial, tornou-se ção às alternativas que lhes são postas. Des-
uma constante em suas trajetórias no merca- sa forma, o trabalho não constitui fonte de
do de trabalho. Nenhum deles conseguiu se expressividade. Reduz-se a uma obrigação
qualificar em alguma profissão e todos sobre- necessária para uma sobrevivência mínima,
vivem ainda de bicos e empregos precários. perdendo os elementos de uma formação
Expressam o contexto de uma crise pela qual humana que derivavam de uma cultura que
passa a sociedade brasileira, o que afeta as ins- se organizava em torno do trabalho.
tituições clássicas responsáveis pela socializa- Esses jovens são exatamente os me-
ção. Essa crise se manifesta na desestru- nos contemplados pela escola. A maioria
turação do mercado de trabalho e no aumen- deles foi excluída da escola nos mais vari-
to do desemprego juvenil, atingindo mais di- ados estágios e, grande parte, antes de
retamente os jovens pobres (Pochmann,1998). completar o ensino fundamental, com uma
Dessa forma, o mundo do trabalho não trajetória marcada por repetências, evasões
lhes aparece como um espaço de escolhas, ao esporádicas e retornos, até a exclusão defi-
contrário, nenhum deles gosta do que faz, não nitiva. Apenas quatro jovens continuam a
vendo nessas atividades nenhuma centralidade estudar, alguns no ensino fundamental e
além da renda. Para muitos deles, o outros no ensino médio, sendo possível per-
envolvimento com a música implicou uma ten- ceber que os significados que atribuem a
são entre o tempo do trabalho e o tempo da essa experiência é bem diversa. Para aque-
música: les que ainda estudam, a escola aparece
como uma instituição distante e pouco sig-
Chegava dentro de uma firma e minha cabe- nificativa:
ça num era pra aquilo lá, trabalhei em mui-
tos lugares, cara, mas minha cabeça num Antes eu não gostava de da escola de jeito
aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso nenhum... Agora, tipo assim, eu tive que
porque eu pensava:“Pô, eu tenho de fazer é gostar porque é uma coisa que eu depen-
música, o meu negócio é aquilo lá, é só com do dela, tipo assim, eu aprendi a gostar
isso que eu me entretenho, é nisso que eu porque eu sei que preciso... mas se desse
tenho uma vontade, cara!” (Pedro, 24 anos, pra viver sem escola eu preferia viver sem
rapper) escola... (Flavinho, 17 anos, funkeiro)

122 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


A escola se realiza como uma prova- ações específicas, deixam claro que a insti-
ção, uma “chatice necessária” para um tuição escolar é pouco eficaz no seu apare-
credencia-mento que tem um peso relativo lhamento para enfrentar as condições adver-
no mercado de trabalho. Já para outros, a sas de vida com as quais vieram se defron-
experiência escolar carrega um sentido ne- tando, não constituindo referência de valo-
gativo, contribuindo para reproduzi-los na res no seu processo de construção como
condição de subalternos: sujeitos.
A situação desses jovens se vê agra-
Eu larguei a escola depois que tomei a se- vada pelo encolhimento do Estado na esfe-
gunda bomba na 5ª série, isso eu tava ra pública, que não oferece soluções por
com 14 anos, já tinha tomado pau na 2ª, meios de políticas que contemplem a juven-
e na 5ª série eu tomei dois. Minha lem- tude, gerando privatização e despolitização
brança da escola é péssima, eu nem gosto das condições de vida. Além da falta de
muito de tocar nesse assunto não. Por políticas nas áreas básicas de emprego ou
que assim, quando eu era novo eu era saúde, se defrontam com a falta de acesso
muito complicado, ocê entendeu? Eu con- aos bens culturais. Todos afirmam não fre-
testava muito, eu tenho um senso crítico qüentar cinema com a regularidade com que
muito grande comigo mesmo. Então a es- gostariam de fazê-lo; grande parte nunca
cola nunca aguçou esse lado meu, enten- freqüentou um teatro; todos gostariam de
deu? A professora falava lá, eu não gosta- fazer algum curso ligado à música, entre
va desses papos lá... eu sempre contestan- outros exemplos, e não o fazem por falta de
do o que ela falava. Sempre batendo de recursos financeiros.
contra, pelo menos o que eu achava. Ig- Para aqueles que se encontram de-
norando, também, o lado da ignorância sempregados, o cotidiano se mostra vazio.
minha. Eu queria mais era brincar, e sem- Andando pelos bairros de periferia nos dias
pre caía na turma dos mais bagunceiros. de semana, é possível ver dezenas de jovens
Ah, sei lá, escola pra mim era um saco. pelas ruas e calçadas, conversando em gru-
Resumindo, era um saco mesmo, era mui- pos ou simplesmente sentados, passando o
ta pouca coisa de escola que eu gostava dia sem ter o que fazer, sem acesso a equi-
mesmo... (João, 21 anos, rapper) pamentos sociais, como centros culturais ou
mesmo praças públicas, sem espaços e tem-
A construção de auto-imagens, como po que os estimulem, que ampliem as suas
a de “mau aluno”, ou as reprovações são al- potencialidades. Não têm outra alternativa a
guns dos mecanismos internos à organiza- não ser levar uma vida empobrecida não só
ção escolar que terminam por levá-los à de recursos materiais, mas, principalmente,
exclusão. A forma como muitos deles elabo- de recursos simbólicos que os capacitem a
ram a saída da escola é marcada pela culpa enfrentar as transformações pelas quais a
e pelo arrependimento: consideram-se os sociedade vem passando. Talvez esteja aí
únicos responsáveis pela falta de qualifica- uma das principais razões que levam os jo-
ção na qual se encontram atualmente. Não vens pobres a se envolverem com as drogas
levam em conta os mecanismos sociais per- e a marginalidade. Para os jovens ligados
versos que interferiram nas suas escolhas, aos grupos musicais, existe pelo menos o
com um sentimento de culpa que tende a sonho de se tornarem cantores, gravar, fazer
minar a auto-estima. sucesso. Um sonho que, independentemen-
Dessa forma, as experiências escola- te das possibilidades da sua realização, dá
res desses jovens, mesmo apresentando situ- um sentido ao cotidiano deles.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 123
Nesse contexto, as famílias se vêem to de uma nova desigualdade social: aquela
cada vez mais responsabilizadas por garantir a que implica o esgotamento das possibilidades
reprodução dos seus membros, não contando de mobilidade social para a maioria da popu-
com quem possa “ajudá-las a se ajudar”. Como lação. Nela, a pobreza mudou de forma, de
lembra Telles (1992, p. 89), âmbito e de conseqüências. Se para as gerações
anteriores estava posta, mesmo que remota-
a centralidade da família pode ser vista mente, a perspectiva de mobilidade por meio
como registro de uma sociedade na qual a da escola e/ou do trabalho, para os jovens de
chamada questão social foi equacionada nas hoje essa alternativa não mais se apresenta.
formas de uma pobreza colonizada, Nesse sentido se instaura o quadro da crise4 :
despolitizada e privatizada nas suas formas os velhos modelos nos quais as instituições ti-
de manifestação. nham um lugar socialmente definido já não
correspondem à realidade. O trabalho não ofe-
Nã o é sem razão que para a grande rece mais um tipo de regulação da sociedade,
maioria desses jovens a família ocupa um lu- a escola não cumpre a função de moralização
gar central: as relações que estabelecem, a e mobilidade social, e novos modelos ainda
qualidade das trocas, os conflitos e os arran- não estão delineados. O que antes se caracte-
jos existentes para garantir a sobrevivência são rizava como possibilidade de passagem do
dimensões que marcam a vida de cada um, momento da exclusão para o momento da in-
constituindo-se um filtro por meio do qual clusão, hoje, para parcelas de jovens pobres,
traduzem o mundo social, significando um está se transformando em meio de vida.
espaço de experiências estruturantes. Nesse Vivemos no Brasil uma situação para-
sentido, a família ainda é uma das poucas ins- doxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo uma
tituições do mundo adulto com a qual esses modernização cultural, consolidando uma so-
jovens podem contar. ciedade de consumo, ampliando o mercado de
Uma primeira tendência seria caracteri- bens materiais e simbólicos, mas que não é
zar esses jovens como excluídos. Mas tanto Castel acompanhada de uma modernização social.
(1995) quanto Martins (1997) nos advertem so- Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo que
bre a imprecisão desse conceito, criticando cer- de forma restrita e desigual, em circuitos de
to fetichismo da idéia da exclusão que tende a informações, por meio dos diferentes veículos
suprimir as mediações existentes entre a econo- da mídia, e sofrem o apelo da cultura de con-
mia e outros níveis e dimensões da realidade so- sumo, estimulando sonhos e fantasias, além
cial. Para Martins (1997, p. 20), o modelo dos mais variados modelos e valores de huma-
socioeconômico brasileiro implementa nidade. A esfera do consumo cultural torna-se
um momento importante para as trocas soci-
uma proposital inclusão precária e instável, ais, propiciando o acesso aos estilos, por exem-
marginal. São políticas de inclusão de pes- plo. No caso dos jovens pesquisados, foi como
soas nos processos econômicos, na produção consumidores culturais de músicas, CDs, shows
e circulação de bens e serviços, estritamente d e rap e funk que eles puderam se transformar
em termos daquilo que é racionalmente em produtores e, nessa experiência, ressigni-
conveniente e necessário à mais eficiente re- ficar a sua trajetória, criando formas próprias
produção do capital. de ser jovem.

Assim, é mais esclarecedor caracterizá- 4. A noção de crise é utilizada não no sentido de ruptura, de caos,
mas de mutações e recomposições profundas nas relações sociais,
los como jovens pobres, vivenciando formas nas quais se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadas
frágeis e insuficientes de inclusão num contex- as novas relações, como sugere Melucci (1994).

124 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


Mas se há uma ampliação de possibi- por intermédio dos grupos culturais existentes,
lidades, há uma restrição ao seu acesso, sen- sucedendo-se uma lista considerável de movi-
do uma das faces perversas da nova desigual- mentos e tendências, umas mais passageiras,
dade. Os jovens pobres se vêem, assim, priva- outras ainda persistentes, envolvendo jovens de
dos da escola, do emprego, acompanhados da diferentes camadas sociais, com diferentes pro-
limitação de meios para a participação efetiva jetos, níveis diferenciados de envolvimento,
no mercado de consumo, da limitação das for- mas tendo em comum uma proposta de
mas de lazer, da limitação dos direitos de estilização6 e a eleição de determinado ritmo
vivenciar a própria juventude e, o que é mais musical. São os punks nas suas diversas varia-
sério, vêem-se privados da esperança. ções, como o trash, o hardcore, o anarco-punk.
É nesse contexto que temos de entender São os darks, o heavy metal, o reggae. É nes-
os significados que adquirem para esses jovens a sa esteira que podemos situar o hip hop e o
experiência nos grupos musicais, sejam de rap ou funk.
funk. Esses dois estilos possuem uma mesma
origem – a música negra americana –, que in-
Juventude e música: o rap e o corporou a sonoridade africana, baseada no
funk ritmo e na tradição orais. Eles são herdeiros
diretos do soul que, depois de ser a trilha so-
Em outro artigo,5 procurei discutir a nora dos movimentos civis americanos da dé-
importância da música para os jovens, ressal- cada de 1960 e um símbolo da consciência
tando que a relação entre a música e a juven- negra, perdeu essas características revolucioná-
tude é uma construção histórica, iniciada prin- rias com a sua massificação. O funk radicalizou
cipalmente a partir dos anos 1950 com o j a z z. o s o u l, empregando ritmos mais marcados e
Mas foi a partir da década de 1970 que essa arranjos mais agressivos, mas o funk também
relação adquiriu maior visibilidade, tanto pela sofreu um processo de comercialização, com a
expansão quanto pela diversificação de estilos, remoção de sua base cultural, tornando-se
além de os jovens se posicionarem mais dire- uma música mais digerível do grande público.
tamente como produtores musicais, e não ape- O rap surgiu, nesse período, como mais
nas como fruidores. Essa mudança foi resulta- uma reação da tradição black. Ele surge junto
do de uma série de fatores, dentre eles da a outras linguagens artísticas, como a das ar-
popularização da aparelhagem eletrônica e tes plásticas, a do grafite, da dança – o break
mesmo do estímulo do movimento punk, com – e da discotecagem – o DJ. Juntas tornaram-
o seu lema do it yourself – “faça sua música, se os pilares da cultura hip hop, fazendo da
o seu estilo, não se acomode na postura do rua o espaço privilegiado da expressão cultu-
espectador vazio”– apontando uma forma pos- ral dos jovens pobres. O rap, palavra formada
sível de produzir arte no contexto da cultura pelas iniciais da expressão rhythm and poetry
de massas. (ritmo e poesia), tem como fonte de produção
É também dessa mesma época uma a apropriação musical, sendo a música com-
grande diversificação social da juventude urba-
na, com a crescente inserção dos jovens pobres 5.Ver Dayrell (1999).
no mercado de trabalho, gerando a ampliação 6.Estou entendendo “estilo” como uma manifestação simbólica das
culturas juvenis, expressa em um conjunto mais ou menos coerente
do consumo juvenil, principalmente na moda de elementos materiais e imateriais, que os jovens consideram re-
e no lazer, e criando espaços próprios de diver- presentativos da sua identidade individual e coletiva. Na construção
são nas periferias dos grandes centros, como de um estilo, os jovens escolhem determinado gênero musical que
consomem, criam um tipo de visual e espaços próprios de diversão e
os bailes e sons. Desde então, a visibilidade so- atuação. Assim o estilo pressupõe o cruzamento dos campos do lazer,
cial dos jovens vem se dando principalmente do consumo, da mídia e da criação cultural (Dayrell,1999; 2001).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 125
posta pela seleção e combinação de partes de sentidos, as formas de sociabilidade possuem
faixas já gravadas, a fim de produzir uma nova especificidades, assim como os rituais que
música. “Mixando”7 os mais variados estilos da constituem cada um desses estilos, ganhando
black music, o rap cria um som próprio, pesa- significados próprios para os jovens que deles
do e arrastado, reduzido ao mínimo, no qual participam. É o que veremos a seguir na des-
são utilizados apenas bateria, scratch8 e v o z . crição dos grupos de rap e duplas de funk em
Mais tarde, essa técnica seria enriquecida com Belo Horizonte. O scratch consiste na obten-
o surgimento do sampler. Desde então, o r a p ção de sons, girando manualmente o disco sob
aparece como um gênero musical que articula a agulha em sentido contrário, produzindo
a tradição ancestral africana com a moderna efeitos sonoros próprios.
tecnologia, produzindo um discurso de denún-
cia da injustiça e da opressão a partir do seu Os jovens e o rap
enraizamento nos guetos negros urbanos.9
No Brasil, a difusão do funk e do hip O r a p começou a d i fundir-se em Belo
hop remonta aos anos 1970, quando da pro- Horizonte a partir do final dos anos 1980.
liferação dos chamados “bailes black” nas pe- Desde então, veio se construindo uma cena rap
riferias dos grandes centros urbanos. Embala- que, mesmo ocupando um espaço marginal no
dos pela black music americana, principalmen- circuito cultural, se mantém viva e atuante,
t e o soul e o funk, milhares de jovens encon- apesar das oscilações entre momentos de
traram nos bailes de finais de semana uma al- latência e de maior visibilidade. Ao mesmo
ternativa de lazer até então inexistente. Desen- tempo, existe uma parte ainda mais submersa,
volveram-se nos mesmos espaços, por jovens formada por um sem-número de jovens que se
de uma mesma origem social: pobres e negros, reúnem e formam seus grupos nos bairros por
na sua maioria. Tanto a música r a p e funk simples diversão, na maioria das vezes com
quanto o seu processo de produção continu- uma curta trajetória, sem se tornarem conhe-
am apresentando algumas semelhanças, fiéis à cidos no próprio meio hip hop. Durante todo
sua origem, tendo como base as batidas, a uti- esse tempo existiu e existe ainda uma
lização de aparelhagem eletrônica e a prática rotatividade de grupos muito grande, vários se
da apropriação musical. Os dois estilos são desfazendo ou mesmo trocando de integran-
mais democráticos, não tendo como pré-requi- tes, e muito poucos permanecendo do início
sito a utilização de instrumentos musicais, o do movimento na cidade.
domínio de habilidades técnicas musicais nem Os três grupos pesquisados expressam
mesmo maiores custos com a montagem e a essa realidade:
organização dos locais para exibição pública. • O grupo Processo Hip Hop – F o r -
Para os jovens da periferia que, geralmente, mou-se no início de 1998 e teve uma vida re-
não têm acesso a uma formação musical, o rap lativamente curta, extinguindo-se no final de
e o funk são dos poucos estilos que lhes per- 1999. Era formado por três jovens, com idade
mitem realizar-se como produtores musicais e variando de 17 a 22 anos, sendo dois negros
artistas. Não é sem razão que grupos de rap e
7.A mixagem é a mistura de músicas feita pelo DJ, que utiliza o
duplas de MCs10 tendem a cantar apenas suas aparelhomixer.
próprias músicas, sendo raro que cantem mú- 8. O s c r a t c hconsiste na obtenção de sons girando manualmente o
sicas de outros grupos. disco sob a agulha em sentido contrário, produzindo efeitos sonoros
próprios.
Mas, no processo da sua elaboração e 9.Para maiores detalhes da história dohip hop;ver, dentre outros,
reelaboração nos grandes centros urbanos bra- Dayrell (2001), Sposito (1993), Silva (1998) e Tella (2000). Para uma
h i s t ó r i a d o f u n k, ver Vianna (1987) e Herschmann (1997, 2000).
s i l e i r o s , o rap e o funk foram assumindo carac- 10. O MC é o mestre de cerimônia, como se autodenominam os
terísticas próprias. As letras expressam outros cantores def u n k, quase sempre formados por duplas.

126 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


e um branco, todos moradores do Aglomera- jovens revelam que em vários momentos ocor-
do da Serra, região centro-sul da cidade. É um reram dúvidas e crises, quando se perguntavam
exemplo de grupos que se formam e se desfa- a si mesmos se o caminho era realmente o da
zem sem ganhar maior projeção na cena r a p, música. Alguns se afastaram para depois
não tendo CD nem fita demo gravados. retornar; outros, como o Processo Hip Hop, s e
• O grupo Máscara Negra – É um gru- dissolveram. Mostram, assim, que a trajetória
po formado, desde 1996, por três integrantes, no estilo não está separada da vida, com as
todos negros, sendo dois com 20 anos e um suas dúvidas e perplexidades, quando depara-
com 27 anos. Tem projeção na cena r a p, t e n - mos sempre com a necessidade de escolher.
do sido escolhido o melhor grupo de r a p em Outro aspecto que ganha importância
1997. O grupo não tem nenhum CD gravado, na vida de cada um é a experiência, comum a
apenas fita demo. todos, como produtores culturais. Como já ob-
• O grupo Raiz Negra – Formou-se no servamos, todos só cantam suas próprias mú-
início dos anos 1990, sendo o mais antigo dos sicas, sendo muito raro cantarem músicas de
grupos pesquisados e um dos poucos desse pe- outros grupos, o que envolve um exercício da
ríodo que ainda permanecem ativos. É forma- criatividade. Geralmente o processo de produ-
do por quatro integrantes, três deles negros, ção das músicas é individual e coletivo, sendo
com idade variando de 24 a 28 anos. Dentre um momento rico de trocas entre os integran-
os grupos pesquisados, é o que apresenta o tes do grupo quando todos discutem, opinam
perfil mais profissional, possuindo um CD gra- e interferem na criação. Todos são autodida-
v ado. tas, mas expressam o desejo de estudar músi-
A experiência desses jovens nos grupos ca e algum instrumento, condição essencial
musicais revela múltiplos significados, interfe- para a profissionalização.
rindo diretamente na forma como se constro- Em cada grupo sempre existe um que
em e são construídos como sujeitos sociais e tende a compor as “rimas”, através das quais
como elaboram determinada identidade indivi- desenvolvem uma interpretação poética de si
dual e coletiva. mesmos e da condição social em que vivem.
Um primeiro aspecto a ser salientado é Para muitos deles, compor a letra é um mo-
a dimensão da escolha. Recuperando a trajetó- mento de extravasar, de traduzir em forma de
ria dos grupos, constatamos inicialmente que poesia os sentimentos que vivenciam:
todos os jovens aderem ao estilo como consu-
midores do gênero musical. A passagem para Escrever as letras é tipo assim, uma muleta,
a condição de produtores significou para todos quando eu tô sentindo muita melancolia,
um processo de envolvimento gradativo. É quando eu tô sentindo muitas vezes só, eu
possível perceber alguns fatores comuns que sento e escrevo... Eu sempre escrevo quando
explicam a escolha que realizam: o lugar so- eu tô muito melancólico... (Nilson, 25 anos)
cial que ocupam e o capital cultural a que têm
acesso, os poucos pré-requisitos do rap para a Nessa produção poética, a estrutura
produção cultural, a identidade com o ritmo e das letras, a fidelidade ao território e a
a temática abordada pelo estilo, dentre outros. explicitação de uma temática social são ele-
Significa dizer que a escolha e a adesão ao mentos identificadores do r a p em qualquer
estilo são frutos de uma complexa trama na lugar, seja no Brasil ou nos Estados Unidos. Ao
qual estão presentes os determinantes sociais, mesmo tempo, o conteúdo poético tende a
mas também a expressão da subjetividade. refletir o lugar social concreto onde cada jo-
Mas o exercício da escolha não se dá vem se situa e a forma como elabora suas
apenas no momento da adesão ao estilo. Os vivências, numa postura de denúncia das

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 127
condições em que vive: a violência, as drogas, Um momento muito significativo para
o crime, a falta de perspectivas, quando so- todos os grupos são as apresentações que re-
breviver é o fio da navalha. Mas também can- alizam. Para muitos, é no palco que se sentem
tam a amizade, o espaço onde moram, o de- verdadeiramente rappers. A freqüência e o ca-
sejo de um “mundo perfeito”, a paz. Como ráter dos shows são diferentes entre os grupos:
diz um deles, eu sou um mero observador do enquanto o Processo Hip Hop tem um núme-
comportamento do ser humano... num tenho ro limitado de apresentações e sempre em
estudo, num sou nada, mas eu fico observan- eventos no próprio bairro, o Raiz Negra e o
do o comportamento das pessoas. Nesse sen- Máscara Negra se apresentam com mais regu-
t i d o , o r a p pode ser visto como uma crônica laridade tanto em eventos quanto em festas
da realidade da periferia. promovidas em danceterias no centro da cida-
Eles atribuem a si mesmos o papel de de. Todos os jovens reforçam a importância
“porta-vozes” da periferia, um dos elementos dos shows na vida de cada um. Alguns ressal-
da identidade do estilo. Alguns deles se atri- tam a emoção e o prazer – a maior adrenalina
buem a “missão” de problematizar a realida- – de estarem no palco mostrando o resultado
de em que vivem através das músicas que da sua produção. Outros ressaltam a auto-afir-
cantam, com a pretensão de “conscientizar os mação do que os shows representam, sendo
caras” dos problemas e riscos que o meio uma forma de resgatar a própria dignidade:
social lhes impõe:
Trabalhava de faxina e o maior orgulho meu
O que a gente passa com a música é um era estar lá fazendo faxina e quando eu
pouquinho de consciência, de amor pró- chegava no palco eu era um rapper, enten-
prio, de auto-estima... a gente quer levar o deu? Eu tenho pouco estudo, nunca tive um
nosso povo pra frente, a minha vontade é emprego bom, mas eu tenho uma cabeça
essa, de revolucionar, abrir a cabeça de um pra revolucionar, eu tenho dignidade porque
e de outro para eles terem consciência e eu chego em casa e sou um rapper, tenho
saber o que está fazendo, aprender o direi- uma missão... (Pedro, Máscara Negra)
to deles, nem que for um pouquinho, en-
tendeu? (Pedro, 26 anos, rapper) Outros ainda enfatizam a importância
de serem reconhecidos no próprio meio em que
Para muitos desses jovens, o rap t o r - vivem. Podemos dizer que, para esses jovens,
na-se uma forma de intervenção social, mas aderir ao estilo possibilitou-lhes a abertura de
em outros moldes. Por meio da linguagem novos espaços, onde eles passaram a se colo-
poética, do corpo, do lazer propõem uma pe- car na cena pública em outros termos, como
dagogia própria, que tem como um dos ins- artistas, como criadores, como sujeitos de um
trumentos a polêmica. Talvez esteja aí uma projeto. Nesse sentido, o rap é um meio de que
das dificuldades de estabelecerem um diálo- se servem para articular uma auto-imagem po-
go com as organizações políticas do mundo sitiva, uma forma de se afirmarem como “al-
adulto, como sindicatos, partidos e até mes- guém” numa sociedade que massifica e os
mo o movimento negro, diante dos quais se transforma em anônimos. Ao mesmo tempo,
mostram desconfiados, mantendo distancia- através das letras das músicas, do corpo e do
mento. Ao mesmo tempo, os grupos Máscara visual que valorizam a estética negra, na afir-
Negra e Raiz Negra desenvolvem esporadica- mação positiva do espaço da per i f e r i a , o rap
mente algumas atividades sociais, como ofi- possibilita a muitos desses jovens reelaborar a
cinas de hip hop em escolas públicas e festas experiência social imediata em termos cultu-
beneficentes. rais, traduzida em forma de autoconsciência

128 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


diante do processo de segregação espacial e tinuidade dos grupos e das relações pode ser
dos preconceitos sociais e raciais que se acir- vista como uma característica da própria da
ram em Belo Horizonte, possibilitando a cons- condição juvenil, e não tanto do estilo em si.
trução de uma identidade positiva como po- Mas o grupo é sempre uma referência
bres e negros. muito forte, aparecendo como um espaço pri-
Por outro lado, podemos constatar que vilegiado de investimento emocional e de cons-
o estilo proporciona algumas circunstâncias trução de relações de confiança, numa comple-
centrais na construção de uma identidade ju- xa trama de conflitos e acordos, em um equi-
venil: a música e um quadro de referências líbrio instável. Mas em todos eles parece que
comuns por meios dos quais fazem uma leitura a individualidade dos seus membros é assegu-
da realidade; as práticas coletivas, tanto na rada, fazendo com que as relações sejam uma
produção musical quanto na fruição do lazer; contínua negociação com as diferenças e os
além de um conjunto de ícones que os distin- desejos individuais. Essa característica, percep-
guem do mundo adulto. tível em todos os grupos, parece mostrar a
Para grande parte deles, a adesão ao necessidade que os jovens têm de garantir es-
estilo se deu na adolescência, coincidindo com paços, tempos e projetos individuais no cole-
um momento no qual procuravam romper com tivo. Podemos dizer, com Torti (1994, p. 62),
tudo aquilo que os prendia ao mundo infan- que sinalizam para novas formas da sociabili-
til, buscando outros referenciais para a cons- dade na sociedade contemporânea, que “indu-
trução da identidade fora da família, onde o zem dinâmicas recíprocas de distanciamento e
grupo de amigos passa a cumprir um papel aproximação. Nós nos aproximamos para de-
fundamental. Desde então, o r a p funcionou pois nos distanciarmos num jogo entre neces-
como uma referência para a escolha dos ami- sidades de agregação e exigências de espaços
gos, bem como das formas de ocupação do de individuação...”.
tempo livre. Inicialmente centrada no bairro, o Mas as relações não se reduzem ao
envolvimento com o estilo e a participação nos grupo, estendendo-se a uma rede de
eventos proporcionaram a quase todos uma “colegagem”. Encontram-se nos momentos de
ampliação da rede de relações, estimulando-os lazer, nas festas e nos eventos. Mesmo não
a se apropriarem da cidade. estabelecendo relações mais próximas, existe
As redes de relações construídas em uma solidariedade própria para com quem se
torno do rap apresentam densidades distintas, sente parte de um mesmo movimento. Os pro-
o que leva os jovens a distinguir entre gramas de lazer são um pouco desiguais no
“colegagem” e amizade. Aquela é mais fluida, ritmo e na qualidade, dependendo do momen-
e esta é uma relação que traz uma conotação to de vida de cada um. Para aqueles mais no-
familiar, de “irmão”, quase sempre presente nas vos, existe uma procura constante de progra-
relações que se constroem no grupo musical. mas, mobilizados pela diversão e pelo desejo de
Em cada um deles a rotina de encontros en- estarem juntos com a turma de amigos. A
tre os seus integrantes é variável, dependendo centralidade do lazer e dos amigos tende a se
do ritmo dos ensaios e da disponibilidade para transformar com o avanço da idade, dos com-
o lazer de cada um. promissos afetivos com as esposas ou namo-
Uma característica desses grupos é a radas e das responsabilidades que cada um vai
sua rotatividade. Todos narram uma trajetória assumindo, diminuindo a sua intensidade. No
na qual há um contínuo nascer e renascer de geral, os programas mais comuns são a fre-
grupos, fazendo com que o percurso de cres- qüência à casa de amigos, os bares e as festas
cimento e as experiências de agregação sejam d e rap, que lhes abrem as possibilidades de um
muito dinâmicos e singulares. Essa descon- lazer além da sua região, gerando um desloca-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 129
mento que desafia a lógica perversa da metró- processos de difusão cultural no contexto de
pole, que tende a segregá-los nos bairros dis- uma sociedade cada vez mais globalizada. O
tantes da periferia, tornando-se uma forma e s t i l o funk, mas também o estilo rap, como ex-
possível de ocupação da cidade. pressões de uma cultura juvenil, não podem ser
vistos como resultado de uma progressiva
Os jovens e o funk homoge-neização e massificação cultural, que
homologaria a um único registro uma produ-
O funk em Belo Horizonte é herdeiro ção cultural juvenil, independentemente das
direto dos bailes black que se difundiram na condições estruturais concretas nas quais es-
periferia da cidade desde os anos 1970. Até ses jovens estariam inseridos.
o início da década de 1990, os jovens fre- Ao contrário, a realidade dos grupos de
qüentadores dos bailes não se identificavam rap e funk e a história de cada um deles na ci-
ainda como funkeiros, agregando-se em tor- dade apontam para a existência de uma iden-
no da música e no prazer da dança. Nos bai- tidade própria a esses rappers e funkeiros. Uma
les não havia, como não há, uma fidelidade a identidade que é fruto de uma reinterpretação
um estilo musical, convivendo os mais dife- dos sons e ícones associados a esses estilos,
rentes sons eletrônicos, além do rock e até do numa construção em que os sentidos que lhe
pagode. Foi nos meados dessa década que co- são atribuídos expressam não só as condições
meçam a aparecer os “mestres de cerimônias” estruturais nas quais se situam, mas também
(MCs) locais, duplas ou grupos que cantavam o próprio contexto cultural do meio social no
suas músicas, influenciados pelo processo de qual vieram se construindo como sujeitos. Nes-
nacionalização do funk iniciado no Rio de Ja- se sentido, concordamos com Sansone (1997,
neiro. Foi quando começou a se delinear, de p. 171), quando questiona as teses de homo-
f a t o , o funk como estilo, com os jovens se geneização de uma cultura juvenil, mostrando
identificando como funkeiros. A cena funk n a que, “ao lado de uma inquestionável globa-
cidade está presente no circuito cultural for- lização do universo da cultura juvenil, man-
mal, em grandes danceterias e programas em tém-se uma série de aspectos locais, determi-
rádios comerciais, mas também no circuito al- nados por uma história local e contextos es-
ternativo, nos bailes promovidos nos bairros, pecíficos”, fazendo com que o “local”
em quadras cobertas ou em escolas. Isso se reinterprete o “global” de formas diferen-
deve à característica do estilo ser baseada nos ciadas.
bailes, um tipo de lazer que tradicionalmen- O funk será refletido a partir da reali-
te atrai uma massa de jovens, quer se identi- dade de três grupos pesquisados:
fiquem como funkeiros, quer não. • A dupla Flavinho e Maninho – Am-
O funk, na forma como veio sendo bos têm 17 anos, são brancos e moram com os
construído em Belo Horizonte, é uma reelabo- pais. Começaram a cantar juntos no início de
ração do estilo difundido no Rio de Janeiro. Não 1998 e atualmente fazem parte da equipe de
significa, porém, que haja uma imposição line- DJ Vitor, a qual acompanham nas festas pro-
ar da mídia na produção do estilo local. O que movidas quase sempre na região norte da ci-
podemos constatar é um processo por meio do dade. Já participaram de uma coletânea, com
qual os jovens se apropriam do estilo difundi- uma música gravada, além de vários CDs demo.
do pelos meios de comunicação e o reelaboram • A dupla Marcos e Fred – Cantavam
a partir das condições concretas em que vivem, juntos desde 1995, separando-se no final de
dos recursos de que dispõem, excluindo elemen- 1998. Marcos é branco e tem 18 anos; Fred é
tos ou ressignificando práticas. negro e tem 19 anos. Eles são um bom exem-
Essa constatação põe em discussão os plo de centenas de duplas que se formam,

130 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


ganham alguma projeção, mas depois se desfa- juvenis, sendo comum abordarem as relações
zem, desiludidas com as perspectivas profissio- afetivas, a descrição de bailes e sua animação
nais abertas pelo mercado musical. Por dois ou temas jocosos de situações ocorridas na ci-
anos fizeram parte da equipe Funk Music, do DJ dade, além da exaltação das diferentes galeras.
Vitor, fazendo shows em Belo Horizonte, no Outras características presentes em várias letras
interior de Minas Gerais e no Espírito Santo. são a exaltação da paz e a crítica às brigas,
Chegaram a ter suas músicas gravadas em dois numa resposta possível às situações de violên-
CDs coletânea, que tiveram certa repercussão no cia que ocorriam em alguns bailes.11
meio funk em BH. Os temas expressam aspectos da
• Os Cazuza – O grupo formou-se em vivência juvenil, não deixando de ser uma for-
1996, contando com quatro integrantes, todos ma de refletirem sobre si mesmos e resgatarem
negros, com idade variando entre 19 e 21 anos, o prazer e o humor que são tão negados em um
sendo dois deles casados. Gravaram uma músi- cotidiano permeado pela lógica instrumental
ca em um CD coletânea, e na época se dividi- dominante, o que é coerente com o sentido que
am entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, ten- atribuem a si mesmos como MCs – serem os
tando a gravação de um CD e a contratação por mensageiros da alegria, promovendo a agitação
alguma equipe carioca. da galera.
Para esses jovens, aderir ao funk signi-
fica uma escolha, condicionada pela própria O MC tem a obrigação de levantar a galera,
condição juvenil e o campo de possibilidades incentivar mesmo, procurar passar uma paz,
com o quais se deparam. Os fatores são seme- um agito, um ânimo pro pessoal pular mes-
lhantes aos do rap: a atração pelo ritmo e pela mo, balançar, soltar os cachorros. Eu acho
dança, a inexistência de maiores pré-requisitos que o MC se expressa num modo de progre-
para a produção musical e a influência da mídia. dir a festa, fazer a festa encaminhar...
Mas o que parece ter influenciado de fato na (Flavinho,17 anos)
decisão dos jovens em se tornarem MCs foi a
identificação com o clima de alegria caracterís- Se o rappers se vêem como porta-vozes
tico dos bailes, além de se destacarem diante da periferia, assumindo a dimensão da denún-
dos seus pares e, principalmente, das meninas. cia, os MCs se percebem como aqueles que
Assim, a escolha pelo funk expressa determinada contri-buem para criar a alegria da festa. As-
forma de vivenciar a condição juvenil, com ên- sumem, assim, dimensões particulares de uma
fase na diversão e na alegria que os bailes re- mesma realidade, pontuando questões cruciais
presentam. vividas pelos jovens.
Da mesma forma como no r a p, os MCs Para esses jovens, ser um MC é uma ex-
se colocam como produtores culturais, mas pou- periência muito marcante. Assim como os
co interferem na produção das bases musicais, rappers, para os jovens funkeiros o estar no pal-
uma tarefa dos DJs e de seus pequenos estú- co é fonte de emoção e prazer:
dios espalhados pela periferia. A música funk,
diferentemente da música r a p, não tem muito
sentido em si mesma, cumprindo o seu papel 11. A pesquisa foi concluída antes da meteórica ascensão dof u n k
em 2000, não sendo pois objeto de análise desse trabalho. Mas é
efetivo como meio de animação dos bailes. As- necessário pontuar a estigmatização promovida pela mídia, numa
sim, a produção musical é caracterizada pela negação do estilo. As criticas sobre a qualidade das letras, o machismo,
a erotização pública exagerada, etc., se são até certo ponto pertinen-
transitoriedade, por ser descartável, executada tes, não levam em conta que os jovens expõem na cena pública as
por um período relativamente curto, sendo logo contradições do tecido social. Eles expressam, nas músicas e na dan-
ça, o caldo de cultura em que estão inseridos, fruto das condições em
substituída por outra. Os temas abordados são que vivem e do acesso que possuem aos bens simbólicos. Mais do
diretamente ligados ao universo das vivências que negar, é preciso aprofundar-se nos seus múltiplos significados.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 131
Nó, cara, é bom demais, né, ver aquele povo dançar e, principalmente, a oportunidade de se
lá, a gente entrar e a massa ir ao delírio! mostrarem como MCs. Podemos dizer que o
Depois gritando: “Marcos e Fred! Marcos e baile funk representa, antes de tudo, a celebra-
Fred!” isso e aquilo, é gostoso demais... ção da amizade, o espaço por excelência para
quando a gente sobe a gente treme, vem viverem dimensões constitutivas da condição
uma adrenalina! Dá uma vontade de juvenil: a explosão emocional da alegria, a
esguelar, sair gritando, pular lá em baixo, identificação coletiva, o sentir-se em grupo.
curtir com o pessoal mesmo... (Fred, 18 Vianna (1987, p. 58) reforça essa dimensão ao
anos) afirmar que “as pessoas freqüentam o baile
não por um tipo de música, mas principalmen-
Participar de shows e ter suas músicas te pelo ambiente, isto é, as outras pessoas, os
difundidas nas rádios é o desejo mais imedia- amigos que se encontram e se divertem juntos,
to desses jovens. Essas são formas de partici- a alegria de viver em bando”. Dessa forma, o
pação que os destacam da multidão anônima, b a i l e funk constitui um espaço de sociabilida-
permitindo-lhes que se sintam alguém, com de, uma massa composta por grupos de ami-
reflexos na auto-imagem. Ao mesmo tempo, gos e galeras. Pode ser visto como uma opção
proporciona-lhes descobrir e desenvolver as de agrupamento metropolitano, numa reação
próprias potencialidades, como compor e can- possível à massificação da sociedade contem-
tar, tornando-os sujeitos criativos. porânea.
Como jovens, o grupo de amigos, ou a Mas, afinal de contas, o que é ser
galera, constitui uma referência importante. E funkeiro? A própria definição é fluida, como
para esses MCs o grupo de amigos mais pró- diz o Marcos:
ximo se articula em torno do funk. Os compa-
nheiros de dupla tendem a se tornar os ami- O funk é um modo de pensar, d’ocê estar de
gos mais próximos, sendo com eles que se en- bem com a vida... mas não é uma idolatria,
contram com mais freqüência, conversam so- um tipo de religião como o r a p, é mais um
bre os problemas ou casos afetivos, numa re- modo d’ocê estar solto com a vida, não num
lação mais íntima. Mas, assim como no r a p, modo de não ter responsabilidade, mas
existe uma mobilidade muito grande de gru- d’ocê ser alegre...
pos e duplas, expressão de um momento de
experimentações, típico da condição juvenil. Esse depoimento parece esclarecer os
Também o funk possibilitou a esses jovens a contornos da identidade desses jovens com o
ampliação da rede de relações. Por meio dos funk. S e r funkeiro não implica um conjunto de
bailes e shows, estabeleceram uma rede de re- valores e comportamentos comuns, como uma
lações amplas – os conhecidos – que não pos- “religião”, mas constitui uma forma determi-
sui uma estrutura de coesão tão forte entre nada de vivenciar as demandas dessa fase da
aqueles que dela participam: reconhecem-se no vida. A identidade do funk é a oferecida pelo
funk, compartilham situações lúdicas, encon- estilo de possibilidades de viver e expressar as
tram-se nos bailes, sentindo-se parte de uma pulsões, os desejos e as necessidades que ca-
rede simbólica (Arce, 1999). racterizam a condição juvenil. Tanto é que não
Para esses jovens, o estilo se constrói existe nenhuma exigência de coerência entre o
em torno dos bailes. Este é o elemento central comportamento pessoal e o comportamento
a partir do qual se articula a identidade do como um MC, o que vimos existir entre os jo-
funk. É neles que podem expressar os outros vens que aderem ao r a p. Outro elemento é a
elementos: o encontro com os amigos, o gos- questão da cor e da origem social, quando
to pela música funk, um determinado jeito de parecem não estabelecer relações entre o funk

132 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


e a identidade étnica ou como pobres. Enfim, Nesse contexto o rap e o funk cumpri-
podemos dizer que, diferentemente do r a p, o ram e vêm cumprindo um papel significati v o
funk não se coloca como espaço de constru- na vida desses jovens. Um primeiro aspecto diz
ção de uma identidade como negros e pobres. respeito ao exercício da criatividade. Os estilos
Essas considerações indicam que a rap e funk possibilitam que esses jovens se in-
identidade que esses jovens constroem como troduzam na cena pública para além da figu-
funkeiros é fluida e efêmera, uma imbricação ra do espectador passivo, colocando-se como
com elementos simbólicos apropriados da cul- criadores ativos, contra todos os limites de um
tura popular, da indústria cultural em geral, contexto social que lhes nega a condição de
como manifestação cultural híbrida. Essa iden- criadores. Dessa forma, a experiência nos gru-
tidade apresenta-se como uma fronteira pro- pos musicais assume um valor em si, como
visória e móvel, operando a partir de múltiplos exercício das potencialidades humanas. A mú-
registros na construção mais ampla de uma sica que criam, os shows que fazem, os even-
identidade desses sujeitos como jovens. Pode- tos culturais dos quais participam aparecem
mos dizer que o funk é parte de determinado como forma de afirmação pessoal, além do
estilo de vida juvenil, um marco identitário que reconhecimento no meio em que vivem, con-
contribui para que esses jovens possam tribuindo para o reforço da auto-estima. Ao
vivenciar e se afirmar como sujeitos numa de- mesmo tempo, através da produção cultural
terminada fase da vida. que realizam, principalmente o rap e seu cará-
ter de denúncia, colocam em pauta no debate
Os significados dos grupos público o lugar social do pobre e da pobreza.
musicais na socialização dos Mas cada um dos estilos possui a sua
jovens especificidade. A melhor forma de caracterizá-
las é pelo duplo sentido que a palavra “diver-
As experiências desses jovens rappers e são” oferece. Em um deles temos a diversão
funkeiros nos levam a constatar que eles vie- como ato ou efeito de distrair ou distra i r - s e :
ram se construindo e sendo construídos como falta de atenção, abstração, irreflexão, esque-
sujeitos sociais numa complexidade de espaços cimento, divertimento (do latim, distractione) .
e tempos, estabelecendo múltiplas relações a É o sentido do funk, no qual predominam as
partir do seu meio social, mas com uma refe- emoções, mediadas pela música. Podemos ver
rência central nos grupos musicais e na soci- nele a expressão do direito legítimo dos jovens
abilidade que produzem. Nesse processo, é evi- à alegria, à fruição, ao prazer. Por outro lado,
dente como eles encontram poucos espaços nas a diversão surge como um ato ou efeito de
instituições do mundo adulto para construir re- divergir: mudança de direção, desvio (do latim,
ferências e valores por meio dos quais possam se diversione). É o sentido do rap. Mais do que o
construir com identidades positivas, colocar-se na funk, o e s t i l o rap estimula o jovem a refletir
cena pública como sujeitos, como cidadãos que sobre si mesmo, sobre seu lugar social, contribu-
são. A sociedade não lhes oferece muitas pers- indo para a ressignificação das identidades do
pectivas. O mundo do trabalho lhes fecha as por- jovem como pobre e negro. Ao mesmo tempo, ele
tas, a escola se mostra distante, não conseguin- cria uma forma própria de o jovem intervir na
do entender nem responder às demandas que sociedade, por meio das suas práticas culturais.
lhes são colocadas. Apesar de motivados e envol- Mas não significa necessariamente que se colo-
vidos com a música, não encontram estímulos e que como uma forma de resistência ou mesmo
espaços para aprimorar o potencial criativo que como uma expressão política de oposição de
demonstram, não existindo em Belo Horizonte classe. Prefiro ressaltar o seu sentido formativo,
uma política cultural que os contemple. detectado numa pedagogia que parece gestar

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 133
entre eles. Uma pedagogia da palavra, emitida condição juvenil. A convivência continuada no
pelas letras, por meio da qual não pretendem grupo ou na dupla possibilitou a criação de re-
impor uma compreensão da realidade, mas “fa- lações de confiança e a aprendizagem de rela-
zer o cara pensar”, como nos disseram vários ções coletivas, servindo também de espelho
deles. Uma pedagogia na qual há o respeito para a construção de identidades individuais.
pela diversidade, quando propõem que o ou- Todos enfatizam que a adesão aos es-
tro, na sua condição de indivíduo, pense por tilos gerou uma ampliação dos circuitos e re-
si mesmo e tire suas próprias conclusões. Essa des de trocas, evidenciando o r a p e o funk
postura é coerente com as relações que esta- como produtores de sociabilidades. A dinâmi-
belecem nos grupos, em que o coletivo não ca das relações existentes, o exercício da razão
subsume o individual, o “nós” não abdica da comunicativa, a existência da confiança, a
condição do “eu”. gratuidade das relações, sem outro sentido que
Apesar dessas especificidades, podemos não a própria relação, são aspectos que apon-
constatar significados comuns aos dois estilos. tam para a centralidade da sociabilidade no
Um deles diz respeito à dimensão da escolha. processo de construção social desses jovens.
O r a p e o funk se colocam como um dos pou- Nesse sentido, os estilos podem ser vistos
cos meios pelos quais os jovens puderam exer- como respostas possíveis à despersonalização e
cer o direito às escolhas, elaborando modos de à fragmentação do sistema social, possibilitan-
vida distintos e ampliando o leque das expe- do-lhes relações solidárias e a riqueza da des-
riências vividas. Essa dimensão se torna mais coberta e do encontro com os outros.
importante quando levamos em conta que é o Podemos concluir constatando que o
exercício da escolha, junto com a responsabi- rap e o funk, mesmo com abrangências diferen-
lidade das decisões tomadas, uma das condi- ciadas, significaram uma referência na elabora-
ções para a construção da autonomia. Se a ção e vivência da condição juvenil, contribuin-
escolha e a autonomia são frutos de aprendi- do de alguma forma para dar um sentido à vida
zagens, podemos nos indagar: Quais os espa- de cada um, num contexto onde se vêem rele-
ços que esses jovens encontram no mundo gados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tem-
adulto onde possam exercitar a prática de es- po, o estilo de vida rap e funk possibilitou a
colhas responsáveis, onde possam ir construin- muitos desses jovens uma ampliação significa-
do-se como sujeitos autônomos? tiva do campo de possibilidades, abrindo espa-
Outra dimensão é a possibilidade que ços para sonharem com outras alternativas de
esses estilos proporcionam de vivência da con- vida que não aquelas, restritas, oferecidas pela
dição juvenil. Para a maioria dos jovens sociedade. Querem ser reconhecidos, querem
pesquisados, os estilos funcionaram como um uma visibilidade, querem ser alguém num con-
rito de passagem para a juventude, fornecen- texto que os torna invisíveis, ninguém na mul-
do-lhes elementos simbólicos, expressos na tidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruir
roupa, no visual ou na dança, para que pudes- dela, transformando o espaço urbano em um
sem construir uma identidade juvenil. Desde valor de uso. Enfim, querem ser jovens e cida-
então, passaram a ser uma referência para a es- dãos, com direito a viver plenamente a sua ju-
colha dos amigos, bem como para as formas de ventude. Este parece ser um aspecto central:
ocupação do tempo livre, duas dimensões – o pelos estilos rap e funk, os jovens estão reivin-
grupo de pares e o lazer – constitutivas da dicando o direito à juventude.

134 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude


Referências bibliográficas

ARCE, José Manuel Valenzuela.Vida de barro duro; cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999.

CASTEL, Robert.As armadilhas da exclusão. 1995. (Mimeografado).

CHARLOT, Bernard.Da relação com o saber; elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artemed, 2000.

DAYRELL, JuarezMúltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996.

_____. Juventude, grupos de estilo e identidade.Educação em Revista,Belo Horizonte, n. 30, p. 25-39, dez. 1999.

_____. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte. São Paulo; 2001. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

DUBET, François.Sociologie de l’expérience. Paris: Editions du Seuil, 1994.

_____; MARTUCELLI, Danilo.En la escuela:sociologia de la experiência escolar. Buenos Aires: Losada, 1997.

_____. A socialização e a formação escolar.Lua Nova, São Paulo, n. 40/41, p. 241-266, 1997.

DURKHEIM, Émile.Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1952.

HERSCHMANN, Micael.O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000.

_____. (Org.)Abalando os anos 90: funk e hip hop, globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997

MANNHEIM, K. O problema sociológico das gerações. In: FORACHI, M.Mannheim.São Paulo: Ática, 1982.

MARTINS, José de Souza.Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus,1997.

MELUCCI, A.Passagio d’epoca; il futuro è adesso. Milano: Feltrinelli, 1994.

_____.Il gioco dell’io; il cambiamento di sè in una società global. Milano: Feltrinelli,1996.

POCHMANN, Marcio.Emprego e desemprego no Brasil: as transformações nos anos 90. Campinas: Centro de Estudos Sindicais
e de Economia do Trabalho (CESIT)/Unicamp, 1998. (Mimeografado).

SANSONE, Livio. Funk baiano: uma versão local de um fenômeno global? In: HERSCHMANN, Micael (Org).Abalando os anos 90;
funk e hip hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

SILVA, José Carlos Gomes.Rap na cidade de São Paulo: música, etnicidade e experiência urbana. Campinas; 1998. Tese
(Doutorado) – Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas.

SPOSITO, Marília P. A sociabilidade juvenil e a rua; novos conflitos e ação coletiva na cidade.Tempo Social,São Paulo, v.5, n. 1/
2, p. 161-178, 1993.

_____.Algumas hipóteses sobre as relações entre movimentos sociais, juventude e educação.Texto apresentado na ANPED,
1999 (Mimeografado).

TELLA, Marco Aurélio Paz.Atitude, arte, cultura e autoconhecimento; o rap como voz da periferia. São Paulo; 2000. Dissertação
(Mestrado) – Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

TELLES, Vera da Silva. A experiência da insegurança: trabalho e família nas classes trabalhadoras urbanas em São Paulo.Tempo
Social,São Paulo, v.4. n. 1/2, p. 53-93, 1992.

TORTI, Maria Teresa.L’officina dei sogni;arte e vita nell’underground. Genova: Costa e Nolan, 1994.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002 135
VAN HAETCHT, Anne.A escola à prova da sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1992

VIANNA, Hermano.O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

_____. (Org.)Galeras cariocas; territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997.

Recebido em 25.02.2002
Aprovado em 03.05.2002

Juarez Tarcisio Dayrellé formado em Ciências Sociais pela UFMG. Tem vários artigos publicados além do livroMúltiplos olhares
sobre educação e cultura, pela Editora da UFMG. Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Educação da UFMG.

136 Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude

Você também pode gostar