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Biografia de Luís de Camões (1524-1580)

1524-1553 – Anos de mocidade

• 1542 – Aos 18 anos, Camões volta à corte, em Lisboa, deixando Coimbra


• 1546 – Camões é banido da corte
• 1549 – Camões retorna a Lisboa. Não acha propício o ambiente e parte para Ceuta.
• 1552 – Briga com um dos servidores da corte, Gonçalos Borges, em dia de Corpus
Christi. Acaba preso na Cadeia do Tronco, em Lisboa

1553-1570 – Período das viagens ultramarinas

• 1567 – Dá o primeiro passo para regressar a Portugal, embarcando para Moçambique

1570-1580 – Dez anos de agonias

• 1578 – Batalha de Alcácer-Quibir


• 1580 – Morte de Camões

Introdução
A vida de Camões é um mistério, as pessoas não sabem exatamente onde e quando ele nasceu
e morreu. Muito da sua biografia é baseada em trechos de cartas que ele escreveu, relatos de
historiadores que viveram no mesmo período que ele e até certos poemas, nos quais há indícios
de que ele esteja falando sobre a própria biografia.

Camões tem uma vida simbólica. Seu nascimento e morte marcam isso. Em 1524 ele nasce –
mesmo ano em que Vasco da Gama morre, sendo este o herói que o poeta escolheu narrar em
Os Lusíadas, contando a história da sua ida para as Índias. Como se um herói tivesse morrido
tranquilo, porque sabia que outro herói como ele estava nascendo. Camões e Vasco da Gama
tiveram trajetórias de vida muito parecidas. Ambos foram militares. Por mais que Camões não
tenha chegado a ser capitão como Gama, veio a se tornar maior do que ele, uma vez que se fez
poeta. Eram duas escolhas de vida de muito prestígio na época do Renascimento: ser poeta e
soldado, cantar a pátria imortalizando seus heróis ou se sacrificar pela pátria. Ambos eram
figuras valorizadas na época de Camões.

O biógrafo Oliveira Martins separa a vida de Camões em três partes:

• 1524-1553 – 28 anos de mocidade


• 1553-1570 – 17 anos de viagens ultramarinas
• 1570-1580 – 10 anos de agonias

Ele viveu mais ou menos até os 50 anos. A progressão dessas três partes marca também o
processo de amadurecimento de Camões, humano e espiritual. Ele vai se tornando um homem
de espírito mais elevado. Veremos que não à toa todas essas etapas foram de alguma forma
marcadas por desgraças: sua alma foi se elevando à medida em que ele foi se deparando com
a cruz. Manuel Bandeira diz que ele foi um gênio purificado na desgraça (poema “A Camões”).

1524-1553 – Anos de mocidade

Camões perdeu o pai cedo e foi entregue aos cuidados de um tio cônego, chamado Dom Bento.
Este era chanceler da Universidade de Santa Cruz e prior do Mosteiro de Santa Cruz, em
Coimbra. A educação ficou nas mãos dele e ele ensinou o sobrinho nos moldes das artes liberais.
Depois dos 18 anos Camões não quis ir para a universidade, porque desejava dedicar-se ao
serviço militar.

Ele teve uma época de estudos séria e desde cedo demonstrou talento. Vemos isso pelo fama
que tinha na mocidade ao frequentar a corte. Por conta do nome da família dele depois de
alcançar a maioridade ele foi morar em Lisboa, fazendo parte da alta sociedade e convivendo
com príncipes, princesas, e ele chamará muita atenção e será objeto de inveja por parte de
muitos outros rapazes, que levavam a sério o estudo das letras. Camões tinha um talento
natural, mas não se dedicava tanto ao estudo da arte poética. Nessa época Coimbra era como
se fosse Atenas, dava-se muita importância aos estudos da língua portuguesa, da literatura
clássica, do latim. Camões teve contato com as obras clássicas, leu Virgílio e o imita em muitos
trechos de Os Lusíadas. Ele aprendeu com o melhor.

Nessa época ele já era conhecido pelo seu temperamento explosivo e por meter-se em muitas
brigas, para defender amigos. Vale frisar, que este foi um período histórico em que os meninos
eram treinados para ser soldados. A rivalidade entre os rapazes era algo comum, estavam na
flor da idade, insuflados pelo ideal de um dia sair de Portugal para lutar pela pátria e voltar
aureolados. Nesse momento Portugal vivia ainda o ressonar das Guerras de Reconquista,
justamente o período em que os portugueses avançaram sobre os territórios tomados por
mouros para expulsar os que não professavam a fé católica. Os homens viviam com a
mentalidade de que crescendo seriam soldados ou trabalhariam em postos intelectuais. Camões
queria ser soldado. Ele via como ideal último lutar pela pátria, estava em busca de uma glória
militar. As desgraças que foram acontecendo na vida de Camões vão aos poucos moldando essa
motivação, purificando-a.

1542 – Aos 18 anos, Camões volta à corte, em Lisboa, deixando Coimbra

No período da mocidade ele ficou com tio Bento em Coimbra, estudando. Depois de formado,
voltou à Lisboa e tinha a corte aberta para ele. Era um ambiente social de muitos festins, de
muita badalação.

Nessa época, pelos poemas que escrevia então, sabemos que apesar de ser um jovem truculento
e arruaceiro, ele tinha um espírito sensível. Ele faz um soneto sobre a separação dele de
Coimbra, onde ficava o Rio Mondego.

O Rio Mondego aparece em Os Lusíadas como a fonte da inspiração lírica. O único episódio lírico
da epopeia é o episódio dos amores de Dona Inés de Castro e de Dom Pedro. E esse episódio
acontece às margens do Mondego. O poeta diz inclusive que este rio nunca será enxuto das
lágrimas de dona Inés de Castro. Esta é uma personagem real, que será morta pelo próprio pai
do amado, D. Afonso IV, por amar seu filho que era príncipe e ser correspondida, mas
considerada indigna de unir-se a ele pela sua condição social. Este é o único episódio
considerado lírico de toda obra épica de Camões. O poeta se sentia inspirado a escrever esse
tipo de poesia mais sensível olhando para esse rio. Os rios e fontes na literatura clássica são
símbolos de inspiração poética para os homens. Bebendo um pouquinho de certas águas,
banhando-se nelas, o homem receberia inspiração para escrever uma grande obra, as musas
viriam a ele para inspirá-lo. Camões tem essa relação com o Mondego e com o Tejo, o primeiro
dando inspiração lírica e o segundo a inspiração épica. Tanto que em Os Lusíadas ele invoca as
Tágides, as ninfas do rio Tejo, como se elas tivessem obrigação de ajudá-lo a escrever essa
epopeia, na medida em que foi o contemplar de suas águas que fez brotar nele o desejo de
escrevê-la.

O poema sobre o rio Mondego diz assim:

Doces e claras águas do Mondego,


Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e pérfida esperança
Longo tempo após si me trouxe cego,

De vós me aparto, sim: porém não nego


Que inda a longa memória, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem poderá a Fortuna este instrumento


Da alma levar por terra nova e estranha,
Oferecido ao mar remoto, ao vento

Mas a alma, que de cá vos acompanha


Nas asas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, voa e em vós se banha

Quanto mais me separo do rio Mondego, mais estou perto dele com meus pensamentos. Vemos
por esses poemas como o espírito dele já era sensível. Olhava para a natureza com olhos de
poeta. Ele tinha um interior sensível, aflorado, mas pouco amadurecido. Ele não se dedicava
ainda aos estudos de literatura clássica como quem compreende que isso era uma missão, um
chamado. Ele não os levava tão a sério, apesar de muito talentoso, e os punha a serviço de coisas
mais baixas, como cortejar mulheres, expor-se em saraus de produção literária na corte.
Veremos que à medida que ele vai amadurecendo, ele começa a direcionar esses dons para o
fim de Os Lusíadas. Mesmo não se dedicando tanto, ele inspirava inveja dos outros jovens que
estudavam esses assuntos mais a fundo, enquanto Camões gastava muito tempo na vida social.

Esse espírito seria amadurecido por desilusões que foram acontecendo na vida de Camões. Uma
primeira figura que aparece na vida dele é uma mulher. Ele perdeu muito tempo da vida atado
em prisões baixas, ou seja, preso a paixões que não eram elevadas. Ele se refere aqui ao tempo
que ele perdeu com namoricos. Nós percebemos que ele tinha uma grande vontade de amar e
ele direcionou essa vontade ardente dele inicialmente a uma mulher, que acabou
decepcionando-o. O nome dela é Catarina de Athayde, mas ele a chama de Natércia, pois
naquela época os homens, para falar de mulheres nos poemas mudavam seus nomes por meio
de um anagrama: com as mesmas letras do nome Caterina constrói Natércia. Ele se apaixona
por ela, depois de vê-la pela primeira vez dentro de uma igreja. Ela acaba trocando-o por outro
homem. Ele escreve um poema sobre o episódio.

Ah! Natércia cruel! Quem te desvia


Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria

Que foi daquela fé que tu me deste?


Daquele puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?
Quando esses teus olhos noutro puseste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?

Ela teria feito a ele muitas promessas, mas as teria deixado muito rápido. Ela o trocou e
esqueceu todos os compromissos que havia feito. Ele transbordou a interioridade dele naquela
mulher e ela o abandonou. Mas, aquilo que naquele momento pareceu para ele uma grande
fonte de contrariedade, mostrar-se-ia mais tarde indo de encontro ao cumprimento da sua
missão, pois não era a uma criatura humana que Camões estava chamado a se dedicar.

Essa primeira decepção é como que um primeiro abalo que vai acelerar o processo de seu
amadurecimento, preparando o seu espírito para responder ao chamado da criação de Os
Lusíadas. Vendo de longe, a vida concluída, é quase como se ele precisasse dessas desgraças
para amadurecer, sua educação veio pelo sofrimento. Quanto mais sofreu, mais teve matéria-
prima para usar na elaboração de sua poesia.

1546 – Camões é banido da corte


Com 18 anos ele foi para a corte, que não era um universo propício para se deixar o espírito mais
aflorado do que a carne. Era um ambiente de festins, de rixas, invejas.

Quando tinha 22 foi banido. Alguns historiadores dizem que ele se exilou por vontade própria e
outros dizem que ele foi expulso. O ambiente da corte naquele momento era rígido e um homem
não podia cometer erros públicos e deslizes. Ou por brigas ou por invejas ou por casos de
mulher, ele acaba sendo banido e esse é como que o seu primeiro desterro, uma primeira grande
decepção, pois ele amava Portugal. Ele se fixou em Constança, sobre o Tejo. Retomou o contato
com a natureza, deixando aquele ambiente contaminado da corte. Essa decepção com a pátria
é germe da vontade de escrever Os Lusíadas, como diz Oliveira Martins:

Pela natureza a sua alma penetrou o Ideal; e foi este, segundo alguns biógrafos indicam, o
primeiro momento da concepção de Os Lusíadas. Surgia na alma do poeta a sua missão, como a
alvorada de um dia quando gradualmente emerge das névoas crepusculares. Era o sol que lhe
nascia no peito, levantando-se nessa paisagem incomparável do vale do Tejo, cercado por um
coro de ninfas, a quem o poeta implorava de joelhos que o socorressem na empresa nova em
que lhe ardia o peito.

É a pátria que ele quer cantar, é o patriotismo o novo sol que lhe ilumina o pensamento. Camões
confiava no seu gênio e confiava em Portugal, havia um desejo imenso na pátria de se lançar a
grandes empresas, de lutar e expandir.

1547 – Camões pede para transferir desterro para Ceuta.

Com o peito a ferver de entusiasmo, Camões obtém, em 1547 a possibilidade de transferir seu
desterro para Ceuta. Aqui há um interessante paralelo com a própria história de Portugal: este
foi o primeiro passo da nação nas Guerras de Reconquista, com D. João I. Primeiro passo para
fora, ao invés de ficar só na reconquista, começou a conquistar. Camões segue os passos de
Portugal o tempo todo. É uma espécie de sombra e figura de Portugal a todo momento.

O que acontecerá com ele na África? Ele será um soldado português, lutando por Portugal, fora
de Portugal para defender a fé. Ele começa a ver as desgraças das guerras e é a partir dessa
experiência que ele consegue cantar tão bem as guerras em Os Lusíadas. Ele fala, por exemplo,
de uma virtude que o homem deve moldar na própria guerra, que é a de conseguir ficar
impávido mesmo quando um companheiro seu perde um braço ou a perna. Nessa expedição
militar que ele é tacado no mar por piratas mouros e fica ferido, perdendo um olho. Ele acaba
retornando à Lisboa em 1550. Talvez para se curar do ferimento.

1552 – Briga com um dos servidores da corte, Gonçalos Borges, em dia de


Corpus Christi. Acaba preso na Cadeia do Tronco, em Lisboa
Amadureceu, mas não perdeu totalmente a truculência. Ele e alguns companheiros acabaram
arrumando briga com um servidor público e Camões o fere com uma faca. O homem sobreviveu,
mas Camões acabou preso.

1553 – Liberto com a condição de incorporar-se às forças que partiam à Ásia.


Ficou em Goa até 1562.

Decide partir para Ásia, seguindo também os passos de Portugal, que depois da conquista de
Ceuta buscou chegar ao extremo oriente. Faz o mesmo caminho que Vasco da Gama: passou
pela África ali em Ceuta e depois vai para Japão e China, mas antes fica um pouco na Índia. Só
retorna a Portugal pouco antes de sua morte.

Uma das características de Camões é que ele era uma pessoa muito intensa e vivia num período
histórico de muita efervescência. Os homens lançavam-se ao mar, lançavam-se ao desconhecido
em busca de glória, fama, posses. A febre de expansão ia crescendo, primeiro reconquistar,
depois tomar parte da África, depois as Índias, depois Ásia. E ele embarcou nisso, decidindo
servir como militar. Em parte porque estava chateado com a pátria.

Escreveu uma carta ao sair de Portugal na qual se mostra muito magoado.

Depois que dessa terra parti como quem o faria para outro mundo, mandei enforcar a quantas
esperanças dera de comer até então... E assim, posto em estado em que me não via senão por
entre lusco-fusco, as derradeiras palavras que na nau disse foram as de Cipião Africana: ‘Ingrata
Patria, non possidebis ossa mea”

A mulher o decepcionou, a corte o decepcionou. Ele não quer dar à pátria chance de possuir os
seus ossos, ou seja, não quer morrer na pátria. Essa decepção serve para forjar o caráter dele. É
o segundo desterro.

1553-1570 – Período das viagens ultramarinas

Ele sai de Portugal para lutar pela pátria, protegendo-a de invasões. Em 1553 ele chega em Goa
onde ficará baseado e de lá participará de várias expedições militares para as regiões próximas.

Em Ceuta ele experimentado em parte, mas agora verá uma terra cheia de vício, ele sentirá
muita saudade da pátria ao se deparar com a situação do oriente cheia de mouros, com os
cristãos sendo perseguidos e mortos, muitas injustiças. Aqui ele começa a se decepcionar com
a vida. Ele passa por muitos tormentos no mar e na terra, assim como Vasco da Gama. Vemos
um pouco desse desespero no final do Canto I de Os Lusíadas:

No mar tanta tormenta, e tanto dano,


Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Ele passou por muitas intempéries, tempestades, assim como Vasco da Gama. Isso tudo ele
viveu e vai representar depois em Os Lusíadas. Nesse contexto escreve uma elegia,
parafraseando trechos das Sagradas Escrituras, confrontando Babilônia e Sião. Apesar de
magoado com a pátria, ao ver a situação do Oriente ele se dá conta de que a sua pátria é muito
melhor. Se ele havia tido saudades do rio Mondego quando saiu de Coimbra, imagina a falta que
não sentiu de Portugal, nesse contraste com uma terra de vícios. Pedem a ele para que cante as
memórias de Sião, mas como pode fazer isso se só sabe olhar para trás e lembrar-se da pátria
com tristeza.

Sôbolos rios que vão


Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.

Ali o rio corrente


De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

[...]
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais vale,


Que então se entende melhor,

Nesse momento da vida dele ele vai ficando cada vez mais pobre e a vida cada vez mais dura.
Ele é reconhecido pelo seu talento, mas toda sua atenção encontrava-se dividida entre fazer Os
Lusíadas e o serviço militar. Ele não tinha cabeça para pensar em enriquecer. Essa elegia mostra
seu desânimo e uma certa compreensão de que o mundo não é justo. Ele tem inclusive um
poema que fala sobre o desconcerto do mundo:

Os bons vi sempre passar


No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado

Ele viu muita injustiça nesse meio, por conta de inveja, dinheiro e bens. O maior bem dura um
espaço muito pequeno de tempo e não se pode confiar na felicidade, porque o mal vem muito
depressa. Ele ficou decepcionado com a mulher, com a corte, com a pátria portuguesa. Mas
vendo o mal presente na terra estrangeira ele sentia saudades de Portugal, pois os lugares onde
estava passando eram terríveis. Essa foi a experiência dele fora da pátria.

Há nessa elegia uma aparente expectativa em relação a voltar para a pátria reconhecido,
aureolado. Mas percebemos nas entrelinhas que essa pátria não é exatamente Portugal. Ele já
foi de tal modo impactado pelas decepções da terra que vemos que o objeto do seu amor não
é mais exatamente uma criatura terrena (Catarina de Ataíde é o símbolo de todas as mulheres).
Ele queria algo maior. Colocou suas esperanças na pátria, mas ela também o decepcionou. Aos
poucos essa esperança de que o amor da pátria pudesse de alguma forma ser para ele um
bálsamo onde repousasse sua alma, um norte que lhe desse sentido, vai sendo transmudada em
um pendor por desejar e buscar uma pátria mais espiritual.

Mas, ó tu, terra de Glória,


Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembrar na memória,
Senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe à pátria divina

Esta Sião que ele deseja não é só Portugal, é uma terra de glória que ele nunca viu em essência,
mas que lhe aparece como uma melancolia, uma saudade, que não lhe parece ser exatamente
do país que deixou. A alma contendo a doutrina celeste imagina tanto como será o céu, que voa
da própria casa e sobe à pátria divina. Portugal é um pedágio: passará por lá, mas para ir para
outra pátria. Queria voltar para Portugal, no entanto, por ver o estado de degeneração daquelas
terras em que estava.

Ele sofre também um naufrágio ao fazer uma transferência para Macau, na foz de um rio
chamado Mekong. Ele quase morre, mas salva-se a nado, salvando também o manuscrito de Os
Lusíadas. Foram tantas desgraças que ele começa a duvidar poder colocar sua esperança na
vida. Ele manifesta essa desilusão na elegia:

Não é logo a saudade


Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela Santa Cidade
De onde esta alma descendeu.

O que ele sente não é exatamente a saudade de onde a carne nasceu, mas da santa cidade de
onde a alma descendeu. A pátria portuguesa é figura da pátria celeste.

[...]
Ditoso de quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente
Que depois de a ti subir
Lá descanse eternamente!

A pátria portuguesa só aponta para a pátria celeste. Mas ele ainda não se desprendeu da
primeira completamente. Ele precisará voltar e se decepcionar completamente com Portugal
para que a sua alma pudesse passar pela purificação necessária a ponto de não haver resquício
de uma esperança colocada nos bens da terra.

1567 – Dá o primeiro passo para regressar a Portugal, embarcando para


Moçambique

Depois de muito tempo de sofrimento no extremo Oriente ele procura passar para um lugar
mais perto de Portugal, indo para Moçambique. Ele não tinha dinheiro para empreender a
viagem, mas espera encontrar condução gratuita para Portugal. Vinha tão pobre que toda a
viagem foi feita de graça, como convidado do comandante da nau. Ou seja, vemos que algumas
pessoas viam o valor de Camões, a ponto de ser convidado para fazer a travessia sem pagar.

Enquanto em terras estrangeiras, Camões já vivia praticamente como um mendigo. Quase todo
seu tempo era dedicado ao serviço militar e ao aperfeiçoamento de Os Lusíadas. Já estava
ficando mais velho e perdendo um pouco do vigor físico.

O historiador Diogo do Couto encontrou Camões na África e escreveu:

“Em Moçambique achamos aquele Príncipe dos Poetas, Luís de Camões, tão pobre que comia de
amigos e para se embarcar para o reino, lhe ajuntamos toda a roupa que houve mister e não
faltou quem lhe desse de comer. E aquele inverno, que esteve em Moçambique, acabou de
aperfeiçoar as suas Lusíadas...”

Seu talento era de alguma forma reconhecido. Parte dessa fama chega à Portugal. Quando
retorna, já não é o mesmo Camões que saiu de Portugal. Foi desfigurado pelas dores, pela
miséria. No entanto, é justamente nesses momentos mais difíceis que ele conseguiu produzir
mais da sua obra.

Em 1570 ele chega a Portugal. Chegamos no que seria uma terceira fase da sua vida, os dez anos
finais antes da morte.

1570-1580 – Dez anos de agonias


Oliveira Martins conta:

“Não nos disse Camões que impressões assaltaram o seu espírito ao pôr pé em terra; mas é
verdade que a miragem seguida desde os confins do mundo, essa visão de uma pátria que se
confundia com o próprio céu, dissipava-se agora, esfolhando-se mais uma flor de esperança –
porventura a última!”
Ele precisaria de mais uma decepção para não ter nenhum tipo de apego com a terra. Já tinha o
sentimento de suspeita de que a pátria pela qual ele tanto ansiava era a celeste, mas como que
cultivava ainda uma esperança de que seu coração fosse preenchido pelo retorno à pátria
portuguesa, que desejava mais do que tudo. A última flor de esperança terrena, quando ele
colocou os pés na terra de origem, foi aos poucos dissipando-se.

O que está acontecendo em Portugal nessa época? Muitas desgraças. Incêndios, enchentes.
Houve um problema com a moeda portuguesa, que fez muita gente empobrecer, levando até a
um número grande de suicídios entre os que perderam tudo. A pior das chagas era a peste.
Parecia que uma mão da justiça estava sobre Portugal.

Vínhamos de uma época gloriosa, de grandes vitórias militares com exércitos portugueses super
pequenos. Há relatos de batalhas em que para um cristão português existiam cem mouros. A
batalha de Aljubarrota, por exemplo, tinha 31 mil homens do lado dos castelhanos para seis mil
portugueses. Os castelhanos têm de fugir. Mas essa época gloriosa está chegando ao fim.
Camões pegou o final dessa época brilhante até a decadência completa de Portugal. Vendo esse
cenário, ele coloca suas esperanças no rei D. Sebastião. Era um rei jovem, mas que seria a
segurança da liberdade lusitana, e que quando começasse a reger, daria matéria a um canto
nunca ouvido.

A peste negra em Portugal estava dizimando muita gente. Conta-se que morriam de 500 a 700
pessoas por dia e que a mortalidade era tão alta que as pessoas começavam o dia bem e o
terminavam já mortas, tombando pelas calçadas. O ar de Portugal já contaminava, não precisava
nem chegar perto de gente doente. Os cemitérios não davam conta e os homens eram jogados
em espécies de valas comuns. É esse cenário de desolação com o qual Camões se depara ao
voltar para Portugal e isso será uma espécie de purgatório na sua trajetória. Ele tem de passar
por aqui para se livrar de qualquer tipo de apego.

O ímpeto patriota que foi gerado com a decepção com as mulheres e o choque despertado pelo
vício que viu nas terras estrangeiras sofreu aqui um abalo. Ele havia transformado em objeto de
desejo estar na pátria de novo, mas quando chega, depara-se mais uma vez com muita tormenta
e dano. Nem na pátria ele poderia alocar sua segurança. De alguma forma, ele começa a aspirar
à morte como caminho para a pátria celeste. Vemos no final de Os Lusíadas.

Vão os anos descendendo e já do estio


Há pouco que passar até o outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto, nem me abono
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono;
Mas tu, me dá que cumpra, ó grã Rainha
Das musas, c’o que quero à nação minha!

Ele diz que já está ficando velho, deixando para trás o verão, a parte dourada da sua vida. O
destino fez o seu talento esfriar, de maneira que não se vangloria mais dele, pois lhe parece
passageiro. Ele começa a se aproximar do rio cujas águas são negras, o rio da morte de que fala
a mitologia. O que ele pede derradeiramente é cumprir aquilo que quer fazer, terminar de cantar
a sua pátria (como pede na estância dez de Os Lusíadas). Ele percebe que está caminhando para
um fim, colecionando desgostos.
1578 – Batalha de Alcácer Quibir

A derradeira desgraça acontece em 1578. No dia 25 de junho partem todos os melhores homens
de Portugal com Dom Sebastião em seus 20 anos para conquistar Marrocos. Eles querem dar
um passo maior que as pernas: o país já não estava bem, vai se lançar a tamanha empresa?
Camões chega a dizer que queria ir, mas ele já se via coxo, manco e fraco e acaba ficando em
Portugal. Relata-se da saída dessa frota:

“Alongando os olhos à barra, via o mar coalhado de navios que, de velas soltas, pareciam um
bando de gaivotas colossais anunciando um temporal também medonho... Eram oitocentos e
cinquenta navios, e levavam vinte e quatro mil homens de peleja, três mil cavalos, [...]”

O próprio dia da saída já anunciava alguma desgraça. Eles não saíam com o mesmo espírito que
a frota de Vasco da Gama ao deixar Lisboa. Nessa época, os homens que foram para o
descobrimento da Índia saíam em procissão, recebiam a extrema unção, a confissão e assistiam
à missa. Era uma saída solene.

Já na partida para o Marrocos, o próprio rei se mostrava afoito e inquieto. Eram 850 navios –
para a descoberta das Índias foram três – com todos os homens aptos ao combate. Se
perdessem essa batalha o que seria de Portugal? Acabariam todos os guerreiros. Levou tudo o
que tinha de melhor no país para essa tentativa de tomar o Marrocos.

No dia 04 de agosto foi anunciada a desgraça: o rei sumiu, os homens perderam as lutas.
Portugal estava sem rumo. Narra-se o momento em que essa notícia foi recebida:

Uma manhã entrou desvairado no Tejo Diogo Lopes de Sequeira a contar o imenso desastre de
Alcácer. O cardeal D. Henrique acudiu caquético a Lisboa, “que achou Troia ardendo num grito
geral e cheia de lágrima, ais e suspiros de alma, e a chusma com a perda e dor toda desatinada.
[...] Os homens, a força, os maridos, os filhos, tudo passara, tudo ficara em África. Havia apenas
mulheres, crianças, velhos, enfermos; havia Camões, encostado às suas muletas, vivendo de
esmolas; [...]”

Camões não foi para a guerra. Ele estava nessa época na casa dos cinquenta anos, mas já se acha
velho, cansado e enfermo. Não tem mais nada para ele, ele só precisa terminar Os Lusíadas. A
regência de Portugal ficará com um Cardeal, que morrerá sem herdeiros e depois passará para
Felipe, rei da Espanha, depois de muitas batalhas, muitas guerras, depois de Aljubarrota,
perdendo sua independência, unindo-se as duas coroas.

1580 – Morte de Luís de Camões

Diante de tudo ele só quer a pátria celeste, só quer um alívio para os tormentos da terra.

Oh! Quanto melhor é o supremo dia


Da mansa morte que o do nascimento!
Oh! Quanto melhor é um só momento
Que livra de anos tantos de agonia!

De alcançar outro bem cesse a porfia


Cesse todo aplicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria...
O dia da morte é muito melhor que o do nascimento, a partir do qual ele teve de passar por
tudo o que passou. O momento da morte livra dos anos de agonia. Com Alcácer, a última
esperança de Camões na terra se foi. Nestes versos ele roga que deixe de buscar o
contentamento em coisas da terra, cessando-se também de se aplicar o pensamento a esses
elementos. Só quer a terra fria, ou seja, só quer ser enterrado. Nesse contexto de Portugal ele
era a única voz que ainda lembrava da glória do país, quando todos só viam a desgraça.

Ele escreve uma carta para seu amigo D. Francisco de Almeida, vice-rei da Índia, que havia
perdido o filho em terra estrangeira. O poeta morre de peste e esse foi seu último escrito:

Quem ouviu dizer que em tão pequeno teatro como o de um pobre leito quisesse a fortuna
representar tão grandes desventuras? E eu, como se elas não bastassem, me ponho ainda da
sua parte; porque procurar resistir a tantos males pareceria espécie de desavergonhamento... E
assim acabarei a vida, e verão todos, que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei
de morrer nela, mas com ela.

Ele diz que seus passos foram os mesmos que os da pátria. Diz Oliveira Martins:

E quis finalmente que a vida desse homem fosse cíclica, amante como Portugal, que ficou célebre
pela tragédia de Inés de Castro, vivera de amores na adolescência. Vai à África preparar-se para
as campanhas do Oriente como Portugal também foi. E embarca para a Índia como a nação
inteira embarcara. Volta de lá derreado, coxo, em muletas, como voltou igualmente Portugal
para agonizar um instante expirando ao mesmo tempo.

No mesmo ano que ele morre, Portugal perde a independência. De certa forma ele morre junto
com o povo português. Ele morreu em um leito de hospital, atingido pela peste. Ele recebeu a
extrema unção no Hospital. Quem o relata é o Frei Giuseppe Indio, que diz que viu “o príncipe
dos poetas morrer sem ter lençol com que cobrir-se”, depois de ter triunfado nos mares
orientais, assim como aconteceu com Vasco da Gama, que morreu de malária. Ambos
sobreviveram a tantos perigos e morreram de doenças, esta é a fraqueza da vida humana que
Camões narra no final do Canto I de Os Lusíadas.

Como ele morreu de peste, numa região dizimada pela doença, ele não teve um enterro
diferente dos demais mortos pela doença. Foi jogado em uma vala comum. Depois de um tempo
não se sabia exatamente qual era o dele.

Como ele morreu de peste, numa região dizimada pela doença, ele não teve um enterro
diferente dos demais mortos pela doença. Foi jogado em uma vala comum. Depois de um tempo
não se sabia exatamente quais eram os ossos de Camões, não havia inscrição. O que fizeram
depois, por ocasião do aniversário de 400 anos de sua morte, foi juntar todos os ossos que
estavam na região em que ele foi enterrado e colocar no que é o atual túmulo de Camões, que
fica no Mosteiro dos Jerônimos ao lado do túmulo de Vasco da Gama. Então, de certa forma,
não só morreu junto com Portugal, mas morreu com o povo português. No seu túmulo não estão
só seus ossos, mas os ossos de muitos portugueses. Sua vida começa ao mesmo tempo em que
Portugal está no seu tempo de glória e encerra também quando a nação decaiu.

No seu túmulo está escrito de um lado “para servir-vos, braço às armas feito” e de outro “para
cantar-vos mente às musas dada”. Soldado e poeta. Francisco da Silveira Bueno escreve sobre a
visita ao túmulo:
Não há coração português, não há coração brasileiro, que, ao deparar com estes dois túmulos,
contemplando as estátuas jacentes dos grandes gênios que aí dormem, não sinta dobrarem-se-
lhe os joelhos, marejarem-se-lhe os olhos! [...] Entra o filho do Brasil, entra o literato brasileiro,
entra o professor de português, todo embebido de leituras clássicas, todo ressoante de versos e
estrofes de Os Lusíadas e, ao ver estes dois túmulos, quase não pode reger o tumulto de
recordações que lhe vêm do seu interior, como esse revolto mar tantas vezes descrito por
Camões. [...] Dificilmente os pés se movem para outras belezas porque ali lhe está preso o
coração, cativo desses cantos da epopeia, dessas dez amarras que ao infinito alçam o mortal
forasteiro.”

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