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Morte Sem Tabu

A tal da boa morte


POR CAMILA
02/02/15 10:10
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Na discussão sobre o que é uma boa morte, fala-se muito em ortotanásia – deixar que a
morte ocorra de forma natural, sem o uso de aparelhos que mantenham a vida
artificialmente, por exemplo. É a permissão para não se prolongar a vida a qualquer custo,
“assim, quando chegamos numa situação de terminalidade, onde se está no limite da
medicina, podemos fazer cuidados paliativos, não prolongando a vida e procurando oferecer
o maior conforto possível. É um campo que tem se desenvolvendo muito e conta com
critérios para uma morte digna”, disse o médico Dr. Max Grinberg numa entrevistapara esse
blog.

A boa morte foi o tema da semana passada do podcast Mamilos, do siteBrainstorm9, do qual
participei. O assunto surgiu após a divulgação de que a advogada Rosana Chiavassa
conseguiu ter seu testamento vital autorizado pela Justiça, explicitando o desejo pela
ortotanásia, já permitida pelo Código Ético Médico mas não prevista em lei.

A sentença foi dada em junho de 2013, mas a advogada só quis divulgar o caso agora. O
testamento vital, contendo as orientações de quais procedimentos a pessoa deseja passar e
quais não aceitará, pode ser registrado em cartório e num banco de dados específico, como o
organizado por Luciana Dadalto, articuladora do tema no Brasil. Veja uma entrevista com
ela no post “não é uma questão de morrer cedo ou tarde mas de morrer bem ou mal”. Ele
deve ser feito enquanto a pessoa tenha plena capacidade de juízo crítico, o que abre espaço
para polêmicas. Há outras questões, como o fato dos tratamentos existentes evoluírem
rápido e o testamento vital poder estar desatualizado no momento de sua efetivação.

A discussão do podcast teve a presença da médica especializada em cuidados paliativos


Milena Reis, a pesquisadora Jussara Freire e as organizadoras do canal Juliana Wallauer e
Cris Bartis. Fala-se de testamento vital, cuidados paliativos, a boa morte, morte digna,
autonomia e como lidar com os desafios de ter um parente em processo de final de vida. Há
bons links disponíveis para consulta no site do Mamilos.

Dra. Milena questiona o papel da tecnologia no lidar com a morte. Até onde ela pode ir? Ela
faz um paralelo entre parto humanizado e a morte natural, na medida em que se discutimos
um, poderíamos muito bem discutir o outro. A morte saiu de dentro das casas e está cada
vez mais isolada no hospital, um ambiente solitário por essência. O isolamento é até
necessário para garantir a esterilização do espaço. “Dizem que higienizamos o processo do
morrer”, Jussara fala.

Dra. Milena assina de 8 a 10 atestados de óbito por semana. Perguntei se ela pensa em boa
ou má morte ao ver alguém morrendo. Ela respondeu que: “a gente morre como a gente
viveu. Não dá para generalizar, mas se você teve amigos, eles vão estar lá, se você teve
família por perto, eles também estarão lá. Estou falando de uma condição emocional, porque
ela é determinante para o paciente morrer bem. Podemos ter muitos remédios e a sedação
para deixar o paciente mais confortável, mas nada adianta enquanto não chegar o filho que
aquele paciente estava esperando”.

Dra. Milena dá a entender que uma boa morte é aquela que ocorre em casa, ao lado de quem
se ama. Mas ela destaca que morrer em casa não é algo fácil de ser organizado, porque
muitas famílias não têm estrutura emocional para cuidar de um doente terminal, ou mesmo
física, como a cadeira de rodas não passar pela porta de entrada. O alto custo de um “home
care” também pode impossibilitar o processo.

O podcast também menciona o quanto algumas terminologias podem gerar preconceitos,


como testamento vital, uma tradução errada feito da palavra em inglês, living will (will
pode ser entendido como vontade e testamento. Nesse caso, a tradução correta seria
“vontade em vida”). E cuidados paliativos é normalmente associado de forma negativa
a paliativo, como um remendo, uma gambiarra, e assim, algo de menor valor. Há um grupo
de estudiosos que defende a mudança do nome. Alguns hospitais usam a
terminologia controle de sintomas. Para Dra. Milena, o nome é o menos importante. O
grande preconceito disso é que se fala em cuidados paliativos quando a pessoa está prestes a
morrer. Mas na verdade ele começa muito antes, logo no diagnóstico da doença e todo
médico deveria ter formação em cuidados paliativos. “Toda doença que tem risco de morte é
passível de cuidado paliativo”, Dra Milena diz, “ela envolve controle de sintomas e vai além
da dor física. É uma abordagem psicossocial e também espiritual, respeitando-se a
autonomia da pessoa”.

“Não sabemos nascer, também não sabemos morrer”, Cris Bartis diz. Ela fala sobre o
conceito da palavra dignidade, ao lembrar de casos em que o agravamento da doença
desfigurou conhecidos e os impediu de conviver, trazendo o questionamento: isso é vida?

Juliana Wallauer fala sobre o quanto estamos dispostos a lutar pela vida e quem vai decidir
que coisas podemos nos submeter numa tentativa desesperada de sobreviver, quando o
paciente não tem o direito de decidir o que é, para ele, uma boa morte.

A pauta é complexa e cheia de desdobramentos. Uma imagem que me veio foi a famosa cena
da morte de Don Corleone, no filme “O Poderoso Chefão” – ele tem um ataque cardíaco
fulminante, enquanto brinca com seu neto na horta de casa. Suas últimas palavras, que
aparecem no livro mas não no filme, são: “A vida é tão bonita”. Quem sabe foi esse o intento
do autor, oferecer uma boa morte a um dos personagens que se tornaria um dos mais
marcantes da história do cinema.
Mitos sobre o suicídio e como preveni-lo
POR CAMILA
29/01/15 08:13

Os dados confirmam: as taxas de suicídio têm crescido no Brasil e no mundo e aparentam


seguir essa tendência. Nosso país já é o oitavo no ranking, em números absolutos.

O porquê dessa realidade não é uma discussão fácil. No post “A era dos adictos”, há um
caminho para reflexão. Mas com certeza é possível traçar inúmeras outros.

Esse tema vem ganhando espaço e no final do ano passado tivemos a publicação de
importantes estudos e cartilhas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em
seu site ser possível prevenir o suicídio e disponibiliza material para consulta
nesse link. Entre as “mensagens-chave” do estudo, está a restrição ao acesso a objetos ou
insumos que possam ser usados para tirar a vida, como pesticidas, armas de fogos e certos
medicamentos, e a identificação precoce de distúrbios mentais e do abuso prejudicial de
álcool e outras drogas.

A cartilha da OMS “Preventing Suicide” (Prevenindo o suicídio), indica algunsmitos sobre


o suicídio, listados abaixo em tradução livre.

 Mito: “Pessoas que falam sobre suicídio não estão falando sério”. Fato:
pessoas que falam a respeito estão buscando ajuda e suporte. Um número significativo
daqueles que contemplam o suicídio estão experienciando ansiedade, depressão e falta de
esperança e podem sentir que não há outra alternativa.

 Mito: “A maior parte dos suicídios acontece sem aviso prévio”. Fato: a
maioria dos suicídios ocorre precedidos de sinais de alertas, sejam verbais ou
comportamentais. Claro que alguns ocorrem sem avisos, mas é importante entender quais
são os sinais e procurar por eles, como: ter tido uma tentativa prévia de suicídio, distúrbios
mentais, perda financeira ou de emprego, dor crônica ou doença, falta de esperança
(normalmente acompanhada de distúrbios mentais ou tentativas anteriores de suicídio),
histórico familiar, abuso de álcool e outras substâncias, genética e fatores biológicos (como
baixos níveis de serotonina, que são associados a pacientes com distúrbios de humor,
esquizofrenia e distúrbios de personalidade).

 Mito: “Alguém que é suicida está determinado a morrer”: Fato: pessoas


com tendências suicidas são ambivalentes sobre viver ou morrer e o ato pode ocorrer por
impulso. Acesso a apoio emocional na hora certa pode ser determinante para evitá-lo.

 Mito: “Uma vez suicida, ele ou ela será para sempre um suicida em
potencial”. Fato: muitas vezes a vontade de se matar é temporária e especifica a uma
situação. Pensamentos suicidas podem retornar, mas não são permanentes.
 Mito: “Só pessoas com distúrbios mentais são suicidas”. Fato: o
comportamento suicida indica uma profunda infelicidade, mas não é necessariamente fruto
de um distúrbio mental. Muitas pessoas que vivem com doenças mentais não são afetadas
por comportamentos suicidas e nem todos que tiram sua própria vida tinham esses tipos de
distúrbios.

 Mito: “Falar sobre suicídio é uma ideia ruim e pode ser interpretado como
encorajamento”. Fato: devido ao tabu em torno do tema, muitas pessoas que estão
contemplando o suicídio não sabem com quem falar a respeito. Ao invés de encorajar o
comportamento, falar abertamente sobre isso pode dar outras opções ou um tempo para
repensarem sua decisão, evitando o ato.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), junto ao Conselho Federal de


Medicina, recentemente lançou a cartilha “Suicídio: informando para prevenir”. Em
seu site, mencionam que 17% da população brasileira já pensou, em algum momento, em
cometer o suicídio. A cartilha fala sobre como “abordar um paciente, explica de que forma as
doenças mentais podem estar relacionadas ao suicídio, os fatores psicossociais e dados
atualizados sobre o tema”.

Acreditam que desmistificar o suicídio seja fundamental para quebrar o preconceito que
cerca o tema e ajudar a preveni-lo. Como a OMS, também listam alguns mitos. Um mito não
mencionado pela OMS é o de que:

 - Mito: “o suicídio é uma decisão individual, já que cada um tem pleno


direito a exercitar o seu livre arbítrio”. Fato: “suicidas estão passando quase
invariavelmente por uma doença mental que altera, de forma radical, a sua percepção de
realidade e interfere em seu livre arbítrio. O tratamento eficaz da doença mental é o pilar
mais importante de prevenção do suicídio. Após o tratamento da doença mental, o desejo de
se matar desaparece”.

A cartilha da ABP indica que para uma prevenção, é necessário procurar fatores de risco,
como: eventos adversos na infância e na adolescência, como abuso físico e sexual, histórico
familiar e genética. A cartilha diz que “estudos de genética epidemiológica mostram que há
componentes genéticos, assim como ambientais envolvidos”. Por exemplo: “O risco de
suicídio aumenta entre aqueles que foram casados com alguém que se suicidou”.

A cartilha sugere a psiquiatras como abordar o paciente com desejo suicida e como
identificar doenças mentais, como depressão, transtorno bipolar, transtorno relacionado ao
uso de álcool e outras substâncias, esquizofrenia e transtorno de personalidade. Também
ajuda a avaliar o risco real da pessoa cometer o suicídio.

A publicação americana de neurociência, Nature, lançou o artigo “A base molecular do


cérebro suicida” (em tradução livre) analisando que há mudanças no sistema de
neurotransmissores, mudanças inflamatórias e disfunção das células de glia no cérebro de
quem está prestes a se matar.
O artigo da Nature defende que alguns fatores, como predisposição familiar, assim como
adversidades no início da vida, aumentam o risco de suicídio na medida em que alteram as
respostas do cérebro ao stress e a outros processos através de mudanças epigenéticas nos
genes e na regulação da emoção e do comportamento.

A “American Foundation for Suicide Prevention” (uma organização americana


voltada a prevenção do suicídio) diz que 90% das pessoas que cometem suicídio tem algum
distúrbio mental. O mais comum é a depressão grave e outros distúrbios de humor, que
podem levar ao suicídio se não forem diagnosticados corretamente ou recebido tratamento
adequado. A organização aponta certas condições que podem ser consideradas riscos em
potencial e divulga estudos comprovando análises post-mortem indicando diferenças
biológicas no cérebro de quem cometeu suicídio.

Segundo essa organização, os sinais de alerta são: A pessoa falar sobre se matar, dizer não
ter mais razão para viver, ou achar que é um fardo para os outros e falar sobre uma sensação
de se sentir preso e sentir uma dor insuportável. Deve-se prestar atenção em mudanças
bruscas de comportamento, especialmente relacionado a algum evento dolorido como
perdas, notar se a pessoa aumentou o uso de álcool e drogas e passou a agir
imprudentemente. Um sinal de alerta importante é a pessoa se isolar de familiares e amigos.

Na seção das perguntas mais frequentes do site da instituição, indicam que a melhor forma
de agir quando vemos alguém considerando o ato, não é tentar convencê-lo a sair da
situação com frases como: “você tem tanto para viver” ou “pensa em como isso vai machucar
sua família”, mas sim mostrar empatia: “imagino como deve ser difícil para você estar se
sentindo assim” e se colocar a disposição para ouvir.

“Desisti porque fui escutado”

Em palestra no TED “A Ponte entre o Suicídio e a Vida” um guarda rodoviário que


patrulhava a ponte do Rio São Francisco, a Golden Gate Bridge, local reconhecido como a
maior taxa de suicídios nos Estados Unidos, conta ter salvo um homem da beira da ponte
que alegou desistir de pular porque foi escutado. O guarda coloca esse item como
fundamental para prevenir uma pessoa de se matar. Segue uma fala interessante da sua
palestra:

“Escute para entender. Não discuta, não culpe, ou diga à pessoa que sabe como ela se sente,
porque você provavelmente não sabe. Apenas por estar lá, você talvez seja exatamente o
ponto crucial que ela precisa. Se vocês acham que alguém está pensando em suicídio, não
tenham medo de confrontá-lo e fazer a pergunta. Um jeito de lhes fazer a pergunta é assim:
“Outros, em circunstâncias parecidas, pensaram em acabar com a própria vida; você já teve
esses pensamentos?” Confrontar a pessoa cara a cara pode salvar sua vida e ser o ponto da
virada para eles. Alguns outros sinais para observar: Falta de esperança, acreditar que as
coisas são terríveis e que nunca vão melhorar; desamparo, crer que não há nada que possa
ser feito a respeito disso; afastamento social recente; e perda de interesse na vida” (trecho
copiado da transcrição em português da palestra, disponível nesse link).
Artigo recente da uol, sobre os suicídios no estádio Morenão no Mato Grosso do Sul,
também traz essa questão da importância de “escutar”, com o depoimento de um voluntário
do CVV. Veja a matéria completa aqui.

“Depressão é um segredo de família que todo mundo tem”

Em palestra no TED, o escritor americano Andrew Solomon declarou já ter pensado em


suicídio durante uma crise de depressão crônica. Só não foi adiante porque conseguiu um
bom tratamento a tempo. Ele toca numa questão importante, a de que os tratamentos são
caros e não acessíveis a todos. Em entrevistas com pessoas, na busca para entender o porquê
alguns parecem ser mais resistentes à depressão do que outros, Solomon descobriu que as
que conseguiram lidar com isso foram as que encararam a situação, falando a respeito e
compartilhando. “Quando tentam escondê-la ou negá-la, ela aumenta”, ele diz. Veja a
palestra aqui.

O escritor descreve o estado depressivo como estar incapaz de funcionar no mundo e


relembra uma frase escutada em uma das entrevistas que fez: “É uma maneira mais lenta de
estar morto”. Ele diz que “na depressão, você não vê o mundo através de um véu, você acha
que agora o véu saiu e você está vendo o mundo como ele realmente é. O deprimido acha
que está vendo a realidade, como as coisas são de verdade. Mas a verdade mente. Essa é a
grande questão”. Por fim, Solomon declara que o oposto de depressão não é felicidade, mas
sim a vitalidade.

A psicóloga Flávia Penteado acredita que o suicida que sofre de depressão comete o ato na
descida até o fundo do poço ou quando começa a sair dele. Porque no estado depressivo, a
pessoa não quer sair da cama, comer, não quer agir. Mas quando ela começa a sair desse
estado, há o perigo maior, porque já existe força para se matar. Por isso alguns estudos
sugerem como sinal de alerta a melhora muito brusca do paciente. Ela acompanhou o caso
da mulher de um paciente seu, morto num acidente, que se recusou a fazer um tratamento
psiquiátrico para lidar com o luto e optou por se auto-medicar, misturando remédios e
dosagens aleatórias. Um dia ela escreveu no Facebook “fuiiiii” e se matou. Flavia acredita
que ela não queria mesmo morrer, o que ela queria era esquecer.
Pintura de Salvador Dali “Sleep” (1937)

É preciso imaginar Sísifo feliz


POR CAMILA
23/01/15 09:20

O post anterior trouxe comentários de leitores relatando já terem pensado em suicídio, mas
reconhecem que nunca chegariam às últimas consequências. Isso me trouxe a lembrança do
ensaio filosófico “O Mito de Sísifo” (ed. Livros do Brasil, 2005) de Albert Camus (1913-
1960).

Após desafiar os deuses, Sísifo foi condenado a empurrar uma rocha montanha acima e ao
chegar no topo, vê-la rolar morro abaixo para então descer e tornar a levá-la até o topo
novamente, preso por toda a eternidade num trabalho inútil e sem esperança. Camus viu
nesse mito uma boa metáfora para expor seus pensamentos sobre o que ele chama de
“absurdos” que nascem da relação do homem com o mundo. Em “O Mito de Sísifo”, ele
relaciona o absurdo ao suicídio, na medida em que o suicídio seria uma possível solução
para a conscientização do absurdo.
O filósofo não acredita que o suicídio seja uma saída, mas vê essa reflexão como necessária:
“só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a
pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. Esse julgamento partiria
da uma pergunta complexa: qual é o sentido da vida?

Sísifo está fadado a um trabalho inútil e sem sentido. Seus esforços de levar a rocha são
rapidamente neutralizados pelo retorno à estaca zero. Na descida, Sísifo pensa a respeito de
suas ações e toma consciência de que são desprovidas de sentido, o que ele chama de
“absurdo”. Camus diz que o mito só é trágico devido a essa consciência de Sísifo. Se não
refletisse a respeito, não haveria tragédia.

Quando nos damos conta do absurdo da vida, da falta de sentido em nossas ações, há espaço
para a reflexão sobre se ela vale a pena ser vivida ou não.

Ele diz: “no instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo regressando para
a sua rocha, contempla essa sequência de ações desvinculadas que se tornou seu destino,
criado por ele, unido pelo olhar de sua memória (…)”.

Camus acredita que se matar é uma espécie de confissão: “confessar que fomos superados
pela vida ou que não a entendemos”, ou “confessar que isto não vale a pena. Viver,
naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por
muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se
reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de
qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a
inutilidade do sofrimento”.

Mas há otimismo nesse filósofo. Ele não vê o suicídio como uma saída, ao contrário, apenas
o encara como uma reflexão necessária (“o perigo é não refletir a respeito”) e a partir dela,
voltarmos a Sísifo com outros olhos. Ao invés de vermos esse homem preso num trabalho
sem sentido e inútil, é necessário mudar o ponto de vista e contemplá-lo como um homem
interagindo com um universo particular e rico. A montanha é sua casa, “cada grão dessa
pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo”.

Camus conclui que não há sentido no trabalho, assim como não há sentido em viver, mas
amamos a vida mesmo assim. “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o
coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Sísifo, de Tiziano Vecellio, 1548-1549. https://www.museodelprado.es. Domínio público.

A era dos adictos


POR CAMILA
21/01/15 08:28

Vamos falar sobre o suicídio.

O tema é considerado tabu e uma questão alarmante. Todos os anos, cerca de 12 mil pessoas
se suicidam no Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), e 800 mil no
mundo. A taxa de suicídio cresceu 62,5% nos últimos trinta anos, aumentando o ritmo a
partir da virada do século, segundo o Mapa da Violência 2014, organizado por Julio Jacobo
Waiselfisz. De acordo com esse estudo, há pouca discussão sobre o tema e haveria um tabu
na mídia de divulgar essas questões para evitar o efeito de incentivar suicídios por imitação
ou indução, chamado de Efeito Werther. A produção acadêmica também não estaria
acompanhando essa realidade. Acesse o mapa neste link.

A OMS divulgou um relatório em 2014, colocando o crescimento das taxas de suicídio como
um grave problema mundial de saúde pública. É a segunda causa de morte entre jovens de
15 a 29 anos e há indícios de que para cada adulto que se suicida, 20 tentaram cometer o ato.
A instituição afirma que os suicídios são evitáveis e elaborou uma cartilha sobre como
preveni-lo. Disponível aqui. Ela é destinada a profissionais de saúde, mas acredito poder ser
útil para o público em geral. Segundo reportagem da Folha sobre esse relatório, o Brasil é
o oitavo país no ranking mundial de suicídios.

Tenho escutado cada vez mais notícias de que um amigo de infância, colega de classe ou
mesmo amigo próximo, se suicidou. E acredito que não sou a única. Há várias questões
fundamentais a serem discutidas do porquê do aumento das taxas de suicídio e o que fazer a
respeito. A entrevista abaixo traz o ponto de vista de Thiago Sarkis, psicanalista de Belo
Horizonte, membro e supervisor da CAPA*.

Ele faz uma análise dos tempos atuais, refletindo sobre o que chama de “A era dos adictos”.
O cenário traçado me parece um bom ponto de partida para a discussão que pretendo trazer
cada vez mais a esse fórum. Já abordei em outros posts as campanhas “Precisamos falar
sobre o aborto” e a “Vamos falar sobre o luto”. Agora inicio essa: “Vamos falar sobre o
suicídio”, seja pensando sobre características patológicas da nossa sociedade ou mesmo em
termos práticos.

Dizem que não se fala em suicídio na mídia por causa do tal Efeito Werther, que se baseia na
ideia de que explorar o tema pode incentivar potenciais suicidas a cometerem o ato, ao
lerem notícias de pessoas famosas que se mataram, por exemplo. De forma mais abrangente,
o efeito fala sobre como comportamentos humanos podem ser influenciados por ideias, e
tem esse nome herdado de um romance de Goethe – “Os Sofrimentos do jovem Werther”
(1774), em que o protagonista se suicida por causa de um amor frustrado. Utilizar o medo
desse efeito como justificava para ficarmos calados não é válido e talvez uma das causas para
as taxas aumentarem ainda mais. Claro que não é benéfico falar em suicídio de forma
sensacionalista, mas fora isso, é fundamental discutirmos esse tema e suas ramificações.

Segue, abaixo, a entrevista.

O que seria a era dos adictos?

Vivemos numa era alarmante quanto ao abuso, à compulsão, ao vício. Não só em relação a
drogas (remédios e drogas ilícitas), mas também a vícios de todo tipo: viciados em celular,
internet, rede social, futebol, televisão, bebida. Tudo é vício e tudo é vivido à
exaustão. Compramos demais, comemos demais, bebemos demais, jogamos demais,
teclamos demais, produzimos demais, trabalhamos demais, fazemos exercícios físicos
demais, contudo, falamos de menos sobre o que eu chamo de “território do negativo” –
fragilidade, tristeza, falta de sentido, dificuldades, desordem, morte, falhas, diacronia,
estranheza, desencontros, adoecimentos, suicídio etc. Diferenças então? Nem pensar.
Jamais tratamos disso.

Esse cenário pode estar relacionado ao aumento das taxas de suicídio?

Essa situação da adição não necessariamente leva ao suicídio ou teria a ver com o aumento
das taxas de suicídio, mas os dois temas tocam a mesma questão, que é a de como lidamos
com o vazio na contemporaneidade. Procuramos sempre reafirmar nossa identidade, ou
aquilo que está no que eu chamo de “território do positivo”. Fazemos com esse território,
que inclui, dentre outras coisas, identidade, potência, capacidade, força, saúde, vitalidade,
resistência, beleza, sincronia, sentido, ordem, ideal etc., o oposto do que fazemos com o
“território do negativo”. Enquanto fugimos e evitamos a todo custo qualquer contato com o
registro da falta, vamos sedentos em busca de tudo – e o tempo todo – que tange ao registro
do “positivo”. É importante ressaltar que, quando falo de positivo e negativo não associo
qualquer ideia de bom ao positivo e mau ao negativo, nem qualquer coisa similar. O
território do negativo apenas marca uma subtração no Eu e o do positivo marca um
acréscimo, um “a mais”.

Lidar com o registro da falta não é de fato fácil, mas quanto menos o fazemos, mais
dificuldade temos ao nos depararmos com isso. Lembro-me de assistir a jogos de futebol
com as torcidas misturadas. Hoje em dia a coisa se agravou de tal forma que decidiram
separar as torcidas, inclusive impedir que ambas estejam nos mesmos jogos, porque o lidar
com o outro, com esse registro da alteridade radical, com aquilo que não confirma minha
identidade mas sim marca uma diferença, traz dúvidas insuportáveis: o que sou eu? Quem
sou eu? Sou de fato o que penso que sou? Então, procura-se eliminar a dúvida.

Quais aspectos podem ser vistos como determinantes em casos de suicídio e


como isso se correlacionaria com o que estamos falando?

Algo que me parece claro no caso do sujeito que comete suicídio é certo raciocínio peculiar
que vai se desdobrando desta maneira: “Não há sentido. Tudo dá em nada. Tudo é nada.
Nada é tudo. Eu sou nada. Nada vai mudar. Não há mais nada a fazer”. O sujeito que comete
um suicídio, entretanto, não é necessariamente um niilista. O niilista vê a falta de sentido
em toda e cada parte ou ao fundo de tudo. O suicida não vê nada além do nada. Ele habita
exclusivamente o território do negativo e crê que este território é tudo o que há.

Outro aspecto importante: talvez todos nós já passamos por um ou vários destes
pensamentos: “tudo dá em nada”, “não há nada que eu faça que adiante”, “tudo é nada”, “eu
sou nada”, “eu não sirvo para nada”, “tudo dá errado comigo”. Enfim, estes e similares. O
suicida não é alguém que me parece simplesmente passar por estes pensamentos. Ele é
alguém que se afunda nestes pensamentos, que não consegue se desvencilhar minimamente
de quaisquer destas perspectivas e que, ao invés de se psicanalisar e se tratar a fim de
questionar todas estas certezas, encerra seu suplício indo ao encontro da única coisa que
enxerga: o nada.
É absolutamente equivocado e simplista dizer que o pensamento da pessoa que comete um
suicídio é um “raciocínio estúpido” ou que, para mudar, basta que a pessoa “pense
diferente”. Não é uma questão consciente. O raciocínio descrito é resultado de uma série de
fatores que incluem agressividade, ansiedade, sensações de depreciação, exclusão,
inutilidade, inoperância, impotência, fracasso em relação às próprias expectativas ou de
outros, frustrações, sérios conflitos em relações interpessoais (principalmente com aqueles
que operam nas funções paterna e materna) etc. A quantidade de questões singulares que
acharemos nestas situações é imensa também. Não há como dizer: “é assim para todos”. No
máximo: “generalizando, é assim”. Só ouvindo a história de cada um para entender.

O que mais podemos ver de comum em pessoas que pensam ou chegam a


efetivar um suicídio?

Outro ponto comum é ver nas pessoas que falam seriamente em suicídio a aplicação em si de
uma agressividade que, na verdade, se desviou: inconscientemente se direciona a outro,
porém, algo impede que essa agressividade se realize em relação a este outro, e ela
“estaciona” na pessoa ou, em termos freudianos, “retorna” na própria pessoa.

Em outros casos, é possível observar a pessoa agredindo o que há deste outro em si. Ao se
ver repetir um ato que repudia e que é usual de algum outro que ele não quer ser e com
quem não quer se parecer minimamente (em outras palavras, ao se deparar com uma
identificação indesejada), o sujeito pode se agredir de múltiplas formas, dentre elas, o
próprio suicídio.

Há um abuso do uso de remédios como anti-depressivos e ansiolíticos?

Em determinadas situações, sim, há abuso. O remédio deixa de ser medicamento e passa a


ser droga destinada a perpetuar o estado do paciente, ao invés de ajudá-lo. Por exemplo, já
escutei analisandos dizendo que não podem parar de tomar o remédio porque não podem
falhar, não podem parar de forma alguma em qualquer âmbito: não podem, nem por um
instante, vacilar, parar de trabalhar, parar de ser um bom marido, um bom pai, lidar com os
próprios limites, pensar em questões pessoais.

O remédio tem o seu lugar e vem auxiliando para que, mesmo em condições psicológicas
desfavoráveis, a pessoa possa seguir a vida. Alguns cenários psicopatológicos são seriamente
impossibilitantes e nestes o remédio atua muito bem. Mas o uso do remédio às vezes é que é
questionável, pois entra no lugar de uma droga. Ao invés de auxiliar o paciente a lidar com
suas questões, o remédio comumente tem surgido como aquilo que se alia ao excesso do
paciente e “o ajuda” a não ter que lidar minimamente com quaisquer de suas questões. Algo
similar a um jovem que toma uma pílula na boate para poder se manter de pé até o
amanhecer. Ou o funcionário que precisa trabalhar a noite inteira e apela a todas as
substâncias possíveis para não dormir, “não parar”, “não falhar”. Todos esses cenários
partem do princípio da necessidade de se produzir esse “a mais” eterno. É sempre um mais,
a coisa não acaba. A pessoa, sim, “se acaba”, mas não sei se no melhor sentido da expressão.

Você vê alguma pressão para sermos felizes?


Uma marca cruel da atualidade é a exigência de felicidade, assim como a necessidade de
você transmitir essa felicidade a seus semelhantes e vivê-la constantemente,
ininterruptamente. Isso não é felicidade. Isso é mania. Toca mais no pathos do que na
felicidade real, que seria mais próxima de coisas momentâneas, do desfrutar, contemplar do
que do “se acabar”, ou viver em um interminável excesso. A felicidade não existe
initerruptamente. A tristeza tem o seu lugar e é fundamental que ela tenha o seu lugar. Não
podemos excluí-la. E ai tocamos novamente no território do negativo: a tristeza, a diferença,
a falha, a incapacidade, a dificuldade, a morte, o adoecimento. Não falamos sobre isso,
excluímos esses temas das nossas conversas e agimos como tudo isso sequer existisse.

Mas não é possível tamponar essas coisas porque são elas que se afirmam para além de
nossa vontade. Podemos fazer o esforço que for, por meio de drogas, de Instagram, de
inúmeros selfies, aquisições e compras de todo tipo, sorrisos amarelos de suposta alegria,
horas e horas conectados à Internet, mil “amigos” no Facebook que sequer nos conhecem e
qualquer outra coisa que nos ajude a ser vistos da forma desejada ou idealizada por nossos
semelhantes, mas não adianta. Esse projeto de “eterno a mais” é fracassado desde seu
princípio, por tentar afirmar aquilo que – eventualmente – se conquista, e evitar a todo
custo aquilo que inevitavelmente se impõe.

Como lidar com isso?

É uma resposta difícil e não penso que falemos de uma cura aqui. Falamos mais de um
tratamento, de algum apaziguamento possível. Talvez um ponto crucial seja conseguir
encontrar um sentido próprio para a vida; conseguirmos nos esquivar um pouco dos
sentidos ofertados e, assim, tentar encontrar um sentido mais particular, que tenha
ressonância com nosso desejo, não com a demanda externa.

Essa tentativa eterna de afirmar um positivo faz justamente com que se caia no vazio – em
relação ao próprio desejo principalmente. E se não sabemos lidar com isso, porque evitamos
qualquer contato com este ponto no nosso dia a dia, acabamos reagindo aos encontros com o
“território do negativo” com quadros de ansiedade, pânico, depressão, adição, e até mesmo,
o suicídio.

Porque essa questão da adição, como você coloca, está impactando essa era
especificamente?

Além da maneira como lidamos com a falta, nossa era tem uma maneira muito particular de
lidar com os objetos. É uma via intensa, fusional, sem limite. O que marca a experiência da
adição no nosso tempo pode estar conectado a essa experiência ininterrupta com nossos
objetos de investimento. Estamos em absoluto curto-circuito com as centenas de objetos
com os quais nos relacionamos.

Acho que isso que estou falando é caricaturalmente representado em um episódio recente
dos humoristas do “Porta dos Fundos”, chamado “Sem Bateria”, onde um casal está num
restaurante e o homem fica sem bateria do celular. Assim, ele é obrigado a conversar com
sua esposa e vê que não sabia nada da vida dela, nem de sua própria de certa forma. Esse
sujeito é um emblema da adição da nossa sociedade, da vivência funcional com nossos
objetos e de como o “vazio” se impõe para além de todos os nossos infrutíferos esforços do
contrário. Estamos em curto-circuito.

Qual é o futuro dessa realidade?

O futuro dessa realidade já é um pouco do que vemos na atualidade. Se é um curto-circuito,


em algum momento vamos pifar, entrar em colapso. Mas não é uma situação apocalíptica,
porque temos nossos meios e temos outras habilidades. Essa questão de nossas relações de
objeto tem uma marca muito forte no homem contemporâneo e nos causa danos seríssimos,
mas não somos só isso.

Há solução?

Há apaziguamentos, possibilidades de melhora. Algum excesso, porém, estará sempre ali.


Ou melhor, aqui (em nós). E cada analisando encontra a sua forma de melhorar a partir da
análise. O certo é que uma forma de amenizar esse processo agudo é passar a discutir essas
questões, falar dos sentimentos, falar do que dói, abrir as portas a esse território que tão
freneticamente evitamos.

* CAPA: China American Psychoanalytic Alliance

Lassedesignen – Fotolia
A última escolha de Marco
POR CAMILA
16/01/15 11:31

Marco Archer Moreira foi condenado à morte na Indonésia por tráfico de drogas. O instrutor
de voo tentou entrar no país com 13 quilos de cocaína escondidos no tubo de uma asa delta,
que foram detectados pelo raio-x. Após constantes rejeições a pedidos de clemência ou
permissão para cumprir pena no Brasil, o governo do país anunciou sua execução. Ela deve
ocorrer por fuzilamento, junto com mais cinco pessoas, nesse domingo.

Marco tomou uma decisão errada, lá em 2003, quando resolveu cometer um crime num país
onde todos sabem ser punido com a morte. Durante sua vida deve ter passado por infinitas
decisões certas, erradas, mais ou menos, ou mesmo nada, sem significância. Na cadeia
escutou muitos nãos e está sentindo na pele o que é a não-opção.

Ironicamente, ele poderá fazer uma última escolha: morrer deitado, sentado ou em pé. De
qualquer forma terá seus olhos cobertos (por uma venda ou capuz). Por que dar a
possibilidade dessa última escolha aos condenados? Fiquei refletindo sobre esse mistério e
fui atrás de uma psicóloga.

Lúcia, 65, disse não conhecer nenhum estudo sobre isso. Mas por ser espiritualista, acredita
ser mais confortável estar deitado, para facilitar o desprendimento do espírito. Ela acha que
a sensação de cair deve tornar o impacto maior. “Em casos de morte violenta, a energia vital,
que mantém o corpo grudado no espírito, não se dissolve imediatamente com um tiro. Ela
vai se desfazendo lentamente até cortar o cordão. Essa morte súbita é dolorida. Na morte
natural, esse cordão é rompido imediatamente. Por isso, estar deitado amenizaria o impacto,
já que não há a queda brusca, nem a força da gravidade”, ela disse.

Essa resposta não me satisfez, mas não encontrei um conhecimento científico a respeito e
fiquei grudada nesse dilema. Perguntei para amigos, que deram respostas variadas. Sueli,
70, preferiria morrer de pé, para encarar a situação de frente, com dignidade. Marcos e
André, 33, também, e se possível olhando para o executor. Luiza, 28, já escolheria sentada,
por ser uma posição que representa espera. Sara, 30, preferiria deitada, porque assim ela
teria se feito deitar e ninguém mais. Para Luciana, 35, não importa a posição contanto que
seja de costas. Uma amiga comentou que escolheria estar de pé e cuspiria no chão
simbolizando seu nojo pela ignorância deles. A resposta dela gerou um debate sobre tráfico
de drogas, vícios e pena de morte.

A maior parte das respostas que encontrei toca na questão do orgulho. Erguer a cabeça e
encarar de frente ou mesmo no caso da Sara, que prefere ela mesma se colocar na posição
deitada para que ninguém o faça. Existe a probabilidade de a queda não ser sentida, mas a
ideia de cair não agrada muitos. Não há resposta boa, claro, e o enigma continua. De pé,
sentada ou deitada? Caramba! Prefiro não morrer, dá?
Parece que no caso de Marco, não. Marco, torço para que consiga enviar sua mente a algum
cenário que traga o mínimo de conforto. Se eu estivesse no seu lugar, acho que faria de tudo
para visualizar o paraíso, uma cachoeira gelada em dia quente, com um banco natural de
pedras aconchegantes, envolvendo o corpo como um abraço materno. Fecharia os olhos com
certo orgulho sim e emanaria amor. Mas eu faria tudo isso, nem deitada, nem sentada, nem
de pé. Ia pedir para rodopiar, para pelo menos assim deixar os soldadinhos um tanto zonzos,
e na tontura de um pega-pega, morrer criança.

* O repórter Ricardo Gallo, enviado à Indonésia, me alertou que, de acordo com a lei local
que trata das execuções, as opções são em pé, sentado ou ajoelhado.

** Atualização em 22/01: Segundo reportagem da Folha, Marco decidiu ser fuzilado em


pé.

Bioética da beira do leito


POR CAMILA
15/01/15 12:32

Há muitas definições do que é Bioética, mas a forma mais comum de entendê-la é o estudo
de questões éticas e morais que surgem dos avanços da medicina e da biologia. É uma
cadeira interdisciplinar, por se relacionar com outras áreas do pensamento, como a filosofia
e considerar a moral dos cientistas em suas pesquisas. Alguns dos temas levantados são
eutanásia, aborto, transgênicos, clonagem, pesquisas com células tronco, entre outros. A
Bioética também serve para assessorar médicos nos conflitos do dia-a-dia, que surgem
durante o exercício de sua profissão.

Dr. Max Grinberg, cardiologista, é diretor de unidade clínica do Incor e membro do Centro
de Bioética do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo). Criou
um conceito denominado por ele como “Bioética da beira do leito”. Tem diversos livros
publicados, entre eles “Seis personagens a Procura de um Doutor” (Via Estudio, 2004) e
alimenta diariamente o blog: Bioamigo. Na entrevista abaixo, ele define Biotética e a sua
compreensão nessa especificação que ele propõe.

O que é a Bioética da beira do leito?

Ela é a Bioética na prática, a Bioética clínica. Lida com os conflitos que podem surgir das
relações plurais entre medicina, médico, paciente e familiares, sistema de saúde e instituição
de saúde. Dá destaque à interdisciplinaridade que fundamenta preceitos éticos, morais e
legais e enfatiza que desconhecimentos e incertezas estão presentes em cada tomada de
decisão, na assistência e na pesquisa. Bioética é a humanização da medicina. Deveria ser
algo natural, mas não é.
Há várias definições de Bioética. A que eu gosto mais é a de um filósofo francês, Andre
Comte-Sponville (conhecido pelo livro “Pequeno Tratado da Grandes Virtudes, Martins
Fontes, 2009). Ele diz que Bioética é o dever de cada ser humano com outro ser humano e
de todos com a comunidade. Também pode ser definida como ética da vida ou como a
junção da ética médica, de como o médico deve se comportar profissionalmente, com a
filosofia moral, como cada um deseja viver sua vida. Aí já pode se perceber uma dualidade,
entre o que seria o que a medicina recomenda, com o que o paciente gostaria de fazer, que
não necessariamente é o que a medicina tem para oferecer. Questões como eutanásia,
ortotanásia, cuidados paliativos, são contemplados pela Bioética.

O médico trabalha num ambiente de muita vulnerabilidade. Todos nós somos vulneráveis.
Só o fato de depender de outra pessoa, já nos coloca vulneráveis. E eu acredito que a Bioética
é um ato de coragem. Gosto muito da abordagem de coragem do psicólogo americano Rollo
May (1909 – 1994), no livro “A Coragem de Criar” (Nova Fronteira, 2000). Aqui, seria a
coragem moral, coragem de se envolver, não só prescrever tratamentos. A coragem moral é
você se preocupar realmente com o outro e não ficar apenas no tecnicismo. Não ficar
indiferente, apático a situações de conflito, que ocorrem na medicina todos os dias.

Como o juramento de Hipócrates se relaciona com a Bioética?

O juramento de Hipócrates, usado na formatura, é importante por ser um símbolo que deve
ser preservado. Não pode ser levado ao pé da letra. Hipócrates teve o grande mérito de
separar a medicina da religião. A partir dele, a doença não foi mais vista como um ato
divino. Há duas questões no juramento que ainda são atuais: o sigilo e não maleficência (se
bem não podemos fazer, que não façamos mal). Isso é emblemático.

Como a eutanásia é abordada pela Bioética?

Em relação ao tratamento no final da vida, a permissão para não se prolongar a vida a


qualquer custo foi um marco. Nesse sentido, a Ortotanásia* foi uma grande conquista da
medicina nos últimos tempos. Em 2005, o Conselho Federal de Medicina lançou uma
resolução dizendo que os médicos poderiam, na terminalidade da vida, não acrescentar
tratamentos ou mesmo decidir por suspendê-los. O Ministério Público processou os
signatários como incitação ao homicídio, que foi revogado após alguns anos. Mas
conseguimos inserir essa possibilidade no Código Médico. Assim, quando chegamos numa
situação de terminalidade, onde se está no limite da medicina, podemos fazer cuidados
paliativos, não prolongando a vida e procurando oferecer o maior conforto possível. É um
campo que tem se desenvolvendo muito e conta com critérios para uma morte digna.

*Ortotanásia é permitir a evolução da doença, deixando que o paciente morra naturalmente.


Evita-se tratamentos que prolonguem a vida e aparelhos para mantê-la artificialmente.

Você acha que a eutanásia ou o suicídio assistido funcionariam no Brasil?

Não sei. Com certeza haveria muitos pontos de vistas contrários. Mas é algo que deveria ser
discutido, porque algumas pessoas podem querer terminar a própria vida. É sempre o
problema do abuso. Eu não gosto da não-opção. Mas com critérios, deve ser discutido. Tem-
se o receio de que possa ser uma afronta religiosa ou que será usado de maneira indevida.

(para maiores informações sobre esse tema, sugiro os posts: Permissão para morrer e A
discussão no Brasil )

Como a Bioética se relaciona com religião?

Há o ponto de vista de que a bioética possa ignorar a religião, porque nessa área de
pensamento, não existe certo ou errado. Tudo depende da situação, e essa relativização não
é permitida na religião.

Um exemplo clássico da Bioética é em relação a testemunhas de Jeová. Essa religião não


permite a transfusão de sangue. Porque está escrito na Bíblia que “não comerás sangue” e foi
feita uma analogia entre comer sangue e fazer uma transfusão, por isso a proibição. Quando
se faz uma cirurgia, é necessário ter uma reserva de sangue para uma emergência, caso seja
necessário uma transfusão e, em muitos casos, ela pode significar a vida ou a morte do
paciente. Quando o paciente não a permite, como é o caso das testemunhas de jeová, o
médico tem um conflito nas mãos. Segundo o Código de Ética Médica, quando existe risco
iminente de morte, o paciente não tem autonomia de decisão. Mas alguns médicos preferem
respeitar o paciente e não fazê-la. Em uma pesquisa recente, 22% dos médicos falaram que
não fariam a transfusão, respeitando a decisão do paciente.

Existem três tipos de médicos: aquele que não quer se envolver, o que respeita o paciente até
o final e não faz a transfusão e aquele que não permite a morte e faz a transfusão. Existem
dois tipos de paciente, o dogmático, que não a permite em hipótese alguma e o que acaba
permitindo pelo instinto de sobrevivência, aceitando a transfusão. A minha recomendação,
pessoal, é a de fazer a transfusão em casos de risco iminente de morte, mesmo se o paciente
for contra por questões religiosas.

Quais são os princípios da Bioética?

A Bioética tem quatro princípios básicos, ela é principialista. Não é a única forma de ver a
Bioética mas é um bom olhar para a Bioética da beira de leito: a beneficência (que é o
benefício gerado), a não maleficência (que eu chamo de segurança), a autonomia e equidade.

O beneficio é aquilo que é útil e eficaz. Por exemplo, você tem uma infecção, vamos dar um
antibiótico bom para esse tipo de infecção. Cada dia, com o progresso da medicina, temos
mais benefícios e fazemos remédios melhores. Mas cada benefício leva a um malefício em
potencial. A Bioética é importante nesse aspecto porque precisa mapear os benefícios e quais
são esses riscos potenciais. Por isso gosto de chamar o princípio da não maleficência de
segurança.

O princípio da autonomia diz sobre o direito de participar ativamente da tomada de decisão.


Todos os atores envolvidos – profissionais de saúde (médicos, enfermeiros), instituição
(hospital), sistema de saúde (planos de saúde), o paciente e seus familiares – participam da
tomada de decisão e desses diversos relacionamentos surgem conflitos e o médico pode
solicitar a ajuda da Bioética, entrando com um requerimento para uma comissão de Bioética
que emite pareceres.

Qual é o futuro da Bioética?

A nova geração de médicos tem se preocupado muito com essa parte humana da medicina.
Mas se não houver uma atenção, a coisa pode se desviar um pouco. Por exemplo: o médico
residente quer operar mais para aprender mais, então ele pode tender a rodar o leito mais
rápido, antecipar altas para liberar o leito e poder receber mais pacientes e operar mais. Não
é por maldade, mas por uma impressão equivocada. Por isso precisa de supervisão, para não
ter esses abusos.

É muito importante manter a interdisciplinaridade na Bioética. Ter várias opiniões sobre


outras áreas de pensamento, como a área de direito, psicologia, assistência social, etc. E hoje
se fala muito também em transdisciplinaridade, que vai além das disciplinas, porque
também aborda o metafísico, as diferentes religiões.

O problema de comunicação tende a ter cada vez mais a atenção da Bioética. Não existem
doenças, existem doentes. É velho aforismo. A pessoa é fundamental. 80% das reclamações
para o CRM são por problemas de comunicação, é sobre atitude e não em relação à parte
técnica. Reclamam que o médico falou de uma forma grosseira, ou deu uma previsão errada,
não indicou os riscos de um tratamento, etc. É fundamental que o médico esclareça os prós e
contras de qualquer tratamento. A boa comunicação de más notícias também precisa ser
aprendida.

Os médicos se sentem despreparados para dar más notícias?

Eles têm a solidão do poder. É uma pirâmide. Conforme subimos na pirâmide, vamos
crescendo profissionalmente e ficando mais sozinhos. Se você é o último a decidir, não tem
ninguém para compartilhar. Por isso a importância da Bioética. Ela está aqui para
assessorar.
Fotolia/Freshidea

O riso e a morte como instrumento


POR CAMILA
13/01/15 08:53

O mundo repugna o terrorismo, porque ele é brutal e usa a morte como instrumento de
causa. O grupo denominado Estado Islâmico não é o primeiro nem o único a pensar assim
na história da humanidade.

O assassinato dos cartunistas do Charlie Hedbo instigou não só a questão da liberdade de


expressão mas também uma revolta contra esse tipo de ação. Ou talvez seria melhor
colocado, reação. Reação a quê?
Para o filósofo José Arthur Gianotti é uma reação profunda de intolerância às diferenças
porque os extremistas muçulmanos não aceitam que existam outras crenças. “No fundo eles
queriam que todos fossem muçulmanos, não podem admitir que uns sejam católicos, outros
sejam hindus e outros não tenham crença nenhuma. Esse que é o problema. Essa
intolerância vai até o ponto de liquidar o outro, onde ele se torna desnecessário no mundo”,
ele diz.

O filósofo acredita que o que está no cerne da questão é uma velha briga no ocidente onde se
luta pelo direito de rir de crenças alheias. Isso vem desde Aristófanes (dramaturgo da Grécia
Antiga, que escrevia sátiras com duras críticas políticas e sociais) caçoando de Sócrates, de
Sócrates caçoando dos Deuses antigos, de Juvenal (poeta satírico) em Roma dizendo que é
rindo que se castiga os costumes e assim por diante. Ele diz não ver diferença nenhuma
entre um muçulmano se arrepiando ao ver a caricatura de Maomé e um cristão ao ver Jesus
Cristo saindo de um bordel após participar de uma orgia onde estuprou escravas sexuais,
num filme de Luis Buñuel.

Gianotti afirma não haver limites para a sátira e que ela não ofende as pessoas que têm bom
senso, só ofende os fanáticos, mas os fanáticos ao seu ver, devem ser satirizados. Também
diz que o muçulmano que não é capaz de rir de uma sátira com Maomé, não acredita
realmente que seu profeta esteja além dessas brincadeiras, ou dessas ironias como colocou.
“O cristão pode ficar incomodado quando vê cristo saindo do bordel, mas se ele tiver crença
em Deus, ele não acha que Deus seja afetado por uma imagem de Buñuel. O verdadeiro
muçulmano, ao ver a caricatura de Maomé, não vai achar que a figura de Maomé ou os
ensinamentos de Maomé são afetados por essa travessura”.

Nesse sentido, Henri Bergson em seu livro “O Riso”, fala sobre a insensibilidade que
acompanha o riso, pois para vermos graça em algo, precisamos nos distanciar
emocionalmente. “O maior inimigo do riso é a emoção”, Bergson escreve, “o cômico exige
algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se
destina à inteligência pura”.

Para Gianotti, esses ataques mostram que nós estamos em guerra. Não é uma guerra
declarada, mas uma guerra terrorista entre fanáticos e pessoas que ainda querem manter a
liberdade de pensamento. Quando a intolerância chega ao limite, você passa a matar o
inimigo. Só que a guerra moderna é uma guerra de guerrilha, não são mais dois exércitos se
enfrentando no campo de batalha, mas é uma guerra de terror, que aterroriza a população.
Essas mortes chocaram mais do que outras porque são emblemáticas, “mostram como uma
crítica que é absolutamente inócua, por ser no fundo um desenho que faz rir, é capaz de
matar”.

O combustível do canhão

O cartunista Chico Caruso me disse acreditar que o objetivo da sátira é ajudar a sociedade a
pensar. Ele cita o pequeno conto “A função da Arte/1”, de Eduardo Galeano, publicado em
“O Livro dos Abraços” (L&PM, 1997):
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o
menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar
estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o
menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: Me ajuda a olhar!” .

Chico diz que a sátira cumpre com esse papel, nos ajudar a ver a realidade. E por isso precisa
ter força e não ter medo de ofender, para poder “descabaçar conservadorismos”, como ele
colocou. A própria palavra charge simboliza força, energia, é a carga do combustível do
canhão. Perguntei se o humor deveria fazer ponderações e ele disse que a reunião de pauta
do Charlie Hedbo (já divulgada na mídia) era cheia de ponderações.

Oração ao cadáver desconhecido


POR CAMILA
05/01/15 12:14

A “Oração ao cadáver desconhecido” é normalmente exposta na entrada das salas de aula de


anatomia. Estudantes de medicina são encorajados a lerem-na antes de uma autópsia. É o
que me contou o doutor André Filipe Junqueira dos Santos, médico geriatra do Hospital das
Clínicas de Ribeirão Preto.

A partir do depoimento dele, achei interessante compartilhar o ponto de vista de dois


médicos sobre a autópsia, complementando a minha visão exposta no post “Visita ao
Necrotério”. Segue, abaixo, o depoimento do Dr. André e logo em seguida uma conversa com
dr. Paulo Danzi Salvia, que me acompanhou na visita.

“Ao ler o seu post e seu primeiro contato com um cadáver, lembrei-me de minhas aulas de
anatomia. Estas aulas acontecem nos primeiros anos do curso de medicina e de outras
faculdades de saúde (enfermagem, odontologia). Para muitos alunos é a primeiro contato
com uma pessoa morta, pois alguns nunca foram a um velório ou viram um morto em outra
condição (reflexo atual de nossa sociedade em esconder a morte). Como a maioria dos
alunos tem menos de 20 anos de idade neste momento, existem muitas fantasias e receios
em participar desta aula. Na entrada do laboratório de anatomia de minha faculdade, existe
uma oração ao cadáver desconhecido, a qual um professor de anatomia solicitava sempre
que lêssemos antes de entrar nas aulas. Esta oração e outras atitudes que ele cobrava
durante as aulas, foram as primeiras lições que tive para como auxiliar alguém em situação
de vulnerabilidade, pois respeitar o cadáver é um passo fundamental para entender a vida e
sua fragilidade e com isso respeitar o próximo, quanto ele se encontrar vivo e doente. Ainda
hoje, apesar de todo recurso tecnológico existente, a causa da morte só é descoberta após
uma necropsia. A anatomia e o estudo dos cadáveres é um tema de grande fascínio na
medicina ao longo dos séculos. A história da anatomia conta com a contribuição de grandes
artistas, como Leonardo da Vinci, Rembrandt e outros”.

Leonardo da Vinci (1452-1519) foi pioneiro do registro da anatomia do corpo humano. O


livro “Os Cadernos Anatômicos de Leonardo da Vinci” (Ateliê editorial, 2012), reproduz
1200 desenhos anatômicos do artista. “No Renascimento, artistas como Leonardo
aproximaram-se de médicos-anatomistas para retratar melhor a forma humana em pinturas
e esculturas. Eles foram chamados de “artistas-anatomistas”, segundo Charles O’Malley
(Universidade de Stanford)”, como diz o artigo “Leonardo da Vinci, o Desbravador do Corpo
Humano”.

Para entender o impacto de uma autópsia, dr. André indica o livro “O Físico” de Noah
Gordon, que se passa na Idade Média, quando a Igreja Católica proibia o procedimento. “Há
uma cena em que o protagonista participa pela primeira vez, de forma secreta, de uma
autópsia e fica maravilhado com ver o corpo humano por dentro, em uma época que o
conhecimento médico era muito limitado”, ele diz.

“O Físico” teve uma adaptação recente para o cinema (estreou em outubro de 2014 no
Brasil). Veja uma crítica da Folha aqui.

Segue, abaixo, a “Oração ao Cadáver Desconhecido”.

“Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te que
este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que
em seu seio o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por
certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã
feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado uma lágrima sequer, sem
que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o
poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.” Karl Rokitansky
(1876)
“A Lição de Anatomia do Dr.Pulp”. Óleo sobre tela. Rembrandt, 1632.

Dr. Paulo Danzi Salvia, médico legista e professor de medicina legal na Unicamp, que me
acompanhou na visita ao necrotério, diz ter um olhar técnico e o pensamento voltado para
critérios científicos, ao acompanhar uma autópsia. Ele vê o corpo como uma máquina,
comparação herdada de sua criação, pois seu pai consertava televisores e rádios e Dr. Paulo
cresceu observando o pai “dissecando esses instrumentos”, como ele colocou.
Se tinha algum defeito na imagem da TV por exemplo, era necessário abri-la e investigar o
problema, medindo as voltagens das resistências. Esse meio investigativo foi decisivo para a
decisão de sua profissão. “O corpo, como a máquina, precisa de um equilíbrio, quando
ocorre um desequilíbrio e uma peça não funciona direito, você busca consertá-la, quando
esse desequilíbrio é muito grande, o organismo não dá conta e morre. Aí, inicia-se a busca de
o motivo do corpo ter parado de funcionar. Às vezes, a causa é evidente, mas há muitos
casos em que ela não é”, ele diz.

Será evidente, por exemplo, quando é possível observar o defeito diretamente no órgão e ele
ter sido responsável pela morte da pessoa, como acontece nos casos de cirrose,
cardiomegalia por hipertensão que pode levar a um infarto, ou quando se observa um
rompimento de uma artéria cerebral que levou ao acidente vascular cerebral. No caso do
IML (Instituto Médico Legal), para onde vão os corpos mortos por causas externas, é
comum ter-se causas evidentes, como ferimentos causados por acidentes com arma de fogo
ou trauma craniano por queda de moto.

Quando a causa não é evidente, é necessário investigar. Envenenamentos ou intoxicação por


excesso de remédios podem não deixar vestígios claros.

Dr. Paulo também gosta dos aspectos simbólicos da autópsia. A morte não existe, mas sim
os medos relacionados a ela e a dor da perda, “são os símbolos da morte que mobilizam a
humanidade”, ele diz. Ele é encantado pelo funcionamento das coisas, do corpo humano e
da sociedade e vai fundo na sua investigação, fez dois anos de filosofia e acredita que ela seja
a base de tudo, por estudar o mecanismo do raciocínio em si.

Depois de acompanhar três autópsias ao lado de dr. Paulo, admirei o entusiasmo com que
ele investigava o corpo humano e imagino não ser possível fazer esse trabalho sem a
companhia de um pensamento cartesiano e o olhar do cadáver como uma máquina. Claro
que a máquina copia o corpo e não o contrário, mas o distanciamento que essa relação
proporciona possibilita o trabalho dos médicos, ao mesmo tempo que os distancia. A ideia,
lembrada pelo dr. André, dos professores estimularem respeito a um corpo, mesmo que sem
vida, é bem vinda. Afinal, ele será sempre será considerado intocável e amado por alguém.

Testemunha do tempo
POR CAMILA
30/12/14 10:46

Um fim se aproxima, e pelo menos sobre esse fim podemos nos dar o prazer de dizer que ele
é apenas necessário para o início de um novo começo. Nos jogamos no desconhecido com a
certeza de que o amanhã virá, e o conforto de que à meia noite comemoraremos essa
transição e continuaremos vivos para testemunhar mais um pouco do que já já virará
história.

Viva o mundo dos vivos. Nele sou sua vizinha, brincamos de casinha, formamos família,
perdemos pessoas amadas, passamos por fins e recomeços e respiramos sem pensar a
respeito. Hoje desligamos o piloto automático, refletimos sobre planos e revisitamos o que
conquistamos até aqui, procurando sentidos.

Por ser um momento de busca por sentidos, aproveito o pensamento do sociólogo Norbert
Elias, já abordado num post anterior, onde ele diz que há uma conexão entre como uma
pessoa vive sua vida e como ela morre. O modo como ela morre depende do quanto sente
que alcançou seus objetivos, do quanto sua vida foi realizada e significativa ou frustrada e
sem sentido.

Estamos vivendo um processo de individualização profundo, cada um busca um sentido


para sua vida como um ser isolado do mundo e quando não o encontra, se depara com um
sentimento de vazio e desilusão que pode permear o fim do ano como um sensação de
felicidade inatingível.

Elias diz que para muitas pessoas a busca por sentidos é um fardo, uma responsabilidade
que não é bem vinda, e por isso buscam alguém que alivie esse peso, formulando para elas os
objetivos que farão com que suas vidas sejam dignas. Esperam, assim, um sentido pré-
determinado, vindo de fora, que dê direção às suas vidas.

Na virada do ano, transformamos esse fardo em esperança, procurando visualizar um futuro


melhor, formando resoluções que nos satisfaçam e tragam conforto sobre como aprimorar
nossa vida.

Um dia ela acabará e o mundo continuará a existir sem nós. Os anos passarão mas
permaneceremos vivos na lembrança dos que ficam, até desaparecermos completamente,
cumprindo com o único destino que iguala todos os seres vivos, como diz Ariano Suassuna,
morto nesse ano, em um trecho do Auto da Compadecida enviado na carta de final de ano
do 4Estações: “Não tem mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais inteligente do
mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a
marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o
que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”. “

O fim de um ano, como mudança de ciclo, é uma espécie de morte, bem vinda e esperada. Os
dois podem ser vistos como uma viagem. Na morte não sabemos para onde vamos, como
seremos, nem podemos exercer o poder de escolha. Já na passagem do ano, temos o
privilégio de decidir o que levar na mala e o que deixar para trás. É o único fim em que
continuamos presentes. Há certa honra e humildade em ver esse novo nascer do sol e poder
ser, mais uma vez, testemunha do tempo.
Catwoman/Fotolia

O primeiro natal sem ela


POR CAMILA
24/12/14 07:11

Família reunida, há comida típica, luzes, em algumas casas, velas. A melhor toalha de mesa,
os melhores copos e pratos são retirados do armário. Nos vestimos com atenção e
embrulhamos presentes. É uma data especial, independente da crença, de se comemorar o
nascimento de Cristo ou ter essa referência como pano de fundo para se render ao
sentimento de amorosidade e reflexão que normalmente permeia o fim do ano. Revisitamos
os acontecimentos e nos confortamos com o sentimento revigorante de que o próximo pode
ser melhor.
Num momento ou outro, olha-se para uma cadeira vazia. Ela remete a um parente querido
que costumava sentar-se ali, ansioso para compartilhar a ceia, contar novidades ou apenas
oferecer segurança emocional, observando filhos e netos correndo de um lado ao outro,
organizando um grupo de pessoas que talvez não se reúna com tanta frequência, conectados
por sangue ou pelo tempo. Alguns com mais afinidades do que outros, mas todos presentes,
se disponibilizando para o mesmo momento, compartilhando um evento que não mais se
repetirá da mesma forma. E quando a pessoa não está mais ali, até das desavenças sentimos
falta.

Gustavo, 52 anos, jornalista, passou os últimos quinze natais ao lado da mãe, Roseli, morta
há um mês. Com o passar dos anos, o número de pessoas presentes em sua ceia foi
diminuindo. Em 2009, havia a sogra, o sogro, a avó, seu pai e sua mãe. Agora, em 2014,
essas pessoas não existem mais. Pelo menos não fisicamente, porque a lembrança
permanece. E, claro, as saudades.

Todas as perdas foram perto do Natal. Mas isso não entristece a data para Gustavo, porque
ele acredita ser um momento para celebrar a família, com a esperança de que aqueles que
partiram estejam num lugar melhor e que os que ficaram tenham um ano melhor,
fortalecendo o símbolo da renovação. “A gente sente falta, mas tem que pensar para frente,
pensar no futuro, na crença de que ele trará alegrias e felicidade, nesse sentido é uma
oportunidade”, ele diz. Gustavo não fala diretamente, mas dá para perceber o tamanho da
sua dor e a falta que Roseli faz nessa data.

A ceia de sua família começa às 22h, logo depois trocam presentes e à meia noite estouram
uma champanhe. Ele sempre coloca a música do John Lennon: “Happy Christmas”, por ser
alegre e falar sobre o ano que passou e o novo que está começando, com o desejo de que seja
um ano bom e sem medos.

É uma boa mensagem para Gustavo, que tem tido crises de transtorno de ansiedade desde a
morte da mãe. Ele acredita ser fruto do processo de lidar com toda a burocracia e o choque
de enterrá-la. Roseli faleceu em casa, dormindo. Para ela, parece ser o que vemos como uma
“boa morte”. Para os filhos, gera um desgaste complicado, porque se não houver um médico
para dar uma atestado de óbito, é preciso ir a uma delegacia, fazer um boletim de ocorrência
e esperar a visita de um delegado, com o corpo intocado. O delegado verificará sinais de
violência para decidir se o corpo será encaminhado ao IML (Instituto Médico Legal) ou ao
SVO (Serviço de Verificação de Óbitos). As mortes de causa natural vão para o SVO
enquanto as de causas externas são direcionados ao IML. Falei sobre isso no post “Visita ao
necrotério”. A mãe de Gustavo tinha marcas de uma cirurgia recente, no fêmur, e por isso
ela foi encaminhada ao IML, como morte suspeita. Após a autópsia, Gustavo foi chamado
para reconhecer o corpo e assim poder ser levado ao cemitério. Ele diz que vê-la morta foi
um choque muito grande e está lutando para lidar com isso. “Ver uma mulher tão
inteligente, tão culta, virar um saco de batata no congelador de um necrotério”, como ele
colocou, “foi impactante”. Ele acredita que essa visão choca, por conflitar com a imagem que
se tem da própria mãe. “Você percebe que não tem mais volta, que não poderá mais
conversar com ela”. Esse momento também desencadeou um processo de lidar com sua
própria mortalidade, o que tornou o medo da morte mais latente para ele.
O sociólogo Norbert Elias diz que só conhecemos a morte através da morte dos outros, e
com certeza ver um dos pais falecer gera um sentimento complexo de ser digerido.

A vida é feita de ciclos. E onde senta nossa mãe hoje, um dia sentaremos nós, com novas
pessoas à mesa, os filhos crescidos, filhos dos filhos, com maridos, esposas, cunhados e
novos amigos. Se essa realidade é difícil de aceitar, talvez uma boa palavra para permear um
Natal seja empatia e impermanência. A noção de que aquela senhora, talvez um pouco
calada, um dia será você e que os momentos são únicos.

A morte é uma realidade e quem sabe a melhor forma de lidar com ela seja essa mesma, a
de simplesmente aceitar sua existência, celebrar a vida, e ter compaixão por todos os seres
que compartilham do mesmo destino que nós: o fim.

Feliz Natal.

Fotolia – Gina Sanders

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