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O Colar da Pomba e o passado omíada glorioso (séc.

XI)

Celia Daniele Moreira de Souza1

Resumo: A epístola O Colar da Pomba escrita no séc. XI pelo aristocrata árabe-cordobês Ibn
Hazm (994-1064) é famosa por seu rico conteúdo literário alternado entre prosa e poesia, no
qual o autor se utiliza de suas memórias na Córdoba Omíada sob os reinados dos califas Al-
Hakam II Al-Mutansir (961-976) e Hisham II (976-1009), períodos de prosperidade e de
grande desenvolvimento cultural, para doutrinar sobre o amor e as maneiras deste de se
pronunciar nos viventes. Ao narrar suas memórias e delas exemplificar os tipos de amor, Ibn
Hazm combinou um relato de caráter autobiográfico com tradições filosóficas gregas e pré-
islâmicas, compondo um novo ideal de amor, o “amor verdadeiro”, e relegou os melhores
exemplos de sua doutrina à política omíada, fazendo da obra uma espécie de elegia de um
passado “virtuoso” que se fazia presente nas lembranças do autor e na esperança de seu
retorno. Ao ilustrar o tema amoroso com suas memórias, Ibn Hazm reelaboraria sua
experiência vivida enquanto narrador e testemunha ocular dos fatos apresentados. Nesta
comunicação, temos como objetivo discutir como Ibn Hazm mobiliza técnicas literárias para
reelaborar suas memórias e as histórias que “ouviu falar” e estabelecê-las como pano de fundo
de sua doutrina amorosa, buscando, assim, um discurso de defesa e de propaganda do
Califado Omíada de Córdoba.

1. Introdução
A epístola O Colar da Pomba escrita no séc. XI pelo aristocrata árabe-cordobês Ibn
Hazm (994-1064) é considerada uma das obras-primas árabe-andalusinas por seu rico
conteúdo literário alternado entre prosa e poesia, por apresentar os fundamentos do amor
cortês que viria a se difundir pela Europa no século seguinte2 e também por representar por
meio das memórias de seu autor a Córdoba Omíada sob os reinados dos califas Al-Hakam II
Al-Mutansir (961-976) e Hisham II (976-1009), períodos de prosperidade e de grande
desenvolvimento cultural.

1
Programa de Pós-graduação em História Social. E-mail: celia.daniele@yahoo.com.br.
2
ORTEGA Y GASSET, J. Prólogo. In: IBN HAZM de Córdoba. El Collar de la Paloma. Tradução de Emílio
García Gómez. Salamanca: Alianza Editorial, 2008. p. 25-27.
1
Ao propor narrar suas memórias conforme exemplificava os tipos de amor, Ibn Hazm
combinou um relato de caráter autobiográfico com tradições filosóficas gregas e pré-
islâmicas, compondo um novo ideal de amor, o “amor verdadeiro”, que sublima o próprio
desejo em busca da teofania divina expressa no ser amado.3 Ainda que o ideal maior desta
obra seja justamente a doutrinação – dirigida a um amigo, por isso o formato de epístola
(risala) – deste tipo sublime e casto de amor, ao longo da epístola, Ibn Hazm descreveu uma
Córdoba idealizada, em que os bons exemplos foram dados aos governantes omíadas,
tornando evidente sua posição política, e fazendo com que sua obra se tornasse uma espécie
de elegia de um passado “virtuoso” que se fazia presente nas lembranças do autor e na
esperança de seu retorno. Ao ilustrar o tema amoroso com suas memórias, Ibn Hazm
reelaboraria sua experiência vivida enquanto narrador e testemunha ocular dos fatos
apresentados.
A ânsia do autor em propor uma imagem positiva e associá-la aos bons exemplos de
um tipo de amor elevado, aquele que liga o homem a Deus e o torna incorruptível, atendia aos
interesses políticos do Califado Omíada, este em lenta e contínua derrocada no momento de
produção de O Colar da Pomba. Com a crise instalada em 1009, iniciada em 1002 com a
morte do primeiro-ministro (hayib) Al-Mansur – quem de fato governava, disputas de seus
filhos colocariam em questão a legitimidade califal de Hisham II. Lutas seguiram-se não
apenas desta disputa fraterna, mas com a ascensão e confronto de novos califas da dinastia
omíada e hamúdida, invasões berberes e avanços cristãos. Este embate político seguiria até
1031, quando o califado foi declarado extinto e uma nova realidade política foi instaurada em
Al-Andalus: os reinos de Taifas4. Neste ínterim, entre 1023 e 1024, quando fora exilado na
cidade de Játiva, Ibn Hazm escreveu O Colar da Pomba; após o fim efetivo do califado, ele
manteve sua posição política resoluta, o que faria com que colecionasse dissabores e inimigos
políticos. Um dos exemplos das perseguições que sofreu é o que ocorreu em Sevilha em 1040,
quando seus escritos foram queimados em praça pública. Após esse evento, Ibn Hazm retirou-
se para a propriedade rural herdada de seu avô em Montija, destituído de seus bens e benesses

3
MUJICA PINILLA, R. Capítulo Uno: La tradicción médica en Ibn Hazm e Ibn Arabi: algunos síntomas de la
melancolia. In: El Collar de la Paloma del Alma: Amor sagrado y amor profano en la enseñanza de Ibn Hazm y
de Ibn Arabi. Madrid: Hipérion,1990. p. 27.
4
O nome árabe “taifa” pode ser traduzido como “facção”, “bando”, “tendência”. Na historiografia árabe e
hispânica, as taifas são conhecidas como os mais de trinta Estados independentes resultantes da desintegração do
Califado Omíada. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 319.
2
como aristocrata, morreu em 1064. Segundo o arabista Jaime Sanchéz Rátia, alguns
estudiosos consideram que O Colar da Pomba teria sido finalizado apenas no final da vida de
Ibn Hazm, uma vez que a epístola promove o amor de maneira a celebrá-lo do seu início a
quase seu fim, contraditoriamente no último capítulo altera-se o tom para vilipendiar o amor,
incitando o crente muçulmano à castidade e ao apego a Deus em busca de dias melhores.5 Tal
postura leva a considerar a assumpção de uma derrota efetiva do legado omíada por parte do
autor, opondo-se à ideia de uma luta em curso a qual ainda ensejava o retorno do Califado
entre 1023 e 1024.
Como qualquer narrativa, a epístola O Colar da Pomba não é neutra, dessa maneira,
consideramos que Ibn Hazm tenciona um discurso de defesa e de propaganda do Califado
Omíada de Córdoba enquanto descreve o amor. É importante apreender como ele reelabora
suas memórias e as histórias que “ouviu falar”, perpassando os três níveis de mimeses
propostos pela teoria de Paul Ricoeur, e assim elaborando o pano de fundo de sua doutrina
amorosa.

2. A literatura de Ibn Hazm


Das quatrocentas obras alegadamente produzidas por Ibn Hazm, apenas quarenta
chegaram até nós. Os temas os quais ele escreveu são os mais diversos, como jurisprudência
islâmica, lógica, história, religião comparada, amor e em todos deixou sua marca pessoal, a do
apreço pelo bom uso da língua árabe culta em prosa e em poesia.6
Sendo a maioria de seus escritos tratados, O Colar da Pomba se sobressai ao se
diferenciar pela forma e propósito em relação aos outros trabalhos. Escrita em forma de carta
– pois como Ibn Hazm relata, é uma resposta ao apelo de um amigo que gostaria de
compreender o que é o amor – notadamente apresenta seu estilo próprio requintado, com
passagens que exploram a riqueza da língua árabe. Além desta característica, a obra ainda
carrega um viés pessoal e íntimo do autor, aproximando-o do tema ao mesmo tempo em que o
distancia como narrador.

5
SÁNCHEZ RATIA, J. Quince bagatelas en torno a Ibn Hazm. In: IBN HAZM al-andalusi. El Collar de la
Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube. Tradução de Jaime Sánchez Ratia. Madrid: Hiperión,
2009. p. XX.
6
IBN HAZM. Disponível em: http://academic-eb-
britannica.ez29.periodicos.capes.gov.br/levels/collegiate/article/41918 Acessado em: 20 Ago 2016.
3
Ainda que tenha tal abordagem autobiográfica, nem todas as histórias contadas por Ibn
Hazm em O Colar da Pomba foram vividas pelo mesmo, sendo reelaborações literárias
daquilo que ouviu falar ou que era de conhecimento de todos. Ele adverte o receptor:

O que me pediu foi para falar daquilo que vi com meus próprios olhos ou
que soube por outras pessoas ou que me contaram pessoas de confiança de
meu tempo. Mas deverás me perdoar se desfiguro ou não cito certos nomes,
porque se tratam de faltas que não são permitidas de se divulgar, até por
consideração a amigos queridos como às pessoas principais. Só me proponho
a nomear aqueles que ao se falar não sofrerão detrimento ou cuja menção
não haja desonra para eles ou para mim, tanto por ser algo tão conhecido que
elimine a chance de qualquer dissimulação ou silêncio, como porque aquele
de quem se trata concorde que se publique sua aventura e não tenha algum
inconveniente por ser citado. (IBN HAZM, 2008, p. 97-98)

A princípio, os relatos encontrados em sua epístola são reconstruções de fatos


verdadeiros que o autor tomou para exemplificar o que era o amor e os valores que ele buscou
doutrinar. Para descrever minuciosamente o sentimento amoroso, Ibn Hazm dividiu a epístola
em trinta capítulos, além do prólogo e do epílogo, descrevendo tudo aquilo que abrangeria
não só o amor em si, como quem que participaria do jogo amoroso, tais como a essência do
amor, as maneiras como surge, seus sinais, a diferença entre os tipos de amor, quando e se
deve revelá-lo, os caluniadores e sua relação com o divino.
Na maioria dos exemplos dados por Ibn Hazm, o amante e/ou o alvo amoroso são
narrados de forma despersonalizada, muitos deles são nomeados, e de todos sabem-se suas
posições na sociedade, suas profissões, se são de famílias principais ou escravos, poetas,
governantes. Em alguns casos sabemos alguma característica física sua, como da família dos
califas omíadas de Al-Andalus que era praticamente toda loira de olhos azuis,7 ou da boca
larga de uma escrava que fez com que seu amante não gostasse de ninguém que tivesse a boca
pequena,8 porém são raras as passagens em que traços físicos são descritos, sendo mais
comum generalizar por “belo” ou “feio” quem é apresentado. Todas as informações dadas
sobre as pessoas elencadas já revelam a possibilidade de realização ou não do amor, como o
caso de uma mulher de uma família principal que vivia reclusa e não poderia escolher seu

7
IBN HAZM al-Andalusi. Sobre quien habiendo amado una cualidad ya no puede amar a nadie que luzca la
contraria. In: El Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube. Tradução de Jaime Sánchez
Ratia. Madrid: Hiperión, 2009. p. 93.
8
Ibid., p. 91.
4
amante/amado, assim como um homem não poderia consumar seu amor por outro homem,
ainda que este amor para Ibn Hazm continuasse verdadeiro,9 partindo daí as conclusões que o
autor faria sobre a excelsitude da castidade e o valor do sentimento amoroso, independente de
sua corporificação. Tais histórias, ainda que elencadas substancialmente para demonstrar o
tema do capítulo, possuem uma função importante para a argumentação do raciocínio
filosófico-religioso do autor, amparando suas máximas como dados de um experimento, algo
semelhante a um estilo tratadístico.
Entretanto, há outras passagens que o autor empregou uma narrativa para reconstruir o
evento, retomando a lembrança como um enredo, em que as pessoas descritas se tornavam
efetivamente personagens. Um exemplo dessas passagens tem-se no capítulo sobre quem se
apaixona com apenas um olhar:

O poeta Yusuf Ibn Harun, mais conhecido como Al-Ramadi, passava junto à
porta dos boticários de Córdoba, que era o lugar de reunião das mulheres,
quando viu uma moça que – segundo disse – “se apoderou das entrelinhas do
meu coração e cujo amor se infiltrou por todos os membros de meu corpo.”.
Deixou então o caminho da Mesquita e se pôs a segui-la: ela caminhou até a
ponte e a cruzou a caminho do lugar que se chama o Arrabal. Ao passar
pelos jardins dos Banu Marwan10 (Deus os tenha perdoado!), traçados sobre
suas tumbas, no cemitério do Arrabal, no outro lado do rio ele viu a moça
que o fez se afastar das pessoas com a intenção de seguí-la, e então ela veio
até ele e lhe perguntou: “O que queres, por que vens atrás de mim?”. Ele lhe
ponderou o grande tormento que por ela sentia. “Deixa destas coisas – ela
lhe disse – e não me tragas a perdição. Não podes conseguir teu intento e
nem há modo de conseguires o que queres.”. “Contento-me em olhar-te.”,
disse ele, e ela o respondeu: “Isso sim podes fazê-lo.”. Então ele lhe
perguntou: “Oh, senhora, és livre ou escrava?”. “Escrava”. “Como te
chamas?”; “Khalwa”. “Quem é teu senhor?”. “Por Deus! Antes saberias o
que há no sétimo céu que isso que me perguntas. Esqueça o impossível!”.
“Oh, senhora minha! Onde voltarei a te ver?”. “Onde hoje me vistes, e à
mesma hora, todas as sextas-feiras.” E acrescentou: “E agora, vai-te primeiro
ou vou eu?” “Vá tu primeiro, com a guarda de Deus”. Partiu ela a caminho
da ponte e ele não pode a seguir, porque a cada passo voltava para ver se ia
atrás dela ou não. Quando atravessou a porta da ponte, correu atrás dela, mas
já não pode encontrar seu rastro. (IBN HAZM, 2008, 128-129)

9
“Mas sentir inclinação pela beleza e render-se ao amor é uma coisa natural, que a lei não manda, nem proíbe.
Não é em vão que os corações estão nas mãos de Quem os maneja, e o ser humano não está obrigado, senão
saber e respeitar a diferença que há entre o bem e o mal, e acreditar na verdade com convicção. Quanto ao
amor, é algo inato, ao homem só lhe é possível controlar aqueles movimentos dos órgãos que não são
instintivos.” Ibidem, p. 117.
10
Família do califado omíada.
5
A narrativa da passagem cria uma tensão sobre os acontecimentos, o leitor é
apresentado aos personagens e por eles desenvolve expectativas sobre o seu possível enlace
amoroso. Na epístola, Ibn Hazm relatou que Al-Ramadi lhe havia contado pessoalmente sobre
essa história e neste momento não havia ainda voltado a ver sua amada, apesar de tê-la
mantido em seu coração e escrito diversos poemas para ela. Ibn Hazm ainda salientou que a
história não teria acabado aí, terminando sua narrativa sobre a mesma com a sentença “mas é
uma história muito longa”.11 De fato, a intenção de Ibn Hazm não era monopolizar um só
relato, mas multiplicar os exemplos e as vivências, associando-as sempre a algum momento
da história dos governantes omíadas em Al-Andalus enquanto ilustrava o tema amoroso
proposto. De toda forma, neste pequeno exemplo, vê-se que Ibn Hazm recriou a “história
ouvida”, em cenários, em falas, em sentimentos, aqui não há exposição de sentenças de um
tratado, mas a reprodução, ou imitação, do vivido como narrativa.
Dos diversos exemplos trazidos, Ibn Hazm traria outra história em que, além da
dramatização, a intriga se revelaria e culminaria em um fim inusitado do enredo. Ele traria
esse relato no capítulo sobre a submissão do amante ao amado:

(...) Sa’id Ibn Mundir Ibn Sa’id, que era quem dirigia a oração na mesquita
maior de Córdoba pelos dias de Al-Hakam [II] Al-Mutansir bi-llah (Deus
tenha piedade dele), tinha uma escrava a quem amava com profundo amor,
chegando a propor-lhe a emancipação para toma-la como esposa. Ela lhe
contestou, zombando dele (que tinha uma barba muito grande): “Acho
feíssima a largura de tua barba. Se tu a cortas se cumprirão teus desejos.” Ele
meteu então a tesoura em sua barba até deixa-la bem rala, e chamou muitas
pessoas a quem colocou como testemunhas da emancipação da escrava; mas
quando, uma vez livre, ele a pediu em casamento, ela não aceitou. Entre os
presentes se encontrava um irmão dele chamado Hakam Ibn Mundir, que
disse a um dos presentes: “Proponha-a que se case comigo.” Assim o fez, e
com o aceite dela, Hakam a tomou em matrimônio naquela mesma reunião, e
Sa’id ficou marcado por aquela penosa afronta, apesar de sua piedade,
devoção e zelo religioso. (IBN HAZM, 2008, 164-165)

Apesar de ser um relato curto, a intriga se estabeleceu fortuitamente na narrativa ao


criar um efeito tragicômico na história e asseverar a crítica de Ibn Hazm aos amantes que se
submetem aos caprichos de seus amados. Ele ainda continuou a história contando a vida dos
irmãos, informando que ambos lutaram pela causa omíada, tendo Sa’id morrido assassinado
pelos berberes em sua invasão a Córdoba e Hakam estando, na época, velho e cego. Os dois e

11
Ibid., p. 77
6
sua genealogia são colocados como exemplos de sabedoria e justiça, amenizando o episódio
narrado da traição da escrava.12
No tocante à poesia, a maioria dos capítulos conta com versos feitos pelo próprio autor
para acompanhar os temas explanados. As poesias falam, sobretudo, de amor, mas algumas
não correspondem a um lamento amoroso no sentido sensual, e sim à lealdade à causa omíada
que Ibn Hazm defendia. Um exemplo é a poesia, exposta logo no prólogo, dedicada à Ubayd
Allah filho de Abd Rahman III (889-961) e irmão do califa Al-Hakam II Al-Mutansir:

Te amo com um amor inalterável,


Enquanto tantos amores humanos não são mais que miragens.
Te consagro um amor puro e sem mácula:
Em minhas entranhas está visivelmente gravado e escrito teu carinho.
Se em meu espírito houvesse outra coisa que tu,
A arrancaria e a desgarraria com minhas próprias mãos.
Não quero de ti outra coisa que amor;
Fora dele não te peço nada.
Se o consigo, a Terra inteira e a humanidade
Serão para mim como montes de pó e os habitantes do país, insetos. (IBN
HAZM, 2008, 96)

O amado de Ibn Hazm neste poema não apenas representava o califado omíada, como
fora assassinado um dia após a morte de Al-Hakam II Al-Mutansir, dando início ao poder
ilimitado de Al-Mansur, cuja morte viria a desestabilizar e deslegitimar o califado, causa da
angústia a qual passava Ibn Hazm quando começou a escrever O Colar da Pomba. Apesar de
em português haver apenas uma palavra para “amor”, em árabe existem setenta13, e na poesia
em questão, a palavra escolhida por Ibn Hazm para abrir sua estrofe induz à ideia de um amor
voltado ao gostar, ao desejo, ao querer de uma afabilidade14, que desvincula a ideia de um
amor possivelmente homoerótico. Tais versos sob um olhar leigo, ainda mais traduzidos,
levam a uma percepção diferente daquela que se quer promover: conhecendo a história de
vida de Ibn Hazm e sua ligação com a Banu Marwan, sua poesia assume um discurso de
fidelidade, que vai além da pessoa homenageada e se associa à causa omíada.

12
Ibidem, p. 143.
13
Segundo informação do sábio damasceno Ibn Qayyim Al-Jawziya do séc. XIV encontrada em seu tratado
sobre o amor (O Jardim dos Enamorados), entretanto, o códice sobrevivente lista apenas quarenta e nove.
MERNISSI, F. Capítulo I. Esto que siento es amor? In: El amor em Islam. Edição Kindle, 2012. s/p.
14
O verbo utilizado por Ibn Hazm é ‫أودُّك‬.
7
Em outra passagem, Ibn Hazm se lembrou da morte de seu pai, também assassinado
durante a crise do califado em 1012, descrevendo as perdas que ele e a família tiveram, as
perseguições que sofreram, as prisões até enfim a invasão berbere que destruiu a cidade em
que viviam, Córdoba. Tais memórias seriam inseridas no capítulo sobre o consolo do
esquecimento, quando o autor traria para o contexto uma paixão da mocidade por uma
escrava, a qual curiosamente ele reencontraria no enterro de outro parente. A visão da mesma,
no entanto, o traria lembranças de um passado que ele perdera, atormentando-o mais. Ele
então exporia sobre o evento a seguinte poesia:

Chora a um morto que morreu muito honrado,


Quando mais mereceria o vivo que por ele corressem as lágrimas.
Maravilhoso é que esteja triste por quem baixou ao sepulcro
E não esteja por quem é assassinado injustamente! (IBN HAZM, 2008, 267)

Esta passagem que parece sem ligação direta com o reencontro com a amada
esquecida, parece relacionar o passado rememorado com os mortos que foram enterrados e
lamentados, ao passo que o presente (o vivo) que mais mereceria as lágrimas pelas desgraças
que o acometiam. O uso da palavra “assassinado” também recorre à situação em que se
encontravam os representantes do califado omíada, continuamente assassinados, assim como
Ahmad, pai de Ibn Hazm, que fora vizir no califado de Hisham II. Ibn Hazm via como injusta
a situação em que se encontrava e adiante ele iria ainda associar a beleza perdida da escrava
amada, que novamente encontraria mais de seis anos depois, com a perda das vantagens que
possuíam durante o califado omíada.15

3. O tempo narrado e o tempo vivido em Ibn Hazm


Ao se ler O Colar da Pomba, encontra-se não apenas a reprodução de um passado, que
não era distante, como ele também a revivência do autor por meio de suas memórias como
literatura. Cabe aqui considerar até que ponto O Colar da Pomba poderia se caracterizar uma
autobiografia e pensar como o autor estabeleceu a experiência e a sua (re)elaboração enquanto
narrativa.16

15
IBN HAZM al-Andalusi. El Consuelo del olvido. In: El Collar de la Paloma... Op. cit., p. 333.
16
CARVALHO, I. Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma análise hermenêutica. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832003000100012 Acessado em: 28 Ago 2016
8
Analisando como Ibn Hazm reconfigura o passado em narrativa, mobilizamos o
conceito de mimeses de Aristóteles reformulado por Paul Ricoeur, em seus três níveis.
Primeiramente, a primeira dimensão não surgiria apenas quando O Colar da Pomba fosse
elaborado; o próprio ato de Ibn Hazm de apreender sua experiência e significa-la em suas
memórias comporia a mimese I. O segundo nível viria quando, após ter vivenciado a
experiência e tê-la assimilado, houvesse a ação de torna-la uma narrativa com a intenção de
comunicar sua vivência a outro alguém; assim a mimese II estaria presente no momento em
que Ibn Hazm tornasse seu testemunho inteligível e acessível a um interlocutor, nesse caso
percebemos que a mesma se faz nítida também pela natureza de seu escrito, uma epístola. Por
fim, na mimese III uma nova temporalidade se agregaria a O Colar da Pomba, o tempo do
leitor; 17 conforme alertamos aqui, certas passagens possuem um sentido político original que
pode ou não ser percebido por quem tem acesso à obra, assim como outras passagens foram
reapropriadas dando origem a novas leituras e expressões, como é o caso do amor cortês.18
Certamente, o tempo se evidencia em Ibn Hazm. As ações nas lembranças – suas ou
de outrem – ainda que ocorram em um tempo “presentificado” nos capítulos, são marcadas a
todo o momento por seu ar nostálgico; o passado idealizado é contraposto ao presente de
incertezas e de perdas. Assim como o passado e o presente estão corrompidos por um juízo de
valor, os indivíduos narrados, e aqui incluindo o próprio autor, não são “os reais”, há uma
diferença entre a sua identidade formal – que não nos é possível verificar – e a identidade que
apreendemos pela narrativa, o que Ricoeur chamaria de “identidade narrativa”. É por meio da
história contada em O Colar da Pomba que presumimos quem é o autor e também aqueles os
quais ele descreve. Ademais, por seu relato estar entrecruzado entre a ficção e a história, ele
se insere em um terceiro-tempo, no qual tal “identidade narrativa” é refigurada conforme a
aplicação reflexiva das configurações narrativas.19 Dessa maneira, por mais que seu trabalho
tenha um caráter autobiográfico, não se tem acesso a quem foi Ibn Hazm, não só porque as

17
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. In: Tempo e Narrativa: a intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. Tomo I. p. 93-124.
18
Alguns estudiosos debatem a influência de O Colar da Pomba para o advento do amor cortês, um destes
indícios é o livro “O Tratado do Amor Cortês” de André Capelão, em que a ordem dos capítulos e algumas
passagens carregam semelhanças tão fortes que não se pode justificar como “coincidências”. O arabista Emílio
García Gómez apresenta algumas passagens destas na sua edição clássica em espanhol de O Colar da Pomba.
GARCÍA GÓMEZ, E. Introducción. In: IBN HAZM de Córdoba, El Collar de la Paloma. Tradução de Emílio
García Gómez. Salamanca: Alianza Editorial, 2008. p. 80-85
19
RICOEUR, P. A primeira aporia da temporalidade: a identidade narrativa. In: Tempo e Narrativa: o tempo
narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Tomo III. p. 415-419.
9
leituras feitas de sua obra estarão sujeitas à interpretação de seus receptores, mas também
porque o passado transposto por ele é resultado de escolhas, que por si só reinterpretaram a
realidade vivida por ele mesmo.
A ação de recriar o passado por meio da narrativa, não invalidaria as memórias do
autor, o seu ato de narrar já se estabelece como uma maneira própria de lidar com o tempo
passado. Quando Ibn Hazm escreveu de si e daqueles que o cercaram durante o Califado
Omíada de Córdoba, ele não foi apenas escritor, como também se tornou leitor de sua própria
vida, pois refigurou a narrativa de si mesmo. Nesse sentido tomamos o conceito de ipseidade
de Ricoeur, pois Ibn Hazm elaborou uma identidade relacional de si mesmo, marcada pela
relação com o mundo em oposição à sua identidade fixa, pessoal.20 Dessa forma,
consideramos que O Colar da Pomba pode ser considerado um relato autobiográfico,
entretanto essa compreensão não reduz o seu caráter literário e tampouco a torna “realista”, e
sim a encara como uma modalidade narrativa, na qual é demonstrada a interpenetração entre
sujeito e história e a ressignificação dos fatos para compor as biografias.

4. Conclusão
Como descreveu o arabista García Gómez, a epístola O Colar da Pomba é uma elegia
andalusina.21 O lamento de Ibn Hazm pelo califado derrocado é também o lamento pela perda
de uma vida aristocrática, e esta é a grande protagonista da epístola. Os casos de amor, ainda
que dos mais diversos, estavam restritos a um grupo, a elite22, e a lembrança desse momento
não era só uma forma de aplacar a dor daqueles que perderam seus privilégios, como também
de se fazer presente na memória o período califal.
Notadamente, essa memória é uma reconstrução calcada nos interesses políticos de Ibn
Hazm. Durante o período turbulento de 1009 a 1031, algumas cidades já se estabeleciam
como independentes e tinham como forma de promover e legitimar seus governantes por
meio de discursos panegíricos elaborados por poetas e literatos contratados. Os governantes
mecenas viam nessa propaganda uma maneira de exaltar suas conquistas e, sobretudo

20
Ibid., p. 422.
21
GARCÍA GÓMEZ, E. Introducción. In: IBN HAZM de Córdoba. El Collar de la Paloma. Tradução de Emílio
García Gómez. Salamanca: Alianza Editorial, 2008. p. 54.
22
Em Al-Andalus, os escravos de aristocratas eram considerados também parte da elite.
10
assegurar seus domínios, uma vez que as disputas eram frequentes e nada estava de fato
consolidado, denotando o poder político que a literatura detinha no contexto de Ibn Hazm. 23
Porém, ao passo que diversos eruditos destinavam suas obras em busca da proteção de
algum senhor, Ibn Hazm se manteve firme em seu propósito de defesa dos ideais omíadas.
Como seus escritos abertamente políticos foram queimados, resta-nos considerar que O Colar
da Pomba, obra tão refinada em momentos tão difíceis para o autor, atenderia também ao
propósito que tantos mecenas buscavam a seus reinos: a propaganda.
Dessa maneira, o passado glorioso omíada pode não ter existido tal qual Ibn Hazm o
descrevera, mas o seu discurso objetiva trazer aos leitores a imagem de um paraíso perdido e
de valores que deviam ser resgatados. A postura literato-filosófica de Ibn Hazm que aparece
em O Colar da Pomba correspondia à de sua juventude, quando ele fazia parte dos “estetas de
Córdoba”, grupo aristocrático filoárabe24, influenciado pelas modas literárias de Bagdá, que
tinha como plano cultural se relacionar diretamente ao esplendor político que viviam sob o
califado de Córdoba. Foi como um “esteta” que Ibn Hazm teve contato com as influências
platônica e aristotélica, assim também com sua posição jurídica-doutrinal zahirista, a qual fora
um dos grandes defensores.25 Tanto os “estetas” como o zahirismo se associavam
intrinsecamente à política omíada, assim a sua destituição também ocasionou o fim de tudo
aquilo que Ibn Hazm defendera e representara em vida. Segundo o filósofo Mohamed Al-
Jabri, no mundo árabe os modelos de pensamento estariam profundamente relacionados com
o panorama político de determinado período e local, não possuindo um caráter científico que
fosse considerado “autônomo”. 26 A queda do Califado em Córdoba, portanto, fez com que o
modelo político e jurídico do qual fazia parte Ibn Hazm também se deslegitimasse, e sua ânsia
de resgatar o passado califal em sua elegia denota que neste novo mundo ele não encontraria
mais o seu lugar.

23
LIARTE ALCAINE, M. El mecenazgo de Al-Hakan II. Revista de Clases Historia, Publicación digital de
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Valorizavam o árabe “puro” como língua de suas obras literárias, isto é, o árabe clássico da elite em oposição
ao árabe coloquial falado pelas classes populares.
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