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Fernando Pessoa - Ortónimo

Fernando Pessoa é, como vimos, um poeta rural sob cuja tutela se reúnem poetas diversos,
assumidamente diferentes de si, criações literárias com vida própria – os heterónimos. Mas o poeta
também foi ele-mesmo e com o seu nome assinou uma obra também ela com características
próprias. É uma obra vasta, a obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas apesar da sua complexidade,
poderemos enunciar algumas das linhas formais e de sentido que caracterizam a sua poesia lírica

Antes de mais, a poesia de Fernando Pessoa ortónimo é uma poesia marcada pela procura
incessante de uma verdade que o poeta sabe impossível de alcançar; a decifração do enigma do
ser. O ser, sabe-o Pessoa, é um mistério indecifrável desde já porque procurar desvendá-lo é
confrontar-se com a sua pluralidade, porque ele é muitos, e sendo muitos é ninguém. Por isso, o
poeta afirma negativamente o impossível encontro com a sua identidade (“Não sei quem sou”,
“Nunca me vi nem achei”), da mesma forma que afirma negativamente a sua pluralidade (“Não sei
quantas almas tenho”).

A verdade é que o poeta não foge à fragmentação que o confronto com o seu plural acarreta, antes
a procura, como único caminho para o encontro consigo mesmo, já que “Ser um é cadeia, /Ser eu
não é ser”, mas sabe que esse é um caminho sem retorno e que cada um dos fragmentos ou a
totalidade dos fragmentos em que a sua alma de estilhaçou jamais lhe devolverão a unidade
perdida. Como afirma num poema “Torno-me eles e não eu.” Ou num outro “Partiu-se o espelho
mágico em que me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.”.

Resta-lhe, pois, a interrogação filosófica, ontológica do mistério, mesmo que essa interrogação
se perca como um eco de si mesmo e o poeta seja espectador de si mesmo, a sua “própria
paisagem”. Resta-lhe também angustia de saber as perguntas irrespondíveis. Resta-lhe ainda olhar
em espelhos de “aguas paradas” que não lhe devolvem o rosto, e a imagem que neles encontra só
lhe acrescenta a solidão interior e a melancolia de saber-se “um mar de sargaços / um mar onde
boiam lentos / fragmentos de um mar de além”.

Além é uma palavra que podemos associar à poesia de Fernando Pessoa ortónimo. É que, impelindo
pela sua permanente inquietação, sente que “tudo é do outro lado”, tudo está para além do muro
ou para além da curva da estrada. Por isso, o sonho é preciso, é preciso ir ao encontro do jardim
encantado ou da ilha do sul, mesmo que saiba que os “sonhos são dores” e “que não é com ilhas do
fim do mundo / que cura a alma seu mal profundo”. Mesmo que o sonho o afaste da vida e dos
outros, o impeça de viver a vida como ela é ou parece ser. E é muitas vezes com resignação que
aceita o desajuste entre a realidade e o sonho, continuando que interrogar-se se este não será mais
real que aquela.

Além é ainda passado, infância irremediavelmente perdida, o tempo em que o eu era feliz porque
ainda não se tinha procurado e, por isso, são se tinha fragmentado. A nostalgia da infância é,
assim, um dos temas mais tocantes da poesia de Pessoa ortónimo que recorda o tempo em que era

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feliz sem saber o que era. “A criança que fui vive ou morreu?”. Interroga-se lancinantemente o
poeta e ainda “E eu era feliz? Não sei :\ Fui-o outrora”.

A criança que foi é como o gato que brinca na rua ou a ceifeira cuja sorte o poeta inveja, já que
sentem alegria e satisfação sem saberem que a sentem, ao contrário do poeta que já não pode
sentir essa alegria sem pensar nela, e consequentemente, deixa-la de senti-la. “O que em mim esta
pensando” afirma tristemente ao ouvir o canto da ceifeira que “Ondula como um canto de ave”. A
dor de pensar, é assim, outro dos temas da poesia de Pessoa ortónimo, o poeta fingidor que
procura escrever distanciado do sentimento, já que a “composição de um poema lírico deve ser feita
não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela” e, por isso, a poesia não pode
ser a expressão direta de uma emoção vivida, mas a expressão direta do rasto dessa emoção. Para
Pessoa, a poesia é, pois, fingimento poético.

É uma poesia intensamente musical que recorre à métrica curta e frequentemente à quadra, no
gosto pela tradição lírica lusitana e popular. Faz uso de um vocabulário simples e sóbrio e utiliza um
tom espontâneo, muitas vezes interrogativo, muitas vezes negativo, por vezes irónico. No entanto, é
também uma poesia que faz uso de uma linguagem fortemente simbólica, onde abundam as
metáforas inesperadas e os paradoxos desconcertantes.

Análise de Poemas
"Sou um Evadido"
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me


Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Reflexão:

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O sujeito poético neste poema procura caracterizar a sua realidade fragmentada, servindo-se do
campo semântico de prisão.

Através da reflexão filosófica a sua opção de fuga aos limites do ser, procura realçar a naturalidade
de cansaço que caracteriza o ser humano e afirma que ser uno é ser prisão e que, por isso, só vivera
plenamente fingido de si próprio.

"Viajar! Perder países!"

Viajar! Perder países!


Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer cenem a mim!


Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.


Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

Reflexão:

A noção de viagem presente no primeiro verso está associada à ideia de procura para o sujeito
poético viajar não implica ganhar países, ganhar lugares na rota da sua vida; significa, antes,
procura de si mesmo, encontro consigo mesmo.

No entanto, o poema parte de uma ideia paradoxal de viagem, falando-se aqui de uma viagem
permanente, de partidas constantes, na qual cada rosto de si mesmo encontrado é um lugar
imediatamente perdido. Ou seja, trata-se de uma viagem permanente procura e descoberta do ser
que é sempre outro e não tem amarras a ninguém, nem a si mesmo.

"Não sei quantas almas tenho"

Não sei quantas almas tenho.


Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.

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Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,


Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo


Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Reflexão:

Este poema é claramente ilustrativo da temática do “ser”. Mas outros temas ou ideias nele se
revelam poesia pessoante: o desconhecimento de si mesmo; a perda de identidade, a ideia de
mobilidade; a solidão e a angústia.

No poema, o sujeito poético assiste à sua fragmentação como se a sua consciência fosse um ser
exterior a si mesmo; como se, ao olhar-se visse uma paisagem de si mesmo ou como se,
autoanalisar-se lesse um livro cujas páginas são o seu próprio “ser”. Estas ideias tornam-se
evidentes na utilização de diversas metáforas que sugerem a ideia do “eu” alheio e exterior a si
mesmo.

"Autopsicografia"

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,

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Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Reflexão:

Neste poema Fernando Pessoa fala da teoria do fingimento poético, pois um poema não traduz
aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que o poeta imagina a partir da recordação do que
anteriormente sentiu. O poeta é, assim, um fingidor que escreve uma emoção fingida, pensada, por
isso fruto da razão da imaginação e não a emoção sentida pelo coração, que apenas chega ao
poema transfigurada na tal emoção trabalhada praticamente.

O leitor não sente nem a emoção vivida realmente pelo poeta, nem a emoção por ele fingida no
poema, sentido apenas o que na sua inteligência é provocado pelo poema – assim, a poesia,
segundo Fernando Pessoa, é a intelectualização da emoção.

"Isto"

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Reflexão:

Neste poema o sujeito poético utiliza a imaginação, deixando de parte todas as emoções.

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O poeta neste poema compara todas as suas emoções a um terraço, esta comparação permite
salientar a separação entre as sensações e as emoções.

Basicamente, este poema foi escrito como resposta à falta de compreensão, por parte dos leitores,
do poema “Autopsicografia”. Como tal, no último verso do poema, o sujeito poético dirige-se aos
leitores para salientar a ideia de que a eles caberá um sentir diferente de poeta, isto é, cada leitor
terá a liberdade de sentir o poema como quiser, seja com emoção, ou seja. Com inteligência.

A relação existente entre os dois poemas “Autopsicografia” e “Isto” tem como tema comum o
fingimento poético, funcionando ambos como uma espécie de arte poética, nos quais o sujeito
poético expõe a sua teoria da poesia como intelectualização da emoção.

"Ela canta, Pobre ceifeira"

Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave


No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,


Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!


O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!


Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!


Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Reflexão:

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Ela canta pobre ceifeira" é um poema não datado de Fernando Pessoa, de autoria ortónima, e escrito
antes de 1915, publicado na revista Athena, em Dezembro de 1924.

Pensar-se-ia que um tema bucólico, como uma cena de ceifeiras trabalhando no campo, não atrairia
a atenção de Fernando Pessoa, que é, iminentemente, um poeta racional e pouco dado à observação
plena da natureza. Mesmo em Alberto Caeiro, a natureza aparece muita das vezes como um
adversário, como algo que se contrapõe agressivamente ao homem, mostrando a este quanto ele
está desenquadrado, quanto ele próprio é "pouco natural".

A verdade é que, apesar do tema ser bucólico, a análise do mesmo não é. Vemos que há o ponto de
partida da figura humana - da ceifeira - e a paisagem natural, mas o que de facto interessa o poeta
é algo na ceifeira enquanto ser humano enquadrado na paisagem natural: o seu sentimento de
alegria. "Ela canta (...) Julgando-se feliz talvez", diz o poeta. E é isso que o perturba, é isso que o
faz pensar. É o canto feliz e despreocupado da ceifeira, naturalmente pobre e cansada, que faz
Pessoa interrogar-se. Ela canta como se tivesse mais razões para cantar do que a vida, diz ele.
"Canta sem razão!". Porque para o poeta a vida é feita, principalmente, de desilusão. Como pode
por isso alguém como a ceifeira, ignorante, pobre, trabalhadora do campo, viúva anónima, ser tão
feliz?

"Gato que brincas na rua"

Gato que brincas na rua


Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Reflexão:

Neste poema o sujeito poético revela tristeza e desolação por não conseguir abolir o viço excessivo
do pensamento. O poeta afirma que gostaria de ser a ceifeira, com a sua “alegre inconsciência” –
gostaria de sentir sem pensar; mas paradoxalmente, gostaria também de ser ele mesmo, ou seja,
ter a consciência de ser inconsciente – o que ele deseja é unir o plano do sentir e o plano de pensar

A relação existente entre os dois poemas existentes no tema “a dor de pensar” apresentam um
tema central idêntico: “a dor de pensar” provocada pela intelectualização do sentido. “Ceifeira” e

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“Gato” são símbolos de uma alegre inconsciência, enquanto Pessoa afirma para si uma espécie de
trituração mental que o conduz a parte alguma – “o que em mim sente, ‘stá pensado!”

"Não sei ser triste a valer"

Não sei ser triste a valer


Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma


E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.


Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,


Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm


Vamos florir ou pensar.

Reflexão:

Este poema foi escrito para caracterizar o homem, que sente e pensa. Nele a razão e a emoção são
mentira porque não se conjugam. Por seu lado, a flor, nem sente nem pensa e, no entanto,
desabrocha sem precisar de razão e de coração. Para a flor, florescer é um ato involuntário, tal
como é um ato involuntário para o homem pensar.

O sujeito poético procura realçar um apelo irónico ao “carpe diem” que procura sugerir que,
enquanto a morte não chega, devemos aproveitar cada momento da vida, seja florindo
inconscientemente como uma flor, seja pensando, como é inevitável no homem.

"Boiam leves, desatentos"


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Boiam leves desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas


Á tona de águas paradas
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,


Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não se para, se flui;
Não se existe ou de dói.

Reflexão:

Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito poético que eram “leves” e
“desatentos”, semelhantes a “algas” ou “cabelos” que “boiam” lentamente “á tona de águas”; são as
coisas insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O sujeito poético, observando o seu mundo
inteiro, redu-lo a uma insignificância insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos,
os seguintes recursos: a metáfora, a comparação, a adjetivação expressiva e o paradoxo.

O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de elementos físicos sem vida, que fazem
lembrar desperdício e que não permitem o encontro consigo mesmo. Deste desencontro resulta a
angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o sentimento de vazio que dominam o sujeito
poético.

"Tudo o que faço ou medito"

Tudo o que faço ou medito


Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica


Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço

Um mar onde boiam lentos


Fragmentos de um mar de além...

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Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema procura autoanalisar-se com a sua lucidez aguda, a sua alma “lúcida
e rica”, na tentativa de se autoconhecer. No entanto, aquilo que encontra é um espelho sem reflexo,
“um mar de sargaço” que impede o encontro consigo mesmo.

Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe revela a impossibilidade de se
conhecer.

"Não sei se é sonho, se realidade"

Não sei se é sonho, se realidade,


Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul de olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,


Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego deem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada de desvirtua,


Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem

Não é com ilhas do fim do mundo,


Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

Reflexão:

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O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a hipótese de poder alcançar o
sonho, numa segunda fase contradiz a hipótese colocada, expondo a concretização do sonho.
Finalmente conclui que não é necessário fingir para o sonho, porque aquilo que procuramos está
dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir que é “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa
entender que mesmo estando dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são difíceis
de alcançar.

Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do binómio, sonho/realidade.

"Contemplo o que não vejo"

Contemplo o que não vejo.


É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;


Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,


No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe


Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

Reflexão:

Este poema foi escrito com o intuito de caracterizar a palavra “muro” que, neste caso, representa
metaforicamente a ideia de fronteira ou de divisão entre a realidade e o sonho, uma separação que
estabelece os limites do sujeito poético.

O sujeito poético neste poema pretende, provavelmente, exprimir a sua incapacidade de sentir (uma
vez que a imaginação só sobrepôs à sensação), ao mesmo tempo que afirma a sua angústia.

"Porque esqueci quem fui quando criança?"

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Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?

Reflexão:

Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas que também é
partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.

Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo longínquo em
que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo,
e por isso, ainda não se tinha fragmentado. Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa
infância provocada por um qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as
crianças brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir
amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu – agora”.

Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de rutura, de corte,
de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há semelhança / Entre quem sou e
fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui quando criança?” exprime essa admiração
perturbante de se sentir habitado por outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.

Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa, não se


complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”; o presente é nostalgia,
inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro: “se quem fui é enigma, / E quem serei
visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu coração”.

"O menino da sua mãe"

No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.


De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,

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Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!


(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada


Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:


"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Reflexão:

Este poema foi escrito para poder ser visto de modo metafórico, a representação do próprio poeta
que sabe ser impossível o regresso ao regresso materno, porque a infância ficou para trás,
inevitavelmente perdida, ideia que pode relacionar-se com a temática pessoana “a nostalgia da
infância” – a época de ouro, da felicidade inconsciente, para sempre perdida, que contrasta com a
situação presente caracterizada por consciência aguda que provoca no poeta a sensação de
desconhecimento de si mesmo, a perda de identidade.

O sujeito poético neste poema fala também da cigarreira dada pela sua mãe e o lenço dado pela
alma que o ajudou a criar, são representações do seu passado de “menino” que viveu junto a quem
o amava.

Fernando Pessoa - Ortónimo

Linhas de sentido / Temas recorrente;

· Procura da decifração do enigma do ser;


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· Fragmentação do eu. Perda de identidade.

· Pendor filosófico;

· Obsessão da análise, dor de pensar, lucidez;

· Fuga da realidade para o sonho;

· Incapacidade de viver a vida;

· Inquietação, angústia existencial, solidão interior, melancolia, resignação;

· Tédio, náusea, desencontro dos outros, desamparo;

· Nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância;

· Fingimento poético;

· Transfiguração da emoção pela razão.

Estilo;

· Preferência pela métrica curta;

· Influência do lirismo lusitano (reminiscências de cantigas de embalar, toadas do romanceiro,


contos de fadas);

· Gosto pelo popular (uso frequente da quadra);

· Linguagem simples, espontânea, mas sóbria;

· Criação de metáforas inesperadas; uso frequente do paradoxo;

· Versos leves em que recorre frequentemente à interrogação, às reticências.

Alberto Caeiro

“O Mestre tranquilo da sensação”

Como podemos ler na carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa criou o heterónimo Alberto
Caeiro, no dia 8 de março de 1914 e em seu nome escreveu, a fio, um conjunto de poemas aos
quais deu o título de O Guardador de Rebanhos. Pessoa chamou-lhe o “Mestre” e criou para ele uma
biografia, uma fisionomia, uma obra.

Assim, Alberto Caeiro nascera em 16 de abril de 1889, em Lisboa, no entanto, órfão de pai e mãe, e
vivera quase toda a sua vida retirado, no Ribatejo, na quinta de uma tia-avó, onde se recolhera
devido a problemas de saúde. Era de estatura média, louro, de pele muito branca e com os olhos
azuis. Não estudou nem exerceu qualquer profissão e foi no Ribatejo que escreveu o fundamental da
sua obra: O Guardador de Rebanhos, primeiro, e O Pastor Amoroso, depois. Voltou para Lisboa no
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final da sua curta vida e aí escreveu ainda os Poemas Inconjuntos, antes de morrer de tuberculose,
em 1915, quando tinha apenas vinte e seis anos.

Fernando Pessoa chamou a Caeiro o seu “Mestre”, pois ele era aquilo que Pessoa não conseguia ser:
alguém que não procura qualquer sentido para a vida ou o universo, porque lhe basta aquilo que vê
e sente em cada momento. Vive, assim, exclusivamente de sensações e sente sem pensar. É, pois,
o criador do Sensacionismo, e também o Mestre dos outros heterónimos pessoanos. Enquanto
Pessoa ortónimo procura incessantemente conhecer o que está para além daquilo que vê e sente,
Caeiro não procura conhecer, não deseja adivinhar qualquer sentido oculto, uma vez que o “único
sentido oculto das coisas / é elas não terem sentido oculto nenhum” e “as coisas não têm
significado, têm existência”.

Nos seus poemas, está expresso um conceito de vida segundo o qual, partindo da aceitação serena
do mundo e da realidade, saboreia tranquilamente cada impressão captada pelo seu olhar, ingénuo
como o de criança. É, ao contrário de Pessoa, o poeta do real objetivo e nunca foge para o sonho,
nem sequer para a recordação. Vive no presente, sem pensar no passado, e por isso não sofre de
qualquer nostalgia, e sem pensar no futuro e, por isso, não tem medo da desilusão, nem mesmo da
morte.

Alberto Caeiro é o “poeta da Natureza” e com ela partilha cada instante que o ciclo das estações lhe
traz, feliz e deslumbrado com cada uma das maravilhas simples e naturais que o seu olhar lhe
permite ver. Sente-se fazendo parte dessa natureza, como um rio, ou uma árvore, ou a chuva, ou o
sol que brilha nos seus poemas como em nenhum outro poeta da “constelação pessoana”.

Imbuída desta dimensão natural, a poesia de Caeiro é uma espécie de expressão espontânea e
quase instintiva de pensamentos que são sensações. É uma poesia livre, inovadora, próxima da
prosa e do falar quotidiano, como se brotasse de alguém que fala com um amigo, sentado dob o
alpendre, ao entardecer. É clara e recorre a uma linguagem extraordinariamente simples. Nos seus
poemas, mais ou menos longos, não há regras métricas, nem estróficas nem rimáticas. Para
exprimir o real objetivo, usa predominantemente o substantivo concreto e para clarificar o
pensamento, utiliza, com frequência, a comparação.

"Poema Primeiro"

Eu nunca guardei rebanhos,


Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
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Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego


Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos


Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva


Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos


Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,


Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos


Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

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E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,


Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Reflexão:

O poeta compara-se a um pastor que anda pelos campos a guardar rebanhos, neste caso, os seus
rebanhos são os seus pensamentos.

O sujeito poético identifica-se bastante com a natureza, pois ele afirma que anda ao ritmo das
estações, compara os seus estados de espírito com momentos de natureza.

Na última estrofe do poema o sujeito poético apresenta uma saudação de uma espécie de camponês
que tira o chapéu em sinal de respeito e deseja aquilo que é mais importante para o Homem ligado
à natureza.

Alberto Caeiro afirma-se um poeta que exprime o desejo de abolir a consciência, isto é, o vício de
pensar, lamentando o facto de ter consciência dos seus pensamentos, enunciando repetitivamente o
ato de ver, além de outras sensações.

"Poema Segundo"

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
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É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele


(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Reflexão:

No primeiro verso deste poema o sujeito poético apresenta uma comparação com um girassol. Esta
comparação é feita para mostrar a nitidez do seu olhar, pois esta planta tem a particularidade de
seguir continuamente a luz do sol. Para o poeta a sensação visual é-lhe suficiente na sua relação
com o mundo, rejeitando pensamentos.

O sujeito poético neste poema afirma que basta sentir a realidade, não precisa de a questionar, não
precisa de saber porque é que ela existe.

Alberto Caeiro é um poeta que consegue submeter o pensamento ao sentir, abolir o vicio de pensar
e viver apenas pelas sensações. Alberto Caeiro consegue alcançar facilmente aquilo que para
Fernando Pessoa é um desejo impossível.

"Poema Nono"

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos

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E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,


Sei a verdade e sou feliz.

Reflexão:

O poema estrutura-se em três partes lógicas, que correspondem às três estrofes nele presentes:

· A primeira estrofe apresenta-se com a introdução, na qual o sujeito poético se afirma como
aquele que vive apenas pelas sensações;

· A segunda estrofe apresenta-se como justificação do significado que ele atribui ao ato de
pensar: pensar é sentir;

· A última estrofe tem valor conclusivo e, nela, o sujeito poético apresenta um exemplo de caráter
pessoal sobre a experiência de sentir.

É através das sensações (dos cinco sentidos referidos nos v.v 4,5 e 6) que o sujeito poético
estabelece a relação com a realidade, seja ela uma flor, um fruto ou um dia de calor; e essa forma
de relação sensacionalista com a realidade é que lhe basta, pois é a única que lhe fez saber a
verdade e ser feliz (último verso).

Ao afirmar a sensação como fonte única do conhecimento real, o sujeito poético nega
completamente o pensamento, submetendo-o a sensação. Ele consegue, de certo modo, realizar
algo que no ortónimo era impossível: unir o pensar ao sentir, quando, por exemplo, afirma “pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la”.

"Poema Décimo"

"Olá, guardador de rebanhos,


Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"

"Que é vento, e que passa,


E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"

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"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."

"Nunca ouviste passar o vento.


O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."

Reflexão:

Este poema constrói-se como um diálogo entre o sujeito poético (“guardador de rebanhos”) e um
outro que com ele se cruza no caminho (“Aí à beira da estrada”) e que o interpela sobre o
significado do vento (vento é símbolo do real). Este diálogo é um processo que permite apresentar
dois pontos de vista, diferentes a dois níveis:

· Primeiro, para o sujeito poético, a relação com a realidade passa por sentir apenas essa
realidade, sem a pensar ou imaginar; para o seu interlocutor, a realidade é muito mais do que
aquilo que se sente, pois é também porta aberta para a memória, a saudade e o sonho;

· Segundo, para o sujeito poético só existe a verdade do momento, do presente; para o seu
interlocutor, o presente conduz à memória do passado e a imaginação do futuro.

Pode estabelecer-se uma clara relação entre os pontos de vista assumidos pelas duas personagens
com os traços que caracterizam Alberto Caeiro e Fernando Pessoa ortónimo - neste poema, Alberto
Caeiro apresenta-se como negação do ponto de vista do ortónimo: “a mentira está em ti”.

"Poema Trigésimo Nono"

O mistério das cousas, onde está ele?


Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas


É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
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Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

Reflexão:

O sujeito poético, neste poema, ao comparar-se com a árvore e com o rio, pretende realçar a sua
tese de não haver mistério nas coisas.

Alberto Caeiro afirma-se um poeta onde diz que a realidade é apensas o que é, e por isso não tem
mistérios a desvendar, contrariando tudo aquilo que as outras pessoas pensam sobre as coisas,
acreditando que elas contêm algo mais para além daquilo que é visível.

Alberto Caeiro
“O Mestre tranquilo da sensação”

Linhas de sentido / Temas recorrentes

· É o mestre que Pessoa opõe a si mesmo, com o qual tem que aprender:

- a viver sem dor;

- a envelhecer sem angústia; a morrer sem desespero;

- a não procurar encontrar sentido para a vida;

- a sentir sem pensar;

- a ser um ser uno (não fragmentado)

· Criador do Sensacionismo, vive se sensações, sobretudo visuais, afirmando que é preciso “saber
ver sem estar a pensar”, sem tentar “encontrar um sentido às coisas”, porque “as coisas não têm
significado: tem existência”.

· Recusa a introspeção e a subjetividade, abre-se ao mundo exterior com passividade e alegria. É o


poeta do real objetivo.

· Identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja diluir-se nela, integrando-se nas
leias do universo, como se fosse um rio ou uma árvore.

· Não quer saber do passado nem do futuro; vive no presente.

· Lírico, instintivo, ingénuo, inculto (em relação à sabedoria escolar)

Estilo

· Estilo discursivo

· Pendor argumentativo

· Transformação do abstrato no concreto, frequentemente através da comparação.


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· Predomínio do substantivo concreto sobre o adjetivo.

· Simplicidade da linguagem. Tom familiar.

· Liberdade estrófica e do verso, ausência de rima.

Álvaro de Campos

“o filho indisciplinado da sensação”

A partir da carta a Adolfo Casais Monteiro, mas também de outros textos deixados por Fernando
Pessoa, podemos construir a biografia do heterónimo Álvaro de Campos que terá nascido em Tavira,
no dia 15 de outubro de 1890. Fez o liceu em Lisboa e partiu depois para Glasgow, na Escócia, onde
frequentou o curso de Engenharia Naval. Em dezembro de 1913, fez uma viagem de barco ao
Oriente durante a qual terá começado a escrever poesia. No regresso, desembarcou em Marselha,
prosseguindo por terra a viagem para Portugal. Instalado em Lisboa, foi nesta cidade que passou a
viver sem exercer qualquer atividade para além da escrita. Pessoa descreve-o como alto, elegante,
de cabelo preto e liso, com risca ao lado, usando monóculo e com um “tipo vagamente de judeu
português”.

Foi na revista “Orpheu”, em 1915, que Fernando Pessoa publicou os primeiros poemas em nome de
Álvaro de Campos: “Opiário”, que teria sido escrito no Canal do Suez durante a viagem ao Oriente e
a “Ode Triunfal”, escrita em Londres. No número 2 da mesma revista, publicou a “Ode Marítima” e
em 1917 publicou o “Ultimatum”, no “Portugal Futurista”, revista imediatamente apreendida pela
polícia. Vive e trabalha durante alguns anos na Inglaterra, regressando de vez em quando a
Portugal. Dois desses regressos estão patentes nos poemas “Lisbon revisited – 1923” e “Lisbon
revisited – 1926”. Fixa-se definitivamente em Lisboa e vai publicando poemas em revistas literárias.

Sendo o heterónimo pessoano que o poeta mais publicou, Álvaro de Campos é também aquele que
apresenta uma evolução mais nítida, podendo na sua obra distinguir-se três fases. Assim, os seus
primeiros poemas, escritos durante a viagem ao Oriente, aproximam-se de outros poetas da
viragem do século, os decadentistas; mas o seu verdadeiro génio vanguardista revela-se na sua fase
futurista, quando escreve a “Ode Triunfal”, a “Ode Marítima”, e outros grandes poemas da exaltação
da vida moderna, da força, da velocidade, das máquinas; finalmente, numa terceira fase, escreve
uma poesia mais intimista.

A grande viragem na poesia de Álvaro de Campos aconteceu, de acordo com um relato seu, depois
de ter conhecido Alberto Caeiro, numa viagem que fez ao Ribatejo. Em Caeiro reconheceu
imediatamente o seu Mestre, aquele que o introduziu no universo do sensacionismo. Mas enquanto
Caeiro acolhe tranquilamente as sensações, Campos experimenta-as febrilmente, excessivamente.
Tão excessivamente que, querendo “sentir tudo, de todas as maneiras”, parece esgotar-se a seguir,
caindo numa espécie de apatia melancólica, abúlica, ou num devaneio nostálgico que o aproxima de

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Pessoa ortónimo com quem partilha o ceticismo, a dor de pensar, a procura do sentido no que está
para além da realidade, a fragmentação, a nostalgia da infância irremediavelmente morta.

Os seus versos livres, longos, por vezes prosaicos, exclamativos e eufóricos ou repetitivos e
depressivos são o exemplo mais acabado do vanguardismo modernista no qual se espelha um sentir
cosmopolita, urbano, febril, nervoso, extrovertido, por vezes insuportavelmente mergulhado no
tédio do quotidiano e no anonimato da cidade.

"Ode Triunfal"

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Reflexão:

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O sujeito poético neste poema exprime com exaltação e excesso o seu orgulho em ser moderno e
contemporâneo de uma beleza industrial “totalmente desconhecida dos antigos” num desejo
assumido de acolher todas as sensações.

O poeta representa de forma exagerada o louvor ao mundo moderno.

"Ode Marítima"

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,


Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,


E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra


Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!


E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
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Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema caracteriza-se metaforicamente a um paquete e a um volante. A


sensação que o paquete nele desperta tem a ver com uma “doçura dolorosa”, paradoxo que traduz a
sensação positiva e perturbante que tem do objeto, semelhante a uma “náusea”, a um enjoo de
espírito. O “volante” representa metaforicamente o despertar do sujeito poético para o seu mundo
interior, isto é, a imagem exterior do paquete, que lhe tinha prendido a atenção, vai conduzi-lo, vai
guiá-lo à sua imaginação e às suas emoções.

"Datilografia"

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,


Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,


O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros


(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,


O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:


A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

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Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,


Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,


Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Reflexão:

Este poema foi escrito para salientar que o sujeito poético encontra-se no seu gabinete de
engenheiro onde exprime a náusea, o tédio, as sensações que o envolvem, neste caso a monotonia
agressiva do “tic-tac” das máquinas de escrever. Este cansaço do presente fá-lo querer regressar ao
tempo da sua infância, da sua felicidade inconsciente, mas o ruído do presente interpõe-se,
deixando-o sem desespero.

Álvaro de Campos
“o filho indisciplinado da sensação”

Linhas do sentido / temas recorrentes

· Poeta modernista, a sua poesia tem três fases: decadentistas, futurista e pessoal-intimista;

· Poeta sensacionista desde que conheceu Caeiro, como o Mestre, vira-se para o exterior, tenta
banir o vício de pensar e acolhe todas as sensações;

· Predomínio da emoção espontânea e torrencial;

· Excitação da procura, da busca incessante; ansiedade e confusão emocional;

· Elogio da civilização industrial, moderna, da velocidade e das máquinas, da energia e da força, do


progresso.

· Fuga para a recordação e/ou sonho que tendem a substituir a vida real.

· Angústia existencial; sentido do absurdo; tédio, náusea, cansaço, desencontro dos outros.

· Presença terrível e labiríntica do eu de que o poeta se tenta libertar.

· Fragmentação do eu, perda de identidade.

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· Ceticismo e ironia.

Estilo

· Verso livre, longo, por vezes articulado com o verso curto.

· Estilo esfuziante, torrencial, dinâmico (sobretudo nos poemas futuristas).

· Utilização de repetições, anáforas, exclamações, interjeições.

· Utilização de comparações e metáforas inesperadas, antíteses e paradoxos.

· Poetização do prosaico, do comum e quotidiano.

Ricardo Reis

“o poeta da autodisciplina”

De acordo com a carta de Fernando Pessoa a João Gastar Simões, o poeta começou a esboçar o
heterónimo Ricardo Reis em 1912 quando lhe veio “à ideia escrever uns poemas de índole pagã”,
mas seria apenas no “dia triunfal” – 8 de março de 1914 – que ele surgiria, a completar o trio
Caeiro, Campos, Reis.

Tal como fez para os outros, Fernando Pessoa criou para Reis, além do nome, a idade, a fisionomia,
a biografia, o estilo. Assim, Ricardo Reis teria nascido no Porto, no dia 19 de setembro de 1887.
Educado num colégio de jesuítas onde recebeu uma sólida educação clássica, formou-se em
Medicina. Era monárquico e, por isso, em 1919 teve que se exilar no Brasil, na sequência da derrota
da rebelião monárquica do Porto contra o regime republicano instaurado havia apenas nove anos.
Era moreno, mais baixo e mais forte que o Caeiro.

Fernando Pessoa publicou poemas de Ricardo Reis – vinte odes – pela primeira vez em 1924, na
revista “Athena” por si fundada; depois, entre 1927 e 1930, oito odes foram publicadas na revista
“Presença” de Coimbra. Os restantes poemas e a prosa de Ricardo Reis são de publicação póstuma.

Discípulo de Caeiro, como Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos, Ricardo Reis apresenta, contudo,
uma poesia muito diferente da dos outros poetas-Pessoa. À grande questão da indagação do sentido
da existência, colocada de forma diversa por cada um deles, Reis responde como se fosse um
homem de outro tempo e de outro mundo, um grego antigo, pagão a braços com o Destino. Sabe
que a efemeridade é parte da condição humana, que na vida tudo passa, e sobre cada momento
vivido pesa a sombra da caminhada inexorável do Tempo. Então, para enfrentar esse medo da
morte, defende que é preciso viver cada instante que passa, sem pensar no futuro, numa perspetiva
epicurista de saudação do “carpe diem”. Mas essa vivência do prazer de cada momento tem de ser
feita de forma disciplinada, digna, encarando com grandeza e resignação esse Destino de
precariedade, numa perspetiva que tem raízes no estoicismo.
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Reis é, afinal, um conformista que pensa que nenhum gesto, nenhum desejo vale a pena, uma vez
que a escolha não está ao alcance do homem e tudo está determinado por uma ordem superior e
incognoscível. Para quê, então, querer conhecer a verdade que, a existir, apenas aos Deuses
pertence? Nada se pode conhecer do universo que nos foi dado e por isso só nos resta aceitá-lo com
resignação, como o destino. Além disso, o medo do sofrimento paraliza-o conduzindo-o a uma
filosofia de vida terrivelmente vazia. Para Ricardo Reis, a vida deve ser conduzida com calculismo e
frieza, alheia a tudo o que possa perturbar. E como tudo o que é verdadeiramente humano é intenso
e perturbante, Reis isola-se, numa espécie de gaiola dourada que o protege de qualquer
envolvimento social, moral ou mesmo sentimental.

A educação que teve criou nele o gosto pelo classicismo e é na “imitação” do poeta latino Horácio
que se baseia a construção daquilo que é fundamental na sua poesia. Uma poesia neoclássica, pagã,
povoada de alusões mitológicas. Enfim, uma poesia moralista, sentenciosa, contida, sem qualquer
traço de espontaneidade. Cultivando preferencialmente a ode, utiliza uma linguagem culta,
rebuscada – o hipérbato, inversão da ordem normal dos elementos da frase, é um recurso
amplamente usado.

"Não quero recordar nem conhecer-me"

Não quero recordar nem conhecer-me.


Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora


Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo


(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.

Reflexão:

Neste poema de acordo com o sujeito poético, devemos viver o presente sem pensar ou recordar o
passado, porque não podemos evitar que o tempo passe, pois todo o presente se converte
rapidamente em passado e, por isso é inútil conhecer.

Tal como Alberto Caeiro, Ricardo Reis apresenta-se como poeta do presente, rejeitando a recordação
do passado ou o autoconhecimento, para se concentrar na perspetiva do ser como existência.

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"Uns com os olhos postos no passado"

Uns, com os olhos postos no passado,


Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto -


A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora


Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele.

Reflexão:

O sujeito poético neste poema diz que “uns” e “outros” são os que não são capazes de viver o
presente. Assim, “uns” vivenciam o tempo olhando para o passado, o que significa não ver a
realidade, pois já não existe. “Outros” olham para o futuro e, por isso também não veem a
realidade, uma vez que apenas existe na imaginação.

Neste poema o sujeito poético usa vários paradoxos para traduzir a impossibilidade e o engano a
que são conduzidos aqueles que vivem da recordação ou da imaginação.

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre"

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,


E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros


O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento


Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Reflexão:
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O sujeito poético neste poema defende uma filosofia de vida que assenta na aceitação do destino de
uma forma tranquila, sem tentativas de o mudar, alimentando desejos ou esperanças pois “Nada
mais nos é dado”. Tentar fugir ao destino seria inútil, porque viver radica numa total
incompatibilidade entre aquilo que se deseja e aquilo que se alcança. O sujeito poético revela, em
suma, o seu conformismo face ao destino, de fase estoicista – não vale apenas desejar, não vale
apenas ter esperanças, porque a nossa vida será apenas como foi programada e o melhor é aceitar
isso com dignidade.

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio"

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.


Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,


Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,


Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as


No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois


Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
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E se antes do que eu levares o o'bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Reflexão:

1ª Estrofe

· Convite à fruição amorosa serena, uma vez que a vida é breve.

2ª Estrofe

· Consciência da efemeridade da vida, da impossibilidade de voltar a vivê-la, uma vez que o “fado”
tudo controla.

3ª Estrofe

· Desenlace amoroso, pois é preciso evitar os grandes desassossegos para evitar a dor.

4ª Estrofe

· É necessário evitar todos os desassossegos que podem trazer a dor.

5ª Estrofe

· Convite à fruição amorosa tranquila, espiritual, evitando os excessos de amor físico.

6ª Estrofe

· Valorização do “carpe diem”, colhendo o “perfume” do momento evitando o conhecimento das


coisas.

7 e 8 Estrofes

· Conclusão do poema e justificação para o modelo de vivência amorosa defendido pelo poeta: se
um deles morrer antes o outro, não terá que sofrer por isso, uma vez que viveram um amor
inocente, sem excessos.

O sujeito neste poema propõe a Lídia uma relação tranquila, contida, sem envolvimento nem paixão,
como única forma de evitar o sofrimento provocado pela separação que a morte de um deles
poderia trazer.

No poema, são notórios os conceitos de epicurismo e estoicismo, aqui fundidos: se a vida passa e
não se pode evitar a morte, é preciso, por um lado, aproveitar totalmente o presente (epicurismo) e,
por outro lado vivê-lo com serena e disciplinada aceitação do destino (estoicismo).

Ricardo Reis
“o poeta da autodisciplina”

Linhas de sentido / Temas recorrentes

· Discípulo de Caeiro, como o Mestre aconselha a aceitação calma da ordem das coisas e faz o elogio
da vida campestre, indiferente ao social (áurea mediocritas)

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· Faz dos Gregos o modelo da sabedoria (aceitação fatalista do Destino de uma forma resignada,
mas digna e altiva) e do poeta latino Horácio o modelo poético.

· Reflete sobre o fluir do Tempo; tem consciência da dor provocada pela natureza precária do
homem; medo da velhice e da morte.

· Faz o elogio do epicurismo – a sabedoria consiste em gozar o presente (carpe diem)

· Faz o elogio do estoicismo – a sabedoria consiste na aceitação da condição humana, através da


disciplina e da razão.

· Paganismo assumido.

Estilo

· Estilo neoclássico, com utilização preferencial da ode (composição de origem grega),


particularmente influenciado pelo poeta latino Horácio.

· Presença frequente de elementos mitológicos.

· Uso preferencial do decassílabo combinado com o hexassílabo; verso branco.

· Linguagem culta, rebuscada, sentenciosa (uso recorrente do imperativo)

· Frequente utilização do hipérbato e latinismos.

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