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A nossa apresentação vai-se focar no poema “E há poetas que são artistas” de Alberto Caeiro,

heterónimo de Fernando Pessoa e reconhecido como o mestre do escritor e também de todos


os seus heterónimos.

Vamos começar com a leitura do poema e de seguida, fazemos a sua análise e interpretação.

E há poetas que são artistas

E trabalham nos seus versos

Como um carpinteiro nas tábuas! ...

Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, corno quem constrói um muro

E ver se está bem, e tirar se não está! ...

Quando a única casa artística é a Terra toda

Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,

E olho para as flores e sorrio...

Não sei se elas me compreendem

Nem sei eu as compreendo a elas,

Mas sei que a verdade está nelas e em mim

E na nossa comum divindade

De nos deixarmos ir e viver pela Terra

E levar ao solo pelas Estações contentes

E deixar que o vento cante para adormecermos

E não termos sonhos no nosso sono.

Neste poema, cujo tema é a reflexão sobre o processo de criação poética e a sua relação com a
Natureza, Caeiro reflete sobre as diferentes formas de poesia.

No poema, são apresentados dois processos distintos de criação poética.

O primeiro é o dos poetas que designa, ironicamente, por artistas. De acordo com este
processo, a poesia corresponde a um trabalho minucioso, rigoroso e artesanal, sendo mesmo
comparado ao trabalho dos carpinteiros e dos pedreiros. Neste contexto, as comparações
enfatizam o trabalho formal e, por conseguinte, consciente dos poetas que se dedicam a essa
poesia elaborada e produzida como outras construções humanas.

Dito de outra forma, expressam a preocupação desses poetas com a seleção das palavras, da
combinação de rimas / sonoridades, de arranjos estilísticos, de ritmos poéticos, da métrica dos
versos, etc…

No fundo, o sujeito poético está a criticar todos aqueles que não conseguem ser espontâneos
no ato de criação poética.

Para ele, “a poesia não é um trabalho nem uma convicção, é uma forma de revelar os
mistérios da Natureza” e de se assemelhar cada vez mais a ela.

Esta é a segunda conceção de poesia– defendida pelo sujeito poético. O «eu» manifesta a sua
tristeza e estranheza por haver poetas que não são capazes de «florir», ou seja, de fazer da
criação poética um ato involuntário, espontâneo e tão natural quanto o ato de «florir».

Aparentemente, não há absolutamente nada a mudar nesta conceção. Deste modo, a criação
poética deve resultar espontaneamente da identificação do «eu» poético com a Natureza.
Assim se explica o seu lamento relativamente a esses poetas. Este verso intensifica o quão
triste é não partilhar da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da Natureza e não ser
capaz de fazer da criação poética uma ação natural e espontânea. Ele considera que é “triste”
ter de trabalhar os versos “como um carpinteiro nas tábuas” e não ser capaz de os fazer
“florir” sem artifícios, de uma forma simples e natural. Ora, sendo a Natureza a verdadeira
arte, a poesia deverá ser como ela, isto é, a expressão sensorial, nítida, fluida do que nos
rodeia.

Deste modo, o primeiro processo, o de uma poesia pensada, opõe-se à ideia de uma poesia
espontânea e simples, dado que está em contradição com a própria natureza que, na sua
diversidade e harmonia, constitui o modelo da verdadeira arte.

Por outro lado, insiste na relação íntima com a Natureza, a fonte de inspiração e criação
poética. Uma vez que a harmonia já existe nela, não é necessário intelectualizar o ato de
escrita. O essencial em poesia é registar o mundo que o rodeia de forma tão natural e
espontânea como é o ato de florir ou respirar. Caeiro é o poeta da Natureza que privilegia o
olhar, daí que tenha apenas de estar atento ao que ela lhe transmite.

Mesmo reconhecendo a impossibilidade de compreensão entre ele e as flores, o sujeito


poético sabe que em ambos mora a verdade e que há uma “comum divindade” que lhes
permite usufruir dos encantos da Terra, das “Estações contentes” e dos cânticos do vento.
Para que tal suceda, é necessário evitar a abstração do pensamento e privilegiar uma relação
natural, espontânea (“como quem respira”) com a “única casa artística” que é a “Terra toda”.
Ora, é esse contacto com a Natureza a única forma de aceder à “verdade”.

Note-se também o desprendimento da vida em harmonia com os elementos naturais, uma


espécie de mãe protetora que o leva ao colo, que o embala e transmite paz e tranquilidade,
evitando a existência de “sonhos” – sonhar é pensar, na medida em que se constitui como uma
atividade mental durante o sonho. É, no fundo, mais uma afirmação da recusa do ato de
pensar, de rejeição de qualquer atividade mental que se oponha à autenticidade dos
elementos da Natureza que descreveu.
Em suma, Caeiro expõe a sua “teoria poética”, que pode resumir-se ao seguinte: a poesia é o
simples ato de captar a Natureza através dos sentidos de forma espontânea, de acordo com
uma relação de comunhão e harmonia.

De outra forma, movimentam-se os poetas que fazem da poesia um trabalho árduo de


intelectualização, de exposição de conceitos e combinação artística das palavras.

Repetindo, estamos perante o confronto entre uma forma de elaborar poesia caracterizada
pela simplicidade, objetividade, espontaneidade, naturalidade, e outra artificial, muito
pensada e elaborada.

O poema pode dividir-se em duas partes distintas: a primeira parte engloba as três primeiras
estrofes e a segunda parte corresponde à última estrofe. Nas primeiras estrofes, o sujeito
poético faz referência à forma de poesia dos poetas “artistas” que são poemas bastante
mecanizados e pensados. Na segunda parte, o sujeito poético dá a entender a sua permanente
busca pelas sensações, ao contrário dos poetas que anteriormente referi.

Este poema é caracterizado pela ausência de rima e pela linguagem simples, com um
vocabulário igualmente simples e repetitivo, pertencente aos campos lexicais da poesia, como
é o caso de “versos” e “poetas”, e da Natureza, fonte inspiradora do sujeito lírico (“florir”,
“Terra”, “flores”, “Estações”, “vento”).

Por outro lado, a adjetivação é escassa, resumindo-se à presença de quatro adjetivos: “triste”,
“artística”, “comum” e “contente”. No que diz respeito à estruturação sintática, predomina as
orações coordenadas copulativas, típicas do discurso oral.

A pontuação expressiva concorre de igual modo para conferir ao poema um certo tom
coloquial.

A nível estilístico, ressalta-se o uso dos recursos mais simples, como a comparação, a
metáfora, a personificação e o polissíndeto (repetição da conjunção coordenativa copulativa
«e», que acentua o estilo simples de Caeiro).

Podemos observar também características importantes da poética de Caeiro, tais como:

 O Sensacionismo, traduzido na sobrevalorização das sensações, e associado também à


recusa da metafísica, ou seja, do pensamento, e da razão (“Penso nisto, não como
quem pensa, mas como quem respira”);
 A valorização da natureza (panteísmo). Esta crença assenta na existência material
como a única verdade das coisas (“Mas sei que a verdade está nelas”);
 Verifica-se também uma comunhão intensa com a Natureza, o que resulta na sua
integração e identificação com os elementos naturais (“De nos deixarmos ir e viver
pela Terra/ E levar ao solo pelas Estações contentes/ E deixar que o vento cante para
adormecermos”);
 A simplicidade da sua escrita é algo que ressalta aos nossos olhos e que acaba por ser
elogiado e valorizado no conteúdo do poema

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