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A Aprendizagem segundo

Karl Popper e Thomas Kuhn1


Nuno Borja Santos*

Resumo: dizagem e sua aplicação na evolução da ciência.


Após uma breve introdução em que é apresentada a Em relação às teses de Karl Popper, consultou-se a
organização deste trabalho, o autor aborda o mo- primeira parte da sua obra "A Vida é
delo popperiano da aprendizagem e as suas impli- Aprendizagem", sobretudo pelo artigo "A Lógica e a
cações nas ideias do filósofo austríaco, em relação Evolução da Teoria Científica". No que diz respeito
à evolução científica. Seguidamente, é referido o a Thomas Kuhn, os principais aportes vieram dos
modelo kuhniano com especial enfoque nos para- oito primeiros capítulos do seu livro "A Estrutura
digmas e nas revoluções científicas. das Revoluções Científicas". Contributo igualmente
A concluir, são apresentadas, de forma resumida, as importante, foi o artigo "Reconsiderações acerca
principais semelhanças e diferenças de pontos de dos Paradigmas" presente na sua obra "A Tensão
vista, entre os dois filósofos, acerca da aprendiza- Essencial".
gem e evolução científica. Deste último livro, foi também consultado o artigo
Palavras-chave: filosofia, ciência. "Lógica da Descoberta ou Psicologia da
Investigação", donde sairam as principais notas
ABSTRACT: acerca das semelhanças e diferenças entre os dois
The author presents in a short introduction the autores, sobre este tema.
organization of this paper. Then he refers, in the
first chapter, the popperian model of learning A aprendizagem segundo o modelo de
and its implications in the austrian philoso- Karl Popper
pher's ideas about scientific evolution. Secondly, Karl Popper começa por referir que as ciências na-
the author presents the kuhnian model with a turais, tal como as sociais, se originam por proble-
special focus in the theories about paradigms mas capazes de gerar espanto. Ora, perante esta
and scientific evolution. situação, a ciência bem como o senso comum, uti-
Finally, there is a short chapter about the main lizam no essencial, o mesmo método, o da tentativa
similarities and differences between the two e erro. Este consiste em ir ensaiando, progressiva-
philosophers in these matters. mente, várias soluções, de forma a que as más
Key-words: phylosophy, science. sejam postas de parte, até se encontrar a melhor.
Este processo único aparentemente lógico, é usado
A APRENDIZAGEM SEGUNDO por todos os seres vivos desde os unicelulares até
KARL POPPER E THOMAS KUHN ao homem, embora a partir de um certo grau da
escala animal, a solução possa ser aprendida, sem
INTRODUÇÃO que haja necessidade de repetir os mesmos passos
É objectivo deste trabalho, opôr as visões de Karl para a encontrar. Existe, assim, perante a apresen-
Popper e Thomas Kuhn, dois dos principais filó- tação de idêntico problema, a expectativa de que a
sofos da ciência do século XX, acerca da apren- solução anterior volte a funcionar. De facto, os

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* Assistente Hospitalar: Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca
1
Monografia apresentada no seminário de Filosofia da Ciência do Mestrado
em História e Filosofia da Ciência da Universidade Nova
A Aprendizagem segundo Karl Popper e Thomas Kuhn

seres vivos esperam uma regularidade do meio cir- espécie. A adaptação ao ambiente é aqui vista como
cundante, o que leva até o autor a especular acerca uma forma de conhecimento, isto é, os organismos
de um eventual determinismo genético desta expec- tiveram de aprender a sobreviver por grandes
tativa. períodos e não momentaneamente. Pode-se, assim,
Porém, um novo problema ocorre, sempre que dizer que o conhecimento geral precedeu o parti-
uma expectativa se revele errada. Aqui, surgem cular e que é antecipatório. É a rede existente que
novas tentativas de solução, ou seja, de criar uma possibilita a ocorrência de novas variações. Embora
nova expectativa a partir da substituição da ante- não se trate de conhecimento consciente - a
rior, falsa. Mas a pesquisa não é infindável, isto é, se utililização do termo é antropomórfica - reporta-
muitas expectativas se frustrarem, o organismo mo-nos, aqui, a um equipamento necessário a uma
pode desistir da luta. adaptação que pode, igualmente ser chamado
Sintetizando, o modelo acima descrito compreende "expectativa".
três fases: o problema, as tentativas de solução e a Em relação à teoria ou lógica da ciência, a primeira
eliminação. A primeira surge com a consciência de tese de Popper é a de que esta é um fenómeno
uma perturbação, quer de expectativas inatas ou biológico. A ciência surge do conhecimento pré-
aprendidas. A segunda corresponde às tentativas científico, que é o do senso comum, por sua vez,
para resolver o problema, sendo a terceira, a da decorrente do conhecimento animal. A segunda
eliminação das más soluções. Ao contrário da tese é a de que o modelo de três fases é aplicável à
primeira, que tanto pode ocorrer no singular como ciência. Com o surgir de um problema, gerador de
no plural, as duas últimas compõem-se, em geral, espanto, o ponto de partida da ciência torna-se,
de movimentos múltiplos. assim, como algo que sucede a partir de um deter-
Como vimos, no caso de uma solução se revelar minado estado de conhecimento acumulado, ao
correcta, é aprendida como tal. Este comportamen- invés de resultar da mera percepção, isto porque a
to dos organismos que passa, como vimos, pelas verdadeira observação nasce de um problema, ao
três fases descritas, tem um paralelo com a contrário do que pretendia a antiga teoria da ciên-
evolução das espécies, considerada numa perspec- cia, cuja concepção do conhecimento se baseava no
tiva darwinista. Assim, a existência de um problema senso comum e que afirmava bastarem as per-
para uma espécie, somente se resolve através de cepções para a plena apreensão do mundo exterior.
uma mudança na sua estrutura genética. As Ora, os orgãos dos sentidos servem para tentar
mutações, que nesta fase ocorrem continuamente, resolver problemas que se nos colocam, ou seja,
poderiam corresponder às tentativas de solução. No numa perspectiva biológica, o problema é prévio à
caso de serem inconvenientes, mesmo fatais, pas- percepção. O conhecimento é intencional, não é
sam a ser eliminadas pela espécie. Mas esta imensi- guiado automaticamente pela anatomia e fisiologia
dade de tentativas é fundamental para que possa dos orgãos perceptivos.
surgir uma, capaz de permitir a sobrevivência da Aqui chegados, cumpre fazer uma observação acer-

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ca dos Mundos popperianos. O autor vienense con- Enquanto no primeiro caso existe passividade na
sidera Mundo 1, o dos acontecimentos físicos, eliminação de hipóteses, no segundo, já se passa a
Mundo 2, o psicológico e Mundo 3, o dos produtos uma posição activa nesse processo. Pode-se mesmo
da mente. Nesta perspectiva, decorre do que ficara afirmar que, em ciência, o investigador está defini-
acima dito, que é o Mundo 3 (problema) que in- tivamente interessado na eliminação de hipóteses,
fluencia o Mundo 2 (percepção), que por sua vez não estando afectivamente envolvido com elas.
age sobre o Mundo 1 (cérebro), após o que o Assim, no conhecimento pré-científico evita-se o
processo se reverte, sendo que é esta interacção falibilismo, ao deixar que a hipótese faça parte da
dos três mundos, a chave da autoconsciência expectativa, o que implica, muitas vezes, o pereci-
humana. mento do sujeito com elas. Pelo contrário, em ciên-
Mas se o modelo de três fases é aplicável à ciência, cia, a hipótese está colocada fora do sujeito o que
o que o distingue do mero comportamento animal, permite que seja aquela a morrer por este.
que também segue esse processo? A resposta é a A tentativa de falibilismo constitui, então, a teoria de
aplicação consciente do método crítico, isto é, na Popper para distinguir a abordagem pré-científica
fase de eliminação dos erros, age-se de forma cons- do método científico, no qual o investigador deve
cientemente crítica. Só esta atitude permitiu o pro- testar sempre as fraquezas da sua hipótese, ou seja,
gresso da ciência. deve tentar refutá-la. Claro que o investigador pode
Mas o método crítico pressupõe a existência da lin- tomar partido pela sua hipótese, até porque, no
guagem humana descritiva para que as hipóteses caso de ser provado o falibilismo, tal será mais
colocadas possam ser apresentadas objectivamente genuíno e mais facilmente levará, então, à discussão
e passíveis de crítica, processo, sem dúvida, facili- crítica. Porém, já o dogmatismo opõe-se ao método
tado pela escrita. De facto, esta permite que o pen- crítico, sendo característico do conhecimento pré-
samento, antes propriedade privada do seu autor, científico.
fique disponível para discussão e não dependa da Uma nova teoria científica é sempre revolucionária,
personalidade e estados de espírito deste. no sentido em que não se junta a uma anterior para
Enquanto se pensa, o conhecimento, que então resolver um problema. Pelo contrário, tem de o
assume uma forma de crença, ao ser transposto resolver tão bem ou melhor que a antecessora,
para a linguagem, passa de uma dimensão subjec- como sucede com as de Newton e Einstein, acerca
tiva, para outra, objectiva. Isto porque na lin- da macromecânica e do movimento planetário.
guagem atende-se apenas ao conteúdo lógico do Aliás, a nova teoria, ao tirar conclusões diferentes
que é expresso (Mundo 3) e não à subjectividade das da antiga, pode mesmo contradizê-la. Mas se a
que o originou (Mundo 2), sendo aquele, e não supera, nem por isso, passa a ser verdade incon-
esta, a dever ser objecto de discussão crítica. tornável; de facto, pode também ela ser, a qualquer
Daí que, a diferença crucial entre conhecimento momento, ultrapassada.
pré-científico e ciência está na atitude do sujeito. Ao descartar-se uma ideia, percebe-se a razão de tal

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ter acontecido. E o problema que tínhamos, passa a o seu melhor amigo e se, pela sua história pessoal,
ser focado com maior precisão. E pode até aconte- tal ocorrer inesperadamente, a teoria consegue,
cer que uma ideia falibilizada não seja necessaria- socorrendo-se dos seus próprios recursos, dar uma
mente desperdiçada. A disputa entre Eccles e Dale, explicação para o sucedido, surgindo, desta forma,
em torno da transmissão sináptica, deu uma como explicação global para a existência humana.
"vitória" inicial ao segundo, que punha a hipótese Por outras palavras, está imunizada contra todas as
de ela ser química, enquanto o primeiro a consi- hipóteses que a ponham em causa, não conseguin-
derava de natureza eléctrica. Porém, algum tempo do descartar qualquer comportamento humano
depois, verificou-se que, afinal, aquela transmissão imaginável. O contrário sucede com a mecânica
podia, em determinados casos, ser eléctrica. newtoniana que pressupõe, por exemplo, que um
Assim, o modelo de três fases pode, no caso da determinado objecto não comece subitamente a
ciência, ser convertido num outro de quatro fases levitar. Se esta levitação ocorrer, o fenómeno já terá
que compreende então: o antigo problema; a for- de ser explicado à luz de outras teorias, que não a
mação de tentativas de teoria; as tentativas de eli- newtoniana.
minação de hipóteses e os novos problemas. Como vimos acima, no ciclo de quatro fases, a nova
Os problemas, inicialmente práticos, podem solução é apenas uma aproximação à verdade,
adquirir uma natureza teórica, visto serem, eles embora melhor que a anterior. Esta ideia, de apro-
próprios, produtos de teorias, isto é, internos a ximação à verdade, está ligada à discussão crítica
elas. Este modelo, de carácter cíclico, permite que de teorias concorrentes. Contudo, esta discussão
se comece em qualquer das fases. De facto necessita de um princípio regulador, aquilo a que
podemos pegar na fase do problema, na tentativa de Kant denominava “ideia reguladora”. Entre as
criação de uma teoria, perseguir a eliminação de ideias reguladoras que regem a discussão crítica,
uma hipótese ou visar o colapso de uma teoria já destacam-se três: a ideia de verdade, a ideia de con-
existente, tentando a construção de uma mais satis- teúdo lógico e empírico e a ideia de conteúdo de
fatória. Mas a natureza periódica do modelo per- verdade e de aproximação à verdade.
mite que ele seja entendido como um fenómeno em O facto de se tentar eliminar hipóteses falsas cor-
perpétuo crescimento, dinâmico e nunca acabado. responde à ideia de verdade, por pressupôr que
Em relação à distinção entre teorias científicas queremos, de facto, encontrar a verdadeira. Por seu
empíricas e outras, o aspecto fundamental tem a ver turno, o grau de conteúdo informativo de uma teo-
com as primeiras poderem ser falibilizadas por ria - a sua ousadia - coloca-nos perante a regu-
resultados experimentais (critério de falsicabili- lação do conteúdo lógico e empírico. Enquanto o
dade). A Psicanálise é um exemplo do segundo conteúdo lógico compreende a classe das conse-
caso. Visto nunca conseguirmos encontrar compor- quências da teoria (conjunto de proposições que
tamentos humanos que sejam contraditórios com a dela deriva logicamente), o conteúdo empírico tem
teoria, não a podemos testar. Se um homem matar a ver com a capacidade de pôr de parte ocorrências

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observáveis (a verificarem-se, rejeitam a teoria). O habilita, em termos cognitivos, a dominar os con-


que implica que o risco de uma teoria ser refutada ceitos. Ao tomar-se os exemplos, em vez das regras,
cresce com o aumento da sua afirmação. A ideia de altera-se a forma de processamento de dados, não
aproximação à verdade pressupõe uma visão rea- obstante ambas as vias poderem desempenhar as
lista do mundo. Não obriga a que a realidade seja mesmas funções cognitivas.
como a teoria (esta é produto do cérebro humano Mas esta percepção de semelhança é lógica e psi-
e, como tal, é sempre idealização). Daí que, se as cologicamente anterior aos numerosos critérios
ideias falham quando testadas em comparação com com que a mesma identificação pode, ulterior-
a realidade, é sempre esta que tem razão. mente, ser efectuada. Trata-se de soluções de pro-
blemas concretos que funcionam como exemplares
A dimensão tácita ou paradigmas para o grupo.
da aprendizagem segundo Thomas Kuhn Cabe aqui referir que há dois sentidos em que
Thomas Kuhn emprega o termo "paradigma". Um
Acerca dos paradigmas mais global, que abarca todos os empenhamentos
Imaginemos uma criança que numa primeira visita partilhados por um grupo científico e outro, sub-
ao Jardim Zoológico aprende a distinguir gansos, conjunto do primeiro, que isola um género parti-
patos e cisnes. As aves que, inicialmente, para ela cularmente importante de empenhamento e que
eram indiferenciáveis por serem todas brancas, corresponde aos exemplares acima referidos.
passam, a partir de uma explicação fornecida por Aliás, o paradigma, na acepção mais geral, com-
um adulto, a poder separar-se em grupos, devido preende três constituintes fundamentais, dos quais,
aos distintos atributos morfológicos, como, por um deles é precisamente o uso de exemplares. Os
exemplo, a curvatura do pescoço. A criança pode restantes são o uso de generalizações simbólicas e
utilizar, então, com segurança, os termos "pato", de modelos.
"ganso" ou "cisne", por já saber que não há ani- Em relação às generalizações simbólicas, podemos
mais "intermédios" entre eles. Porém, aplica os apontar as letras usadas para as incógnitas
rótulos sem saber definir com exactidão os objec- matemáticas ou as fórmulas da Física. O manejo
tos correspodentes. Trata-se de uma assimilação rotineiro deste tipo de símbolos, que não é habi-
com base em exemplares. tualmente posto em causa pelos membros do
Na perspectiva de Thomas Kuhn, também os cien- grupo, permite a difusão da Lógica e da Matemática
tistas, com frequência, arquitectam a solução de um no trabalho da comunidade. Por via de regra, o
problema com base na de outro. O problema é poder de uma ciência aumenta à medida que eles se
percebido como um já anteriormente encontrado. vão multiplicando.
Parece, assim, ser fundamental, a capacidade que Temos ainda os modelos, fornecedores de analo-
os cientistas têm de encontrar semelhanças em gias ou mesmo de uma ontologia. É o caso de se
problemas aparentemente díspares, já que os pensar o comportamento de um gás como um con-

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junto de bolas de bilhar em movimento aleatório uma comunidade de praticantes de uma ciência.
(utilização heurística) ou de se afirmar que todos Temos então que alguns exemplos aceites na práti-
os fenómenos perceptíveis se devem ao movimento ca científica, geram modelos dos quais nascem as
e interacção de átomos (empenhamento metafísi- tradições correntes e específicas da prática científi-
co). ca. Uma comunidade científica, ao partilhar um
Podemos dizer que é a partilha deste paradigma paradigma, compromete-se com um conjunto de
que permite o funcionamento de uma comunidade regras e padrões para a sua prática. Sempre que
científica. Esta define-se como o conjunto dos pra- surge uma mudança deste, dá-se a chamada re-
ticantes de uma determinada especialidade e, con- volução científica, sendo este o padrão habitual de
sequência da aceitação do paradigma, caracteriza- desenvolvimento de uma ciência amadurecida.
se pelo abundância de comunicação no seio do Kuhn dá como exemplo o caso da Óptica física:
grupo e por um elevado grau de concordância do anteriormente a Newton, cada cientista que se
juízo dos seus membros, em relação a matérias do debruçasse sobre o tema, por não ter de assumir
seu campo de estudos. um corpo comum de crenças, construía, desde a
Vamos, de seguida, abordar as situações em que o base, o seu campo de estudos, o que fazia de modo
paradigma é aceite e permite períodos de estabili- relativamente livre. Era este o padrão habitual das
dade científica (ciência normal) e outras em que ciências do período pré-revolução científica com as
ele é posto em causa, podendo levar à sua substitu- excepções prováveis da Matemática e da
ição (revoluções científicas). Astronomia, fornecedoras já de paradigmas desde a
pré-história. Por outro lado, algumas ciências,
A ciência normal como as sociais, podem não ter atingido ainda hoje
Para Thomas Kuhn, na ciência normal, tomando-se esse patamar.
esta pelos períodos de estabilidade, sem ino- De início, a observação dos factos é pois efectuada
vações, a pesquisa assenta nas realizações científi- ao acaso, tornando-se dependente da riqueza dos
cas passadas que, assim, são reconhecidas pela dados à disposição e podem incluir tanto a obser-
comunidade científica como legítimas para a sua vação como a experimentação mas também, os
prática posterior. Tal ocorre porque essas realiza- aportes da tecnologia. São disto exemplo as
ções conseguem atrair um número considerável de descrições baconianas, férteis em factos relevantes
profissionais sendo, ao mesmo tempo, abertas ao e outros de somenos importância. Por seu turno,
ponto de permitir a prática futura do novo grupo são omitidos, amiúde, alguns outros que se julgam
de ade-rentes. Estas duas características conferem- então de valor circunstancial, embora mais tarde
lhes o estatuto de paradigmas que se podem então este estatuto pudesse mudar. Se um corpo de
definir como as realizações científicas univer- crenças não está, à partida, implícito nesta recolha
salmente reconhecidas que, durante um período, de dados, tal pode ser compensado pela adesão a
fornecem problemas e soluções modelares para uma qualquer metafísica.

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De facto, os homens tendem a interpretar os factos paradigma mas antes para a articulação de fenó-
à sua maneira mas, na ciência, as divergências ini- menos e teorias permitidos por este.
ciais tendem a desaparecer rapidamente com o triun- Para Kuhn, existem então três classes de factos na
fo de uma das escolas pré-paradigmáticas. Assim, investigação científica. A primeira é aquela que o
para ser aceite como paradigma, uma teoria deve paradigma mostra ser reveladora das coisas e é uti-
parecer melhor que as concorrentes, embora não lizada em numerosas situações, até por ter uma
necessite de explicar todos os factos com os quais determinação mais precisa. Pode-se exemplificar
pode ser confrontada. Neste caso, as restantes esco- com a posição e a magnitude das estrelas na
las, em regra, desaparecem, até pela conversão dos Astronomia, o comprimento de onda e intensidades
seus membros ao novo paradigma, que normal- espectrais na Física ou as fórmulas estruturais na
mente acaba por estreitar o campo de estudos. Esta Química. Sobre factos deste tipo, há em geral tenta-
redefinição implica que os cientistas não mais tivas frequentes por parte da investigação científica
necessitem de iniciar os seus estudos pela base e de no sentido de aumentar não só o conhecimento,
justificar o uso de todos os conceitos. Estes, os fun- como também a sua precisão.
damentais, passam então a ocupar os manuais de Uma segunda classe consiste naqueles fenómenos
divulgação, tornando-se então, incompreensível que, com diminuto interesse substantivo, podem, não
para o grande público, a linguagem dos cientistas. obstante, ser comparados com as predições do para-
Algures entre 1740 e 1780, os electricistas defini- digma, como o caso dos telescópios especiais desti-
ram o seu campo de estudo. Daí para a frente, pu- nados a comprovar a paralaxe anual prevista por
deram dedicar-se a problemas mais específicos, Copérnico. Esta necessidade resulta muitas vezes de
passando os seus trabalhos a ser relatados a cole- uma teoria ser expressa de forma predominante-
gas, alcançando aí o que fora obtido pelos mente matemática e de, em consequência, ser mais
astrónomos da antiguidade, que já então eram por- difícil a sua comparação com a natureza.
tadores de uma linguagem inacessível aos leigos. A terceira classe diz respeito aos fenómenos acerca
Como ficou acima dito, o paradigma vencedor dos quais os cientistas se debruçam empiricamente
impõe-se aos cientistas por ser melhor que os seus para resolver determinados problemas, de forma a
concorrentes. Mas, frequentemente, tal sucede ape- poderem articular a teoria do paradigma. É o caso da
nas pela promessa de resolução satisfatória de procura de novas constantes nas ciências mais
problemas que se pode depois confirmar, como no matemáticas (constante de gravitação, coeficiente de
caso dos cálculos ptolomaicos para a posição dos Joule, número de Avogadro, etc) ou de leis quantita-
planetas. Enquanto o paradigma for aceite, o pro- tivas (Leis de Boyle e de Coulomb). Sabe-se que os
gresso científico consiste, pois, na actualização per- paradigmas foram condições necessárias para estas
manente desta promessa. Acontece mesmo que os descobertas e que elas não surgiram pelo desejo de
cientistas não estão em geral despertos para desco- "medir por medir", como poderia sugerir uma con-
brir tipos de fenómenos que não se enquadrem no cepção puramente baconiana da ciência. É normal-

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mente estreita a relação entre o paradigma qualitati- extrao rdinárias que adiante abord a re m o s .
vo e a lei quantitativa, pelo que estas leis, com fre- Do que ficou acima dito, resulta que, em termos de
quência, são adivinhadas antes da existência do apa- pesquisa normal, há pouco interesse em descobrir
relho para as confirmar. Ainda relacionadas com esta fenómenos ou produzir conceitos inovadores ou,
terceira classe de fenómenos, temos as experiências pelo menos, inesperados. Mas além de a ciência
características de períodos e ciências tendentes a normal pretender aumentar o alcance e a precisão
estudar qualitativamente as regularidades da natureza com que o paradigma pode ser aplicado, como já
de que é exemplo a escolha da melhor aplicação do vimos, busca ainda o antecipado de uma nova
paradigma da teoria calórica que se referia ao aque- forma, como se se tratase da resolução de um que-
cimento e arrefecimento por meio de misturas e bra-cabeças. Este tipo de jogo é aquele em que se
mudanças de estado. testa a habilidade de um indivíduo chegar à re-
Esta classe de problemas, que abarca a maioria do solução, já conhecida, de um problema. De facto,
trabalho normal de uma ciência, pode consistir em não é a solução, em si própria, que é interessante,
usar a teoria para prever informações factuais com mas sim o modo de a atingir. Porém, termos uma
valor intrínseco, como a produção de calendários resolução assegurada não é suficiente. Esta não
astronómicos ou de curvas de propagação de ondas pode ser de uma natureza qualquer, o mesmo se
de rádio, tarefas a que os cientistas devotam pouco aplicando aos passos necessários para se lhe ace-
interesse, considerando que são do âmbito dos téc- der. Por exemplo, a Lei do Quadrado das Distâncias
nicos. Em contrapartida, mostram sempre mais entu- não permitia deduzir o movimento observado da
siasmo numa diferente aplicação da teoria que Lua, situação que levou alguns cientistas do séc.
resulte de uma nova experiência, mesmo que ela seja XVIII, a sugerir que ela não se adequava a pequenas
destituída de valor próprio, o que pode ser explica- distâncias, o que implicaria uma mudança de para-
do pela necessidade de ligação do trabalho intelectu- digma. Só em 1750, ao perceber-se que ela poderia
al à natureza, empreendimento por vezes difícil. afinal, também aí, ajustar-se com sucesso, se pôde
Entretanto, este trabalho empírico de articulação afastar essa necessidade. Os enunciados conferem
do paradigma, acaba por levar à reformulação pois uma limitação das soluções permitidas e au-
deste, facto que sucedeu, por exemplo, com os xiliam a formulação do quebra-cabeças. Tal foi o
Principia de Newton. Até porque essa actividade é caso das Leis de Newton até ao séc. XIX.
complementada pela confrontação entre factos e Este tipo de compromisso processa-se a vários
teoria, o que p e rmite uma maior precisão do níveis. A um mais inferior corresponde o condi-
paradigma e eliminação de ambiguidades. cionamento das várias qualidades de instrumentos
Estas três classes de problemas, constituem as tare- e formas de os utilizar. A um nível mais elevado, os
fas da ciência normal, orientada por um paradigma. compromissos, aí dependentes de factores circuns-
Porém, em determinadas ocasiões, possibilitadas tanciais, possuem tanto uma dimensão metafísica
por este avanço da ciência, ocorrem situações como metodológica. Por exemplo, com Descartes,

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surgiu o pressuposto que o Universo se compunha punha a questão: o que precisamos realmente de
de corpúsculos microscópicos e que todos os fenó- saber sobre um vocábulo quando o utilizamos? Em
menos naturais se poderiam explicar pela suas geral, dá-se um conjunto de atributos comuns a um
forma, dimensão, movimento e interacções. Assim, significado, para se passar a utilizá-lo enquanto tal.
em termos metafísicos, os cientistas "sabiam" que Todavia, diz-nos o filósofo austríaco, isso não é
no Universo, não existia nada para além necessário, visto nunca existir qualquer conjunto
de matéria dotada daquelas características. que seja, ao mesmo tempo, aplicável a todos os
Metodologicamente, ficavam habilitados a produzir membros da classe e só a estes. No entanto, apli-
enunciados que especificassem aquelas condições, camos determinado termo ao depararmo-nos com
sempre que explicavam um fenómeno natural. um objecto muito semelhante aos que já assim
Nesta perspectiva, Boyle apresentou a reorganiza- denominamos. É então uma rede de semelhanças
ção corpuscular como o fenómeno que presidiria a que nos dá a sensação de pertença ao grupo, num
toda a transformação química. Mas outro tipo de processo em tudo semelhante ao da tal criança, de
compromisso surge também a este nível: se o cien- visita ao Jardim Zoológico, que aprende a distinguir
tista prescrutar uma desordem em relação ao as aves aquáticas. Obviamente que não existindo
esperado, deve procurar uma melhor articulação famílias naturais, o nosso sucesso em nomear
das teorias ou tentar um afinamento da observação. classes provaria existir um conjunto de característi-
Esta rede partilhada de compromissos permite aos cas comuns a elas.
cientistas concentrarem-se com segurança na re- De igual forma, na pesquisa científica normal, os
solução de problemas. Porém, a partilha de para- profissionais tendem a relacionar-se por seme-
digmas revela-se mais determinante para a pesquisa lhança, com uma parte do grupo que a comu-
normal que a partilha de regras. De facto, com nidade já reconhece como detentor, pelo menos
maior facilidade, um paradigma orienta a pesquisa provisório da verdade, ao invés de seguir as suas
na ausência de regras, que o inverso. regras. Tal sucede, porque os cientistas se identifi-
Temos assim que no seio de um grupo de cientistas, cam com modelos adquiridos pela educação ou
a comunhão de paradigmas não corresponde ne- pela literatura. O que é compreensível se tomar-
cessariamente à de regras. De uma forma geral, mos em conta que eles não aprendem conceitos de
para o historiador da ciência, a pesquisa de regras forma puramente abstracta, antes ligando-os a
é até uma tarefa mais difícil que a de paradigmas. aplicações práticas. Por outras palavras, os cientis-
Isto por ser mais fácil a um grupo de cientistas tas demons-tram a apreensão das abstracções pela
entrar em acordo a respeito do paradigma, que em sua capacidade de pesquisar a partir delas, com
relação à sua racionalização e interpretação. êxito. Donde resulta que a aprendizagem de uma
Porém, se as regras não são comuns, como se teoria é selada pelo estudo das suas aplicações. E à
processa a inspecção dos paradigmas? Neste ponto, medida que a complexidade dos estudos vai
Kuhn remete-nos para Wittgenstein, quando este aumentando, as questões básicas vão perdendo

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importância, embora não deixando de os moldar. uma ruptura com o corpo prévio dos mesmos.
Mas sempre que os paradigmas se tornam inse- O caso da descoberta do oxigénio ilustra o que se
guros, abre-se o caminho para a imposição de acaba de descrever. Priestly, em 1775, identificou o
regras. Estas tornam-se, pois, mais importantes que pensou ser óxido nitroso como um ar desflo-
quando não há acordo para os problemas funda- gistizado. Por seu turno, Lavoisier que, já em 1772,
mentais. Só enquanto os paradigmas parecem sóli- punha em causa a teoria flogística, ao descobrir
dos, podem funcionar sem que seja necessário um aquilo que denominou, também em 1775, como "o
acordo acerca das razões que o fundamentam. Foi próprio ar, inteiro" e, dois anos volvidos, como
o caso da transição da mecânica newtoniana para a sendo a "possibilidade de combustão por esse gás",
quântica em que floresceram os debates, que ainda operou uma mudança de paradigma, movimento
hoje prosseguem, sobre a natureza da Física. que Priestly foi incapaz de realizar.
Mesmo nas descobertas mais acidentais, como a
As revoluções científicas dos Raios X, por Roentgen, a consciência da ano-
A actividade da ciência normal, comparável à re- malia requer processos de experimentação e assi-
solução de quebra-cabeças é cumulativa, no senti- milação. Sabe-se que outro cientista detectara já,
do em que persegue a ampliação contínua do seu ocasionalmente, o mesmo brilho inesperado numa
alcance e precisão. Quando esta tarefa é eficaz não tela de cianeto de platina e bário, ao trabalhar com
se depara com fenómenos novos. Porque ao surgir, raios catódicos. Todavia, não se pode afirmar que
uma descoberta começa com a consciência de uma este descobriu os Raios X, visto não ter ficado aler-
anomalia, definindo-se esta como o reconhecimen- tado para essa anomalia. De facto, a descoberta de
to de que a natureza violou as expectativas paradi- Roentgen só se consumou com trabalhos poste-
gmáticas. Daqui resulta que o paradigma tem de ser riores.
reformulado de forma a que a anomalia deixe de o Apesar de os compromissos do paradigma se rev-
ser, isto é, se torne uma facto esperado, já não se elarem frequentemente enganadores, não se
tratando então de um ajustamento aditivo. Pelo con- julgue, por isso, poder concluir-se que os cientis-
trário, até que o novo fenómeno encaixe na tas os devem abandonar. Ao invés, a adesão a um
natureza, não será tido como científico. Este paradi-gma permite-lhes restringir o seu campo
processo de descoberta, mais complexo do que que de investigações. Se esta adesão não se verificasse
é generalizadamente crível, implica não só o reco- a investigação tornar-se-ia pouco estruturada e
nhecimento da existência de algo, como também da mesmo caótica. Daí que nos períodos pré-para-
sua natureza. Pode nascer assim um novo paradi- digmáticos e nas mudanças de paradigma, surjam
gma, cuja atribuição de valor, é directamente pro- inúmeras teorias especulativas e desarticuladas.
porcional à estimativa da violação do anterior. A Temos assim que consciência prévia da anomalia,
partir daqui já não se está perante um processo de emergência de um diferente reconhecimento, tanto
acumulação de conhecimentos, visto ter existido em termos conceptuais como de observação e

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reformulação paradigmática constituem os passos Copérnico. No entanto, na época, o sistema geocên-


fundamentais da descoberta científica. O papel da trico não apresentava qualquer problema que o
expectativa parece, contudo, ser determinante para heliocêntrico viesse a resolver. A emergência de
que, em situações normais e, por vezes, nas anor- uma nova teoria tem assim de estar ligada às apli-
mais, a percepção vá ao encontro do esperado. A cações científicas normais. Sempre que os instru-
novidade apenas emerge na sequência de uma difi- mentos normais do paradigma conseguem resolver
culdade. Porém a ciência normal, mesmo não os problemas, a ciência, então confiante, aprofun-
estando direccionada para as novidades, pode ser da-se ainda mais no seu uso. Só a crise traz a
eficaz para as provocar, porque estas só podem sur- exigência da mudança de instrumentos.
gir para quem esteja preparado, com precisão, para Mas a consciência de anomalias não conduz, de
esperar o contrário. Daí que quanto mais rigoroso imediato, à rejeição do paradigma aceite. Uma teo-
fôr um paradigma, mais sensível ele será às ano- ria científica, que já tenha este estatuto, só é con-
malias que se apresentem. E a adesão a um para- siderada inválida quando já existe uma alternativa
digma preciso assegura aos cientistas que ele não sólida para a substituir.
será perturbado sem razão. Talvez não seja obra do Neste processo, não participa somente a inter-
acaso que a mesma descoberta surja, por vezes venção de um modelo esteriotipado de testar a fal-
simultaneamente, em locais diferentes. sificação da hipótese, pela sua comparação com a
Acabamos assim de verificar como as descobertas natureza. Existe também uma comparação dos pa-
podem levar a mudanças de paradigma. Passa-se radigmas entre si. Até porque na confrontação com
agora a abordar a forma como as mudanças mais as anomalias, os cientistas tendem, de início, a
radicais trazem consigo a invenção de novas teo- introduzir modificações ad hoc na sua teoria, de
rias. Estas são normalmente antecipadas por uma modo a que ela se ajuste ao novo fenómeno. Só em
profunda insegurança que acaba por implicar uma determinadas ocasiões, em que despontam as
destruição mais acentuada de paradigmas. crises, os cientistas parecem habilitados a viver
Insegurança que nasce do falhanço constante da num mundo desordenado, capacidade a que
resolução de quebra-cabeças da ciência normal. A Thomas Kuhn chamou "a tensão essencial". E aqui-
passagem do sistema ptolomaico para o coperniano lo que na ciência normal é visto como quebra-
foi possível por se verificar que, à medida que ia -cabeças, passa, com a emergência do novo para-
aumentando a precisão das observações da digma, a ser apontado como contra-exemplo do
Astronomia, a sua dificuldade crescia ainda mais. É anterior. De qualquer forma, registe-se que os que-
até frequente que a formulação da teoria emergente bra-cabeças só existem porque os paradigmas não
ocorra muito antes de ela ser aceite. Sucede, resolvem todos os problemas. Quando o fazem, tor-
porém, nestes casos que, por não haver crise, nam-se apenas instrumentos para tarefas técnicas.
acaba por ser ignorada. Tomemos o caso de É a crise que, ao provocar a proliferação de versões
Aristrarco que, no séc.III a.c., antecipou a teoria de do paradigma, enfraquece as regras de resolução

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A Aprendizagem segundo Karl Popper e Thomas Kuhn

dos quebra-cabeças, abrindo então caminho à descoberta dos Raios X pode ter sido, para os
emergência de um novo paradigma. astrónomos, uma mera adição ao seu conhecimen-
Por seu turno, só as anomalias suficientemente to. Contudo, o mesmo não se aplicou a quem tra-
importantes geram crises. Caso seja de pequena balhava na teoria das radiações que experimentou,
monta, isto é, se se trata apenas de mais um que- assim, uma mudança de paradigma. Uma outra
bra-cabeças, não consegue que o cientista nela se semelhança entre os dois tipos de revolução corres-
detenha. Apenas quando um grande número de ponde à forma como esses períodos se vivem.
cientistas lhe dedica atenção, se transforma em Parece não existir qualquer instituição dominante e
crise. a escolha entre as várias concorrentes assume-se
As crises, que de resto muito se assemelham aos como uma opção entre modos incompatíveis de
períodos pré-paradigmáticos, podem resolver-se de vida comunitária, o que implica uma incomensura-
três formas: com o seu desaparecimento no quadro bilidade das suas maneiras de ver o mundo. Os par-
do paradigma aceite; com a sua suspensão por o tidários de cada lado tentam a persuasão com argu-
então estado da arte não permitir qualquer solução mentos próprios do paradigma que defendem, ou
ou pela emergência de um novo paradigma. Como seja, de forma circular. E parece contar mais a
facilmente se compreende, este processo não se dá própria técnica de persuasão que a exposição lógi-
por acumulação em relação ao anteriormente ca da argumentação. Cada paradigma parece satis-
adquirido, antes implicando a reconstrução da área fazer-se com os critérios que dita para si, não se
de estudo a partir de novas bases, sendo nestes mostrando capaz de o fazer em relação aos dos
períodos que os cientistas se viram novamente para oponentes. Mas aqui acaba por entrar em jogo a
a análise filósofica, para tentar resolver os proble- questão de saber quais os problemas cuja re-
mas que se apresentam. É curioso constantar que solução é mais importante. Trata-se já de uma
os responsáveis pelas invenções são, em geral, escolha de valores que acaba por extravasar o
jovens e, portanto, familiarizados há pouco tempo âmbito da ciência.
com o paradigma que ajudam a destruir.
Podemos então considerar que as revoluções cien- CONCLUSÕES
tíficas são episódios de desenvolvimento não cumu- Vejamos agora as principais consonâncias e dis-
lativo em que o paradigma anterior é total ou par- sonâncias entre as teses de Karl Popper e Thomas
cialmente substituído por um outro, incompatível Kuhn. Começando por salientar os principais pon-
com aquele. E, tal como as revoluções políticas, são tos de contacto, vemos que, ambos os filósofos, dão
precedidas por um sentimento crescente de que o ênfase ao processo revolucionário que leva a que
paradigma vigente deixou de funcionar; também à uma teoria seja substituida por outra, para o que
semelhança do que ocorre no campo político as contribui, decisivamente, o fracasso da primeira. E
revoluções precisam de o parecer somente para os ainda, que ambos dão importância à ligação entre
afectados pelos paradigmas. Por exemplo, a teoria e observação e que esta jamais é neutra.

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As divergências acentuam-se no que toca à questão ajustamentos desta, devido à estabilidade que lhe é
de saber se, como defende Popper, o cientista conferida pela partilha de um paradigma, que pro-
procura o derrube sistemático da teoria aceite ou move então, por acumulação, o crescimento cientí-
se, como sustenta Kuhn, esta é uma premissa que fico. Devido a não tentarem solucionar os enigmas,
permite, nos períodos normais, o crescimento da seriam estes ajustamentos que faltam às não ciên-
ciência por acumulação. Nesta perspectiva, Kuhn cias.
somente dá importãncia ao discurso crítico, em Kuhn rejeita igualmente a tese de Popper, segundo
momentos de crise, sublinhando que o cientista é a qual se devem procurar todas as consequências
treinado fundamentalmente para a ciência normal, lógicas de uma teoria para depois extrair as ver-
situações em que ele estaria ausente. Pelo con- dadeiras e as falsas, por considerar que uma teoria
trário, Popper confere-lhe um estatuto de per- nunca está completamente articulada de forma ló-
manência em toda a evolução científica. gica, realçando, mais uma vez, o papel dos exem-
Este ponto prende-se com a discussão em torno dos plos na construção das teorias.
critérios de prova. Assim, enquanto Popper coloca Podemos, finalmente, observar que, para a dis-
neles a tónica para a validação das teorias, Kuhn, cussão deste tema, Popper traz, exclusivamente,
acentua o papel da procura das soluções para os elementos da lógica, enquanto Kuhn dá igualmente
enigmas. Por exemplo, nos casos da Astrologia e da valor aos factores psicológicos que intervêm no
Psicanálise, em que o primeiro aponta a não corpo científico. O que torna, para o primeiro, o
existência de falibilismo, para as rejeitar enquanto desenvolvimento científico como um processo indi-
ciências, o segundo demarca-se delas, pela forma vidual e idiossincrásico e, para o segundo, uma
como os seus praticantes explicam os fracassos, em actividade grupal.
que a argumentação se encerra num círculo
vicioso. Porém, Kuhn admite até, que esta confor- Bibliografia
mação intelectual com o fracasso, pode existir, em-
bora em menor grau, nas ciências menos exactas, Kuhn, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Sâo
como a Medicina ou a Metereologia e, mesmo nas Paulo.Editora Perspectiva S. A. 6ª Edição. 2001.
mais exactas, em períodos de crise. Mas para as
Kuhn, T. S. A Tensão Essencial. Lisboa. Edições 70.
não ciências trata-se apenas de partilhar uma teoria 1989.
para promover a plausibilidade da disciplina, bem
como as técnicas empregues. Em suma, Popper vê Popper, K. R. A Vida é Aprendizagem. Lisboa.
o erro em ciência, como destruidor de toda a teo- Edições 70. 2001.
ria, ao passo que Kuhn, crê que ele leva somente a

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