Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Fernando Pessoa é, como vimos, um poeta rural sob cuja tutela se reúnem poetas diversos,
assumidamente diferentes de si, criações literárias com vida própria – os heterónimos. Mas o poeta
também foi ele-mesmo e com o seu nome assinou uma obra também ela com características
próprias. É uma obra vasta, a obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas apesar da sua complexidade,
poderemos enunciar algumas das linhas formais e de sentido que caracterizam a sua poesia lírica
Antes de mais, a poesia de Fernando Pessoa ortónimo é uma poesia marcada pela procura
incessante de uma verdade que o poeta sabe impossível de alcançar; a decifração do enigma do
ser. O ser, sabe-o Pessoa, é um mistério indecifrável desde já porque procurar desvendá-lo é
confrontar-se com a sua pluralidade, porque ele é muitos, e sendo muitos é ninguém. Por isso, o
poeta afirma negativamente o impossível encontro com a sua identidade (“Não sei quem sou”,
“Nunca me vi nem achei”), da mesma forma que afirma negativamente a sua pluralidade (“Não sei
quantas almas tenho”).
A verdade é que o poeta não foge à fragmentação que o confronto com o seu plural acarreta, antes
a procura, como único caminho para o encontro consigo mesmo, já que “Ser um é cadeia, /Ser eu
não é ser”, mas sabe que esse é um caminho sem retorno e que cada um dos fragmentos ou a
totalidade dos fragmentos em que a sua alma de estilhaçou jamais lhe devolverão a unidade
perdida. Como afirma num poema “Torno-me eles e não eu.” Ou num outro “Partiu-se o espelho
mágico em que me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.”.
Resta-lhe, pois, a interrogação filosófica, ontológica do mistério, mesmo que essa interrogação
se perca como um eco de si mesmo e o poeta seja espectador de si mesmo, a sua “própria
paisagem”. Resta-lhe também angustia de saber as perguntas irrespondíveis. Resta-lhe ainda olhar
em espelhos de “aguas paradas” que não lhe devolvem o rosto, e a imagem que neles encontra só
lhe acrescenta a solidão interior e a melancolia de saber-se “um mar de sargaços / um mar onde
boiam lentos / fragmentos de um mar de além”.
Além é uma palavra que podemos associar à poesia de Fernando Pessoa ortónimo. É que, impelindo
pela sua permanente inquietação, sente que “tudo é do outro lado”, tudo está para além do muro
ou para além da curva da estrada. Por isso, o sonho é preciso, é preciso ir ao encontro do jardim
encantado ou da ilha do sul, mesmo que saiba que os “sonhos são dores” e “que não é com ilhas do
fim do mundo / que cura a alma seu mal profundo”. Mesmo que o sonho o afaste da vida e dos
outros, o impeça de viver a vida como ela é ou parece ser. E é muitas vezes com resignação que
aceita o desajuste entre a realidade e o sonho, continuando que interrogar-se se este não será mais
real que aquela.
Além é ainda passado, infância irremediavelmente perdida, o tempo em que o eu era feliz porque
ainda não se tinha procurado e, por isso, são se tinha fragmentado. A nostalgia da infância é,
assim, um dos temas mais tocantes da poesia de Pessoa ortónimo que recorda o tempo em que era
1
feliz sem saber o que era. “A criança que fui vive ou morreu?”. Interroga-se lancinantemente o
poeta e ainda “E eu era feliz? Não sei :\ Fui-o outrora”.
A criança que foi é como o gato que brinca na rua ou a ceifeira cuja sorte o poeta inveja, já que
sentem alegria e satisfação sem saberem que a sentem, ao contrário do poeta que já não pode
sentir essa alegria sem pensar nela, e consequentemente, deixa-la de senti-la. “O que em mim esta
pensando” afirma tristemente ao ouvir o canto da ceifeira que “Ondula como um canto de ave”. A
dor de pensar, é assim, outro dos temas da poesia de Pessoa ortónimo, o poeta fingidor que
procura escrever distanciado do sentimento, já que a “composição de um poema lírico deve ser feita
não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela” e, por isso, a poesia não pode
ser a expressão direta de uma emoção vivida, mas a expressão direta do rasto dessa emoção. Para
Pessoa, a poesia é, pois, fingimento poético.
É uma poesia intensamente musical que recorre à métrica curta e frequentemente à quadra, no
gosto pela tradição lírica lusitana e popular. Faz uso de um vocabulário simples e sóbrio e utiliza um
tom espontâneo, muitas vezes interrogativo, muitas vezes negativo, por vezes irónico. No entanto, é
também uma poesia que faz uso de uma linguagem fortemente simbólica, onde abundam as
metáforas inesperadas e os paradoxos desconcertantes.
Análise de Poemas
"Sou um Evadido"
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
Reflexão:
2
O sujeito poético neste poema procura caracterizar a sua realidade fragmentada, servindo-se do
campo semântico de prisão.
Através da reflexão filosófica a sua opção de fuga aos limites do ser, procura realçar a naturalidade
de cansaço que caracteriza o ser humano e afirma que ser uno é ser prisão e que, por isso, só vivera
plenamente fingido de si próprio.
Reflexão:
A noção de viagem presente no primeiro verso está associada à ideia de procura para o sujeito
poético viajar não implica ganhar países, ganhar lugares na rota da sua vida; significa, antes,
procura de si mesmo, encontro consigo mesmo.
No entanto, o poema parte de uma ideia paradoxal de viagem, falando-se aqui de uma viagem
permanente, de partidas constantes, na qual cada rosto de si mesmo encontrado é um lugar
imediatamente perdido. Ou seja, trata-se de uma viagem permanente procura e descoberta do ser
que é sempre outro e não tem amarras a ninguém, nem a si mesmo.
3
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Reflexão:
Este poema é claramente ilustrativo da temática do “ser”. Mas outros temas ou ideias nele se
revelam poesia pessoante: o desconhecimento de si mesmo; a perda de identidade, a ideia de
mobilidade; a solidão e a angústia.
No poema, o sujeito poético assiste à sua fragmentação como se a sua consciência fosse um ser
exterior a si mesmo; como se, ao olhar-se visse uma paisagem de si mesmo ou como se,
autoanalisar-se lesse um livro cujas páginas são o seu próprio “ser”. Estas ideias tornam-se
evidentes na utilização de diversas metáforas que sugerem a ideia do “eu” alheio e exterior a si
mesmo.
"Autopsicografia"
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
4
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Reflexão:
Neste poema Fernando Pessoa fala da teoria do fingimento poético, pois um poema não traduz
aquilo que o poeta sente, mas sim aquilo que o poeta imagina a partir da recordação do que
anteriormente sentiu. O poeta é, assim, um fingidor que escreve uma emoção fingida, pensada, por
isso fruto da razão da imaginação e não a emoção sentida pelo coração, que apenas chega ao
poema transfigurada na tal emoção trabalhada praticamente.
O leitor não sente nem a emoção vivida realmente pelo poeta, nem a emoção por ele fingida no
poema, sentido apenas o que na sua inteligência é provocado pelo poema – assim, a poesia,
segundo Fernando Pessoa, é a intelectualização da emoção.
"Isto"
Reflexão:
Neste poema o sujeito poético utiliza a imaginação, deixando de parte todas as emoções.
5
O poeta neste poema compara todas as suas emoções a um terraço, esta comparação permite
salientar a separação entre as sensações e as emoções.
Basicamente, este poema foi escrito como resposta à falta de compreensão, por parte dos leitores,
do poema “Autopsicografia”. Como tal, no último verso do poema, o sujeito poético dirige-se aos
leitores para salientar a ideia de que a eles caberá um sentir diferente de poeta, isto é, cada leitor
terá a liberdade de sentir o poema como quiser, seja com emoção, ou seja. Com inteligência.
A relação existente entre os dois poemas “Autopsicografia” e “Isto” tem como tema comum o
fingimento poético, funcionando ambos como uma espécie de arte poética, nos quais o sujeito
poético expõe a sua teoria da poesia como intelectualização da emoção.
Reflexão:
6
Ela canta pobre ceifeira" é um poema não datado de Fernando Pessoa, de autoria ortónima, e escrito
antes de 1915, publicado na revista Athena, em Dezembro de 1924.
Pensar-se-ia que um tema bucólico, como uma cena de ceifeiras trabalhando no campo, não atrairia
a atenção de Fernando Pessoa, que é, iminentemente, um poeta racional e pouco dado à observação
plena da natureza. Mesmo em Alberto Caeiro, a natureza aparece muita das vezes como um
adversário, como algo que se contrapõe agressivamente ao homem, mostrando a este quanto ele
está desenquadrado, quanto ele próprio é "pouco natural".
A verdade é que, apesar do tema ser bucólico, a análise do mesmo não é. Vemos que há o ponto de
partida da figura humana - da ceifeira - e a paisagem natural, mas o que de facto interessa o poeta
é algo na ceifeira enquanto ser humano enquadrado na paisagem natural: o seu sentimento de
alegria. "Ela canta (...) Julgando-se feliz talvez", diz o poeta. E é isso que o perturba, é isso que o
faz pensar. É o canto feliz e despreocupado da ceifeira, naturalmente pobre e cansada, que faz
Pessoa interrogar-se. Ela canta como se tivesse mais razões para cantar do que a vida, diz ele.
"Canta sem razão!". Porque para o poeta a vida é feita, principalmente, de desilusão. Como pode
por isso alguém como a ceifeira, ignorante, pobre, trabalhadora do campo, viúva anónima, ser tão
feliz?
Reflexão:
Neste poema o sujeito poético revela tristeza e desolação por não conseguir abolir o viço excessivo
do pensamento. O poeta afirma que gostaria de ser a ceifeira, com a sua “alegre inconsciência” –
gostaria de sentir sem pensar; mas paradoxalmente, gostaria também de ser ele mesmo, ou seja,
ter a consciência de ser inconsciente – o que ele deseja é unir o plano do sentir e o plano de pensar
A relação existente entre os dois poemas existentes no tema “a dor de pensar” apresentam um
tema central idêntico: “a dor de pensar” provocada pela intelectualização do sentido. “Ceifeira” e
7
“Gato” são símbolos de uma alegre inconsciência, enquanto Pessoa afirma para si uma espécie de
trituração mental que o conduz a parte alguma – “o que em mim sente, ‘stá pensado!”
Reflexão:
Este poema foi escrito para caracterizar o homem, que sente e pensa. Nele a razão e a emoção são
mentira porque não se conjugam. Por seu lado, a flor, nem sente nem pensa e, no entanto,
desabrocha sem precisar de razão e de coração. Para a flor, florescer é um ato involuntário, tal
como é um ato involuntário para o homem pensar.
O sujeito poético procura realçar um apelo irónico ao “carpe diem” que procura sugerir que,
enquanto a morte não chega, devemos aproveitar cada momento da vida, seja florindo
inconscientemente como uma flor, seja pensando, como é inevitável no homem.
Reflexão:
Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito poético que eram “leves” e
“desatentos”, semelhantes a “algas” ou “cabelos” que “boiam” lentamente “á tona de águas”; são as
coisas insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O sujeito poético, observando o seu mundo
inteiro, redu-lo a uma insignificância insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos,
os seguintes recursos: a metáfora, a comparação, a adjetivação expressiva e o paradoxo.
O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de elementos físicos sem vida, que fazem
lembrar desperdício e que não permitem o encontro consigo mesmo. Deste desencontro resulta a
angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o sentimento de vazio que dominam o sujeito
poético.
9
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Reflexão:
O sujeito poético neste poema procura autoanalisar-se com a sua lucidez aguda, a sua alma “lúcida
e rica”, na tentativa de se autoconhecer. No entanto, aquilo que encontra é um espelho sem reflexo,
“um mar de sargaço” que impede o encontro consigo mesmo.
Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe revela a impossibilidade de se
conhecer.
Reflexão:
10
O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a hipótese de poder alcançar o
sonho, numa segunda fase contradiz a hipótese colocada, expondo a concretização do sonho.
Finalmente conclui que não é necessário fingir para o sonho, porque aquilo que procuramos está
dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir que é “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa
entender que mesmo estando dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são difíceis
de alcançar.
Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do binómio, sonho/realidade.
Reflexão:
Este poema foi escrito com o intuito de caracterizar a palavra “muro” que, neste caso, representa
metaforicamente a ideia de fronteira ou de divisão entre a realidade e o sonho, uma separação que
estabelece os limites do sujeito poético.
O sujeito poético neste poema pretende, provavelmente, exprimir a sua incapacidade de sentir (uma
vez que a imaginação só sobrepôs à sensação), ao mesmo tempo que afirma a sua angústia.
11
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
Reflexão:
Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas que também é
partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos.
Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo longínquo em
que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo,
e por isso, ainda não se tinha fragmentado. Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa
infância provocada por um qualquer estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as
crianças brincavam / E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir
amargamente que o rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu – agora”.
Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de rutura, de corte,
de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há semelhança / Entre quem sou e
fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui quando criança?” exprime essa admiração
perturbante de se sentir habitado por outro, diferente da criança que foi “sou outro?”.
No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.
12
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
Reflexão:
Este poema foi escrito para poder ser visto de modo metafórico, a representação do próprio poeta
que sabe ser impossível o regresso ao regresso materno, porque a infância ficou para trás,
inevitavelmente perdida, ideia que pode relacionar-se com a temática pessoana “a nostalgia da
infância” – a época de ouro, da felicidade inconsciente, para sempre perdida, que contrasta com a
situação presente caracterizada por consciência aguda que provoca no poeta a sensação de
desconhecimento de si mesmo, a perda de identidade.
O sujeito poético neste poema fala também da cigarreira dada pela sua mãe e o lenço dado pela
alma que o ajudou a criar, são representações do seu passado de “menino” que viveu junto a quem
o amava.
· Pendor filosófico;
· Fingimento poético;
Estilo;
Alberto Caeiro
Como podemos ler na carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa criou o heterónimo Alberto
Caeiro, no dia 8 de março de 1914 e em seu nome escreveu, a fio, um conjunto de poemas aos
quais deu o título de O Guardador de Rebanhos. Pessoa chamou-lhe o “Mestre” e criou para ele uma
biografia, uma fisionomia, uma obra.
Assim, Alberto Caeiro nascera em 16 de abril de 1889, em Lisboa, no entanto, órfão de pai e mãe, e
vivera quase toda a sua vida retirado, no Ribatejo, na quinta de uma tia-avó, onde se recolhera
devido a problemas de saúde. Era de estatura média, louro, de pele muito branca e com os olhos
azuis. Não estudou nem exerceu qualquer profissão e foi no Ribatejo que escreveu o fundamental da
sua obra: O Guardador de Rebanhos, primeiro, e O Pastor Amoroso, depois. Voltou para Lisboa no
14
final da sua curta vida e aí escreveu ainda os Poemas Inconjuntos, antes de morrer de tuberculose,
em 1915, quando tinha apenas vinte e seis anos.
Fernando Pessoa chamou a Caeiro o seu “Mestre”, pois ele era aquilo que Pessoa não conseguia ser:
alguém que não procura qualquer sentido para a vida ou o universo, porque lhe basta aquilo que vê
e sente em cada momento. Vive, assim, exclusivamente de sensações e sente sem pensar. É, pois,
o criador do Sensacionismo, e também o Mestre dos outros heterónimos pessoanos. Enquanto
Pessoa ortónimo procura incessantemente conhecer o que está para além daquilo que vê e sente,
Caeiro não procura conhecer, não deseja adivinhar qualquer sentido oculto, uma vez que o “único
sentido oculto das coisas / é elas não terem sentido oculto nenhum” e “as coisas não têm
significado, têm existência”.
Nos seus poemas, está expresso um conceito de vida segundo o qual, partindo da aceitação serena
do mundo e da realidade, saboreia tranquilamente cada impressão captada pelo seu olhar, ingénuo
como o de criança. É, ao contrário de Pessoa, o poeta do real objetivo e nunca foge para o sonho,
nem sequer para a recordação. Vive no presente, sem pensar no passado, e por isso não sofre de
qualquer nostalgia, e sem pensar no futuro e, por isso, não tem medo da desilusão, nem mesmo da
morte.
Alberto Caeiro é o “poeta da Natureza” e com ela partilha cada instante que o ciclo das estações lhe
traz, feliz e deslumbrado com cada uma das maravilhas simples e naturais que o seu olhar lhe
permite ver. Sente-se fazendo parte dessa natureza, como um rio, ou uma árvore, ou a chuva, ou o
sol que brilha nos seus poemas como em nenhum outro poeta da “constelação pessoana”.
Imbuída desta dimensão natural, a poesia de Caeiro é uma espécie de expressão espontânea e
quase instintiva de pensamentos que são sensações. É uma poesia livre, inovadora, próxima da
prosa e do falar quotidiano, como se brotasse de alguém que fala com um amigo, sentado dob o
alpendre, ao entardecer. É clara e recorre a uma linguagem extraordinariamente simples. Nos seus
poemas, mais ou menos longos, não há regras métricas, nem estróficas nem rimáticas. Para
exprimir o real objetivo, usa predominantemente o substantivo concreto e para clarificar o
pensamento, utiliza, com frequência, a comparação.
"Poema Primeiro"
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
16
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Reflexão:
O poeta compara-se a um pastor que anda pelos campos a guardar rebanhos, neste caso, os seus
rebanhos são os seus pensamentos.
O sujeito poético identifica-se bastante com a natureza, pois ele afirma que anda ao ritmo das
estações, compara os seus estados de espírito com momentos de natureza.
Na última estrofe do poema o sujeito poético apresenta uma saudação de uma espécie de camponês
que tira o chapéu em sinal de respeito e deseja aquilo que é mais importante para o Homem ligado
à natureza.
Alberto Caeiro afirma-se um poeta que exprime o desejo de abolir a consciência, isto é, o vício de
pensar, lamentando o facto de ter consciência dos seus pensamentos, enunciando repetitivamente o
ato de ver, além de outras sensações.
"Poema Segundo"
Reflexão:
No primeiro verso deste poema o sujeito poético apresenta uma comparação com um girassol. Esta
comparação é feita para mostrar a nitidez do seu olhar, pois esta planta tem a particularidade de
seguir continuamente a luz do sol. Para o poeta a sensação visual é-lhe suficiente na sua relação
com o mundo, rejeitando pensamentos.
O sujeito poético neste poema afirma que basta sentir a realidade, não precisa de a questionar, não
precisa de saber porque é que ela existe.
Alberto Caeiro é um poeta que consegue submeter o pensamento ao sentir, abolir o vicio de pensar
e viver apenas pelas sensações. Alberto Caeiro consegue alcançar facilmente aquilo que para
Fernando Pessoa é um desejo impossível.
"Poema Nono"
18
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Reflexão:
O poema estrutura-se em três partes lógicas, que correspondem às três estrofes nele presentes:
· A primeira estrofe apresenta-se com a introdução, na qual o sujeito poético se afirma como
aquele que vive apenas pelas sensações;
· A segunda estrofe apresenta-se como justificação do significado que ele atribui ao ato de
pensar: pensar é sentir;
· A última estrofe tem valor conclusivo e, nela, o sujeito poético apresenta um exemplo de caráter
pessoal sobre a experiência de sentir.
É através das sensações (dos cinco sentidos referidos nos v.v 4,5 e 6) que o sujeito poético
estabelece a relação com a realidade, seja ela uma flor, um fruto ou um dia de calor; e essa forma
de relação sensacionalista com a realidade é que lhe basta, pois é a única que lhe fez saber a
verdade e ser feliz (último verso).
Ao afirmar a sensação como fonte única do conhecimento real, o sujeito poético nega
completamente o pensamento, submetendo-o a sensação. Ele consegue, de certo modo, realizar
algo que no ortónimo era impossível: unir o pensar ao sentir, quando, por exemplo, afirma “pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la”.
"Poema Décimo"
19
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
Reflexão:
Este poema constrói-se como um diálogo entre o sujeito poético (“guardador de rebanhos”) e um
outro que com ele se cruza no caminho (“Aí à beira da estrada”) e que o interpela sobre o
significado do vento (vento é símbolo do real). Este diálogo é um processo que permite apresentar
dois pontos de vista, diferentes a dois níveis:
· Primeiro, para o sujeito poético, a relação com a realidade passa por sentir apenas essa
realidade, sem a pensar ou imaginar; para o seu interlocutor, a realidade é muito mais do que
aquilo que se sente, pois é também porta aberta para a memória, a saudade e o sonho;
· Segundo, para o sujeito poético só existe a verdade do momento, do presente; para o seu
interlocutor, o presente conduz à memória do passado e a imaginação do futuro.
Pode estabelecer-se uma clara relação entre os pontos de vista assumidos pelas duas personagens
com os traços que caracterizam Alberto Caeiro e Fernando Pessoa ortónimo - neste poema, Alberto
Caeiro apresenta-se como negação do ponto de vista do ortónimo: “a mentira está em ti”.
Reflexão:
O sujeito poético, neste poema, ao comparar-se com a árvore e com o rio, pretende realçar a sua
tese de não haver mistério nas coisas.
Alberto Caeiro afirma-se um poeta onde diz que a realidade é apensas o que é, e por isso não tem
mistérios a desvendar, contrariando tudo aquilo que as outras pessoas pensam sobre as coisas,
acreditando que elas contêm algo mais para além daquilo que é visível.
Alberto Caeiro
“O Mestre tranquilo da sensação”
· É o mestre que Pessoa opõe a si mesmo, com o qual tem que aprender:
· Criador do Sensacionismo, vive se sensações, sobretudo visuais, afirmando que é preciso “saber
ver sem estar a pensar”, sem tentar “encontrar um sentido às coisas”, porque “as coisas não têm
significado: tem existência”.
· Identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja diluir-se nela, integrando-se nas
leias do universo, como se fosse um rio ou uma árvore.
Estilo
· Estilo discursivo
· Pendor argumentativo
Álvaro de Campos
A partir da carta a Adolfo Casais Monteiro, mas também de outros textos deixados por Fernando
Pessoa, podemos construir a biografia do heterónimo Álvaro de Campos que terá nascido em Tavira,
no dia 15 de outubro de 1890. Fez o liceu em Lisboa e partiu depois para Glasgow, na Escócia, onde
frequentou o curso de Engenharia Naval. Em dezembro de 1913, fez uma viagem de barco ao
Oriente durante a qual terá começado a escrever poesia. No regresso, desembarcou em Marselha,
prosseguindo por terra a viagem para Portugal. Instalado em Lisboa, foi nesta cidade que passou a
viver sem exercer qualquer atividade para além da escrita. Pessoa descreve-o como alto, elegante,
de cabelo preto e liso, com risca ao lado, usando monóculo e com um “tipo vagamente de judeu
português”.
Foi na revista “Orpheu”, em 1915, que Fernando Pessoa publicou os primeiros poemas em nome de
Álvaro de Campos: “Opiário”, que teria sido escrito no Canal do Suez durante a viagem ao Oriente e
a “Ode Triunfal”, escrita em Londres. No número 2 da mesma revista, publicou a “Ode Marítima” e
em 1917 publicou o “Ultimatum”, no “Portugal Futurista”, revista imediatamente apreendida pela
polícia. Vive e trabalha durante alguns anos na Inglaterra, regressando de vez em quando a
Portugal. Dois desses regressos estão patentes nos poemas “Lisbon revisited – 1923” e “Lisbon
revisited – 1926”. Fixa-se definitivamente em Lisboa e vai publicando poemas em revistas literárias.
Sendo o heterónimo pessoano que o poeta mais publicou, Álvaro de Campos é também aquele que
apresenta uma evolução mais nítida, podendo na sua obra distinguir-se três fases. Assim, os seus
primeiros poemas, escritos durante a viagem ao Oriente, aproximam-se de outros poetas da
viragem do século, os decadentistas; mas o seu verdadeiro génio vanguardista revela-se na sua fase
futurista, quando escreve a “Ode Triunfal”, a “Ode Marítima”, e outros grandes poemas da exaltação
da vida moderna, da força, da velocidade, das máquinas; finalmente, numa terceira fase, escreve
uma poesia mais intimista.
A grande viragem na poesia de Álvaro de Campos aconteceu, de acordo com um relato seu, depois
de ter conhecido Alberto Caeiro, numa viagem que fez ao Ribatejo. Em Caeiro reconheceu
imediatamente o seu Mestre, aquele que o introduziu no universo do sensacionismo. Mas enquanto
Caeiro acolhe tranquilamente as sensações, Campos experimenta-as febrilmente, excessivamente.
Tão excessivamente que, querendo “sentir tudo, de todas as maneiras”, parece esgotar-se a seguir,
caindo numa espécie de apatia melancólica, abúlica, ou num devaneio nostálgico que o aproxima de
22
Pessoa ortónimo com quem partilha o ceticismo, a dor de pensar, a procura do sentido no que está
para além da realidade, a fragmentação, a nostalgia da infância irremediavelmente morta.
Os seus versos livres, longos, por vezes prosaicos, exclamativos e eufóricos ou repetitivos e
depressivos são o exemplo mais acabado do vanguardismo modernista no qual se espelha um sentir
cosmopolita, urbano, febril, nervoso, extrovertido, por vezes insuportavelmente mergulhado no
tédio do quotidiano e no anonimato da cidade.
"Ode Triunfal"
Reflexão:
23
O sujeito poético neste poema exprime com exaltação e excesso o seu orgulho em ser moderno e
contemporâneo de uma beleza industrial “totalmente desconhecida dos antigos” num desejo
assumido de acolher todas as sensações.
"Ode Marítima"
Reflexão:
"Datilografia"
Outrora.
25
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Reflexão:
Este poema foi escrito para salientar que o sujeito poético encontra-se no seu gabinete de
engenheiro onde exprime a náusea, o tédio, as sensações que o envolvem, neste caso a monotonia
agressiva do “tic-tac” das máquinas de escrever. Este cansaço do presente fá-lo querer regressar ao
tempo da sua infância, da sua felicidade inconsciente, mas o ruído do presente interpõe-se,
deixando-o sem desespero.
Álvaro de Campos
“o filho indisciplinado da sensação”
· Poeta modernista, a sua poesia tem três fases: decadentistas, futurista e pessoal-intimista;
· Poeta sensacionista desde que conheceu Caeiro, como o Mestre, vira-se para o exterior, tenta
banir o vício de pensar e acolhe todas as sensações;
· Fuga para a recordação e/ou sonho que tendem a substituir a vida real.
· Angústia existencial; sentido do absurdo; tédio, náusea, cansaço, desencontro dos outros.
26
· Ceticismo e ironia.
Estilo
Ricardo Reis
“o poeta da autodisciplina”
De acordo com a carta de Fernando Pessoa a João Gastar Simões, o poeta começou a esboçar o
heterónimo Ricardo Reis em 1912 quando lhe veio “à ideia escrever uns poemas de índole pagã”,
mas seria apenas no “dia triunfal” – 8 de março de 1914 – que ele surgiria, a completar o trio
Caeiro, Campos, Reis.
Tal como fez para os outros, Fernando Pessoa criou para Reis, além do nome, a idade, a fisionomia,
a biografia, o estilo. Assim, Ricardo Reis teria nascido no Porto, no dia 19 de setembro de 1887.
Educado num colégio de jesuítas onde recebeu uma sólida educação clássica, formou-se em
Medicina. Era monárquico e, por isso, em 1919 teve que se exilar no Brasil, na sequência da derrota
da rebelião monárquica do Porto contra o regime republicano instaurado havia apenas nove anos.
Era moreno, mais baixo e mais forte que o Caeiro.
Fernando Pessoa publicou poemas de Ricardo Reis – vinte odes – pela primeira vez em 1924, na
revista “Athena” por si fundada; depois, entre 1927 e 1930, oito odes foram publicadas na revista
“Presença” de Coimbra. Os restantes poemas e a prosa de Ricardo Reis são de publicação póstuma.
Discípulo de Caeiro, como Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos, Ricardo Reis apresenta, contudo,
uma poesia muito diferente da dos outros poetas-Pessoa. À grande questão da indagação do sentido
da existência, colocada de forma diversa por cada um deles, Reis responde como se fosse um
homem de outro tempo e de outro mundo, um grego antigo, pagão a braços com o Destino. Sabe
que a efemeridade é parte da condição humana, que na vida tudo passa, e sobre cada momento
vivido pesa a sombra da caminhada inexorável do Tempo. Então, para enfrentar esse medo da
morte, defende que é preciso viver cada instante que passa, sem pensar no futuro, numa perspetiva
epicurista de saudação do “carpe diem”. Mas essa vivência do prazer de cada momento tem de ser
feita de forma disciplinada, digna, encarando com grandeza e resignação esse Destino de
precariedade, numa perspetiva que tem raízes no estoicismo.
27
Reis é, afinal, um conformista que pensa que nenhum gesto, nenhum desejo vale a pena, uma vez
que a escolha não está ao alcance do homem e tudo está determinado por uma ordem superior e
incognoscível. Para quê, então, querer conhecer a verdade que, a existir, apenas aos Deuses
pertence? Nada se pode conhecer do universo que nos foi dado e por isso só nos resta aceitá-lo com
resignação, como o destino. Além disso, o medo do sofrimento paraliza-o conduzindo-o a uma
filosofia de vida terrivelmente vazia. Para Ricardo Reis, a vida deve ser conduzida com calculismo e
frieza, alheia a tudo o que possa perturbar. E como tudo o que é verdadeiramente humano é intenso
e perturbante, Reis isola-se, numa espécie de gaiola dourada que o protege de qualquer
envolvimento social, moral ou mesmo sentimental.
A educação que teve criou nele o gosto pelo classicismo e é na “imitação” do poeta latino Horácio
que se baseia a construção daquilo que é fundamental na sua poesia. Uma poesia neoclássica, pagã,
povoada de alusões mitológicas. Enfim, uma poesia moralista, sentenciosa, contida, sem qualquer
traço de espontaneidade. Cultivando preferencialmente a ode, utiliza uma linguagem culta,
rebuscada – o hipérbato, inversão da ordem normal dos elementos da frase, é um recurso
amplamente usado.
Reflexão:
Neste poema de acordo com o sujeito poético, devemos viver o presente sem pensar ou recordar o
passado, porque não podemos evitar que o tempo passe, pois todo o presente se converte
rapidamente em passado e, por isso é inútil conhecer.
Tal como Alberto Caeiro, Ricardo Reis apresenta-se como poeta do presente, rejeitando a recordação
do passado ou o autoconhecimento, para se concentrar na perspetiva do ser como existência.
28
"Uns com os olhos postos no passado"
Reflexão:
O sujeito poético neste poema diz que “uns” e “outros” são os que não são capazes de viver o
presente. Assim, “uns” vivenciam o tempo olhando para o passado, o que significa não ver a
realidade, pois já não existe. “Outros” olham para o futuro e, por isso também não veem a
realidade, uma vez que apenas existe na imaginação.
Neste poema o sujeito poético usa vários paradoxos para traduzir a impossibilidade e o engano a
que são conduzidos aqueles que vivem da recordação ou da imaginação.
Reflexão:
29
O sujeito poético neste poema defende uma filosofia de vida que assenta na aceitação do destino de
uma forma tranquila, sem tentativas de o mudar, alimentando desejos ou esperanças pois “Nada
mais nos é dado”. Tentar fugir ao destino seria inútil, porque viver radica numa total
incompatibilidade entre aquilo que se deseja e aquilo que se alcança. O sujeito poético revela, em
suma, o seu conformismo face ao destino, de fase estoicista – não vale apenas desejar, não vale
apenas ter esperanças, porque a nossa vida será apenas como foi programada e o melhor é aceitar
isso com dignidade.
Reflexão:
1ª Estrofe
2ª Estrofe
· Consciência da efemeridade da vida, da impossibilidade de voltar a vivê-la, uma vez que o “fado”
tudo controla.
3ª Estrofe
· Desenlace amoroso, pois é preciso evitar os grandes desassossegos para evitar a dor.
4ª Estrofe
5ª Estrofe
6ª Estrofe
7 e 8 Estrofes
· Conclusão do poema e justificação para o modelo de vivência amorosa defendido pelo poeta: se
um deles morrer antes o outro, não terá que sofrer por isso, uma vez que viveram um amor
inocente, sem excessos.
O sujeito neste poema propõe a Lídia uma relação tranquila, contida, sem envolvimento nem paixão,
como única forma de evitar o sofrimento provocado pela separação que a morte de um deles
poderia trazer.
No poema, são notórios os conceitos de epicurismo e estoicismo, aqui fundidos: se a vida passa e
não se pode evitar a morte, é preciso, por um lado, aproveitar totalmente o presente (epicurismo) e,
por outro lado vivê-lo com serena e disciplinada aceitação do destino (estoicismo).
Ricardo Reis
“o poeta da autodisciplina”
· Discípulo de Caeiro, como o Mestre aconselha a aceitação calma da ordem das coisas e faz o elogio
da vida campestre, indiferente ao social (áurea mediocritas)
31
· Faz dos Gregos o modelo da sabedoria (aceitação fatalista do Destino de uma forma resignada,
mas digna e altiva) e do poeta latino Horácio o modelo poético.
· Reflete sobre o fluir do Tempo; tem consciência da dor provocada pela natureza precária do
homem; medo da velhice e da morte.
· Paganismo assumido.
Estilo
32