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l  l  , º  l -  177

Absurdo e revolta em Albert Camus*


  **

Resumo l Trata-se de apresentar, em suas linhas gerais, a articulação que a obra de Albert Camus estabelece
entre uma postura de revolta radical contra o absurdo da condição humana e uma reflexão serena sobre o
suicídio e a história. A postura ética da revolta impede que o pensamento abandone-se a si mesmo, caindo
nas tentações do irracional e da glorificação niilista do absurdo. Com isso, apesar de seu questionamento
profundo, a filosofia de Camus termina por reencontrar a solidariedade como valor ético fundamental.
Palavras-chave l revolta, absurdo, história, solidariedade.

Title l Absurd and Revolt in Albert Camus


Abstract l This paper aims at presenting, in its general lines, the articulation between Albert Camus’s
works and a radical revolt position against the absurd of human condition, as well as a serene reflection
on suicide and history. The ethical attitude of revolt does not let thinking to concern itself, but leads it
into temptations of the unreasonable and the nihilist glorification of absurd. Thus, regardless all his deep
questioning, Camus’s philosophy ends up by recovering solidarity as a basic ethic value.
Keywords l revolt, absurd, history, solidarity.

1. às margens da filosofia não pode desvincular-se delas. A imagem não é


apenas ocasião para o pensamento, ela nasce junto
É bem às margens da filosofia que se situa a obra de com ele, sem que um seja anterior ao outro. Já na
Albert Camus. Não porque sua obra costuma ser obra madura, Camus explora esse tema e critica a
posta como “marginal” em relação à filosofia, mas oposição, para ele já tornada antiquada, entre pensa-
pelo modo que ele mesmo a concebia. mento e filosofia. É verdade que cada um deles tem
Seu pensamento está profundamente afetado seu clima particular, mas dizer isso ainda é muito
por sua atividade artística, assim como essa última vago. Essa distinção só seria válida se considerás-
está intimamente ligada a seu pensamento. A obra semos a filosofia meramente em sua expressão
de Camus apresenta enfaticamente o problema da sistemática e o artista fechado em sua obra. Mas isso
expressão literária da reflexão filosófica, problema corresponde, segundo Camus, a um tipo de arte e
caro ao existencialismo e a boa parte da literatura de filosofia já ultrapassados em sua época, e por
francesa da primeira metade do século XX. Não se essa razão
trata apenas de conceber a atividade filosófica
como expressão literária, ou a literatura como filo- “não há nada mais inútil do que essas distinções
sofia, mas de um certo tipo de reflexão que apaga segundo os métodos e os objetos para quem se
a linha divisória entre ambas. Já em 1935, antes de persuade da unidade de propósito do espírito.
iniciar sua produção literária, Camus anota em um Não há fronteiras entre as disciplinas que o
de seus cadernos: “Só pensamos através de imagens. homem propõe para compreender e amar. Elas
Se queres ser filósofo, escreve romances”. Ou seja, se interpenetram, e a mesma angústia as con-
a filosofia, que consiste num debruçar-se sobre a funde” (Camus, 1942, p. 132).
condição humana, deve ser expressa em imagens,
Persuadido da inutilidade de todo princípio de
explicação e convencido da elucidativa mensagem
Data de recebimento: 07/02/2007. da aparência sensível, o romancista filósofo é
Data de aceitação: 30/03/2007.
aquele que escolhe as imagens em lugar do raciocí-
* Palestra proferida no I Minicolóquio "As margens da Filosofia",
realzado na Universidade São judas Tadeu, em setembro de 2005. nio. Dessa forma, Camus irá situar-se entre Balzac,
** Doutorando do Dep. de Filosofia da FFLCH-USP e bolsista da
Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Mal-
Fapesp.
E-mail: flamarioncr@yahoo.com.br. raux, Kafka, isto é, entre aqueles que encarnaram
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um “drama intelectual”. Na visão de Camus, o estrangeiro. Dramática: Calígula, O mal entendido.


romancista filósofo opera uma fusão secreta da Ideológica: O mito de Sísifo. Previra o positivo
experiência sensível com o pensamento que lhe per- também sob três formas. Romanesca: A peste.
mite oferecer uma expressão integral do pensamen- Dramática: Estado de sítio e Os justos. Ideológica:
to em imagens. Nada mais contrário a isso do que O homem revoltado” (citado em Alves, 2001,
um romance de tese, em que o raciocínio predomina p. 26).
sobre as imagens. No bom romance filosófico, ao
contrário do romance de tese, não há tradução dos Segundo esse plano, analisaremos alguns aspec-
conceitos por meio da literatura, não há ilustração tos gerais da obra de Camus e veremos como ele
de uma idéia a ser defendida, mas uma obra que busca, por meio de diversas formas de expressão,
guarda seu valor artístico em si mesmo, sem que isso oferecer um sentido para o sem-sentido da existên-
impeça, entretanto, que se apresente coerente com cia humana. O ponto de partida do autor é o absur-
certas posições filosóficas de seu tempo. Se não há do, que nasce do confronto entre o apelo humano
subordinação das imagens ao conceito, tampouco e o silêncio despropositado do mundo:
há uma precedência das imagens: o que ocorre é um
intercâmbio entre narração e reflexão, e, assim como “Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um
todo romance é filosófico, toda filosofia é criadora: rochedo incessantemente até o cimo de uma
“O filósofo, mesmo se for Kant, é criador. Tem seus montanha, de onde a pedra caía de novo por seu
personagens, seus símbolos e sua ação secreta” próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas
(Camus, 1942, pp. 134-5). De igual modo, continua razões, que não existe punição mais terrível do
Camus, “os jogos romanescos do corpo e das pai- que o trabalho inútil e sem esperança” (Camus,
xões organizam-se um pouco mais segundo uma 1942, p. 161).
visão do mundo” (Camus, 1942, p. 136).
E não será por um mero acaso que a obra filo- Esse mito não é apenas o mito de Sísifo, ele é o
sófica de Camus apresentará uma faceta artístico- mito decisivo. Compreendê-lo é compreender a
literária: não apenas por uma questão de estilo, mas condição humana e formular a questão decisiva: a
por exigência do próprio tema sobre o qual ela se questão do suicídio.
debruça: o absurdo da condição humana. Embora
esse último possa ser explicado no plano das idéias, 2. a compreensão do mal: o
como um momento da história em que a consciên- absurdo existencial
cia européia não pôde mais seguir acreditando em
seus antigos valores, o niilismo não é apenas uma O sentimento do absurdo é, para Camus, algo antes
experiência intelectual, um resultado, que se chega de tudo inexplicável. Se houvesse uma razão, uma
através do raciocínio, mas a experiência funda- causa ou motivo, uma explicação lógica, já não
mental do homem diante de um mundo que a todo seria absurdo. Não se trata de uma noção ou um
momento desemboca no sofrimento e na dor, e na conceito abstrato, mas de uma experiência que sur-
morte, que reduz a nada todas as pretensões infi- preende o homem em sua rotina:
nitas do homem. Para dar conta de tal experiência,
o pensamento abstrato revela-se insuficiente; poe- “As grandes obras nascem, muitas vezes, na
sia, romance, teatro são apenas algumas tentativas esquina de uma rua ou no tamborete de um res-
de encarnar a ausência de sentido. Diante dessa taurante. O mesmo acontece com o absurdo. O
tarefa, ao mesmo tempo artística e filosófica, Camus mundo absurdo tira sua nobreza, mais do que
apresenta o plano que havia traçado para sua obra: qualquer outro, desse nascimento miserável. [...]
Acontece que os cenários desabam. Os gestos de
“Eu tinha um plano preciso quando comecei a levantar, bonde, quatro horas de escritório ou de
minha obra: queria primeiramente exprimir a fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho,
negação. Sob três formas. Romanesca: foi O refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta e
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quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa e demais truques que mascaram o sofrimento. O
estrada sucede-se facilmente a maior parte do problema que ele propõe agora é o de saber se o
tempo. Um dia apenas o ‘porquê’ desponta, e absurdo traz como conseqüência inevitável a neces-
tudo começa com esse cansaço tingido de espan- sidade de escapar dele pela esperança ou pelo sui-
to” (Camus, 1942, p. 27). cídio. Parece que ir para um desses dois caminhos
é seguir a lógica. Mas, por outro lado, não seria
Tal sentimento é inseparável do nascimento da muito conseqüente seguir a lógica num universo
lucidez, que é a consciência da inocência de um privado de razões, ilusões e luzes.
olhar capaz de captar o absurdo. O primeiro “por- Camus quer enfrentar essa questão em toda a
quê” traz à tona o desejo do indivíduo por unidade sua complexidade: quer ver se a recusa da injustiça
e explicação. Mas ele só encontrará o sentido das pode conviver com a afirmação da vida. Trata-se de
coisas em sua ausência, pois o absurdo é o único um raciocínio absurdo, pois considera possível a
absoluto apreensível: “Logo que o pensamento refle- convivência da recusa da injustiça e a afirmação da
te sobre si próprio, o que primeiro descobre é uma vida, que é em si mesma injusta, pois traz consigo
contradição” (Camus, 1942, p. 31). a condenação à morte. A possibilidade de tal racio-
Assim, o homem, em seu apelo à unidade, esbar- cínio é dada pela existência de filósofos que falaram
ra em paredes que o cercam (“Os muros absurdos” sobre a nulidade da vida sem que disso tirassem a
é o título de um dos capítulos de O mito de Sísifo). conseqüência de que deveriam se matar.
Ele busca compreender e nessa busca encontra o Ora, o raciocínio absurdo presume a ausência
incompreensível. A razão, para Camus, é impotente total de esperança, a recusa contínua e a insatisfa-
ante o clamor da alma por explicação total. Se não ção permanente com a condição humana. Sem
se pode compreender esse mundo, não se pode ser essas exigências não há mais absurdo, pois ele “só
totalmente feliz nele. O homem encontra-se enre- tem sentido na medida em que não consentimos
dado em tantos dilemas, tantas dúvidas, que nem nele” (Camus, 1942, p. 50). Em primeiro lugar,
sequer pode afirmar a certeza de ter encontrado o Camus recusa a saída proposta por algumas filo-
absurdo: “Tudo o que se pode dizer é que esse mun- sofias existenciais que, “partindo do absurdo sobre
do não é razoável em si mesmo” (Camus, 1942, p. os escombros da razão, num universo fechado e
37). E mesmo que se demonstrasse logicamente a limitado ao humano, divinizam o que os esmaga
ordem que rege o universo e que suas leis fosse infa- e acham razões para esperar naquilo que os des-
líveis, mesmo assim, esse mundo poderia não ser poja” (Camus, 1942, p. 51). Essa crítica dirige-se
aceito. O homem exige familiaridade, e, enquanto a autores como Chestov, Kierkegaard e Jaspers,
não a encontra, permanece a falta de inteligibilidade. que, de uma forma ou de outra, procuraram alívio
A morte, ainda que explicada pelas leis naturais, numa esperança de essência religiosa, num “salto
permanece para ele como a revelação da inutilidade mortal da razão”. Mas a exigência de lucidez exclui
radical de todos os esforços. Nada mais pode justifi- esse tipo de evasão: “O absurdo, que é o estado
car esse estado de coisas: “Nenhuma moral e nenhum metafísico do homem consciente, não conduz a
esforço são a priori justificáveis ante as sangrentas Deus” (Camus, 1942, p. 60).
matemáticas que regem nossa condição” (Camus, É nesse ponto que Camus encontra Dostoie-
1942, p. 30). vski. Com efeito, foi o autor de Os irmãos Kara-
mázovi que deu forma à consciência dilacerada que
3. a revolta: afirmação da vida e reconhece o absurdo existencial e metafísico do
negação do mal universo.
Não se trata de negar a existência de Deus, o
Diante de tal situação, o que será preciso fazer, que estaria para além dos limites da razão humana,
morrer voluntariamente ou ter esperança, apesar mas de repelir essa inadmissível criação que com-
de tudo? O que Camus exige aqui é um confronto porta o mal em nome de uma harmonia superior.
com a vida que exclui a trapaça, a falsa esperança Diz Ivã Karamázovi:
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“Estou convencido, como uma criança, de que O que nos resta num tal universo? O suicídio
o sofrimento desaparecerá, que a comédia revol- seria a conseqüência mais lógica diante do absurdo.
tante das contradições humanas se esvanecerá Mas ele não faz senão projetar a esperança imedia-
como uma lamentável miragem, como a mani- tamente. É a mesma lógica da superação: com o
festação vil da impotência mesquinha, como um suicídio não deixamos de esperar a solução defi-
átomo do espírito de Euclides; que no fim do nitiva. Ele permanece, portanto, como o extremo
drama, quando aparecer a harmonia eterna, uma limite da aceitação e pelo consentimento que supõe
revelação se produzirá, preciosa a ponto de enter- afasta-se da revolta, que sempre significa um eterno
necer todos os corações, de acalmar todas as in- confronto. Somente a revolta saberia ser coerente
dignações, de resgatar todos os crimes e o sangue com a experiência absurda. Diz Camus:
vertido; de sorte que se poderá não só perdoar,
mas justificar tudo quanto se passou sobre a “O absurdo só morre quando dele nos afasta-
terra. Que tudo isso se realize, seja, mas não o mos. Uma das únicas posições filosóficas coeren-
admito e não quero admiti-lo” (Dostoievski, tes é, dessa forma, a revolta. Ela é um confronto
1971, p. 177, grifos nossos). perpétuo do homem e de sua própria obscuri-
dade. É a exigência de uma impossível transpa-
Mesmo que fosse necessário conceder que os rência. E, a cada segundo, questiona o mundo de
homens são culpados, pois tinham-lhes dado o novo. Assim como o perigo fornece ao homem
paraíso, e eles cobiçaram a liberdade e arrebataram possibilidades insubstituíveis de tomada de cons-
o fogo do céu e por isso mereceriam ter seus corpos ciência, assim a revolta metafísica dilata a cons-
ardendo no inferno em nome de alguma harmonia ciência ao longo da experiência. Ela é a presença
futura, mesmo assim, não se poderia compreender constante do homem a si próprio. Não é aspira-
por que as crianças, que são inocentes, deveriam ção, pois é sem esperança. Esta revolta não passa
sofrer em nome dessa harmonia. Ivã prossegue o da certeza de um destino esmagador, mas sem a
seu raciocínio: resignação que deveria acompanhá-la” (Camus,
1942, pp. 76-7).
“Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu.
Mas de que serve esse castigo, uma vez que as 4. revolta e solidariedade
crianças tiveram também o seu inferno? Aliás,
que vale essa harmonia que comporta um infer- Vemos então que, em Camus, a falta de sentido
no? Quero o perdão, o beijo universal, a supres- não aniquila a paixão pela vida. Já era o dito de Ivã
são do sofrimento. E, se o sofrimento das Karamázovi: “Eu vivo, mesmo a despeito da lógica.
crianças serve para perfazer a soma das dores Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo
necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo
agora que essa verdade não vale tal preço” (Dos- certas pessoas, sem saber por quê” (Dostoievski,
toievski, 1971, p. 183). 1973, p. 173). E a aceitação da vida resulta na esco-
lha de um valor. Dessa forma, quando se opta por
Camus retoma esse argumento em A peste. viver, o niilismo não se completa totalmente, sendo
Diante da agonia de uma criança consumida pela barrado pelo valor ético da preservação da vida1.
dor, o padre Paneloux tenta apaziguar a revolta do O que em O mito de Sísifo era um problema
dr. Rieux: “Isto é revoltante porque excede os individual a questão da possibilidade do suicídio
nossos limites. Mas talvez devamos amar o que como saída do absurdo existencial, em O homem
não podemos entender”. revoltado será um problema coletivo, a questão do
Mas Rieux se agita e responde: “Não, padre. valor da vida do outro, da legitimidade do assas-
Tenho do amor outra idéia. E recusarei até a morte sinato. Agora se trata de mostrar que o assassinato
amar essa criação que tortura as crianças” (Camus, motivado por questões políticas (como um ato de
1973, p. 211). terrorismo justificado, exemplificado na peça Os
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justos), torna-se ilegítimo pela instituição daquele uma natureza humana, como pensavam os gregos,
valor absoluto da vida. A idéia é que se deve en- e contrariamente aos postulados do pensamento
frentar a injustiça e o absurdo sem que a tensão contemporâneo” (camus, 1951, p. 28). E não é
entre o sim e o não seja rompida. somente para si que o revoltado clama um valor.
Na introdução de O homem revoltado, Camus A revolta não nasce somente no oprimido, mas tam-
diz: bém pode surgir pelo espetáculo da opressão da qual
um outro é vítima. Nesse caso, há identificação com
“O sentimento do absurdo, quando dele se outro indivíduo. Portanto, “na revolta, o homem
pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ultrapassa-se em seu semelhante, e, a partir deste
ação, torna o homicídio pelo menos indi-feren- ponto de vista, a solidariedade humana é metafí-
te e, por conseqüência, possível. Se não se acre- sica” (camus, 1951, p. 29). Apesar de sua aparência
dita em nada, se nada possui um sentido e se não negativa, a revolta é profundamente positiva, já
podemos afirmar nenhum valor, tudo se torna que revela aquilo que no homem deve-se sempre
possível e tudo carece de impor-tância. O pró e defender (camus, 1951, p. 23)2. Portanto, o pensa-
o contra deixam de existir; o assassino não tem mento revoltado é constituído por uma tensão
nem deixa de ter razão” (Camus, 1951, p. 15). perpétua entre o sim e o não. Resta saber como
essa consciência revoltada resolve-se na história.
Mas, como vimos, o raciocínio absurdo, depois
de tornar o ato de matar indiferente, termina por 5. metafísica e história
condená-lo em nome do valor da vida, e, para que
aquela confrontação desesperada entre o apelo Em O homem revoltado, Camus descreve o movi-
humano e o silêncio do mundo seja mantida, é ne- mento pelo qual o homem passa da revolta meta-
cessário que a consciência permaneça viva. E uma física à revolta histórica. O revoltado metafísico
vez que este bem é reconhecido como tal, ele é com- declara-se frustrado pela criação. Não se trata, como
partilhado por todos os homens e “não se pode dar já vimos, de um ateu, mas de um blasfemador que
coerência ao assassinato se a refutamos para o sui- opõe o princípio de justiça que está nele ao princí-
cídio” (Camus, 1951, p. 17). Portanto, a partir do pio de injustiça que ele vê operar no mundo. Mas
momento em que se reconhece a impossibilidade a rebelião humana não termina aí. O rebelde reco-
da negação absoluta, e viver seja de que maneira for nhece que aquela justiça, aquela ordem, aquela
é reconhecê-lo, a primeira coisa que não se pode unidade que ele procurava em vão em sua condi-
negar é a vida alheia. ção, pode ser criada por suas próprias mãos. Come-
O absurdo deixa-nos então no impasse. A úni- çará então um esforço desesperado para fundar,
ca evidência que se dá no interior dessa experiên- ao preço do crime, se necessário, o império dos ho-
cia é a revolta. Esta nasce, como vimos, do mens. Essa lógica, segundo Camus, leva a terríveis
espetáculo da desrazão, diante de uma condição conseqüências das quais nós só conhecemos algu-
injusta e incompreensível. Mas ela reivindica a mas. No entanto,
ordem em meio ao caos e a unidade daquilo que
foge e desaparece. O revoltado diz, ao mesmo “essas conseqüências não são devidas à revolta
tempo, sim e não. Ele afirma algo pelo que vale a em si mesma, ou, ao menos, elas só acontecem
pena se revoltar se lhe for usurpado. Se ele prefere na medida em que o revoltado esquece suas
a possibilidade de morte à negação do direito que origens, abandona a dura tensão entre o sim e o
defende, é porque põe este último acima de si pró- não e se deixa levar enfim à negação de tudo, ou
prio. Ele afirma, portanto, a existência de um valor à submissão total” (Camus, 1951, p. 42).
anterior à ação, o qual contradiz as filosofias pura-
mente históricas nas quais o valor só será dado se A unidade do mundo que não foi feita com Deus
for conquistado, no fim da ação. Assim, “a análise será tentada contra ele, e para isso, o homem vai
da revolta conduz pelo menos à suspeita de que há se valer de todos os meios, já que tudo é permitido.
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Agora que Deus está morto, restam os homens, ou dicionalmente, leva-a, pouco a pouco, a mutilar o
seja, a história, que é necessário compreender e homem. Portanto, para Camus,
construir. E para isso o homem utiliza a razão, como
o único poder de conquista puramente huma-no. “escolher a história, e somente ela, é escolher o
E nesse movimento ele acaba acrescentando, aos niilismo contra os ensinamentos da própria
crimes do irracional, os crimes da razão em mar-cha revolta. Os que se precipitaram para a história em
rumo ao império dos homens. nome do irracional, clamando que ela é comple-
Camus não pode aceitar essa lógica. O homem tamente destituída de significado, encontram-se
revoltado prefere enfrentar o absurdo sem tirar dele de novo de braços dados com a servidão e o terror
todas as conseqüências, pois põe acima de tudo o e lançam-se no universo dos campos de concen-
valor ético da preservação da vida: tração. Os que nela se precipitam, pregando a sua
racionalidade absoluta, encontram-se igualmen-
“Sade e os românticos, Karamázovi ou Nietzsche te dominados pela servidão e pelo terror, caindo
só penetraram no mundo da morte porque dese- nesse mesmo universo” (Camus, 1951, p. 302).
jaram a verdadeira vida. E com tanto empenho,
que, por efeito inverso, foi o apelo desesperado Essa recusa em glorificar a história não leva Ca-
à regra, à ordem e à moral que ressoou neste mus à negação pura e simples da historicidade do
universo louco. As suas conclusões só foram nefas- homem3. Ele recusa aceitar a justificação da vio-
tas ou liberticidas a partir do momento em que lência em nome de qualquer princípio que se pre-
eles se desembaraçaram do fardo da revolta, fugi- tenda superior ao valor da vida. O que ele propõe
ram à tensão que ela pressupõe e escolheram o é um limite à ação histórica. Para escapar ao delírio
conforto da tirania ou da servidão” (Camus, histórico, a revolução não poderá prescindir de uma
1951, p. 128). regra moral ou metafísica que a limita. Camus expõe
assim essa regra: “Em lugar de matar e morrer para
Além disso, não podemos esquecer que o absur- produzir o ser que não somos, temos que viver e
do é também a razão lúcida que constata seus li- fazer viver para criar aquilo que somos” (camus,
mites (cf. camus, 1942, p. 70). Portanto, a revolta 1951, p. 309).
exige a permanente consciência da impossibilidade
de reconciliação, de realização da unidade. A cons- Referências bibliográficas
ciência dessa impossibilidade é a causa da revolta e
aquilo que a torna nobre é a exigência da permanên- ALVES, M. Camus. Entre o sim e o não a Nietzsche.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2001.
cia da tensão entre o sim e o não. Quando ela esque-
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. Paris: Gallimard, 1942.
ce essa exigência, o que ela obtém é ignóbil: “O ódio __________. L’homme revolté. Paris: Gallimard, 1951.
do criador pode tornar-se ódio da criação ou amor __________. A peste. Trad. de G. Ramos. Rio de Janeiro:
exclusivo e provocante do que existe. Mas, nos dois Opera Mundi, 1973.
casos, ela resulta no homicídio e perde o direito DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázovi. Trad. de N.
Nunes & O. Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
de ser chamada revolta” (Camus, 1951, p. 130).
POLÉMICA Sartre-Camus. Buenos Aires: Tiempo
Pela mesma razão, Camus também não poderá Americano, s/d.
aceitar a transcendência horizontal da história como WILLIAMS, R. Tragédia moderna. Trad. de B. Bischof. São
fundamento de todos os valores. Isso porque uma Paulo: Cosac & Naify, 2002.
vez que se põe todo o valor de uma ação em sua
realização final, serão aceitos todos os meios para Notas
se chegar até lá. Ou seja, aceitar todo o processo
histórico seria aceitar o mal em nome de um bem 1 Dessa forma, ao ligar o absurdo à afirmação da vida e essa
futuro, a realização da totalidade. Mas o revoltado à revolta, Camus afasta-se tanto de Schopenhauer quanto
não pode aceitar a justificação do mal, e a lógica da de Nietzsche. Ainda que a constatação do absurdo se dê
história, no momento em que ela é aceita incon- num movimento de reconhecimento mútuo muito
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próxima da compaixão em Schopenhauer, ela resulta numa das blasfêmias e das preces. É o que importa” (camus,
celebração da existência, e não em sua supressão niilista. 1973, p. 211).
Mas ela também não desemboca num amor fati nietzschia- 3 Na carta de resposta ao artigo “Albert Camus ou a alma
no, pois nega o mal e o sofrimento. Com efeito, o amor fati revoltada”, de F. Janson, publicado na revista Les Temps
“é amor exaltado, obsessivo, desmedido, porque, junto com Modernes de agosto de 1952, Camus diz: “Meu livro não
a moral, recusa também toda revolta do homem frente à nega a história (negação que estaria desprovida de sentido),
sua condição. Para Camus, esse é um sim que, na verdade, mas apenas critica a atitude que tem como finalidade
não é total, pois nega (metodologicamente) o não através converter a história em um absoluto” (polémica, s/d., pp.
do qual o homem reivindica para si a responsabilidade de 40-1). A polêmica que opôs Sartre a Camus teve como
colocar alguma ordem numa condição que de per se não a ponto de partida exatamente esse artigo em questão. Por
possui” (Alves, 2001, p. 125). meio de seu porta-voz, Sartre criticou a postura de Camus
2 Na mesma passagem de A peste citada acima, o dr. Rieux diante da divulgação dos campos de concentração da
encerra sua discussão com o padre Paneloux dizendo: ditadura stalinista. A divulgação desse fato é o que motiva a
“Trabalhamos juntos por alguma coisa que nos reúne além crítica de Camus ao marxismo em O homem revoltado.
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