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FILOSOFIA DA MENTE

NEUROCIÊNCIA, COGNIÇÃO E COMPORTAMENTO

João de Fernandes Teixeira

Editora Claraluz, São Carlos - SP

2005
II

Para Malu, mais uma vez e sempre.


III

SUMÁRIO

Apresentação de Lucia Santaella .........................................................................................I

Introdução.............................................................................................................................1

1a. Parte: Cérebro

A ciência cognitiva e o cérebro........................................................................................4

Mentes e máquinas não-clássicas.......................................................................................20

Uma nota sobre Sartre e Damásio ou as emoções entre a


fenomenologia e a neurobiologia .......................................................................................37

2a. Parte: Comportamento

Behaviorismo radical e ciência cognitiva.......................................................................50

Notas para uma teoria do pensamento no behaviorismo radical: vagando


entre Skinner, Dennett e Calvin…………………………………………………………..63

Mais uma nota sobre o operante………………………………………………………….73

As bases neurais da equivalência de estímulos....................85


IV

Filosofia da mente para desconstruir clichês

Uma maneira simples e conveniente de se apresentar a ciência cognitiva seria


definí-la como o estudo científico da mente e do seu papel na produção do comportamento
inteligente, isto é, comportamento propositado e orientado para um alvo. Os principais
protagonistas da cognição humana têm sido a mente, o cérebro, a linguagem, a ação e suas
relações com o mundo. A área tem, ou pelo menos teve até hoje, um caráter interdisciplinar
e mesmo transdisciplinar. Entre as disciplinas que se conjugam para a composição dessa
área híbrida encontram-se as ciências da computação, a lingüística, a psicologia, a
neurociência e a filosofia, mais especificamente, a filosofia da mente.
Não se trata aí de uma filosofia exógena, isto é, de sistemas filosóficos externos que
são transplantados para a área da cognição, mas sim de uma filosofia endógena que,
evidentemente sem abandonar as raízes seculares de que se originou, nasce e se desenvolve
com a finalidade de problematizar e refletir sobre as encruzilhadas conceituais e as
contradições teóricas que são próprias da área. Nesse sentido, dentre as disciplinas do
elenco cognitivo, a filosofia da mente é aquela que desempenha o papel de advogado do
diabo, pois é a ela que cabe questionar as implicações epistêmicas, os vazios explicativos
(explanatory gaps) e as incoerências lógicas do estado da arte apresentados por esse campo
do conhecimento.
É muito justamente essa função de advogado do diabo que este livro de João de
Fernandes Teixeira cumpre magistralmente. O autor está longe de ser um novato na
filosofia da mente. Ao contrário, é responsável por um número considerável de importantes
publicações em ciência cognitiva que fazem dele um dos maiores especialistas brasileiros
nesse campo e, sem dúvida nenhuma, o mais prolífico.
Por essa razão, esta é uma obra madura na qual o autor, com a intimidade e
segurança que só os anos de pesquisa séria podem trazer, sintoniza suas idéias para assumir
uma voz própria frente ao estado mais atual das questões colocadas por sua área de
investigação em um circuito internacional.
Não se trata, portanto, de um livro para principiantes. Isso não quer dizer que não
possa ou não deva ser lido por iniciantes. Há pelo menos duas maneiras de se iniciar nos
estudos de uma área do conhecimento. O primeiro deles parte do mais simples para o mais
V

complexo. Esse é o procedimento mais comum. Mas nada impede que se comece pelo mais
complexo para, depois, ir percorrendo os estudos de modo relativamente aleatório como
quem visita lugares desconhecidos com a atenção aberta e a sensibilidade acesa. Por meio
desse procedimento, muito atual nesta nossa era das configurações hipermidiáticas, o
conhecimento vai se perfazendo de modo a-seqüencial, através de conexões que são
movimentadas pela bússola da curiosidade e do interesse intelectual. Esse procedimento
poderia ser chamado de motivacional. Quando é empregado, saímos de um texto complexo
com a cabeça tão cheia de interrogações, inquietudes e enigmas que somos colocados,
mesmo sem termos consciência disso, em estado de alerta para o futuro.
Aos que já estão iniciados no assunto, o livro é um deleite e, ao mesmo tempo, uma
instigação, um desafio e um convite ao debate e, até mesmo, ao combate, pois a obra é
inegavelmente polêmica, no sentido mais rico desse adjetivo. Argumentos ousados -- e
corajosos na desconstrução de confortáveis clichês -- são inteligentemente elaborados para
morder o espírito do leitor, obrigando-o a reagir dialogicamente.
Não me demorarei aqui na apresentação do conteúdo do livro, pois isso já está
claramente explicitado na introdução do autor. Limito-me a acentuar que o livro está
recheado de interrogações cruciais, diagnósticos lúcidos e propostas originais. Entre eles
destacam-se, por exemplo, interrogações sobre o futuro que a ascendência da neurociência
cognitiva trará para a sobrevivência da filosofia da mente. Os diagnósticos giram, por
exemplo, em torno da falsa equiparação entre a proposta funcionalista e o modelo
computacional da mente. Giram também em torno da falsa obsolescência da inteligência
artificial diante das novas faces que ela apresenta na robótica atual. As propostas são
muitas. Entre elas merece nota a utilização de lógicas não clássicas, paraconsistentes, na
teoria da computação como meio de superação de discussões estéreis que vêm assombrando
o cenário da ciência cognitiva desde a última década.
Enfim, o livro está recheado de problematizações como, por exemplo, aparecem na
corajosa crítica à tão celebrada teoria neurobiológica das emoções de Antonio Damásio, à
luz, nada mais, nada menos, do que a ontologia da emoção presente na obra Esboço de uma
teoria das emoções, de Sartre. Aparecem também na remoção dos preconceitos, para o
autor injustificados, contra o behaviorismo radical de Skinner e na conseqüente proposta de
uma reavaliação dessa teoria frente às preocupações com o comportamento, a
VI

autolocomoção, a corporeidade e a nova concepção da natureza da representação, que


ocupam um lugar central na nova robótica e no dinamicismo, a teoria da cognição
corporificada.
No Brasil, onde, infelizmente, ainda está em falta a necessária valorização da
extrema relevância da ciência cognitiva e da filosofia da mente, cujos estudos se expandem
pelo mundo afora, é admirável e digno de nota que surja entre nós um livro com tal nível de
maturidade e autonomia de pensamento, em diálogo com os debates internacionais mais
avançados dessa complexa área. Isso faz com que esta obra de João de Fernandes Teixeira
brilhe como um astro magno iluminando a jornada daqueles que pretendem se aprofundar
na disciplina mais abrangente e questionadora do feixe das disciplinas que compõem a
ciência cognitiva: a filosofia da mente, neste caso, amplificada na filosofia da psicologia.

Lucia Santaella
Professora Titular do Curso de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP

Schöningen, julho de 2004


1

INTRODUÇÃO

Este é um livro escrito para provocar psicólogos, analistas do comportamento,


neurocientistas, filósofos e cientistas cognitivos. Nele encontramos uma coleção de ensaios
inéditos sobre dois temas contemporâneos: o cérebro e o comportamento.
O primeiro ensaio “A ciência cognitiva e o cérebro” talvez devesse se chamar “O
que a neurociência tem a ver com a filosofia da mente?”. Em seu texto são apresentados os
primeiros passos para a construção de uma disciplina que ainda está por ser desenvolvida: a
filosofia da neurociência, que não deve ser confundida com a neurofilosofia do casal
canadense Churchland. Tive a oportunidade de apresentar recentemente sua versão
preliminar num colóquio na Universidade do Porto, em Portugal (o Segundo Encontro
Nacional de Filosofia Analítica) onde recebi inúmeras sugestões e críticas que me levaram
a quase recompor inteiramente o texto inicial. Sua conclusão aponta para a necessidade de
buscar novas maneiras de conceber a computabilidade, um tema que motiva o ensaio
seguinte.
“Computação Paraconsistente” busca mostrar que a inteligência artificial simbólica
– a GOFAI (Good Old-Fashioned Artificial Intelligence) - não está morta, como muitos se
apressaram a proclamar, sem antes examinar cuidadosamente várias hipóteses possíveis
acerca da analogia entre mentes e softwares. Nele propomos a utilização de lógicas não-
clássicas como fundamento para a ciência da computação e para a descrição das atividades
cognitivas humanas – uma alternativa para continuar a manter a inteligência artificial no
seio da proposta interdisciplinar da ciência cognitiva. Trata-se de um texto bastante técnico,
dirigido àqueles bastante familiarizados com ciência da computação, mas que poderá (ou
deverá) ser pulado pelo leitor leigo nesta área.
O terceiro ensaio, intitulado “Uma nota sobre Sartre e Damásio ou as emoções entre
a fenomenologia e a neurobiologia” fala do cérebro emocional e visa mostrar que,
contrariando críticas habituais, uma neurobiologia das emoções não nos força a embarcar
no projeto implícito de construção de uma psicologia sem psyché. Trata-se na verdade de
uma tentativa de resposta às criticas freqüentes de que a ciência cognitiva estaria ignorando
2

o universo emocional. Sua inspiração surgiu da leitura do livro Em busca de Espinosa, de


autoria de Antonio Damásio, recentemente traduzido e publicado no Brasil.
Os ensaios que compõem a segunda parte – comportamento – mostram que é
possível pensarmos uma continuidade entre behaviorismo radical e ciência cognitiva. Uma
continuidade que, aliás, nunca deixou de existir a não ser que repensemos a história da
psicologia no século XX com a luneta deformadora de Noam Chomsky. Chomsky se auto-
proclamou o herói de uma revolução científica – a revolução cognitiva – que nunca teria
ocorrido a não ser numa visão manualesca da história da psicologia. Esta é a motivação do
primeiro ensaio que abre a seção sobre comportamento, intitulado “Behaviorismo Radical e
Ciência Cognitiva”.
O ensaio seguinte, “A teoria do pensamento no behaviorismo radical: vagando entre
Skinner, Dennett e Calvin” constitui um esforço para conceber o que teria sido uma teoria
do pensamento no behaviorismo radical se Skinner tivesse conhecido o trabalho de dois
cientistas cognitivos contemporâneos: Daniel Dennett e William Calvin. Tenho a certeza de
não ter retratado, neste ensaio, o pensamento skinneriano e sim de tê-lo distorcido numa
leitura retrospectiva. Não se trata, contudo, de uma pura e simples reconstrução anacrônica
do pensamento skinneriano e sim de uma tentativa de re-conceber uma de suas categorias
freqüentemente esquecida ou ignorada, qual seja, o pensamento. Ao mostrar que o
behaviorismo radical pode acomodar uma teoria do pensamento desfazemos mais uma
caricatura simplificadora acerca da psicologia skinneriana.
O terceiro ensaio da seção sobre comportamento “Mais uma nota sobre o operante”
dedico a meu colega Bento Prado Jr. e pode ser lido como uma continuação de seu artigo
“Uma nota sobre o operante: circularidade e temporalidade”, publicado na coletânea por ele
organizada em 1982, Filosofia e Comportamento que, infelizmente, não encontrou
continuidade em novas re-edições ou re-impressões. Mais do que rediscutir o conceito de
operante no behaviorismo radical, este ensaio visa desmistificar o uso indevido de teorias
físicas como as do caos e dos sistemas dinâmicos – muito caras a vários teóricos
contemporâneos - como instrumento de explicação psicológica. Mostramos que, neste caso
específico, a transdisciplinaridade entre ciência cognitiva e behaviorismo radical não é
possível.
3

Finalmente, o quarto ensaio, escrito para os analistas do comportamento e intitulado


“As bases neurais da equivalência de estímulos” empreende a busca pelas bases neurais da
equivalência de estímulos tal como é apresentada nas teorias de Sidman e Tailby. Mais uma
vez, insistimos na continuidade entre neurociência e ciência do comportamento,
enfatizando também que a investigação empírica é indissociável da reflexão epistemológica
– uma proposta que encontramos tanto na ciência cognitiva como na filosofia da mente.
É bem provável que ao terminar a leitura desta segunda parte comecem a aparecer
os contornos da proposta que defendo - ainda que de forma incipiente - do que chamo de
behaviorismo neurocognitivo. Embora a unidade teórica destes ensaios não fique
imediatamente aparente ao leitor menos atento, é possível, contudo, perceber sua intenção
de recuperar a autenticidade do projeto de uma ciência da cognição, cuja
interdisciplinaridade visa integrar o estudo do cérebro, da computação, das emoções e do
comportamento como caminho para a compreensão/replicação da vida mental humana. É
esta a proposta do behaviorismo neurocognitivo cujos delineamentos começo a desenvolver
neste livro – uma proposta de integração entre ciência do comportamento e neurociência
cognitiva anti-cartesiana.
O behaviorismo neurocognitivo fundamenta-se em duas premissas básicas. A
primeira (capítulos I a III) consiste em sustentar que o comportamento inteligente pode ser
modelado e estudado computacionalmente (usando robôs dotados de lógicas clássicas ou
não-clássicas). A segunda, que o torna um behaviorismo sem caixa preta, consiste em
sustentar que o cérebro e os estados mentais (pensamentos e emoções) podem ser
considerados variáveis ambientais (capítulos V a VII).
A ausência de uma unidade final na apresentação desta proposta tem a vantagem de
poder preservar a independência destes ensaios, que podem ser lidos separadamente,
embora isto tenha me levado, ocasionalmente, a algumas repetições inevitáveis pelas quais
peço desculpas ao leitor.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Prado Jr. B. (1982) “Uma nota sobre o operante: circularidade e temporalidade” in Prado Jr.
B. (org.), 1982, Filosofia e Comportamento . São Paulo: Brasiliense.
4

A CIÊNCIA COGNITIVA E O CÉREBRO

Não é incomum encontrarmos a afirmação de que a filosofia da mente


contemporânea teria surgido com a publicação do livro de Ryle, The Concept of Mind , em
1949.1 Mas porque tomar esta obra como um marco da aparição desta nova disciplina, de
um passado tão extenso? Não se trata de desmerecer a importância e a originalidade da
obra de Ryle, mas esta é, com certeza, uma razão insuficiente para situarmos o começo da
filosofia da mente no século XX. Talvez seja melhor, então, perguntarmos o que conferiu à
obra de Ryle essa importância de marco inicial, buscando no contexto de publicação de sua
obra aquilo que os historiadores chamam de “razões estruturais”. Seriam estas que
confeririam importância ao livro de Ryle e não vice-versa.
No início da década de 50 o behaviorismo radical dava seus primeiros sinais de
cansaço. Ou melhor, a comunidade científica parecia ter começado a ficar cansada dele e
ansiava por novidades. Em nenhum momento se conseguia atacar o behaviorismo
mostrando algum tipo de incoerência ou falha teórica, mas era possível anunciar sua morte
recorrendo àquilo que ele não podia fazer: abrir a famosa caixa preta que seria nossa
cabeça. Só assim poder-se-ia abandonar a abordagem estritamente periferalista do
behaviorismo radical. Quem se incumbiu dessa tarefa foi a neurociência – uma
neurociência ainda incipiente se comparada àquela que dispomos hoje. Ela abriu o caminho
para re-enunciar o problema mente-cérebro como problema científico re-introduzindo uma
ontologia para os estados internos. Neste cenário, a identificação entre o mental e o físico
era a posição preferida; uma posição que encontrou defesa nos partidários da teoria da
identidade mente-cérebro, os australianos Place, Smart e Armstrong. Desde então, a
filosofia da mente, seja nas suas vertentes dualistas ou monistas materialistas não pôde mais
ignorar o que ocorria na vizinha neurociência.

1
Dennett, D. (1978).
5

A teoria da identidade mente-cérebro, defendida pela escola australiana, gozou de


um sucesso efêmero, limitando-se praticamente a repisar a famosa equação [estados
mentais = estados cerebrais] e a apostar que a neurociência, no futuro, provaria a verdade
deste enunciado – uma neurociência que, entretanto, ainda não dispunha de instrumentos
para observação da atividade cerebral in vivo, algo que se consolidaria só mais tarde com o
advento da década do cérebro.
Estranhamente, porém, os filósofos da mente, mesmo aqueles mais ambiciosos na
defesa do identitarismo pouco parecem ter se importado com os problemas epistemológicos
ou metodológicos que a neurociência apresenta e como estes poderiam afetar suas posições
filosóficas. Afinal, do que estavam e estão falando os filósofos da mente quando se referem
ao cérebro? Que papel deve ter a neurociência na filosofia da mente? Uma hipótese ainda
pouco explorada e que poderia iniciar uma epistemologia da neurociência ao mesmo tempo
que servir de guia para uma futura historiografia da filosofia da mente é a idéia de que a
história da neurociência, ou de como se concebe o cérebro ao longo do século XX, é a
história verdadeira ou secreta da filosofia da mente e de suas ramificações na ciência
cognitiva.
Ao falarmos do cérebro, não estamos nos referindo a um objeto que nos seria dado
perceptualmente, como as mesas e cadeiras que estão a nossa volta e que compõem nossa
ontologia ingênua. Superar esta ingenuidade metodológica e epistemológica com que os
neurocientistas têm tratado o objeto de sua ciência é o primeiro passo para constituirmos
uma filosofia da neurociência; tarefa esta que, já tive oportunidade de observar, encontra-se
inteiramente por fazer. A ciência do cérebro deve ser concebida como uma ciência de como
nós representamos nosso próprio cérebro, ou seja, de como falamos de uma entidade
construída através do conhecimento neurocientífico – uma entidade teórica. Como então
construir essa entidade que chamamos de cérebro? Ou melhor, como começar a construir
nosso conhecimento acerca de nosso cérebro?
A construção de um conhecimento do cérebro começa pela chamada cartografia
cerebral, que constitui um problema que exige decisões metodológicas e epistemológicas.
Quando se fala em mapeamento cerebral (relação entre atividades cognitivas e regiões
cerebrais) é preciso definir com que tipo de mapa do cérebro estamos trabalhando, ou seja,
qual o critério cartográfico utilizado para dividir o cérebro em suas várias regiões. Desde
6

que se descobriu que o cérebro não poderia ser uma massa indiferenciada, a idéia de traçar
limites entre áreas abriu várias possibilidades de fazer esse mapeamento, desde o critério
especificamente neuro-anatômico, passando pelo critério de conectividade, até chegarmos
ao mais importante que envolve a questão de forma e função.
A idéia de que a função depende da forma parece ser um enunciado intuitivo.
Formas específicas ou arquiteturas específicas do cérebro parecem ser responsáveis pelo
desempenho de funções também específicas. A formas específicas corresponderiam regiões
especializadas do cérebro e é nesse sentido que o debate forma/função se entrecruza com a
questão da cartografia cerebral, ou seja, com a questão dos modos de fazer o mapeamento
de funções cognitivas ou outras no cérebro.
Uma primeira questão que podemos formular é indagar até que ponto os critérios
cartográficos adotados podem ter uma influência sobre as possíveis soluções para o
problema mente-cérebro. Uma segunda questão, igualmente complexa, consiste em saber até
que ponto as funções cerebrais dependem de formas específicas. O principal desdobramento
desta segunda questão diz respeito à possibilidade de sustentar o modelo computacional da
mente e a doutrina filosófica que o apóia, qual seja, o funcionalismo. Antes de discutirmos
estas questões examinaremos brevemente as principais formas de conceber a arquitetura
cerebral que se consolidaram ao longo da história da neurociência.

(1) A arquitetura funcional do cérebro ao longo da história. Existem três opções


metodológicas no que diz respeito a pensar a arquitetura funcional do cérebro: a)
localizacionismo, b) holismo, c) equipotencialismo.
O localizacionismo tornou-se, contemporaneamente, o localizacionismo funcional,
ou seja, a localização de áreas obedece a um critério essencialmente funcional. O holismo
nega que funções mentais possam ser entendidas em termos de áreas isoladas, mas não se
choca com o localizacionismo, pois ele não precisa negar a especialização das áreas.
(Holistas eminentes na história da neurociência foram, por exemplo, K. Goldstein e K.
Lashley). Em outras palavras, o holista não se opõe necessariamente ao localizacionista,
trata-se de uma questão apenas de ênfase na parte ou no todo. Para os equipotencialistas
não existiria especificidade funcional - o que é bem diferente do que dizem os holistas.
Freqüentemente holismo e equipotencialismo são tomados como sendo a mesma coisa, mas
7

há uma diferença: o equipotencialista sustenta que cada parte do cérebro é funcionalmente


equivalente a outra.
Note-se que o localizacionista pode correlacionar uma função com um tipo especial,
por exemplo, de célula no cérebro, mas esta célula pode estar difusa em várias regiões do
cérebro. A localização neste caso perde o sentido especificamente geográfico ou espacial –
ela pode ter a ver com os tipos de células ou com os diferentes grupos de células. É preciso
notar também que, atualmente os equipotencialistas concordam com um certo
localizacionismo de funções mais simples, como as sensórias e as motoras, mas não
estendem o localizacionismo para o caso das “funções cognitivas mais complexas”.2
Ao longo da história da neurociência as posições localizacionistas e
equipotencialistas se alternaram, numa espécie de movimento pendular, trazendo para este
debate grandes figuras como Gall e Flourens. Gall, no século XVIII, defendeu a frenologia
ou a cranioscopia, um localizacionismo declarado, embora primitivo para os dias de hoje.
Sua influência, e seu legado foram, porém muito grandes. Hegel, na sua Fenomenologia do
Espírito critica abertamente Gall sugerindo que a inteligência humana não é um osso;
Fodor vai relembrar Gall na sua teoria da modularidade da mente.3 Em 1901 o
neuroanatomista Bernard Hollander, do Royal College of Surgeons de Londres, publicou
um manifesto revivendo a frenologia, chamado “The revival of phrenology”. Ao que pesem
as críticas atuais que, freqüentemente relembram Gall como alguém que tinha uma hipótese
errada com uma metodologia correta ele é, inegavelmente, o pai do localizacionismo e dos
estudos de citoarquitetura que se seguiram a suas hipóteses iniciais. Infelizmente, o
localizacionismo de Gall foi ofuscado pelo equipotencialismo de Flourens e só foi
reaparecer mais tarde, a partir da metade do século XIX. Broca será a figura que reviverá o
localizacionismo.
Flourens defendeu o equipotencialismo a partir de estudos com o cérebro de animais
(quase sempre pássaros ou pombos) a partir da extirpação de partes desses cérebros para
ver quais funções desapareciam, usando um método parecido com o que Lashley usaria
anos mais tarde: como as funções não desapareciam após essas extirpações seria razoável
manter o equipotencialismo. Flourens era um cartesiano de formação, ou seja, acreditava na
hipótese dualista que separa corpo e alma, cérebro e mente. Ele achava que com o
2
Este seria o caso, por exemplo, de um cientista cognitivo como J. Fodor.
3
Veja-se Fodor, (1983), p. 14.
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equipotencialismo, ou seja, mostrando que funções cognitivas não dependiam de áreas e


células específicas do cérebro estaria reforçando este tipo de hipótese, ou, em outras
palavras, a teoria cartesiana da unidade e indivisibilidade do mental.
Um outro episódio que pode ser visto como parte do debate entre localizacionistas e
equipotencialistas ocorre no final do século XIX: a polêmica entre Golgi e Cajal e o
aparecimento da doutrina do neurônio. Golgi pode ser lido como um equipotencialista ao
pretender que o cérebro seria um tecido contínuo, o que foi desconfirmado por Cajal que
mostrou que o cérebro é um conjunto discreto de células. Na verdade, a doutrina do
neurônio não é nem localizacionista nem equipotencialista, mas de certa forma a posição de
Golgi favorece o equipotencialismo. Hoje em dia, após a invenção do microscópio
eletrônico e da descoberta dos neurotransmissores sabe-se que a teoria de Golgi é
insustentável.
No início do século XX a neurociência parece inclinar-se decididamente para o
localizacionismo, sobretudo por causa da influência dos trabalhos de K. Brodmann. Em
1908 ele fez um mapeamento e parcelamento das regiões do cérebro que é usado até hoje.
Seu trabalho é citado nos melhores manuais, como, por exemplo, o de Kandel. Ele
introduziu o chamado Princípio da Correlação Funcional, ou seja, o princípio de que
diferenças físicas do cérebro demarcam fronteiras funcionais. Não se tratava de argumentar
em termos de localização de funções apenas, mas de correlacionar funções com diferenças
celulares e histológicas. No seu trabalho, o cérebro foi dividido em seis camadas, o que até
hoje é aceito; localizou áreas visuais e outras e traçou fronteiras cito-arquitetônicas.
O debate entre localizacionistas e equipotencialistas, entretanto, nunca terminou.
Em 1946 Lashley faz um violento ataque às concepções de Brodmann, criticando todos os
seus critérios de mapeamento por serem imprecisos e sujeitos a erros – Brodmann teria
passado por cima das diferenças entre indivíduos da mesma espécie.
A história da neurociência não parece ter feito muita justiça a holistas como Lashley
e Goldstein. A obra deste último – a que pese sua grande influência sobre filósofos como
M. Merleau-Ponty – somente começa a ser recuperada nos últimos anos. A concepção
holista do cérebro forneceria uma resposta a vários enigmas com os quais a neurociência
vem se enfrentando nos últimos anos. Por exemplo, diante do problema das localizações
lingüísticas, o holismo sustenta que há localizações relativamente a certas formas, mas não
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aos elementos que as compõem. O sistema nervoso é um todo e não um aparelho composto
de elementos heterogêneos. O funcionamento da região central do córtex não pode ser
compreendido como a atividade de mecanismos especializados correspondendo cada um a
uma função. Neste sentido, lesões de áreas específicas não significam necessariamente a
perda de funções - as quais poderiam ser desempenhadas por outras partes do sistema
nervoso sem que isto nos force, entretanto, a assumir a veracidade do equipotencialismo.
Em outras palavras, não existe uma correspondência biunívoca entre localizações e
funções, nem tampouco a ausência total de uma correspondência.

(2) Mapeamento cerebral e ciência cognitiva - Agora que terminamos esta breve
introdução histórica ao desenvolvimento das diversas noções de arquitetura funcional do
cérebro podemos contar mais um trecho da história secreta da filosofia da mente ou de
como esta foi afetada pelas concepções de cérebro desenvolvidas pela neurociência.
Nas décadas de 60 e 70 ocorre uma influência mútua entre ciência cognitiva e
neurociência – uma influência que se inicia a partir da concepção do cérebro como um
computador (a metáfora computacional) e culmina na idéia da mente como o software do
cérebro. A noção de uma inteligência artificial como realização de tarefas por dispositivos
que não têm uma arquitetura nem uma composição biológica e físico-química igual à nossa
abala profundamente a idéia de que funções cognitivas dependeriam de formas ou
arquiteturas/regiões específicas do cérebro. Esta idéia vai se chocar com a doutrina
filosófica subjacente à inteligência artificial, qual seja, o funcionalismo.
Uma noção intuitiva, mas ao mesmo tempo precisa do que é o funcionalismo nos é
proporcionada por Haugeland (Haugeland, 1993). Ele nos convida a considerar o que está
envolvido em um jogo de xadrez, se são as regras do jogo e a posição das peças no
tabuleiro ou se é o material, tamanho, etc de que é feito este último. Certamente são as
regras e a posição das peças. Pouco importa se o bispo e o cavalo são feitos de madeira ou
de metal, se o tabuleiro é grande ou é pequeno. Em outras palavras, o jogo de xadrez tem
uma realidade independente do material que utilizamos para fazer as peças e o tabuleiro.
Mas não haveria jogo de xadrez se não dispuséssemos de algum material para representar o
tabuleiro, as peças, e as regras. Não podemos suprimir inteiramente o material com o qual
construímos um tabuleiro e suas peças, mas podemos variá-lo quase indefinidamente.
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Ademais, as regras e estratégias do xadrez não serão redutíveis ao marfim se as peças forem
desse material, tampouco ao plástico se elas forem de plástico e assim por diante.4
Façamos agora uma analogia entre jogo de xadrez e a mente. A idéia do
funcionalista é que a mente não se reduz ao cérebro, da mesma maneira que no jogo de
xadrez as regras e estratégias não se reduzem à composição físico-química do tabuleiro e
das peças. O cérebro instancia uma mente, mas essa não é o cérebro nem se reduz a ele.
Podemos agora perceber porque os pesquisadores da inteligência artificial apoiaram o
funcionalismo, pois se tratava de apoiar a possibilidade de replicação mecânica de
segmentos da atividade mental humana por dispositivos que não têm a mesma arquitetura
nem a mesma composição biológica do cérebro.
O aspecto mais interessante do funcionalismo é sua característica não-reducionista,
do qual podemos derivar a chamada tese da múltipla instanciação (multiple realizability).
De acordo com esta tese, dois computadores podem diferir fisicamente um do outro, mas
isso não impede que eles possam rodar o mesmo software. Inversamente, dois
computadores podem ser idênticos do ponto de vista físico, mas realizar tarefas
inteiramente distintas se seu software for diferente. A mesma analogia vale para mentes e
organismos: um mesmo papel funcional que caracteriza um determinado estado mental
pode se instanciar em criaturas com sistemas nervosos completamente diferentes. Um
marciano pode ter um sistema nervoso completamente diferente do meu, mas, se ele puder
executar as mesmas funções que o meu, o marciano terá uma vida mental igual à minha.
Isto é uma conseqüência do materialismo não-reducionista: um rádio (hardware) toca uma
música (software); a música e o aparelho de rádio são coisas distintas, irredutíveis uma a
outra, embora ambas sejam necessárias para que possamos ouvir uma música. Nunca
poderemos descrever o que o rádio está tocando através do estudo das peças que o
compõem.
O materialismo não-reducionista dos funcionalistas leva-os a defender um tipo
especial de teoria da identidade entre mente e cérebro chamada de token-token identity. A
token-token identity sustenta que alguma instância de um tipo mental é idêntica a alguma
instância de um tipo físico, sendo que este pode ser o sistema nervoso de um ser humano,
de um marciano ou o hardware de um computador. Neste sentido, o funcionalismo é uma

4
Ver Teixeira, (2000), p. 124, f.
11

espécie de materialismo/fisicalismo minimalista onde diferentes tipos de estados físico-


químicos podem manifestar um mesmo estado psicológico: esta é, como vimos, a tese da
múltipla instanciação. A tese tem dupla mão: diferentes estados psicológicos podem ser
manifestados por um mesmo tipo físico-químico.
Contudo, é preciso notar, como o faz Mundale (1997), que os pioneiros do
funcionalismo, como Putnam e Fodor não especificam o que devemos entender por um
mesmo estado mental ou por um mesmo estado neurológico. Considere-se, por exemplo, o
estado mental “estar com fome”. Para Putnam tanto um ser humano quanto um peixe estão
no mesmo estado mental quando têm fome, apesar de não estarem no mesmo estado
neurológico, pois seus sistemas nervosos apresentam grandes diferenças. Resta indagar se
os estados mentais do ser humano e do peixe, ao ter fome, seriam funcionalmente
equivalentes.
Funcionalistas como Putnam e Fodor certamente diriam que sim. Contudo, é preciso
considerar que no caso do ser humano, a fome envolve a preparação de comida ou a ida a
um restaurante. O mesmo não ocorre com o peixe. Os estímulos que podem causar fome
em um ser humano são também distintos daqueles que causam fome no peixe. As opções de
alimento para um ser humano também são distintas daquelas que podem satisfazer um
peixe. Neste sentido, a fome do ser humano e a fome do peixe, só podem ser consideradas
funcionalmente equivalentes se vistas a partir de um contexto específico – um contexto que
abstrai suas peculiaridades para torná-las funcionalmente equivalentes.
Esse tipo de abstração parece ter sido o grande pressuposto da abordagem
funcionalista, que, por ignorar as peculiaridades resultantes dos diferentes tipos de
implementação física ou neurológica de estados mentais, estipula, apressadamente,
equivalências funcionais em estados mentais distintos. Estipula também que esses estados
mentais podem ser tratados independentemente de qualquer peculiaridade da base física na
qual eles podem ser instanciados.
Sustentar o funcionalismo e sua conseqüente tese da múltipla instanciação exige
uma representação equipotente do cérebro onde não haja especificidade funcional nem
dependência de funções relativamente a formas e arquiteturas específicas, caso contrário,
essas funções não seriam reprodutíveis em dispositivos diferentes do cérebro humano. Em
outras palavras, o equipotencialismo é uma pressuposição implícita do funcionalismo e da
12

inteligência artificial, que aposta na utilização de hardwares genéricos para reproduzir


funções cognitivas humanas.
A múltipla instanciação irrestrita baseia-se na idéia de que haveria uma classe
ilimitada de hardwares que poderiam reproduzir o software da mente - a classe das
máquinas digitais com arquitetura von Neumann, que teriam apenas uma característica
comum, qual seja, a capacidade de efetuar computações. Esse pressuposto levou a uma falsa
equiparação entre a proposta funcionalista e o modelo computacional da mente. No outro
extremo, tenta-se derivar da neurociência a idéia de que somente seres dotados de um
cérebro semelhante ao nosso poderiam pensar e ter experiências conscientes, como se
somente os pássaros pudessem voar e não os aviões, por serem estes últimos feitos de metal
e não terem asas. Mas este é o próximo capítulo da história que queremos contar.
Paradoxalmente, o desenvolvimento da neurociência estaria levando a ciência
cognitiva a um fim – um fim pouco glorioso. Ao defensor da múltipla instanciação – e,
portanto, do equipotencialismo também – só resta contra-argumentar que, a despeito de
evidências empíricas crescentes em favor do localizacionismo funcional na neurociência,
até agora não foram fornecidas evidências da possibilidade de uma redução psiconeural
completa, uma redução que fosse uma autêntica correlação type-type, ou seja, entre tipos de
estados mentais e tipos específicos de regiões/funções cerebrais. Examinaremos uma
objeção a este argumento e uma possível hipótese que justifique esse insucesso até o
momento no item a seguir.

(3) A década do cérebro: mapeamento cerebral e filosofia da mente – Na metade da


década de 90, filósofos da neurociência como W. Bechtel e J. Mundale argumentaram que
a questão das relações entre forma e função é, no caso do cérebro, uma questão
essencialmente empírica e não matéria de discussão filosófica (Mundale, 1997). Mundale
sugeriu que após os estudos de Brodmann, verificou-se que a citoarquitetura e a histologia
(forma) são determinantes da função. Se o equipotencialismo estiver incorreto - e a
neurociência atual, sobretudo a neurociência cognitiva parece inclinar-se para esta direção
ao subsumir cada vez mais funções a formas específicas - boa parte do trabalho em
inteligência artificial, aí incluindo o conexionismo, estaria condenado ao fracasso.
13

Estas afirmações tiveram forte repercussão, sobretudo numa época em que a ciência
cognitiva vivia um forte re-arranjo de sua interdisciplinaridade onde o computador estava
deixando de ser um modelo de mente para se tornar uma ferramenta de investigação do
cérebro. Neste sentido era preciso repensar as teorias da identidade mente-cérebro e, com
elas, o papel que os critérios cartográficos de mapeamento cerebral podem ter sobre as
possíveis soluções para este problema.
Quando se fala de uma relação entre mente e cérebro (o problema mente-cérebro)
estamos falando, hoje em dia, do tipo de correlação que podemos estabelecer entre funções
cognitivas e cérebro. O tipo de correlação será dado pelo tipo de mapeamento que está
sendo feito – um tipo de mapeamento que nos fornece a concepção ou representação do
cérebro que foi escolhida para ser um dos pólos da relação mente-cérebro. Em outras
palavras, o mapeamento define o que se entende por cérebro, e é neste sentido que seu
papel é fundamental para a filosofia da mente.
Ao discutirmos esta questão, o problema da relação entre forma e função reaparece:
se a idéia de forma prevalece, ou seja, se funções cognitivas dependem de formas
específicas dadas por regiões especializadas do cérebro, a filosofia da mente terá de
inclinar-se em direção a algum tipo de teoria da identidade entre mente e cérebro. Neste
caso, estaremos pensando num tipo de identidade mais estrita, algo que sustenta que
[estados mentais = estados cerebrais], da mesma forma que a teoria da identidade dos anos
50, proposta pelos australianos Smart, Place e Armstrong sustentava. Esta identidade é algo
para a qual poderíamos, agora, contar com a confirmação empírica fornecida pelos
novíssimos instrumentos de mapeamento cerebral, como por exemplo, o fMRI. Trata-se de
uma proposta bastante diferente do materialismo não-reducionista dos funcionalistas de que
falávamos acima; um materialismo não-reducionista que implicava o equipotencialismo no
modo de conceber o cérebro. Ora, se esse equipotencialismo é rejeitado em nome de uma
identidade entre tipos mentais e regiões funcionais específicas do cérebro, estamos diante
de um outro tipo de identitarismo, a chamada “type-type identity”, ou a idéia de que a
determinados tipos de funções cognitivas correspondem determinados tipos de substratos
neurológicos. Este triunfo do materialismo identitarista implicaria, também, na rejeição do
modelo computacional da mente e em boa parte das pesquisas que atualmente são
desenvolvidas na ciência cognitiva. Mas significa a rejeição do modelo computacional que
14

podemos proclamar o triunfo da redução psiconeural num futuro próximo? Teria a


neurociência tornado a filosofia da mente inócua?
Uma possível resposta a esta indagação força-nos a repensar as relações entre
neurociência e filosofia da mente, além de envolver várias nuances e sutilezas conceituais.
Em outras palavras, longe de ser uma questão empírica, parece-nos que ela precisa ser
discutida primordialmente em terreno conceitual. Sustentaremos como razão principal para
esse aparente insucesso do fisicalismo que tudo depende de como são construídos ou
taxonomizados os tipos de funções cognitivas e seus correspondentes tipos cerebrais ou
neurológicos. Desta perspectiva, o fisicalismo/materialismo torna-se uma posição
perfeitamente sustentável, embora seu conflito com a pesquisa atual em ciência cognitiva e
com o funcionalismo ainda mereça mais reflexões, as quais esboçaremos no item (4).
Como construímos os tipos psicológicos, os tipos neurológicos e como se concebe a
correlação entre eles? Tipos não são dados a priori, ou seja, não existe uma determinação
a priori de quais entidades psicológicas e quais entidades neurológicas devem ser
consideradas tipos. Com efeito, há várias maneiras de fazer o mapeamento do cérebro, seja
a partir de tipologias evolucionárias, tipologias baseadas no desenvolvimento ou outras.
Ademais, existem muitos instrumentos e tecnologias para individuar áreas cerebrais.
Existem, por exemplo, preparados a base de tinturas para discriminar variações de padrões
celulares (o método conhecido como cito-arquitetura) e o PET scan também é usado para
discriminar tipos diferentes, de acordo com diferenças em padrões funcionais de ativação.
Métodos diferentes produzem diversas tipologias – tipologias que podem até mesmo, em
alguns casos, entrar em conflito. Assim sendo, seria ingênuo supor que a neurociência
venha algum dia a produzir um único sistema classificatório de tipos neurológicos ou um
único mapeamento cerebral. Estes dependem de contextos e interesses. Por exemplo, uma
tipologia clínica diferirá de uma tipologia com finalidade fisiológica. Podemos então falar
de uma variedade de mapas do cérebro, da mesma maneira que falamos de uma variedade
de mapas de um país: mapa geográfico, mapa político, mapa populacional, etc.5
Ora, a hipótese que precisamos explorar – e que até hoje parece ter passado
despercebida pela filosofia da mente por causa da inexistência de uma reflexão
metodológica/epistemológica sobre a neurociência – é se o aparente fracasso das teorias da

5
Esta mesma observação é feita por Mundale (19997).
15

identidade se deve a uma impossibilidade de se sustentar o fisicalismo ou ao modo de


mapear o cérebro a partir de tipologias inadequadas para se correlacionar funções
cognitivas e tipos neurológicos. Neste caso, a representação do cérebro seria a responsável
pelo fracasso do materialismo estrito, e se esse problema fosse resolvido, estaríamos
abrindo caminho para uma solução definitiva para o problema mente-cérebro (!).
Finalmente cabe observar que em ambas as discussões, seja quando se argumenta
em favor de uma identidade token-token como fazem os funcionalistas, seja quando se
argumenta em favor da identidade type-type como fazem os materialistas/fisicalistas
estritos, há um aspecto comum: a escolha tendenciosa de exemplos para ilustrar a
equivalência funcional ou a subsunção do estado mental a uma forma/arquitetura específica
do cérebro. Os primeiros sempre tenderão a focalizar exemplos mais abstratos, como a
atenção, as emoções, a consciência, onde o mapeamento neurológico ainda é muito
incipiente. Os segundos, ou seja, os materialistas/fisicalistas, tentarão sempre focalizar
exemplos cujas correlações neuro-anatômicas encontram-se mais elucidadas como é o caso
da dor e de outros casos perceptuais.
Certamente não podemos explorar plenamente esta hipótese aqui – ela ultrapassa as
ambições deste ensaio. Contudo, cabe enfatizar, antes de terminarmos esta seção, que se
uma correlação type-type não pode ser obtida, isto não significa necessariamente que o
fisicalismo seja uma teoria errônea e sim que isso pode se dever a alguma falha na escolha
do sistema tipológico a ser usado, seja para caracterizar o mental, seja para caracterizar o
neuronal. Podemos selecionar, arbitrariamente, tipologias nas quais o mapeamento ocorrerá
ou outras que poderão ser usadas como contra-exemplos à proposta fisicalista.

(4) O futuro do funcionalismo – Agora que vimos que uma type-type identity é defensável
e que, portanto, invocar a impossibilidade da redução psiconeural completa não constituiria
uma defesa para o materialista não-reducionista, podemos nos fazer a seguinte questão:
qual será o futuro do funcionalismo? Significará, de fato, a neurociência da década do
cérebro e com ela a possibilidade de uma type-type identity o fim do funcionalismo como
apregoam Bechtel e Mundale? (1997) Haverá alternativas para este conflito entre a
pesquisa em ciência cognitiva e a neurociência? Ou deverá esta última assumir papel
16

preponderante que relegaria a interdisciplinaridade de uma ciência da mente a apenas uma


ilusão temporária?
A inspiração do funcionalismo nos anos 70 foi não apenas que o cérebro poderia ser
comparado a um computador, mas, mais especificamente, a um computador digital, uma
máquina com arquitetura von Neumann. Associou-se o funcionalismo com o modelo
computacional da mente (modelo simbólico) e a tese da múltipla instanciação com a idéia de
que diferentes hardwares podem executar um mesmo software e vice-versa. Neste sentido, o
funcionalismo trabalharia com hardwares ou bases físicas excessivamente genéricas e sua
contrapartida neurológica teria de ser, quase que necessariamente, o equipotencialismo
cerebral. Contudo, múltipla instanciação não significa instanciação irrestrita.6 Caberia
perguntar, então, até que ponto seria sustentável a tese da múltipla instanciação ( multiple
realizability), ou seja, qual seria o limite para o conjunto de formas que podem realizar uma
mesma função? Esta era a pergunta que os funcionalistas, ou melhor, os defensores do
funcionalismo digital como Putnam e Fodor não queriam fazer.
A neurociência não nos ensina que o cérebro é necessariamente irreplicável;
tampouco que não podemos reproduzir suas características funcionais usando outros
materiais e arquiteturas para simular a mente – da mesma maneira que uma máquina de
diálise simula um rim. Neste sentido, o funcionalismo digital tem seus dias contados, mas
não o funcionalismo como tese geral. O funcionalismo como tese geral parece vir
fundamentar a terceira onda da inteligência artificial, qual seja, a nova robótica de Brooks. O
projeto teórico da nova robótica tem como ponto de partida a idéia de que a complexidade
do comportamento biológico é derivada não apenas das características dos organismos,
como também de sua interação com um meio ambiente igualmente complexo – o que
aproxima as idéias de Brooks com as do behaviorismo radical de Skinner.
O cérebro dessas criaturas (sejam organismos ou os agentes robóticos autônoimos de
Brooks) é concebido à luz do comportamento exibido por elas. Insetos podem apresentar
comportamento complexo, sem que para isso seus cérebros tenham que representar regras
lógicas. O mesmo podemos afirmar acerca de gaivotas que fazem vôos rasantes para
apanhar peixes no mar – certamente seus cérebros não representam regras e equações da
balística para evitar que um desses vôos resulte em algum tipo de colisão fatal ou

6
Ver, Teixeira, J. de F. (2000) p.178.
17

afogamento. No cérebro destes organismos, forma e função estão muito próximos, sobretudo
se se concebe função como comportamento. Seus cérebros operaram a transformação de
comportamentos ou processos em hardwares (ou wetwares) específicos ao longo do
processo evolucionário. Se há representações nestes cérebros, elas são representações
implícitas ou encarnações físicas de processos, como é, por exemplo, o caso de uma
calculadora de bolso que encarna funções matemáticas – embora suas regras de
funcionamento sejam estáticas e invariáveis. Certamente outros hardwares mais flexíveis
podem ser formados a partir das interações comportamentais dos organismos/robôs com a
complexidade do meio ambiente. Neste caso, estamos diante de hardwares plásticos que
podem se modificar a si mesmos nestes processos interativos e este é o verdadeiro sentido da
afirmação de que processos/comportamentos podem se transformar em hardwares ou no
limite em wetwares. Esta concepção de cérebro torna forma e função indissociáveis por
associar a elas um terceiro elemento: o comportamento. Mas a indissociabilidade de forma e
função, neste caso, torna-se perfeitamente compatível com o funcionalismo como tese geral
de que falamos há pouco e a afasta do funcionalismo digital – aliás este parece ser o
verdadeiro sentido das críticas de Brooks à inteligência artificial tradicional ou
representacionalista.
A crítica a um funcionalismo des-cerebralizado pode ter outras conseqüências que
não exploramos aqui, como por exemplo, a necessidade de redefinir nossas concepções de
computabilidade. Mas mesmo que esta não tenha ou não possa, no limite ser modificada, a
importância de nossa crítica é sugerir que um computador é um dispositivo regido por leis
físicas que podem instanciar leis lógicas e não apenas um dispositivo puramente abstrato
que se torna definível por uma excessiva generalidade, o que permitiria, por exemplo, incluir
na classe dos computadores uma máquina de Turing construída com tampinhas de
refrigerante e desenhos no chão. Mas esta discussão – que não poderemos adentrar aqui –
requer uma reflexão sobre o estatuto ontológico do que chamamos software e nossa
tendência a concebê-lo como entidade matemática com uma existência independente de sua
realização física; uma questão que nos leva, por sua vez, para o campo de uma nova
disciplina, a saber, a filosofia da ciência da computação. Esta disciplina, que ainda não
adquiriu nenhum tipo de cidadania filosófica ou acadêmica deve começar com uma
indagação primordial, qual seja, se a informação deve ser considerada uma entidade física
18

ou matemática – ou, alternativamente, como uma entidade física ou processo descritível


matematicamente. Mas, neste último caso é preciso atentar para não confundir descrição
com objeto de descrição uma confusão que faz com que se ignore a especificidade dos
objetos que estão sendo descritos simplesmente pelo fato de se postular a existênciaq um
descritor universal, qual seja, a máquina de Turing.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

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TEIXEIRA, J.de F. (2004) – Filosofia e Ciência Cognitiva. Petrópolis: Vozes.


20

MENTES E MÁQUINAS NÃO-CLÁSSICAS

Este artigo retoma a velha G.O.F.A.I. G.O.F.A.I. é a sigla criada pelo filósofo J.
Haugeland para designar Good Old Fashioned Artificial Intelligence que nada mais é do
que outro nome para o paradigma simbólico: a idéia de que a mente é um sistema formal
que manipula símbolos (representações) através de programas computacionais que
resolvem problemas. Resolver problemas seria a própria definição de inteligência; uma
tarefa que poderia ser executada por um computador imitando o grande processador de
informação, ou seja, a mente humana. Nos anos 70 a G.O.F.A.I. viveu sua época de ouro,
tendo à frente pioneiros como M. Minsky, J. McCarthy, H. Simon. Sua influência foi tão
forte que naquela época quase que se identificava ciência cognitiva com inteligência
artificial.
A historiografia da ciência cognitiva de que dispomos hoje – embora ainda nascente
– tem sido injusta com a G.O.F.A.I. Fala-se dela como algo obsoleto, que deve ser
abandonado enquanto proposta metodológica de abordagem da natureza do funcionamento
mental. Novos paradigmas para a descrição da atividade mental como, por exemplo, o
conexionismo, a robótica e o dinamicismo, estariam progressivamente substituindo a
G.O.F.A.I. Em nome deste discurso, várias possibilidades e hipóteses abertas pelo
paradigma simbólico deixaram de ser exploradas. Uma delas é a possibilidade de explorar
novos conceitos de computabilidade à luz de lógicas não-clássicas. A identificação da
atividade cognitiva humana com a de um computador foi baseada em conceitos de
computabilidade e de máquina de Turing que foram desenvolvidos na década de 30, tendo
como pressuposto a lógica clássica. Nesta perspectiva, a mente seria um sistema formal
clássico ou uma máquina lógica clássica deixando-se de lado na história da constituição da
G.O.F.A.I., outras possibilidades como a que sugerimos aqui, provavelmente pelo
desconhecimento ou pela relativa aversão às lógicas não-clássicas nos Estados Unidos.
21

Esta possibilidade não passou, entretanto, totalmente desapercebida por alguns


autores mais recentes, como, por exemplo, J. Copeland. Em um de seus artigos (1997), ele
chama nossa atenção para as implicações da adoção de lógicas não-clássicas para conceber
os conceitos básicos de uma teoria da computabilidade e para estendê-la, em seguida, para
uma nova idéia de mente, a mente-não-clássica. As conseqüências desta adoção, como
notou Copeland, podem abalar profundamente os alicerces da ciência da computação que
conhecemos. Uma delas seria o Teorema da Parada da Máquina de Turing (Turing´s
Halting Theorem) que, focalizado a partir da computabilidade não-clássica ou
paraconsistente, exigiria uma reforma geral da ciência da computação - tarefa hercúlea que
não pode ser empreendida aqui, o que nos força a apresentar apenas algumas conjecturas.
As implicações da idéia de uma computabilidade não-clássica forçam-nos, entretanto, a
uma reflexão acerca do estatuto ontológico das entidades da ciência da computação e sua
relação com máquinas físicas – um item importante, porém pouco explorado, que deve
estar presente numa futura filosofia da ciência da computação. Por fim, é preciso saber se
esta nova idéia de computabilidade pode ser um bom descritor da atividade cognitiva
humana, ou seja, se nossas mentes seriam melhor descritas como dispositivos lógicos não-
clássicos.

A lógica paraconsistente e o Teorema da Parada de Turing – Comecemos por explorar


esta terra incógnita: até que ponto nossas concepções de computação são relativas a uma
determinada concepção da lógica? Pode a adoção de lógicas não-clássicas afetar nossas
concepções ortodoxas de computação? Conforme notamos, a teoria da computação surgiu
nos anos 30, quando a lógica clássica era um pressuposto inquestionável na formulação de
teorias matemáticas e, se abandonarmos esse pressuposto, uma das conseqüências mais
interessantes seria a possibilidade de concebermos alternativas para o Teorema da Parada
de Turing.
O Teorema da Parada de Turing (daqui para diante também referido como TPT)
consiste na demonstração de que não existe um procedimento algorítmico para demonstrar
se, quando alimentada por um input específico, uma máquina de Turing irá parar ou não.
Em outras palavras, não podemos saber, de maneira automática (por um algoritmo) se uma
máquina de Turing parará ou não. É a contradição que estabelece esta afirmativa, ou seja,
22

que não há algoritmo universal para decidir se uma máquina de Turing vai ou não parar. Se
houvesse tal algoritmo, chegaríamos a uma redução ao absurdo do tipo n = n+1, o que não
pode ocorrer na lógica clássica.7
Consideremos agora uma versão intuitiva de TPT através de um exemplo sobre a
computação de um número natural n. Se chamarmos essa computação C(n) podemos

concebê-la como fornecendo uma família de computações na qual existe uma computação

separada para cada número natural 1,2,3,, ou seja, as computações C(1), C(2),C(3)...C(n)
são a ação de uma máquina de Turing (MT) sobre o número n, que, no caso, constitui o
input da máquina.
Suponhamos agora que temos um procedimento computacional A que, quando ele
termina, fornece uma demonstração de que uma computação como C(n) nunca pára. Se em

algum caso particular A chega a um fim, isso seria a demonstração de que a computação

específica a qual ele se refere nunca pára. Dizemos, ademais, que A é correto se ele não

fornece respostas erradas. Pois, se A fosse incorreto, ele afirmaria (erroneamente) que a

computação C(n) nunca termina, quando na verdade ela pára. Mas, nesse caso, efetuar a

computação C(n) levaria a uma refutação de A.

Para aplicar A para computações em geral, precisamos codificar todas as diferentes

computações C(n) de forma que A possa se utilizar dessa codificação para realizar sua ação.

Todas as possíveis computações C podem de fato ser listadas como:


C1,C2,C3,C4 ...,

7
O enunciado técnico do Teorema da Parada de Turing é: Dada uma máquina de Turing qualquer com
programa P e um conjunto de inputs arbitrários I, não existe um programa de Máquina de Turing que pare
após um número finito de passos e nos diga se P vai terminar de processar o input I.
Prova: Uma vez que seqüências computáveis são enumeráveis, considere an como sendo a n-tupla.seqüência
computável e φ n(m) a m-tupla. representação em an . Seja β a seqüência tomando 1-φ n(n) como a n-tupla.
representação. Uma vez que β é computável não existe um número k tal que 1-φ n(n)= φ k(n) para qualquer
n. Se tomarmos n=k segue-se que 1=2φ k(k). Absurdo.
23

e podemos nos referir a Cq como a qth.computação. Quando tal computação é aplicada a

um número particular n podemos escrever:


C1(n),C2(n),C3(n),C4(n),....

Esta ordenação pode ser vista como uma ordenação numérica de programas de
computador. Esta listagem é computável, ou seja, existe uma computação singular C• que

nos dá Cq quando lhe apresenta q ou, em outras palavras, a computação C• atua sobre o

par de números q, n, (q seguido de n) para nos fornecer Cq(n).


O procedimento A pode então ser concebido como uma computação particular que,
quando se lhe apresenta o par de números q, n afirma que a computação Cq(n) nunca pára.

Assim sendo, quando a computação A termina, temos a demonstração de que Cq(n) não

pára. Como depende dos dois números q e n a computação A pode ser escrita como A(q,
n), e temos:
(1) Se A(q,n) pára, então Cq(n) não pára.

Consideremos agora os enunciados específicos (1) para os quais q é igual a n. Com


q igual a n temos:
(2) Se A(n,n) pára, então Cn(n) não pára.

Note-se que A(n, n) depende apenas de um número, n e não de dois, e assim sendo
ele deve ser uma das computações C1,C2,C3,C4 ..., (aplicada a n) uma vez que esta

constitui a listagem de todas as computações que podem ser realizadas sobre um único
número natural n. Suponhamos que de fato ele é Ck e neste caso nós temos:

(3) A(n,n)= Ck(n).


Agora, examinemos o valor particular n = k. De (3) nós temos:
(4) A(k,k) = Ck(k).

e de (2) com n = k
(5) Se A(k,k) pára, então Ck(k) não pára.

Substituindo (4) em (5) encontramos:

(6) Se Ck(k) pára, então Ck(k) não pára.


24

Disto podemos deduzir que a computação Ck(k) não pára pois se parasse, não

pararia tampouco, de acordo com (6). Mas A(k,k) não pode parar tampouco, pois temos que,
por (4), ela é o mesmo que Ck(k). Assim sendo, nosso procedimento A não pode afirmar se

essa computação particular Ck(k) não pára, mesmo que ela não o faça. Neste caso, ou

estamos diante de uma contradição do tipo (n = n+1) ou nosso procedimento A é incorreto

– uma hipótese que não faria sentido considerar aqui.

Esta demonstração de Turing tem, claramente, como pressuposto, a lógica clássica:


encontrar uma contradição significa “implodir” o sistema. Uma alternativa à lógica clássica
são as chamadas lógicas paraconsistentes. Lógicas paraconsistentes são lógicas não-
clássicas. Nossa opção por elas nesta investigação deve-se ao fato de estas não se oporem
diretamente às concepções da lógica clássica, visando, ao contrário, complementá-la com
ferramentas alternativas para resolver alguns problemas matemáticos e lógicos que escapam
da esfera do formalismo clássico. Esta proximidade à lógica clássica tem uma vantagem: se
a adoção de uma lógica paraconsistente resultar na rejeição do Teorema da Parada de
Turing, esta será uma conclusão que não se seguirá trivialmente ou pelo simples fato de
termos topado com uma contradição.
O desenvolvimento histórico das lógicas paraconsistentes tem levado a vários
questionamentos acerca do modo como devemos interpretá-las. Elas podem ser concebidas
a partir de dois diferentes pontos de vista: a) como uma lógica complementar à lógica
clássica ou b) como uma lógica heterodoxa, incompatível com a lógica clássica e cujo
objetivo é substituir esta última em algumas ou talvez em todas as suas aplicações 8.
Defendemos o primeiro ponto de vista. Na medida em que o raciocínio paraconsistente não
leva à trivialização na presença de contradições, ou seja, na medida em que ele elimina
algumas inferências que poderiam se seguir de uma contradição (na lógica clássica
qualquer coisa ou inferência pode se seguir de uma contradição) entendemos que este tipo
de raciocínio constitui um refinamento em relação aos raciocínios clássicos. Mais do que
isto: a lógica paraconsistente pode ser concebida como uma tentativa de pensar para além
das contradições em vez de simplesmente rejeitá-las. Porém, não discutiremos aqui se

8
Para maiores detalhes acerca desta discussão veja da Costa, Beziau & Bueno, (1995).
25

raciocinar para além das contradições força-nos a conceber a lógica clássica como um sub-
conjunto das lógicas não-clássicas ou, mais especificamente, das lógicas paraconsistentes -
ou seja, se estas contém os raciocínios clássicos ou pelo menos, boa parte deles.
Enfatizaremos apenas que a lógica paraconsistente pode ser concebida como a lógica
subjacente às teorias inconsistentes não-triviais.
Contudo, colocaremos mais uma restrição a nossa escolha de uma lógica não-
clássica para conceber o Teorema da Parada de Turing. Selecionaremos uma lógica
paraconsistente específica, o mais próximo possível da lógica clássica. Este é o caso de
C1+, desenvolvida por da Costa, Béziau e Bueno. C1+ pode ser vista como coincidindo

com a lógica clássica em vários aspectos, e talvez esta seja sua característica mais
surpreendente. C1+ permite alguns padrões de raciocínio paraconsistente na presença de

contradições que, de uma perspectiva mais ampla, coincidem com o raciocínio clássico. É
isto que aproxima C1+ do formalismo clássico, isto é, o resultado geral de C 1+ está

próximo da idéia de que de uma contradição qualquer coisa se segue. Contudo, C1+ difere

da lógica clássica na medida em que seu raciocínio paraconsistente na presença de


contradições não leva à trivialização, apesar do fato de que ele possa coincidir com o
raciocínio clássico.
Esta proximidade à lógica clássica pode ser tomada como um critério relevante para
escolher C1+ dentre uma família de possíveis lógicas paraconsistentes com o propósito de

investigar que conseqüências podem surgir ao concebermos o Teorema da Parada de Turing


a partir de uma perspectiva não-clássica. O que aconteceria, se, por exemplo, TPT não
puder ser derivado de C1+? Será que isto significa que TPT choca-se com a idéia clássica

de que de uma contradição qualquer coisa pode se seguir? Se este for o caso, a veracidade
de TPT torna-se questionável, até mesmo a partir de uma perspectiva clássica. Mas,
certamente, este seria um resultado demasiado forte; um resultado que requereria uma
caracterização clara das relações entre as lógicas clássicas e as paraconsistentes. Como tal
clarificação ainda não se tornou possível, não discutiremos esse assunto aqui. Apenas
sugeriremos que TPT pode não ser derivável de C1+ e apresentaremos algumas

conseqüências que se seguem da idéia de que a lógica clássica não precisa ser considerada
como um paradigma inquestionável para a teoria da computação.
26

Alguns delineamentos de C1+. - Começaremos nossa investigação apresentando

brevemente C1+. Deixaremos de lado, contudo, detalhes técnicos. Nossa abordagem será

através de exemplos de raciocínios paraconsistentes em C1+, apresentados por da Costa,

Béziau & Bueno (1995). O primeiro raciocínio (Raciocínio 1) é um típico raciocínio


paraconsistente no sentido de restringir o que pode ser derivado quando uma contradição é
encontrada, ou seja, uma demonstração de como o raciocínio paraconsistente desafia o
principio de que qualquer coisa se segue de premissas contraditórias. O segundo raciocínio
(Raciocínio 2) é um padrão específico derivado da lógica paraconsistente C1+: um padrão

de raciocínio que coincide com a lógica clássica. A característica mais interessante de C1+

está no fato de que ambos os raciocínios, ou seja, Raciocínio 1 e Raciocínio 2 podem ser
derivados dela. Neste sentido, padrões de raciocínio em C1+ não conflitam, em última

análise, com a lógica clássica, a não ser pelo fato de que eles não se tornam triviais quando
uma contradição é encontrada.
Comecemos pelo Raciocínio 1. Um certo Sr. X está doente e vai consultar o Dr. B,
que diz que ele tem câncer. O Sr. X decide então consultar outro especialista, o Dr. P. que
diz que ele não tem câncer. Dr. P. não concorda com seu colega acerca deste ponto, mas há
uma coisa que ambos reconhecem:
(1) Se o Sr. X tiver câncer, ele morrerá nos próximos três meses.
Usando raciocínio tipicamente paraconsistente, o Sr. X pode fazer raciocínios
interessantes sem ter de supor que Dr. B ou o Dr. P. estejam errados. A partir do enunciado
do Dr. B, o enunciado do Dr. P e o enunciado acerca do qual ambos concordam, o
raciocínio paraconsistente não permite a seguinte inferência:
(2) Se o Sr. X não tiver câncer, ele não morrerá nos próximos três meses.
No raciocínio clássico teríamos: a = Sr. X tem câncer, ∼ a = Sr. X. não tem câncer,
b = Sr.X morrerá nos próximos três meses. De a, ∼ a e b, (1) e (2) se seguem.
O raciocínio tipicamente paraconsistente impede (2), pois na lógica paraconsistente

(e em C1+) não temos que de { a, ∼ a, a ⊃ b } segue-se, como na lógica clássica, que ∼ a ⊃

∼ b. O aspecto interessante deste raciocínio paraconsistente é o fato de que ele não permite
27

a trivialização na presença de contradições. Em outras palavras, a vantagem da lógica


paraconsistente é que podemos fazer raciocínios sem que, como na lógica clássica,
tenhamos que supor que um dos termos da contradição deva ser rejeitado ou de que a partir
de uma contradição possamos derivar qualquer coisa.
Examinemos agora o Raciocínio 2.
Suponhamos que o Dr. B diga:
Não é possível que:
O Sr. X não tenha câncer (∼ a).
E
O Sr. X vai morrer nos próximos três meses (b).
A partir deste enunciado – e apenas a partir deste - C1+ nos permite inferir, como na

lógica clássica que:


(2) Se o Sr. X não tiver câncer ele não morrerá nos próximos três meses.
A característica interessante de C1+ é que, além do Raciocínio 1, podemos derivar

outros tipos de raciocínios (Raciocínio 2).


Uma vez que C1+ impede (2) no Raciocínio 1 e permite (2) no Raciocínio 2,

podemos sustentar que os resultados gerais de C1+ coincidem com os da lógica clássica.

Contudo, a diferença em relação à lógica clássica está no fato de que não há trivialização,
ou seja, a presença de uma contradição não “implode” o sistema: não é qualquer coisa que
pode se seguir quando uma contradição é encontrada. A exclusão de (2) no Raciocínio 1 e a
possibilidade de (2) no Raciocínio 2 não são conseqüências triviais de uma contradição
como ocorre na lógica clássica.
Ora, o que ocorre se aplicarmos raciocínios paraconsistentes derivados de C1+ para

o Teorema da Parada de Turing? Será que a lógica paraconsistente C1+ desenvolvida por

da Costa permite-nos afirmar a existência de um algoritmo (o procedimento computacional


A) para o problema das computações que não terminam? Existirá computação para além
das limitações clássicas propostas por Turing no seu artigo de 1936?
Uma dificuldade prima facie surge ao tentarmos enveredar por esta perspectiva: será
que TPT é um problema que pode ser tratado a partir de uma ótica paraconsistente? A
questão surge na medida em que poderíamos sustentar que raciocínios paraconsistentes
28

aplicam-se somente a situações reais do mundo, nas quais contradições podem aparecer. Se
máquinas de Turing podem ser concebidas como entidades no mundo ou entidades
puramente matemáticas discutiremos mais adiante, embora possamos adiantar, desde já,
que não nos inclinamos à idéia de que os elementos da ciência da computação sejam
entidades puramente matemáticas. Será o fato de uma máquina de Turing parar ou não
parar comparável a uma situação de diagnose médica na qual existe desacordo? O
diagnóstico médico pode se tornar controverso em muitos casos, principalmente pela falta
de evidências conclusivas. Em alguns casos, não se trata apenas de falta de evidências, mas
do modo de interpretá-las. Neste caso, o conflito de interpretações emerge na medida em
que o diagnóstico baseia-se em teorias e concepções científicas mutuamente exclusivas.
Não acreditamos que o caso de TPT seja inteiramente comparável à situação de diagnose
médica, mas nem tampouco concordamos que ele possa ser tomado como uma verdade
absoluta com validade para qualquer tipo ou concepção de matemática e de lógicas
subjacentes. Note-se ademais que, o possível caráter de TPT como uma verdade absoluta,
independente de como se concebe a matemática não parece ser uma questão sobre a qual
exista univocidade. Por exemplo, Isles (1998) assinalou que TPT não pode ser sustentado a
não ser que assumamos a verdade (questionável) de um “sequenciamento intuitivo” dos
números naturais dada pela função +1.9
Existem pelo menos mais duas razões para sustentar que TPT pode ser tratado a
partir de uma ótica paraconsistente. Em primeiro lugar, conforme dissemos no começo
deste artigo, podemos considerar que TPT, ao proceder por redução ao absurdo, é um tipo
de raciocínio na presença de contradições. A intuição subjacente a TPT é que uma vez que
a trivialização surge a partir de uma contradição, estamos diante de uma redução ao
absurdo. (Certamente esta é uma pressuposição da lógica clássica). A segunda razão é a
coincidência entre raciocínios clássicos e paraconsistentes como um resultado geral de
C1+. Se tal coincidência não é apenas fortuita (por que seria?) o tratamento clássico e o

paraconsistente de TPT são igualmente plausíveis. O que precisamos investigar – e isto


permanece ainda como uma conjectura - é se o tratamento paraconsistente ainda implica na
verdade de TPT. Ou seja, se mudarmos a lógica subjacente à teoria da computação por uma

9
Isles questiona TPT ao levantar o problema acerca da ordem dos números naturais e propõe uma versão
“mitigada” de TPT. Contudo, não compartilho com ele seu intuicionismo.
29

lógica paraconsistente do tipo da C1+ é possível que a veracidade de TPT não seja mais

demonstrável!! Ora, que tipo de implicações seguir-se-iam deste tipo de suposição?

Máquinas não-clássicas – Em vez de mergulharmos nesta demonstração – cujos resultados


são ainda desconhecidos – examinaremos preliminarmente algumas conseqüências que
emergem da conjectura que acabamos de fazer e que poderiam, prima facie invalidar a
suposição que acabamos de enunciar. Para começar podemos colocar duas questões: (1)
Como seria possível uma lógica mais fraca como C1+ resolver mais problemas na teoria da

computação do que a lógica clássica? (2) Será que o raciocínio que desenvolvemos até
agora implicaria em que qualquer prova matemática por redução ao absurdo poderia ser
descartada?
Uma possível resposta para a primeira questão consiste em sugerir que uma vez que
utilizamos a lógica paraconsistente como a lógica subjacente à teoria da computação
escapamos das limitações clássicas colocadas pelos teoremas de incompletude – uma
afirmação que seria também aplicável a qualquer sistema lógico que admita algum tipo de
inconsistência.10 Mas será que isto torna, C1+ mais forte do que a lógica clássica?

Provavelmente não, uma vez que há mais teoremas na lógica clássica do que em C1+ .

Porque deveríamos, então, lançar mão da lógica paraconsistente para fundamentar a


matemática e a teoria da computação?
Esta questão leva-nos diretamente ao segundo conjunto de problemas que enunciamos:
se a contradição e os argumentos diagonais podem ser rejeitados, uma série de
conseqüências indesejáveis podem surgir, como, por exemplo, o colapso da aritmética (n
seria igual a n+1!). O preço a ser pago pode ser excessivamente alto. Mas, poderíamos
asseverar a possível existência de um algoritmo de parada, ou seja, rejeitar a verdade de
TPT sem ter de pagar tal preço? Se houver algumas alternativas (e vamos explorá-las a
seguir) cremos valer a pena continuar explorando nossa suposição. Enunciaremos as
seguintes hipóteses:
a) TPT pode ser concebido como uma verdade matemática, mas não necessariamente
como uma verdade da teoria da computação, na medida em que esta última é um
capítulo de matemática aplicada.
10
Para a completude e decidibilidade de C1+ ver da Costa, Béziau & Bueno (1995) e Béziau (1995).
30

b) As verdades matemáticas e as verdades da teoria da computação não


precisam coincidir, na medida em que esta última lida com objetos específicos,
quais sejam, objetos virtuais.
c) Verdades matemáticas não correspondem necessariamente a estados de coisas no
mundo. Este pressuposto anti-realista é perfeitamente aplicável a TPT. Assim
sendo, pode existir algo como um algoritmo de parada, embora este não seja
apreendido pela lógica clássica. Quando abandonamos o absolutismo da lógica
clássica adotando a paraconsistente, a existência de um algoritmo de parada torna-se
concebível.
Comecemos por introduzir algumas teses anti-realistas. Isto significa, em primeiro lugar,
questionar o estatuto epistêmico de TPT. Tal consideração pode ser uma possível resposta
para a questão (2). Certamente TPT é uma verdade matemática se nos restringirmos à
lógica clássica, mas, até que ponto essa verdade necessariamente corresponde a um estado
de coisas no mundo? A discussão desta questão comporta, contudo, várias nuances.
Para começar, não há razão para supor que uma computação paraconsistente não
continuaria para alem das limitações clássicas derivadas de um elemento contraditório
encontrado na diagonal. Em outras palavras, um computador no mundo real não pára
quando uma contradição é encontrada, a não ser que ele tenha uma instrução específica
para parar. Supondo que o elemento diagonal é d e que a instrução é aumentar a diagonal
por 1, o elemento diagonal encontrado é tal que d = d+1. Se d for binário, em vez de
encontrar 0 ou 1, o que é encontrado é 0 e 1.11 Estaríamos diante de uma máquina não-
clássica. As computações podem continuar e a possibilidade de encontrar um algoritmo de
parada não pode ser imediatamente descartada. A verdade de TPT pode ser mantida, mas
apenas como uma verdade formal que não corresponde necessariamente a um estado de
coisas no mundo. Isto não significa, contudo, afirmar que à lógica clássica não
correspondem estados de coisas no mundo e que o mesmo não ocorreria com a lógica
paraconsistente. Esta questão não pode ser discutida unicamente no âmbito da matemática e
da lógica. Outras considerações, derivadas da filosofia da ciência, tornam-se necessárias.
Ressaltaremos apenas, para o momento, que a vantagem desta visão anti-realista de TPT
reside no fato de que não precisamos rejeitar a lógica clássica ao mesmo tempo em que
11
Veja-se a este respeito Sylvan e Copeland (1997).
31

mantemos a possível existência de um algoritmo de parada. Há ainda uma outra vantagem


na adoção deste ponto de vista: não precisar rejeitar todas as demonstrações matemáticas
que procedem por redução ao absurdo.
A principal objeção a esta perspectiva consiste em sustentar que existe um
mapeamento entre TPT e estados de coisas no mundo, apesar de os elementos da teoria da
computação serem puramente matemáticos, de onde se seguiria que algo como um
algoritmo de parada nunca poderia existir. Paradoxalmente, sustenta-se o realismo, a partir
de uma afirmação muito cara aos matemáticos: a de que a teoria da computação nada tem a
ver com máquinas reais e sua implementação, pois deve ser essencialmente matemática. A
conseqüência de tal objeção (também paradoxal) é que a teoria da computação pode ser
concebida como um jogo formal que pouco tem a ver com computadores reais – embora
determinasse o tipo de computadores que podemos, em última análise, construir (!!).
Mas, se a teoria da computação pode ser concebida apenas como um jogo formal,
podemos – com toda razão – reivindicar uma lógica não-clássica para constituir seu
fundamento, uma vez que não temos nenhuma razão para aceitar a lógica clássica como sua
única possibilidade. As conseqüências seriam devastadoras e contra-intuitivas: a aritmética

entraria em colapso, 2 tornar-se-ia racional...e daí? Se este é o cenário, azar da

matemática, e azar da teoria ortodoxa da computação! Haveria ainda uma outra

conseqüência possível: uma lógica não-clássica subjacente a teoria da computação (uma na

qual existe um algoritmo de parada) poderia ser concebida como englobando a lógica

clássica, ou, em outras palavras, nesta conviveriam duas possibilidades contraditórias: a de

que tal algoritmo existe e a de que ele não existe (!!)


Temos então de encontrar um caminho que evite o colapso da aritmética e, ao
mesmo tempo, não pressuponha o absolutismo da lógica clássica como fundamento para a
teoria da computação. As dificuldades envolvidas nesta tarefa podem ser superadas se
refletirmos acerca do estatuto ontológico que desejamos atribuir aos elementos que
compõem a teoria da computação. Sugerimos que a visão anti-realista de TPT, na qual as
entidades da teoria da computação não coincidem, nem tampouco têm o mesmo estatuto
ontológico das entidades matemáticas, ajuda-nos a preservar grande parte da lógica clássica
e, ao mesmo tempo, sustentar a possível existência de um algoritmo de parada.
32

Certamente estamos diante de uma questão epistemológica delicada que não pode
ser banalizada. Argumentar em favor da existência de uma diferença entre entidades da
teoria da computação e entidades matemáticas não é o mesmo que argumentar pela
existência de uma diferença entre uma teoria matemática e um computador real, dizendo,
por exemplo, que máquinas reais não têm uma fita infinita como pressupõe a definição de
uma máquina de Turing. A diferença para a qual queremos apontar é mais sutil, não se
tratando de algo pura e simplesmente implementacional. A diferença entre fitas infinitas e
fitas reais não parece afetar a teoria da computação: trata-se da mesma diferença que existe
entre triângulos físicos e triângulos matematicamente considerados: os primeiros não têm
180 graus, mas é uma verdade matemática inquestionável na geometria euclidiana que
triângulos têm 180 graus. Ora, a diferença que buscamos é de outra ordem.
Certamente a teoria da computação encontra seus fundamentos em uma lógica
subjacente e num conjunto de verdades matemáticas. Mas deve haver mais coisas na teoria
da computação do que uma recapitulação de verdades já conhecidas. O que distingue a
teoria da computação é o fato de a partir deste conjunto de verdades conhecidas, máquinas
abstratas ou virtuais poderem ser concebidas. Neste sentido, a teoria da computação é um
capítulo da matemática aplicada – aliás, um capítulo bastante específico. Tal especificidade
reside na maneira pela qual a teoria da computação estabelece uma correspondência entre
verdades matemáticas e lógicas com estados de coisas no mundo: um mapeamento que
estabelece uma correspondência com elementos virtuais. Trata-se de um mapeamento
bastante peculiar, embora este possa ser considerado como uma correspondência com algo
do mundo.
Que estatuto ontológico devemos atribuir a uma máquina virtual? Terá uma
máquina de Turing o estatuto de uma entidade puramente matemática, isto é, o estatuto de
algo que não ocorre no espaço e no tempo? Uma computação é algo que ocorre no mundo,
mesmo quando realizada por uma máquina virtual: uma computação envolve tempo, uma
vez que a idéia de seqüenciamento (não importando se se trata de um modo de operação
linear ou um ciclo de atividade paralela) está na essência de qualquer processo algorítmico.
Máquinas de Turing envolvem um seqüenciamento temporal na execução de operações
matemáticas – um seqüenciamento sem o qual a solução de certos problemas não poderia
33

ser realizada.12 Neste sentido, Máquinas de Turing envolvem um elemento do mundo, pois
não importa o quanto nossa concepção de tempo seja abstrata, ela continuará sendo uma
magnitude física.13
Assim sendo, a teoria da computação não pode ser puramente matemática, mas não
pode ser empírica tampouco. Seus elementos devem ser classificados como pertencentes a
uma espécie de ontologia cinzenta de elementos virtuais que mantêm alguns elementos
oriundos do mundo e uma referência a este – elementos virtuais que podem ser utilizados
em vários tipos de aplicações empíricas. É essa infiltração sub-reptícia de uma referência ao
mundo que nos permite tratar máquinas virtuais como algo no mundo.
É neste sentido que TPT pode ser mantido como uma verdade da matemática
clássica apesar do fato de desqualificarmos seu realismo e seu caráter absoluto ao concebê-
lo sob a ótica paraconsistente derivada de C1+. TPT é uma verdade matemática, mas não

necessariamente uma verdade da teoria da computação – não quando ela se refere a


máquinas virtuais, isto é, máquinas cujo comportamento embora seja descritível por teorias
matemáticas não devem ser vistas como algo inteiramente preditível a partir de qualquer
tipo de teoria matemática (muito menos em se tratando de um formalismo clássico).
A estranheza – mas ao mesmo tempo a força - deste ponto de vista pode ser
ilustrada por um paralelo entre lógica clássica/lógica paraconsistente e geometria
euclidiana/geometria não euclidiana. As geometrias não-euclidianas ajudaram-nos a lidar
com novas concepções derivadas da física contemporânea como, por exemplo, espaço com
uma curvatura variável. Da mesma maneira, a lógica paraconsistente pode ajudar-nos a

12
Não podemos conceber uma máquina de Turing (como máquina virtual) sem uma referência ao tempo.
Mesmo uma máquina de Turing com apenas uma instrução requer uma segunda, seja para parar ou para não
parar. O sequenciamento pode ser abstraído se concebermos a máquina de Turing como entidade puramente
matemática, ou seja, de forma não-holonomica, (o que estamos rejeitando aqui), mas até nesta maneira uma
idéia de sequenciamento permanece, pois duas instruções não podem ser realizadas ao mesmo tempo; uma
terá de seguir a outra.
13
Mesmo concepções subjetivistas do tempo admitem que ele envolve referência a algo no mundo. Kant, por
exemplo, que defendeu que o tempo é uma forma a priori da sensibilidade, diz que “O tempo não é uma
forma discursiva, ou como ele é as vezes chamado, uma concepção geral, mas uma forma pura da intuição
sensível” (ênfase minha). A primeira antinomia de Kant enfatiza a necessidade de distinguir as esferas
sensíveis e inteligíveis ao lidar com as noções matemáticas – pelo menos como um meio de evitar a geração
de pseudoproblemas. O mesmo ponto é enfatizado por Kant em seus trabalhos anteriores (1770/1967) onde
ele afirma que A = A não pode ser considerada uma relação puramente lógica se a igualdade for mediada pelo
tempo. (“A enim et non A non repugnant nisi simul (h.e. tempore eodem) cogitata de eodem, post se autem
(diversis temporibus) eidem competere possunt” p.60). Tal distinção parece ter sido ignorada nas discussões
acerca da natureza dos elementos da teoria da computação.
34

lidar com peculiaridades dos elementos da teoria da computação, isto é, a lógica


paraconsistente deve substituir a lógica clássica em algumas de suas aplicações, como é o
caso de alguns de seus teoremas fundamentais. Neste sentido, a possibilidade de encontrar
um algoritmo de parada não deve assustar os matemáticos, nem nos força a abandonar o
estudo de uma das mais belas peças da matemática do século XX, qual seja, o Teorema da
Parada de Turing.
Mentes não-clássicas – A utilização de lógicas não-clássicas poderá inaugurar uma nova
onda para a GOFAI no século XXI. Sabemos que a inteligência artificial dos anos 70
fracassou em grande parte por causa de sua excessiva rigidez (brittleness) que simulou
brilhantes jogadores de xadrez, que eram, contudo incapazes de executar qualquer tarefa do
âmbito do senso comum. A Nova GOFAI (este termo já é uma contradição!) poderá
contribuir com uma parcela significativa de simulação de atividades cognitivas humanas:
aquelas nas quais está envolvida a contradição ou a presença de crenças contraditórias. A
simulação destas últimas, aliás, abre caminho para a simulação do senso comum,
constituindo-se como uma alternativa para o programa de estoque de memória da robótica
tradicional (Lenat e Guha, 1990) e o programa de memória-quase-zero de Brooks, (1991)
que caracteriza a Nova Robótica. Esta última talvez não precise de novas concepções de
computabilidade como sugerimos no ensaio anterior, mas apenas utilizar-se das
possibilidades abertas pela computabilidade não-clássica na construção de seus agentes
autônomos.
Robôs programados com lógicas não-clássicas poderão evitar desafios de situações
reais do mundo nas quais as contradições aparecem. Um exemplo típico é a do robô
programado para se locomover até um certo lugar numa usina e apertar um conjunto de
chaves para impedir que uma explosão ocorra. No caminho, porém, há uma barreira de
fogo causada por um incêndio em curso. Uma máquina clássica seria levada à auto-
destruição ou simplesmente ficaria “travada” no mesmo lugar e a explosão ocorreria em
seguida. Já uma máquina não-clássica teria melhores chances de lidar com a situação
contraditória.
O ponto cego da inteligência artificial simbólica, como muito bem observou um de
seus fundadores, Marvin Minsky, tem sido a impossibilidade de simulação do senso
comum. Nos últimos anos isto dividiu a pesquisa em inteligência artificial e ciência
35

cognitiva em duas vertentes que dificilmente poderiam se reconciliar: a que parte da


simulação de atividades simbólicas complexas (jogos de xadrez, cálculos de matemática e
de engenharia) para depois tentar resgatar o senso comum e a segunda vertente, que vai na
direção oposta, que parte do comportamento em direção à atividade simbólica como é o
caso da robótica de Brooks. Sabemos que dificilmente estas duas estratégias poderão se
encontrar no meio do caminho entre, de um lado a simulação do senso comum e de outro a
possibilidade de ascender de comportamentos simples a atividades simbólicas complexas
como a linguagem natural humana. Neste sentido, máquinas não-clássicas seriam uma
alternativa para abreviar o percurso necessário para este encontro que nos proporcionaria
uma conciliação entre estas duas estratégias e suas concepções divergentes acerca da
natureza da cognição.
Outras discussões (algumas delas mais antigas) também poderão ser clarificadas
pela Nova GOFAI. Quando Penrose (1989,1994) reabilitou os argumentos de Lucas (1961)
no início da década de 90 e os transformou numa máquina de guerra contra a inteligência
artificial, certamente ele se esqueceu das possibilidades abertas pelas lógicas não-clássicas
para resolver TPT. Ele sustentou que TPT não pode ser resolvido por uma mente
raciocinando classicamente, mas isto não pode ser estendido para uma mente que acomode
contradições, ou seja, uma mente não-clássica. Em outras palavras, se TPT sustenta-se por
uma redução ao absurdo, a lógica paraconsistente permite pensar para além da contradição
sem que necessariamente tenhamos uma situação de incomputabilidade que nos forçaria, no
limite, a postular a existência de uma intuição matemática mágica (ou quântica) – uma
intuição que permitiria aos seres humanos saber quando um procedimento algorítmico pára
ou não.
Pensar para além da contradição significará não apenas conceber a possibilidade de
uma mente não-clássica como também questionar a existência de uma independência total
entre as lógicas de computação e as máquinas que as implementam – mesmo sendo estas
máquinas virtuais. Pois, conforme observamos, a máquina não clássica não pára mesmo
quando encontra uma contradição, ou seja, novamente a idéia de que um computador deve,
primordialmente ser concebido como um dispositivo físico que instancia leis lógicas e não
uma idealidade matemática. Encontramos aqui, mais uma vez, assunto fértil para a filosofia
da ciência da computação.
36

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

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Analyse 131-132 pp.259-272.

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C1" Logique et Analyse 137-138

Béziau, J.Y. (1995) - “Théorie de la valuation”, Appendix 2 in da Costa, N.C.A., Logiques


Classiques et non Classiques, Paris, Masson.

Brooks, R. (1991) “Intelligence without representation”. Artificial Intelligence 47: 139-159.

Da Costa, N.C.A. (1963) - "Calculs proposicionnels pour les systemes formels


inconsistants" C.R. de l'Academie des Sciences de Paris 257 pp.3790-3793.

Da Costa, N.C.A.& Alves, E. H. (1977) - "A Semantic analysis of the calculi C n " , Notre

Dame Journal of Formal Logic, 10, pp.621-630.

Da Costa, N.C.A., Béziau, J.Y and Bueno, O. (1995) - "Aspects of Paraconsistent Logic",
Bulletin of the Interest Group in Pure and Applied Logic 3 pp.597-614.

Da Costa, N.C.A. (1997) – “Paraconsistent Mathematics” (forthcoming).

Isles, D. (1981) – “Remarks on the notion of standard non-isomorphic natural number


series” in Constructive Mathematics: Proceedings of the New Mexico State University
Conference, Springer-Verlag Lecture Notes in Mathematics, # 873, pp.111-134.
37

Kant, I (1770/1967) - De Mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis - Latin and
French version, edited by P. Mouy, Paris, J. Vrin.

Kant, I (1781) – Kritik der Reinen Vernunft - Critique of Pure Reason – Trans. N. Kemp
Smith. London: Macmillan, 1929.

Lenat, D., & Guha, R (1990) – Building large knowledge –based systems. Reading, MA:
Addison-Wesley

Mortensen, C. (1995) – Inconsistent Mathematics. Kluwer Academic.

Penrose, R. (1989) The emperor´s new mind: Concerning computers, minds and the laws of
physics. Oxford: Oxford University Press.

Penrose, R. (1994) Shadows of the mind. Oxford: Oxford University Press.

Sylvan, R & Copeland, B.J. (1997) - “On the relativity of computability” (unpublished).

Turing, A. M. (1937) - "On Computable Numbers with an application to the


Entscheidungsproblem", Proceedings of the London Mathematical Society 42 pp.230-265.
Turing, A. M. (1939) - "Systems of Logic based on Ordinals" Proceedings of the London
Mathematical Society 45 pp.161-228
38

UMA NOTA SOBRE SARTRE E DAMÁSIO OU AS EMOÇÕES ENTRE A


FENOMENOLOGIA E A NEUROBIOLOGIA

No seu best-seller Em busca de Espinosa Antonio Damásio retoma uma idéia que
parece percorrer toda sua obra desde seu primeiro livro publicado em 1995: a
impossibilidade de separar emoção de cognição, mesmo que esta separação seja apenas
metodológica como queriam os partidários da inteligência artificial e do modelo
computacional da mente. Ao lermos o primeiro e o último livro de Damásio (O Erro de
Descartes e Em Busca de Espinosa) ficamos com a clara impressão de que a ciência
cognitiva não pode se furtar de preencher o vácuo deixado pela ausência de uma teoria da
emoção e de seu papel no conhecimento e em outras regiões de nossa vida psíquica.14
É no seu livro de 2004 que os contornos de uma teoria das emoções delineiam-se de
forma mais nítida na obra do neurobiólogo português. Sua obra, numa prosa magnífica,
oferece uma abordagem da natureza das emoções que oscila entre a psicologia darwinista e
um fisicalismo que, por vezes, beira o materialismo eliminativo.15 É preciso achar uma
função para as emoções, um papel cognitivo para suas diversas variedades, um papel que
esteja ligado à preservação física e mental dos organismos, e, se possível, que essa
preservação seja acompanhada de um elemento suplementar: o bem-estar. Mas, ao mesmo
tempo em que se reconstitui uma ontologia para as emoções – para o medo, para a alegria, a
tristeza, etc – Damásio preocupa-se em mostrar seus correlatos neurais. É preciso retraçar
sua representação neurológica, sua marca no cérebro ou aquilo que ele chama de mapas
cerebrais que, ao ultrapassarem um certo limiar, geram imagens mentais que entram no
teatro da consciência sob a forma de sentimento. Ao leitor mais familiarizado com filosofia
da mente, a idéia da ultrapassagem de limiares como mecanismo para entrada no espaço da

14
Uma tendência que é, aliás, cada vez mais reconhecida. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Panksepp, J.
(1998).
15
Veja-se a seguinte passagem “Com o auxílio dos instrumentos da neuroanatomia, da neurofisiologia e da
neuroquímica, somos hoje capazes de descrever padrões neurais. Com o auxílio da introspecção somos
também capazes de descrever imagens mentais. Contudo, os passos intermediários que nos levam dos padrões
neurais às imagens mentais não são ainda conhecidos. É também importante ressaltar que essa ignorância não
contradiz de forma alguma a noção de que as imagens mentais são processos biológicos e ainda menos nega
de forma alguma a sua fisicalidade” (Damásio, 2003, p. 209).
39

consciência lembrará, em certos momentos, as teorias de Dennett e de Calvin, das quais nos
ocuparemos mais adiante neste livro.16 No caso de Damásio, a entrada no espaço de
consciência transforma a emoção em sentimento; no seu livro não faltam exemplos para
provar esta tese, qual seja, de que o sentimento é sempre precedido pela emoção e que o
inverso não poderia acontecer.17
Emoções são representações neurológicas de estados do corpo; para ter emoções é
preciso um cérebro suficientemente complexo para poder abrigar estas representações, caso
contrário, como acontece em organismos mais simples, é possível ter emoções sem,
entretanto sentí-las. Neste último caso as emoções são apenas parâmetros para ações que
garantam a sobrevivência dos organismos. Já no caso dos seres humanos estas não são
apenas sentidas como podemos até refrear as ações que automaticamente decorreriam delas.
É possível também, no nosso caso, a distorção cognitiva da representação neurológica dos
estados do corpo – uma distorção que, as vezes, pode levar à patologia em casos limite.
“Estou triste porque choro”, e não “Choro porque estou triste” – esta é a formulação
correta do ponto de partida de uma teoria das emoções segundo Damásio; um ponto de
partida reconhecido como uma herança da psicologia de William James, o qual é citado
várias vezes ao longo de seu texto. É preciso não inverter determinante por determinado,
caso contrário embarcaremos no emaranhado dualista de explicar e justificar a causação
mental, uma tarefa que certamente Damásio prefere evitar. Afinal, é preciso fugir dos erros
de Descartes.
Mas o que mais impressiona no livro de Damásio não são seus pressupostos de
psicologia evolucionária, pelos quais as emoções adquirem funções ou se tornam balizas
para a ação – marcadores somáticos como aparece no seu primeiro livro. Que o medo sirva
para alguma coisa – para evitar que arrisquemos nossa integridade física e psíquica – parece
ser algo inconteste. O que realmente impressiona é a facilidade com que ele nos convida a
passar do discurso em primeira pessoa para o discurso em terceira pessoa, ou seja, do
discurso subjetivo para o discurso da neurociência, um problema que tem arrepiado o
cabelo dos filósofos da mente nas últimas décadas. Tudo se passa como se, para Damásio, o
explanatory gap não existisse e um fisicalismo ou materialismo eliminativo tácito pudesse

16
Veja-se o capítulo 5.
17
Veja-se passagem na pg. 109, onde ele nos diz “esse resultado mostrava inequivocamente que a emoção
vem primeiro e o sentimento dela depois”.
40

ser professado sem nenhum problema. Poderíamos reduzir toda nossa experiência visual,
em technicolor, à atividade da massa cinzenta do cérebro. Ou a pintura de Van Gogh à
dilatação de alguns ventrículos do cérebro. Algo que se afigura, pelo menos de início, como
bizarro e inadmissível.
Neste sentido, um dos exemplos mais impressionantes de Damásio é o da mulher
parkinsoniana, na qual a introdução de agulhas no cérebro não causa apenas a eliminação
de tremores, mas a aparição de relatos verbais de profunda tristeza – de autênticos
sentimentos de tristeza. Tudo se passa como se o despertar destes sentimentos pudesse ser
identificado à estimulação de uma “circuitaria” cerebral específica – uma circuitaria sobre a
qual podemos esperar, no futuro, ter controle. Mais uma vez o que se opera é a redução do
sentimento a alguma outra coisa; explicar é reduzir. Outras evidências sobre as bases
neurais da alegria e da tristeza são também alinhadas por Damásio, todas elas baseadas em
PET ou na imaging cerebral proporcionada pela ressonância magnética funcional. Em todos
esses casos passa-se de relatos verbais de pacientes para suas correspondentes áreas
cerebrais ativadas ou cintilantes. Em outras palavras: passa-se de um relato em linguagem
da psicologia popular (folk psychology) para seu correlato neurobiológico, sem que se
questione a consistência ontológica das entidades que participam desses relatos nem
tampouco se poderíamos executar a operação inversa, ou seja, a partir do exame da
imaging inferir os conteúdos mentais que compõem as tristezas ou alegrias desses
pacientes. Ora, não estaríamos aqui diante do explanatory gap que não se deixa esquecer?
Ou seja, da velha asserção dos filósofos da mente de que o conhecimento da neurofisiologia
da dor não me permite imaginar nada parecido com sentir uma dor?

II

Quando nos debruçamos sobre o livro de Sartre, Esboço de uma Teoria das
Emoções, publicado em 1965, encontramos uma abordagem totalmente diferente da
ontologia da emoção. Para a psicologia fenomenológica, explicar não é reduzir. É preciso
saber o que são as emoções e como elas interagem umas com as outras 18,integrando-as
numa teoria psicológica que explique seu papel na organização psíquica e na organização
18
Note-se que Damásio também reconhece a importância da interação das emoções. Veja-se Damásio (2004),
capítulo 3, “Os sentimentos”.
41

da ação. O psicólogo busca constituir uma idéia do que sejam as emoções e, embora nelas
possamos identificar reações corporais, ações e estados de consciência, uma teoria
psicológica precisa buscar a explicação para as leis da emoção nos próprios processos
emocionais. Em outras palavras, é preciso buscar a essência da emoção mediante a redução
fenomenológica que põe o mundo entre parêntesis. Isto quer dizer buscar o significado da
emoção antes de assumí-la como um dado, um fato bruto com o qual a psicologia teria de
lidar e ao qual gostaríamos de poder rapidamente atribuir algum tipo de consistência
ontológica – uma consistência ontológica derivada dos pré-julgamentos que a consciência
reflexiva realiza.
A primeira observação de Sartre no seu ensaio é que a emoção não existe
exclusivamente como fenômeno corporal, uma vez que um corpo não pode se emocionar,
ou seja, não pode conferir um sentido a suas próprias manifestações. Discutir o sentido da
alegria ou da tristeza não pode ser feito a partir de estados corporais – estes não são alegres
nem tristes, nem tampouco podem se sentir aterrorizados. Estas são propriedades de estados
de consciência e atribuí-las a estados físicos leva-nos a paradoxos semânticos: se as
emoções são estados corporais seria legítimo atribuir a elas tanto propriedades físicas
quanto propriedades mentais, o que geraria sentenças sem sentido do tipo “meu corpo está
agora aterrorizado” ou “meu corpo está alegre”. 19
O ataque sartreano à teoria da emoção como fenômeno derivado da modificação
corporal tem como alvo as teorias clássicas como as de W. James. Este tipo de teoria não dá
conta do caráter organizado de nossas emoções por ter uma perspectiva atomista – a
perspectiva jamesiana trabalha com fatos psíquicos isolados. Não se apreende a lógica das
emoções, isto é, porque um tipo de emoção se sucede ao outro. Quem pode nos garantir que
a sucessão dos fatos corporais segue a lógica da organização psíquica das emoções?
Certamente a lógica das emoções não segue a lógica ou seqüência dos fenômenos
neurobiológicos que ocorrem no corpo e são representados no cérebro. Sartre nos chama a
atenção para um contra-exemplo evidente: os casos patológicos de indivíduos
hospitalizados nos quais há uma oscilação entre ira e alegria numa questão de segundos.
Estas duas emoções não têm nada a ver uma com a outra apesar de sabermos que as

19
Sobre paradoxos semânticos veja-se Teixeira, J. de F. (2000), pp. 70-71.
42

modificações fisiológicas que correspondem à ira só diferem das de alegria por uma
pequena margem de intensidade.
A teorias como as de James falta, então, uma lógica das emoções. Seqüenciar as
emoções de modo lógico seria, por exemplo, mostrar como do medo vamos para a ira, pois
em certos casos o medo superado torna-se ira. Mas este tipo de seqüência só se torna
inteligível se concebermos que, de certo modo, a ira já estava contida nesse tipo de medo.
Ora, como podemos imaginar que um estado mental contém outro?
Mas esta não seria a única e nem tampouco a mais dura crítica que Sartre poderia
fazer às teorias neurobiológicas da emoção. A elas poderíamos acrescentar outras críticas
oriundas da filosofia da mente contemporânea. Os partidários deste tipo de teorias, como
James e, mais recentemente Damásio, reconhecem a necessidade de uma representação
neurológica da modificação corporal e que esta ingresse no espaço da consciência. Sem
consciência não há emoção – esta é uma asserção para a qual convergem neurobiólogos e
fenomenólogos. Contudo, nos casos que acabamos de citar – o de James e o de Damásio –
tudo se passa como se houvesse algo parecido com uma sensibilidade córtico-talâmica, sem
a qual a emoção não adquiriria consistência ontológica. Cannon e Sherrington falavam
dessa sensibilidade córtico-talâmica, como se o cérebro pudesse emocionar-se20 – o que
praticamente nos devolve aos paradoxos semânticos de que falávamos há pouco. James fala
de uma alteração de consciência precedida de uma alteração corporal (Estou triste porque
choro) sem, entretanto arriscar nenhuma hipótese sobre o problema mente-cérebro que
pudesse nos esclarecer o que seria essa consciência. Ela seria um dado imediato, um fluxo
que deveria ser assumido como o ponto de partida de qualquer psicologia, mas em sua obra
não encontramos considerações ontológicas específicas acerca da natureza desse fluxo.
Damásio parece herdar essa dificuldade ao falar de mapas cerebrais que ingressam
no espaço da consciência. Sua teoria da consciência está alicerçada em hipóteses
evolucionárias e fisicalistas/eliminativistas – ou seja, em hipóteses materialistas que
incluem a natureza da consciência. Como então explicar porque o ingresso de um mapa
cerebral no espaço da consciência causa o fenômeno específico do emocionar-se?
Certamente Damásio não quer postular uma sensibilidade córtico-talâmica como fizeram
Cannon e Sherrington. Do mecanismo da alegria não se pode passar para o que é sentir uma

20
Veja-se sobre esta hipótese Sartre, 1965, p. 64.
43

alegria – este é o problema que Sartre apontava no seu ensaio de 1965 e que reaparece na
filosofia da mente como o explanatory gap. Se James pode evitá-lo ao fazer uma ontologia
branda do mental, o mesmo não parece ocorrer com Damásio.
A comparação entre Sartre e Damásio leva à inevitável (e dita intransponível)
oposição entre discurso em primeira pessoa e discurso em terceira pessoa de que falam os
filósofos da mente. A teoria de Sartre é, inegavelmente, uma teoria que privilegia a
perspectiva de primeira pessoa. Esta perspectiva é o ponto de partida para atribuir às
emoções uma finalidade, ou seja, um papel de regulação cognitiva na relação entre o sujeito
e o mundo, primeiramente pelo seu caráter inerentemente intencional e, em segundo lugar,
por elas se constituírem como instrumentos privilegiados de distorção cognitivo-
representacional dos cenários sobre os quais o sujeito precisa agir. Por exemplo, os medos,
a ira, distorcem a representação do ambiente sobre o qual o sujeito precisa agir, ampliando
ou as vezes diminuindo a magnitude dos eventos que o cercam. As emoções não são
qualidades puras e inefáveis, pois elas têm um sentido, significam algo para minha vida
psíquica constituindo o mundo sob uma forma mágica na medida em que através delas o
ser-no-mundo altera seu entorno distorcendo sua cognição a partir de leis peculiares da
magia – uma distorção que, na maioria das vezes, longe de ser patológica, é garantia de
sobrevivência para o sujeito cognoscente que, quando se emociona, deixa de ver o mundo
como ele é para poder sobreviver a ele. É neste sentido que Sartre nos diz que “a emoção é
a queda brusca no mágico” e que emoções criam um Umwelt dentro do qual habitam com
mais conforto o corpo e a consciência.21
Às emoções Sartre atribui uma finalidade, que é a ação, mas observa, ao mesmo
tempo, que não é esta que pode explicar a natureza do emocional. Poderíamos agir sem
emoções ao executarmos ações como, por exemplo, de fuga ou outros tipos de ação. Ou
seja, se estivéssemos usando as palavras de Damásio para caracterizar o pensamento
sartreano, diríamos que estas ações poderiam ser executadas automaticamente. Interessante
é, porém, notar que para Damásio é o ultrapassar de um limiar que enlaça o acontecimento
fisiológico com a consciência que vai dar lugar ao aparecimento da emoção, enquanto que,
para Sartre, a emoção se constitui quando a consciência presencia a ação acompanhada de
21
“Assim, a origem da emoção é uma degradação espontânea da consciência frente ao mundo. O que esta não
pode suportar de um determinado modo, trata de apreende-lo de outro, adormecendo-se, aproximando-se do
sonho ou da histeria. E a modificação do corpo não é nada além da crença vivida pela consciência quando esta
é vista a partir de seu exterior”.(Sartre, 1965, p. 108, tradução do autor).
44

uma manifestação neurobiológica que ocorre no corpo. E, contra James, Sartre afirmará
ainda que as emoções não são qualidades puras e inefáveis, pois elas têm um sentido,
significam algo para minha vida psíquica constituindo o mundo sob uma forma mágica na
medida em que, através delas, o ser-no-mundo altera seu entorno distorcendo sua cognição
a partir de leis muito peculiares da magia.

III

Haverá uma maneira de superar o hiato entre o discurso em primeira pessoa e o


discurso neurobiológico, em terceira pessoa, para que possamos acomodar estas duas
exigências? Sartre sugere, no final de seu ensaio, que esse hiato sempre existirá, mesmo
que de forma mínima, por mais que aproximemos estas duas perspectivas. Damásio
pretende superar a dificuldade apoiando-se em Espinosa e na sua teoria do aspecto dual, ou
seja, a proposta de que uma única e mesma porção de matéria, qual seja, o cérebro22, pode
instanciar propriedades físicas e, além destas, propriedades mentais ou estados subjetivos.
Mas, seria a teoria do aspecto dual a solução para encontrarmos uma aproximação entre
estas duas perspectivas tão díspares?
A questão que enfrentamos poderia ser vista – se colocada nos termos da filosofia
da mente contemporânea – como a dificuldade de encontrar um meio caminho ou uma
conciliação entre visões tão diversas acerca da natureza do mental como aquelas que
encontramos, de um lado, em filósofos como Paul e Patrícia Churchland e de outro, em
Thomas Nagel. Damásio estaria ao lado dos primeiros, pois, conforme já notamos, sua
abordagem das emoções aproxima-se do materialismo eliminativo/fisicalismo. É preciso
notar, contudo, que a visão sartreana, embora escrita a partir de uma perspectiva de
primeira pessoa, não é dualista como a de Nagel e de outros que apontam para aspectos
inefáveis e irredutíveis de nossa consciência como os qualia. Ao que pese sua crítica ao
reducionismo como método de explicação, a visão fenomenológica não identifica
irredutibilidade com a necessidade de adoção de uma postura dualista.

22
“Espinosa estava mudando a perspectiva que tinha herdado de Descartes quando disse na Ética, Parte I, que
o pensamento e a extensão, embora distinguíveis, são produto da mesma substância”. Veja-se Damásio, 2003,
p. 222.
45

Uma reconciliação entre a neurobiologia das emoções defendida por Damásio e a


visão sartreana do universo emocional pode ser proposta pela adoção da
neurofenomenologia iniciada por F. Varela (Varela, 1996, 1997, 1999, Bitbol, 2002, Lutz,
2002, Rudrauf et alia 2003). O termo foi criado na tradição filosófica ocidental por
Spiegelberg (1994), Petitot (1999) e na tradição oriental por Gupta (1998), Wallace (1998)
e Williams (1998). A neurofenomenologia enfatiza a importância de partir de dados em
primeira pessoa, obtidos de sujeitos fenomenologicamente treinados, como uma estratégia
heurística para descrever e quantificar os processos relevantes à constituição da
consciência.23
A reconciliação que buscamos é bastante específica, ou seja, trata-se de reconciliar
as emoções tais como elas aparecem para a consciência (fenômeno) com o discurso
neurobiológico acerca de sua constituição. Na perspectiva neurofenomenológica não há
redução do fenômeno consciente (no caso, as emoções), mas sua inclusão como
explanandum na montagem de uma explicação onde os explanans devem ser fornecidos
pela neurobiologia. Esta é uma mudança de perspectiva sutil, mas ao mesmo tempo radical,
pois, a partir dela, a experiência subjetiva passa a poder figurar no discurso da ciência e não
apenas ser rejeitada por ter sua ontologia própria negada ou ser aceita apenas
provisoriamente enquanto sua eliminação/redução não ocorre. É esta mudança que nos
permite superar o paradoxo de uma teoria da mente que não incluiria uma teoria da
consciência, uma perspectiva que, aliás, foi muito cara aos cognitivistas dos anos setenta.24
A fenomenologia passa a ter um papel fundamental nesta perspectiva: ela serve para
organizar a descrição da experiência subjetiva bem como para a transmissão intersubjetiva
metódica de protocolos verbais entre sujeitos para os quais se busca estabelecer um
mapeamento cerebral através das técnicas de imaging. Em outras palavras, o método
fenomenológico vai poder nos dizer o que estamos mapeando, afastando-nos, assim, da
vagueza habitual dos protocolos verbais e da autodescrição dos estados de consciência
através da folk psychology. Mais do que isto, o método fenomenológico recusa o pré-
julgamento ontológico da experiência subjetiva/estados de consciência, mantendo-os entre

23
Veja-se Lutz, ª & Thompson, E. (2003), p. 32 e Jack, A & Roepstorff (2003), p. xiii.
24
Como observou magistralmente Flanagan, no seu livro Consciousness Reconsidered : “Mind without
consciousness! How is that possible?”. A referência é aos defensores do modelo computacional da mente ou
os defensores do paradigma simbólico para os quais a simulação da mente bastaria para replicar a totalidade
das atividades cognitivas humanas.
46

parêntesis ao mesmo tempo em que se busca seus correlatos neurais. A combinação destas
duas tarefas compõe a neuro-fenomenologia.
Como nos sugere Varela, isto representa uma profunda mudança na atitude
científica habitual, acostumada a rejeitar o discurso em primeira pessoa como mera
aparência a ser superada pela investigação criteriosa da ciência cognitiva e da
neurobiologia. Atenua-se a distinção entre o discurso em primeira pessoa e o discurso em
terceira pessoa, ambos passam a ser vistos como trocas intersubjetivas – afinal, quem
constitui o discurso em terceira pessoa a não ser um grupo de sujeitos que constrói o
discurso da ciência falando inicialmente em primeira pessoa? Até que ponto poderíamos
manter uma distinção nítida entre primeira e terceira pessoa ao considerá-las sob a
perspectiva da troca intersubjetiva?
A idéia que defendemos, qual seja, a neurofenomenologia de Varela, apóia-se numa
revalorização da introspecção como método de investigação psicológica. Novamente
encontramos aqui uma mudança radical na direção que esta investigação deve tomar: ao
lidar com a experiência consciente as medições objetivas devem ser validadas
estabelecendo-se sua correspondência com medições introspectivas e não vice-versa. Os
psicólogos devem aceitar o valor de investigações que têm como ponto de partida dados
introspectivos (por exemplo, relatos introspectivos) se estes forem corretamente
controlados em seus experimentos, para, posteriormente buscar seus correlatos neurais.
A convergência entre a investigação subjetiva e a objetiva proposta pela
neurofenomenologia tem aberto novos caminhos para a ciência cognitiva (especialmente
para a neurociência cognitiva) na medida em que as perspectivas internas e externas acerca
do sujeito começarão a se aproximar. De uma perspectiva externa, sei o que está
acontecendo em sua mente/cérebro/consciência – sua base neurobiológica. Mas não sei
nada acerca da manifestação desses fenômenos enquanto suas experiências. Neste sentido,
informação em primeira e em terceira pessoa podem ser vistas como sendo
complementares e não opostas. A natureza da mente é revelada por aquilo que aparece a
partir de ambas as perspectivas; a mente não é física ou consciente, ela é ambas as coisas ao
mesmo tempo, ou como diz Velmans, psicofísica.25 Encontramos aqui o cruzamento entre a

25
Velmans, M. (2002), p.13.
47

teoria espinosista do aspecto dual defendida por Damásio e a fenomenologia das emoções
de Sartre.
IV

Uma das conseqüências mais interessantes da adoção da neurofenomenologia é que


esta abre a possibilidade de testar a veracidade de teorias cognitivas sem ter de se restringir
a critérios exclusivamente comportamentais como vem ocorrendo até hoje. Sabemos que,
historicamente, a ciência cognitiva abriu o que era até então a caixa preta dentro da qual
ocorria o funcionamento mental. Mas, como testar a veracidade de suas teorias? Ao tentar
abrir esta caixa preta não estaria a ciência cognitiva correndo o risco de propor teorias cuja
veracidade não poderia ser sequer reconhecida pelos sujeitos? Cremos que é nisto que
ainda reside grande parte da dificuldade da aceitação das investigações cognitivas como
genuínas teorias psicológicas e não “teorias-de-não-se-sabe o que” como é o caso do
modelo computacional da mente ou do conexionismo que são vistos, do ponto de vista
psicológico, com grande estranheza. Mas, para afastar esta estranheza da qual se revestem
as teorias cognitivas é preciso re-introduzir a experiência subjetiva no discurso científico.
Não cabe, por exemplo, a uma teoria cognitiva da percepção desfazer ilusões
perceptuais como é o caso dos contornos ilusórios, mas de mostrar seus correlatos
neurobiológicos. Em outras palavras, é preciso dirigir a investigação para aquilo que está
ocorrendo a partir da perspectiva do sujeito e não de buscar desqualificar esta perspectiva
como imprecisa ou incorreta. Neste caso, caberá à investigação neurobiológica e cognitiva
mostrar a imprecisão representacional do sujeito que percebe, mas isto não significa, ipso
facto que a experiência ilusória não tenha sua cidadania ontológica.
O mesmo tipo de estranheza parece surgir quando lidamos com problemas
filosóficos tradicionais a partir da perspectiva da ciência cognitiva – uma tarefa que
julgamos fundamental. Já tive oportunidade de mostrar, em outro lugar26 que grande parte
da dificuldade que cerca o problema mente-cérebro consiste em estabelecer o que seria dar
a este uma solução aceitável ou desejável. É possível, por exemplo, que um pequeno
conjunto de cientistas chegue a formular uma teoria que identifique o pensamento com
algumas reações eletroquímicas que ocorrem no nosso cérebro. Essas seriam teorias

26
Veja-se Teixeira, J. de F. (2000) p. 179.
48

extraordinariamente complexas e acessíveis apenas para um punhado de especialistas. Não


seriam, entretanto, teorias que seriam reconhecidas ou aceitas como verdadeiras a partir da
perspectiva da nossa consciência. Teorias que não puderem ser aceitas a partir da
perspectiva de nossa consciência correm o risco de abrir um vácuo entre verdade e
inteligibilidade – que é o que ocorreu, aliás, com a mecânica quântica, mas que não
podemos aceitar que possa vir a ocorrer com a psicologia ou com a ciência cognitiva que
estaria, neste caso, tornando-se definitiva e completamente um ramo da engenharia 27 mas
que muito pouco teria a dizer acerca de nossa psyché.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

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PANKSEPP, J. (1998) Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal


Emotions. Oxford: Oxford University Press.

27
Sobre a idéia da psicologia como ramo da engenharia veja-se Dennett, D. (1998), capítulo 18- “When
Philosophers Encounter Artificial Intelligence”.
49

PETITOT et alia (1999) Naturalizing Phenomenology. Stanford, CA: Stanford University


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RUDRAUF et alia (2003) “From autopoiesis to neurophenomenology” . Biological


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VARELA, F.J. (1997) “The naturalization of phenomenology as the transcendence of


nature” Alter 5, pp. 355-381.

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WALLACE, A. (1998) The Bridge of Quiescence. La Salle, Illinois: Open Court.

WILLIAMS, P. (1998) The Reflexive Nature of Awareness. London: Curzon Press.


50

2a. PARTE

COMPORTAMENTO
51

BEHAVIORISMO RADICAL E CIÊNCIA COGNITIVA

É muito freqüente encontrarmos nos manuais de ciência cognitiva a afirmação de


que esta se desenvolveu por oposição ao behaviorismo. Em alguns deles fala-se de uma
“revolução cognitiva” que teria ocorrido como uma forte reação ao behaviorismo
apresentando-o, quase sempre de forma caricata, como uma “psicologia sem mente”
herdada do positivismo lógico.28
O grande herói (ou seria o vilão?) que figura na história das origens da ciência
cognitiva é Noam Chomsky. Sua longa resenha do Verbal Behavior de Skinner marca o
início desta suposta batalha entre behaviorismo e ciência cognitiva. O texto ácido de
Chomsky significaria o fim da era behaviorista na psicologia americana, um paradigma que
teria chegado à exaustão por não contemplar, de forma adequada, a participação do mental
na montagem da explicação psicológica. Contra este antigo paradigma insurgia-se o modelo
computacional da mente, proposto pela ciência cognitiva, então nascente.
A grande complexidade e dificuldade de compreensão das teorias contidas no
Verbal Behavior retardou a reação da comunidade behaviorista às críticas de Chomsky, o
que o ajudou a tornar-se uma espécie de herói oportuno para a “revolução cognitiva”. Foi
somente no final dos anos 60 que a crítica chomskyana começou a ser reexaminada por
autores como, por exemplo, MacCorquodale (1969), que chamaram a atenção para a
necessidade de rever as intenções e a real envergadura da obra de Skinner.
O aspecto mais importante destas revisões foi evidenciar que Chomsky atacou a
obra de Skinner julgando estar diante de uma teoria da linguagem e não de uma teoria do
comportamento lingüístico. Há uma grande diferença entre formular uma teoria acerca do
uso da linguagem enquanto fenômeno ambientado numa comunidade e uma teoria abstrata
das estruturas lingüísticas - tarefas que, conquanto relacionadas, são inteiramente distintas.
A conseqüência inevitável (e correta) de assumir que Skinner estaria fazendo uma teoria da
linguagem foi demonstrar que esta não poderia ser construída a partir do estudo de

28
A referência é ao livro de Gardner (1995) e ao de Bechtel (1998) que se tornaram manuais clássicos de
ciência cognitiva.
52

variáveis ambientais. Neste sentido, Chomsky estava inteiramente certo, não fosse sua
caracterização equivocada do projeto skinneriano e da própria natureza do behaviorismo
radical que, por vezes, era sutilmente confundido com o behaviorismo S-R.
A ausência de uma resposta aos ataques de Chomsky fez com que estes deixassem
marcas profundas. A partir de suas críticas (e por causa delas), a recém formada
comunidade cognitiva passou a caracterizar o behaviorismo como um movimento
monolítico, ignorando a grande diversidade de escolas psicológicas que é abrigada por este
termo. Da mesma maneira, os behavioristas passaram a rejeitar a ciência cognitiva como se
esta fosse um bloco único. Um diálogo de surdos se instaurou daí em diante. De um lado,
os cientistas cognitivos não distinguiam entre behaviorismo S-R e behaviorismo radical, de
outro, os behavioristas insistiam numa caracterização da ciência cognitiva como um
mentalismo indesejável que a inteligência artificial estaria revivendo.
O artigo de Skinner “Why I am not a Cognitive Psychologist” (1977), contendo
forte ataque ao mentalismo cognitivista contribuiu ainda mais para aumentar os
preconceitos de ambos os lados. Skinner entendia que a ciência cognitiva nada mais seria
do que o cognitivismo clássico ou o paradigma simbólico defendido pela inteligência
artificial. Na verdade, este era o horizonte dos anos 70 e, infelizmente, Skinner não viveu o
suficiente para acompanhar os desenvolvimentos posteriores da ciência cognitiva. Se o
tivesse, certamente teria também renegado suas críticas.
Com efeito, a ciência cognitiva anticartesiana que surge a partir dos anos 90 está
muito distante daquela que Skinner criticava, abrindo uma nova perspectiva para superar
este diálogo de surdos que vem ocorrendo nas últimas décadas. A metáfora da mente como
um software abstrato independente da estrutura física na qual ele seria instanciado começa
a ser definitivamente abandonada – e, com ela, o dualismo cartesiano que foi o pressuposto
da ciência cognitiva dos anos 70. O fim da metáfora computacional da mente (ou do
paradigma simbólico da inteligência artificial) marca o retorno da busca pelas bases
cerebrais dos fenômenos mentais e o aparecimento de movimentos inovadores na ciência
cognitiva como é o caso da nova robótica e da neurociência cognitiva. Neles, o
comportamento recobra sua importância no estudo da cognição e passa a ser visto como um
de seus componentes principais.
53

Paralelamente aos novos movimentos da ciência cognitiva assistimos, na década de


90, a um resgate progressivo da doutrina do behaviorismo radical por filósofos e
historiadores da psicologia.29 Os contornos anticartesianos da teoria skinneriana tornam-se
bastante nítidos, situando o behaviorismo no horizonte das filosofias da mente
contemporâneas (Abib, J.A.D., & Lopes, C.E., 2003).
A visão cartesiana separava mente e corpo e, mais recentemente, passou a separar
mente e cérebro. Ao fazê-lo, separou também mente e comportamento, tornando este
último uma espécie de apêndice contingente da atividade mental. Esta visão ainda está
implícita em várias escolas psicológicas e pode até contaminar a neurociência se esta não
levar em conta o papel do comportamento e julgar que funções cerebrais podem ser
estudadas independentemente deste último. Segregar mente e comportamento (corpo) tem
as mesmas conseqüências que segregar cérebro e comportamento.30
O behaviorismo radical é uma teoria da mente onde esta é entendida como
atividade, como algo que se movimenta (comporta) da mesma maneira que o corpo se
movimenta. A mente é vista como uma “anima” no sentido original e etimológico do termo,
ou seja, no sentido de ser algo animado (dotado de uma anima ou mente), cuja
característica principal é movimentar-se. Processos comumente chamados de mentais são
formas de comportamento privado e, assim sendo, não há razão para não incluí-los numa
ciência do comportamento.31 Neste sentido, a caricatura da “psicologia sem mente” não se
aplica ao behaviorismo radical e sim ao behaviorismo S-R. Este último suprime o mental,
mas só pode fazê-lo assumindo implicitamente a separação entre mente e comportamento,
ou seja, incorrendo num cartesianismo disfarçado.
Ora, se o behaviorismo radical é anticartesiano e se os movimentos recentes da
ciência cognitiva também adotam uma postura anticartesiana; encontramos aqui um solo
filosófico comum que sugere a possibilidade de uma colaboração entre o trabalho dos
cientistas cognitivos e o dos behavioristas radicais. Em outras palavras, a partir deste solo
comum o diálogo entre estas duas disciplinas pode ser re-estabelecido. Isto não quer dizer

29
Veja-se a este respeito o livro seminal de Chiesa (1994).
30
Esta parece ser uma tentação freqüente entre alguns neurocientistas contemporâneos que isolam o cérebro
do resto do corpo e do ambiente para estudá-lo, mas que, por vezes, esquecem que esta é apenas uma manobra
metodológica. Veja-se, a este respeito, Sheets-Johnstone (2.000).
31
O epifenomenalismo de Skinner constitui tão-somente uma recusa em atribuir a estados mentais qualquer
tipo de papel causal na produção de comportamento e, com isto, escapar dos dilemas cartesianos da causação
mental. Não se trata, portanto, de tentar suprimir o mental ou de esvaziar sua ontologia.
54

que os behavioristas radicais devam se tornar cientistas cognitivos ou vice-versa. Isto


significa apenas – e preliminarmente – que cientistas cognitivos podem ser simpatizantes
do behaviorismo radical e vice-versa. Um outro passo necessário para consolidar esta
colaboração seria mostrar a possibilidade de utilização de ferramentas conceituais comuns
entre a pesquisa em ciência cognitiva e a análise do comportamento, o que nos levaria em
direção a uma efetiva interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade. Não poderemos fazer
isto neste trabalho, deixando esta tarefa para outra oportunidade. Limitar-nos-emos a
explorar em maior detalhe algumas características da ciência cognitiva anticartesiana,
mostrando, em que sentido dois de seus principais movimentos, a nova robótica e a
neurociência cognitiva, aproximam-se do projeto metodológico do behaviorismo radical.

1 – Nova robótica e behaviorismo radical

A ciência cognitiva dos anos 60 e 70 era a inteligência artificial simbólica (ou


paradigma simbólico). Seus maiores proponentes e defensores (A. Newell, H. Symon,
M.Minsky, J. McCarthy e outros) propunham que a mente é o software do cérebro – um
software que poderia ser rodado em outro tipo de substrato físico, como, por exemplo, um
computador digital. Fenômenos mentais poderiam ser estudados na qualidade de um
conjunto de representações simbólicas regidas por regras sintáticas. A cognição nada mais
seria do que o resultado da ordenação mecânica de uma série de representações ou símbolos
e, para obter esta ordenação não seria preciso, necessariamente, um cérebro. Em outras
palavras, uma inteligência artificial seria possível na medida em que a realização de tarefas
inteligentes não dependeria de dispositivos com a mesma arquitetura e composição
biológica ou físico-química do cérebro.
Mas não era só este tipo de independência que a inteligência artificial simbólica
propunha. Sua ênfase na idéia de que cognição seria representação e na idéia de que esta
ordenação mecânica de símbolos assumia a forma de uma computação abstrata,
independente de seu portador e do meio onde este estivesse situado, tornava o modelo
computacional da mente implicitamente cartesiano. Mente e comportamento, cognição e
meio ambiente, eram tratados como peças separadas que poderiam ser justapostas no
futuro.
55

Ora, diante deste panorama reinante nas ciências cognitivas na década de 70, as
críticas de Skinner expressas no seu artigo de 1977, acusando o paradigma simbólico de um
retorno indesejável ao mentalismo não poderiam causar muita surpresa.32 Nem mesmo o
conexionismo dos anos 80, que se insurgiu contra a inteligência artificial simbólica – do
qual Skinner não se ocupou – parecia ter escapado a estes pressupostos cartesianos. Embora
enfatizando a necessidade de se retornar a modelos biológicos do cérebro na abordagem da
cognição, as redes neurais artificiais isolavam, implicitamente, fenômenos cognitivos e
comportamento, cognição e meio ambiente. Se a inteligência artificial simbólica segregava
mente e corpo, o conexionismo segregava cérebro e comportamento, incorrendo na figura
metafísica do “cérebro na proveta”. Tampouco a idéia de cognição como representação é
totalmente subvertida pelo conexionismo. A noção de representação como signo é
substituída por um modelo de inspiração matemática onde se constroem representações de
representações na forma de equações diferenciais que expressam relações entre neurônios
artificiais. Apesar desta mudança em relação ao cognitivismo clássico, a idéia tradicional de
representação é re-instaurada na medida em que se mantém inquestionável a dicotomia
cognição/mundo.
A primeira reação efetiva a esta proposta cartesiana da inteligência artificial
simbólica foi a nova robótica que surge no início dos anos 90 com os trabalhos pioneiros do
pesquisador americano R. Brooks. Seu projeto tem como ponto de partida a construção de
robôs móveis ou “agentes autônomos” nos quais o movimento (autolocomoção)
desempenha um papel fundamental na geração de comportamentos complexos e
emergentes. A expressão “nova robótica” surge a partir de uma diferença em relação à
robótica tradicional. Esta última enfatiza o estoque de memória onde o número de situações
cotidianas que a máquina pode encontrar se expande continuamente. Já a nova robótica
aposta no aprendizado a partir da interação das máquinas com seu meio ambiente.

32
Os partidários da inteligência artificial simbólica negam solenemente incorrer num mentalismo de tipo
cartesiano. Fodor (1981) sustenta que as representações são definidas pelo seu papel sintático numa
linguagem de programação e que é a alteração desta sintaxe que produz o “comportamento” da máquina.
Note-se, porém, que a determinação sintática é insuficiente para individuar a semântica das representações:
num programa de computador a representação da guerra contra o Afeganistão pode ter a mesma estrutura
sintática de um jogo de xadrez. É possível inferir estrutura sintática a partir de uma representação, mas não
vice-versa. Encontramos aqui uma versão do problema da assimetria entre o físico e o mental, não entre
cérebro e mente, mas entre software e hardware de uma máquina. O problema cartesiano entra pela porta dos
fundos na forma do problema da tradução, uma questão típica da filosofia da mente contemporânea que assola
todas as teorias materialistas e identitaristas do mental.
56

A noção tradicional de representação interna entendida como um mapa completo do


ambiente no qual o robô se move é substituída pela interação direta do agente autônomo
com o mundo. O meio ambiente é tomado como o próprio modelo a partir do qual o
comportamento inteligente do robô móvel pode ser gerado – um comportamento inteligente
que é determinado pela própria dinâmica interativa destes agentes autônomos com os
objetos físicos que os rodeiam. Estes robôs estão situados ou imersos diretamente no meio
ambiente através de sua corporeidade que lhes permite “experienciar” o mundo
diretamente. Suas ações têm um feedback imediato sobre seus registros, que determinam,
por sua vez, novas ações, sem que estas tenham sido pré-programadas.
Esta nova proposta metodológica de geração/replicação do comportamento
inteligente da nova robótica tem chamado cada vez mais a atenção de filósofos e
historiadores da ciência cognitiva pelo seu caráter profundamente inovador em relação à
inteligência artificial simbólica ( C. Clark, 1996; F. Varela et alia, 1995). Sua ruptura com a
visão cartesiana da cognição tem levado à busca de novas alianças filosóficas para
fundamentar a ciência cognitiva, como, por exemplo, a fenomenologia de M. Merleau-
Ponty na qual a noção de corporeidade desempenha um papel central. (E. Dietrich, 1997).
Além da noção de corporeidade (ou de cognição corporificada) a noção de
autolocomoção e uma nova concepção da natureza da representação ocupam lugar essencial
na proposta da nova robótica. São elas que nos permitem tentar uma aproximação entre os
pressupostos filosóficos/metodológicos da nova robótica e do behaviorismo radical.
O que Brooks chama de autolocomoção Skinner chama de comportamento. Para
Skinner, comportamento é movimento que ocorre no tempo e no espaço. (Skinner,
1938/1966, p.6)33 Enquanto processo físico, o comportamento é um fenômeno natural, ou
seja, sujeito a leis naturais, um processo ordenado cuja ocorrência obedece a certa
regularidade estando funcionalmente relacionado a variáveis ambientais passadas e atuais.
O estudo do comportamento é sempre o estudo de interações entre organismos que se
comportam e ambientes que, modificados pelo comportamento de tais organismos,
retroagem sobre estes, controlando-os. (Skinner, 1957, p.1).

33
Esta é uma caracterização genérica da noção de comportamento que, usualmente, envolve atividade
muscular. Uma definição mais precisa de comportamento deveria incluir também os casos do chamado
comportamento encoberto, mas não o faremos aqui, por fugir aos propósitos de nosso trabalho.
57

Brooks sustenta um ponto de vista similar. Seu projeto prevê que os agentes
autônomos sejam dotados de um mínimo de pré-programação e que, a partir de sua
interação com o meio ambiente, novos padrões de comportamento possam emergir. Com
efeito, ele afirma que “intelligence can only be determined by the total behavior of the
system and how that behavior appears in relation to the environment” (R. Brooks, 1991, p.
16). Isto significa um deslocamento do objeto da ciência cognitiva em direção ao estudo
das interações do comportamento com o meio ambiente, que passa a ter papel
predominante. Em vez de se estudar a natureza e possibilidade de replicação da inteligência
através de um programa computacional busca-se investigar a formação/emergência de
comportamentos inteligentes de agentes autônomos inseridos num meio ambiente real.
Um exemplo do uso desta estratégia metodológica para explicar/replicar o
comportamento inteligente foi a construção de insetos robôs pela equipe de Brooks no MIT.
Brooks observou o comportamento dos insetos na natureza, que, em certas ocasiões,
apresentam comportamentos complexos e uma notável capacidade de resolução de
problemas – tudo se passaria como se os insetos tivessem capacidade de raciocínio lógico
que contribuísse para algo parecido com uma tomada de decisões. Brooks partiu da idéia de
que essa complexidade de comportamento não poderia ser explicada unicamente pela
atividade cerebral e cognitiva desses insetos, pois estes são organismos simples. A
interação do comportamento com o meio ambiente seria a chave para explicar como esses
seres simples poderiam exibir comportamentos complexos. Para substanciar este ponto de
vista Brooks construiu algumas dúzias de insetos robôs cujo comportamento era governado
apenas por um tipo de regra simples: desviar de um obstáculo quando este era encontrado.
Porém, quando os insetos robôs começaram a interagir com o meio ambiente, passaram,
progressivamente, a apresentar comportamentos cada vez mais complexos e sofisticados.
No que diz respeito à noção de representação também encontramos pontos comuns
entre o projeto teórico/metodológico de Brooks e o behaviorismo radical. Ambos rejeitam a
versão dualista do mentalismo herdada do cartesianismo. Não se trata de ignorar a
existência de eventos privados (neles incluídas as representações) nem tampouco de tentar
esvaziar sua ontologia, mas de afirmar que sua natureza é física.
Na visão cartesiana a representação tinha de ter propriedades especiais que a
distinguisse dos objetos representados, ela não poderia ser um objeto físico entre outros, ou
58

seja, ela tinha de ser algo a mais do que uma relação física ou uma relação entre coisas no
mundo. Idéias, intenções, sonhos ou qualquer estado mental representacional não poderia
ser um evento no mundo: sua característica representacional nunca poderia ser concebida
como uma relação entre objetos situados no espaço. Paradoxalmente, as representações e o
sujeito cognoscente que as portam tinham de ser excluídos do mundo para que estas
mantivessem este caráter distintivo. Sustentar a imaterialidade da mente era a melhor
estratégia para garantir esta propriedade diáfana das representações, ao mesmo tempo em
que se reforçava o pressuposto básico da interioridade do mental e sua separação em
relação ao mundo.
Em sua crítica à visão cartesiana da cognição Brooks sustenta que representações
são fenômenos psicológicos e cognitivos que ocorrem no mundo, que estas não podem ser
tratadas na forma de computações abstratas independentes de seu substrato físico como
queria a inteligência artificial simbólica. Representações são geradas na interação de
agentes autônomos com seu meio ambiente e estas devem ser objeto de estudo e não ponto
de partida ou fundamento da investigação cognitiva. Em outras palavras, representações
não são uma abstração produzida por um “olho desencarnado” e excluído do mundo como
pressupõe a ciência cognitiva cartesiana. Elas fazem parte do meio ambiente e dele
participam juntamente com comportamentos. Neste sentido, se substituirmos a palavra
representação por evento privado podemos aproximar ainda mais as perspectivas de Brooks
e de Skinner: não se trata de negar a ontologia dos estados internos pura e simplesmente,
mas de rever seu estatuto e papel na formação de teorias psicológicas e cognitivas.

2 – A neurociência cognitiva

A neurociência cognitiva é, também, um movimento inovador que surge e se


consolida nos anos 90. Esta nova disciplina propõe uma reconsideração das bases cerebrais
da consciência e da cognição, resultando de uma colaboração intensa entre neurociência e
ciência cognitiva. Rugg (1997) salienta que a neurociência cognitiva é uma estratégia
metodológica que se formou a partir do estudo dos efeitos de lesões cerebrais e da
observação sistemática das correlações entre comportamentos explícitos de animais e sua
atividade neuronal. Esta tarefa seria executada pela introdução de eletrodos nos cérebros
59

desses animais sem que estes estejam anestesiados. Além disto, a neurociência cognitiva
passou a servir-se das novas técnicas de neuroimagem (PET – Positron Emission
Tomography e o fMRI ou Functional Magnetic Resonance Imaging) que permitiram, no
caso dos seres humanos, o estudo da atividade cerebral in vivo.
Embora os neurocientistas cognitivos não tenham desfechado nenhum ataque
explícito à ciência cognitiva cartesiana sua ênfase no papel e importância do wetware
(termo utilizado para designar o cérebro) já constitui, por si só, uma crítica ao paradigma
simbólico. A ênfase no caráter específico das funções cerebrais e no tipo de material de que
é composto o cérebro sugere que este não poderia ser instanciado em algum outro tipo de
dispositivo como, por exemplo, uma máquina com peças de silício. O cérebro se
assemelharia muito mais a uma máquina eletroquímica do que a uma placa de computador.
Neste sentido, o computador estaria deixando de ser a metáfora explicativa para retornar a
ser uma ferramenta de trabalho.
A neurociência cognitiva abre uma perspectiva ampla de investigação que reintegra
o papel do comportamento no estudo da cognição e da natureza das experiências
conscientes. Esta perspectiva baseia-se, sobretudo, na integração de vários tipos de
estratégias que visam correlacionar os níveis psicológicos, comportamentais e neurológicos
da investigação da consciência. Por exemplo, relatos de experiências conscientes permitem
associá-las com suas atividades neuronais correspondentes através do emprego de técnicas
de neuroimagem. Neste caso, o comportamento verbal proporciona a ponte desejável entre
a experiência consciente e suas bases cerebrais, abrindo o caminho para a investigação
empírica da natureza da consciência.
Um outro exemplo que ilustra a reintegração do papel do comportamento no estudo
da correlação entre experiência consciente e atividade mental foi fornecido por Flanagan
(1998) que investigou casos de rivalidade perceptual nos macacos rhesus.34 Um caso
específico de rivalidade perceptual é a chamada rivalidade binocular. Apresenta-se
simultaneamente aos olhos esquerdo e direito dois estímulos visuais incompatíveis. Por
exemplo, apresenta-se ao olho esquerdo uma linha subindo e ao olho direito uma linha
descendo. Experimentos com percepções incompatíveis mostraram que estas não podem

34
Seguimos aqui passo a passo a caracterização deste experimento tal como é apresentada por Flanagan
(1998). Apresentamos texto similar em Teixeira (2.000).
60

ocorrer simultaneamente para os seres humanos. Nesses casos, o que ocorre é uma
alternância entre a percepção da linha se movendo para baixo (olho esquerdo) e da linha se
movendo para cima (olho direito).
Suponhamos agora que queiramos saber se esse fenômeno, a rivalidade binocular,
ocorre também com os macacos rhesus. Queremos saber, através de algum experimento, se
esses macacos têm uma experiência subjetiva semelhante à nossa no caso da rivalidade
binocular. O primeiro passo será treinar o macaco para pressionar uma barra uma vez
quando percebe a linha se movendo para baixo e duas vezes quando a percebe se movendo
para cima. Pressionar a barra uma vez ou duas vezes funciona como uma espécie de relato
que o macaco faz acerca de sua experiência subjetiva. O passo seguinte será correlacionar
esse “relato” com eventos no cérebro do macaco. Verificou-se, por exemplo, que há grupos
de neurônios que são ativados quando o olho esquerdo recebe estímulos e outros grupos
que respondem a estímulos chegando ao olho direito. Há ainda um terceiro grupo que é
ativado quando ocorre a mudança de percepção, ou seja, quando a percepção predominante
muda do estímulo que chega ao olho esquerdo para aquele que chega ao olho direito.
Esse experimento mostra como a experiência subjetiva pode ser estudada
empiricamente através da correlação entre vários níveis de explicação proporcionados por
diferentes estratégias teóricas integradas pela neurociência cognitiva. Nele se correlacionam
experiência subjetiva (experiência visual), comportamento (o macaco foi treinado para
fornecer “relatos” de suas experiências através de seu comportamento de pressionar a barra)
e a observação de sua atividade cerebral relacionada com a mudança de suas experiências
perceptuais.
Neste caso, novamente o comportamento assume papel de importância no estudo da
experiência subjetiva na medida em que ele nos proporciona uma ponte entre esta e a
atividade cerebral a ela correspondente. Conquanto o behaviorista radical possa excluir do
escopo de sua investigação o estudo da atividade neuronal como opção metodológica
(Skinner afirma que não importa o que ocorre under the skin), é preciso notar que este tipo
de estudo não se afigura como necessariamente incompatível com a perspectiva
skinneriana. Em outras palavras, a análise do comportamento pode ser complementada com
o estudo das suas bases neuronais subjacentes. Estas nos proporcionarão, a longo prazo,
uma perspectiva fisicalista acerca dos estados internos ou eventos privados (representações)
61

que poderão assumir, na análise do comportamento, o papel de variáveis ambientais


encobertas. Esta expansão da noção de ambiente para além do imediatamente observável
permite um enriquecimento mútuo da análise do comportamento e da neurociência
cognitiva – uma complementação que tem, como pano de fundo comum, a recusa do ponto
de vista cartesiano que separa cognição e ambiente, como se eventos privados não fizessem
parte deste.

3 – Conclusão

Se o behaviorismo não é um movimento monolítico e, se sob esta palavra abrigam-


se escolas psicológicas com metodologias e projetos de pesquisa específicos, o mesmo
ocorre com a ciência cognitiva. Neste sentido, insistir numa oposição entre behaviorismo
radical e ciência cognitiva é continuar a acreditar num clichê que se instaurou a partir da
crítica de Chomsky ao Verbal Behavior. Desde este episódio ergueram-se barricadas
aparentemente intransponíveis entre estas duas disciplinas como se seus projetos fossem
incompatíveis. A troca de farpas prosseguiu, aparecendo não apenas nos manuais recentes
de ciência cognitiva, como também em textos filosóficos pioneiros (Dennett, 1978). Não há
dúvida de que se o behaviorismo radical fosse o mesmo que o behaviorismo S-R Chomsky
e os autores desses manuais estariam certos.
Da mesma maneira, se a ciência cognitiva fosse o mesmo que o paradigma
simbólico as considerações de Skinner em seu artigo de 1977 ainda seriam atuais e
abrangentes. Contudo, desde o final da década de 80 a ciência cognitiva vem sofrendo
mudanças paradigmáticas significativas.
Tampouco podemos duvidar que behaviorismo radical e ciência cognitiva
continuarão tendo seus objetos específicos e modelos explicativos próprios. Não se cogita,
aqui, de assimilar o behaviorismo radical à ciência cognitiva ou vice-versa. O que tentamos
remover é o preconceito injustificado ou a ideologia que impede o diálogo entre estas duas
disciplinas – preconceito que, se ainda se sustenta nos dias de hoje, só pode resultar de
algum tipo de conversão religiosa.
62

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64

NOTAS PARA UMA TEORIA DO PENSAMENTO NO BEHAVIORISMO


RADICAL: VAGANDO ENTRE SKINNER, DENNETT E CALVIN

A obra de Skinner insere-se na tradição pós-moderna da filosofia da mente por


conter uma forte crítica ao mentalismo dualista. O grande adversário filosófico do
behaviorismo radical é o mentalismo cartesiano, quase sempre identificado, nos textos
skinnerianos como a única versão possível de mentalismo. O alvo do ataque é a doutrina do
fantasma na máquina, ou seja, a concepção mentalista e cognitivista que nos forçaria a
atribuir ao mental um poder causal inadmissível do ponto de vista de um fisicalismo sadio.
Desta perspectiva, a existência de uma causação mental seria inaceitável para o
behaviorista radical sendo este um pseudoproblema ou um sub-produto da separação entre
mente e corpo.
Contra a visão mentalista Skinner opõe o caráter epifenomênico dos estados
mentais. Pensamento é epifenômeno, ou seja, uma ocorrência cerebral que nos produz a
ilusão de estar causando o comportamento, quando, na verdade tudo ocorre na ordem
inversa, ou seja, estados mentais acompanham e são causados pelo comportamento na
medida em que este é produzido por contingências ambientais. A linguagem e o discurso
em primeira pessoa (Chiesa, 1994) contribuiriam decisivamente para reforçar a ilusão de
que o pensamento seria o motor do comportamento.
A idéia do pensamento como sendo algo causalmente inerte na produção do
comportamento levou os críticos de Skinner a caracterizar o behaviorismo radical, de forma
jocosa, como uma psicologia sem mente. A partir desta caricatura erguer-se-iam os arautos
do cognitivismo, que estaria voltando a colocar a mente no centro das preocupações da
psicologia, ou seja, de volta para sua rota verdadeira. Mas, será o behaviorismo radical uma
psicologia sem mente? Ou haverá, na obra de Skinner, uma teoria da mente e da
consciência ainda aguardando para ser revelada quando nos livrarmos dos preconceitos e
das caricaturas que os manuais de história da psicologia parecem nos impor?
Não há dúvida de que o foco deste debate é o problema filosófico da causação
mental; considerado uma das maiores questões a serem discutidas pela filosofia da mente
contemporânea. Atacar o dogma de que estados mentais poderiam ter um poder causal seria
65

a melhor estratégia para uma crítica ao mentalismo dualista, pois equivaleria a mostrar uma
de suas maiores incoerências, qual seja, a de não poder explicar como o mental imaterial
seria capaz de produzir comportamentos na qualidade de movimentos musculares. É esta a
estratégia implicitamente adotada por Skinner ao ressaltar o caráter epifenomênico do
mental. É neste sentido que ele enfatiza os erros e até mesmo o caráter obsoleto da
psicologia cognitiva que estaria ressuscitando o fantasma da máquina na qualidade de teoria
psicológica.35 Mas estaríamos então apenas diante de um epifenomenalismo operacional,
sustentado apenas para refutar o mentalismo dualista? Seria em nome desse
epifenomenalismo operacional que o behaviorismo radical se transformaria numa
psicologia sem mente?
A idéia de um epifenomenalismo operacional parece chocar-se com a sentença que
encontramos na obra de maturidade de Skinner, onde ele afirma que o pensamento é
comportamento. Certamente este ponto de vista reforça suas idéias anticartesianas e anti-
mentalistas, na medida em que a crítica ao dualismo passa pela recusa da separação entre
pensamento e ação, um sucedâneo da separação mente-corpo. Neste caso, o pensamento
como comportamento seria um evento físico encoberto, ocorrendo no interior da caixa
craniana. Mas o que teria de característico esse evento físico encoberto que outros eventos
desse tipo que ocorrem no interior do corpo não têm? Em outras palavras, por que não
chamar de comportamentos, por exemplo, as atividades que são realizadas pelo fígado para
produzir a bílis? Não participariam elas também das relações sujeito-ambiente?36 Além de
encontrar uma característica específica para o pensamento como comportamento é preciso
buscar uma conciliação, na obra de Skinner, entre a idéia de que o mental se define como
epifenômeno com a afirmação de que o pensamento é comportamento. Se pensar é
comportar-se, estamos diante de um evento que ocorre no mundo (mesmo sendo encoberto)
e este evento não pode ser causalmente inerte.

35
Veja-se a este respeito o texto clássico de Skinner “Why I am not a cognitive psychologist” que,
infelizmente, identifica ciência cognitiva com cognitivismo.
36
Este seria o risco de sustentar uma visão puramente nominalista da noção de pensamento na obra de
Skinner. Ou seja, uma visão segundo a qual não haveria uma categoria específica de fenômenos a serem
reunidos sob um conceito de pensamento – seja este comportamento ou não. Veja-se a este respeito Andery &
Sério, 2003.
66

Se o pensamento, em Skinner, é comportamento37, ele é, mais especificamente,


comportamento operante. Comportamento operante será entendido aqui de acordo com a
definição canônica skinneriana, qual seja, a classe de comportamentos selecionados por
conseqüências e que ocorrerão em presença de certas variáveis ambientais, sem que novos
processos de seleção sejam necessariamente requeridos. Os comportamentos que precedem
a seleção do operante formam a classe de ensaios adaptativos de um organismo ao meio
ambiente e são chamados de respostas operantes.
Mas que tipo de operante é o pensamento, ou seja, o que o distingue de outros
operantes como aqueles que observamos, por exemplo, nos movimentos físicos dos
organismos que ocorrem nas suas relações com o meio ambiente? Para começar, como já
afirmamos acima, o pensamento é um comportamento encoberto. Mas o que define o
pensamento como comportamento? Podemos começar por dizer que a característica
definitória do pensamento como um tipo de comportamento – um comportamento operante
– é seu próprio processo de produção cerebral. Pensamento seria um comportamento do
cérebro. Além disso, afirmaremos que, no caso do pensamento, a seleção por conseqüências
ocorre num ambiente virtual, o que torna os comportamentos operantes que a precedem
causalmente inertes em relação à produção de movimentos físicos dos organismos. O
mesmo não ocorre com outras atividades físicas nos organismos, que, além de não serem
operantes, não são nem causalmente inertes nem ocorrem em ambientes virtuais.
Se pensamento é comportamento adaptativo do cérebro, cabe perguntar o que está
sendo selecionado e como pode ocorrer uma seleção por conseqüências intracerebralmente.
Selecionam-se, em primeiro lugar, pensamentos que estejam em correspondência com as
contingências ambientais que produzem o comportamento manifesto, ou seja, o
comportamento verbal ou o comportamento como resposta motora. A busca desta
adequação cognitiva entre pensamento e comportamento manifesto é parte fundamental da
seleção por conseqüências que se realiza como interação bi-direcional entre organismo e
meio ambiente. É preciso que o cérebro se comporte adequadamente nesta interação, ou
seja, que o pensamento como intermediário na relação entre estímulos e meio ambiente
produza respostas motoras adequadas.

37
Pensar é comportar-se (1957, cap. 19), mas este comportamento pode ser acessível apenas àquele que
pensa. Processos fisiológicos certamente subjazem a este comportamento, “mas não precisamos fazer
suposições sobre o substrato muscular ou neural de eventos verbais” (Skinner, 1957, p. 435).
67

A adequação desta relação exige, por sua vez, uma seleção prévia de
comportamentos possíveis – uma seleção por conseqüências que ocorre intracerebralmente.
Esta consiste de um conjunto de respostas operantes que ocorre num meio ambiente virtual,
conforme já sugerimos acima. A característica adaptativa que torna este conjunto de
comportamentos intracerebrais comportamentos operantes é sua seleção de cenários
adequados para testar ações futuras, possibilitando, assim, essa adequação das respostas
motoras ao meio ambiente. A vantagem adaptativa desta seleção prévia é a preservação do
organismo de testes que ocorram em ambientes reais, o que poderia por em risco sua
sobrevivência.
Ao fazermos estas afirmações estamos cada vez mais nos afastando de uma teoria
exclusivamente skinneriana da natureza do pensamento. Certamente não encontraremos
esta teoria nos escritos de Skinner, constituindo esta uma visão muito peculiar do
behaviorismo radical que lhe adiciona elementos cognitivos. Estamos longe de estar
fazendo uma exegese da doutrina de Skinner ao atribuir-lhe esta teoria, mas,
paradoxalmente, acreditamos que teorias da natureza do pensamento de D. Dennett e W.
Calvin – sobre as quais nos apoiamos - podem lançar sobre as teorias skinnerianas uma luz
esclarecedora acerca de algumas de suas dificuldades teóricas. Entendemos que o
behaviorismo radical poderia perfeitamente tomar emprestados estes elementos cognitivos
adaptando-os para algo parecido com uma filosofia da mente skinneriana, ou pelo menos,
uma teoria do pensamento compatível com o behaviorismo radical.

A teoria das múltiplas versões de D. Dennett – No seu livro Consciousness Explained,


publicado em 1991, Dennett expõe os delineamentos de sua teoria geral da consciência. Sua
teoria da consciência é, na verdade, uma teoria da natureza do pensamento. Consciência
não se sobrepõe, reflexivamente, ao pensamento. Explicar a natureza da consciência é
explicar como se formam conteúdos mentais, ou seja, como se forma a consciência
fenomênica.
Como bom discípulo de Ryle, Dennett começa por uma desconstrução dos mitos
cartesianos. É preciso investir contra a idéia de unidade da consciência, uma herança que se
originou de um dos principais argumentos de Descartes em favor do dualismo, qual seja, o
da natureza indivisível do pensamento por oposição à divisibilidade infinita da matéria (res
68

extensa). A mente seria uma e simples por ser essencialmente indivisível. O sucedâneo
deste argumento, no mundo contemporâneo, seria a busca de um lócus da consciência no
cérebro ou num segmento deste – uma investigação que nas últimas décadas tem motivado
grande parte da pesquisa neurocientífica, tornando-a, em grande parte, uma busca ingênua
por uma quimera. Se não há um lócus da consciência no cérebro, tampouco há uma agência
controladora central de qualquer natureza ou algum “grande coordenador” que conferiria à
consciência uma unidade. É preciso também dissociar a idéia de consciência da noção de
um pano de fundo (um teatro cartesiano) sobre o qual se inscreveriam as experiências
conscientes (conteúdos mentais). Não existe esse pano de fundo. A consciência é
simplesmente a coleção de experiências conscientes.
Na primeira parte de seu livro, Dennett nos introduz àquilo que ele chama de uma
teoria empírica da consciência. O ponto de partida desta teoria é um modelo cognitivo
chamado “pandemonium”. Tudo se passa como se na nossa cabeça existissem milhares de
pequenos agentes competindo entre si para tornar-se o foco de nossa atenção. Uns precisam
predominar sobre os outros e esta predominância é momentânea. Não existe uma via
simples entre um estímulo e sua percepção e não é necessário postular nenhum momento
específico ou local determinado onde ele se torne consciente, ou seja, ingresse na esfera
fenomênica. O que existe são múltiplos canais ou canais paralelos. O cérebro produz muitas
versões a partir de um único estímulo; algumas versões são adotadas, outras são
abandonadas.
Desta coleção de predominâncias pontuais forma-se ou acopla-se uma máquina
virtual que cria uma seqüência dentro das múltiplas versões criadas. Esta máquina faria o
inverso daquilo que uma rede neural faz, ou seja, em vez de distribuir tarefas para realiza-
las em paralelo, ela sequencializaria uma máquina que realiza múltiplas tarefas, que, no
caso, é o cérebro com sua imensa plasticidade. Isto gera a sensação de um fluxo de
consciência unívoco, mas na verdade não há um fluxo único de consciência nem um
significador central que coordene tanto os mecanismos de entrada de percepções como os
mecanismos de saída de ações. Não há uma narrativa privilegiada feita por um elaborador
central, embora a maneira como experimentemos nossa consciência cotidianamente nos
faça supor isto: temos a impressão de que a narrativa seja serial, uma impressão causada
pela máquina virtual no cérebro.
69

O tempo todo o cérebro está criando inúmeras versões sobre percepções, sensações,
emoções, sentimentos. Circuitos especialistas, no cérebro, trabalham em paralelo,
realizando diferentes tarefas, criando narrativas fragmentadas. Fragmentos de narrativas
competem entre si o tempo todo. A máquina virtual tem um funcionamento serial e gera
uma narrativa serial, mas isto não quer dizer que o funcionamento do cérebro seja serial.
Como uma máquina virtual, ela não está localizada em nenhum lugar do cérebro nem
precisa ser um espírito que observa o que se passa no cérebro (consciência reflexiva). O que
ela faz é juntar os temas desenvolvidos pelos vários especialistas de tal forma que se
estabeleça uma coerência de narrativa – uma coerência que será também momentânea.38
A máquina híbrida de Dennett – ou sua máquina joyceana – nos passa a imagem do
pensamento (consciência fenomênica) como essencialmente uma reconstrução de ações
unidas por uma narrativa momentânea. O aspecto fragmentário das versões da realidade
que chegam através de estímulos sugere que estas são causalmente inertes na produção de
comportamentos. Se não há controlador central do pensamento que produza um eu-central
podemos igualmente supor que a consciência (no sentido de conteúdo fenomênico)
encontra-se dissociada da coordenação e da produção de comportamentos manifestos.
Versões abandonadas ou esquecidas seriam essencialmente epifenomênicas. Para esta
característica epifenomênica contribuiria também seu caráter fragmentário. Neste sentido, o
pensamento seria apenas um acompanhante das ações (movimentos corporais) que não teria
nenhuma função cognitiva, ou seja, em nada ele contribuiria para que estas ações fossem
mais ou menos adaptativas em relação ao meio ambiente. Deste ponto de vista, uma certa
interpretação das idéias de Skinner e as de Dennett seriam aqui coincidentes, convergindo
para a desconstrução da noção de um eu-iniciador para a produção de comportamentos.
Contudo, a idéia de “pandemonium” sugere um outro caminho possível: o de que o
pensar é um tipo de ação ou um comportamento encoberto. Com efeito, a idéia de
“pandemonium” ou uma disputa pela serialização assemelha-se, em muitos aspectos, à
seleção darwiniana onde aquilo que é selecionado entra momentaneamente no fluxo serial
de pensamento, para, segundos depois, ser substituído por um outro conteúdo mental
competidor. Mas estaremos aqui diante de uma seleção por conseqüências, ou um processo

38
Servi-me, para fazer esta descrição, de trechos do livro de Paulo de Tarso Gomes, (Gomes, 2002).
70

no qual a seleção de um comportamento seria precedida por um conjunto de respostas


operantes?
Esta pergunta remete-nos às próprias origens da teoria da mente de Dennett,
inspiradas na obra do neurobiólogo W. Calvin39. Para Calvin, a atividade mental tem por
finalidade primeira a organização e orientação do comportamento dos organismos no meio
ambiente. O cérebro dos organismos representa o meio ambiente para, em seguida, agir
sobre ele. (Essas representações são fornecidas pelos estímulos que chegam ao organismo).
O cérebro humano desenvolveu a capacidade de gerar cenários possíveis ou representações
alternativas do meio ambiente a partir dos dados que recebe antes de agir (produzir uma
resposta motora). Pensamentos e comportamentos automáticos ou reflexos são
fundamentalmente distintos, mas têm uma raiz em comum. O pensamento emerge do
comportamento reflexo quando esse passa a ser precedido de um conjunto de
representações ou de cenários possíveis e resulta da escolha de um desses cenários como
guia do curso das ações subseqüentes a serem realizadas pelo organismo. O pensamento
instaura-se no intervalo entre o recebimento de um input e a produção de um output, pela
produção desses cenários possíveis que são causalmente inertes até que um deles seja
escolhido para orientar uma resposta motora.
A ação de escolha de um cenário que produza resposta motora adequada é efetuada
por um conjunto de respostas operantes que ocorrem intracerebralmente. A escolha é, na
verdade, seleção por conseqüências operada no ambiente virtual composto por estes
cenários, embora por vezes tenhamos a ilusão de que ela pressupõe um intérprete ou um
homúnculo no cérebro. Em outras palavras, o que chamamos de escolha é um processo de
seleção natural intracerebral que ocorre num tempo extremamente acelerado onde os vários
cenários competem entre si até que se defina um vencedor.40
Falta-nos agora combinar a máquina joyceana com a máquina darwiniana de Calvin
e saber o que esta combinação tem a ver com a teoria do pensamento do behaviorismo

39
Para esta breve exposição das idéias de Calvin utilizei-me de algumas passagens de meu livro (Teixeira,
2000).
40
“My minimalist model for mind suggests that consciousness is primarily a Darwin Machine, using utility
estimates to evaluate projected sequences of words/schemas/movements that are formed up off line in a
massively serial neural device. The best candidate becomes what “one is conscious of” and sometimes acts
upon. What´s going on in mind is not really a symphony but is more like a whole rehearsal hall of various
melodies being practiced and composed; it is our ability to focus attention upon one well-shaped scenario that
allows us to hear a cerebral symphony amid all the phantasy” (Calvin, 1990, p. 332).
71

radical. Não é difícil perceber que o cenário ganhador na disputa darwiniana é aquele que
será momentaneamente serializado e que, neste sentido, é razoavelmente simples conceber
o pensamento de Dennett e o de Calvin como complementares. Resta-nos agora ver se a
idéia de pensamento como comportamento do cérebro poderia ser concebida a partir da
combinação destas duas máquinas.
O caminho a ser seguido é combinar a idéia de pensamento como comportamento
ou evento físico intracerebral com a idéia de cenário ganhador na disputa darwiniana – o
cenário que como evento físico levará à produção de respostas motoras – e a idéia de
respostas operantes que precedem a seleção do cenário final com os cenários rejeitados
após testes em ambiente virtual (causalmente inerte) que seriam, no modelo dennettiano as
versões esquecidas, abandonadas ou momentaneamente excluídas da serialização. Estas
últimas seriam pensamentos na qualidade de epifenômenos enquanto que os
comportamentos selecionados intracerebralmente seriam eventos físicos que podem
produzir outros comportamentos.

Unindo (ou completando) os dois modelos – A teoria do pensamento que estamos


esboçando é coerente e compatível com o fisicalismo de Skinner, de acordo com o qual
eventos mentais são eventos físicos. É esse mesmo ponto de vista que é sustentado por
cientistas cognitivos como Dennett e Calvin, cujas teorias estivemos examinando. A união
dos modelos apresentados aqui mostra que é possível conciliar a concepção skinneriana de
pensamento como epifenômeno com a proposição expressa nos seus escritos de maturidade,
qual seja, a de que “pensar é comportar-se”.
A união entre o modelo skinneriano e o dennettiano pode nos ajudar a resolver esta
dificuldade sugerindo que o pensamento é um comportamento selecionado encoberto que
se constitui momentaneamente como uma versão ganhadora do “pandemonium”. Neste
sentido, o comportamento selecionado encoberto torna-se pensamento (ou pensamento
consciente num sentido fenomênico como diria Dennett). Sua produção é um
comportamento que como evento no mundo pode efetivamente causar (produzir)
comportamentos manifestos, ou seja, respostas motoras ou verbais. O conjunto de
respostas operantes que precedem o comportamento selecionado (e que são causalmente
72

inertes) constitui a classe de pensamentos envolvidos na escolha de cenários possíveis para


ações futuras, um processo de disputa competitiva pela predominância do cenário que
determinará o output. A predominância de um cenário sobre outros será determinada, por
sua vez, por uma gama de fatores diversos na qual se incluem desde o registro filogenético
de ações bem-sucedidas em ambientes similares até a geração de novas formas de
comportamento que possam assegurar a sobrevivência do organismo em situações
inusitadas. Tudo se passa como se o tempo todo realizássemos testes de ações e suas
conseqüências num ambiente virtual. Os testes são respostas operantes – as versões
abandonadas e esquecidas – que levam finalmente à seleção de um pensamento que é um
comportar-se; um comportar-se na medida em que rompe o limiar que lhe permite o acesso
à esfera da consciência fenomênica.
A identificação destes dois sentidos da sentença “Pensar é comportar-se”, seja como
comportamento enquanto evento físico no mundo resultando de uma seleção por
conseqüências, seja do comportamento como um conjunto de respostas operantes
causalmente inertes, deve contribuir para mostrar que adotar o behaviorismo radical como
filosofia da psicologia significa rejeitar a distinção entre pensamento e ação, que passa a ser
vista como um sucedâneo da distinção cartesiana entre mente e corpo. A mente é uma
coleção de pensamentos que constituem uma “anima” no sentido original e etimológico do
termo, ou seja, no sentido de ser algo “animado”, cuja característica principal é
movimentar-se ou comportar-se. Se não introduzíssemos esta distinção entre duas acepções
do “Pensar é comportar-se” - como resposta operante e como comportamento operante -
estaríamos correndo o risco de re-introduzir a distinção cartesiana pela porta dos fundos,
numa sutil distinção entre um agir mental causalmente inerte e um agir corporal que seria
um evento físico no mundo capaz de produzir outros eventos ou comportamentos. Ou para
não sucumbir a uma aceitação residual da dicotomia cartesiana no interior da doutrina
filosófica do behaviorismo radical teríamos que pura e simplesmente abandonar a segunda
idéia de Skinner, ou seja, a de que pensar é comportar-se.
73

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

ANDERY, M.A., & SÉRIO, T.M. (2002) – “O pensamento é uma categoria no sistema
skinneriano?” – Artigo não publicado.

CHIESA, M. (1994) – Radical behaviorism: The philosophy and the science. Boston: The
Author´s Cooperative

DENNETT, D. (1991) – Consciousness Explained. Boston: Little & Brown.

CALVIN, W., (1990) The Cerebral Symphony. New York: Bantam Books.

CALVIN, W., (1996) How Brains Think. New York: Basic Books. Traduc. Brasileira de
Alexandre Tort, Como o Cérebro Pensa. Rio de Janeiro, 1998.

GOMES, P.T. (2001) Tempo e Consciência. Londrina: Editora da FUEL.

SKINNER, B. F., (1957) Verbal Behavior New York: Appleton-Century-Crofts.

SKINNER, B.F. (1977) “Why I am not a cognitive Psychologist” . Behaviorism. 5: 1-10.

TEIXEIRA, J. de F. (2000) – Mente, Cérebro e Cognição. Petrópolis: Vozes.


74

MAIS UMA NOTA SOBRE O OPERANTE

Este artigo é dedicado ao Prof. Bento Prado Jr.

A noção de operante é uma das mais importantes da teoria psicológica skinneriana,


contribuindo decisivamente para distinguí-la de outros tipos de behaviorismo. Skinner
acreditava que, enquanto processo físico, o comportamento é um fenômeno natural, sujeito
a leis naturais. Comportamento é um processo ordenado, cuja ocorrência obedece a algum
tipo de regularidade. (Skinner, 1947/1972, p. 209; 1953/1965, p. 6, p. 13). Uma resposta
comportamental está sempre funcionalmente relacionada a variáveis ambientais passadas e
atuais.
O estudo do comportamento é sempre a investigação das interações entre
organismos que se comportam e ambientes que, modificados pelo comportamento desses
organismos, retroagem sobre estes. (Skinner, 1957, p.1). O movimento reflexo é o primeiro
tipo de comportamento a ser analisado; uma resposta reflexa é uma reação inata ou
aprendida ante um estímulo imediatamente anterior à sua ocorrência. Mas existem outros
tipos de comportamento. Certos movimentos dos organismos possuem uma
“espontaneidade”, ou seja, eles não são totalmente disparados por estímulos ambientais,
embora estes alterem a probabilidade de sua ocorrência. A relação entre a presença destes
estímulos ambientais (discriminativos) e a probabilidade de ocorrência de certas respostas
depende de outras variáveis, em geral produzidas pelo próprio organismo, quais sejam, os
estímulos reforçadores. Quando, na presença de certos estímulos discriminativos certas
respostas do organismo produzem conseqüências reforçadoras, a presença posterior destes
estímulos discriminativos aumenta a probabilidade de ocorrência daquelas respostas. A
interação entre organismo e ambiente envolvendo estímulos discriminativos, estímulos
reforçadores e respostas, é a contingência de reforço. No contexto de uma contingência de
reforço, chama-se resposta a ação do organismo sobre o ambiente que produz um estímulo
reforçador.
75

Esta resposta é apenas uma instância de uma série de movimentos que podem ser
executados pelo organismo na produção de determinada conseqüência. Esta resposta é um
comportamento operante e faz parte de um operante. Comportamento operante é aquele
que ocorre no contexto das contingências de reforço. Um operante é uma classe de
respostas que ocasionam sempre um mesmo efeito sobre o ambiente, ou seja, produzem
sempre a mesma conseqüência reforçadora.
Com a introdução do conceito de operante, o behaviorismo radical introduz uma
noção de causalidade na sua teoria que a afasta de concepções mecanicistas: a idéia de
seleção do comportamento por suas conseqüências. Skinner começa a delinear este modelo
a partir de 1953, inspirando-se na teoria darwiniana da seleção natural das espécies. Note-
se, porém, que sua teoria do comportamento não é baseada na teoria da seleção natural,
servindo esta última apenas de um modelo do qual é possível derivar interessantes
similaridades.
Numa passagem de 1981 (1981/1984) Skinner aponta que a seleção natural é um
modo causal encontrado em seres vivos ou também “em máquinas feitas por seres vivos”
(p. 477). Neste sentido, a seleção por conseqüências não precisa ser necessariamente um
modelo biológico ou uma propriedade exclusiva dos organismos ou dos seres vivos que
estariam submetidos à seleção natural darwiniana. Pouco importa se as máquinas a que ele
se refere foram ou não construídas por seres vivos, sua interação com o meio ambiente ou
com outras máquinas pode simular este processo de seleção por conseqüências. A robótica
evolucionária ilustraria um processo de seleção por conseqüências sem que as máquinas
envolvidas neste processo tenham qualquer semelhança com seres vivos. Por exemplo, os
robôs desenvolvidos por Nolfi e Floreano (Nolfi e Floreano, 2003) não têm a mesma
constituição que organismos infra-humanos ou humanos, mas simulam comportamentos
onde ocorre uma seleção por conseqüências.
Este ponto de vista sobre a interpretação do texto skinneriano deixa espaço para
pensar a noção de operante a partir de outros modelos que podem levar à seleção por
conseqüências sem, entretanto, serem especificamente darwinianos, ou seja, sua inspiração
não tem de ser necessariamente biológica. Estes modelos serão compatíveis com a teoria
skinneriana se neles for mantida uma premissa básica: a de que comportamento é um
fenômeno natural, sujeito a leis naturais. A adoção de algum outro tipo de modelo para
76

conceber a seleção do comportamento por conseqüências ficará, contudo, condicionada a


sua capacidade de resolver alguns problemas teóricos e conceituais envolvidos na noção de
operante, dos quais falaremos a seguir.

Algumas dificuldades conceituais envolvendo a noção de operante – O projeto


epistemológico subjacente ao behaviorismo radical inclui a transformação/eliminação de
termos/conceitos da psicologia popular em termos científicos, visando a eliminação dos
elementos intensionais da linguagem da ciência. Neste sentido, a idéia cotidiana da qual
surge a noção de operante, qual seja, a noção intuitiva de repetir um gesto bem sucedido ou
mesmo a idéia de que os efeitos do comportamento moldariam o comportamento
subseqüente sem precisar introduzir indesejáveis conceitos teleológicos ou finalistas,
precisa receber outro tipo de caracterização. Para Skinner, os operantes são caracterizados
“como uma classe, da qual a resposta é uma instância ou um membro....É sempre uma
resposta à qual é contingente um reforço dado, mas este é contingente a propriedades que
definem a pertinência a um operante” (Skinner, 1969, p. 131). Ou, como nos diz Bento
Prado (1980, p. 111) “é a velha lei do efeito que foi finalmente depurada de seu resíduo
metafísico ou hedonista, ou seja, da versão subjetiva da noção de reforço: a oposição
incontrolável empiricamente entre o agradável e o desagradável”.
Mas, será possível caracterizar a regularidade e, ao mesmo tempo eliminar de sua
descrição qualquer resíduo mentalista ou intensional? Uma descrição da regularidade do
comportamento de um animal em termos puramente extensionais soaria mais ou menos
assim: “o animal faz o que faz porque o faz, e não faz o que não faz porque não o faz”
(Prado Jr, p. 113, citando Postman, 1950). Ou seja, sem a idéia mentalista de
agradável/desagradável a lei do efeito tornar-se-ia quase uma tautologia. A idéia de reforço
como variável independente estaria se esmaecendo; estaria sumindo juntamente com os
termos mentalistas. Descrever o comportamento do animal sem referência a algo como seu
“mundo interno” faz desaparecer, igualmente, as noções subjetivas de “agradável” e
“desagradável” que normalmente nos ajudariam a compor uma definição do reforço.
Reforço tornar-se-ia um conceito circular, pois a única coisa que poderíamos afirmar acerca
dele “é que ele reforça”.
77

Uma circularidade semelhante é apontada por Schick, (1971) ao notar que na


tentativa de definição de operante oferecida por Skinner esmaecem-se quaisquer traços
nítidos que possam demarcar uma linha divisória entre o que é reforço e o que é operante.
“O reforço é definido pela apresentação de estímulos reforçadores, que, por sua vez, são
definidos pelo comportamento operante. E já que é assim, vemo-nos na impossibilidade de
identificar um operante sem identificar um estímulo reforçador, como não podemos
identificar um estímulo reforçador sem identificar um operante” (Schick, apud Prado, Jr.
P.114).
Teoria do caos e sistemas dinâmicos41 - Será possível livrar o conceito de operante destas
dificuldades teóricas pela adoção de um outro modelo para o comportamento selecionado
por suas conseqüências – um modelo que não seja especificamente darwinista?
Examinaremos esta possibilidade através da teoria do caos e dos sistemas dinâmicos.42
Um sistema dinâmico pode ser entendido como um conjunto de diversos objetos
que interagem entre si. Em outras palavras, para que determinados objetos sejam
considerados como um sistema é necessário que mudanças em um desses objetos de
alguma maneira influenciem os comportamentos dos outros objetos. Para estudar estas
mudanças existe a dinâmica de sistemas que visa elucidar o modo de operação de diversos
sistemas naturais descobrindo um conjunto de leis gerais que possam compreender,
controlar, e predizer fenômenos naturais particulares. Um exemplo disto é a mecânica
newtoniana, que nos permite traçar correlações gerais para sistemas compostos de corpos
materiais a partir de um pequeno número de leis e efetuar predições acerca do
comportamento dos objetos que compõem tais sistemas.
Contudo, nem tudo na natureza é “bem-comportado”. Quanto maior for o número
de variáveis envolvidas em determinado fenômeno, maior será a dificuldade de predizer seu
comportamento. Em determinadas situações podem existir variáveis críticas que perturbam
o comportamento regular de um determinado sistema. Nesses casos, os cálculos diferencial
e integral (usados pela mecânica newtoniana), são insuficientes para determinar uma
equação matemática que descreva e prediga esses processos. Para descrever o
41
Para vários pontos da exposição que se segue servi-me do texto de R. Kinouchi “Consciência não-linear: de
William James aos sistemas dinâmicos” onde os conceitos dinamicistas são apresentados com brilhante
simplicidade.
42
Uma tentativa semelhante, qual seja, a de construir uma ciência do comportamento com base na teoria do
caos e dos sistemas dinâmicos foi empreendida por Scott Kelso (1995). Contudo, quase nenhuma referência a
Skinner pode ser encontrada em sua obra.
78

comportamento desses sistemas complexos com grande número de variáveis críticas os


pesquisadores introduziram vários conceitos novos, tais como estado inicial,
comportamento, espaço de estados, etc. O estado inicial de um sistema é definido pelos
respectivos valores dos componentes desse sistema em determinado instante Ti. Já o
comportamento do sistema consiste nas diversas mudanças de estados ao longo do tempo.
A totalidade dos estados possíveis desse sistema é chamada de espaço de estados. Assim
sendo, o comportamento do sistema pode ser entendido como a seqüência dos diversos
pontos dentro do espaço de estado, ou seja, uma trajetória de estados ao longo do tempo.
Esta trajetória pode ser descrita através de um conjunto de equações não-lineares. A não-
linearidade (o “mau-comportamento” ou imprevisibilidade) é uma peculiaridade de alguns
sistemas complexos. Aliás, nesta concepção, sistemas não-lineares podem ser tomados
como a regra, sendo que aqueles que respondem linearmente são exceções. Contudo,
convém explicitar que ser não-linear não significa ser caótico. O caos é um caso extremo,
assim como a ordem absoluta também o é. Sistemas que se situam entre o caos e a ordem
são chamados de criticalidade auto-organizada.
Sistemas em situação de criticalidade auto-organizada encontram-se a meio
caminho entre o caos e a ordem, sendo que tais sistemas podem controlar o caos transitando
entre estados metaestáveis de ordem. Estes últimos são os chamados atratores, outra noção
fundamental na teoria do caos e dos sistemas dinâmicos.
As simulações computacionais têm mostrado que é possível constatar que alguns
sistemas sempre tendem a um certo estado final. Ou seja, mesmo que o sistema parta de
diferentes estados iniciais, o sistema como um todo ruma para um mesmo estado final. Tal
estado é chamado de atrator do sistema. Um exemplo elucidativo do que seja atrator
encontramos em Kinouchi (2004): “Tome-se uma tigela com água limpa. Usando uma
esponja com detergente, faça-se uma espuma espessa. Depois, deixe cair uma certa
quantidade dessa espuma bem no centro da tigela com água. O leitor irá perceber que a
espuma se espraia pela superfície da água, de uma forma desordenada. Alguns minutos
depois, notar-se-á que as bolhas remanescentes estarão coladas na borda da tigela. Isto
acontece porque a superfície da água, na linha de contato com a parede da tigela, cria uma
espécie de depressão para onde as bolhas são atraídas”. Neste caso, cada um dos pontos que
79

compõem a circunferência, onde se dá o contato entre a superfície da água e a parede da


tigela pode ser entendido como um atrator, ou seja, temos um inumerável atrator múltiplo”.
Outro conceito importante da teoria dos sistemas dinâmicos é o de propriedades
coletivas emergentes. Sabemos, por exemplo, que a água, se refrigerada a uma temperatura
inferior a zero grau centígrados torna-se gelo.43 As propriedades da água no estado sólido
são diferentes da água em estado líquido. Solidez e impenetrabilidade são duas dessas
propriedades. Entretanto, “ser sólido” ou “ser gelado” não parecem ser propriedades que
poderiam ser aplicadas individualmente a cada um dos átomos da água, pois não parece
fazer sentido dizer que “um átomo é gelado”. Essa é uma propriedade que só aparece
quando inumeráveis elementos (átomos) interagem entre si. Isto ocorre nos sistemas
complexos, resultando no aparecimento de propriedades coletivas emergentes. Nosso
cérebro, pela imensa quantidade de neurônios, ou nossa interação com o meio ambiente,
pela imensa quantidade e diversidade de estímulos envolvidos formam um sistema
complexo no qual podem aparecer propriedades coletivas emergentes.
Finalmente, para apresentarmos a noção de operante sob a ótica da teoria do caos e
dos sistemas dinâmicos, precisamos introduzir mais um conceito: o de causalidade
descendente. A causalidade descendente é a idéia de que propriedades coletivas têm efeito
causal sobre o substrato material que as sustenta. O exemplo típico de causalidade
descendente, também citado por Kinouchi (2004) é o do engarrafamento de carros numa
metrópole. Na medida em que um maior número de veículos vai sendo adicionado ao
tráfego, o fluxo vai se tornando sobrecarregado, até que na situação limite as ruas ficam
completamente cheias. Nessa situação, cada automóvel encontra-se muito próximo dos
outros e a velocidade média do fluxo cai drasticamente.
Em muitas ocasiões, o engarrafamento pode se dever a problemas: acidentes que
impedem o tráfego, problemas mecânicos, etc. Por outro lado, o engarrafamento provoca
sucessivas trocas de marchas, falta de adequada refrigeração dos motores e isso acaba
gerando um número maior de quebras mecânicas, que, por sua vez, levarão a uma
conseqüente diminuição da velocidade do tráfego. As partes influenciam o sistema, que por
sua vez influencia as partes. O que se chama de causalidade ascendente pode ser descrita
como a influência das partes sobre o estado geral do sistema – as quebras dos veículos que

43
Veja-se Teixeira, J. de F. (2000) p. 80.
80

tornam o trânsito mais difícil. O que se chama de causalidade descendente é a influência do


sistema como um todo sobre cada uma de suas partes – o trânsito carregado que acaba por
gerar defeitos nos automóveis. (Kinouchi, 2004, p. 147, 148).

Operante e sistemas dinâmicos – A re-descrição da lei do efeito a partir dos conceitos da


teoria do caos e sistemas dinâmicos pode nos ajudar a resolver algumas das dificuldades
que apontamos acima, sobretudo no que diz respeito à eliminação dos termos mentalistas na
caracterização do operante. Ela nos proporciona uma descrição fisicalista das regularidades
do comportamento operante numa ontologia inteiramente compatível com o behaviorismo
radical, ou seja, uma descrição das propriedades físicas das respostas enquanto instâncias
públicas do comportamento.
Assim como em outros sistemas físicos, a relação entre organismo e meio ambiente
apresenta um elevado grau ou tendência à auto-organização. Neste caso, podemos conceber
esta relação como um sistema caótico, mas ao mesmo tempo auto-regulado, alternando
imprevisibilidade e estabilidade. Seria esta alternância entre imprevisibilidade e
estabilidade que nos permitiria conceber, respectivamente, os comportamentos que
precedem o operante (as respostas operantes) e a determinação deste como uma espécie de
estabilização provisória ou um estado metaestável de ordem na relação entre organismo e
meio ambiente. Dizemos estabilização provisória porque esta seria proporcionada por um
atrator, o que permite a possibilidade de modificação do repertório de operantes do
organismo ao longo do tempo (bifurcações) – um repertório do qual participam unidades de
comportamento que não são necessariamente adaptativas uma vez que elas resultam do
caráter não-linear da relação entre organismo e meio ambiente. (Skinner, 1966/1969,
pp.177-178, Skinner, 1953/1965, p. 432).
As idéias de agradável/desagradável na caracterização dos reforços podem ser
substituídas pela idéia de atrator, o que elimina os resquícios de teleologia nas
regularidades do comportamento. O comportamento selecionado – o operante – emerge (é
uma propriedade emergente) da interação bi-direcional entre organismo e meio ambiente
que forma um sistema complexo. A complexidade deste sistema consiste precisamente no
fato de que as respostas motoras determinam estímulos e estes determinam, por sua vez,
81

novas respostas motoras.44 É esta complexidade que Schick e Prado Jr. chamaram de
circularidade, mas que é, do ponto de vista da teoria do caos e dos sistemas dinâmicos, um
caso de causalidade descendente, ou seja, sistemas onde propriedades emergentes coletivas
têm efeito causal sobre o substrato material que os sustenta.
Esta complexa interação bi-direcional entre organismo e meio ambiente torna a
emergência de novos operantes imprevisível, afastando a análise do comportamento de
qualquer ideal dedutivo de ciência. O caráter não-linear desta interação permite apenas
aproximações indutivas na caracterização das regularidades do comportamento dos
organismos, eliminando do projeto científico da análise do comportamento qualquer
tentativa de torná-la uma ciência estritamente matemática ou guiada por qualquer ideal
determinista laplaciano.
O ideal laplaciano de predição tem de ser abandonado quando se considera sistemas
cuja complexidade pode aumentar exponencialmente, como é o caso de ambientes dos
quais participam vários organismos humanos, o que leva a um grande aumento no número
de variáveis que podem se combinar/re-combinar. O aparecimento de sistemas simbólicos
como a cultura e a linguagem contribuem para o aumento desta complexidade, sobretudo se
considerarmos que a linguagem acaba contribuindo para a formação de mini-ambientes
virtuais. Ademais, a linguagem aumenta a estimulação e, devido a seu caráter injuntivo
aumenta igualmente a complexidade dos ambientes produzindo bifurcações e novas
associações no sistema complexo que reúne humanos e seu meio ambiente.

Críticas ao modelo baseado na teoria do caos e dos sistemas dinâmicos – Teremos


então superado as dificuldades que envolvem a noção de operante apresentadas por Prado
Jr. ao adotarmos uma abordagem baseada na teoria do caos e dos sistemas dinâmicos?
A objeção prima facie a esta abordagem do operante baseada na teoria do caos e dos
sistemas dinâmicos consiste em apontar que, ao recusarmos o modelo teórico darwinista
originalmente proposto por Skinner, recusamos igualmente o valor de sobrevivência da
resposta que reencontramos subjacente à lei do efeito. Ora, rejeitamos o modelo darwinista
por entendermos que ele ainda contém resquícios de uma teleologia que poderia levar-nos a

44
“What we have is a circuit, not an arc or broken segment of a circle. This circuit is more truly termed
organic than reflex, because the motor response determines the stimulus, just as truly as sensory stimulus
determines movement” (Dewey, J.,, 1896, p. 363).
82

um mentalismo indesejável. Não quer isto dizer que na teoria do caos e dos sistemas
dinâmicos comportamentos operantes não tenham valor adaptativo, mas tão somente que
nem todos os comportamentos operantes são necessariamente adaptativos como o próprio
Skinner o reconhece. Em outras palavras, o valor adaptativo deixa de ser um telos (bem
sucedido ou não) dos comportamentos operantes.
Que tipo de dificuldades teóricas enfrentamos então? Elliasmith (1996) levanta duas
objeções freqüentes ao emprego da teoria dos sistemas dinâmicos na psicologia. Em
primeiro lugar é preciso notar que ela não tem um poder propriamente explicativo
limitando-se a ser uma espécie de re-descrição dos fenômenos, utilizando seu aparato
matemático específico. Em segundo lugar – e talvez esta seja a objeção mais séria – nada
nos autoriza a transposição de uma teoria matemática utilizada para explicar porções
específicas do mundo físico para a montagem de explicações da natureza da cognição e do
comportamento sem antes mostrar que estes últimos também são parte do mundo físico
explicável pela teoria dos sistemas dinâmicos. Esta transposição, feita de forma brusca e
sem a discussão de suas implicações epistêmicas não permite que tracemos uma
correspondência precisa entre os enunciados da teoria dos sistemas dinâmicos e modelos
psicológicos, o que faz com que estes últimos percam o poder preditivo que a teoria
matemática dos sistemas dinâmicos aplicada ao mundo físico –uma teoria provada e
falseável – pode nos oferecer.
Como conseqüência, a teoria dos sistemas dinâmicos quando aplicada
indiscriminadamente, parece pecar por sua excessiva generalidade ou abrangência que
engloba desde o caos até os sistemas determinísticos, o que a torna uma teoria que
explicaria tudo o que ocorre no universo. O dinamicista herda o mundo. Desta perspectiva
não é possível diferenciar entre agentes cognitivos ou organismos que exibem
comportamentos adaptativos de furacões, epidemias ou de congestionamentos de carros,
pois todos estes fenômenos poderiam ser explicados em termos de atratores e propriedades
emergentes. A especificidade da explicação psicológica se dissolve e, paradoxalmente, a
utilização de modelos matemáticos como se os fenômenos psicológicos fossem fenômenos
físicos a enfraquece em vez de a fortalecer. No caso do operante, de que tratamos aqui, o
tratamento físico-matemático do comportamento através das categorias da teoria dos
sistemas dinâmicos – os atratores e as propriedades emergentes – tem a conseqüência
83

benéfica de nos livrar dos termos mentalistas e do risco de circularidade na caracterização


da lei do efeito, mas agora ela nos coloca o risco “de jogar fora o bebê junto com a água do
banho” ao eliminar do comportamento qualquer característica que o torne um fenômeno
diferente de outros que ocorrem na natureza.
Este é o incômodo que encontramos numa teoria que não distinguiria, em princípio,
entre organismos e furacões. Mas há ainda outra inquietação. Ao generalizarmos a teoria
dos sistemas dinâmicos de modo a abranger a cognição, o comportamento e outros
fenômenos do universo, continuaria ela sendo uma teoria falseável? Em outras palavras:
haveria algum fenômeno na natureza que não se situasse entre os extremos do espectro que
vai dos sistemas não-lineares aos sistemas lineares (que são só uma exceção da regra de
não-linearidade) e que não pudesse ser explicado através das categorias teóricas da teoria
do caos e dos sistemas dinâmicos? E, no caso do comportamento, como falsear a evolução
do espaço de estados de um sistema se a teoria dos sistemas dinâmicos quando aplicada à
psicologia perde a capacidade de previsão? Parece que ao psicólogo só resta mesmo o
refrão de Postman “O animal faz o que faz porque o faz, e não faz o que não faz porque não
o faz”. Começamos na psicologia popular para terminar nela. Se alguém encontrar algo
mais poderoso e com maior valor preditivo do que a psicologia popular, por favor, me
avise.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

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86

AS BASES NEURAIS DA EQUIVALÊNCIA DE ESTÍMULOS.

Embora coexistindo nos últimos cinqüenta anos, duas das mais importantes escolas
psicológicas do século XX, o behaviorismo radical e a ciência cognitiva, vêm se mantendo
incomunicáveis na medida em que os behavioristas radicais identificam esta última com um
mentalismo indesejável e os cientistas cognitivos não distinguem entre behaviorismo
radical e behaviorismo metodológico. Esta caracterização monolítica destas disciplinas
gerou uma falsa oposição entre ambas, tendo como uma de suas principais conseqüências a
redução da importância do papel do comportamento nos estudos sobre a natureza da
cognição (Cizek, 1999). Além deste clichê histórico que se formou nas últimas décadas, a
ênfase progressiva nos programas de redução psiconeural (Bickle, 1998, 2003) levou a uma
predominância das abordagens internalistas na psicologia e na filosofia da mente, em
detrimento da análise de fatores comportamentais e ambientais na montagem de
explicações psicológicas. A ênfase na determinação orgânica (cerebral), típica do
internalismo, esvazia a possibilidade de que processos mentais, embora dependentes de
estruturas cerebrais para sua ocorrência, tenham como referência o ambiente e conteúdos
culturais articulados em um sistema representacional que teriam um peso decisivo na
explicação do comportamento dos organismos.
Esta predominância de abordagens internalistas tem sido apoiada pelo aparecimento
das técnicas recentes de mapeamento cerebral e, implicitamente, pela biopsiquiatria, ambas
acompanhadas por grande entusiasmo com que foram recebidos alguns de seus resultados.
Reforçando ainda mais este cenário, temos o aparecimento da genética comportamental
que, a primeira vista, deslocaria o lócus da explicação psicológica para fatores biológicos e
filogenéticos, também em detrimento de variáveis ambientais, o que para alguns,
significaria que a análise do comportamento seria uma abordagem periferalista já
ultrapassada. Tentativas de estabelecer uma convergência entre a análise do comportamento
e disciplinas como a neurociência (na década de 90) e a genética comportamental através da
proposta da chamada abordagem biocomportamental (biobehavioral approach), foram
87

feitas recentemente (Donahoe, Burgos and Palmer, 1993; Donahoe & Palmer, 1994) sem,
entretanto, surtir o efeito esperado sobre a comunidade psicológica.
Uma possibilidade para superar este tipo de conflito metodológico foi aberta pelo
aparecimento da neurociência cognitiva, um dos ramos mais importantes da ciência da
cognição contemporânea. Rugg (1997) salienta que a neurociência cognitiva constitui uma
estratégia metodológica que se formou a partir do estudo dos efeitos de lesões cerebrais e
da observação sistemática das correlações entre comportamentos explícitos de animais e
sua atividade neuronal. Esta tarefa seria executada pela introdução de eletrodos nos
cérebros desses animais sem que estes estejam anestesiados. Além disto, a neurociência
cognitiva passou a servir-se das novas técnicas de neuroimagem (PET – Positron Emission
Tomography e o fMRI ou Functional Magnetic Resonance Imaging) que permitiram, no
caso dos seres humanos, o estudo da atividade cerebral in vivo.
A neurociência cognitiva abre uma perspectiva ampla de investigação que reintegra
o papel do comportamento no estudo da cognição. Esta perspectiva baseia-se, sobretudo, na
integração de vários tipos de estratégias que visam correlacionar os níveis psicológicos,
comportamentais e neurológicos da investigação do funcionamento mental. O behaviorista
radical poderia, como opção metodológica, continuar a excluir deliberadamente do escopo
de sua investigação o estudo da atividade neuronal subjacente ao comportamento. Por outro
lado, nesta nova perspectiva ele poderia também se servir destes dados para clarificar e
consolidar suas explicações do comportamento. O estudo de suas bases neurais não se
afigura como incompatível com a perspectiva skinneriana, (McIlvane, 1998) na medida em
que o que era antes uma caixa preta inatingível que seria da competência exclusiva da
fisiologia do futuro, tornou-se agora mais acessível à observação. As bases neuronais
subjacentes ao comportamento nos proporcionarão, a longo prazo, uma perspectiva
fisicalista (proporcionada pela possibilidade de redução psiconeural) acerca da natureza dos
estados internos ou eventos privados que poderão assumir, na análise do comportamento, o
papel de variáveis ambientais encobertas. Em outras palavras, a neurociência cognitiva
abriu a possibilidade de observar como o cérebro se comporta e como ele pode produzir
comportamento. A realização desta tarefa, qual seja, a reintegração da análise do
comportamento com o que ocorre under the skin dependerá, entretanto, da recusa de clichês
88

históricos que instaurou um diálogo de surdos entre a comunidade cognitiva e a


behaviorista.
Um exemplo que ilustra esta surdez quase deliberada são as pesquisas de Bunsey e
Eichembaum (1996). Estes pesquisadores relataram, há quase dez anos, estudos do
funcionamento cerebral que serviriam para determinar as bases neurais da equivalência de
estímulos. Os resultados dos estudos de Bunsey e Eichembaum, contudo, ainda não foram
relacionados à teoria da equivalência de estímulos, bem provavelmente porque seus autores
desconheciam (e desconhecem) o que se passava na comunidade dos analistas de
comportamento. Da mesma maneira, os analistas de comportamento parecem ignorar até
agora as conseqüências que estes estudos do cérebro de ratos e humanos podem ter no
âmbito da fundamentação e do esclarecimento da própria natureza da equivalência de
estímulos bem como da interpretação de suas conseqüências para o estudo da cognição.
Embora haja controvérsias acerca de uma possível continuidade entre behaviorismo
radical e os trabalhos posteriores acerca da equivalência de estímulos desenvolvidos por
Sidman e sua escola, é praticamente inevitável que todas estas pesquisas sejam agrupadas
sob a designação mais ampla de análise do comportamento. Partindo desta designação mais
geral, os experimentos de Bunsey e Eichembaum passam a ilustrar não apenas a
necessidade de uma integração da análise experimental do comportamento com sua
neurofisiologia subjacente como também sugerem a possibilidade de uma reflexão e
reavaliação de alguns aspectos teóricos e conceitos-chave do behaviorismo radical
notadamente da noção de ambiente. Introduzimos aqui a noção de variável ambiental
encoberta para designar o papel da atividade cerebral na determinação do comportamento,
pois acreditamos ser o cérebro parte do ambiente onde se localizam os organismos. Isto
significa expandir nosso tradicional conceito de ambiente definido freqüentemente apenas
como a entourage física e cultural do sujeito – entourage da qual ele seria automaticamente
excluído. Esta expansão da noção de ambiente para além do imediatamente observável tem,
como pano de fundo, a recusa do ponto de vista cartesiano que separa cognição e ambiente,
como se eventos privados não fizessem parte deste, o que corroboraria sua ontologia
dualista. Ademais, esta expansão da noção de ambiente rejeita a dicotomia cartesiana entre
fatores internos/fatores externos, o que, de um ponto de vista diacrônico significa, mutatis
89

mutandis, a rejeição da oposição pura e simples entre fatores ontogenéticos e fatores


filogenéticos, já sugerida por Skinner (1969, 1984).

Cérebro e equivalência de estímulos – Por equivalência de estímulos entenderemos aqui


a definição clássica (matemática) de Sidman e Tailby (1982), ou seja, uma relação entre
elementos de um conjunto é uma relação de equivalência quando apresenta três
propriedades: simetria, transitividade e reflexividade. Tomemos uma relação qualquer entre
dois elementos de um conjunto representada como a r b . Esta relação é simétrica se a
validade de a r b implicar necessariamente a validade de b r a , ou seja, o elemento b deve
necessariamente manter a mesma relação r com o elemento a. Do ponto de vista
matemático uma relação é transitiva quando, dada a validade das relações a r b e b r c , isto
implica em que a relação a r c também seja válida. De acordo com Sidman e Tailby a
propriedade de reflexividade implica em que a relação de um elemento consigo próprio seja
verdadeira, ou seja, a r a é verdadeira, quando a pode ser qualquer elemento do conjunto
sob consideração.
Os estudos de Bunsey e Eichembaum, publicados em 1996 mostram que o
hipocampo desempenha fator essencial na capacidade de alguns animais para formar
associações de estímulos; estabelecer inferências entre pares de estímulos que partilham um
elemento comum (transitividade) bem como a habilidade de associar pares de elementos
apresentados em ordem reversa no treinamento, ou seja, a simetria.
Bunsey e Eichembaum descrevem um experimento realizado a partir da capacidade
dos ratos de detectar odores. Os odores foram associados em pares, usando-se a mesma
estratégia utilizada para testar a memória declarativa humana: os sujeitos estudam palavras
associadas arbitrariamente e, em seguida, apresenta-se a primeira palavra de cada par para
se avaliar sua capacidade de lembrar a segunda. Os animais foram treinados com estímulos
que consistiam de odores distintos misturados com ração moída e areia, colocadas num
cilindro. Eles tinham de cavar essa mistura para conseguir o cereal que ficava na parte
inferior do cilindro. Na fase seguinte foram utilizados dois cilindros, cada um com uma das
amostras de odores distintos. Cada uma dessas amostras foi associada com um outro odor,
formando assim um par associado. O odor associado a cada uma das amostras só podia
funcionar como isca se precedido pela amostra inicial. Em seguida, requereu-se dos ratos a
90

formação de associações específicas entre estímulos e a identificação de estímulos


associados nas escolhas subseqüentes a cada amostra. Numa terceira fase, os ratos foram
treinados com dois outros conjuntos de associações entre odores para se poder realizar
testes mais precisos acerca de sua capacidade de formar representações que permitissem a
emergência de relações de simetria e transitividade.
Vinte ratos receberam uma toxina (ácido ibotênico) que destruía seletivamente seus
hipocampos (fórnix) e seus giros denteados. Após a recuperação desses ratos, foram
realizados outros testes. Primeiramente eles foram treinados com um conjunto de dois pares
associados, e em seguida com um segundo conjunto no qual as escolhas anteriores de odores
serviram como amostras e dois novos odores foram associados como itens de escolha. O
tempo gasto para cavar em direção a cada odor escolhido foi medido e a transitividade
medida em termos de preferências por buscar (e cavar) o cilindro escolhido associado
indiretamente com a amostra. Testes de simetria também foram feitos com estes ratos.
Ambos os testes revelaram que os danos em seus hipocampos prejudicaram a capacidade
desses ratos para estabelecer relações de transitividade e de simetria.
Uma possível objeção de ordem metodológica à consideração dos estudos de Bunsey
e Eichembaum como caracterizando as bases neurais da equivalência de estímulos
consistiria em apontar – como já foi constatado em experimentos com humanos adultos –
que a ablação do hipocampo leva à supressão da memória de curto prazo in toto. Neste caso,
ao dano ou ablação não corresponderia apenas a perda das capacidades de simetria e
transitividade como descritas por Bunsey e Eichembaum, mas uma amnésia da memória de
curto prazo que englobaria estas capacidades. Contudo, estudos posteriores mostraram que,
conquanto em humanos e em organismos infra-humanos com danos ou ablação do
hipocampo foi possível ensinar pares de associações de estímulos não foi possível a
formação de relações de simetria e transitividade entre estes, o que reforça a hipótese de que
a danificação do fórnix e do giro denteado dos ratos está diretamente ligada à formação de
estímulos equivalentes.
Cérebro e ambiente – O behaviorismo radical é uma filosofia da psicologia pós-moderna,
cujo escopo e implicações ainda não foram inteiramente avaliados pelos filósofos da mente
contemporâneos. Sua inspiração é essencialmente anticartesiana, não apenas pelo seu
compromisso com o fisicalismo, como também por sua recusa em aceitar dicotomias
91

derivadas do dualismo. As separações entre mente e comportamento, externo e interno


constituem alguns exemplos paradigmáticos dessas dicotomias. Da mesma maneira, a
clássica oposição entre filogênese e ontogênese (nature versus nurture) exemplifica como
cortes metodológicos de implícita derivação cartesiana podem levar à produção de falsas
oposições. O ontogenético torna-se filogenético e vice-versa, dependendo da maneira como
construímos metodologicamente uma noção de ambiente que não oponha perspectivas
sincrônicas e diacrônicas. Da mesma maneira, no cenário cartesiano constrói-se uma
distinção entre interno e externo a partir de uma visão de mundo que concebe os sujeitos
como observadores sem um corpo e sem uma mente que participam do ambiente no qual
eles se situam. Observadores seriam como “um olho desencarnado, olhando objetivamente
para o jogo dos fenômenos” (Varela et alia, 1991, p. 22); excluídos automática e
implicitamente do ambiente que eles projetam. Esta separação, que torna o mental privado e
inescrutável é uma herança cartesiana sub-reptícia cujo sucedâneo é a exclusão implícita do
próprio cérebro e de seus eventos mentais (entendidos como eventos físicos) do ambiente
por ele produzido.
Isolar o cérebro – que aqui consideramos como variável ambiental encoberta - do
meio ambiente ou não considerá-lo como parte das contingências ambientais determinantes
do comportamento constitui, igualmente, uma postura cartesiana. Tipicamente, poderíamos
chamá-la de “materialismo cartesiano”, um erro freqüentemente induzido pela neurociência
que, implicitamente, separa cérebro de comportamento ou isola o cérebro como objeto de
estudo, ignorando o ambiente no qual ele se situa e o comportamento por ele produzido.
Esta herança cartesiana sub-reptícia acaba por opor neurofisiologia à análise
experimental do comportamento, uma pseudo-oposição que resultou no isolamento e na
incomunicabilidade entre behaviorismo radical e neurociência ao se insistir na
dispensabilidade desta para explicar o comportamento. Seguindo a mesma vertente, opõe-se
behaviorismo radical a qualquer tentativa de saber o que ocorre under the skin ou no interior
da “caixa preta”, o que teria reforçado essa pseudo-oposição entre análise do comportamento
e ciência cognitiva.
A recuperação da atualidade do behaviorismo radical, seja como teoria científica
para a explicação da complexidade do comportamento, seja como filosofia da mente pós-
moderna parece requerer cada vez mais sua aproximação com o estudo da neurofisiologia
92

subjacente ao comportamento, o que hoje em dia é proporcionado pela neurociência


cognitiva. Da mesma maneira, o estudo específico das bases neurais da equivalência de
estímulos - se tomada como vertente específica da análise experimental do comportamento -
deve proporcionar melhores condições para explicar aspectos peculiares da natureza deste
fenômeno, como, por exemplo, sua dependência de condições orgânicas (cerebrais) e ou /
ambientais (de treinamento) para a produção de desempenhos emergentes. Mas este mesmo
conflito explicativo, que para alguns constitui o divisor de águas entre o behaviorismo
radical e a teoria da equivalência de estímulos, tende a desaparecer quando consideramos o
cérebro como variável ambiental encoberta.
Conclusão – Englobamos sob a designação de análise do comportamento o behaviorismo
radical e a teoria da equivalência de estímulos desenvolvida por Sidman, sem discutir se esta
última poderia ou não ser considerada uma ampliação da teoria de Skinner. Esta questão
torna-se particularmente polêmica quando tendemos a considerar que a equivalência de
estímulos, no caso dos organismos humanos, forçar-nos-ia a um retorno à utilização de
eventos mentais como causa de eventos físicos (comportamentos), sobretudo quando se
considera processos tidos como superiores. Estaríamos assim re-introduzindo, pela porta dos
fundos, um conceito de cognição que forçaria uma revisão da teoria skinneriana,
especialmente no que diz respeito aos processos usualmente estudados pela psicologia
cognitiva, como linguagem (significado, relações de contexto, formação de conceitos) e
consciência.
Esta interpretação da teoria da equivalência de estímulos pressupõe, contudo, que a
introdução de qualquer conceito mentalista na análise do comportamento significa, per se,
uma volta ao mentalismo e, com este, o dualismo cartesiano. Esta visão torna-se, entretanto,
insustentável, ao mostrarmos a possibilidade de mapeamento cerebral da equivalência de
estímulos em organismos infra-humanos – um mapeamento que podemos esperar ser
estendido para seres humanos num futuro próximo.
Da mesma maneira, uma possível descontinuidade ou até mesmo uma oposição entre
a teoria de Sidman e o behaviorismo radical perde força ao expandirmos a noção de
ambiente incluindo nela o cérebro como variável encoberta. A explicação periferalista, ou
seja, pela observação do comportamento pode ser mantida como opção metodológica inicial
que não exclui sua expansão para aquilo que ocorre under the skin.
93

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