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R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 1

Reificação e linguagem em
Guy Debord
2 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Universidade Estadual do Ceará-UECE

Reitor:
Jáder Onofre de Morais

Vice-Reitor:
João Nogueira Matos

Editora da UECE - EdUECE


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Chanceler:
Airton José Vidal Queiroz

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Coordenação Editorial da Unifor:


José Antônio Carlos Otaviano David Morano
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 3

João Emiliano Fortaleza de Aquino

Reificação e linguagem em
Guy Debord

Prefácio
Ilana Amaral

UNIFOR
ENSINANDO E APRENDENDO

Fortaleza - 2006
4 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

R eificação e linguagem em Guy Debord


© 2006 Copyright by João Emiliano Fortaleza de Aquino
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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Revisão de texto:
Estenio Ericson Botelho de Azevedo
Roberto Robinson Bezerra Catunda

Editoração Eletrônica:
Antônio Franciel Muniz Feitosa

Capa:
João Emiliano Fortaleza de Aquino

Impressão:
Gráfica da Unifor

Tiragem:
500 exemplares

Ficha Catalográfica: Thelma Marylanda Silva de Melo CRB 3/623

Aquino, João Emiliano Fortaleza de


A657r Reificação e linguagem em Guy Debord/João Emiliano
Fortaleza de Aquino. – Fortaleza: EdUECE / Unifor, 2006.

200p.

ISBN: 85-88544-10-5
Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Teoria Crítica. 3. Estética. 4. Comunicação.
5. Expressão. I. Título.

CDD: 100
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 5

Agradecimentos

Este livro é a publicação parcial de minha tese de doutoramento


Reificação e linguagem em André Breton e Guy Debord
apresentada em abril de 2005 ao Programa de Estudos Pós-
graduados em Filosofia da PUC-SP. Nesta ocasião, ratifico meus
agradecimentos à Banca Examinadora, compostas pelos
Professores Dr. Paulo Eduardo Arantes, Dr. Celso Fernando
Favaretto, Dra. Eliane Robert Morais, Dr. Antonio José Romera
Valverde e Dra. Jeanne-Marie Gagnebin, minha orientadora, a
cuja generosidade intelectual devo em grande parte o
desenvolvimento exitoso de minha pesquisa.
Agradeço também à Capes (PICDT-UECE) e à Unifor (Fundação
Edson Queiroz), que tornaram materialmente possível o curso e
sua conclusão.
Aos Professores Batista de Lima e Lucili Grangeiro Cortez, por
seu empenho por esta publicação.
Muito especialmente, a meus pais, irmãos e sobrinhos, em
convivência com os quais, e pelo amor junto a eles
experimentado, tudo se tornou possível e bom e a promessa foi
inscrita.
A Estenio, Ilana e Robinson por compartilharem do sentido, das
palavras e do uso; uma partilha que, sendo comunicação e ação
comum, veio a ser fundamental à minha decisão de publicar
este trabalho, expressando um novo tempo que é vestígio de
todos os outros que virão.
6 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

A Augustino, Dimas, Deínha, Edson, Galba, Glau, Gorete, Jeff,


Júnior, Maxwell, Neidinha, Ormezita, Patrick, Roberto, Rossana,
Sílvia Fernanda, Sulivan, Tyrone, amigos com os quais momentos
tão importantes desta caminhada puderam ser compartilhados.
A Caciana e Fran, pela amizade, por inúmeras outras coisas e
também por Freud.
A Adriana, Almir, Érika, Guilherme, Josberto, Léo, Lílian, Luciano
(USP), Luciano (UFMA), Luis Inácio, Marli, Neto, Orlando, Pablo,
Plínio, Sônia, Sybil (Gugu), Talita, Vieira, Wilson, que ajudaram
a tornar São Paulo um lugar de diálogo e solidariedade. Do mesmo
modo, àqueles que, na chegada ao Estado de São Paulo, comigo
se mantiveram no aconchegante “exílio” de Campinas: “cumade”
Desterro, Jô, “cumpade” Lindomar, Manuel Carlos, Sarinha
(Sassá) e Vitória.
A Adauto, Araci, Casemiro, D. Conceição (Secretária do CCH-
Unifor), Expedito, Fátima, Jackson Sampaio, Jomar (i n
memoriam), Manfredo Ramos, Maria Teresa, Sylvinha, Sílvia
Helena (Secretária da Coordenação de Filosofia da UECE),
amigos e colegas de trabalho, sempre solidários.
A Joyce, Secretária da Pós-graduação em Filosofia da PUC.
A Cleide, Noeme, Vânia, Vanessa, protetoras e anjos da guarda
do dia-a-dia.
A meus alunos da UECE e da Unifor.
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A Assis e Vilani, meus pais.


8 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 9

Puisque chaque sentiment particulier n’est que


la vie partielle, et non la vie entière, la vie
brûle de se répandre à travers la diversité
des sentiments, et ainsi de se retrouver dans
cette somme de la diversité... Dans l’amour,
le séparé existe encore, mais non plus comme
séparé: comme uni, et le vivant rencontre le
vivant.

Guy Debord, La societé du spectacle (o filme)


10 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 11

Sumário

Para além do espetáculo (Ou: dos possíveis valores desta obra) 13

Considerações introdutórias 23

Capítulo I: Espetáculo e linguagem 45


1.1 O tempo e a existência histórica 47
1.2 O tempo pseudocíclico da “sociedade do espetáculo” 58
1.3 A natureza arcaico-moderna do “espetáculo” 66

Capítulo II: O problema da expressão 87


2.1 Surrealité e expression em Breton 89
2.2 Debord e a crítica da “superestimação do inconsciente” 95
2.3 Os limites da expression e da profondeur de l’esprit 103

Capítulo III: Expressão estética e comunicação prática 121


3.1 O conceito de langage commun 123
3.2 Arte moderna e aspiração a uma nova comunidade 135

Capítulo IV: Crise e desvio da arte moderna 149


4.1 O barroco e a invasão da arte pelo histórico 150
4.2 A crise da expressão, enquanto crise da arte moderna 161
4.3 Détournement e comunicação histórica 172

Considerações finais 183

Bibliografia 191
12 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
PARA ALÉM DO ESPETÁCULO 13

Para além do espetáculo


(Ou: dos possíveis valores desta obra)

Isso que aqui se apresenta não passa de um


pequeno folheto, proprio marte, proprio
auspiciis, proprio stipendio.
Kierkegaard

O livro que ora se apresenta é a publicação de parte da


pesquisa que resultou na tese de doutoramento de Emiliano
Aquino sob o título Reificação e linguagem em André Breton e
Guy Debord. Como parte de uma tese de doutorado, é um trabalho
minucioso, resultado de uma pesquisa séria. É assim um
excelente trabalho de especialista, desses que servem para
ilustrar o público universitário e estimular novos estudos e
pesquisas sobre o tema. Enquanto parte de uma tese, este livro
possui méritos não negligenciáveis. A aprovação com nota
máxima e louvor e sua indicação imediata para publicação, bem
como sua escolha pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia
da PUC de São Paulo como candidata ao Prêmio Anpof de melhor
tese em filosofia do ano de 2005, são disso demonstrações
suficientes. Num contexto em que, no âmbito da pesquisa
filosófica, os especialistas são cada vez menos capazes de
encontrar conexões interessantes que permitam referir o seu
olhar de lupa a questões mais fundamentais, menos capazes,
portanto, por meio destas relações mais amplas, de apontar para
algo que possua interesse para alguém além da meia-dúzia de
outros especialistas pagos para avaliá-los, para estudiosos do
mesmo autor ou para alguns candidatos a futuros especialistas,
14 ILANA AMARAL

os estudantes universitários, num tal contexto de deserto


intelectual, próprio à miséria do nosso tempo, a tese de Emiliano
Aquino é um verdadeiro oásis. Com efeito, para além de ser o
primeiro a apresentar a reflexão de Guy Debord no Brasil,
trabalho que ele realiza com uma acuidade e clareza que só o
bom olhar analítico do especialista permite e que, enquanto tal,
cumpre a função de apresentar ao leitor brasileiro um Debord
quase inteiramente desconhecido, Emiliano Aquino escreve uma
tese capaz de levantar interessantes problemas relativos às
questões mais centrais dos nossos tempos para o público
acadêmico. A seriedade de seu trabalho é atestada pelo uso das
fontes primárias nos originais, seguida de uma investigação
exaustiva das fontes secundárias e de ricas conexões, com uma
erudição sábia, daquelas que quase não se vê mais. Ela é
amparada ainda – o que permite uma maior inteligibilidade acerca
das reflexões de Debord – por uma cuidadosa pesquisa histórica
dos contextos de produção de seus textos. Assim, se A sociedade
do espetáculo é o centro de sua análise acerca da reflexão
debordiana, não ocupam lugar de menor importância os textos
da Internacional Situacionista e demais obras daquele autor às
quais Emiliano recorre para esclarecer importantes passagens
de sua obra principal.
Emiliano Aquino realiza assim, em seu texto, uma
apresentação de A sociedade do espetáculo na qual esta é posta
em relação com os debates filosóficos e sociais tanto das
vanguardas literárias como da intelectualidade francesa do
segundo pós-guerra, assim como com algumas referências
centrais para Debord no âmbito da tradição filosófica. A discussão
realizada acerca da perspectiva dos surrealistas, em particular
a da obra de André Breton, na qual são apontadas como centrais
as questões da linguagem e da crítica da modernidade, pontua
como um momento ímpar de clareza e acuidade. A abordagem
histórico-social que põe o pano de fundo para a análise dos
conceitos lhe permite apontar, quando da tematização do esforço
filosófico subjacente à postura de Breton, os momentos
PARA ALÉM DO ESPETÁCULO 15

essenciais de uma abordagem da linguagem e da experiência


artística cuja raiz é a própria crise de sentido encontrada pelo
autor do Manifesto surrealista como realidade nuclear da
experiência moderna, diante da qual as experimentações
surrealistas se constituem numa proposta de desmascaramento
e, portanto, mais como recusa desta ausência do que como
tentativa positiva de uma resposta propriamente artística ao
problema do sentido. A tematização dos pressupostos ético-
políticos da obra de Breton, pensados a partir do horizonte do
autor de A s ociedade do espetáculo, para além de informar
(seguindo os passos de Peter Bürger, embora deles também se
afastando) sobre a natureza da ação das vanguardas literárias,
naquilo que estas significam, dada a própria pergunta pelo sentido
da atividade artística no mundo moderno, tal tematização conduz
a uma dimensão central do horizonte da modernidade, qual seja,
aquilo que Emiliano Aquino caracteriza como a afirmação de um
horizonte expressivo do Eu, diante da ausência de sentido das
relações entre os Eus, e da linguagem como expressão, em sua
experiência presente. Estes, dentre inúmeros outros, são
momentos que iluminam o debate acerca das vanguardas
literárias e de suas relações com o universo histórico-social
que as circunda, ao mesmo tempo em que trazem para o centro
da discussão o debate, central à filosofia contemporânea, acerca
das determinações da relação entre o Eu, tomado como
subjetividade substancial e, assim, isolado em um solipsismo
iniludível, e a exigência de se pensar a linguagem como
experiência fundante daquilo que é o homem. Aqui, ressaltando
a continuidade de esforço crítico entre Debord e Breton em
associar a possibilidade de uma linguagem com sentido à crítica
da experiência moderna enquanto lugar de sua ausência, o autor
aponta para aquilo que é o elemento mais central de sua tese:
conceber a linguagem como determinação central do humano
implica – e é assim que a linguagem se encontra tematizada por
Debord – pensá-la como comunicação, como diálogo prático,
para além, portanto, dos horizontes da linguagem pensada como
16 ILANA AMARAL

expressão de um Eu que, deste modo, se apresenta sempre


num isolamento fundamental, isolamento que justamente indica
a sua natureza substancial, não-mediada pela linguagem. É assim
que esta perspectiva de Debord, embora em continuidade com
o impulso do esforço crítico de Breton, dele se afasta
radicalmente quanto às conclusões.
Apontando as posições de Debord com relação a algumas
das questões mais caras à filosofia contemporânea, nosso autor
consegue apresentar um Debord iluminado pelos diálogos que
estabelece, seja com as vanguardas literárias seja com a tradição
ocidental em seu conjunto. As relações com Heródoto e
Maquiavel, bem como as especificidades da apreensão de Debord
acerca da experiência histórica da pólis grega, que o autor
destaca serem contemporâneas àquelas realizadas no final dos
anos cinqüenta e início dos sessenta pelos helenistas franceses,
são momentos de seu texto nos quais o caráter polêmico, a
apropriação detournée por Debord de temáticas daqueles autores
e a retomada de contextos históricos são ressaltados. Isto se dá
em uma particular oposição a certas leituras – como aquelas
realizadas por Anselm Jappe e Michael Löwy – que precisamente
descuram deste caráter desviado das apropriações feitas por
Debord, seja de idéias seja de momentos da experiência histórica,
para com isso autorizar justamente uma leitura que reenvia a
obra de Debord a um substancialismo do qual a leitura de
Emiliano Aquino precisamente se afasta de modo radical. É assim
que a atribuição de um romantismo (Löwy) ou de uma nostalgia,
que de todo modo o situaria em relação com o romantismo
(Jappe), é inteiramente refutada com base na exposição de dois
elementos centrais à leitura de Debord. Em primeiro lugar, a
centralidade da crítica do presente, centralidade cuja natureza
de per se exclui qualquer passadismo da reflexão debordiana.
A esta centralidade da crítica do presente na obra de Debord é
fundamental justamente a crítica das separações, separações
que, como afirma Emiliano Aquino, encontram-se presentes
também em todos as sociedades de classes anteriores à
PARA ALÉM DO ESPETÁCULO 17

sociedade espetacular. Assim, a apropriação de Debord da


experiência da pólis grega é inteiramente desviada. Não se trata
de uma afirmação in totum daquela experiência, mas da retomada
da possibilidade do livre uso de seu “tempo vivido” realizada
pelos senhores da democracia ateniense, da retomada deste
assenhoreamento de si que a experiência grega significa para
Debord. Este elemento do uso autônomo e universal, entre os
senhores, do tempo e da fala – a isonomia e a isegoria da pólis
– aparece inteiramente identificado por Debord à presença
naquela experiência das separações – o trabalho escravo e a
exclusão do feminino e a própria forma estatal da experiência
grega – que o capitalismo espetacular aprofunda e torna
universais. Assim, o que Emiliano Aquino mostra, em sua
polêmica com Jappe e Löwy, é que se trata, para Debord, quando
desta apropriação da experiência grega, de retomar, desviando-
os, os elementos da experiência passada. As condições desta
apropriação desviada do passado, contudo, são pensadas sob o
signo das possibilidades dadas no presente. Esta centralidade
do presente afirma-se a partir da constatação – e Emiliano Aquino
apresenta uma articulação interessante entre Breton e Debord
em sua exposição que é particularmente generosa com a leitura
de Breton, como o é, aliás, todo o seu texto – do caráter
necessariamente ambíguo da apropriação da experiência
moderna, pois se se trata para ambos de criticá-la como locus
da ausência de sentido, trata-se também de afirmar
positivamente alguns de seus elementos centrais; em particular,
para Breton, é preciso assumir aí a própria aparição do indivíduo
e, especialmente para Debord, as possibilidades abertas com o
intenso desenvolvimento dos poderes materiais da sua época.
Essa leitura é justo o que permite a Emiliano Aquino apresentar
a assunção por Debord das possibilidades abertas – e ao mesmo
tempo negadas – na modernidade como o exato oposto de um
qualquer passadismo romântico. Em segundo lugar, a afirmação
da linguagem como centro da reflexão de Debord, afirmação em
cujo núcleo se encontra justamente o elemento dinâmico do
18 ILANA AMARAL

diálogo concreto na negação do presente, possibilitado pela


crítica prática das relações espetaculares do capitalismo
contemporâneo, implica justamente a abolição necessária de
qualquer elemento substancializador que autorizaria aquelas
leituras nostálgicas. Assim, dentre os muitos méritos deste livro,
encontramos o de repor com rigor a reflexão de Debord na
perspectiva do diálogo prático e negativo que lhe é essencial,
perspectiva que afasta muito radicalmente a resposta debordiana
ao problema da linguagem de alternativas “dialógicas”
apresentadas na filosofia contemporânea – penso em Habermas
e em Appel – cuja natureza é centralmente determinada pela
positivação da experiência do discurso. O que aparece como
central ao Debord que Emiliano Aquino nos apresenta é, ao
contrário, uma consideração do diálogo cuja determinação é
negativa. Tal como exposta por Emiliano Aquino, a reflexão de
Debord se apresenta, em um aspecto essencial, distante daquela
de Adorno, autor que, como sublinha o próprio Emiliano Aquino,
também acolhe em sua reflexão a centralidade do negativo. Tal
aspecto é aquele que se refere, em Debord, à centralidade do
diálogo prático como linguagem da negação desta forma histórica
do mundo, como atividade negativa possível diante das
contradições do mundo moderno, postura que, assumindo as
possibilidades de negação sempre repostas na contradição
essencial às relações fetichistas, não se conclui na perspectiva
de um “grande hotel abismo”, para usar as palavras de Lukács,
mas ao contrário, remete todo o horizonte da crítica ao terreno
da comunicação prática, pensando-a a partir do elemento mesmo
da negação em ato no tempo presente.
Falar de negatividade nos conduz aqui a um outro plano
possível de abordagem deste livro. O que ele expõe como central
– a reivindicação do diálogo prático e negativo por Debord – é a
crítica teórico-prática do mundo contemporâneo. Esta é levada
a efeito, como lembra Emiliano Aquino citando Giorgio Agamben,
por um Debord estratego, isto é, que antes de situar-se como
filósofo se pensava como homem de ação. Em seu centro
PARA ALÉM DO ESPETÁCULO 19

encontra-se a recusa da reificação e das separações produzidas


pelas e nas relações espetaculares. Tal crítica supõe em Debord,
como já antes supusera em Marx, a assunção da natureza
contraditória das relações fetichistas como determinação central
do mundo moderno, contradição nucleada na relação entre valor
de uso e valor de troca inscrita na forma-mercadoria. Deste
modo, e segundo as reflexões por ele mesmo apresentadas, um
livro e este livro, nas atuais condições sociais de produção, é
necessariamente uma mercadoria. Se este livro se origina do
financiamento estatal e da aprovação das instituições
universitárias, ele aumenta seu valor de troca, tanto pelo
acréscimo simples das horas de trabalho dedicadas à formação
especializada, como pela introdução do valor simbólico que, sob
as relações espetaculares, a hierarquia do trabalho intelectual
sempre supõe. Um livro, este livro é, do ponto de vista do valor
de troca, uma expressão da “separação consumada” da qual
nos fala Emiliano Aquino, expondo Debord.
Como mercadoria, entretanto, – e aqui a negatividade
diante da autonegação ínsita à subsunção do valor de uso no de
troca assume justamente o seu lugar central –, o presente livro
deve ter também, necessariamente, um valor de uso. É certo
que, como mostra com rigor Emiliano Aquino, não vemos em
Debord uma nostalgia das sociedades fundadas na produção de
valores de uso, mas antes a aposta na necessária ruptura com o
mundo presente. Esta ruptura, no entanto, parte do acolhimento
da sociedade moderna segundo aquilo que ela implica de
desenvolvimento positivo dos poderes materiais sociais do
homem, cuja apropriação comum, contudo, encontra-se negada.
Se não encontramos em Debord uma utopia reacionária de
reconstituição de uma sociedade produtora de valores de uso,
isso está, entretanto, longe de significar que o uso enquanto tal
deixe de significar para ele o horizonte concreto da existência
humana, concretude cuja subssunção no abstrato do valor
econômico justamente põe a contradição nuclear das relações
mercantis-espetaculares. Antes, trata-se radicalmente, para
20 ILANA AMARAL

Debord como para Emiliano Aquino, de afirmar o horizonte da


concretude, do uso que nega sua subsunção no abstrato da troca,
como possibilidade de apropriação de si, pois é justamente por
esta apropriação – deste modo, necessariamente negativa – que
se pode pensar a linguagem com sentido: a comunicação.
Este livro, que apresenta justamente a natureza
contraditória das relações fundadas no valor, próprias à nossa
experiência contemporânea, vive, deste modo, ele próprio, esta
agonia esquizóide própria a toda mercadoria. Como produto do
trabalho especializado ele é a confirmação da separação
consumada do mundo mercantil. Enquanto tal, também a sua
apropriação pela via universal do especialismo, ou seja, a sua
apropriação nos marcos de um trabalho acadêmico, será sempre
o oposto daquilo que seu conteúdo afirma. A este uso
especializado aparecerá como inteligente, interessante, brilhante
mesmo, o feito do autor quando da discussão, por exemplo,
sobre tempo e história, discussão na qual a retomada da crítica
marxiana da reificação é posta em relação com o uso concreto e
possível do tempo. Do mesmo modo, uma tal apropriação verá
como intelectualmente instigante a discussão sobre o lugar da
linguagem na reflexão debordiana, reflexão que de modo
profundamente ilustrado remete a tantos diálogos no interior da
tradição filosófica e com as vanguardas artísticas. Dentre estes
diálogos, Emiliano Aquino retoma uma relação teórica
particularmente importante: a das reflexões de Debord com as
do jovem Lukács da Teoria do Romance, com as do Benjamin
de Origem do drama barroco, O narrador, A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, além de com o Adorno da Teoria
estética. Aos olhos do especialista, ela parecerá pertinente,
inteligente, erudita e extremamente perspicaz.
Se a realidade nos olha de volta respondendo ao modo
como a olhamos, como dizia um filósofo caro a Emiliano (essa é
por conta da nossa “reserva nacional”...), uma outra apropriação
ou um outro uso possível deste seu texto qualifica aquela
exposição sobre tempo e história tão-só – e isso é mais que
PARA ALÉM DO ESPETÁCULO 21

qualquer elogio especializado possa dizer – como uma soberba


expressão da crítica da economia política, de teoria efetiva da
crítica prática do presente. Esta mesma apropriação entende as
relações de Debord com o jovem Lukács e Benjamin não como
relações – o que seria inteiramente estéril e, no máximo,
“interessante e produtiva” – entre autores da tradição, mas a
entende antes como relação entre posições comuns de uma
tradição de negação crítica do e no presente. Naquela tematização
do tempo e da história, assim como no conjunto deste texto, o
que está em jogo, para um tal uso que parte da negação ao invés
de um uso especializado, é a própria possibilidade prática da
apropriação comum do tempo e da vida mesma, expropriada
nas atuais relações mercantis. Do mesmo modo, tal leitura
apreende, na tematização da centralidade da linguagem na obra
de Debord, a aposta deste nas possibilidades da negação do
tempo presente, na perspectiva da comunicação, no diálogo
prático instituído na e pela negação do mundo do capital, enquanto
possibilidades únicas de constituição do sentido no tempo
presente. A comunicação, assim pensada, não é um pressuposto
positivo, mas antes é a própria afirmação da negação em ato, da
qual a fala, momento sem dúvida de positivação, é justamente
elemento inseparável, constitutivo, como afirma Emiliano Aquino
em seu texto. A comunicação e o diálogo prático se encontram,
deste modo, em outro lugar que o do discurso separado da fala
espetacular. Afinal, trata-se, na comunicação prática, de um
discurso cuja única instância de legitimação, para falar como
gostam os filósofos contemporâneos, é a sua existência bruta
de fala da negação prática, aquela que se exercita na grève
sauvage, n o sabotage do trabalho forçado (o trabalho
assalariado), nas assembléias e conselhos operários, enfim, nas
formas autônomas, antimercantis e antiestatais, de negação do
presente mundo reificado. Numa tal apropriação, perde o sentido
a armadilha filosófica que afirma a pressuposição positiva de
toda fala (como de todo pensar), dado que não se trata aqui, em
absoluto, de autolegitimação do pensamento ou da linguagem,
22 ILANA AMARAL

mas da fala que se nega enquanto é negação do mundo – e,


portanto, que é também negação de si: autonegação e afirmação
da linguagem como relação prática. É só assim, no elemento da
negação prática do mundo presente, que é possível a afirmação
do diálogo, da comunicação, tal como a pensa Debord.
Aquilo que pode significar uma leitura objetivadora – do
ponto de vista de um uso possível deste texto de Emiliano Aquino,
o uso da leitura do especialista – se limita à mera constatação
espetacular do espetáculo. Sob a perspectiva oposta, a do uso
negativo, a mesma que era a de Debord e que é a de Emiliano
Aquino, que transforma a crítica das separações em potência
destrutiva do presente, faz este livro falar, como diz seu autor
em outro contexto, “de fio a pavio sobre crítica do capitalismo
e revolução”. Como na vida cotidiana, a apropriação é o que
pode, também aqui, determinar o valor de uso deste livro. Que
de per se seu conteúdo convoque a uma posição negativa no
mundo presente é, certamente, a sua melhor promessa e a sua
maior aposta.

Ilana Amaral
Fortaleza, maio de 2006
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 23

Considerações introdutórias

[A história universal] supõe uma língua na qual


todo texto de uma língua viva ou morta deve
poder ser integralmente traduzida. Ou melhor
ainda, ela é esta língua mesma. Não como
língua escrita, mas como língua celebrada,
festejada. Esta festa é purificada de toda
cerimônia e ignora seus cantos. Sua língua é a
idéia da própria prosa, que é compreendida
por todos os homens, como a língua dos
pássaros é compreendida pelas crianças
nascidas num domingo.
W. Benjamin, em apontamentos preparatórios
a Sobre o conceito de história

I
Este livro discute as reflexões de Guy Debord (1931-
1994) sobre a linguagem, com base na hipótese de que, no centro
do seu pensamento, se encontra um esforço de reflexão acerca
da linguagem em que estética e crítica social são inseparáveis.
Trata-se, portanto, de pensar a linguagem numa relação entre
estética e teoria crítica, já que as reflexões sobre a linguagem,
neste autor, são essencialmente conexas à práxis social e à sua
crítica.
Meu ponto de partida é justamente a relação prática e
teórica de Guy Debord com a experiência histórica da arte
moderna, particularmente a dos movimentos de vanguarda
estética. Em sua ruptura com as antigas linguagens artísticas,
os grupos de vanguarda do início do século passado –
especialmente o(s) futurismo(s), o dadaísmo e, por fim, o
24 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

surrealismo – pensam o próprio de suas linguagens, suas técnicas


e seus estilos, interrogando-se pela diferença entre “velho” e
o “novo” por eles experimentado. E fazem-no todos baseados
no reconhecimento da crise – e até mesmo da impossibilidade
estética, ética e social de manutenção – das antigas linguagens
poéticas e pictóricas. Atuando e pensando em torno da primeira
guerra – o futurismo surge em 1909, o dadaísmo, em 1916 e o
surrealismo, em 1924 –, época em que se experimenta o fim do
período de paz e prosperidade capitalista na Europa (1871-
1913), os artistas de vanguarda se colocam, individual ou
coletivamente, numa reflexão que é contemporânea das
tentativas e dos fracassos de revolução social do primeiro quarto
do século, tanto quanto dos novos esforços de reflexão filosófica
que, como os seus próprios, também buscam compreender a
crise social e artística das antigas linguagens e modos de
expressão. As obras juvenis de G. Lukács são emblemáticas
desses esforços filosóficos, obras que se refletem naquelas de
W. Benjamin e T. Adorno que mantêm, numa perspectiva tanto
estética quanto de crítica social, a reflexão sobre a crise da
linguagem. Mais do que uma reflexão conjuntural, centrada no
acontecimento da guerra, embora o impacto deste
“acontecimento” lhes tenha sido fundamental, estes esforços
de compreensão da crise da tradição expressam – nas
vanguardas, não menos que na filosofia – tentativas de
configuração da nossa modernidade, tendo como núcleo
precisamente a crise da linguagem que nela se apresenta.
Para determinar melhor o problema que aqui me coloco,
contudo, faz-se necessária a explicitação, ainda que sumária,
das diferenças entre estes dois terrenos de articulação de crítica
social e reflexão estética. Nas reflexões estético-filosóficas do
século 20 que se desenvolvem numa perspectiva crítica,
especificamente naquela nascida dos esforços filosóficos das
primeiras décadas do século, mantém-se em geral, como
determinação estética central, a exigência da resolução formal
da obra de arte. Neste ponto, encontra-se a principal diferença
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 25

entre o terreno no qual se situa Guy Debord e o das reflexões


também centradas na relação entre crítica social e estética que,
principalmente com Lukács e Adorno, caracterizam o pensamento
crítico no século 20. A exigência estética da forma está no centro
da obra que o jovem Lukács publica em 1916, a Teoria do
romance. Com base nela, pensa-se predominantemente a crise
da linguagem e das formas não sob a ótica que caracteriza a
reflexão e a prática das vanguardas, nas quais há o
questionamento da forma e mesmo da obra, mas justamente
sob o critério estético da “lei formal”. Nesta obra seminal do
pensamento estético do século 20, a questão da forma é ao
mesmo tempo ética e estética.
Porque o seu mundo – a moderna sociedade burguesa – é
aquele em que “a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática”, o romance “busca descobrir e construir, pela
forma, a totalidade oculta da vida”. A forma é, assim, a busca do
sentido que não é mais imanente à vida e ao mundo, como seria
na epopéia (conforme a metafísica das formas que Lukács
apresenta nesta obra); a forma, neste sentido, “é a resolução de
uma dissonância fundamental da existência, [é] um mundo onde
o contra-senso parece reconduzido a seu lugar correto, como
portador, como condição necessária do sentido”. Esta é a
grandeza e a fragilidade do romance (e de seu mundo histórico):
a possibilidade e a necessidade da “interioridade” subjetiva e
de seu princípio ético como ponto de partida para a boa
construção da “forma”, de modo que, esteticamente, a “forma
romanesca” é ela mesma dissonante, exigindo a colaboração
das “forças” éticas e estéticas. O mesmo não ocorreria na
epopéia, onde a “afirmação” de sentido seria anterior à própria
“figuração” estética; ali, a forma era-lhe imanente porque antes
já o era à vida e ao mundo, enquanto no romance essa afirmação
de sentido é dada na própria resolução “formal”. 1

1 . Cf. G. Lukács, Teoria do romance [1916]. Tr. br. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, particularmente I, 3-
4, pp. 55 ss.
26 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Consoante com isso, Adorno – um autor em cuja obra a


relação entre teoria crítica e estética se funda numa profunda
consciência da moderna crise da linguagem e do caráter
aporético, até mesmo contraditório, da forma artística na
sociedade burguesa – volta-se, em suas análises críticas e em
suas formulações estéticas, para as experiências artístico-
literárias que respondem positivamente à crise das formas,
reelaborando-as. Para Adorno, a arte se determina pela forma
estética, pelo modo específico do seu “aparecer”, pela sua
“imagem”, estabelecendo, através da elaboração da “aparência”,
uma diferença com relação à realidade imediata. É justamente
nesta “diferença estética” que a obra de “arte autêntica”,
enquanto “objeto reconciliado na imagem”, se encontra
obliquamente com o real, torna-se o seu “conhecimento
negativo” e, portanto, a sua “consciência verdadeira”; somente
assim, é per se uma crítica da alienação e da reificação.2 Deste
modo, é sob a exigência estética da “lei formal” que Adorno
recebe positivamente em sua reflexão as obras e os autores
modernistas. Com isso, mantém-se no mesmo horizonte
conceitual do “velho” Lukács, com quem travou áspero debate
nos anos 50 sobre o “modernismo” e o “realismo”: o horizonte
das “leis imanentes à forma”, concepção fundamental à Teoria
do romance e que um e outro afirmam neste debate, ainda que
sob desdobramentos profundamente distintos.3 Por isto mesmo,

2 . Tomo estas expressões assinaladas entre aspas da primeira parte do ensaio


de Adorno intitulado Erpresste Versöhnung [1958], em Noten zur Literatur
[1958]. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1958, pp. 251-280; Une
réconciliation extorquée, em Notes sur la literature. Tr. fr. Sibylle Muller.
Paris: Flammarion, 1983, pp. 171-199.
3 . Sobre este debate Lukács-Adorno, cf. G. Lukács, Realismo crítico hoje
[1958]. Tr. br. E. Rodrigues. Brasília, DF: Editora de Brasília, 1960; T.
Adorno, Une réconciliation extorquée [Erpresste Versöhnung], edições
citadas. Para uma relação entre as posições estéticas desses dois filósofos,
na perspectiva posterior de uma importante discípula do filósofo húngaro,
ver A. Heller, “Lukács y la sagrada familia”, em Dialética de las formas.
Tr. esp. Montserrat Gurgui. Barcelona: Ediciones 62 s/a, 1987, pp. 177 ss.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 27

Adorno mantém uma distância com relação à pretensão


programática das vanguardas de dissolução da forma,
encontrando na afirmação da autonomia da forma artística um
contraponto à alienação e à massificação. Em linhas gerais, é
também esta a posição de Lukács, que encontra na especificidade
estética da obra de arte – na “grande arte” realista, na “arte
autêntica” – uma experiência a salvo da vida alienada do
capitalismo moderno.4

II

Se a discussão entre Lukács e Adorno supõe, na


formulação conceitual e crítica de cada um destes autores, uma
distinção na própria experiência artístico-literária entre o
“modernismo” e o que – com Lukács, para efeito de diferenciação
– podemos chamar de “realismo”, a determinação do objeto deste
trabalho supõe uma outra. Refiro-me à diferença entre a
experiência artístico-literária modernista , que reelabora e
mantém a forma estética, reinventando-a, e aquela que é própria
às vanguardas históricas, experiência na qual se questiona o
critério estético da resolução formal. Possibilitar esta distinção
conceitual talvez seja a grande – mas, certamente, não a única –
contribuição da obra de Peter Bürger, Theorie der Avantgarde
[1974]. Como Bürger chama a atenção, o conceito de “vanguarda

4 . Na sua última Estética, mobilizado por preocupações ontológicas, Lukács


discute a relação entre vida cotidiana e objetivação artística, concebendo
esta última num processo histórico-ontológico de diferenciação com relação
àquela, até o ponto em que a arte adquire o estatuto de uma objetivação
específica distinta das atividades cotidianas, como objetivação humano-
genérica; como as ciências, a arte seria uma atividade não-cotidiana. Como
objetivação não-cotidiana é que a arte pode ser concebida como lugar de
elaboração de um sentido ético humano-genérico que demarca não apenas
com a forma geral da cotidianidade, mas também com a cotidianidade
alienada própria da sociedade burguesa. (Cf. G. Lukács, Estética, vol. I,
“La peculariedad del estetico: Cuestiones preliminares y de principio”. Tr.
esp. Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1982).
28 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

histórica” a p r e s e n t a d o e m s e u l i v r o s e r e f e r e à q u e l a s
experiências (o futurismo russo, o dadaísmo e o surrealismo
francês) que intentaram fazer a crítica da “instituição arte”,
buscando a superação de sua autonomia – em cujo centro se
encontra a determinação da forma estética – na “práxis vital”
(isto é, na vida cotidiana). As vanguardas históricas, diz Bürger,
“não se limitam a rechaçar um determinado procedimento
artístico, mas sim a arte de sua época em totalidade e, portanto,
verificam uma ruptura com a tradição. Suas manifestações
extremas se dirigem especialmente contra a instituição arte, tal
e como se formou no seio da sociedade burguesa”. 5
Esta demarcação conceitual ajuda a pensar o específico
da práxis das vanguardas históricas com relação ao conjunto
das experiências literárias que reinventaram a linguagem na
literatura modernista (Proust, Joyce, Kafka...) e que, baseando-
se em Bürger, o crítico inglês Terry Eagleton, justamente para
diferenciá-las das vanguardas históricas, nomeia de “alto
modernismo”. 6 É preciso notar que esta distinção proposta por
Bürger e Eagleton entre o modernismo e as vanguardas está
ausente não apenas nas formulações de Lukács, Adorno e
Benjamin, mas também nas de Guy Debord. Mas esta é uma
distinção capital, de um ponto de vista teórico e para a delimitação
do objeto deste livro, pois determina o terreno no qual se movem
a s r e f l e x õ e s d o a u t o r d e A sociedade do espetáculo.
Concretamente, ela indica um outro lugar experiencial e
conceitual de articulação entre teoria crítica e estética. Ou,
dizendo com mais precisão: ela indica um outro campo no qual
o momento reflexivo-conceitual de busca de superação das
fronteiras da filosofia e da estética filosófica tradicionais se
relaciona com um momento “destrutivo” da autonomia formal
da obra de arte.

5 . P. Bürger, Teoría de la vanguardia [1974]. Tr. esp. Jorge García. Barcelona:


Ediciones Península, 1987, p. 54.
6 . Cf. T. Eagleton, “Capitalismo, modernismo e pós-modernismo”, em Crítica
marxista, v. 1, nº 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, pp. 53 ss.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 29

A teoria apresentada por Bürger, na medida em que


promove esta distinção-chave, torna-se, portanto, fundamental
para a elaboração da questão que procuro discutir no pensamento
de Debord. Certamente, numa retrospectiva histórica, esta
demarcação não pode ser absolutizada, pois a renovação da
forma no alto modernismo implicou sempre um elemento de
destruição formal que lhe foi e é central, tal como o puderam
perceber, com valorações distintas, Lukács, Adorno e Debord.
Do mesmo modo, a destruição formal das vanguardas teve
conseqüências importantes na invenção de novas formas. Este
elemento construtivo positivo da experiência das vanguardas
históricas é reconhecido por Bürger e se constitui até mesmo
no elemento central de sua teoria. Bürger concebe a crítica
vanguardista da “instituição arte” como o momento histórico de
uma “autocrítica” da arte cujo resultado concreto – histórica e
conceitualmente – não é a efetiva negação da atividade artística,
mas precisamente o desvelamento positivo das categorias da
arte na sociedade burguesa: o estranhamento (o shock dos
dadaístas), a inorganicidade (a alegoria, no sentido de Benjamin),
a montagem etc.
Também neste aspecto delineia-se uma característica
distintiva da tese que busco discutir e desenvolver neste livro.
Ao buscar pensar um possível significado histórico, e não apenas
conjuntural, do programa vanguardista de dissolução das formas,
a posição de Debord se distancia radicalmente da conclusão
última de Bürger, cujo modelo teórico parece terminar por
positivar historicamente a recuperação, pelo establishment
cultural, do projeto e dos experimentos das vanguardas
históricas. Note-se que Bürger não pretende construir uma
história da arte moderna, na qual se limitaria a identificar a
permanência, na arte pós-vanguardista, das formas postas ou
desenvolvidas pelas vanguardas; antes, procura, ao formular
uma “teoria da vanguarda”, explicitar uma racionalidade histórica
que operou, “às costas da consciência” (como diria Hegel), no
desenvolvimento da arte moderna. Em sua teoria, Bürger
30 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

sustenta a noção de “resultado do processo histórico” no qual o


momento negativo (nesse caso, a pretensão vanguardista de
reencontro da arte com a vida cotidiana) é assumido, subsumido
e, finalmente, neutralizado como um momento de uma démarche
histórica agora já concluída. Para ele, o papel histórico das
vanguardas foi, a despeito de sua “intenção” de superação da
“instituição arte”, justamente o esclarecimento do conceito geral
da arte como uma “instituição”, o mesmo ocorrendo com outras
determinações da experiência artística moderna, tais como o
conceito de “meios artísticos”, a destruição do conceito
tradicional de “arte orgânica” (simbólica), o princípio da
“construção” (determinado pela montagem e pela alegoria) na
esfera da recepção etc.
Em outras palavras, Bürger propõe uma explicação teórica
centralmente positiva, dialético-sistêmica na qual o negativo é
reconvertido positivamente. Ele não se pergunta se algum
momento negativo, em face da presente forma social e da atual
experiência estética, teria permanecido não-integrado, não-
recuperado neste “processo histórico”. Antes, concebe este
mesmo “processo histórico” como um lugar de racionalidade à
qual sua teoria oferece explicitação. Por isso, não parece casual
que ele explique a positiva reconversão estética das vanguardas
sob os termos de “restauração” e de “fracasso”: segundo ele,
as vanguardas “fracassaram” em seu projeto de fundir arte e
vida; após as vanguardas, mas também graças à revolução que
elas operaram na arte, a “instituição arte” e a “obra” foram
“restauradas”. Não há dúvida, objetivamente falando, que a
“instituição arte” e a “obra de arte” sobreviveram ao ataque
das vanguardas.7 Mas, abstraindo-se por enquanto da validade
ética e social de tal programa, caberia a pergunta: por quê?
Para pensá-la, não seria filosoficamente mais generoso falar

7 . Cf. M. Dufrenne, Art et politique. Paris: Union Général d’Éditions, 1974; R.


N. Fabrini, A arte após as vanguardas. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2002.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 31

em “derrota” e, por seqüência, em “recuperação”, “absorção”,


“integração”, noções estas que demarcam melhor a natureza
antagonista dessas experiências, ao invés do uso da categoria
de “fracasso”, que traz a idéia mais branda de simples ‘falta de
êxito’? Assim a reflexão conceitual poderia amparar-se numa
concepção de história que não se limita aos “resultados do
processo histórico”, ao mesmo tempo que, para a reflexão
estética, se tornariam mais ricas as relações entre a experiência
artística e a lógica recuperadora da sociedade existente.
Para esta perspectiva, Adorno – insuspeito quanto a
qualquer idéia vanguardista de dissolução da forma – contribui,
ao indicar a “neutralização” como imanente à reificação. Aquilo
que em Bürger aparece como racionalidade do “processo
histórico” (e é teoricamente apanhado em sua positividade)
aparece em Adorno antes como denúncia: “A neutralização é o
preço social de sua [da arte] autonomia. [...] No mundo
administrado, a neutralização é universal. Outrora, o surrealismo
protestou contra a fetichização da arte enquanto esfera
particular, mas enquanto arte, que, no entanto, era, foi empurrado
muito para lá da pura forma de protesto”. 8 Ora, esta lógica
neutralizadora da sociedade produtora de mercadorias é teórica
e historicamente inseparável das experiências de “derrotas”
das negações da ordem: somente ao ser derrotado, o negativo
pode ser recuperado; e, em tal recuperação, a positividade do
sistema só pode operar ao fazer, ela mesma, uma “montagem”,
uma desconstrução do negativo, deslocando, desviando os seus
elementos, somente assim tornados recuperáveis. Para uma
perspectiva teórica crítica, tal compreensão da lógica
recuperadora do mundo reificado exige, no trato com as questões
culturais e os problemas teóricos, uma concepção de história
diferente da que é pressuposta pela teoria da vanguarda de
Bürger. Comparando a revolução espartaquista de 1919 e a

8 . T. Adorno, Teoria estética. Tr. port. Artur Morão. Lisboa-São Paulo: Martins
Fontes, 1988; Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Surkhamp Verlag,
1970, pp. 339-340.
32 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

bolchevique de 1917, Debord falou que “vitórias” são, muitas


vezes, apenas “derrotas”; e que há “derrotas” que, sob
determinados aspectos, são “vitórias”: tudo dependeria da
persistência e do inacabamento de determinados problemas
históricos que estão em jogo nessas experiências, e que podem
ser recolocadas em jogo em experiências outras. É esta relação
diversa com a experiência histórica, na medida em que, com
base no presente, admita ou não a persistência de determinados
problemas teóricos, que fundamenta este estudo e as reflexões
que, com Debord, sugiro com relação às vanguardas. A pergunta
primeira da qual parto é: o que de negativo, das experiências
das vanguardas, permanece não-integrado, não-recuperado?
Bürger tem grande mérito ao explicitar a intenção
programática, as categorias estéticas e a importância histórica,
também em termos estéticos, da experiência das vanguardas.
Mas, ao mover-se sob o horizonte do “resultado do processo
histórico”, abdica de tomar como objeto de reflexão tudo aquilo
que excede ao que historicamente restou em positivo. O grande
achado teórico de Bürger, que lhe permite ainda criticar as
reflexões de Lukács e Adorno, sobre a “intenção” das vanguardas
de fusão de arte e vida somente o conduz a relacionar as
categorias estéticas às experiências artísticas. No entanto, o
que havia de “extra-estético” nessa “intenção”, e que, pela sua
própria natureza, deveria ser tomada como central numa análise
histórica das repercussões dessa intenção e de sua práxis
correspondente, não é examinado por Bürger. Este limite de
sua teoria não parece ser dado pelo pressuposto teórico-
metodológico em que se fundamenta (a unidade entre as
categorias estéticas e as experiências artísticas), mas antes
pela concepção de história na qual se move e pela preocupação
em inscrever estreitamente – com base no “resultado do
processo histórico” – as experiências das vanguardas numa
preocupação meramente “estética”.
Este estudo não pretende oferecer uma teoria da
vanguarda alternativa à de Bürger, à qual é devedor em mais de
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 33

um aspecto. As presentes considerações visam apenas, com


base na demarcação do campo experiencial e reflexivo que o
próprio Bürger permite identificar, a afirmação da possibilidade
da persistência e do inacabamento – no pensamento de Debord
– de algumas questões postas pelas vanguardas e que ficam à
margem da teoria do “fracasso” e da “restauração”. A
persistência e o inacabamento teóricos de determinadas questões
históricas não significam, neste caso, a “atualidade” das
experiências dadaísta, futurista (russa) ou surrealista, nem
mesmo a dos próprios situacionistas. Antes, significa a
possibilidade de que determinadas questões, que num e noutro
caso foram centrais, devem ser ainda pensadas com relação
tanto aos problemas práticos da nossa existência social quanto
aos problemas conceituais que, com base nesta mesma existência
e em suas contradições, ainda se mantêm. Neste caso, trata-se
precisamente da questão central que abordo, numa relação entre
estética e teoria crítica: o problema da linguagem. Feitas essas
considerações, a localização do assunto deste livro nas fronteiras
da Estética pode ser mais bem explicitada. Como assinalou
Adorno, a condição fundamental para a reflexão estética é uma
relação com a experiência artística fundada em categorias
especificamente estéticas. Está claro que o programa e a
experiência das vanguardas, porque colocam em questão a forma
e a obra, se afastam da categorização meramente estética. Mas
como nunca se distanciam completamente deste terreno de
experiência e reflexão, pensando a transformação da vida social
a partir dele, as vanguardas expõem, como insistem Adorno e
Bürger, problemas realmente estéticos. Esses problemas são
inseparáveis das pretensões antiartísticas e antiestéticas; e é
nesta tensão que as questões sociais da existência lhe aparecem
de modo central.

III

No início do século 20, os dois esforços que buscam a


reflexão e a apreensão sobre a experiência moderna de crise
34 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

da tradição e da linguagem – o artístico e o filosófico – se


mantêm separados prática e teoricamente, apesar de sua
contemporaneidade e da proximidade de suas preocupações.
Quanto à recepção, ainda que parcial, desta reflexão filosófica
que se desenvolve no mesmo período das vanguardas do início
do século, a experiência de Guy Debord já acontece num
momento privilegiado. Ele e seus companheiros da Internacional
Situacionista se beneficiam com as publicações em língua
francesa, no final dos anos 50, início dos 60, de obras
fundamentais daqueles esforços de reflexão, mormente
Marxismo e filosofia, de K. Korsch, História e consciência de
classe, de G. Lukács; a elas, pode-se ainda acrescentar Teoria
do romance, obra do período não-marxista deste último autor.
Com a leitura dessas obras, Debord e os situacionistas entram
em contato, portanto, com textos que foram fundamentais para
as reflexões filosóficas que se desenvolveram em situações
históricas contemporâneas às das vanguardas do início do século
e que, como estas, também pensaram a crise da linguagem.
Nem todas elas são, certamente, obras que discutem diretamente
o problema da linguagem (que, na Teoria do romance é o próprio
tema e que, em História e consciência de classe, ocupa um
importante lugar na primeira parte do ensaio sobre a reificação),
mas abrem caminho para uma abordagem mais ampla da crítica
da economia política, numa postura mais distante do dogmatismo
e da estreiteza que viriam a se constituir no chamado marxismo
oficial. Guy Debord e os situacionistas podem mediar, com estas
reflexões filosóficas, as que recebem das vanguardas e que
constituem o impulso principal de suas próprias reflexões. E
somente podem, ressalto, porque partem das formulações da
própria experiência prática e reflexiva da moderna poesia
francesa, particularmente de vanguarda, das preocupações ali
fundamentais acerca da linguagem, de sua crise na modernidade
e das buscas estéticas de sua renovação.
Surgida em 1957, a partir da fusão de alguns pequenos
grupos europeus, a Internacional Situacionista (I.S.) pretende
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 35

retomar a atividade de vanguarda que desaparecera na Europa


desde os anos 30, com a derrota das revoluções sociais, a
ascensão dos fascismos alemão e italiano e, após a segunda
guerra, a incorporação dos experimentos estéticos das
vanguardas pelo establishment cultural. Com efeito, trata-se aí
do projeto histórico das vanguardas de encontro entre arte e
vida cotidiana, encontro unicamente capaz de transformar
radicalmente esta mesma vida cotidiana e, eo ipso, ultrapassar
os limites da atividade criativa determinados, pela presente
divisão social do trabalho, às fronteiras da arte. “A arte será
assim ultrapassada, conservada e superada numa atividade mais
complexa”, diz o próprio Debord sobre o sentido deste programa
de ultrapassagem da arte. “Seus elementos poderão se
reencontrar aí parcialmente, mas transformados, integrados e
modificados pela totalidade”. 9
Para Bürger, a recolocação em jogo deste projeto das
vanguardas históricas mereceria certamente uma consideração
polêmica. Para ele, o ciclo histórico das vanguardas se encerrou
no entreguerras, por dois motivos: primeiro, porque “a pretensão
de reintegrar a arte na práxis vital já não pode colocar-se
seriamente na sociedade existente, uma vez que as pretensões
vanguardistas fracassaram”, explicação que é quase tautológica;
segundo, porque as “neovanguardas” dos anos 50-60 não
procuraram questionar a forma artística (a “instituição arte”),
mas ingressar no aparato artístico institucional. 10 Ora, Debord e
os situacionistas, extremamente críticos com relação às
“neovanguardas”, buscam recolocar o problema das vanguardas
históricas sob novos fundamentos teóricos e práticos, com base

9. “Sur l’emploi du temps libre”, Internationale Situationniste nº 4, junho de


1960, p. 4. (As referências aos números da revista da Internacional
Situacionista se baseiam em Internationale Situationniste 1958-1969. Texte
intégral des 12 numéros de la révue, édition augmentée. Paris: Librairie
Arthème Fayard, 1997; as páginas citadas se referem àquelas das primeiras
edições de cada número da revista).
10. Cf. P. Bürger, Teoría de la vanguardia, p. 67.
36 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

numa análise crítica da própria experiência surrealista e da


impossibilidade, sob o ponto de vista desta mesma experiência
e em face das novas circunstâncias históricas, de repeti-la.
Apesar das suas reais inovações formais (a pintura
industrial de Pinot Gallizio e Asger Jorn, os filmes do próprio
Debord), os situacionistas mantêm um traço já encontrado nos
surrealistas que é o predomínio das idéias, das pretensões
teóricas, das formulações programáticas em comparação com a
quantidade de “obras artísticas” produzidas, que, em geral, num
caso e noutro, foi relativamente pequena.11 Essas pretensões
teóricas são alimentadas, no contexto intelectual francês do final
dos anos 50, início dos 60, pelas diversas buscas de renovação
teórica da esquerda. Os situacionistas mantêm, neste período,
uma relação próxima a H. Lefèbvre. Em 1961, alguns deles,
incluindo o próprio Debord, chegam a ingressar no Socialismo
ou Barbárie, grupo animado, dentre outros, por C. Castoriadis,
C. Lefort, J.-F. Lyotard. Eles lêem, discutem e publicam, em
sua revista, sobre a Arguments e outros autores e publicações
teóricas de esquerda. No entanto, seria falso ver nestas relações
e nos elementos que, com base nelas, são incorporados à reflexão
situacionista, incluídas as obras de Lukács e Korsch, a
conformação teórica central de sua experiência. Bem ao
contrário, como Debord insiste em diversos momentos, há
experiências pessoais que, biográfica e existencialmente
anteriores à interlocução com a filosofia acadêmica de esquerda,
marcam profundamente a reflexão situacionista. Do próprio
Debord, parece ser a experiência vital na Saint-German-des-
Près dos anos 50, “este meio dos empreendedores de

11. Na apresentação da tradução de Ivo Barroso do Nadja, de Breton (São


Paulo: Imago, 1999), observa-se, com razão, “o número relativamente
pequeno de obras importantes que o movimento [surrealista] em seus
momentos ortodoxos [sic] produziu”. Para uma descrição dos
experimentos – “obras” – situacionistas, ver, sobretudo, M. Bandini,
L’esthétique, le politique [1977]. Tr. fr. Claude Galli, Marseille, Via
Valeriano, 1988; G. Marelli, L’amère victoire du situacionisme. Arles:
Editions Sulliver, 1998.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 37

demolição”, “o bairro de perdição”, como ele recorda em


Panégyrique I; “um bairro onde o negativo mantinha sua corte”,
afirma no filme In girum imus nocte et consumimur igni. Estas
experiências à margem do mundo intelectual francês conformam
desde o início de sua atividade todo um “programa” prático.
Nelas, Debord e seus amigos reencontram uma temática tão
fundamental ao dadaísmo e ao surrealismo – e já antes presente
na poesia e nos textos de Baudelaire – como a experiência da
deambulação, da flânerie na grande cidade moderna, temática
recolhida pelos situacionistas sob a forma da dérive e da crítica
teórica do urbanismo. Nelas, eles também se deparam
praticamente com a questão do trabalho (ou, antes, da recusa
do trabalho alienado, já presente em Rimbaud e Breton), o
problema do uso do tempo vivido e a crítica do lazer e da cultura
de massas.
É esta feição marginal e “destrutiva” da sua experiência,
que em alguns momentos conteve até mesmo, segundo Debord,
um elemento “niilista”, que se expressa na insistente valoração
positiva dos ludditas, das classes dangereuses, dos ouvriers
sauvages pelos situacionistas. Não é o caso aqui de procurar
estabelecer um perfil intelectual de Debord. Mas importa, sim,
situá-lo na “tradição insurrecional” 12 da moderna poesia
francesa, relação que, de modo algum, o distancia da cultura
clássica ou da dialética alemã, de Hegel e Marx. Ao contrário,
todas essas leituras e relações parecem ser trazidas
precisamente para essa “herança” que Debord reivindica sob o
nome de “poesia moderna”, em relação com a qual sempre se
pôs quando buscou situar-se existencial ou teoricamente. Do
ponto de vista existencial, assim se refere à experiência de sua
juventude na Saint-German-des-Près: “Afinal, era a poesia
moderna, desde cem anos, que para aí nos levara. Éramos alguns
a pensar que era preciso executar seu programa na realidade;

12. Devo o uso deste termo a Paulo Eduardo Arantes, nos seus comentários à
tese de doutoramento, da qual este livro se serve como base.
38 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

e, em todo caso, não fazer qualquer outra coisa”. 13 Teoricamente,


não é outra a explicação do impulso fundamental da teoria crítica
exposta em A sociedade do espetáculo: “Quinze anos antes, em
1952, quatro ou cinco pessoas pouco recomendáveis de Paris
decidiram pesquisar a ultrapassagem da arte. [...] A
ultrapassagem da arte é a ‘passagem ao noroeste’ da geografia
da verdadeira vida, que com freqüência fora tão procurado
durante mais de um século, notadamente a partir da
autodestruição da poesia moderna”. 14
Qual relação, porém, existiria entre sua reflexão teórica
e a experiência da moderna poesia francesa, particularmente
de vanguarda? A hipótese deste livro é a de que esta questão é
precisamente a da linguagem, fundada num conteúdo socialmente
crítico que, com base em Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e
Mallarmé, já era central para o surrealismo. Pelo menos a partir
de 1958, nos textos da revista Internationale situationniste e no
filme Sur le passage de quelques personnes à travers une assez
courte unité de temps (1959), começa a ganhar importância
temática, nos escritos de Guy Debord, o problema da linguagem.
Assumindo e buscando ultrapassar teoricamente o horizonte
modernista e vanguardista da “expressão”, ao mesmo tempo
em que reconhece e se solidariza com a natureza crítica desta
estética expressiva, Debord critica a “pseudocomunicação” da
sociedade existente e estabelece a relação entre a comunicação
e o programa, já apresentado pelos dadaístas e pelos surrealistas,
de transformação da vida cotidiana. Ele o faz justamente por
interpretar que é esta a questão que esteve no centro das
reflexões e dos experimentos práticos da arte moderna, na crítica
da instituição arte e nos experimentos de dissolução das formas
do dadaísmo e do surrealismo. É esta interpretação das

13. G. Debord, Panégyrique I [1989]. Paris: Gallimard, 1993, pp. 34-35.


14. G. Debord, “Préface à la quatrièmme éditions italienne de La société du
spectacle” [1979], em Commentaires sur la société du spectacle [1988].
Paris: Gallimard, 1992, pp. 130-131.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 39

experiências do modernismo e das vanguardas históricas o que,


antes de tudo, torna possível a sua específica recepção dos
livros de Marx, Lukács, Korsch, obras que lhe permitem pensar,
numa perspectiva ao mesmo tempo estética e de crítica social,
a questão da linguagem. Num ponto bem específico, Debord
refaz, por seus próprios meios, e com base na discussão interna
às vanguardas, um caminho que em geral foi aquele de outros
autores: o da tematização da experiência cultural, da crise social
da linguagem, inseparável da crise artística das formas, tendo
como centro as categorias críticas da reificação e do caráter
fetichista da forma-mercadoria. Ele pretende, assim,
desenvolver uma reflexão sobre a experiência histórica da arte
moderna e das vanguardas do início do século, reflexão ao mesmo
tempo centrada na questão da linguagem e baseada na crítica
marxiana do valor, e da qual, em proximidade e ruptura com
aquela experiência, resulta uma teoria crítica do capitalismo
desenvolvido, exposta em A sociedade do espetáculo.
“Fora-nos preciso retomar a crítica da economia política
compreendendo precisamente e combatendo ‘a sociedade do
espetáculo’”. 15 Essa apropriação da crítica da economia política,
explicitada pelo próprio Debord em diversos de seus escritos,
foi já observada e comentada por muitos autores.16 Ela constitui
a temática principal do livro de Anselm Jappe, Guy Debord,
talvez o mais importante – em termos de discussão filosófica –
sobre o pensamento e a experiência histórica do fundador da
Internacional Situacionista. Mas, precisamente quando identifica
na crítica da forma-mercadoria a “atualidade” do pensamento
de Debord, Jappe encontra na insistência do autor de A sociedade

15. G. Debord, “Notes pour servir à l’histoire de l’I.S. de 1969 a 1971" em La


Véritable Scission dans l’Internationale [1972]. Paris: Fayard, 1998, p.
95.
16. R. Gombin, Les origines du gauchisme. Paris: Éditions Seuil, 1971; P.
Wollen, “The Situationist International”, em New Left Review, London,
March/April 1989, pp. 67 ss; A. Agamben et al., I situazionisti. Roma:
Manifestolibri, 1991; A. Jappe, Guy Debord [1993]. Tr. br. Iraci Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
40 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

do espetáculo na tematização da linguagem e da comunicação


um “limite” em seu pensamento, pois, segundo sua análise, ela
o remeteria às noções clássicas da “natureza humana”, da
“verdade” e assim por diante.
Neste livro, pretendo pensar a relação entre a reflexão
sobre a linguagem e a crítica do fetichismo mercantil não como
duas vertentes do pensamento de Debord, em que a “atualidade”
de uma (a crítica da forma-mercadoria) é independente e mesmo
potencialmente oposta à outra (a crítica da linguagem), mas sim
como aspectos inseparáveis de um único e mesmo ponto de
partida da crítica da sociabilidade tardocapitalista, centrado na
crítica da linguagem e na crítica da forma-mercadoria.17 Trata-
se aí, segundo a minha hipótese, de uma “crítica unitária” que,
ao compreender o espetáculo como “o momento em que a
mercadoria chegou à ocupação total da vida social”, pode
também, numa mesma determinação, compreendê-lo como “o
contrário do diálogo”. 18 Em outras palavras, minha hipótese é a
de que a apreensão da crítica marxiana do fetichismo mercantil
por Debord tem sua especificidade numa nucleação – pelo
conceito de espetáculo – da questão da linguagem, sob o
horizonte comunicativo. Deste modo, a retomada do esforço
teórico da crítica do valor, por Debord, incide diretamente numa
potencialização da própria crítica da economia política para
constituir-se como base teórica para uma reflexão e uma
postulação socialmente críticas sobre a linguagem e a práxis
comunicativa (cuja diferença para com o “agir comunicativo”

17. O conceito a dar conta do capitalismo em suas atuais características neste


livro, seguindo o pensamento de Debord, é o de “sociedade do espetáculo”.
Faço uso aqui de outros termos – tais como capitalismo tardio, capitalismo
mais desenvolvido, capitalismo moderno, sociedade tardoburguesa etc. –
que designam a mesma coisa, mas liberam o leitor da repetição nominal
do conceito capaz de oferecer inteligibilidade crítica desta coisa.
18. G. Debord, La société du spectacle [1967]. Paris: Gallimard, 1992,
respectivamente, §§ 42 e 18, itálicos no original. (De agora em diante, A
sociedade do espetáculo será indicado no próprio texto ou em rodapé,
pelas iniciais SdS, seguidas do parágrafo correspondente).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 41

de Habermas será de modo rápido, mas suficiente, apontada no


terceiro capítulo). Em Debord, o conceito central desta reflexão
é o de linguagem comum como referência normativa da crítica
do presente. Conforme argumentarei, esta categoria assume
até mesmo uma natureza metafísica, motivo pelo qual sua
reflexão se encontra com as do jovem Lukács (e seu conceito
de gleiche Sprache, “linguagem igual, comum”) e de Benjamin
( e s e u c o n c e i t o d e Erfahrung , “ e x p e r i ê n c i a c o m u m e
comunicável”).
Ao situar-se sempre sob o horizonte da “poesia moderna”,
Debord se apropria das suas reflexões acerca da linguagem e
das suas experiências de destruição das formas. Com Breton e
os surrealistas, a reflexão sobre a linguagem já articula uma
assunção positiva da destruição das formas com a pergunta pelo
seu sentido. Eles buscam já, no processo de destruição da antiga
linguagem artístico-pictórica e dos velhos modos de expressão,
uma renovação da linguagem ou, mais ainda, uma nova posição
“ontológica” (e quase “mágica”, como propõe Blanchot) da
linguagem num mundo enfim liberado. Esta procura é, segundo
Debord, a questão fundamental posta pela poesia moderna
quando ela destrói as velhas formas de “comunicação unilateral”
da arte. “Não se contesta nunca realmente uma organização da
existência sem se contestar todas as formas de linguagem que
pertencem a esta organização”, diz Debord.19 Nestes termos,
apresenta-se o mesmo procedimento de compreensão da
linguagem – já proposto por Breton e pelo surrealismo – como
um lugar no qual algo de muito sério e fundamental está colocado:
o problema do modo e do sentido da vida; portanto, uma
concepção segundo a qual a linguagem não se constitui num
meio, num instrumento. Debord, contudo, afasta-se das
categorias de profundeza do espírito, inconsciente, sonho e

19. G. Debord, Sur le passage de quelques personnes à travers une assez


courte unité de temps [1959], em Œuvres cinematographiques complètes
1952-1978 [1978]. Paris: Gallimard, 1994, p. 26.
42 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

expressão, que são centrais à reflexão surrealista e que, de


modos distintos, estiveram presentes em experiências diversas
da arte moderna. Do ponto de vista histórico, os limites que ele
encontra em Breton e no surrealismo têm a ver com a crítica do
próprio capitalismo contemporâneo, num momento, o do segundo
pós-guerra, em que a insistência no inconsciente, no sonho, na
interioridade subjetiva e na expressão não-comunicativa perde
a negatividade que antes portaram; e, por isto, a questão antes
colocada por Breton quando de sua ruptura com o dadaísmo
mais uma vez deve ser posta: a pergunta pelo sentido prospectivo
da destruição, pela arte moderna, da antiga linguagem.
Esta pergunta é, para Debord, inseparável da necessidade
da “elaboração consciente do desejo” e de um novo horizonte
com base no qual a crítica da reificação precisa ser feita: uma
“nova” linguagem comum, o diálogo prático, uma nova
comunicação. Com relação ao surrealismo e às outras
experiências artísticas modernas, Debord se posiciona por uma
transição, no que diz respeito ao horizonte da reflexão estética
e social sobre a linguagem, do conceito de “expressão” ao de
“comunicação” ou “diálogo”. Esta transição, conforme buscarei
argumentar, nos remete ao próprio conceito central de sua crítica
da “sociedade espetacular-mercantil”. Em outras palavras,
Debord busca recolher e manter, ultrapassando-a, a natureza
crítica da expressão não-comunicativa (e, por isso, refratária à
“pseudocomunicação” da sociedade burguesa), tal como
concebida e experienciada pela arte moderna e as vanguardas
do início do século, formulando a perspectiva crítico-social da
“comunicação”. Este horizonte comunicativo se apresenta, assim,
inseparavelmente, como a perspectiva em favor da qual é feita
a crítica da sociedade fundada na produção fetichista de valor
e, neste mesmo gesto, à “ultrapassagem da arte”, à “realização
da poesia” se acrescenta um novo conteúdo. A expressão poética
moderna foi sempre, segundo Debord, uma denúncia da
linguagem reificada, pseudocomunicativa e até mesmo
anticomunicativa; em negativo, esta denúncia aspirou a uma
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 43

nova, autêntica e livre comunicação. A elaboração prática de


uma nova comunicação é, portanto, o modo de realizar o
programa elaborado de modo negativo pela forma e pelo
conteúdo socialmente críticos de toda a poesia e a arte moderna.
Deste modo, a superação da atual divisão social do trabalho, a
transformação da vida cotidiana, a substituição do trabalho
alienado por uma atividade livre e lúdica, enfim, a eliminação
das relações sociais fundadas na forma-valor, pressupostas no
programa das vanguardas históricas de ultrapassagem da arte,
passam a ter como núcleo e fundamento prático a produção
histórica daquilo mesmo que, na sociedade produtora de
mercadorias, é obliterado pela expropriação da atividade
produtiva: o jogo criativo e prático da comunicação e do diálogo.
Dito isto, o objeto deste livro pode ser, assim, melhor
determinado: busco aqui retomar a crítica teórica de Debord à
“sociedade do espetáculo”, sob a hipótese de que o centro dessa
crítica é a análise da expropriação da potencialidade comunicativa
dos homens, potencialidade esta historicamente constituída pelo
e no mesmo processo social de reificação que impede sua livre
realização prática. Este é o fundamento da reflexão de Debord,
reflexão ao mesmo tempo crítica e reivindicadora da tradição
insurrecional das vanguardas históricas e da arte moderna.
44 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 45

Capítulo I

Espetáculo e linguagem

O passado não nos deve absolutamente


perturbar já que devemos somente lamentar
nossos erros. Mas o futuro nos deve tocar
ainda menos, já que ele não está de modo algum
à nossa vista e que nós talvez não cheguemos
jamais a ele. O presente é o único tempo que é
verdadeiramente nosso, e o qual devemos usar
segundo Deus.
Pascal, Carta a Mlle. de Roannez

Em A sociedade do espetáculo, há três capítulos em que


Debord discute sobre o lugar e o significado históricos da
emergência da modernidade: os capítulos V – “Tempo e história”
e VI – “O tempo espetacular”, ambos centrados, como indicam
seus títulos, na experiência histórica e social do tempo, e o
capítulo VIII – “A negação e o consumo na cultura”, no qual a
linguagem é diretamente tematizada. A discussão realizada nos
capítulos V e VI sobre o moderno é inseparável de uma temática
que esteve sempre presente em toda a obra de Debord, sendo-
lhe mesmo essencial: a relação dos homens com a passagem do
tempo. Já no capítulo VIII, Debord desenvolve uma discussão
sobre a linguagem e a cultura, questões que são o próprio objeto
de discussão no presente livro e que, como buscarei demonstrar,
estão no centro da sua reflexão crítica sobre o capitalismo
contemporâneo. Tempo e linguagem, considerados em seus usos
46 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

históricos possíveis, são indissociáveis em sua reflexão sobre a


sociabilidade tardoburguesa: as atuais formas históricas de um
e de outro se determinam reciprocamente, constituindo um todo
da experiência presente da reificação. Nos dois primeiros
subcapítulos seguintes, opto por tomar a concepção debordiana
da experiência moderna com base em sua discussão dos capítulos
V e VI de A sociedade do espetáculo, confrontando-a, no terceiro
subcapítulo, com algumas passagens dos dois primeiros capítulos
do mesmo livro, centrados no conceito de “espetáculo”.
Este procedimento se justifica por dois motivos. Primeiro,
porque neste primeiro capítulo pretendo melhor determinar sua
assunção crítica da modernidade, afastando-me da hipótese de
uma crítica romântica do presente, crítica supostamente
alimentada por determinadas valorações positivas da comunidade
pré-moderna, como interpretam M. Löwy e, de certo modo,
também A. Jappe. Para M. Löwy, encontra-se em Debord um
“protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna em
nome de valores do passado”. 1 Em certa medida, esta leitura foi
antecipada por A. Jappe, que estende as análises de Debord
acerca da pólis grega e das repúblicas democráticas italianas –
que serão apresentadas a seguir – à “aldeia, [ao] bairro, [à]
corporação e mesmo [às] tabernas populares”, os quais
supostamente “constituíam formas de comunicação direta em
que cada um conservava o controle sobre uma parte ao menos
de sua própria atividade”. 2
Ora, o capítulo VIII, ao ser tomado isoladamente, apenas
superficialmente permite que os conceitos ali presentes de
comunidade e linguagem comum sejam interpretados nas
perspectivas que M. Löwy aponta (com base numa leitura que

1 . M. Löwy, que tipifica nestes termos o “romantismo anticapitalista”, enquadra


nele tanto Breton e os surrealistas quanto Debord e os situacionistas (M.
Löwy, “Consumé par le feu (Le romantisme de Guy Debord)”, em Lignes,
nº 31. Paris: Harzan-Lignes, 1997, p. 163).
2 . A. Jappe, Guy Debord, p. 61.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 47

também aparece em Jappe). Mas não me parece casual que a


discussão sobre a linguagem e a cultura, nos termos que
aparecem no capítulo VIII, seja precedida pelos capítulos V e
VI, sobre o tempo, e VII, sobre o espaço (“A organização do
território”). Se olhado mais de perto, este procedimento se revela
um método expositivo que discute antecipadamente dois
elementos fundamentais da experiência moderna – a relação
com o tempo e o espaço sociais em suas concretudes históricas
– e oferece, nesta anterioridade expositiva, o caráter “moderno”
da discussão seguinte sobre a linguagem e a cultura.
O segundo motivo desta opção é que, nas considerações
sobre a natureza arcaico-moderna do espetáculo, que seguem
à discussão – baseada nos capítulos V e VI – sobre o significado
histórico da modernidade, busco articular a relação entre a
reificação e a linguagem, relação esta que é fundamental à crítica
debordiana do capitalismo avançado e parâmetro de toda a sua
reflexão estética baseada na experiência social da linguagem, a
ser apresentada nos capítulos seguintes deste livro. Somente
com base nesta crítica do capitalismo tardio, na qual se articulam
de modo substancial a experiência social da reificação e a da
linguagem, pode ser mais bem compreendida sua concepção
comunicativa da linguagem. Neste sentido, as considerações
sobre o conceito de espetáculo, apresentadas no último tópico
deste capítulo, delinearão já de início a perspectiva distinta das
reflexões de Debord diante da reivindicação expressiva da
interioridade subjetiva pelo surrealismo e por parte significativa
da experiência estética modernista.

1.1 O tempo e a existência histórica


Debord concebe uma essencial relação entre dois termos,
os quais distingue para, na reflexão, melhor aproximá-los: o
tempo e a história. O que fundamentalmente significa a sociedade
moderna, para ele, é o surgimento de novas condições materiais
48 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

de produção social da existência, que trazem consigo a destruição


inseparavelmente dos antigos modos de experiências do tempo
e dos antigos modos de vida, da “tradição”. “Durante todo o
tempo em que a produção agrária permanece o trabalho principal,
o tempo cíclico, que permanece presente no fundo da sociedade,
alimenta as forças coligadas da tradição, que vão conter o
movimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesa
extirpa essas sobrevivências em toda a vastidão do mundo”
(SdS, § 141). Sob um determinado aspecto, ele em nada difere
aqui da interpretação materialista – ao contrário, a retoma – que
desde Marx compreendeu sempre a relação, no capitalismo, entre
o desenvolvimento das forças produtivas e a superação das
antigas formas de relações sociais. Mas, ao formular uma reflexão
sobre a experiência histórica com base na questão do tempo
histórico – da experiência e da consciência social da passagem
do tempo –, Debord ajunta à interpretação materialista
estabelecida, e com base nisto a rearticula, uma temática
específica. Trata-se de pensar o “histórico”, a “consciência
histórica”, fundados na experiência real, social, dos homens
com a passagem do “tempo irreversível”, o tempo constituindo-
se no “conteúdo principal do termo ‘história’”. 3
O que significa a irreversibilidade do tempo, como
conteúdo possível da experiência e da consciência históricas,
pode ser aproximativamente compreendido na sua apreciação
da narrativa de Heródoto: esta expressaria precisamente o devir
de uma “história consciente” como consciência de um “tempo
irreversível”. De fato, a justificativa de Heródoto para a
exposição de sua “investigação” (historía) expressa bem a
consciência de uma passagem irreversível do tempo, uma
passagem que é destruição e morte, e a qual a sua narrativa não
busca evitar, mas antes acolher como condição de possibilidade
mesma daquilo que ela quer manter na memória e salvar do

3 . Carta a Mustapha Khayati, 08.10.65 (G. Debord, Correspondance, vol. 3.


Paris: Fayard, 2003, p. 69).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 49

esquecimento. Por duas vezes, após o seu célebre parágrafo


inicial, Heródoto expressa esta representação da existência
temporal dos homens, que Debord recolhe positivamente como
consciência histórica d o tempo irreversível. Uma, quando se
apresenta como narrador isento dos acontecimentos,
“percorrendo por igual as pequenas e grandes cidades dos
homens”: “Pois a maioria das que antigamente eram grandes
tornaram-se pequenas; e as que, em meu tempo, eram grandes,
antes eram pequenas. Sabendo, portanto, que a felicidade humana
jamais permanece no mesmo ponto, recordarei igualmente ambos
os tipos” (I, 5). Outra, quando, fazendo Sólon dialogar com
Kroisos, coloca nos lábios do legislador ateniense aquela
sentença que, antes, já assumira como centro de sua própria
representação da experiência humana sob a passagem do tempo:
“todo homem é contingência, evento” (symphorê, I, 31).
Que houvesse já, na cultura grega, uma consciência da
essencial mortalidade humana, em harmonia e distinção com a
imortalidade dos deuses, Debord não ignora. Aquele trecho do
canto VI da Ilíada, que mais classicamente a expressa, ele o
cita, como epígrafe, em seu Panégyrique: “As gerações dos
homens são como aquelas das folhas...” Segundo Platão, tal
representação, não apenas da existência humana, mas de toda a
existência, seria o “fundamento” mesmo da poesia épica e todo
o pensamento grego, com exceção precisamente de Parmênides.4
Contudo Heródoto expressaria, conforme Debord, uma ruptura
radical precisamente por tematizar claramente – acrescento,
como justificativa mesma de sua narrativa – a passagem
irreversível do tempo, como lugar da atividade e da construção
humanas. Segundo diz Debord, Heródoto rompe em sua narrativa
com a representação do tempo que está presente nas antigas
crônicas, nos antigos anais e listas reais , ligados ao “poder
divinizado” do despotismo oriental, pois nestes se apresentava
certamente uma representação do tempo irreversível, mas na

4 . Cf. Crátilo, 402 a-b; Teeteto, 152 e, 180 c-d.


50 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

forma d a sucessão das dinastias, o “tempo irreversível do poder”.


Ora, se as crônicas expressavam uma consciência da
irreversibilidade do tempo – o esforço em salvaguardar na
memória, da ação destruidora do tempo, as aventuras e as
guerras dos dinastas, esforço este mobilizado precisamente pela
esperança mítica na imortalidade da alma –, elas o faziam, no
entanto, como forma de uma apropriação e um uso privados da
experiência e da memória históricas; e da memória porque antes
da própria experiência.5
Segundo Debord, a história, uso da passagem irreversível
do tempo em viagens, guerras e aventuras, é, no despotismo
oriental, um privilégio dos maîtres da sociedade; a “base” da
sociedade, todos os outros indivíduos permanecem sob a
experiência de um tempo que se apresenta repetitiva, cíclica,
imobilizada e presa à terra e ao trabalho agrícola. A
representação da irreversibilidade da passagem do tempo, com
tudo o que significa de uso livre da mortalidade, só foi possível
na experiência democrática dos senhores gregos que, ao ampliar
entre seus pares (e outros mais) as decisões da vida comum,
ampliou também a participação prática na história. Quando narra
as viagens de Sólon, Heródoto simboliza a excelência de suas
próprias viagens, não para as guerras e os comércios, como
tradicionalmente a aristocracia o fez, mas simplesmente para
conhecer e experimentar: viajar. 6 Deste modo, situa sua própria

5 . Sobre as listas reais, os anais e as crônicas, ver F. Hartog, A história de


Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 16:
“A história era real (somente o rei fazia a história), reservada (já que
estava nas mãos de uma casta de intelectuais, mestres da escrita),
monumental (fazendo-se ver também nas grandes inscrições)”. Cf. também
J. Le Goff, História e memória. Tr. br. Irene Ferreira et al. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 1992, pp. 431 ss.
6 . “Hóspede ateniense, nos é conhecida tua fama, por tua sabedoria e pelas
tuas viagens...”, diz Kroisos a Sólon (I, 30). A partir do século VI, os homens
livres da Grécia experimentaram viagens não relacionadas com as guerras
e os comércios: “Alguns, como é natural, por comércio, outros como
soldados, outros também para visitar os países...”, diz o próprio Heródoto
(III, 139).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 51

experiência de deslocamento qualitativo e concreto no espaço


– inseparável, em sua narrativa, da experiência e da consciência
da passagem destrutiva e irreparável do tempo, tornado assim
também concreto e qualitativo – na experiência da pólis grega.
É este uso qualitativo e concreto da experiência temporal
que significa, para Debord, a experiência com a passagem
irreversível do tempo. Esta concepção expressa a importância
que a atividade, a ação – no sentido clássico de práxis – ocupa
em seu pensamento. A consciência histórica que Heródoto
expressa e experimenta é um produto direto da experiência
democrática dos senhores, experiência de participação nos
negócios comuns da pólis e, na mesma medida, participação na
história, na atividade prática comum, “comunicação prática”, tal
como Debord a entende: “Desta comunicação prática entre
aqueles que se reconheceram como os possuidores de um
presente singular, que experimentaram a riqueza qualitativa dos
acontecimentos como a sua atividade e o lugar onde habitavam
– a sua época –, nasce a linguagem geral da comunicação
histórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiu
descobrem nele, ao mesmo tempo, o memorável e a ameaça do
esquecimento: ‘Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui os
resultados do seu inquérito, para que o tempo não possa abolir
os trabalhos dos homens...’” (SdS, § 133).
Esta representação de Heródoto e da experiência
democrática grega, por Debord, é contemporânea dos novos
estudos que, na França dos anos 60, começam a ser feitos sobre
a Grécia clássica e, especialmente, sobre sua experiência
democrática. 7 Um traço importante em tais estudos é o

7 . Entre outros, cf. P. Vidal-Naquet, Temps des dieux et temps des hommes
(1960); J.-P. Vernant, Les origines de la pensée grecque (1962); F. Chatelet,
La naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne en Grèce
(1962). P. Vidal-Naquet defende que, entre os gregos, a representação do
tempo nunca foi única. Em Homero e Hesíodo, há uma representação dupla,
ora como tempo irreversível e linear, ora como tempo cíclico. Em Heródoto,
contudo, há uma representação do tempo hegemonicamente linear, um
“tempo histórico” distinto do “tempo mítico”. Nele, o “tempo dos homens”
52 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

estabelecimento da relação da pólis democrática com suas


“invenções”: a narrativa histórica, a filosofia, a tragédia... Com
base em sua própria posição crítica em face do capitalismo
contemporâneo e dos interesses e preocupações nascidos das
questões postas pelo dadaísmo e o surrealismo, o específico da
apreensão desses novos estudos, por Debord, é precisamente a
da experiência e da consciência da passagem irreversível do
tempo como formas inaugurais de experiência e consciência
históricas. “O homem, ‘ser negativo que é unicamente na medida
em que suprime o ser’, é idêntico ao tempo”, diz Debord,
desviando o sentido do § 258 da Enciclopédia das ciências
filosóficas de Hegel. “A história sempre existiu, mas nem sempre
sob sua forma histórica. A temporalização do homem, tal como
ela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma
humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo se
manifesta e devém verdadeiro na consciência histórica” (SdS, §
125).
Com base nesta identidade do homem e da passagem do
tempo, concepção que tem profundas raízes na moderna
experiência poética francesa e que é central à sua crítica da
reificação, o que primeiramente Debord recolhe e interpreta
em Heródoto não é uma narrativa histórica “verdadeira” em

é o de “incerteza” e, por conseqüência, “liberdade”; mais ainda, “Heródoto


não crê que uma evolução seja reversível”. Em sua obra, F. Chatelet articula
precisamente o surgimento do “espírito historiador”, do “pensamento
historiador” (pensée historienne) na experiência da pólis grega e na
autocompreensão, naquela experiência, do homem como “ser histórico”,
que experimenta suas palavras, decisões e ações como significativas e
irreversíveis; manifesta-se aí exatamente uma consciência do “destino
temporal do homem” e da “irreversibilidade do curso do tempo”. Debord,
no entanto, não apenas recebe as conclusões de tais estudos, mas os re-
significa a partir de sua crítica da reificação do tempo no capitalismo
avançado. Deste modo, toma o gesto de Heródoto não como expressão de
um “pensamento historiador” – conceito que, em F. Chatelet, mantém-se
no âmbito epistêmico do discurso historiográfico – mas como pensamento
histórico, como consciência histórica, conceitos que remetem mais
diretamente à própria existência social como histórica, porque situada numa
atividade prática comum de intervenção e invenção históricas.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 53

oposição à “falsidade” do mito, mas este se tornar consciente


da passagem do tempo, enquanto irreversível e linear; passagem
que, na ausência da atividade prática construtiva dos homens,
se mantém inconsciente, tal como ocorre nas narrativas míticas,
onde o tempo é experimentado ainda de modo “inconsciente”
pois se apresenta sob a forma da reivindicação do passado –
enquanto permanência organizadora de sentido – ao presente.
A história – forma da passagem do tempo que submete a si e à
destruição que ele move toda a experiência humana – é, pela
primeira vez, conscientemente vivida na democracia dos
senhores gregos exatamente porque, antes de senhores de
escravos, mulheres e coisas, resolveram e conseguiram ser
senhores e “possuidores de um presente singular”, a “sua
é p o c a ” , e e x p e r i m e n t a r e m “ a riqueza qualitativa dos
acontecimentos como sua atividade”. É, portanto, a assunção
pelos homens de sua “época”, tomando-a como sua própria
“atividade”, que permite à passagem irreversível do tempo –
móvel da destruição, mas que, por isso mesmo, é também
condição e lugar da criação – se tornar “consciente”, enquanto
possibilidade e efetividade da “consciência histórica”.
Nesta análise, Debord manifesta a relação entre sua
concepção de “consciência histórica” e o uso prático e social da
linguagem, na forma do diálogo. Como Vidal-Naquet chama a
atenção, Heródoto registra – no livro V, § 78 da Historía – que a
experiência democrática dos cidadãos gregos não se centra numa
formal e abstrata isonomía, mas também na isegoría, “o direito
legal à palavra”8, ou ainda, a igualdade na agorá. Debord concebe
o uso histórico da linguagem pelos senhores gregos, como
linguagem dialogal e decisória (portanto, prática), precisamente
nos termos de uma “linguagem geral da comunicação histórica”.

8 . P. Vidal-Naquet, Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio


[2000]. Tr. br. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras,
2002, p. 179.
54 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

A consciência histórica, como “história consciente” da passagem


do tempo, significa para ele – considerando a experiência
democrática dos senhores gregos – a assunção prática de sua
própria época enquanto sua atividade, a s s u n ç ã o q u e é
indissociável da participação dialogal, da linguagem
compartilhada e disputada que quer, e pode, não apenas se
expressar, mas decidir e realizar. É esta linguagem dialogal
que se faz “comunicação histórica” no duplo e inseparável sentido
de uma possessão prática da sua própria época, enquanto jogo
e gozo da passagem do tempo, uso da destruição que ele provoca
e da criação que ele possibilita. Possessão de sua própria época
que necessita e pode possuir o seu próprio passado; e, por isso
mesmo, também comunicação histórica que se expressa na
consciência da ameaça do esquecimento e da importância do
memorável.
A relação que Debord estabelece entre a democracia dos
senhores gregos e a experiência histórica, mediadas pelo uso
prático e dialogal da linguagem, não deve ser lida, contudo,
“filosoficamente”, como uma experiência histórica cuja
racionalidade é assumida como fundamento supra-histórico de
um modelo racional para a vida social. Esta seria, certamente,
uma leitura atraente, tanto mais por se tratar dos gregos, mas
que, neste caso, deve ser evitada: primeiro, porque a Debord
não interessa, nos gregos, a experiência filosófica, mas sim,
num sentido bem determinado, sua experiência histórica (tal
como ele a entende); segundo, porque a questão da comunicação
é anterior, nos seus textos, às novas discussões sobre a Grécia
ocorrida na França nos anos 60, encontrando-se neles já no
final dos anos 50, como parte de sua reflexão sobre a experiência
artística moderna.
Mais importante ainda, Debord considera limitada a
experiência histórica dos gregos, e limitada num aspecto bem
específico, a saber, a da essencial permanência ali da separação:
“o poder partilhado das comunidades gregas existia apenas na
dépense de uma vida social cuja produção permanecia separada
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 55

e estática na classe servil. Somente aqueles que não trabalham,


vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pela
exploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado o
princípio da separação que fundava interiormente cada uma
delas” (SdS, § 134).9
A permanência da separação – determinação que, em sua
crítica do capitalismo desenvolvido, é fundamental ao próprio
conceito de espetáculo – indica, na análise de Debord, a
impossibilidade de uma vida histórica plena, impossibilidade
determinada pelas próprias bases sobre as quais se erguem
aquelas experiências democráticas: tanto a natureza agrícola
de sua economia, submetida ao movimento cíclico das estações
naturais, quanto a necessidade do domínio sobre outras cidades.
A afirmação, por Debord, de uma exteriorização daquela
separação interna às cidades gregas certamente reflete a tese
do imperialismo ateniense, formulada por Jacqueline de Romilly
e amplamente presente nas publicações francesas sobre a Grécia
clássica, como explicação tanto da possibilidade de criação da
democracia grega quanto de sua ruína. Mas, também neste caso,
ao ser submetida ao conceito de separação, aquela tese é
desviada para o horizonte teórico da crítica da reificação no
mundo moderno. E, deste mesmo modo, a própria recepção
positiva da dépense dos senhores gregos se libera de alguma
possibilidade de arcaísmo, pois são identificados seus limites
históricos quanto às suas bases materiais.
O que lhe interessa nesta análise é o que a separação
mesma – enquanto determinação constitutiva de uma qualquer
sociabilidade – significa como obstáculo e empobrecimento da

9 . O termo dépense – em itálicos no original francês – faz uso aqui de um


conceito introduzido por G. Bataille na tradição crítica francesa e
proveniente das pesquisas da antropologia social do início do século
passado. Em Bataille, a dépense (dilapidação, desperdício, destruição)
expressa um radical questionamento da noção utilitária da produção e da
acumulação de valores de uso e da noção socialmente admitida acerca do
56 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

vida histórica, pois obstáculo ao mesmo tempo da comunicação


e da livre apropriação do tempo. O dialogar requer, antes de
tudo, “tempo livre”, tempo da conversação que é,
simultaneamente, tempo da ação; não à toa, o senhor grego se
nomeava a si mesmo de eleútheros, “aquele que fala ou age
como homem livre”. Se, no capitalismo espetacular, Debord
encontra uma “separação acabada”, consumada, pelo domínio
da forma mercadoria sobre a totalidade das experiências
cotidianas, a separação, como o espetáculo, foi contudo sempre
constitutiva de todo Estado, enquanto “poder separado”,
autonomizado da sociedade: “É a mais velha especialização
social, a especialização do poder, que está na raiz do espetáculo”
(SdS, § 23).
A natureza alienante de toda separação – enquanto
separação dos homens com o mundo que eles mesmos criam –
se apresenta também na democracia grega, limitando-lhe a
experiência histórica, precisamente pela estreiteza e pela
coerção de suas próprias condições de possibilidade; estreiteza
e coerção inseparáveis da especialização do poder que, mesmo
democratizada, era-lhe essencial. É a separação essencialmente
constitutiva da experiência democrática grega que, sendo sua
condição de possibilidade, impõe também seus limites. É assim
que a consciência histórica ali verificada, posta pela experiência
da democratização do poder separado, desenvolve-se, em
virtude de sua própria natureza, em “raciocínio sobre a história
[que] é, inseparavelmente, raciocínio sobre o poder” (SdS, §
134). É assim, sabemos, que ela estará em Tucídides e Políbios;
mas também em Maquiavel, que seria expressão – como Heródoto

que é útil. Neste conceito, trata-se de afirmar o prazer, o desperdício, o


esbanjamento como relacionados com uma noção senhorial, soberana de
vida (Cf. G. Bataille, “La notion de dépense” [La critique sociale, 1933],
em Œuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1972, pp. 302-320). Esta
concepção será central à posição crítica de Debord quanto ao capitalismo
moderno (incluindo o burocrático).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 57

– da experiência das “comunidades democráticas e das forças


que as arruínam” (SdS, § 139).
Insisto neste aspecto, primeiramente, para observar que
a referência de Debord às experiências democráticas das
comunidades gregas e italianas não se constitui em quaisquer
formas de modelos a partir dos quais ele faz a crítica do presente.
Menos ainda se constituem em modelos de “comunidades”
ligadas à tradição e às linguagens comuns tradicionais: bem pelo
contrário, são formas de saída da tradição e de experimentação
da história, contudo limitadas pelas próprias condições
excepcionais e locais que as possibilitaram, condições estas
marcadas por uma essencial separação. Ora, “comunidade”,
“comunidades”, como termos para se referir às cidades gregas
em seu período clássico são amplamente usados pelos helenistas
franceses, nos anos 60, uso que Debord estende às cidades
italianas da Renascença porque também estende a elas a
concepção da relação entre experiência democrática e
pensamento histórico.
Principalmente, busco acentuar aqui – quanto ao que há
de comum, em sua representação, entre as experiências grega
e italiana – o sentido da relação estabelecida por Debord entre
a experiência do tempo irreversível e a consciência histórica.
Debord manteve sempre com Tucídides, Políbios e Maquiavel
uma privilegiada relação intelectual. Isto se deve não apenas ao
co-pertencimento entre consciência histórica e raciocínio sobre
o poder nestes autores, relação que ele – que se dizia um
“estratego” – assumiu como essencial. 10 Antes de tudo, deve-
se a que, em seu recurso à experiência histórica para pensar o

10. Cf. G. Agamben, “Il cinema di Guy Debord”, em E. Ghezzi e R. Turigliato


(org.), Guy Debord (contro) il cinema. Milano: Editrice Il Castoro, 2001, p.
103: “Uma vez, enquanto discutíamos, vendo que eu estava tentado (e
ainda o estou) a considerá-lo um filósofo, Debord me disse: ‘Não sou um
filósofo, sou um estratego’”. Na continuidade, Agamben diz o que considera
significar, em Debord, ser “estratego”: “Debord compreendeu o próprio
tempo como uma guerra na qual toda sua vida era estrategicamente
58 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

poder e a guerra, esses autores partiam de uma concepção


radicalmente antimetafísica, nucleada pelo caráter temporal e
historicamente limitado de toda existência humana. Maquiavel,
ao justificar a utilidade política do conhecimento histórico, o
opõe exatamente à especulação e à abstração.11 Para Debord, a
experiência de Maquiavel e das “comunidades democráticas”
da Renascença italiana expressa justamente, em termos
históricos, uma “ruptura alegre com a eternidade”: “Na vida
exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida se
conhece como um gozo da passagem do tempo” (SdS, § 139).

1.2 O tempo pseudocíclico da “sociedade do espetáculo”


Com base na identidade do homem e do tempo, o que
significa para Debord a moderna sociedade burguesa, pela
destruição das antigas formas de produção social e os modos
de vida nelas existentes, é a possibilidade material – nela,
contudo, irrealizável – do uso do tempo histórico. Assim como
para Baudelaire, os dadaístas e os surrealistas, a experiência
primeira das reflexões sobre a sociedade moderna é para Debord
a presença da efemeridade, da finitude e da mortalidade de
todas as coisas, presença que progressivamente se defronta
com a crescente racionalização repressiva da ordem social. Ao
destruir as anteriores bases materiais de produção pré-

empenhada”. Essa concepção da existência não é apenas um traço


idiossincrático da personalidade de Debord, mas uma inteira visão do mundo
que explica sua relação com esses pensadores: “O mundo da guerra
apresenta pelo menos essa vantagem de não deixar lugar para as
tagarelices idiotas do otimismo. Sabe-se bem, no fim todos vão morrer.
Por mais bela que seja a defesa em todo o resto, como aproximadamente
se expressa Pascal, ‘o último ato é sangrento’” (G. Debord, Panégyrique I
[1989]. Paris: Gallimard, 1993, p. 77).
11. “Como é meu intento”, diz ele, retomando uma idéia tão cara a Tucídides
(Guerra do Peloponeso, I, 22), “escrever coisas úteis para os que se
interessam, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade efeitual
[verità effetuale] das coisas, ao invés de imaginações delas [imaginazione
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 59

capitalistas, fundamentalmente agrícolas, ligadas às estações


da natureza e organizadas numa experiência cíclica do tempo, a
sociedade moderna cria as condições – das quais recusa o uso
– para uma vida humana plenamente “histórica”, uma vida situada
num tempo que é sabido e experimentado como passageiro,
irreversível e linear.12
Na experiência moderna, Debord encontra condições
materiais da existência social em direta oposição à forma social
sob a qual os homens delas fazem uso. As amplas possibilidades
da vida histórica encontradas nos poderes materiais da sociedade
moderna, possibilidades constituídas pela sua natureza
“destrutiva” dos antigos modos não-históricos de vida,
permanecem, sob as atuais relações sociais, “inconscientes”,
“recalcadas” e, portanto, não trazidas à luz da práxis e da
consciência históricas. Justamente porque o desenvolvimento
das forças produtivas modernas é uma consideração fundamental
ao seu projeto de uma “participação imediata em uma abundância
passional da vida”, como experiência radical de uma “vida
histórica”, a sua crítica da sociedade produtora de mercadorias
não se dá em nome dos “valores do passado” (como supõe Löwy)
ou de uma indeterminada “sociedade de valores de uso”, com
todo o risco que uma tal concepção carrega de arcaísmo e de
passadismo. Uma “construção experimental da vida cotidiana”,
enquanto “liberdade no emprego do tempo”, não é pos sível,

di essa]”. (N. Machiavelli, “O príncipe”, em Maquiavel. Col. Os Pensadores.


Tr. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 61, trad. lev.
modificada; “Il principe”, em Tutte le opere storiche, politiche e letterarie.
A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton,
1998, p. 33).
12. Conceber que o tempo seja linear não implica, apesar das relações
categoriais entre o tempo e a história, que esta também o seja. A linearidade
do tempo expressa no pensamento de Debord, antes de tudo, a assunção
da efemeridade da existência humana como fundamento metafísico de
sua concepção de história e de sociedade. Em termos benjaminianos, o
tempo linear não é, para Debord, vazio e homogêneo, bem pelo contrário.
É porque o tempo é linear – como passagem de tudo que nele se cria e
60 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

segundo diz, “sem a posse dos instrumentos modernos de


construção da vida cotidiana”. 13
Conforme as análises que Debord apresenta em A
sociedade do espetáculo, a economia mercantil-capitalista funda
um “tempo profundamente histórico”, enquanto um “tempo
irreversível da economia”. Por seu conteúdo técnico-industrial
e sua forma social burguesa, na qual a auto-expansão do capital
é essencial ao seu movimento de autovalorização, a sociedade
moderna se caracteriza por um movimento contínuo de destruição
das antigas formas de vida ligadas às formações econômicas
pré-capitalistas, bem como das suas formas históricas de
experimentação e representação do tempo. Agora, diz ele, “Tudo
o que era absoluto torna-se histórico” (SdS, § 73). Se, numa
generalização histórica, as sociedades pré-modernas
experimentam e representam ciclicamente o tempo, isto se deve
às próprias determinações econômico-sociais –
fundamentalmente, a predominância do trabalho agrícola –,
determinações que, ligadas à terra e às estações da natureza,
limitam, para a grande maioria da sociedade, as possibilidades
de uma experiência com o tempo que não nas formas da repetição
ritual e ancestral. Mas esta liberação da experiência temporal
das formas cíclicas, ao se realizar precisamente sob a forma do
tempo irreversível da economia mercantil, se traduz como
“tempo das coisas”, “tempo reificado”, do qual nem mesmo as
atuais classes dominantes, cons tituídas pelos administradores
da economia, estão livres.

morre – que a história é lugar permanente de criação, de invenção e de


possibilidades. Como indicado na introdução e mais bem discutido no 4º
capítulo, as contradições do presente reabrem constantemente, para
Debord, o passado. A posição negativa em face do presente, posição
fundada nas próprias contradições sociais, é também o ponto de partida da
crítica benjaminiana à concepção do “tempo homogêneo e vazio”, como
penso ter demonstrado no artigo Imagem onírica e imagem dialética em
Walter Benjamin (em Kalagatos, Revista de Filosofia do Mestrado
Acadêmico em Filosofia da UECE, Vol. 1, nº 2, Fortaleza, Editora da UECE,
2004, pp. 45-72).
13. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationale
Situationniste”, nº 1, junho, 1958, pp. 20-21.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 61

No capitalismo avançado, a abstração própria à produção


do valor econômico – cuja substância, no dizer de Marx, é o
tempo de trabalho social objetivado, tempo de trabalho abstrato,
portanto, quantificável – dá forma à experiência social do conjunto
do “tempo vivido”. A linearidade, que a produção capitalista
moderna libera da antiga experiência cíclica do tempo, não
assume a forma da concretude e da qualidade, a concretude e a
qualidade que um tempo histórico emancipado da repetição ritual
e dos ciclos das estações possibilitaria. Ao contrário, a atual
experiência social do tempo assume a forma do movimento do
capital, ele mesmo abstrato e “cíclico”. A sociedade moderna
funda um tempo “profundamente histórico”, pois não é mais
uma sociedade da tradição, da permanência, mas, nas condições
do capitalismo avançado, nega-o enquanto experiência imediata
de vida dos indivíduos, mantendo-o recalcado – numa perversa
realização histórica da metafísica – em suas “profundezas”: “A
história, que está presente em toda a profundidade da sociedade,
tende a se perder na superfície” (SdS, § 142). É esta experiência
imediata, esta “superfície”, que Debord – em virtude da
importância que em seu pensamento assume a categoria de vida
cotidiana – chama de temps vécu, “tempo vivido”.
O tempo linear e irreversível, agora possibilitado mas
obstaculizado como tempo vivido pelos indivíduos, é para Debord
o inverso do tempo abstrato da produção mercantil em sua
imediatidade cotidiana. Este, ao contrário, se lhe apresenta como
“a abstração do tempo irreversível, do qual todos os elementos
devem provar pelo cronômetro sua mesma igualdade
quantitativa” (SdS, § 147), com o que, então, a vida cotidiana é
submetida ao domínio da abstração quantitativa e quantificável.
O tempo abstrato de valorização e realização da mercadoria –
tempo da produção, tempo do consumo, tempo do trabalho, tempo
do lazer – se materializa, na vida cotidiana, na forma de “unidades
homogêneas intercambiáveis” que, ao organizarem aquela mesma
cotidianidade sob tal lógica abstrata e mutuamente reversível,
repõem uma experiência “pseudocíclica” (pseudo-cyclique) com
62 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

o tempo, experiência esta, contudo, que se apóia sobre as novas


e bem distintas formas modernas de produção social.
No tempo vivido do capitalismo avançado, há algo de
cíclico, pois, submetidas à lógica da produção e do consumo
mercantis, as unidades de tempo – este mesmo abstrato e
quantitativo – do trabalho são intercambiáveis, trocáveis com
os usos do mesmo modo abstratos e quantitativos do tempo do
lazer: abstratas e quantitativas todas, as porções de tempo
usadas são equivalentes entre si. Fraturado em coágulos fixos,
isolados e intercambiáveis, o tempo perde a qualidade e a
concretude possíveis, e toda a experiência com ele é a de uma
igualdade quantitativa que se repete ciclicamente. Mas não se
trata, efetivamente, de uma experiência temporal cíclica, pois
sua base é a economia industrial-capitalista moderna que,
formalmente cíclica como movimento do capital e imediatamente
vivida como cíclica no cotidiano e no inteiro percurso das vidas
dos indivíduos, é, contudo, uma economia histórica no preciso
sentido de que se move sobre uma forma de produção cujo
tempo é irreversível e linear. 14
Do mesmo modo, o retorno temporal que na superfície da
sociedade se move ciclicamente, consubstanciado pelas
repetitivas exigências da produção e do consumo capitalistas,
se apresenta, para Debord, não como um “eterno retorno do
mesmo”, mas como um “retorno ampliado do mesmo” (retour
élargi du même). É um retorno ampliado exatamente porque há
um desenvolvimento linear da produção capitalista, manifesto
de modo reificado na ampliação e no aumento quantitativos das

14. Para Debord, a concepção da experiência capitalista como tempo


pseudocíclico, e não como “neocíclico”, era-lhe essencial como
possibilidade historicamente constituída de um projeto de superação da
atual ordem social na perspectiva do que ele chamava “história total”
(histoire totale). O tempo neocíclico só seria sustentável num mundo
capitalista que superasse todo o desenvolvimento desigual e em que a
produção e o consumo coincidissem plenamente. O tempo neocíclico,
portanto, só seria possível num mundo que realizasse a reificação total e
de modo não contraditório. (Cf. especialmente carta a Mustapha Khayati,
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 63

mercadorias, e que, na superfície do consumo, reitera o retorno


do mesmo – da mesma forma-mercadoria, ainda que sobre outros
valores de uso – cuja mesmidade é já dada na produção, na
lógica cíclica do próprio salariato, dos gestos mecânicos e
repetitivos do trabalho. Se o retorno do mesmo se reapresenta
na sociedade moderna, e precisamente sob forma ampliada, isto
ocorre em razão do domínio, na própria produção, do presente
(“trabalho vivo”, no dizer de Marx) pelo passado (“trabalho
morto”, capital). Deste modo, algo de mítico, com todo o seu
arcaísmo, é formal e efetivamente reintroduzido na experiência
moderna e a compõe essencialmente, opondo-se ao (e
obstaculizando o) “histórico” como forma imediata de vida dos
indivíduos.
Para Debord, esta não é contudo uma contraposição
lógico-conceitual entre a base e a superfície da sociedade
moderna, mas, antes, uma experiência cotidiana experimentada
como contraditória pelos indivíduos. A subsunção da experiência
imediata dos indivíduos na homogeneidade vazia – pois abstrata
e quantitativa – do tempo na sociedade espetacular esvazia esta
mesma experiência da possibilidade de constituição de sentidos
próprios, de razões de viver emancipadas das exigências da
racionalidade da mercadoria. No capitalismo da “abundância
mercantil”, encontra-se interditada a realização das
p o s s i b i l i d a d e s d a expressão concreta, i n s e p a r á v e l d a
comunicação e da atividade, possibilidades estas constituídas
modernamente pela emancipação da tradição e pelos “poderes
materiais da época”. Os gestos repetitivos do trabalho e do
consumo, o esvaziamento da comunicação tanto nas relações
imediatas quanto genéricas, graças à transformação da quase
inteira vida cotidiana em lugar da produção e da realização

08.10.1965, em G. Debord, Correspondance, vol. 3, p. 69). Em A sociedade


do espetáculo, ele identifica o eterno retorno do mesmo apenas nas mais
antigas sociedades agrícolas, cujo cotidiano – se é que seja teoricamente
lícito falar em cotidianidade nas sociedades pré-modernas – é marcado
por uma relação ritualística com o ancestral.
64 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

abstratas da mercadoria, compõem o que Debord chama de “crise


da vida cotidiana”, da mesma vida cotidiana que a destruição da
tradição, das antigas condições materiais de existência e da
unidade casa-trabalho-culto fez surgir.
“‘A vida privada é privada de que?’”, pergunta-se ele.
“Antes de tudo, da vida, que dela está cruelmente ausente. As
pessoas estão, tanto quanto é possível, privadas de comunicação
e de realização de si mesmas. Precisaria dizer: de fazer sua
própria história, pessoalmente”. 15 Rejeitando qualquer idéia de
uma reificação total, Debord registra experiências individuais –
o réellement vécu – sem relação direta com o tempo irreversível
da economia e mesmo em oposição ao consumo pseudocíclico
do tempo no capitalismo espetacular. Nestes casos, constituem-
se experiências que permanecem “clandestinas”, sem linguagem,
sem comunicação e, portanto, sem memória e sem história. O
realmente vivido “é incompreendido e esquecido em proveito
da falsa memória espetacular do não-memorável” (SdS, § 157).
A vida individual permanece assim sem história, do mesmo modo
que a descoberta pelo pensamento burguês de uma “história
universal” já havia, nas diversas filosofias da história, sacrificado
o indivíduo; e permanecem assim porque é a história mesma
que, em sua imediatidade vivida, é socialmente recusada.
Se, nas atuais relações espetaculares, a “história
universal” é efetiva, consciente e oficialmente admitida em sua
linearidade e irreversibilidade (e assim o é como expressão
reificada de um tempo linear e irreversível da economia), no
entanto, em virtude do domínio desta mesma economia e dados
os imperativos práticos que este domínio implica, ela é negada
aos indivíduos na forma da livre efetivação e livre comunicação
de suas experiências imediatas. O isolamento mútuo dos
indivíduos enquanto portadores de mercadorias, isolamento já

15. G. Debord, “Perspectives de modifications conscientes dans la vie


quotidienne”, em Internationale Situationniste, nº 6, agosto, 1961, p. 24.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 65

identificado por Marx como uma relação entre “egoístas” e como


“alienação com relação ao gênero”, é aqui retomado por Debord,
com base na centralidade da atividade práxica e da linguagem,
como isolamento e solidão até mesmo daquele que se furta à
experiência social do tempo reificado. Isolamento e solidão, neste
caso, na forma de uma incomunicabilidade dos usos clandestinos
do tempo irreversível no interior de uma linguagem social que
desconhece qualquer semelhante uso prático e ativo do tempo
vivido e como contraface de uma forma de sociabilidade cuja
única possibilidade de “relações genéricas” reside nas relações
de compra e venda, relações que, nucleadas na objetividade
reificada do valor, são elas mesmas resistentes a toda
comunicação.
Na interdição, imposta aos indivíduos, da atividade, da
linguagem e da comunicação do “realmente vivido” e cujo
fundamento é a própria expropriação econômico-quantitativa
do tempo e da atividade autônoma no capitalismo contemporâneo,
Debord compreende uma verdadeira expropriação da história e
da memória. Esta é uma expropriação das possibilidades mesmas
da expressão prática dos indivíduos como realização, como
produção de sua própria história e comunicação do realmente
vivido, expropriação enfim pela qual a sociedade espetacular
se denuncia justamente “como organização social presente da
paralisia da história e da memória” (SdS, § 158).
É porque a experiência cotidiana é aquela do movimento
pseudocíclico – em que a vida inteira se subsume nos gestos
repetitivos e, em sua extensão, nos sucessivos ritos de iniciação
– que ela não é existencialmente experimentada nem
consciencialmente representada como passagem de um tempo
irreversível. Nela, não há o que efetivamente, qualitativamente
lembrar, pois tudo parece e é reposto e retornado; e quando
tudo é reposto e retornado, não há o que realizar ou o que
possa, com a realização, ter fim. Em última análise, a experiência
pseudocíclica do capitalismo espetacular, embora erguida sobre
a base do tempo histórico, constitui o que Debord chama de
66 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

“falsa consciência do tempo” (fausse conscience du temps) que


dissolve a própria representação da morte; e o faz porque, antes,
já dissolve a noção da vida, do tempo finito de vida, como lugar
da atividade, da realização de desejos e planos. “Imobilizada no
centro falsificado do movimento do seu mundo”, diz Debord, “a
consciência espectadora já não conhece na sua vida uma
passagem para sua realização e para sua morte. Quem renunciou
a dépenser sua vida, não deve mais reconhecer sua morte. [...]
Esta ausência social da morte é idêntica à ausência social da
vida” (SdS, § 160).
Fundamental a esta análise de Debord é que, segundo
ele, a paralisia da memória e da consciência históricas na
sociedade contemporânea ocorre graças à paralisia prática da
história. A racionalidade abstrata própria da economia mercantil,
com seu tempo abstrato e quantitativo, organiza a vida cotidiana
de tal forma que, ao impedir a atividade do indivíduo, fazendo-
o “espectador” de sua própria vida, impede-o também de
deparar-se com a ameaça do esquecimento ou com a importância
do memorável . E s q u e c e r e l e m b r a r s ã o , n a s o c i e d a d e
espetacular-mercantil, funções das imagens produzidas e
permitidas “socialmente” pela racionalidade econômica e estatal;
e isto ocorre porque, antes, a experiência temporal mesma se
desenvolve apenas como “tempo de consumo das imagens” e
“imagem do consumo do tempo”, mas não como uso efetivo e
qualitativo do tempo efetivo e qualitativo (isto é, “histórico”).
Aos indivíduos – que, assim, se constituem em espectadores –
não cabe a assunção de sua “época”, porque não lhes cabe a de
seu “tempo”; não lhes cabe, do mesmo modo, a sua memória
coletiva ou individual, porque, antes, não lhes cabem a realização
e a comunicação.

1.3 A natureza arcaico-moderna do “espetáculo”


Nas discussões sobre o tempo e sobre o espaço, presentes
nos capítulos V, VI e VII de A sociedade do espetáculo, Debord
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 67

demonstra duas formas essenciais nas quais se produz um


retesamento disciplinar e repressivo que é especificamente
moderno e, no entanto, também arcaico. Esta é, contudo, uma
determinação mais central à sua concepção crítica do capitalismo
avançado como um todo: “O mais moderno é aí também o mais
arcaico” (SdS, § 23). Esta determinação regressiva se deve
justamente à constatação da afirmação cotidiana, imediatamente
fenomênica, da lógica abstrata da forma-mercadoria. O
movimento fetichista do valor, ao estender-se à totalidade da
vida cotidiana, impõe-lhe uma fixidez, um sentido permanente
de organização da vida social, de onde tudo provém e para onde
tudo retorna, algo semelhante – mas não idêntico – ao que ocorria
nas sociedades pré-capitalistas com relação aos valores arcaicos
tradicionais.
Se o fascismo é, para Debord, “o arcaísmo tecnicamente
equipado”, um “Ersatz decomposto do mito”, é esta mesma forma
moderna do mítico-arcaico que “é retomada no contexto
espetacular dos meios de condicionamento e de ilusões mais
modernos” (SdS, § 109). Assim como o tempo agora socialmente
experimentado não se constitui num “eterno retorno do mesmo”,
mas num “retorno ampliado do mesmo”, não num tempo “cíclico”,
mas “pseudocíclico”; e assim como a cidade não regride ao
campo, mas se torna um “pseudocampo”, do mesmo modo o
arcaísmo que retorna no capitalismo avançado se apresenta como
“pseudovalores arcaicos” (pseudo-valeurs archaïques) e o mito,
como um “Ersatz decomposto”. Segundo Debord, no capitalismo
espetacular se encontra a reintrodução formal e aparente d e
modos de experiência tradicionais, pré-modernos na própria
experiência social moderna; uma reintrodução que é justamente
formal e aparente, pois é determinada sobre novas bases
históricas, mas nem por isso menos concreta e real.
Sob o conceito de espetáculo, momento da economia
capitalista em que a mercadoria teria atingido a “ocupação total
da vida cotidiana”, Debord diz buscar unificar e explicar uma
68 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

diversidade de “fenômenos aparentes”, que são, eles mesmos,


“as aparências desta aparência organizada socialmente” (SdS,
§ 10). O que isto significa? Esta questão interroga sobre algo
fundamental ao seu conceito de espetáculo.
A primeira coisa a observar é que a ocorrência aqui do
conceito de aparência não remete, num primeiro momento, à
aparência visível, sensível, mas antes à categoria – de
procedência hegeliana – de aparência (Schein, Erscheinung), na
qual Marx situa, nos primeiros capítulos de O capital, as trocas
de equivalentes. Já nesta instância aparente, Marx vê manifestar-
se uma objetividade fetichista que, nucleada na lei do valor,
escapa ao controle dos homens e se lhes impõe como “uma
relação entre coisas”. De modo expresso, Marx concebe este
caráter fetichista da mercadoria determinado não por sua
“natureza física” ou pelas “relações materiais” presentes no
intercâmbio prático entre os indivíduos durante sua produção,
mas exclusivamente pela forma social deste mesmo intercâmbio,
enquanto intercâmbio mercantil; portanto, concernente à
“aparência objetiva das determinações sociais do trabalho”. 16 É
esta “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil que se
constitui numa “objetividade fantasmagórica”, pois se apresenta
aos homens como uma relação “natural”, constitutiva das
próprias coisas, quando é somente uma determinação histórica
da forma de suas próprias relações sociais. Contudo, trata-se
de uma “aparência” necessária, pois constitutiva da lei do valor
que per se se apresenta na objetividade e necessidade de uma
“lei natural”.
Segundo Debord, é esta “aparência socialmente
organizada” que, estendendo sua lógica ao conjunto das
atividades e relações cotidianas, no capitalismo desenvolvido,
produz e organiza as “aparências”, os “fenômenos aparentes”

16. K. Marx, O capital, t. I/1. Tr. br. R. Barbosa e F. R. Kothe. São Paulo: Nova
Cultural, 1985, p. 71.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 69

imediatamente presentes na experiência social dos indivíduos.


A “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil, da qual Marx
afirma categoricamente a autonomia e a independência em face
da “natureza física” e das “relações materiais” da produção de
valores de uso, torna-se agora, ela mesma, fisicamente aparente,
sensivelmente visível; torna-se uma “aparência socialmente
organizada” que se manifesta, no capitalismo espetacular, em
fenômenos “aparentes”, “visíveis”. Graças à extensão das
relações mercantis à totalidade da vida cotidiana, a autonomia
da aparência das trocas fetichistas de valores passa a constituir
soberanamente, submetido à sua lógica abstrata, um conjunto
de fenômenos aparentes que, deste modo, se tornam, eles
próprios, também autônomos frente aos indivíduos.
N’O capital, Marx se refere à mercadoria como uma “coisa
fisicamente metafísica”; ou, como diz a tradução francesa que
Debord tem sob os olhos, “coisas supra-sensíveis ainda que
sensíveis”. Em sua análise do capitalismo contemporâneo,
Debord observa um movimento de “volta” desta abstração
constituidora do valor econômico em direção ao sensível,
movimento pelo qual, contudo, este não é restituído em sua
autonomia material, mas, rigorosamente ao contrário, é
completamente subsumido à abstração do valor. 17 O valor de
troca, tendo chegado a um tal nível de autonomia, pelo
superacúmulo de capital e pela extensão de sua lógica ao conjunto
do espaço-tempo vivido, pode apresentar-se na imediatidade
da totalidade dos valores de uso; e de tal modo que a sua lógica

17. Trata-se aqui, segundo G. Agamben, de uma compreensão da relação


reflexiva essencial à mercadoria entre “transparência” e “fantasmagoria”,
através da qual o capital oculta seu “reino encantado”, “expondo-o à
plena vista”. É precisamente ao colocar-se de modo transparente,
imediatamente visível, que o caráter fetichista da mercadoria, segundo
Agamben, se mantém oculto na totalidade dos fenômenos do período
espetacular do capitalismo. (G. Agamben, “Glosse in Margini ai Commentari
sulla società dello spetacollo” [1990], em Mezzi senza fine. Note sulla
politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 61).
70 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

abstrata não apenas se torna visível, mas é também a única


coisa que se faz ver.
A autonomização dos fenômenos aparentes da abstração
do valor econômico é nomeada por Debord como “mundo da
imagem autonomizado” (SdS, § 2). Contudo, não se trata – como
julga criticamente Mario Perniola – de “uma atitude iconoclasta
que considera com suspeição as formas sensíveis”. 18 O
espetáculo não seria, diz Debord, “um conjunto de imagens,
mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”
(SdS, § 4). No seu uso do conceito de “imagem”, Debord não faz
uma referência estrita à “visão” sensível, mas antes a um “modo
de produção”, do qual o espetáculo seria, não um “suplemento”,
uma “decoração acrescentada” – ou se quisermos, uma
“superestrutura” – mas “a afirmação onipresente da escolha já
feita na produção e sua consumação corolária” (SdS, § 6). O que
Debord tem em vista sob o conceito de “imagem” são justamente
as relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização do
valor e estendidas à totalidade do uso social do tempo, do espaço,
para além do trabalho assalariado, mas essencialmente
obedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa.
Portanto, se ele pode falar do espetáculo como constituído
na produção, como “modo de produção”, é precisamente porque
julga que, “com a separação generalizada do trabalhador e de
seu produto, perdem-se todo ponto de vista unitário da atividade
realizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] a
atividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo da
direção do sistema” (SdS, § 26). Em outras palavras, o conceito
de espetáculo não diz respeito ao “simples olhar”, mas sim “é o
que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à
correção de sua obra. É o contrário do diálogo” (SdS, § 18).
Se se tem em vista estas duas últimas passagens citadas,
compreende-se que, sob o conceito de espetáculo, Debord busca

18. M. Perniola, A estética do século XX [1997]. Tr. port. A. Cardoso. Lisboa:


Editorial Estampa, 1998, p. 82.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 71

e s s encialmente articular duas fundamentais dimensões


constitutivas da aparência social, num momento em que a forma-
mercadoria se estendeu ao conjunto do vivido: a expropriação
da atividade autônoma, inseparável da expropriação da linguagem
comunicativa. Neste sentido, sua reflexão sobre aparência social
no capitalismo mais desenvolvido não considera apenas a
visibilidade do produto mercantil, sua “estética”, sua
“aparência”. 19 Tampouco a tendência – realmente existente –
da produção cultural tardocapitalista em se voltar para produtos
“visíveis”, centrado na “imagem” e na “visão” ocular. 20 Estes
fenômenos são antes determinados por (e constitutivos de) uma
experiência mais fundamental: a extensão – junto com a da
forma-mercadoria – da lógica disciplinar, contemplativa e passiva
do trabalho assalariado à totalidade da vida cotidiana.
Estes conceitos de passividade e contemplação merecem
uma melhor explicitação. Para Debord, a extensão horizontal
das trocas de equivalentes (a “aparência” do metabolismo do
capital, no sentido de Marx) traz à “superfície” da vida social,
impondo-se-lhe como forma determinante imediata, a
contemplação essencial ao trabalho assalariado, que, de todo
modo, está na base desta mesma universalização da forma-
mercadoria dos produtos do trabalho. Ter em conta esta relação
entre o trabalho assalariado e o espetáculo é importante, pois
ela responde à crítica freqüente de que esta última categoria
estaria limitada à esfera da circulação de mercadorias e não

19. Esta é somente uma determinação – cf. § 15 de A sociedade do espetáculo


– deste movimento mais amplo de dominação do vivido pela reificação
fetichista do valor. Em sua unilateralidade, como crítica da sedução estética
da aparência dos produtos, esta determinação foi – cinco anos após a
publicação do livro do Debord – discutida por W. Hauer, em Crítica da
estética da mercadoria (1972).
20. Como salienta, de modo simpático mas unilateral, F. Jameson (A cultura
do dinheiro, ensaios sobre a globalização. Tr. br. M. E. Cevasco e M. C. P.
Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, especialmente pp. 87 ss e 114 ss).
72 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

concerniria à produção do capital. 21 Contudo, deve-se lembrar


que, para Marx, “só a partir desse instante [em que a força de
trabalho assume, para o próprio trabalhador, a forma de uma
mercadoria] se universaliza a forma mercadoria dos produtos
do trabalho”. 22 Esta universalização não está separada, portanto,
daquilo mesmo que caracteriza a produção capitalista enquanto
produção de mais-valor: a generalização do trabalho assalariado.
Em sua concepção crítica do espetáculo, na qual são
centrais as transformações sofridas pela aparência social, Debord
tem em conta justamente esta determinação. A extensão das
trocas mercantis funda uma transformação – ou, se se quiser,
um ajuste – na aparência social, com a emergência de um conjunto
totalitário de fenômenos que produzem e exigem, já na
imediatidade do vivido, a passividade contemplativa própria ao
trabalho assalariado. Sua consideração sobre a aparência social
não se restringe à troca de equivalentes, mas busca pensar as
experiências sociais imediatas dos indivíduos numa situação
histórica na qual o intercâmbio mercantil se mostra, na totalidade
extensiva dos seus mais diversos fenômenos, tão hierárquico
quanto a própria produção mercantil fundada no salariato. Em
outras palavras: a instância d a s trocas iguais, que
simultaneamente viabiliza e oculta a produção da mais-valia e
as contradições que se desenvolvem progressivamente com base
na relação negativa entre valor de uso e valor na forma elementar
da mercadoria, passa a manifestar de modo aparente a
contemplação que, no trabalho assalariado industrial, é essencial
à própria produção do valor.

21. Sobre esta crítica, cf. entre outros, G. Dauvé, “Kritik der Situationistischen
Internationale”, em R. Ohrt (Hg.), Das grosse Spiel. Die Situationisten
zwischen Politik und Kunst. Hamburg: Nautilus, 1999; D. Blanc,
L’Internazionale situazionista e il suo tempo. Milano: Colibri, 1998; “Zur
Kraft der situationistischen Kritik und ihrer Rezeption in Deutschland”,
aparecido em Wildcat-Zirkular, Nº 62, fev/2002, pp. 32-36, http://
www.wildcat-www.de/zirkular/62/z62situa.htm.
22. K. Marx, O capital, I, p. 141, n. 41. Entre colchetes, uma passagem do
próprio Marx imediatamente anterior a esta que compõe a parte principal
da citação.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 73

A “contemplação” – categoria que, na filosofia jovem-


hegeliana, é compreendida como inerente ao idealismo filosófico
e à qual o jovem Marx contrapõe a atividade práxica – é tomada
por Debord como uma forma de relação social própria a este
momento extensivo da relação mercantil. Spectacle é uma palavra
francesa que vem do spectare e do speculare latinos, verbos
que remetem às noções de contemplação, observação, de
acompanhamento passivo de algo exterior pela visão. Estes
verbos estão também na raiz de speculatio , spéculation,
Spekulation, concepção filosófica que L. Feuerbach caracteriza
criticamente como uma inversão idealista entre sujeito e
predicado, inversão esta que, já nas reflexões do jovem Marx,
aparece como forma filosófica positivadora da alienação.23 Como
“especulação” materializada, fundada na “contemplação”, “o
espetáculo”, segundo Debord, “filosofica a realidade”, sendo,
nisto mesmo, “o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico
ocidental que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas
categorias do ver [...] É a vida concreta de todos que se degradou
em universo especulativo” (SdS, § 19).
Trata-se de uma inversão especulativa entre o sensível
e o supra-sensível que, na análise do jovem Marx retomada por
Debord, ganha forma histórica concreta no domínio do valor
sobre o valor de uso, domínio cuja base última é justamente a
inversão entre o produtor e seu produto operada pelo trabalho
alienado. Para Debord, o capitalismo mais desenvolvido
apresenta de modo imediato, fenomênico e aparente a lógica da
abstração supra-sensível do valor econômico, impondo uma

23. Cf. L. Feuerbach, Princípios da filosofia do futuro. Tr. port. Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 2002; K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos.
Tr. br. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. Pelo que indica
a epígrafe do Capítulo II de A sociedade do espetáculo, esta relação é
sugerida a Debord também pelas análises de G. Lukács em História e
consciência de classe, no célebre ensaio sobre a reificação. A. Jappe faz
uma exaustiva aproximação entre estes dois textos no primeiro capítulo
de seu Guy Debord (edição citada, pp. 37-51).
74 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

inversão entre sensível e supra-sensível que, desde sempre,


fora imanente ao fetichismo da forma-mercadoria. Disto decorre
que, no centro de sua crítica social, se encontra a sugestão de
que a categoria do fetichismo do valor, sendo uma “abstração
real”, cheia de “manhas teológicas” e “argúcias metafísicas”
(como diz Marx), se apresenta como “sensível”. Não se trata,
portanto, de uma denúncia do sensível em nome de uma realidade
verdadeira supra-sensível, mas, rigorosamente ao contrário, é
denúncia da dominação da abstração do valor econômico sobre
o “sensível”; é a compreensão crítica de que, nas condições do
capitalismo avançado, a lógica supra-sensível do valor tornou-
se imediata, imajada, transformando o próprio “sensível” em
algo do mesmo modo “abstrato” (tal como ocorre na quantificação
do tempo, na banalização do espaço, no consumo de
mercadorias...). Como “imagem” que se impõe para ser “vista”
e “contemplada”, o automovimento do capital se constitui em
experiência da passividade na imediatidade da totalidade do
vivido.
Uma segunda dimensão inseparável desta primeira é
aquela que diz respeito à linguagem, pensada como linguagem
comunicativa. Sob este ponto de vista, justamente no qual se
posiciona a discussão realizada no presente livro, não se trata
de separar, muito menos de opor, como faz A. Jappe, à
“importância atribuída [por Debord] à ‘comunicação’”, uma
suposta “grande novidade efetiva da [sua] teoria [...] [que]
decorre [...] de sua referência ao papel fundamental da troca e
do princípio de equivalência na sociedade contemporânea”. 2 4
Ora, se a alienação da atividade se revela, no capitalismo tardio,
como essencialmente o “contrário do diálogo” é precisamente
porque, segundo Debord, a expropriação da atividade produtiva

24. A. Jappe, Guy Debord, p. 189. Em História e consciência de classe, obra à


qual Jappe relaciona com razão A sociedade do espetáculo, já está presente
este nexo entre a contemplação prática e a expropriação da comunicação,
nexo ao qual, contudo, Jappe parece não ter dado a devida importância.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 75

no capitalismo pressupõe a – e resulta necessariamente na –


perda da comunicação direta entre os produtores. A expropriação
da atividade autônoma no trabalho e a expropriação da linguagem
comunicativa são duas determinações que se refletem
reciprocamente. Se a contemplação filosófica, a qual Debord –
seguindo Marx – toma como análoga à contemplação da
passividade mercantil, foi sempre uma compreensão da atividade
humana sob a categoria do “ver”, ela não foi menos uma
concepção da linguagem como auxiliar e instrumento do
pensamento abstrato. Também este aspecto é central à
“filosofação da realidade” pelo espetáculo. Como tematizada
por toda a poesia moderna francesa, de Mallarmé a Breton, a
experiência “lingüística” na sociedade moderna é – como será
discutido nos próximos dois capítulos – a de uma instrumentação.
Com base na moderna experiência poética francesa e na crítica
da economia política, Debord apresenta uma crítica teórica do
capitalismo desenvolvido – ex professo, esta seria sua
“novidade” – na qual se encontram articuladas, de modo
inseparável, a passividade mercantil e a instrumentação reificada
da linguagem.25

25. Este gesto é ressaltado por G. Agamben ao considerar que o fundamental


à teoria crítica do espetáculo é que, nela, “a análise marxiana vai integrada
no sentido de que o capitalismo [...] não era voltado só à expropriação
da atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria
linguagem, da própria natureza lingüística ou comunicativa do homem”
(G. Agamben, “Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo”, em G.
Agamben et al., I situazionisti.Roma: Manifestolibri, 1991, pp. 14-15).
Neste mesmo horizonte de análise, P. Virno acentua que, sob a categoria
de espetáculo, o que está em questão é um modo de produção, no qual “a
comunicação humana tornou-se mercadoria”. Daí que, segundo ainda
Virno, a interpenetração entre trabalho assalariado e expropriação da
comunicação humana expresse, no pensamento de Debord, a exigência
de que a crítica do capitalismo deva comportar a crítica da concepção
instrumental da linguagem, de modo que a “abolição do trabalho
assalariado” se constitui também, de modo essencial, em “liberdade da
linguagem” (P. Virno, “Cultura e produzione sul palcoscenico”, em G.
Agamben et al. I situazionisti, pp. 19-26).
76 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Estas duas dimensões concernentes, de modo inseparável,


à aparência social – a passividade contemplativa e a expropriação
da linguagem comunicativa – se encontram de modo essencial
com a característica “arcaica” e regressiva da sociabilidade
tardocapitalista, fundada na extensão da lógica do trabalho
assalariado e da forma-mercadoria à totalidade do vivido. A
formulação deste encontro é efetuada por Debord ao trazer a
teoria psicanalítica para o interior de sua reflexão social. Em A
sociedade do espetáculo, Debord estabelece uma analogia –
retomada em diversos momentos deste livro e em outros textos
– entre a experiência social do capitalismo mais desenvolvido e
o sonho do indivíduo, no qual Freud indica tanto uma regressão
da faculdade “lingüístico”-comunicativa dos homens quanto um
não-acesso à atividade, à “motilidade”, graças ao caráter
imagético e alucinatório das “vivências infantis” (infantile
Erlebnisse) que ali retornam.26 Esta apropriação da psicanálise
é um momento fundamental da crítica social elaborada por
Debord. Num dos seus primeiros textos, ele já afirma ser
necessário “ter em vista um tipo de psicanálise para fins
situacionistas”. Mantendo uma posição polêmica com o
surrealismo, ele se propõe a uma outra relação com a psicanálise
com vistas ao “esclarecimento de desejos primitivos” e,
considerando as novas condições materiais da sociedade, a
“achar desejos precisos de ambientes para realizá-los, ao
encontro dos objetivos perseguidos pelas correntes saídas do
freudismo”. 27 Neste momento, sua referência é ainda o
freudomarxismo (“as correntes saídas do freudismo”), mas já
demonstra a leitura da psicanálise e a inclusão de determinadas

26. S. Freud, A interpretação dos sonhos. Obras psicológicas completas de


Freud, vol. V. Tr. br. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987,
pp. 500; Die Traumdeutung. Sigmund Freud Studienausgabe, Band II.
Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1972, pp. 521-522 ss. Trata-se
aqui de todo o tópico “A regressão” (Die Regression), do capítulo VII
desta obra.
27. “Problèmes préliminaires à la construction d’une situation”, em
Internationale Situationniste nº 1, junho de 1958, p. 11.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 77

conclusões da pesquisa psicanalítica em sua própria reflexão


estética e na crítica do surrealismo (a qual será mais bem
discutida no segundo capítulo).
No período em que redige A sociedade do espetáculo,
Debord estabelece uma interlocução mais positiva com a
psicanálise freudiana. Segundo avalia, as descobertas da
psicanálise, “como o pensava Freud”, são inaceitáveis para a
sociedade dominante, já que esta é fundada numa hierarquia
repressiva. No entanto, o próprio Freud teria mantido uma
posição “centrista” ao afirmar – o que sem dúvida é inteiramente
questionável – uma “identificação absoluta e supratemporal entre
a ‘civilização’ e a repressão por uma exploração do trabalho”. 28
Com base nisso, o que há de verdadeiro na psicanálise, sua
“verdade crítica parcial”, teria sido conduzida para o interior
de um “sistema global não-criticado”. Esta postura centrista e
conciliatória de Freud, finalmente, levou “a psicanálise a ser
oficialmente ‘reconhecida’ [...] contudo, sem ser aceita em sua
verdade: seu uso crítico possível”. 29 Qual seria, então, este “uso
crítico possível”? Para Debord, “as descobertas da psicanálise
são um reforço – ainda não empregado graças a evidentes
motivos sociopolíticos – para a crítica racional do mundo: a
p s i c a n á l i s e c e r c a [traque, p e r s e g u e , a c o s s a ] , o m a i s
profundamente, a inconsciência, sua miséria e suas miseráveis
instâncias repressivas, que somente extraem sua força e seu
aparato mágico de uma bem vulgar repressão prática na vida
cotidiana”. 30 Esta última passagem aparece justamente numa
polêmica com C. Castoriadis em torno do problema da “função

28. “De l’aliénation: examen de plusieurs aspects concrets”, em Internationale


Situationniste, nº 10, p. 63.
29. Idem, ibidem.
30. Idem, p. 79. Esta afirmação de Debord sobre a psicanálise é, evidentemente,
insuficiente; nas páginas seguintes e, sobretudo, no capítulo II voltarei a
discutir esta concepção debordiana, interpretando-a como uma apropriação
desviada (détournée) de determinadas conclusões teóricas de Freud.
78 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

da aparência social no capitalismo moderno”. É esta apropriação


da psicanálise para a reflexão sobre a “aparência social” que,
em A sociedade do espetáculo , Debord resume de modo
privilegiado ao dizer: “O espetáculo é o mau sonho da sociedade
moderna aprisionada, que somente expressa, afinal de contas,
seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono”
(SdS, § 21).
Em A interpretação do sonho, Freud observa que os
sonhos – como “realização” alucinatória dos desejos – têm uma
característica que interessa de modo particular à analogia que
Debord sugere entre a experiência onírica e a experiência social
tardoburguesa. Ao se apresentar em “imagens sensoriais”
(sinnliche Bilder), o conteúdo de representação do sonho permite
ao sonhador crer vivenciar o que está sendo sonhado. Ora, o
desejo que se “realiza” no sonho é, segundo Freud, um “desejo
infantil”, “inconsciente”; é precisamente por isso que a
“satisfação do desejo” (Wunscherfüllung) onírica tem e precisa
ter um “caráter alucinatório” (halluzinatorische Charakter). Disto
resulta que, no sonho, se encontram tanto uma regressão tópica,
pois ao contrário do que ocorre em estado de vigília, os processos
psíquicos não se dirigem para a “extremidade motora”, mas
recuam para a “extremidade sensorial” (é justamente por
desviar-se da motilidade e do acesso à realidade externa,
permitindo que o sono continue, que esta “direção retrocedente”
é responsável pela natureza alucinatória do sonho); quanto
formal, pois os conteúdos desiderativos retomam a arcaica forma
imagética de que se constituíram na infância ontogenética e
filogenética, retrocedendo da linguagem articulada, comunicativa
para as imagens sensoriais.31

31. Para toda esta sucinta retomada, cf. S. Freud, A interpretação dos sonhos,
pp. 489-502 ss; Die Traumdeutung, pp. 510-524 ss. Mais uma vez, trata-
se do subcapítulo “A regressão”, do capítulo VII.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 79

Se se tem em vista estes aspectos da teoria freudiana do


sonho, a analogia proposta por Debord tem justo o propósito de
salientar que o espetáculo se constitui numa dupla regressão
social à passividade contemplativa e não-comunicativa dos
homens, submetidos em sua experiência mais imediatamente
cotidiana às “imagens”, às “aparências” socialmente organizadas.
Em outras palavras, o c a p i t a l i s m o c o n t e m p o r â n e o é
essencialmente uma expropriação do diálogo e da atividade
autônoma.
Mas esta analogia sugere também um significado para a
persistente denúncia, por Debord, de que o espetáculo é uma
“falsificação”, uma “negação da vida”. O espetáculo, diz ele, é
“a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana,
quer dizer, social, como simples aparência. [É] a negação visível
da vida [...] uma negação da vida que se tornou visível” (SdS, §
10). A subsunção de toda a vida cotidiana à “aparência do
sistema”, à troca mercantil, transforma a totalidade das relações
genéricas dos indivíduos em manifestação aparente da lógica
do valor econômico, em modos concretos e imediatos de
afirmação das trocas de equivalentes. As possibilidades outras
constituídas pelo desenvolvimento das forças produtivas
modernas são substituídas por satisfações falsificadoras destas
mesmas possibilidades – possibilidades estas que Debord nomeia
ora sob a expressão marxiana da sociedade sem classes, ora
sob a fórmula poética da vraie vie, da qual aquela seria, para
ele, sinônima. No capitalismo mais desenvolvido haveria uma
“satisfação alucinatória” dos desejos, tal como no sonho do
indivíduo.
Em sua denúncia da “pseudovida”, da “falsificação/
negação da vida”, não há portanto uma posição “platônica” (sic),
na qual “os fenômenos concretamente existentes podem ser
comparados com seus modelos”, como supõe A. Jappe.32 Bem

32. A. Jappe, Guy Debord, p. 179.


80 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

pelo contrário, há uma assunção materialista da noção poética


da vraie vie, compreendida de modo imanente com base nas
possibilidades materiais do capitalismo contemporâneo,
possibilidades estas que são recalcadas pela dominância da
forma-valor. A determinação fixa e fixadora do metabolismo do
capital, já a partir da subsunção do cotidiano à forma-mercadoria,
ao impedir o uso emancipatório das modernas forças produtivas,
conduz a sociedade moderna mais desenvolvida à substituição
dos desejos possíveis por carências ou necessidades (besoins)
que estão aquém das possibilidades materiais já existentes.
Num dos artigos integrantes de “Marxismo e teoria
revolucionária”, C. Castoriadis já questionava a existência de
“necessidades ‘verdadeiras’” (besoins ‘vrais’) e, portanto,
descartava a consistência teórica da denúncia situacionista da
“pseudo-realidade” (‘pseudo-réalité’).33 Precisamente no texto
acima referido acerca da importância da psicanálise para a
compreensão da aparência social no capitalismo desenvolvido,
Debord argumenta que, na denúncia da pseudo-realidade do
capitalismo avançado, não se trata de modo algum de reivindicar
uma “natureza humana” (nature humaine) , t a m p o u c o d e
denunciar uma “substituição mercantil” (remplacement
marchand) das supostas “necessidades elementares” (besoins
élementaires), mas sim de compreender a possibilidade de
“ultrapassar” (dépasser, em itálicos no original) estas supostas
“necessidades elementares”, das quais o “imaginário” presente
na sociedade mercantil mais desenvolvida não está “além”, mas
“aquém”. 3 4

33. Publicado em Socialisme ou barbarie, nº 40, 1965 (cf. C. Castoriadis,


Instituição imaginária da sociedade. Tr. br. G. Reynaud. São Paulo: Paz e
Terra, 1982, pp. 188-189).
34. Debord e os situacionistas se distanciam sempre da crítica sociológica da
“sociedade de consumo”, do “consumismo” etc. A um pensamento votado
à dépense e ao potlatch, como o seu, nada mais estranho do que o lamento
da perda da simplicidade natural e da vida austera. Sua crítica se volta
antes à abundância mercantil, sinônimo da necessidade e não dos desejos;
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 81

Ainda segundo Freud, no sonho do indivíduo, a força


afetiva arcaica e inconsciente do desejo infantil fortalece
representações psíquicas de experiências do presente para,
associando-se a estas, chegar ao pré-consciente e, deste, à
consciência sob formas de imagens, pelas quais ganham
“realização”, “satisfação”. Em analogia com o sonho, a sociedade
do espetáculo é, para Debord, a afirmação contundente da força
econômica arcaica e inconsciente da forma-valor. Submetendo
a si toda experiência humana, a forma-valor impõe-se como
arkhê, como estrutura primitiva e permanente que retesa, recalca
aquelas possibilidades do presente que se abrem para o futuro,
enformando o surgimento e a satisfação das “necessidades”
(besoins). Nesta perspectiva, a teoria freudiana do sonho é
desviada de seu sentido imediatamente psicanalítico, pois,
segundo Debord, o sonho-espetáculo satisfaz de modo
alucinatório, substitutivo e falseador não os “desejos”
inconscientes (“infantis”, no dizer de Freud), mas possíveis
outros “desejos conscientes” (désirs conscients); ele realiza
necessidades que nunca foram, de fato, desejos conscientemente
elaborados, necessidades estas já determinadas pelos próprios
limites históricos da forma-mercadoria.
De outra maneira, é o “inconsciente social” da economia
mercantil que, desconhecendo as possibilidades dos poderes
materiais da época, se apresenta permanentemente “realizado”
(ou “satisfeito”) nas mais imediatas e cotidianas experiências
sociais dos indivíduos, recalcando a formulação e a efetivação
consciente do “desejo vivo” (désir vivant, termo este que Debord
usa para distinguir sua noção de desejo consciente tanto do
desejo inconsciente da psicanálise quanto de uma noção de
desejo ou necessidade “naturais”, “autênticos” dados de modo

ela é uma crítica, portanto, da forma-mercadoria em nome da liberação


do uso abundante das coisas, cujo sentido pode ser permanentemente
inventado e reinventado e cuja condição primeira é o uso histórico, concreto
e qualitativo, do tempo e da linguagem.
82 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

supra-histórico). Não são os “desejos primitivos”, “arcaicos”


(como considerados pela psicanálise) que se encontram
recalcados, substituídos no sonho-espetáculo, mas sim os
desejos possíveis no presente, desejos cuja possibilidade se
encontra submetida à forma arcaica da mercadoria e às suas
“necessidades”. Em suma, não é a arkhê-mercadoria que é
transformada em imagens alucinatórias, mas antes é ela que
transforma em imagens aparentes as possibilidades do presente,
que deixam de ser conscientemente elaboradas e vividas em
toda a potencialidade que os poderes materiais da época
permitem.
Na denúncia da falsificação da vida, da pseudo-realidade,
da falsificação das necessidades, Debord busca afirmar não uma
suposta realidade primeira e autêntica que, por sua fixidez, seria
o critério de crítica do presente, mas antes constata criticamente
a fixidez de um presente aprisionado ao arcaísmo da forma-
valor que impede, recalca e substitui por imagens oníricas as
possibilidades historicamente constituídas de elaboração e
realização efetiva do desejo consciente. Não há para Debord –
leitor que é de Pascal, Hegel e Nietzsche – uma qualquer
realidade verdadeira fora ou a despeito da história, constituindo-
se esta justamente da reinvenção permanente do uso da vida,
mas é este uso que é recalcado, embora possibilitado, pelo
capitalismo espetacular. O que se encontra expresso no
capitalismo avançado, sob a forma do espetáculo é, segundo diz
Debord, “o que sociedade pode fazer”; porém, o “permitido”
sob a lógica do arcaísmo mercantil se opõe ao historico-
materialmente “possível”. As transformações econômico-sociais,
o desenvolvimento das forças produtivas, as imensas
possibilidades constituídas materialmente de uma outra vida se
mantêm, sob o espetáculo, conservados como “inconsciência”.
Por isto mesmo, como sonho, o espetáculo se lhe apresenta
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 83

justamente como “o coração do irrealismo da sociedade real”


(SdS, § 6). Como irrealidade que se torna efetiva, tanto quanto
a “abstração” mercantil é, para Marx, “real”, Debord pensa o
espetáculo como uma “substituição”, um “Ersatz”, não do mundo
presente, mas sim da vraie vie, de uma outra vida já possível no
presente.35
A natureza visível e imediata da dominância da forma-
valor no capitalismo contemporâneo – pela qual a aparência social
encontra-se profundamente transformada – é uma determinação
central não apenas ao conceito de espetáculo, mas também à
afirmação prospectiva imanente à crítica que Debord dele
elabora. Como forma de existência fenomênica e aparente do
fetichismo mercantil, o espetáculo é também a imediata
apresentação destas mesmas possibilidades mantidas
inconscientes pelo arcaísmo da forma-mercadoria. “As próprias
forças que nos escaparam mostram-se a nós em toda a sua
potência”, diz ele (SdS, § 31). Em outro parágrafo, Debord volta
a falar sobre esta auto-exposição da reificação: “O capital não
é mais o centro invisível que dirige o modo de produção: sua
acumulação o estende/expõe [étale] até a periferia sob formas
de objetos sensíveis” (SdS, § 50). Neste caso, devem-se
conservar pelo menos três dos sentidos que o verbo étaler
possui: acumulado, o capital se desenvolve, se estende e s e
mostra (se expõe, se apresenta). Se o espetáculo é a extensão
horizontal das relações mercantis, extensão que causa profundas
transformações na aparência social, não é, contudo, um fenômeno

35. Nesta mesma perspectiva de apropriação da psicanálise, pode-se entender


o significado radical do termo “ilusão” (illusion), tão freqüente em A
sociedade do espetáculo. A “ i l u s ã o ” (Illusion), para Freud, não é
necessariamente um “erro” ( Irrtum), mas o “preenchimento”, a “satisfação”
ou a “realização” (Erfüllung) de desejos que não são necessariamente
falsos, irrealizáveis ou contraditórios com a realidade. Contudo, como
ocorre nas crenças religiosas ou, por analogia, nos delírios, a ilusão “põe
à frente” (vordrängt) o desejo com relação à “realidade” (Wirklickkeit).
Quando Debord diz que o espetáculo é “a reconstrução material da ilusão
religiosa” (SdS, § 20) ou a “ditadura efetiva da ilusão” (SdS, § 213), ele
84 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

restrito à “superfície”; sua base é precisamente a acumulação


de capital e a concentração capitalista das forças produtivas.
“O espetáculo”, diz Debord, “é o capital em um tal grau
de acumulação que se torna imagem” (SdS, § 34). Mas, cabe
indagar, imagem de quê? A resposta não poderia ser outra senão
esta: de si mesmo, de sua natureza fetichista e de seu poder
material, que é o poder material da sociedade que dela se
encontra alienado sob a forma-capital. Não se trata, pois, da
imagem falsificadora de alguma existência verdadeira
transcendente ou de uma natureza humana a-histórica. Sob a
forma do espetáculo, é o capital acumulado e sua natureza
fetichista que se mostra, de modo distorcido, certamente, mas
também em sua verdadeira natureza: como espetáculo, o capital
se mostra, se apresenta como uma força autônoma, força cujo
fundamento não é outro que a própria força material social, o
próprio resultado do trabalho social tornado autônomo em face
da sociedade. De outro modo, é a própria contradição fundamental
de toda uma época histórica – contradição entre seus poderes
materiais, possibilitadores de uma outra vida, e a forma social
que aprisiona a realização destas mesmas possibilidades – que
se apresenta numa necessária aparência invertida, inversão esta
que, sendo essencial à forma-valor, se mostra como potência
humana sobre-humana.
O que o espetáculo mostra, deixa ver é, sob forma alienada
e substitutiva, as próprias possibilidades da vraie vie. Se ele é
a superacumulação do capital tornada “imagem”, “fenômeno
aparente”, o seu conteúdo material é o desenvolvimento das

tem em vista não apenas a inversão sujeito-predicado já assinalada por


Feuerbach quanto à filosofia especulativa e à religião, mas também, em
analogia com a crítica freudiana da religião, a natureza ilusória da
“realização” dos desejos-possíveis nas condições do capitalismo mais
desenvolvido. Cf. S. Freud, O futuro de uma ilusão [1927]. Obras
psicológicas completas de sigmund Freud, vol. XXI. Tr. br. J. O. Aguiar
Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 43 ss; Die Zukunft einer Illusion.
Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX. Frankfurt am Main: S. Fischer
Verlag, 1974, pp. 164 ss.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 85

forças produtivas que torna possível, pela superacumulação de


valores de uso, a superação para além d o besoin material e,
portanto, a formulação consciente e social do désir. É
particularmente neste aspecto que a aproximação feita por
Debord entre a experiência social do capitalismo espetacular e
o sonho do indivíduo ganha importância. Em analogia com as
imagens oníricas, as aparências autônomas da forma-mercadoria
recalcam, distorcem e escondem, mas também – porque são
ambíguas e descontínuas (graças à separação e à ausência de
unidade que são essenciais à própria alienação) – mostram,
deixam ver o desenvolvimento material de possibilidades outras
que tornam desnecessária a própria economia mercantil. 36
Do mostrar-se da alienação, da visibilização do capital,
Debord concebe justamente que “a economia autônoma se separa
para sempre da necessidade profunda na medida mesma em
que ela sai do inconsciente social que dependia dela sem saber.
// No momento em que a sociedade descobre que ela depende
da economia, de fato a economia depende dela. Esta potência
subterrânea que cresceu até aparecer soberanamente também
perdeu sua potência. Aí onde estava o isso econômico deve vir
o eu” (SdS, §§ 51-52). Deste modo, a aparência social, ao realizar
a falsificação da vida, não é, ela mesma, inteiramente falsa.
Como aproximativamente propõe a psicanálise em relação ao
sonho e às imagens oníricas, toda a questão é traduzir em desejo
consciente, através da linguagem e da práxis comunicativas, as

36. De modo algum esta afirmação entra em contradição com a análise de


Agamben, anteriormente indicada, sobre a reflexão, no espetáculo, entre
a “transparência” e a “fantasmagoria” da mercadoria, mas, ao contrário, a
pressupõe. Ao expor-se à “plena vista”, o capital certamente “oculta seu
reino encantado” (Agamben), mas nisto mesmo também deixa ver a
“ocultação”, o fetichismo que lhe é essencialmente constitutivo; um deixar
ver que expõe, na imediatidade do vivido, a completa autonomia e separação
da forma social da produção mercantil com relação às possibilidades de
formulação e realização conscientes de desejos vivos, possibilidades estas,
segundo Debord, constituídas historicamente pelo desenvolvimento das
forças produtivas.
86 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

possibilidades que se encontram ocultadas/apresentadas nestas


imagens, formulando o projeto social de liberação da história do
aprisionamento mítico-arcaico da modernidade burguesa tardia.
É justamente sob este projeto que Debord conclui A sociedade
do espetáculo, ao indicar as condições, que são uma única e
mesma, da emancipação possível em nossa época: “Aí somente
onde os indivíduos estão ‘diretamente ligados à história
universal’, aí somente onde o diálogo se armou para fazer vencer
suas próprias condições” (SdS, § 221).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 87

Capítulo II

O problema da expressão

Nunca permanecemos no tempo presente.


Antecipamos o futuro, por chegar com muita
lentidão, como para lhe apressar o curso;
recordamos o passado, a fim de detê-lo, porque
rápido em demasia: tão imprudentes que
erramos nos tempos que não são nossos e
apenas não pensamos no único que nos
pertence; e tão vãos que sonhamos com os
que já não existem e evitamos sem reflexão o
único que subsiste. É que o presente
comumente nos fere. Ocultamo-lo à vista,
porque nos aflige; e, se nos é agradável,
lamentamos vê-lo escapar.
Pascal, Pensamentos

O desenvolvimento do capitalismo produz a obliteração


cotidiana da comunicação. Para Debord, esta é uma expropriação
da potencialidade lingüístico-comunicativa que conduz
justamente a uma crise da vida cotidiana no capitalismo mais
desenvolvido, em razão da reintrodução formal e aparente, mas
essencial ao espetáculo, do arcaísmo mítico pela extensão das
relações mercantis à totalidade do vivido. Neste âmbito, a própria
categoria da expressão, tal como pensada e experimentada
esteticamente pelo surrealismo e pela arte moderna, encontra-
se também em crise, o que sig nifica para Debord a crise nem
apenas, nem primeiramente de uma categoria estética, mas antes
88 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

da perspectiva socialmente crítica com base na qual o


surrealismo e toda a arte moderna formularam sua experiência
com a modernidade e refletiram sobre a linguagem; antes ainda,
trata-se de uma crise do que Debord chama de “expressão
concreta” dos indivíduos, expressão essencialmente práxica,
cotidiana, crise esta que, por fim, traz consigo a da própria
categoria estética da expressão. É em face desta experiência
social mais ampla, na qual se inclui a própria experiência estética,
que Debord busca pensar criticamente – não apenas em A
sociedade do espetáculo, mas já em textos que datam do final
dos anos 50 – a experiência social, tendo como centro o uso
social da linguagem, pensada na forma da comunicação.
De 1958 a 1967, ano em que finaliza e publica A sociedade
do espetáculo, a relação entre expressão e comunicação ocupa
um importante lugar na reflexão de Debord, precisamente nos
termos de uma afiliação de seu pensamento à poesia moderna,
cuja posição negativa diante da sociedade burguesa não é, para
esta afiliação, um aspecto secundário; e na qual a experiência
surrealista (no que diz respeito à reflexão sobre a expressão e
à posição negativa em vista da sociedade moderna) constitui,
para ele, uma referência prática e teórica central. Precisamente
porque o surrealismo assume uma centralidade nesta experiência
da poesia moderna que Debord tem em vista, é que a reflexão
deste último sobre a expropriação da comunicação, inseparável
da que se realiza sobre a expressão concreta e a atividade
autônoma dos indivíduos, tanto implica um posicionamento sobre
a experiência surrealista quanto significa uma retomada e uma
recolocação do programa das vanguardas históricas de
ultrapassagem da arte. A busca por Debord de ultrapassagem –
mas não abandono – da expressão é exatamente o modo como
ele enfrenta as ambigüidades que encontra no surrealismo, num
mesmo movimento de retomada de seu programa de
ultrapassagem da “instituição arte” (Bürger) e de fusão entre
arte e vida cotidiana. Aí mesmo pretende posicionar-se,
inseparavelmente, em vista da sociedade produtora de
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 89

mercadorias em sua fase espetacular, na qual a essência


anticomunicativa da ratio mercantil se tornou imediata e total.
Com o objetivo de oferecer as bases desta discussão, este
capítulo busca uma melhor determinação da reflexão de Breton
sobre a linguagem, em sua forma expressiva e em sua posição
negativa diante da sociedade moderna, situando, em seguida, a
concepção de Debord acerca da experiência surrealista e do
modernismo estético.

2.1 Surrealité e expression em Breton


Em Breton, a noção de surréalité é concebida como lugar
de não-contradição, pois lugar de existência e expressão da
pluralidade de sentidos que não apenas não se constitui
negativamente, mas também não reconhece a negatividade
dialética. Este não-reconhecimento é a própria condição de
possibilidade de coexistência e justaposição do que é
contraditório, antinômico, na interioridade subjetiva em sua
expressão lírica. Ora, é porque a subjetividade pura se dá numa
positividade imanente – e apenas por isso, paradoxal,
ambivalente, justaposta – de sentidos, que tal posição de Breton
se encontra bem distinta daquela sobre a qual Marx – com base
em Hegel e Feuerbach – insiste, que é a negatividade da finitude
sensível e prática e, portanto, nela, a inscrição da atividade, da
autonegação, do trânsito, da superação, enfim, do “gênero”. Neste
último aspecto, é que a concepção bretoniana de dialética –
concepção que ele articula numa relação com a da expressão,
enquanto surréalité – se encontra com uma outra determinação
fundamental a esta mesma concepção da expressão, que é o
seu caráter não-comunicativo, pois constitutiva da subjetividade
pura, solitária.
De modo irônico, Breton diz que a linguagem surrealista
se adapta, ao melhor, ao diálogo, porém não no sentido da
possibilidade de uma linguagem comum, verdadeiramente
comunicativa, mas sim no da discordância, da impossibilidade
90 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

radical de uma produção comum e comunicável de sentido. Se,


quando dois pensamentos se afrontam, um ocupa-se do outro,
a atenção aí desprendida é “toda exterior”: “Minha atenção [...]
trata o pensamento adverso como inimigo”. 1 Ora, tal postura se
constitui, antes de tudo, de um dado fundamental da experiência
cotidiana, da “conversa corrente” (conversation courante), na
qual o pensamento “‘retoma’ quase sempre, nas palavras, as
figuras das quais ele se serve; ele me põe em posição de tirar
partido delas na réplica, desnaturalizando-as”. 2 Segundo esta
perspectiva, pondo-me ante o outro enquanto subjetividade pura
auto-exilada das relações genéricas tomo as palavras que escuto
do meu interlocutor apenas e necessariamente como figuras,
cuja significação se constitui e se mobiliza em mim num sentido
outro daquele que me foi transmitido: ao mobilizar imagens,
lembranças, desejos, as palavras por mim recebidas – porque
ambíguas, ambivalentes – me reconduzem permanentemente para
além dali. “As palavras, as imagens oferecem-se apenas como
trampolins ao espírito daquele que escuta”. 3 São trampolins para
aquele que escuta, pois lhe chegam como metáforas, imagens
mobilizadoras de seus próprios e diversos pensamentos, tanto
quanto, no limite, já foram propriamente expressas, por aquele
que fala, também como imagens, metáforas, figuras de
pensamentos outros que não necessariamente os que foram
conscientemente convocados a se apresentarem na conversa
corrente.
A expressão é não-comunicativa exatamente porque, por
ser constituída em e por sujeitos não-unitários, mobiliza a
ambivalência, a ambigüidade de que nos fala Freud, como
coexistência e justaposição de sentidos múltiplos, não-
contraditórios, tal como o princípio da identidade, da não-

1 . A. Breton, Manifeste du surréalisme, em Oeuvres complètes, t. I. Paris:


Gallimard, 1988, p. 335.
2 . Idem, pp. 335-336.
3 . Idem, p. 336.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 91

contradição, é ignorado pelo “trabalho do sonho” e, em geral,


pelos recursos inconscientes de fuga da censura. Como paradoxo
não-contraditório é, por isto mesmo, não-comunicativo e não-
dialogal: tanto porque a palavra, enquanto símbolo, é recebido
numa outra referência significativa pelo ouvinte, quanto porque,
inseparavelmente, dada esta mesma ambivalência do signo, se
experimenta aí ao extremo a ausência de qualquer com- entre
os falantes: comunhão de pensamentos, significação comum da
linguagem, logo, comunicação, comunidade. Precisamente porque
expressiva, esta é uma linguagem significativa não-comunicativa.
Não é difícil ver aí a radicalização da concepção seja da
subjetividade cindida, seja de uma subjetividade lírica, voltada
para um mundo interior, seja ainda de uma capacidade figurativa
e transfigurativa das palavras-imagens, próprias à concepção
surrealista de mímesis. Mas, mais fundamentalmente, Breton
aqui se posiciona criticamente diante da exigência social da
“comunicação” e busca, precisamente assim, como já antes o
fizera T. Tzara nos manifestos dadaístas, desmascarar tal
exigência: “Não existe nenhuma conversa em que não se passa
alguma coisa dessa desordem. O esforço de sociabilidade que
preside a ela e o grande hábito que dela nós temos conseguem
sozinhos dissimulá-lo passageiramente, para nós”. 4 Por isso
mesmo, para Breton, a “verdade absoluta” do “diálogo”
(dialogue), verdade esta que o surrealismo teria mesmo por
meta restabelecer, é o “solilóquio” (soliloque). Precisamente
aqui estamos diante da determinação central da concepção
expressivista da linguagem, tal como o concebem Breton e o
surrealismo. E, justamente aqui, ela se determina por uma posição
antiinstrumental da linguagem, como recusa de um uso dela que
a tome não em sua dimensão criadora e, assim, possibilitadora
da expressão, mas sim na condição de instrumento de um
“diálogo”, de uma “conversa”, de uma “comunicação” que, no
mundo “exterior” e reificado da “lógica” e do “racionalismo”,

4 . Idem, p. 335, itálicos no original.


92 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

só pode mesmo ocorrer como, nas palavras de Mallarmé, “em


silêncio, uma moeda na mão do outro”. O que pode ser a
linguagem, enquanto instrumento de “comunicação” cotidiana,
num mundo todo exterior às profundezas do espírito, num mundo
dos imperativos práticos, do trabalho e das convenções fixas,
senão uma linguagem banal que, de fato, funcione como moeda
de troca? A banalização da linguagem, a sua redução a esta
posição pobremente mediadora, pois mediação de uma
experiência que ocorre como se numa “caixa, de onde é cada
vez mais difícil sair” (Breton), constitui a própria linguagem
como lugar cotidiano e empobrecido de relações reificadas. A
recusa da “comunicação”, da “conversa”, enfim, do “diálogo”
por Breton tem, pois, o central sentido de uma recusa dessas
mesmas relações e, eo ipsum, da banalização da linguagem que
aí ocorre, “diálogo” e banalização aos quais ele contrapõe,
enquanto solilóquio, a expressão.
Nessas reflexões, Breton mobiliza uma determinação
central em toda a experiência poética moderna que é esta
afirmação do lugar negativo que a interioridade subjetiva, mesmo
quando articulada teoricamente numa imanência positiva, como
ocorre precisamente no fundador do surrealismo, ocupa em face
de relações genéricas reificadas. Neste aspecto, Adorno é, sem
dúvida, aquele que mais radicalmente – porém, como reconhece,
numa época em que a experiência dela se encontra em crise –
busca traduzir estético-filosoficamente tal afirmação; e o faz
exatamente com fundamento na oposição entre expressão
(Ausdruck) e comunicação (Kommunikation). 5 É porque, no
mundo reificado, a consciência individual é o único lugar possível
de uma consciência verdadeira, porque é precisamente no

5 . A posição de Adorno sobre o surrealismo – se permanece sempre, sem


dúvida, extremamente crítica quanto à questão da forma estética em face
da idéia de superação da arte – não se esgota naquele tão radical
distanciamento que encontramos em Retrospectiva do surrealismo
(Rückblickend auf den Surrealismus), publicado nas Notas sobre a literatura.
Na Teoria estética, há aproximadamente cerca de oito referências diretas
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 93

indivíduo que se constitui o único lugar possível da negatividade


diante das tendências totalitárias da sociedade de mercado, que
Adorno encontra na obra de arte – em sua mímesis refratária à
exterioridade social, não obstante s e r ela m e s m a ,
contraditoriamente, um fait social – uma obrigatória “mediação
subjetiva” (subjektive Vermittlung). Ainda que a mímesis – uma
produção racional que, ao mesmo tempo, resiste à racionalidade
administradora – se ponha, num de seus momentos, numa
consubstanciação pelo universal (Allgemeines), isto ocorre
necessariamente na dependência do sujeito individual, singular
(Einzelsubjekte). Daí que a obra de arte “não pode isolar-se da
expressão [ Ausdruck], e esta não existe sem sujeito [ Subjekt]”. 6
É, pois, nesta natureza mimética – que não é uma mímesis
imediata do sujeito, mas mímesis de si mesma da obra de arte
autônoma, em sua “refração” (Berchung) da realidade que lhe é
“exterior” (Auswendung ) – q u e a e x p r e s s ã o s e p õ e
negativamente em face da “universalidade discursivamente
discernível” (diskursiv erkannte Allgemeiheit), universalidade
que, em termos estéticos, só poderia significar uma heteronomia
inteiramente estranha à arte. Se alguma relação há entre a obra
de arte e a sociedade presente, tal acontece necessariamente
pelo caráter refratário da primeira com relação à segunda, daí
que, para Adorno, “a comunicação [Kommunikation] das obras
de arte com o exterior, com o mundo diante do qual, feliz ou
infelizmente, elas se fecham [verschliessen], ocorre através
da não-comunicação [Nicht-Kommunikation]”. 7
É claro que, nessas considerações, Adorno se situa numa
posição especificamente estética distinta da de Breton, que não

ao surrealismo que, em sua maioria, portam considerações essencialmente


solidárias, particularmente no que diz respeito às suas posições críticas da
reificação, da racionalidade administradora, do seu papel histórico em
expressar a crise artística (nisso, seguindo Benjamin), porém mantendo
essencialmente aquele mesmo distanciamento – ao mesmo tempo em que
busca situá-la historicamente – de sua posição crítica contra a arte.
6 . Adorno, Teoria estética, p. 56; Ästhetische Theorie, p. 68.
7 . Idem, p. 16; na ed. alemã, p. 15.
94 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

apenas reivindica uma outra atividade que não a da “arte” e da


“obra de arte”, mas também aponta para uma outra e bem
diferente concepção de mímesis. Contudo, parece que o
fundamental é, precisamente, que Adorno, ao buscar refletir
estético-filosoficamente sobre a arte moderna, retoma
essencialmente a afirmação de Breton quanto à expressão,
enquanto é esta constituída por uma anteposição crítica da
interioridade subjetiva em face da exterioridade reificada; e do
mesmo modo sublinha a demarcação de um campo de autonomia
necessariamente negativo, mimético, c o m relação à
“universalidade discursiva”. O que está contido na expressão,
segundo Adorno, “é o caráter de linguagem da arte,
fundamentalmente diferente da linguagem enquanto seu
medium”. 8 Em outras palavras, não é a linguagem universal,
discursiva, melhor ainda, cotidiana, “comunicativa” (a linguagem
enquanto medium, como discutira o jovem Benjamin), o lugar da
expressão – cujo conteúdo de autonomia Adorno, diante da
uniformização dos comportamentos, da decadência do gosto, da
inclinação à heteronomia na sociedade tardocapitalista, só pode
encontrar na arte –, mas, ao contrário, na transformação da
“linguagem comunicativa” (kommunikative Sprache) e m
“mimética” (mimetische) , c o n s i d e r a n d o a q u i o c a r á t e r
autonomamente expressivo que, para ele, a mímesis porta. É
porque, na sociedade de mercado, o medium da linguagem apenas
pode se colocar como uma universalidade discursiva alienada,
q u e a Ausdruck d e m a r c a , d i a n t e d e l a , u m a r e c u s a d a
Kommunikation.
Quando Adorno, para quem a expressão também é
soliloquio, assume, em termos estético-filosóficos, o mesmo
ponto de vista estético-expressivo e, portanto, radicalmente
não-comunicativo de Breton, como recusa da “comunicação”
reificada própria das relações sociais de mercado, ele
testemunha, do mesmo modo que o fundador do surrealismo, a

8 . Idem, p. 132; na ed. alemã, p. 171.


R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 95

determinação mais geral que a categoria da expressão porta


com relação à experiência poética moderna. Na concepção da
expressão por Breton, que a formula tendo em vista também a
experiência estética que ocorre no exterior do surrealismo,
trata-se precisamente de afirmar com radicalidade uma
experiência expressiva que, presente na escrita e na figuração
pictórica de diversos autores, é a única que se lhe apresenta
como conforme às potencialidades criadoras da linguagem e,
nisto mesmo, sua potencial negação da banalidade de seu uso
social. Desde sempre, é esta recusa dos “imperativos práticos”
e “comunicativos” o que constitui sua concepção lírica, logo,
expressiva em face da sociedade moderna. A concepção da
subjetividade solitária, essencial ao seu lirismo, em razão da
crise da tradição e do presente domínio da reificação, é o que
constitui sua concepção da expressão não-comunicativa e, por
isso mesmo, aversa aos “imperativos práticos” e ao chamado
reificado da “ação”. 9

2.2 Debord e a crítica da “superestimação do


inconsciente”
De uma perspectiva teórica, a crítica de Debord ao
surrealismo pode ser inicialmente situada com relação à
representação surrealista do inconsciente e do sonho. Contudo,
ao contrário do que normalmente se considera, suas
considerações sobre o surrealismo não se estabelecem, em
primeiro lugar, sob o critério de que este movimento tenha ou
não razão em teoria, seja de modo relativo, seja absoluto, mas
sim sob o de “conseguir catalizar, por um certo tempo, os desejos

9 . Cf. A. Breton, Manifeste du surréalisme, p. 345: “Eu finjo, infelizmente,


agir num mundo no qual, para chegar a compreender suas sugestões, eu
teria que transitar por dois tipos de intérpretes, uns para me traduzir suas
sentenças, outros, impossíveis de achar, para impor aos meus semelhantes
a compreensão que eu teria deles. [...] Eu estarei só, bem só em mim,
indiferente a todas as danças do mundo”.
96 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

de uma época”. 10 Precisamente disto decorreria sua importância


histórica. Este critério se torna fundamental para a reflexão de
Debord, pois funda sua pergunta pela relação entre o programa
surrealista e as novas experiências sociais do capitalismo
desenvolvido, pergunta esta que se move por uma central
positivação da natureza crítica das questões concernentes às
“razões de viver” apresentadas pelo surrealismo no
entreguerras.
Para Debord, a afirmação surrealista da “soberania do
desejo” e da “surpresa”, sintetizada na proposta de um “novo
uso da vida”, mesmo em face do capitalismo do segundo pós-
guerra possui “possibilidades construtivas” que não podem ser
abandonadas, mormente no que tais afirmação e proposta
significam de negação da reificação, dos imperativos práticos e
do conseqüente estreitamento da experiência vital. Contudo,
devem ser pensadas com base num fundamento teórico diferente
do posto pelo próprio surrealismo. Esta base é precisamente a
relação dialético-materialista entre os desejos da época e os
meios materiais de sua realização, relação essencial a toda
reflexão estética e social de Debord. Este compreende que a
falta de tais meios, quando da experiência da primeira geração
surrealista, determinou em grande parte os próprios limites de
seu programa crítico. A continuidade, pela segunda geração
surrealista, da recusa de pensar construtivamente as
possibilidades constituídas por tais meios torna o programa
surrealista, se tomado como um todo, historicamente
inapropriado. É esta fragilidade da concepção surrealista em
face do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo
no segundo pós-guerra que torna necessário um balanço teórico
de suas posições, pois ela é absolutamente inseparável do modo

10. G. Debord, Rapport sur la construction de situations et sur les conditions


de l’organisation et de l’action de la tendance situationniste internationale
[1957], Anexo 2 a Internationale Situationiste 1957-1969, ed. cit., p.
691. (Doravante, este texto será citado apenas por “Rapport”).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 97

como se apresenta seu afastamento crítico da realidade


“exterior”.
“O erro que está na raiz do surrealismo”, diz Debord, “é
a idéia da riqueza infinita do inconsciente. A causa do fracasso
ideológico do surrealismo é haver apostado que o inconsciente
era a grande força, finalmente descoberta, da vida. [...] A
fidelidade formal a este estilo de imaginação finda por conduzir
às antípodas das condições modernas do imaginário: ao ocultismo
tradicional”. 11 Nesta passagem, Debord se refere centralmente
à representação surrealista do inconsciente como fonte
inesgotável do novo, representação da qual se distancia
apoiando-se na concepção freudiana do caráter arcaico dos
desejos inconscientes e de sua apresentação imagética no sonho.
Debord se recusa a tomar o “inconsciente” como fonte da criação
histórica, pois, com Freud, o concebe como um “mundo arcaico”.
Contudo, deve-se observar que seu afastamento do horizonte
surrealista do inconsciente se determina pela mesma
preocupação de Breton: a da relação entre os “desejos” e a
“vida”. Neste sentido, não há uma afiliação imediata de Debord
à teoria psicanalítica, pois ele formula uma certa noção de
“desejos” que se afasta também da psicanálise, para a qual o
“desejo” se situa no arcaísmo do inconsciente. Como já dito no
primeiro capítulo, o termo “desejo” aparece sempre nos textos
de Debord numa dimensão social, como volição prospectiva a
ser elaborada conscientemente. Sustentando um “conflito
perpétuo entre o desejo e a realidade hostil ao desejo”, Debord
considera que a tarefa da teoria crítica não é “interpretar as
paixões: trata-se agora de encontrar outras delas”. 12 Ainda
assim, neste desvio da concepção psicanalítica do desejo,
enquanto desejo inconsciente, Debord se recusa – precisamente
porque considera com propriedade o seu significado para Freud

11. Idem, p. 691.


12. Idem, pp. 700-701.
98 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

– a tomar o inconsciente como fonte inesgotável da criação do


novo, tal como o fazem Breton e os surrealistas.13
O referir-se de modo distinto à noção de desejo e, em
sintonia com a teoria freudiana, o recusar a positivação extrema
do inconsciente e do sonho são gestos que se movem numa
mesma direção. Sobre isto, é necessário fazer uma breve
observação. Em Freud, a interpretação psicanalítica de
fenômenos culturais e sociais procede sempre por intermédio
d a “ s u p o s i ç ã o ” (Annahme) d e u m a “ p s i q u e d e m a s s a ”
(Massenpsyche), na qual se fazem “analogias” (Analogien),
“comparações” (Vergleichungen, Gleichstellungen) e s e
encontram pontos de “concordância” (Übereinstimmung) entre
os processos anímicos do indivíduo e os da “época” (ou da
“comunidade cultural”, Kulturgemeinschaft).14 Freud admite,
portanto, “a tentativa de uma transposição [Übertragung] da
psicanálise na comunidade cultural”, mas alerta justamente que
é preciso, neste caso, “não esquecer que se trata de analogias
[Analogien] e que é arriscado, não apenas em homens, mas
também em conceitos, arrancá-los d o ambiente [esfera, Sphäre]

13. Benjamin também já observara esta tendência arcaizante na primeira


geração surrealista: “Uma ‘mitologia’, como diz Aragon, empurra as coisas
de novo para longe. Apenas a explicação do que nos é aparentado, do que
nos condiciona [uns Verwandt, uns Bedingenden] é importante”. A postura
crítica e, ao mesmo tempo, reivindicadora do surrealismo por parte de
Debord lembra em muito – algo que, infelizmente, não posso desenvolver
neste livro – a posição que Benjamin adota e condensa no conceito de
Erwachen, “despertar”. Noutra passagem, Benjamin anota: “Enquanto em
Aragon permanece um elemento impressionista – a ‘mitologia’ – [fazer
este impressionismo responsável por muitos filosofemas sem teor do livro],
trata-se aqui de uma dissolução [Auflösung] da ‘mitologia’ no espaço da
história”. (Cf. W. Benjamin, Paris, Capitale du XIXe. Siècle. Le livre des
passages. Tr. fr. Jean Lacoste. Paris: Les Édtions du Cerf, 1989; Passagen-
Werk. Gesammelte Schriften, V-1/2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,
1982, respectivamente, Cº, 5 e Hº, 17).
14. S. Freud, Totem e tabu [1912-13]. Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, Vol. XIII. Tr. br. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1974, p. 187 ss; Totem und tabu. Sigmund Freud
Studienausgabe, Band IX, p. 440 ss; O futuro de uma ilusão, p. 58; Die
Zukunft einer Illusion, p. 177.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 99

em que nasceram e se desenvolveram”. 15 Em face deste


problema posto por Freud, deve-se observar que Debord não
realiza propriamente uma “analogia” ou “transposição” (no
sentido posto pelo próprio Freud) da psicanálise para a crítica
social, mas sim um desvio de sentido, uma recontextualização
da teoria psicanalítica ao se apropriar dela para a análise da
sociedade.16
É como desvio que, situado no nível social, o desejo é
postulado por Debord como consciente, coletivo e prospectivo.
O que está implícito neste desvio (ou inversão) é uma conclusão
simples: se o desejo inconsciente se manifesta às costas da
consciência do indivíduo, ele está mais próximo de uma
necessidade (besoin) do que de um desejo (désir). Portanto, o
desejo de caráter prospectivo só pode ser uma elaboração
consciente das contradições e possibilidades sociais
historicamente determinadas. Nesta inversão operada por
Debord, encontra-se também – e, talvez, principalmente – a
necessidade de se distanciar da romantização do inconsciente,
da concepção de uma autenticidade desiderativa interior, não
mediada por considerações histórico-sociais, concepção esta
mais ou menos generalizada nos meios de vanguarda franceses
de então, fortemente influenciados pelo surrealismo do
entreguerras. Justamente no surrealismo, o horizonte do
inconsciente terminaria por fazê-lo desviar-se deste olhar para
as condições históricas presentes. A essencial indistinção, em
Breton, entre os desejos inconscientes (arcaicos) e os restos
diurnos (recentes) é o que possibilita manter, como no sonho, a
dependência dos últimos com relação aos primeiros. Isto
introduziria no surrealismo, segundo a análise de Debord, um

15. S. Freud, Mal-estar na civilização [1932]. Obras Completas Psicológicas


de Freud, vol. XXI, p. 169, tr. lev. modificada; Das Unbehagen in der
Kultur. Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX, p. 269.
16. No último subcapítulo deste livro discuto sobre o conceito de “desvio”
(détournement) em Debord.
100 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

certo arcaísmo, um certo primitivismo. Este arcaísmo ocorreria


justamente porque, “desde a origem, há no surrealismo um
antagonismo entre as tentativas de afirmação de um novo uso
da vida e uma fuga reacionária para fora do real”. 17 Este
antagonismo no surrealismo, justamente, “se manifestou, em
primeiro lugar, pela superestimação do inconsciente e sua
monótona exploração artística”. 18 Reconhecendo na concepção
do inconsciente pela psicanálise e em sua assunção pelo
surrealismo uma “surpresa”, uma escandalosa “novidade”,
Debord recusa precisamente o gesto surrealista de tomá-lo como
“a lei das surpresas e das novidades futuras”. 19
Com Freud, Debord lembra que o papel do sonho é o de
“permitir continuar dormindo”. 20 Recorrendo freqüentemente ao
fundador da psicanálise, Debord insiste na necessidade de
potencializar a consciência, pela sua relação com a realidade, a
dominar aquilo que lhe escapa e lhe retira o controle sobre
suas atividades presentes. Neste uso da psicanálise, Debord
busca reter a tendência imanente à sua técnica terapêutica de
fortalecimento do Eu consciente. Lembre-se que, para Freud, o
Eu se constitui naquela instância que, por meio da percepção do
mundo exterior, assegura aos processos psíquicos uma relação
com a realidade, organizando as descargas motoras das energias
psíquicas e, assim mesmo, o acesso à atividade, à “motilidade”.
Situado entre a realidade exterior, o Super-Eu e o Isso, o Eu
“esforça-se por sujeitar, dominar” este último. Segundo Freud,

17. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de


leur valeur effective”, em Internationale Situationniste, nº 2, dezembro
de 1958, p. 33. Cf. também “Le bruit et la fureur”, em Internationale
Situationniste, nº 1, junho de 1958, p. 5.
18. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de
leur valeur effective”, loc. cit., p. 33.
19. G. Debord, Rapport, p. 691.
20. G. Debord, “Le souvenir au-dessus de tout”, loc. cit., p. 4. Cf. S. Freud,
Interpretação dos sonhos, pp. 514 e 525 (Die Traumdeutung, pp. 538 e
549); Conferências introdutórias sobre psicanálise [1916/1917]. Obras
Completas Psicológicas de Freud, vol. XV. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro,
Imago, 1976, p. 165 [Conferência IX].
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 101

a psicanálise procuraria precisamente contribuir com esta tarefa,


sendo “uma ferramenta que deve possibilitar ao Eu a progressiva
conquista [tomada, fortschreitende Eroberung] do Isso”. 21 Sem
que este propósito signifique a dissolução da radical diferença –
já afirmada pela Interpretação do sonho e aprofundada pelos
textos da chamada segunda tópica – entre as instâncias
consciente e inconsciente, Freud volta a dizer noutro momento:
“Seu propósito [da psicanálise] é, na verdade, fortalecer
[stärken] o Eu, fazê-lo mais independente do Super-Eu, ampliar
seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira
a poder apropriar-se de novas partes do Isso [neue Stücke des
Es aneigen kann]. Onde estava o Isso, o Eu deve vir-a-ser”. 22
Em A sociedade do espetáculo, D e b o r d retoma
precisamente este paradigmático Wo Es war, soll Ich werden,
desviando-o para a crítica da economia política: “Aí onde estava
o isso econômico, deve vir o eu”. É deste modo que Debord
exercita uma “apropriação” desviada da psicanálise, tomando
suas categorias e sua “técnica terapêutica” quase como
metáforas da crítica teórica de uma sociedade reificada que, a
seus olhos, mantém o domínio do passado sobre o presente – e,
assim, a determinação reflexiva do “arcaico” e do “moderno” –
graças ao não-controle, pelos homens, de suas relações sociais;
relações estas que se conservam “inconscientes”, exatamente
porque se dão sob a autonomia abstrata da forma-valor. Trata-
se, portanto, de uma apropriação diferente da que Breton tenta
da teoria freudiana, da qual Debord busca precisamente manter
o fundamental esforço de liberação consciente da (e para a)
vida presente.

21. S. Freud, O ego e o id [1923]. Obras Completas Psicológicas de Freud,


vol. XIX. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 72, tr. lev.
modificada; Das Ich und das Es. Sigmund Freud Gesammelte Werke, Bd.
XIII. London: Imago Publishing, 1947, pp. 285-286.
22. S. Freud, Novas conferências introdutórias [1932/1933]. Obras Completas
Psicológicas de Freud, vol. XXII. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 102 [Conferência XXXI], tr. lev. modificada; Neue Folge der
Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Sigmund Freud
Gesammelte Werke, Bd. XV. London: Imago Publishing, 1946,p. 86.
102 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

É esta forma de interpretação da psicanálise – desviando-


a para a crítica social, com vistas a um controle consciente dos
homens sobre suas relações sociais genéricas – que está
presente, desde o início, na reflexão de Debord sobre o
surrealismo. Neste, Debord encontra um movimento oposto tanto
às precupações da psicanálise freudiana quanto aos esforços
que julga necessários para a crítica do capitalismo, justamente
pela idealização surrealista do inconsciente e do sonho. Sob um
outro aspecto, Debord considera que a tendência arcaizante da
qual o surrealismo não pôde se libertar de todo, sendo inseparável
de sua crítica da “consciência”, do “racionalismo”, da “lógica”,
explicar-se-ia em grande parte pela necessidade de sustentar
a crítica da experiência histórico-social do capitalismo no
entreguerras, na qual se apresentaria uma “ruptura” entre a
realidade social essencialmente “irracional” e os valores
“lógicos” ainda fortemente proclamados por esta mesma
sociedade. Daí decorreria o recurso surrealista não apenas ao
“irracional” (irrationel , sic ), contra os “valores lógicos de
superfície” (valeurs logiques de surface) desta mesma sociedade,
mas também a contraditória “recusa da alienação na sociedade
de moral cristã [...] [ao lado] do respeito pela alienação
plenamente irracional das sociedades primitivas”. 23 Contudo,
na medida em que, pelo desenvolvimento das próprias relações
sociais fetichistas, no capitalismo plenamente desenvolvido do
segundo pós-guerra, aquela “ruptura” é socialmente superada,
os aspectos “irracionais” que se colocavam criticamente no
surrealismo se tornam agora visivelmente uma característica

23. G. Debord, Rapport, pp. 691-692. A crítica de Debord ao surrealismo não


se dá, portanto, como pensa E. Subiratis (A penúltima visão do paraíso. tr.
br. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 2001), porque o surrealismo
teria rompido em demasia com o passado, mas sim porque não teria
conseguido teoricamente – dada a sua superestimação do inconsciente –
romper bastante com ele, porque não fora capaz de assumir com
radicalidade o presente, suas condições modernas de existência e, assim,
pensá-las como base da crítica social.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 103

da própria sociedade tardocapitalista. O capitalismo moderno


tanto “recapturou” (a rattrapé) as conquistas estéticas formais
do surrealismo, quanto “tudo o que constituiu para o surrealismo
uma margem de liberdade se encontrou recoberto e utilizado
pelo mundo repressivo que os surrealistas combateram”. 24
Estas primeiras considerações de Debord sobre o
surrealismo e o capitalismo moderno podem ser pensadas e
justificadas com relação às transformações da aparência social,
tais como concebidas e apresentadas em A sociedade do
espetáculo. Fundadas no arcaísmo inconsciente da forma-valor
e provocadas pela extensão das trocas mercantis, estas
transformações reconvertem em positividade do sistema,
tornando-o seu, o apelo surrealista ao inconsciente e ao sonho.
Debord se afasta do horizonte surrealista do inconsciente
justamente diante da necessidade da elaboração consciente dos
“desejos”, em razão das características assumidas pela aparência
social do capitalismo mais desenvolvido e das possibilidades
constituídas por este mesmo desenvolvimento. A conseqüência
mais imediata deste afastamento é a concepção dos limites da
potencialidade crítica das categorias da “expressão” e das
“profundezas do espírito”, consideradas essas características
do capitalismo avançado.

2.3 Os limites da expression e da profondeur de l’esprit


Reivindicando o sentido da experiência surrealista, Debord
e os situacionistas se mantêm firmemente críticos da maior parte
da produção cultural moderna que lhes é contemporânea, pois
consideram que “tudo o que quer se situar, tecnicamente, após
o surrealismo, reencontra os problemas de antes”, precisamente
“as aberturas do surrealismo [...] sobre os problemas de uma

24. “Amère victoire du surréalisme”, em Internationale Situationniste nº 1,


junho de 1958, p. 3.
104 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

verdadeira vida a construir”. 25 Recusam, assim, o isolamento


das questões técnico-formais, estético-“artísticos” na
apreciação do surrealismo, apreciação à qual faltaria a estima
por aquele que teria sido, para os surrealistas dos anos 20, o
problema central: a interrogação pelas “razões de viver”.
Denunciam, por conseguinte, a recepção “dos detalhes, isolados
e exagerados” tomados do que consideram ser uma “massa
coerente das contribuições surrealistas”. Referindo-se
particularmente aos grupos de neovanguarda, que se
multiplicavam na Europa naquele período, Debord e os
situacionistas consideram que todos eles “têm em comum ignorar
o sentido e a amplitude do surrealismo”, ao mesmo tempo em
que, porém, argumentam que este “caráter liberador depende
agora da dominação sobre os meios materiais superiores do
mundo moderno”. 26
A reivindicação por Debord do caráter liberador das
questões colocadas pelo surrealismo, em razão das quais
precisamente pode falar de uma sua “atualidade inultrapassável”,
é fundamental à própria exigência de que este mesmo sentido
liberador e atual deva mediar-se por uma consideração dos
meios materiais da sociedade que são, necessariamente, as
condições modernas do “imaginário”. Para ele, a questão não é
a da simples contraposição do problema social das razões de
viver, da vraie vie a construir, ao uso policial e disciplinar do
desenvolvimento técnico da sociedade moderna, sob o risco
seja de uma posição acrítica frente ao capitalismo desenvolvido
(como correria no funcionalismo), seja de uma concepção
primitivista, arcaizante (que ele encontra no surrealismo do
segundo pós-guerra, embora já presente em gérmen na fase
experimental do entreguerras). Não é o caso de aceitação ou de
recusa da técnica simplesmente, mas da crítica das relações de
produção que lhe dão forma histórica, ou seja, do uso social dos
meios materiais desenvolvidos na sociedade contemporânea.

25. Idem, ibidem.


26. “Le bruit et la fureur”, em Internationale Situationniste, nº 1, p. 5.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 105

As questões postas pelos surrealistas somente encontram


sua formulação apropriada, nas condições do capitalismo
moderno, nesta colocação do problema do uso social das forças
produtivas desenvolvidas socialmente. Isto quer dizer que aquela
questão histórica, profundamente “atual” posta pelos surrealistas
não pode ter qualquer uso, tampouco qualquer “atualidade”, a
não ser com base nessas mesmas condições sociais de existência
que, longe de se constituírem num impeditivo para a realização
dos conteúdos sociais críticos elaborados pelo surrealismo, se
oferecem precisamente como sua condição de possibilidade
histórica. Tratar-se-ia, em outras palavras, de “liberar a
tendência ao jogo” (libérer la tendence au jeu ), tendência
presente nas próprias condições técnico-materiais do capitalismo
desenvolvido, em contraposição ao seu uso para o controle e o
condicionamento social. “Nesta perspectiva histórica”, diz
Debord, “o jogo – a experimentação permanente de novidades
lúdicas – não aparece de modo algum fora da ética, da questão
do sentido da vida”. 27
Mais do que um problema teórico restrito à natureza da
crítica revolucionária da técnica, o que emerge nessas
considerações de Debord acerca do surrealismo é precisamente
o que diz respeito à concepção surrealista da profondeur de
l’esprit, como fundamento no qual a crítica do mundo reificado
é mobilizada, e, por extensão, à sua concepção do uso crítico da
linguagem como expression. A articulação entre essas duas
temáticas – a dos meios materiais da época e a da crítica da
profundeza do espírito e da expressão, como pensadas por
Breton – não aparece diretamente nos textos situacionistas, mas
é possível, sem qualquer extorsão teórica, constituí-la com base
em diversos artigos publicados na Internationale Situationniste.
Refiro-me, antes de tudo, à distância crítica de Debord da
“pretensa profundeza subjetiva”, à qual ele contrapõe a

27. “Contribuition à une définition situationniste du jeu”, em Internationale


Situationniste, nº 1, p. 10.
106 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

“expressão suficiente”, “concreta”, constituída pela assunção


prática da “exterioridade”. O que aí se manifesta é uma
desconfiança da representação tradicional da individualidade,
justo num momento histórico em que esta categoria – na chamada
“sociedade de massas” – se encontra profundamente questionada
pelos rumos assumidos pelo desenvolvimento capitalista. As
contraposições, a estas tendências inerentes à sociabilidade
tardoburguesa, da “estrutura da individualidade”, do “espírito”,
de sua “profundeza”, tanto quanto da representação humanista
do “indivíduo inviolável e inalterável” têm como núcleo comum
– embora essas categorias não sejam, seguramente, sinônimas
– a persistência ainda de uma concepção burguesa (ou, como
Debord escreve numa certa ocasião, “pequeno-burguesa”) de
homem e de indivíduo, concepção que, enquanto tentativa de
crítica social, se lhe apresenta como completamente impotente
diante da nova realidade do capitalismo.
Ao constatar que, no uso das novas técnicas para o
“condicionamento social”, se encontra ameaçada toda a
“concepção humanista, artística, jurídica da personalidade
inviolável, inalterável”, Debord conclui em tom quase
provocativo: “Nós a vemos desaparecer sem pesar”. 28 Esta é a
mesma posição que se apresenta diante da oposição estética –
afirmada por Lucien Goldmann – entre o classicismo e o
romantismo, oposição que parece a Debord completamente
anacrônica e em cuja aceitação se denuncia precisamente uma
concepção ilusória, até mesmo conservadora, de “mistificação
do humanismo”. 29 Não é certamente a esta concepção humanista
que se afilia o surrealismo. Contudo, ao constituir uma concepção
centrada na interioridade subjetiva, na oposição entre a
interioridade e a exterioridade, uma concepção lírica fundada

28. “La lutte pour le contrôle des nouvelles techniques de conditionnement”,


em Internationale Situationniste, nº 1, p. 8.
29. “L’avant-garde de la présence”, em Internationale Situationniste, nº 8,
janeiro de 1963, pp. 14-22.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 107

nas profundezas do espírito, às quais identifica o inconsciente,


Breton não deixa de reintroduzir ou mesmo manter uma
representação não-histórica, não-social do homem, mesmo como
recurso crítico de distanciamento de uma realidade histórico-
social que buscou compreender e criticar sob os termos de
“lógica” e de “racionalismo”. Numa posição teórica mais geral,
Debord se mantém extremamente crítico do horizonte da
interioridade, afirmando – numa polêmica contra a escrita de
Michel Leiris – que “o que nos importa não é a estrutura individual
de nosso espírito, nem a explicação de sua formação”. 30 “A
realização real d o indivíduo”, diz ele ainda, “ p a s s a
necessariamente pela dominação coletiva do mundo; antes dela,
não há indivíduos, mas sombras girando em torno das coisas
que lhes são anarquicamente dadas por outros”. 31 Numa outra
passagem, Debord se opõe duramente à concepção por Henri
Lefèbvre do “romantismo revolucionário”, fundado também “no
desacordo especificamente moderno entre o indivíduo
progressista e o mundo”. Uma atividade revolucionária na cultura
e na sociedade não se poderia basear, segundo diz Debord, na
“simples expressão do desacordo”. 32 Ainda aqui, manifesta-se
a mesma recusa do critério da “interioridade” ou de uma
“individualidade” que lhe parece abstrata.
No que diz respeito à reivindicação da interioridade
subjetiva por Breton, a questão é seguramente mais complexa
e, para que não se constitua uma contraposição simples entre a
sua posição e a de Debord, exige mais mediações. V. Kaufmann
considera que o surrealismo, em Breton, “escolheu sempre a
rua contra as cenas de interior e o romance”: “A verdadeira
vida”, diz ele, “aquela que exige que se esteja sem fôlego, aquela
que não conhece nem repouso nem quartos de dormir, é

30. “Problèmes préliminaires à la construction d’une situation”, loc. cit., p.


11.
31. Idem, p. 12.
32. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationale
Situationniste, nº 1, p. 21.
108 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

fundamentalmente ligada ao exterior”. 33 Em sua análise, seria


propriamente a posição de Aragon, em O camponês de Paris, a
que manifestaria uma concepção presa aos ambientes fechados,
conservadores do antigo e que se protegem das mudanças da
cidade moderna: “A gente está aqui muito longe da aposta de
Breton na vida, no exterior, na transparência, no encontro e na
comunicação. [...] Aragon é um flâneur solitário, que investe as
passagens como para resistir ao exterior, ao encontro, e porque
as passagens são elas mesmas as últimas ilhotas de resistência
à configuração haussmaniana da cidade”. 34
Sem dúvida, Nadja é um escrito cujos personagens e ações
se situam estritamente na rua, em cuja apresentação por Breton
é central – até mesmo como recurso crítico da experiência e da
moral do trabalho e da indiferença pelo sentido da vida – a
figuração da multidão. No Nadja, há certamente uma maior
presença da “perda”, mesmo quando se trata da crítica da
desindividuação, do que na flânerie de Aragon na Passagem da
Ópera e , à noite (!), no Parque Buttes-Chaumont
(sintomaticamente, alcunhado de “inconsciente da cidade”). Em
Aragon, a conversão poético-imagética dos personagens e
ambientes da Passagem em figuras “mitológicas”, não apenas
“conduz as coisas de novo para longe” (Benjamin), mas traduz
também uma maior resistência – ou, pelo menos, providencia
uma mais rápida superação – do “estranhamento” que ele próprio
reivindica. É Aragon mesmo quem opõe a Passagem à rua, ao
se referir ao “limite das duas luzes que opõem a realidade
exterior ao subjetivismo da Passagem”, também nomeada por
ele, respectivamente, de “grande região da desordem” e “galeria
iluminada por meus instintos”. Na rua, Aragon diz ver apenas

33. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires. Paris: PUF/Écriture, 1997,


pp. 177-178.
34. Idem, pp. 178-179. Também M. Löwy, tendo em vista as críticas de
Benjamin ao surrealismo, propõe uma distinção semelhante entre Aragon
e Breton (M. Löwy, “Walter Benjamin et le surréalisme”, em Europe, nº
804, abril de 1996, p. 88).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 109

“pessimismo” e, por isto mesmo, decide: “Volto-me sobre meus


passos: a luz [da rua] novamente se decompõe através do prisma
da imaginação, resigno-me com esse universo colorido pelas
cores do arco-íris. O que você ia fazer, meu amigo, nos confins
da realidade?”. 35
Contudo, ainda que, no Nadja, figurem de modo muito
mais central a rua e a multidão, Breton elabora – nos textos
programáticos do movimento – uma concepção de interioridade
subjetiva e de expressão que termina por se encontrar, embora
não se identificando completamente, com a de Aragon. Em
Breton, encontramos certamente uma elaboração mais ampla
que, de modo assistemático (contudo, coerente), percorre e
consubstancia o conjunto de suas reflexões sobre as condições
da “lírica moderna”, a denúncia dos “imperativos práticos” e
“utilitários” do “reino da lógica” e do “racionalismo absoluto”,
a renúncia à “arte” e à “literatura”, a reivindicação de uma
linguagem expressiva como recusa da comunicação reificada.
Esta é uma concepção que contém ambigüidades, dentre as quais
seguramente está a renúncia ao indivíduo unitário burguês no
mesmo passo em que, em contraposição ao mundo burguês como
um todo, reivindica as potencialidades das “profundezas do
espírito”, da interioridade subjetiva.
Neste gesto, Breton busca precisamente aprofundar ao
extremo, na forma de uma concepção de mundo e com base na
crítica do sujeito unitário, a tendência da escrita moderna – com
Proust, Joyce, Kafka – de “desrealização” ético-significativa da
realidade “exterior”, para assim mais radicalmente opor ao
mundo reificado o conteúdo socialmente crítico da moderna
poesia francesa desenvolvido desde Baudelaire. Portanto, se é
verdade que, como defende Kaufmann, há em Breton uma
tendência ao encontro e à comunicação, tendência figurada
principalmente no Nadja, mas também presente nos jogos

35. L. Aragon, O camponês de Paris [1926]. Tr. br. Flávia Nascimento, Posfácio
de J.-M. Gagnebin. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 75-77.
110 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

coletivos de escrita automática, nas enquêtes no interior do


grupo surrealista, nos hasards objectifs nas ruas, esta tendência
se encontra, contudo, ao lado ou até mesmo em oposição à
centralidade da interioridade subjetiva por ele reivindicada e
da concepção da expressão não-comunicativa por ele elaborada.
Esta talvez seja uma ambigüidade que o surrealismo jamais
conseguiu superar, ambigüidade que é inseparável da que Debord
identifica: a que comporta uma exigência de um “novo uso da
vida” e, ao mesmo tempo, uma reivindicação do “sonho” e do
“inconsciente”. Essas ambigüidades são indissociáveis entre si
justamente porque o “sonho” e o “inconsciente” se apresentam
sempre, na reflexão de Breton, como a natureza própria da
interioridade subjetiva, da “profundeza do espírito”, do “sonhador
definitivo”, ora em contraposição à “realidade exterior” em Les
pas perdus e nos dois manifestos, ora como fundamento de sua
transformação em Les vases communicants.
Em Debord, o que é central à crítica da concepção fundada
na “interioridade” e na “individualidade” é que esta se mantém
abstrata, pois se incapacita a considerar a “exterioridade” (isto
é, as condições reais de existência) e a necessidade de ir além
do “desacordo” entre a interioridade e o “mundo exterior”;
portanto, a considerar com radicalidade a necessidade de sua
apropriação e transformação práticas. O que esta crítica tem
em comum com a que ele dirige ao “humanismo” ético e literário
é a consideração que, em ambas posições, a crítica da sociedade
burguesa não leva em conta as condições de existência do
presente; nem teriam por que levar, já que se baseiam, sob um
olhar teórico, em critérios não-históricos. É nesta precisa medida
que sua crítica do surrealismo – com base numa reflexão sobre
a relação entre os meios materiais da existência moderna e o
próprio programa surrealista da construção da vraie vie – tem a
ver com a crítica da reivindicação surrealista das profundezas
do espírito e da expressão não-comunicativa. Deste modo,
Kaufmann tem inteira razão ao afirmar, mas somente quanto
aos situacionistas, que, com estes, “todas as portas estão, com
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 111

efeito, resolutamente abertas, tudo se passa fora, não há lugar


de modo algum nem para o interior nem para a interioridade:
doravante a subjetividade vive ou se expressa fora, ela é coletiva
ou não será, ela é desatada de toda representação individual e,
por conseguinte, também de toda prática literária”. 36
Da crítica debordiana ao horizonte da interioridade e da
profundeza do espírito, não se deve concluir, no entanto, a
representação positiva do “homem-massa” que caracterizou o
construtivismo russo e o futurismo italiano, no início do século.
Certamente, Debord assume algumas das exigências desses
movimentos no que diz respeito ao abandono da concepção
humanista clássica e da representação liberal da individualidade.
Mas alguma coisa a mais e diferente se passa aqui. Antes de
tudo, expressa-se uma concepção crítica do próprio capitalismo
contemporâneo, no qual a forma da individualidade se lhe
apresenta completamente esvaziada de realidade. Tornada
inteiramente social pelas próprias características da sociedade
moderna, a individualidade se tornou também, nas condições
dominantes da reificação, “diretamente dependente da potência
social, modelada por ela”, a tal ponto que “somente nisso que
ela não é, é-lhe permitido aparecer” (SdS, § 17). Como contraface
deste mesmo processo de abstração de toda individualidade
real, sob a “mercadoria total” de que se constitui o espetáculo,
encontra-se somente “o indivíduo fragmentário, absolutamente
separado das forças produtivas que operam como um conjunto”
(SdS, § 44). Finalmente, subsumida à reificação presente, sob a
qual se mantém diretamente dependente de uma imediatidade
social, ao mesmo tempo em que, por isto mesmo, se encontra
nela fragmentada, isolada, “a vida individual não tem ainda
história” (SdS, § 157).
É nestas condições – diante das quais a individualidade
permanece uma tarefa a ser ainda historicamente realizada –
que os diversos recursos à individualidade, à interioridade

36. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires, p. 182.


112 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

subjetiva, ao humanismo, como fundamentos da crítica social,


aparecem a Debord completamente destituídos de senso prático,
pois, em sua unilateralidade, desprezam conceitualmente ou se
relacionam acriticamente com a realidade social e histórica
dos seus próprios pontos de partida. Por isto mesmo, na
reivindicação da categoria do “social”, do “coletivo”, Debord
não assume positivamente a categoria da “massa” ou da
“multidão”, na qual vê apenas a contraface constitutiva dos
indivíduos isolados, solitários (SdS, § 221). Para ele, a verdadeira
reivindicação da individualidade apenas pode ser a busca por
uma apropriação histórica das condições sociais de existência,
que é, ao mesmo tempo, a apropriação das condições da
existência histórica da individualidade. Este é o motivo pelo
qual, na passagem acima citada, ele expressa um desinteresse
pela “estrutura e formação individual do espírito”, afirmando
categoricamente que, sob a reificação, “não há ainda indivíduos”.
Estes somente seriam possíveis – numa escala social, vale a
pena observar – com base numa “dominação coletiva do mundo”.
É neste radical afastamento das representações da
“interioridade”, da “individualidade”, do “humanismo” e,
inseparavelmente, da “massa” e da “multidão solitária” que
Debord considera que a assunção da questão surrealista da vraie
vie passa necessariamente pela consideração histórica das
presentes condições materiais da sociedade. Precisamente no
debate que ele trava com Benjamin Péret, no segundo número
da revista Internationale Situationniste, aparecem como
indissociáveis as questões relativas aos meios tecnomateriais
modernos, à consciência histórica da consideração do presente
e à validade atual da “expressão artística”. Respondendo à
acusação de Péret, segundo a qual os situacionistas quereriam
colocar a poesia e a arte sob a “tutela da ciência” – termos que
retomam de muito perto aqueles que Breton usou contra
Apollinaire e os futuristas –, Debord argumenta que é
precisamente este modo de entendimento das questões
apresentadas pela I.S. acerca dos novos meios técnicos da
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 113

sociedade moderna que demonstra, em Péret e nos surrealistas,


“a incapacidade de compreender os problemas atuais”. Segundo
afirma, não se trata de que a ciência e a técnica sejam capazes
– como interpreta Péret em seu artigo – de provocar “um novo
modo de sentir” ou de engendrar uma “poesia original”, até
mesmo porque o problema não diz respeito a um “‘sentir’
passivamente” ou a um “renovar a expressão nela mesma”.
Bem distintamente, uma questão mais fundamental está posta,
precisamente a da contradição estabelecida, no capitalismo
moderno, entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
superestruturas culturais da sociedade.
Antecipando uma compreensão teórica acerca do
desenvolvimento e da crise da arte autônoma, que aparecerá
em A sociedade do espetáculo, Debord afirma – quanto a essa
contradição – que a religião e, sucedendo-a, o “espetáculo
artístico” teriam sido “derivativos” paliativos de determinados
desejos sociais cuja realização ressentia anteriormente de meios
materiais socialmente disponíveis. O que caracterizaria o
capitalismo moderno seria precisamente o desenvolvimento de
forças produtivas que, estando na base da crise da religião e
até mesmo da arte moderna, possibilitariam tanto a produção
quanto a realização de novos desejos, de modo que “o movimento
de desaparição, facilmente constatável, desses derivativos, vai
junto com o desenvolvimento material do mundo, que é preciso
compreender no sentido o mais amplo”. 37 Segundo Debord, a
não consideração dessa nova situação histórica da experiência
artística, das suas condições materiais socialmente estabelecidas
e das possibilidades e dos limites aí determinados testemunha,
como modo mesmo daquela “incapacidade de compreender os
problemas atuais”, em Péret e nos surrealistas, uma concepção
prisioneira das “riquezas factícias da memória” e da
“conservação das emoções nas expressões artísticas”. No

37. “Le souvenir au-dessous de tout”, em Internationale Situationniste, nº 2,


dezembro de 1958, p. 3.
114 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

surrealismo do segundo pós-guerra, Debord chega mesmo a


identificar “impotência burguesa” e “nostalgias artísticas”,
inseparáveis justamente da “recusa de encarar o uso libertador
dos meios técnicos superiores de nosso tempo”. 38
Nestas considerações, Debord se posiciona não apenas
com relação à recusa por Breton – em sua reflexão sobre a
lírica moderna – d a s técnicas extra-artísticas, mas
principalmente com relação à própria concepção que a sustenta.
Esta concepção, comprometida com uma determinada visão lírica
do mundo, não capacita a segunda geração surrealista a
compreender historico-socialmente as novas condições de
existência e, nelas, os limites e as possibilidades da própria
expressão artística. Segundo entende, as forças produtivas no
capitalismo avançado do segundo pós-guerra, pelo seu impacto
sobre o modo de vida social, provocam tanto novas condições
da experiência social artística quanto uma necessária recolocação
da questão surrealista da vraie vie, inseparável, no próprio
surrealismo, do programa de “ultrapassagem da arte”. Mas a
reflexão sobre esta nova situação somente é possível, segundo
julga Debord, sob a condição da superação da concepção lírica
do mundo e, em conseqüência, das “profundezas do espírito” e
da “expressão”, tais como presentes em Breton. Mais do que
uma questão relativa à posição poético-lírica de Breton que,
em nome da interioridade subjetiva e da expressão desse mundo
interior em face de um mundo social esvaziado de sentido, recusa
a exterioridade vazia dos aspectos puramente técnico-formais
da poesia, Debord insiste na necessidade de uma reflexão sobre
as próprias condições contemporâneas da vida social, como único
fundamento de uma retomada do programa surrealista da vraie
vie a construir.

38. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de


leur valeur efective”, em Internationale Situationniste, nº 2, p. 33.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 115

Neste aspecto, a superação do surrealismo se identifica


com a que Debord propõe da arte moderna como um todo, num
mesmo movimento de reivindicação do significado crítico de
sua experiência de “destruição da linguagem”. Ora, “a destruição
da linguagem, desde um século de poesia”, segundo diz Debord,
“se fez seguindo a tendência romântica, reificada, pequeno-
burguesa da profundeza [...] postulando que o pensamento
inexprimível valia mais que a palavra”. 39 O horizonte surrealista
da profondeur é o da poesia moderna como um todo. Por isso
mesmo, os elementos críticos da poesia e da arte modernas, os
quais o surrealismo radicaliza, são reconhecidos e mobilizados
por Debord para uma reflexão de crítica social que, abandonando
o horizonte da profundeza e da expressão, busca articular um
sentido prospectivo para estas experiências artísticas. Partindo
da própria perspectiva dadaísta e surrealista de ultrapassagem
da arte, cujo conteúdo ético-existencial é a vraie vie, Debord
encontra no que chama de “arte moderna” – sempre valorizada
positivamente e situada historicamente em seus textos desde
Baudelaire às vanguardas do entreguerras – este mesmo
conteúdo crítico da reificação e, nisto mesmo, o recurso à
interioridade e às “profundezas do espírito”. Em outras palavras,
a superação que ele busca do surrealismo é também a superação
do horizonte de toda arte moderna, num mesmo gesto de
reivindicação de sua natureza crítica, presente tanto na
“destruição da linguagem” quanto em seus temas; e o faz com
base no horizonte específico das vanguardas históricas, no qual
aquele conteúdo socialmente crítico e o programa de superação
da arte se identificam.
Ao indicar criticamente a tendência que qualifica de
romântica, pequeno-burguesa da profondeur na destruição da
linguagem realizada pela arte moderna, Debord considera
justamente que “o aspecto progressivo dessa destruição, na

39. “Le sens du dépérissement de l’art”, em Internationalle Situationniste, nº


3, dezembro de 1959, p. 5.
116 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

poesia, na escrita romanesca ou em todas as artes plásticas, é


ser, ao mesmo tempo, o testemunho de toda uma época sobre a
insuficiência da expressão artística, pseudocomunicação. É ter
s i d o a destruição prática d o s instrumentos d e s s a
pseudocomunicação, pondo a questão da invenção de
instrumentos superiores”. 40 Rigorosamente o mesmo ocorreria
com a “desrealização” promovida pelo surrealismo, cujo
fundamento – o recurso ao “inconsciente” – é criticado por
Debord. Este identifica esta “desrealização” como comum, em
graus e estilos distintos, a diversas outras experiências da escrita
(Baudelaire, Kafka, Joyce, Proust) e a considera algo fundamental
à própria natureza crítica da poesia e da arte modernas. A
exemplo de outras diversas passagens do mesmo sentido, Debord
– combatendo a opinião de Georges Pérec, segundo o qual a
“crise da linguagem”, assumida positivamente pela arte moderna,
é uma “recusa do real” – escreve: “Essa ‘recusa do real’, que
[Pérec] vê banalmente sob a forma de um artista que recusa a
realidade, é, num sentido completamente outro, a recusa do
artista pelo real; a radiografia de uma recusa do artista que ‘o
real’ fabricado socialmente opõe às tendências da vida real”. 41
Nos anos 30, Georges Bataille já notara, no recurso crítico
de Breton à surréalité, uma posição “idealista”, até mesmo
“romântica”, de “negação da vida” e do “mundo”. Segundo sua
análise, haveria no surrealismo uma “resolução de aceder a
uma região perfeitamente estrangeira a esse mundo de pequenas
caretas”, da qual resultaria – e nota-se aqui a influência da
crítica nietzscheana do “niilismo” ao qual conduzem os “ideais
ascéticos” – um “pessimismo mais ou menos sem reserva”. 42
Este auto-exílio do mundo, esta “ascese” a um “mundo superior”
demonstrar-se-ia precisamente naquilo que é reivindicado pelos

40. Idem, ibidem.


41. “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 59.
42. G. Bataille, Œuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1970, p. 324 (trata-
se de uma resenha, publicada em La critique sociale, nº 7, janeiro de
1933, de livros de Breton, Tristan Tzara e Paul Éluard).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 117

surrealistas como medium de mudança da vida: os “modos de


expressão”. Centrada na “poesia”, a tentativa de transformação
da vida esvaziar-se-ia “de uma parte da significação humana
na medida em que ela se desembaraçava de certos elementos
que têm ligação imediata com os elementos essenciais da vida”. 43
Este “método” surrealista conduziria a um “impasse” e a uma
“ruptura com a vida”, tendência que já estaria presente na poesia
francesa desde Mallarmé. Como costumaria ocorrer sempre aos
intelectuais burgueses que aderem à revolução, os surrealistas
se desviam, desta maneira, das “formas inferiores” próprias às
condições materiais de existência e luta do proletariado,
dirigindo-se para uma “ordem moral” superior, buscando criar
“valores próprios” em oposição aos “valores estabelecidos”. O
que resulta deste deslocamento é a imposição de uma “autoridade
superior”, instância que lhes aparece sempre “estar situada
acima de todas as lastimáveis contingências de sua existência
humana, por exemplo, espírito, surreal, absoluto, etc.”. 44 Estas
categorias expressam, segundo Bataille, justamente uma
“predileção pelos valores superiores ao ‘mundo dos fatos’”.
A crítica de Debord ao surrealismo e, por extensão, à
toda arte moderna se encontra com a de Bataille precisamente
nesta recusa da abstração – em nome do “ideal” – das condições

43. Idem, ibidem. Para Bataille, é próprio à poesia o acesso a um mundo


“inteiramente heterogêneo”, contudo ela esteve sempre “à mercê dos
grandes sistemas históricos de apropriação”, seu desenvolvimento
autônomo conduzindo-a a uma “concepção poética total do mundo”, a
uma “homogeneidade estética”. A “irrealidade prática” dos elementos
heterogêneos que ela mobiliza são fundamentais para a “duração da
heterogeneidade”, mas quando tais elementos são afirmados como uma
“realidade superior” em oposição à “realidade inferior vulgar” – como
justamente ocorreria no surrealismo – resulta sempre numa ruptura com
a realidade; uma ruptura da mesma natureza daquelas que há nas religiões
civilizadas, no idealismo e, segundo sua leitura da psicanálise, também
nas neuroses. Ela se torna, portanto, “homogeneizadora”; e este seria
precisamente o caso do surrealismo. G. Bataille, “La valeurs d’usage de
D. A. F. Sade”, Œuvres complètes, t. II, p. 64.
44. G. Bataille, La “vieille taupe” et le préfixe sur dans les mots surhomme et
surréaliste. Œuvres complètes, t. II, p. 94, itálicos no original.
118 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

“exteriores”, materiais, de existência. Mas o faz menos por


uma reflexão “psicológica”, talvez mesmo “antropólogica” das
condições da existência humana, como ocorre em Bataille, e
mais por uma reflexão imediatamente histórico-social do
capitalismo avançado do segundo pós-guerra.45 A crítica de
Debord ao horizonte expressivo , fundado na profundeza,
horizonte que ele identifica em toda a arte moderna, até mesmo
porque esta crítica se situa noutro momento histórico que a
elaborada por Bataille, é menos polêmica com relação à “negação
da vida” que, em termos nietzscheanos, este último encontra na
“desrealização” do real. Porque se depara com uma experiência
artística que, tanto em termos formais quanto temáticos,
considera abaixo daquela produzida pela arte moderna do
entreguerras, Debord busca valorizar o conteúdo crítico da
desrealização e da reivindicação da profundeza presente em
sua destruição da linguagem tradicional, mobilizando-o contra
o modo de vida dominante no capitalismo espetacular e, ipso
facto, contra a experiência estético-cultural que lhe é
constitutiva.
Em outras palavras, Debord pensa historicamente essas
experiências artísticas modernas num procedimento que mobiliza
um duplo sentido do “histórico”: tanto considera o significado
delas diante de seu tempo e dos problemas ético-existenciais,
estéticos e sociais com que se defrontaram quanto pergunta
pelo seu significado diante de uma outra época histórica, a do
capitalismo desenvolvido d o s e g u n d o p ó s - g u e r r a . É

45. O próprio Bataille nomeia sua reflexão de “psicológica”, num sentido muito
próximo do de Nietzsche, mediando-a com a psicanálise e os estudos de
antropologia social. Deste modo, o projeto de Bataille parece assumir a
ampla perspectiva de uma genealogia (no sentido nietzscheano) dos
processos de idealização e de uma interpretação (no sentido psicanalítico)
dos processos de simbolização social, tendo como ponto de fuga uma
crítica materialista do idealismo, na qual o materialismo é concebido
“fundado imediatamente nos fatos psicológicos ou sociais [...] a
interpretação direta, excluindo todo idealismo, dos fenômenos brutos”
(G. Bataille, “Matérialisme” (Documents, nº 3, junho, 1929), Oeuvres
complètes, t. I, p. 180).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 119

precisamente assim que a “desrealização” do real pela arte


moderna significa, para ele, a denúncia artístico-poética da
recusa, pela sociedade capitalista, das “tendências da vida real”,
ou melhor, das tendências para a “vida real” (termo que, em
Debord, é sinônimo de vraie vie, por oposição à “negação” ou
“falsificação” da vida no capitalismo desenvolvido). São estas
tendências que a arte moderna expressou por meio de seu
afastamento desse falso real , d e s s e “‘real’ socialmente
fabricado”, recorrendo, para tanto, à profundeza do espírito e à
expressão refratária à pseudocomunicação. Ora, é no interior
dessas tendências históricas, socialmente críticas, da arte
moderna – elas mesmas compreendidas criticamente por Debord,
pois limitadas em face da experiência social do capitalismo
desenvolvido – que o surrealismo passa a se situar em sua
análise. Sua reflexão sobre o surrealismo se desenvolve
progressivamente numa análise histórica da totalidade das
experiências da arte moderna no entreguerras, consideradas
como experiências socialmente críticas fundadas nas categorias
da profundeza e da expressão. Mas é esta mesma análise que,
fundada numa crítica teórica do capitalismo tardio, se mobiliza
numa outra perspectiva acerca da linguagem, precisamente a
perspectiva da linguagem comunicativa. “É preciso conduzir à
sua destruição extrema todas as formas de pseudocomunicação”,
diz Debord em 1958, buscando já aí articular uma perspectiva
para a retomada da atividade cultural de vanguarda, “para um
dia alcançar uma comunicação real direta”. 46 O verdadeiro ponto

46. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationalle


Situationniste nº 1, p. 21. Essa inflexão debordiana, central à totalidade
de sua concepção estética e social, é pouco observada pela maioria de
seus comentadores, que privilegiam sempre, de modo unilateral, sua crítica
da “irracionalidade” do surrealismo e da sociedade espetacular, sem se
aterem a este movimento, em sua concepção social e estética da linguagem,
para um horizonte comunicativo. Além dos autores já citados (Jappe, Löwy
e Subiratis), também este é o caso de Gianfranco Marelli (L’amère victoire
du situationnisme, ed. cit.; La dernière Internationale, Les situationnistes.
Tr. fr. David Bosc. Paris: Sulliver, 2000) e Mirella Bandini (L’esthétique,
le politique: de Cobra à l’Internationale Situationniste, ed. cit.).
120 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

de fuga da crítica debordiana do surrealismo – crítica que se


alimenta da própria radicalização extra-estética, por Breton,
dos conteúdos socialmente críticos da experiência poética
francesa moderna – se constitui precisamente nesta inflexão
comunicativa. E se baseia numa teoria da emergência e da crise
da arte moderna, inseparável da experiência histórico-social
da linguagem. É o que discutem os próximos capítulos.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 121

Capítulo III

Expressão estética e comunicação prática

Vagamos num vasto meio, sempre incertos e


flutuantes, impulsionados de um extremo a
outro. Algum termo em que pensamos nos
apegar e nos manter firmes oscila e nos deixa;
e se o seguimos, escapa a nossas garras, nos
escapole e foge numa fuga eterna. Nada se
detém para nós. É o estado que nos é natural
e, todavia, o mais contrário à nossa inclinação;
queimamos de desejo de encontrar um assento
firme, e uma última base constante para aí
edificar uma torre que se eleva ao infinito;
mas todo nosso alicerce se quebra, e a terra
se abre até os abismos.
Pascal, Pensamentos

Em A sociedade do espetáculo , D e b o r d c o n c e b e a
experiência histórica da cultura moderna estruturada pela divisão
e pelo antagonismo entre inovação e tradição, divisão e
antagonismo que constituiriam o próprio “princípio de
desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas”
(SdS, § 181). No capitalismo tardio, esta divisão e este
antagonismo se encontram repostos na oposição entre o projeto
de ultrapassagem da cultura separada na “história total” e sua
manutenção como “objeto morto”; ou ainda, entre “a
autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade
e sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a
122 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

representação ilusória do não vivido” (SdS, § 185). Em outras


palavras, as tendências crítico-destrutivas desenvolvidas em
toda a experiência da arte moderna, esta mesma situada na
esfera à parte em que se constitui a cultura separada, se deparam
criticamente com a recomposição no capitalismo espetacular
daquilo mesmo de cuja destruição a arte moderna se produziu
historicamente. Trata-se, naturalmente, de uma recomposição
artificial, pois posta precisamente como reintrodução formal e
aparente do arcaico e tradicional nas condições do capitalismo
contemporâneo. Contudo, as tendências objetivas imanentes da
arte moderna, segundo a reivindicação que delas faz Debord, se
posicionam criticamente diante dessa recomposição com base
em sua própria experiência de “autodestruição crítica da antiga
linguagem comum”, inseparável do próprio “destrutivo” das
condições modernas de existência. Ora, o espetáculo consiste
também numa linguagem comum, a “linguagem comum da
separação” mercantil e, portanto, da não-comunicação. Sob o
domínio da instância abstrata do valor econômico, diz Debord,
“o que religa os espectadores é apenas uma relação irreversível
com o próprio centro que mantém seu isolamento. O espetáculo
reúne o separado, mas o reúne enquanto separado” (SdS, § 29).
É por isso que a manutenção da cultura separada – inerente à
manutenção das presentes condições sociais, o que, numa
palavra, significa a conservação do caráter semi-histórico da
sociedade histórica dividida em classes (na qual a história total
é ainda aprisionada no arcaísmo da economia mercantil) – é, ela
mesma, a recomposição artificial da antiga linguagem comum
destruída criticamente na experiência da arte moderna,
destruição crítica, precisamente, que Debord, em sua teoria
crítica do espetáculo, opõe à atual experiência social.
Ao opor a experiência crítico-destrutiva da arte moderna
à recomposição espetacular da linguagem comum, Debord busca
articular para a primeira um sentido histórico possível, no qual
a dupla recusa da linguagem comum da tradição e da linguagem
comum do espetáculo possa fundar a perspectiva de uma outra
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 123

linguagem comunicativa. Estas considerações sobre a


experiência da arte moderna – com base no próprio processo
histórico de luta entre a tradição e a inovação, entre a antiga
linguagem comum e sua autodestruição crítica na e pela arte
moderna, luta reposta presentemente entre a recomposição
artificial da antiga linguagem comum e a tendência histórica de
superação da cultura separada – constituem o próprio núcleo da
reflexão, inseparavelmente estética e social, de Debord. Nesta,
apresentam-se de modo inseparável uma teoria da arte moderna
(e de sua ultrapassagem) e uma teoria crítica da experiência
social tardocapitalista. Para uma discussão apropriada desta
reflexão dupla, é necessário ter como ponto de partida uma
maior explicitação dessa “autodestruição crítica da antiga
linguagem comum”.

3.1 O conceito de langage commun


Em sua exposição extremamente concisa deste processo
histórico, Debord recorre à noção de “comunidade da sociedade
do mito”, cuja destruição significaria que a sociedade “deve
perder todas as referências de uma linguagem realmente comum”
(SdS, § 186). À primeira vista, Debord parece opor-se a esta
“perda”, sendo esta oposição o que fundamentaria tanto sua
crítica da natureza anticomunicativa da sociedade capitalista
contemporânea quanto sua perspectiva de “reencontro” de uma
linguagem comum. No entanto, algo de outro acontece. Nesta
exposição, Debord considera na verdade dois horizontes: um,
retrospectivo, a “comunidade inativa”, a “sociedade do mito”, a
“antiga linguagem comum”; outro, prospectivo , “ a r e a l
comunidade histórica”. Entre um e outro, como parte mesmo do
processo histórico de dissolução/destruição do mundo pré-
moderno tradicional, realizada pela moderna “sociedade
parcialmente histórica”, ele situa de modo altamente positivo a
“autodestruição crítica da antiga linguagem comum”, na e pela
arte moderna.
124 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Não se trata, pois, de uma decorrência direta entre o fim


daquela suposta linguagem comum e a atual experiência
anticomunicativa no capitalismo desenvolvido, como sugere a
passagem acima citada. A natureza anticomunicativa do
capitalismo espetacular se determina, bem distintamente, pelas
próprias características da presente experiência social
constituída pelo domínio extensivo das relações fetichistas do
valor e as alterações na aparência social que daí decorrem.
Contudo, ao opor diretamente – num determinado momento de
sua exposição – aquela suposta linguagem comum à presente
experiência radicalmente anticomunicativa do capitalismo
contemporâneo, Debord tem em vista amparar sua perspectiva
quanto a uma “nova” linguagem comunicativa, apresentando a
atual experiência social como uma passagem, uma experiência
transitória. Neste gesto, o conceito de linguagem comum termina
por obter um alcance “metafísico”. Ainda que tenha em vista
uma experiência histórica concreta, real – a experiência mais
universal e constantemente reposta pelo desenvolvimento
universal das relações mercantis de destruição das linguagens
imersas em tradições –, Debord não a apresenta fático-
empiricamente, de modo imediatamente historiográfico. De fato,
é inútil perguntar, quanto à exposição destes parágrafos de A
sociedade do espetáculo, quando termina e começa uma e outra
dessas experiências sociais da e na linguagem.
Ao expor de modo não-historiográfico este processo que
é, todavia, histórico, Debord sinaliza precisamente a natureza
não-empírica de sua noção de linguagem comum, quando referida
retrospectivamente. Todos os parágrafos dos capítulos V e VI
de A sociedade do espetáculo demonstram justamente que ele
não vê, nas antigas formas comunicativas tradicionais, uma
qualquer “linguagem realmente comum” que tenha o mesmo
sentido da linguagem comum que, segundo diz, deve ser
“reencontrada” (retrouvé, SdS, § 187). Este juízo é reafirmado,
no capítulo VIII sobre a cultura, quando ele nomeia a comunidade
pré-moderna de “comunidade inativa”, em oposição à vindoura
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 125

“real comunidade histórica”. Fundadas nos mais diversos modos


de hierarquias sociais, as sociedades pré-modernas se
caracterizam precisamente por formas de separação, alienação,
que já seriam, de algum modo, espetaculares. Outrossim, se é
lícito falar – na perspectiva debordiana – de algo comum na
linguagem ali experienciada, é apenas como persistência da
tradição, do passado na organização de sentido no presente,
enfim, do presente perpétuo na experiência do tempo cíclico,
sendo este justamente o significado da linguagem comum
recomposta artificialmente pelo espetáculo.
É fundamentalmente esta concepção quanto às sociedades
pré-capitalistas que determina que esta linguagem comum,
quando apresentada retrospectivamente no contexto da
discussão do oitavo capítulo de A sociedade do espetáculo,
significando ali uma “linguagem verdadeiramente comum”, não
tenha nem possa ter qualquer descrição historiográfica. Em tal
contexto, esta categoria só pode mesmo adquirir uma feição
“metafísica”: precisamente o mesmo sentido metafísico que
encontramos na gleiche Sprache, linguagem igual, comum,
presente na Teoria do romance (Lukács), e na Erfahrung,
experiência coletiva e comunicável, n’O narrador (Benjamin).
Lembre-se que nesse conceito lukacsiano, no qual justamente
se baseia o conceito benjaminiano de experiência, encontra-se
uma apresentação do passado pré-capitalista (a Grécia) como
imagem de um “princípio regulador” para a crítica do presente.
Nesta imagem, o idealizado “mundo orgânico”, “homogêneo”,
se apresenta, como analisam A. Arato e P. Breines, num
necessário e inevitável “nível abstrato”. Segundo estes autores,
este nível abstrato justificar-se-ia justamente por uma
“dimensão histórica” fundamental ao conceito em questão: a
convicção de que “qualquer retorno à suposta ‘idade do ouro’
está totalmente descartada”. 1 A concepção fundamental discutida

1 . A. Arato e P. Breines, El joven Lukács y los orígenes del marxismo ocidental,


p. 107.
126 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

na Teoria do romance é apontada em sua conclusão, que é, na


verdade, uma abertura: a perspectiva de superação da forma-
romance (e, centralmente, da “vida problemática” que ele
encarna) na promessa do mundo comunitário figurado por
Dostoiévsky. Do mesmo modo, O narrador – que, contudo, já se
distancia da Teoria do romance, pois o seu ponto de partida é a
dissolução da própria comunidade popular russa – quer pensar
a experiência, presente no entreguerras, do processo de
destruição da linguagem tradicional, situando-o também num
movimento de passagem en avant, cujo sentido a ser articulado
e perseguido é inseparável da assunção crítica desta própria
experiência histórica e de suas novas formas de linguagem,
comunicação e escrita.
É, p o i s , esta m e s m a natureza metafísica que
reencontramos no conceito debordiano de langage commun.
Quando Debord situa, retrospectivamente, uma linguagem comum
que se desfez historicamente, precisamente como linguagem
da “comunidade inativa” (entendida como “comunidade do mito”,
em que o passado organiza ainda o sentido da vida presente,
donde o seu imobilismo), seu acento é posto, na verdade,
prospectivamente, em vista da “real comunidade histórica”
(entendida justamente como liberação e realização das
potencialidades atualmente presentes de uma “história total”).
Em sua face retrospectiva, o conceito de linguagem comum
designa criticamente a “comunidade inativa” e, ao mesmo tempo,
nomeia idealmente as “referências de uma linguagem realmente
comum” agora perdidas. Nestas mediações, o conceito de
linguagem comum se apresenta constituído pela superposição
de duas camadas, histórica, uma, metafísica, outra, camadas
estas inseparáveis na sua natureza histórico-metafísica. Em sua
dimensão histórica, a antiga linguagem comum é concebida
justamente de modo crítico, pois relacionada à “comunidade
inativa”, à “comunidade do mito”. Em sua dimensão metafísica,
a “linguagem realmente comum” é suposta e positivamente
idealizada , pois apresentada como uma experiência que,
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 127

antecedendo a presente experiência reificada de dissolução dos


valores comunicativos, deve ser, num outro conteúdo histórico,
“reencontrada” na “real comunidade histórica” a vir.
Deve-se, contudo, observar que, assim como no jovem
Lukács e em Benjamin, a natureza metafísica do conceito
debordiano de linguagem comum não tem qualquer feição a- ou
anti-histórica, transcendente, tampouco remete a qualquer
representação de uma verdade existencial perdida a ser
recuperada. Ao contrário, tem justamente um sentido histórico-
metafísico que, em essência, busca indicar uma passagem, uma
transição e uma não-fixidez da experiência histórica presente.
Em outras palavras, a concepção debordiana de langage commun
não se constitui num terminus a quo transcendente, com base
no qual a crítica do presente é feita, mas sim num terminus ad
quem negativo-imanente, uma perspectiva nascida da própria
reflexão crítica da atual experiência social. Como observa R.
Janine Ribeiro, a “vida autêntica”, para Debord, “não existiu
antes e, talvez, jamais tenha existido. [...] A vida autêntica está
por se fazer. Não é um dado da natureza, nem algo que se perdeu.
Tudo está por ser conquistado”. 2 Em sua face essencialmente
prospectiva, portanto, o conceito de langage commun recoloca
o problema do “mais além deste mundo” (Lukács) no nível
abstrato de uma filosofia da história (como diriam A. Arato e P.
Breines acerca da Teoria do romance), ainda que no interior de
um pensamento extremamente crítico das concepções idealistas
que marcaram esta disciplina filosófica e de toda a filosofia,
simplesmente; apresenta, portanto, um mais além deste mundo
presente concebido de modo negativo-imanente com base em
suas próprias contradições.
Sem dúvida, pode-se encontrar uma radical diferença de
sensibilidade entre aqueles conceitos lukacsiano e benjaminiano,
fortemente influenciados pela oposição entre comunidade

2 . R. J. Ribeiro, “Feitiçarias do capital”, Folha de São Paulo, 17 de agosto de


1997.
128 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

(Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft) presente na sociologia


alemã do início do século passado, e o conceito debordiano de
linguagem comum. Aqueles primeiros guardam talvez um certo
tom nostálgico, embora não passadista, tom que é completamente
ausente em Debord quando este concebe, de modo bem crítico,
a comunidade pré-moderna como comunidade inativa, até mesmo
identificando o espetáculo, em sua natureza arcaica, a uma
recomposição artificial daquela linguagem comum. Precisamente
invertendo – e não, repondo, como acredita Löwy – aquela
oposição entre Gemeinschaft e Gesellschaft, estabelecida por
F. Tönnies e retomada de modos distintos por outros autores
(inclusive pelo Lukács de História e consciência de classe),
Debord diz que o capitalismo contemporâneo é uma “sociedade
sem comunidade e sem luxo” (SdS, § 154). Neste juízo, ele
busca apontar prospectivamente a “real comunidade histórica”,
partindo da sociedade (semi)histórica do presente e, portanto,
da positiva assunção da dissolução da comunidade pré-
capitalista. Sob o termo de “real comunidade histórica”, Debord
retoma na verdade o projeto da sociedade sem classes,
compreendido já pelo Marx dos Manuscritos não como “relação
genérica imediata, natural”, mas precisamente como “existência
humana social”, cujos pressupostos são historicamente
produzidos. Nem mesmo as communautés gregas e italianas,
que aparecem tão positivamente em A sociedade do espetáculo,
tampouco as comunidades pré-capitalistas tradicionais,
“naturais”, fundam a reivindicação por Debord da real
comunidade histórica, mas a perspectiva comunista da sociedade
sem classes, novamente nomeada de comunidade pois pensada
– em virtude da centralidade que a linguagem ocupa em sua
reflexão – sob o horizonte de uma linguagem comum, uma “nova
comunicação”.
No que pesem as diferenças acima apontadas, a
aproximação do conceito debordiano de linguagem comum
d a q u e l e s d e gleiche Sprache e d e Erfahrung tem aqui
importância, para além desta sua natureza prospectiva, mas dela
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 129

inseparável, em virtude da centralidade que o recurso metafísico


nele ensaiado dá à linguagem e, portanto, à própria experiência
histórica. Não se constitui num recurso nem à natureza, como
em Rousseau, nem à interioridade subjetiva, como em Breton.
Antes, constitui-se numa referência estrita à história, a uma
matéria histórica, ainda que não de modo historiográfico.
Precisamente neste recurso de natureza metafísica, demarca já
uma renúncia a assumir – do ponto de vista histórico, real –
qualquer herança ou pertença à tradição, pois, logo de entrada,
a linguagem sobre a qual reflete é marcada pela ruptura, pela
quebra, pela não-unicidade, pela não-transmissão. Como
linguagem histórica, social, ela é pensada numa recusa de
qualquer idéia de autenticidade metafísica, mesmo quando esta
diz respeito à linguagem. Tampouco traduz uma concepção
“teleológica” ou uma retomada de um movimento “triádico” da
história, como crê A. Jappe; a feição “triádica” e “teleológica”
aparece apenas como recurso metafísico (a antiga linguagem
comum como suposta experiência que, noutro conteúdo, deve
ser “reencontrada”), portanto, não na consideração e
reivindicação propriamente históricas da antiga experiência
social da linguagem (isto é, como a linguagem da “comunidade
inativa”).
“Perdendo a comunidade da sociedade do mito, a
sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem
realmente comum, até o momento em que a cisão da comunidade
inativa pode ser superada pelo acesso à real comunidade
histórica”, diz justamente assim Debord (SdS, § 186). Ao referir-
se retrospectivamente à antiga “linguagem realmente comum”,
como a algo que a sociedade, ao sair do “mito”, “deve perder”,
ao mesmo tempo em que nomeia esta mesma experiência social
anterior de “comunidade inativa”, Debord se coloca num campo
de reflexão centrado na linguagem que pensa idealmente aquela
primeira como ausência definitiva e irrecuperável e, histórico-
faticamente, c o m o a l g o a s e r n e g a d o , s e j a n u m o l h a r
retrospectivo que valoriza positivamente sua autodestruição
130 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

crítica na e pela arte moderna, seja na denúncia de sua


recomposição artificial no e pelo capitalismo contemporâneo.
Em outras palavras, Debord concebe criticamente a existência
histórica de uma linguagem comum nas sociedades pré-
capitalistas, entendida como linguagem comum da tradição,
portanto, como expressão das “forças que freiam o movimento”
(SdS, § 141), como domínio do passado sobre o presente ou, se
se quiser, como linguagem arcaica. Esta linguagem está “perdida”
também no sentido de que é irretornável. Contudo, ela não foi
de nenhum modo uma linguagem comum no mesmo sentido da
“real comunidade histórica” que deve ser construída; logo, nada
desta “real comunidade histórica”, desta nova linguagem comum
foi de fato “perdida”, pelo simples fato de que nunca existiu.
Debord, portanto, nomeia duas experiências históricas bem
diversas – a “comunidade inativa” pré-capitalista e a “real
comunidade histórica” comunista a vir – sob o mesmo signo da
linguagem comum, num jogo metafísico de idealização
retrospectiva das “referências de uma linguagem realmente
comum” das sociedades pré-modernas, que “deve” ser perdida,
e de aposta num reencontro com uma linguagem comum histórica
(jamais efetivamente havida).
Esta idealização metafísica, num momento, e esta crítica
histórica, noutro, constituem o que antes foi chamado de uma
superposição de duas camadas – histórica e metafísica – do
conceito debordiano de linguagem comum. Apenas se admitida
a existência dessas duas camadas torna-se compreensível por
que as considerações negativas acerca da comunidade pré-
moderna (“inativa”, “do mito” etc.) podem se coadunar com as
considerações idealmente positivas destas mesmas experiências
comunitárias, nas quais teriam havido “referências de uma
linguagem realmente comum”. Contudo, mesmo neste nível
metafísico da exposição de Debord, a proposição de que uma
linguagem comum deve ser “reencontrada” não diz respeito
àquela linguagem comum da sociedade pré-moderna, mas sim,
à linguagem comum da “real comunidade histórica”. O que aí se
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 131

demonstra é, como já observado, uma reflexão histórica centrada


na experiência social da linguagem e elevada a um plano
metafísico, procedimento que busca precisamente indicar a
natureza transitória do presente e um sentido transitivo da atual
experiência reificada da linguagem social.
Nomeando de outro modo a natureza metafísica do
conceito debordiano de langage commun, G. Agamben considera
que Debord tem fundamentalmente em vista, em toda a sua
teoria crítica do capitalismo contemporâneo, “o ser lingüístico
do homem [...] a natureza lingüística ou comunicativa do homem
[...] aquele logos no qual um fragmento de Heráclito identifica
o Comum”. 3 É neste contexto que ele propõe de modo não
polêmico a expressão (mas não a concepção) feuerbachiana de
Gattungswesen , “essência-gênero”, para a determinação
“lingüística” do homem, conforme a pensa e tematiza Debord.
Sem tirar todas as conseqüências desta sugestão de Agamben,
mas assumindo-a de modo polêmico (sem citá-lo), A. Jappe
conclui que, em Debord, há uma compreensão da alienação que
reapresenta de modo imediato a própria concepção feuerbachiana
de Gattungswesen, daí sua consideração crítica que a posição
debordiana quanto à reificação “supõe, evidentemente, a
existência de uma ‘essência humana’ que possa servir de
parâmetro para determinar o que é ‘são’ e o que é ‘alienado’”.
E, nisto mesmo, diz ele, “atinge-se um limite evidente da teoria
de Debord”. 4

3 . G. Agamben, “Glosse in margine ai Commentari sulla società dello


spettacolo”, loc. cit., p. 67. Como prefácio à edição italiana dos Comentários,
esta análise de Agamben tem importância do ponto de vista da compreensão
que o próprio Debord tinha de sua obra: que eu saiba, esta foi uma situação
única de edição, enquanto ele estava vivo, de uma obra sua prefaciada por
outro autor, com sua autorização.
4 . A. Jappe, Guy Debord, pp. 51 e 57. Que a concepção crítica da reificação e
da alienação – conforme o juízo dedutivo de Jappe – deva supor,
“evidentemente”, uma “natureza humana”, apenas demonstra uma completa
e radical ausência de qualquer compreensão histórico-dialética neste autor.
Em Marx, como em Debord, não se trata de fazer uma crítica da alienação
em nome de uma antropologia positiva, de uma natureza humana “sã”, mas
132 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Na análise d e A g a m b e n , c o n t u d o , a expressão
Gattungswesen, mesmo quando reiterada pelas expressões de
essere linguistico e natura linguistica, não constitui – como
tampouco, em Debord, a concepção da reificação, da alienação
e , n e l a , d o langage commun – qualquer determinação

somente tomando por base o caráter historicamente contraditório de uma


forma social de produção material da vida na qual os indivíduos, em suas
relações genéricas, se produzem e se afirmam no modo da autonegação,
da auto-alienação (ou auto-estranhamento, Selbstentfremdung). Não se
trata, neste enfoque teórico, de uma negação exterior do que em positivo
os indivíduos teriam sido historicamente antes dessas mesmas relações
sociais ou do que supostamente são transcendentemente fora dessas
relações, mas justamente da autonegação do que eles efetivamente são,
porque assim se fazem, nas próprias relações sociais por eles mesmos
produzidas. A rigor é esta mesma ausência de pensamento dialético que se
manifesta na adesão de Jappe à tese de Robert Kurz e do grupo Krisis
(agora também Exit!) quanto à existência de dois Marx (um, o da crítica da
economia política, outro, o da luta de classes), tese que ele aplica a Debord:
“A insistência [de Debord] na ‘luta de classes’ desconhece, entretanto, a
natureza das classes criadas pelo movimento do valor e que só têm sentido
em seu interior. Proletariado e burguesia só podem ser os instrumentos
vivos do capital variável e do capital fixo; são os comparsas e não os
diretores da vida econômica e social. Seus conflitos, isto é, suas ‘lutas de
classes’, passam necessariamente pela mediação de uma forma abstrata e
igual para todos – dinheiro, mercadoria. Desde então, tratava-se apenas
de lutas de distribuição no interior de um sistema que ninguém punha
seriamente em dúvida. [...] Quando acredita que é possível, nas condições
atuais, a existência de um sujeito por sua própria natureza ‘fora’ do
espetáculo, Debord parece esquecer o que ele mesmo declarou sobre o
caráter inconsciente da economia mercantil, e o esquece novamente quando
identifica esse sujeito ao proletariado” (A. Jappe, Guy Debord, pp. 58-59).
Neste juízo, encontram-se na verdade uma incompreensão e um erro. O
erro diz respeito à primária confusão conceitual entre as categorias capital
variável e capital fixo, categorias que não constituem um par na teoria
crítica do valor de Marx e que cumprem funções específicas e diferentes
nas análises marxianas sobre as tendências da economia capitalista. Mais
grave, contudo, é a incompreensão quanto às relações sociais capital e
trabalho: para Jappe, elas se resumem à “forma abstrata e igual para todos
– dinheiro, mercadoria”: em outras palavras, à esfera aparente da circulação
de que nos fala explicitamente Marx. Ocorre que se se desenvolve uma
relação entre iguais nesta esfera aparente, conforme o princípio de
equivalência da mercadoria e do dinheiro, sua verdade não é, contudo,
esta troca de iguais, mas sim, conforme expõe Marx, a produção capitalista
de valor na qual se desenvolve a não-equivalência (a mais-valia, fonte do
lucro capitalista). Em outras palavras, a verdade da identidade é a
contradição. Que Jappe, Kurz e seus amigos não vejam isso, é porque lhes
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 133

antropológica, naturalista e não-histórica, como ocorre em


Feuerbach. Quando Debord diz que “a comunidade [...] é a
verdadeira natureza social do homem, a natureza humana”, 5 ao
contrário de uma reposição da concepção feuerbachiana de
“natureza humana”, ele reafirma a distinção de Marx frente a
Feuerbach, distinção já presente embora de modo não-polêmico
nos Manuscritos de 1844, dos quais justamente ele retoma estes
termos. Para Debord, a comunidade é a “natureza social” do
homem precisamente porque o homem é social e a real
comunidade histórica a vir não é a (re)instauração de nenhuma
vida comunitária “natural”, coisa já observada por Marx nos
Manuscritos. “Nós pensamos, como Marx”, diz Debord, numa
polêmica com Castoriadis, “que ‘a história inteira é somente a
transformação progressiva da natureza humana’”. 6
Com base na reflexão de Debord, a requerida linguagem
comum – que, em sua dimensão prospectiva, deve ser, de fato,
encontrada e não “reencontrada” – só pode ser pensada
justamente como terminus ad quem, como referência fundada
na crítica da própria existência presente. Neste contexto, é
sugestiva a alusão de Agamben a Heráclito; este falava do lógos,
tomado aqui no sentido de linguagem, como o “comum” (ksynós,
fr. 2), do qual os homens estão, contudo, “separados”,
“descompassados” (aksýnetoi, fr. 1). É esta categoria de

falta justamente o pensamento da contradição, a mesma falta que leva o


primeiro a representar a teoria da alienação como “evidentemente” fundada
numa “natureza humana sã”. Para uma crítica mais completa desta posição
de Jappe, ver minhas “Anotações sobre A Sociedade do Espetáculo:
apresentação de uma edição pirata” (prefácio a G. Debord, A sociedade do
espetáculo, Belo Horizonte, Coletivo Acrático Proposta, 2003; on line em
www.rizoma.net/interna.php?id=133&secao=potlatch); para uma crítica mais
ampla das posições do grupo Krisis, ver Ilana Amaral, “Crítica ao ‘Manifesto
contra o trabalho’” (revista contra-a-corrente, Fortaleza, CE, nº 9, set-
dez/99; on line em www2.autistici.org/contraacorrente/).
5 . G. Debord, “Le déclin et la chute de l’économie spectaculaire-marchande”,
em Internationale Situationniste, nº 10, março de 1966, p. 11, itálicos no
original.
6 . “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 79,
itálicos no original.
134 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

“separação”, determinada pela reificação mercantil, separação


com relação à própria experiência social genérica da linguagem
comunicativa, somente agora possibilitada graças à destruição
da “antiga linguagem comum”, que Agamben busca ressaltar e
apontar como centro da crítica debordiana do espetáculo. Em
outras palavras, a expropriação da potencialidade da linguagem
comunicativa, nas condições do capitalismo contemporâneo,
deve-se a que esta mesma potencialidade foi historicamente
constituída pelas presentes condições históricas reificadas e,
portanto, pela liberação social da linguagem do estranhamento
tradicional essencial à antiga linguagem comum. Precisamente
aí, o filósofo italiano determina a natureza histórica da reflexão
de Debord sobre a linguagem, ao encontrar nela a tematização
de uma permanência do estranhamento, contudo diferenciado,
nas sociedades hierárquicas anteriores e na atual sociedade
fundada no fetichismo mercantil. “Enquanto, de fato, no velho
regime”, diz Agamben, “o estranhamento da essência
comunicativa do homem se substanciava num pressuposto que
fazia a função de fundamento comum, na sociedade espetacular
é esta própria comunicatividade, esta própria essência genérica
(isto é, a linguagem como Gattungswesen) que vem separada
numa esfera autônoma. O que impede a comunicação é a própria
comunicabilidade, os homens são separados pelo que os une”. 7
É sempre e fundamentalmente a experiência histórico-
social na linguagem que aparece no conceito de langage commun
em Debord, seja a “linguagem comum da inação social”, nas
sociedades pré-modernas, seja a “linguagem comum da
separação”, no capitalismo espetacular. Neste sentido é que,
como faz Agamben, é lícito falar de uma tematização, por Debord,
da “natureza” lingüística, do “ser” lingüístico do homem. Longe
de pensar a linguagem como uma instância autonomizada no
interior da vida social, como uma categoria filosófico-histórica
abstrata que percorre as mais diversas formas de sociabilidade,

7 . G. Agamben, “Glosse in margine ai Commentari sulla società dello


spettacolo”, p. 69.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 135

Debord a posiciona como uma determinação fundamental à sua


reflexão social crítica do presente – e, assim, ele se permite
uma dupla consideração retrospectiva – porque conclui, da
experiência social contemporânea, a perspectiva da “comunidade
realmente histórica”.

3.2 Arte moderna e aspiração a uma nova comunidade


Neste âmbito de reflexão, Debord pensa a experiência
artística como componente do mesmo processo histórico de
dissolução da “antiga linguagem comum”. Este procedimento,
na medida em que articula um sentido histórico da própria
experiência artística moderna, tem importância decisiva para a
natureza antes de tudo prospectiva do seu conceito de linguagem
comum. Ao pensar esta experiência artística como parte
integrante da experiência social da linguagem, parte na qual
esta mesma experiência social foi assumida criticamente, Debord
articula um sentido social prospectivo para a experiência
histórica da arte moderna, inseparável da superação
revolucionária das presentes condições de existência.
Nesta juntura entre a experiência histórica da linguagem
e a experiência artística moderna, Debord pensa uma teoria
tanto da constituição histórica quanto da crise da arte autônoma,
independente. Resumidamente, ele assim a apresenta: a
experiência estética que, antes, se punha como “linguagem
comum da inação social”, inseparável do “universo religioso”
nas sociedades pré-modernas, se constitui, através da dissolução
da antiga linguagem comum, em “arte independente no sentido
moderno”, quando “sua afirmação independente é o começo de
sua dissolução” (SdS, § 186). Nesta formulação, não há também
qualquer descrição histórica, embora aponte para um movimento
de constituição histórica do estatuto moderno da arte, como
experiência estética apartada, separada de um todo social
interligado; em suma, como experiência distinta daquela antiga
136 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

pertença imediata dos fenômenos estéticos a uma totalidade


comunitária fechada, na qual se faziam constitutivos das ali
inseparáveis atividades de trabalho e culto, nascimento e morte,
guerra e paz.
Esta formulação não é, certamente, inteiramente nova.
Ao contrário, compõe um certo patrimônio comum da reflexão
materialista sobre o modernismo. Justamente em seu ensaio
sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin esboça algo
semelhante, ao buscar pensar o declínio da aura da obra de
arte, constitutiva de sua “inserção na tradição” e de sua “função
ritualística”, como parte de uma afirmação crescente do “valor
de exposição”, até o ponto em que a sua própria natureza artística
– é esta sua tese estética principal – “talvez se revele mais
tarde como secundária”. 8 Nas condições da reprodutibilidade
técnica, inseparáveis da crise da experiência comunicativa pré-
moderna, diz Benjamin, “a arte perdeu sua autonomia”, o que
implica, ao mesmo tempo, sua “refuncionalização”. 9 Nestas
considerações, nas quais busca pensar o sentido histórico de
determinadas experiências modernas, até mesmo as de
vanguarda, Benjamin apresenta tanto uma teoria da constituição
da arte autônoma, em seu sentido moderno, com base numa
superação histórica de sua categoria cultual-ritualística (valor
de culto), quanto uma reflexão da crise da própria experiência
artística nas condições do capitalismo do entreguerras, na qual
a “autonomia” da arte, determinante de seu estatuto enquanto
arte no sentido moderno, é abalada com o declínio da aura que
havia se conservado, sob a determinação do “culto à beleza”,
mesmo na arte autônoma.
Em traços gerais, este movimento se reproduz na reflexão
de Debord. Também para ele, a arte independente se constitui
historicamente de sua emergência do antigo universo mítico-

8 . W. Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica [1935/


36]. Obras escolhidas, t. I. Tr. br. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1996, p. 173.
9 . Idem, p. 176.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 137

religioso, como saída de uma linguagem comum tradicional; é


precisamente este processo que, ao apartá-la do universo
integrado da comunidade pré-capitalista, no qual um sentido
transmitido está conservado, a constitui enquanto “arte
independente” e, nisto mesmo, o começo de sua dissolução como
arte, simplesmente. O que propriamente a constitui enquanto
arte moderna autônoma é a sua assunção da crise – pondo-se a
si mesma como o lugar da “autodestruição crítica” – da
experiência e da linguagem comuns da tradição. Liberada para
sua autonomia, pela destruição de seu antigo ethos histórico, a
arte moderna se constitui enquanto tal ao se colocar como uma
experiência na qual aquela destruição é assumida, segundo
Debord, “criticamente”.
Trata-se, com efeito, na arte moderna, de uma
“autodestruição crítica da antiga linguagem comum”. 10 Todo o
seu movimento é o da tematização e da experimentação
consciente e significativa desta destruição da linguagem,
movimento pelo qual sua própria existência se faz inseparável
desta experiência histórico-social mais geral. Em Sur le passage
de quelques personnes à travers une assez courte unité du temps,
Debord considera justamente que “a libertação da vida cotidiana
[...] passa pelo deperecimento das formas alienadas da

10. Contudo, a destruição crítica e consciente da linguagem comum da tradição


ocorreu não apenas na arte moderna. A experiência artística realizou, em
seu próprio âmbito, o mesmo processo histórico que a filosofia, a partir de
Hegel, teria realizado: a “destruição de Deus”, tal como Debord expressa
em termos nietzscheanos. É por isso que, quanto à arte, também se trata,
para Debord, como para o jovem Marx quanto à filosofia, de uma
“superação” que é inseparável de sua “realização”. Arte e filosofia
experimentaram, em seus âmbitos, o fenômeno da proletarização da
linguagem, da invasão da linguagem pela história, conforme aconteceu
com o conjunto das condições de existência da sociedade. A destruição
consciente e crítica, na arte e na filosofia, da antiga linguagem comum
encontra-se com a posição revolucionária que o proletariado – conforme
suas condições de vida no capitalismo – pode afirmar diante da sociedade
de classes, segundo lhe atribuem Marx e Engels: suas condições de vida
são o resultado tanto da destruição das sociedades pré-capitalistas quanto
138 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

comunicação”. 11 Esta experiência foi tematizada e efetivada pela


arte moderna. Ao compreendê-la nesta articulação histórica com
a experiência social da própria linguagem, e tendo em vista,
criticamente, a natureza anticomunicativa do capitalismo
contemporâneo, Debord busca justamente propor um sentido
histórico prospectivo para essa experiência, sentido no qual a
feição crítica da destruição da linguagem na e pela arte moderna
é conservada. “O fato de que a linguagem da comunicação se
perdeu, eis o que exprime positivamente o movimento de
decomposição moderna de toda arte, sua aniquilação formal. O
que este movimento exprime negativamente é o fato de que
uma linguagem comum deve ser reencontrada” (SdS, § 187).12
Em sua concepção, toda a arte moderna foi – como modo
consciente de uso da linguagem inserido na experiência histórica
mais ampla de destruição da antiga linguagem comum – a
manifestação positiva desta mesma destruição, que ela afirmou
e requereu. Igualmente assim ela se fez arte independente,
retirando-se do antigo universo religioso, destruindo-se
criticamente a si mesma como arte pertencente àquele universo,
constituindo deste modo sua própria independência formal num
processo inseparável da destruição social da antiga linguagem
comum. Contudo, na medida em que faz de si mesma o locus de
uma destruição consciente, a arte moderna inscreve um sentido
a este seu fazer-se, sentido que assinala en négatif a busca de
uma outra, não alienada, linguagem comum. É na natureza
negativa, crítica, da destruição da linguagem, em e pela arte
moderna – destruição esta que é componente da natureza
destrutiva da sociedade capitalista , mas também da posição

do próprio desenvolvimento capitalista; por isso, seu ser de classe não se


identifica com nenhuma forma anterior de sociedade, só podendo
identificar-se com a destruição da presente sociedade de classes (cf.
Manifesto do partido comunista [1848]. Moscou: Edições Progresso, 1987,
especialmente o 1º capítulo “Burgueses e proletários”, pp. 43-44).
11. G. Debord, Œuvres cinématographiques complètes, p. 35.
12. Insista-se, Debord fala de uma linguagem comum a ser reencontrada, não
da anterior linguagem comum a ser reencontrada.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 139

crítica da arte moderna em face desta forma de sociabilidade,


caracterizada pela pseudocomunicação – que Debord encontra
a perspectiva de uma outra e radicalmente diferente linguagem
comum, e não na suposta antiga linguagem comum das
comunidades pré-capitalistas ou no pressuposto positivo de uma
essência humana.
Retomando esta análise de Debord, V. Kaufmann considera
que, em toda a experiência poética moderna, dos românticos
alemães ao surrealismo, atravessa uma “exigência comunitária”.
Mormente nas vanguardas, esta exigência medir-se-ia pelo
projeto mallarmeano do “Livro total”, “enquanto ele representa
o fim do livro, em todos os sentidos do termo”. 13 Seria justamente
este o conteúdo último da crítica vanguardista da arte: “No
horizonte de sua ultrapassagem ou de sua realização, na origem
e no fim do sonho comunitário ou ‘comunista’ que a anima no
curso deste século, há não a ação política no sentido tradicional
do termo, mas o Livro. Há a vontade de um acabamento da arte
numa totalidade onde esta seria feita não apenas para todos,
mas também por todos”. 14 Para Debord, esta exigência
comunitária de que fala Kaufmann ter-se-ia posto sob a forma
negativa da destruição de toda linguagem pseudocomunicativa.
Neste gesto se teriam mantido inseparáveis a destruição
consciente da linguagem tradicional e a denúncia desta mesma
destruição quando realizada pelo modo de vida dominante na
sociedade moderna, no modo de sua banalização e de sua redução
ao intercâmbio alienado e à pseudocomunicação.
É aqui certamente que Debord se encontra com Mallarmé
e sua crítica da redução da linguagem a uma “moeda”, mas
também com Breton e sua recusa de que as palavras sejam
tratadas como “pequenos auxiliares”. Que a arte moderna tenha
experimentado ao limite o auto-exílio da ling uagem e da

13. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires, p. 11.


14. Idem, p. 12.
140 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

comunicação alienadas, que – com Mallarmé e Joyce, mas também


com o dadaísmo e o surrealismo – ela tenha experimentado até
mesmo a “ilegibilidade”, é porque, segundo Kaufmann, “não se
intercambiando, ela escapa precisamente à lei de troca”. 15 Por
isso mesmo, Kaufmann sugere que a proposição debordiana da
linguagem comum se constitui na transposição em termos
histórico-sociais da proposição metafísico-comunicativa que
Mallarmé nomeou de língua suprema, precisamente quando – e
assim ele é interpretado, junto com toda a poesia moderna, por
Debord – buscou distanciar-se poeticamente da linguagem
cotidiana, reificada.
Segundo a análise de Debord, a arte moderna “chegava
sempre muito tarde, falando a outros do que foi vivido sem
diálogo real e admitindo esta deficiência da vida” (SdS, § 186).
Deste modo exatamente, a arte independente representou
poético-artisticamente uma “comunidade do diálogo e o jogo
com o tempo”. A representação – logo, a ausência, a substituição
e a não-comunicação – de um diálogo inexistente, sob a forma
da expressão da lembrança do que foi vivido sem comunidade e
da recusa da comunicação alienada é o que, na arte moderna,
inscreve a necessidade da comunidade e da comunicação.
Lembro que, na Teoria do romance, Lukács diz que a linguagem
monológica – esta que Debord considera positivamente como
essencial à toda arte moderna – é “o tormento da criatura
condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade”. 16 Para
Debord, é precisamente esta inscrição em negativo de uma busca
pela comunidade e pela comunicação que se impôs, na arte
moderna, como necessidade crítica de “falar a outros”,
necessidade fundada numa profunda consciência de que este
gesto expressa e denuncia uma “deficiência da vida”.

15. V. Kaufmann, Guy Debord, la révolution au service de la poésie. Paris:


Fayard, 2001, p. 223.
16. G. Lukács, Teoria do romance, p. 43.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 141

Para uma melhor determinação desta perspectiva


comunicativa que Debord elabora para a experiência expressiva
da arte moderna, diante das características anticomunicativas
do capitalismo mais desenvolvido, pode-se retornar àquela
aproximação ensaiada, no início do segundo capítulo, entre
Adorno e Breton. Nestes autores, a oposição ético-estética entre
expressão e comunicação (em Adorno, entre Ausdruck e
Kommunikation) tem precisamente o significado de uma posição
negativa diante da “comunicação” reificada na sociedade de
mercado, da qual a expressão se constitui numa denúncia
(essencialmente integrante do conteúdo crítico e ético-
existencial da arte moderna). Breton constrói esta crítica da
linguagem reificada com base numa noção de interioridade
subjetiva, horizonte lírico cuja natureza abstrata e não mediada
historico-socialmente em termos teóricos incapacita o
surrealismo a uma reorientação de perspectiva, mesmo quando
tal reorientação se torna necessária – segundo julga Debord –
diante da experiência tardocapitalista de destruição de todos os
valores comunicativos, quando o próprio sistema se torna
“neodadaísta”. De modo semelhante, Adorno estrutura toda a
sua perspectiva estética – que ocupa um importante lugar em
sua crítica social do capitalismo tardio 17 – na oposição entre
Ausdruck e Kommunikation, mesmo numa situação em que ele
próprio reconhece a crise da categoria estética da expressão
nas experiências das “neovanguardas”. Contudo, ele a reafirma
porque permanece teoricamente comprometido com a “forma
autônoma da arte”, tal como teria sido, segundo sua análise,
experienciada pela arte moderna no entreguerras, buscando

17. Conforme Rodrigo Duarte, a expressão comparece na filosofia de Adorno


não apenas como uma categoria estética, mas até mesmo como,
simultaneamente, fundamento e linguagem/terminologia da filosofia: neste
âmibito, “o radical sofrimento humano, conteúdo da expressão, torna-se
através dela [da expressão] uma poderosa arma para o alcançamento da
verdade” (R. Duarte, “Expressão como fundamentação”, em Kriterion, nº
91. Belo Horizonte: Departamento de Filosofia/FAFICH/UFMG, janeiro-
julho/1995, p. 56).
142 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

acentuar nesta experiência o caráter crítico da autonomia da


arte em face da heteronomia dominante no capitalismo tardio.
Ao contrário de ambos, Debord busca superar esta
oposição, n ã o o p t a n d o , c o n t u d o , p e l a “ c o m u n i c a ç ã o ”
(Kommunikation) contra a “expressão” (Ausdruck), mas
concebendo a possibilidade de uma “comunicação direta” (e
esta é uma essencial diferença conceitual que a tradução alemã
de A sociedade do espetáculo indica sob o termo “direkte
Mitteilung”). 1 8 C o m o Mitteilung , “comunicação”, “ato de
partilhar”, “de dividir com”, a comunicação direta concebida
por Debord tem o exato sentido contrário da Kommunikation
criticada por Breton, Adorno e por ele próprio. Porém ele vai
além de uma afirmação ético-existencial da Ausdruck (Adorno)
ou da expression (Breton) contra a comunicação reificada das
atuais relações sociais. Não desprezando ou contornando, mas
precisamente tomando como fundamento o sentido ético-
existencial desta oposição, tal como experienciada na e pela
arte moderna e tal como concebida teoricamente por Breton e
Adorno, Debord busca ultrapassá-la dialeticamente, numa
perspectiva comunicativa.
Contudo, sua posição comunicativa se diferencia também
da ultrapassagem pretendida por J. Habermas da concepção
expressiva de Adorno. Antes de tudo, não se trata, para Debord,
de distinguir fenomenologicamente, como o faz Habermas, mundo
de vida e mundo sistêmico, mas, ao contrário, de indicar num
procedimento dialético que a lógica reificada da forma-

18. G. Debord, Die Gesellschaft des Spektakels. Übersetzung aus dem


französischen von J.-J. Raspaud. Hamburg: Edition Nautilus, 1978. Nesta
tradução feita com o acompanhamento do próprio Debord, Raspaud traduz
“moyens de communication de masse” (meios de comunicação de massas)
por “Massenkommunikationsmittel”, opção que ele mantém sempre que o
termo francês “communication” refere-se, em A sociedade do espetáculo,
à “comunicação” reificada do sistema; e de “Mitteilung” para as ocorrências
em que “communication” tem ali uma valoração positiva, isto é, como
comunicação livre, portanto, negativa em face das relações reificadas da
sociedade de mercado.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 143

mercadoria e do trabalho assalariado organiza a inteira vida


cotidiana; em outras palavras, o chamado mundo de vida,
categoria com a qual Habermas pensa a vida cotidiana, é de
pronto determinado pelo mundo sistêmico das relações
econômicas fetichistas. Em conseqüência, não se trata para
Debord de tomar a comunicação cotidiana, como existente na
presente sociedade alienada, como base de uma perspectiva
social comunicativa, tal como pretende Habermas, que se refere
a uma “racionalização da comunicação cotidiana, ligada às
estruturas intersubjetivas do mundo da vida, para a qual a
linguagem representa o meio genuíno e insubstituível de
entendimento”. 19 Para Debord, a presente comunicação cotidiana,
em todos os seus níveis possíveis de “racionalização”, é
constituída pela mediação autônoma das relações mercantis,
sendo, portanto, uma “pseudocomunicação”.
Numa perspectiva adorniana, com razão R. Duarte diz,
contra a posição de Habermas, que “se nenhum dos participantes
de uma ação mediada pela linguagem está imbuído dessa
negatividade tão essencial à filosofia, a ‘comunicação’ entre eles
raramente ultrapassará o nível fático, no qual operam as
instâncias ideológicas do mundo administrado”. Neste sentido,
uma “‘ação comunicativa’ só se efetiva de fato a partir do
momento em que ela está apta a incorporar plenamente uma
negatividade radical com relação ao atual estado de coisas”. 20 É
precisamente por satisfazer esta exigência, tomando-a como
pressuposto, que a perspectiva comunicativa de Debord pode
ser entendida como uma ultrapassagem dialética da posição
adorniana, incorporando-a. Ao invés de simplesmente contorná-
la, abandonando-a em favor de uma perspectiva comunicativa

19. J. Habermas, Teoría de la acción comunicativa, I. Tr. esp. M. J. Redondo.


Madrid: Taurus, 1987, especialmente o tópico IV “De Lukács a Adorno:
La racionalización como coisificación”, p. 437.
20. R. Duarte, “Expressão como fundamentação”, em Kriterion, nº 91, janeiro-
julho/1995, Departamento de Filosofia FFCH/UFMG, p. 63.
144 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

acrítica, como parece ser o caso de Habermas, Debord incorpora


a negatividade existente na oposição entre a expressão e a
comunicação reificada, tal como esta oposição foi constituída
pela arte moderna e tematizada por Adorno. Em face da natureza
essencialmente anticomunicativa do capitalismo contemporâneo,
no qual a estética expressiva já não teria inteira a potencialidade
negativa que possuíra no entreguerras, Debord se posiciona
por uma perspectiva comunicativa como projeto social de
superação do Estado e do mercado. Também neste aspecto se
impõe uma radical diferença com a teoria comunicativa que
Habermas iria articular alguns anos depois: não se trata, para
Debord, de buscar uma fundamentação transcendental para a
práxis comunicativa, mas sim de pensá-la fundada única e
exclusivamente na práxis negativa em face do sistema único de
alienações do mercado e do Estado, negatividade esta que a
expressão poética moderna e as revoluções proletárias
derrotadas, notadamente em suas experiências conselhistas e
assembleárias, isto é, anti-hierárquicas, teriam indicado.
É somente porque reivindica esta negatividade imanente
à experiência da arte moderna que, para Debord , o programa
da superação da arte, buscada pelas vanguardas do início do
século, significa nas condições do capitalismo espetacular o
programa da passagem da estética expressiva à práxis
revolucionária comunicativa. Em outras palavras, a revolução
proletária far-se-á herdeira da arte moderna, ao realizar
positivamente o programa comunicativo que, em negativo, é
imanente a esta última; em contrapartida, a arte moderna
realizar-se-á, superando-se a si mesma enquanto arte separada,
com a transformação da inteira vida cotidiana em vida criativa,
desalienada, histórica, isto é, fundada na potência construtiva
do diálogo prático. Nesta mesma perspectiva interpretativa, V.
Kaufmann considera que a inflexão comunicativa operada por
Debord, inflexão elaborada com base numa interpretação da
experiência artística moderna, se constitui numa “política da
comunicação” que coincide imediatamente com uma “poética
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 145

da revolução”. Esta coincidência conceitual demarcaria um inteiro


movimento teórico pelo qual o horizonte de vanguarda da
“superação da arte”, sendo ela própria reposta numa perspectiva
comunicativa, exige ao mesmo tempo a superação da concepção
tradicional da revolução e da política revolucionária.
De fato, não são poucas as vezes em que Debord indica
esta dupla ultrapassagem. “Não é um movimento cultural de
vanguarda, mesmo tendo simpatias revolucionárias, que pode
realizar [a crítica e a recriação da vida cotidiana]. Nem mesmo
um partido revolucionário no modelo tradicional, ainda que ele
conceda um grande lugar à crítica da cultura”. 21 Neste gesto,
Debord busca operar e radicalizar o mesmo desvio, já levado a
termo por Breton e os surrealistas, das categorias ético-
existenciais presentes na poesia moderna francesa. Mas, ao
contrário do surrealismo no entreguerras, cujo desfecho o situa
na periferia ora do leninismo no poder, ora do trotskismo no
exílio – posição periférica que termina por repor, mesmo sob a
intenção de uma crítica da “arte” e da “literatura”, a divisão
especializada de tarefas políticas e artísticas –, Debord concebe
um duplo afastamento das esferas separadas da “cultura à parte”
e da “política especializada”, com base na centralidade categorial
da crítica da vida cotidiana e, nisto mesmo, na prioridade temática
e programática de superação da “pseudocomunicação” numa
“nova comunicação”. É a esta posição, na dupla superação que
ela indica da política e da arte tradicionais, que Kaufmann nomeia
de “poética da revolução”, categoria comumente desprezada
pelos comentadores de Debord porque, segundo este estudioso
da literatura moderna, eles identificam a posição debordiana
com as de “ultra-esquerda” (ultra-gauche) e, neste passo,
desconhecem o “poético” nela implicado, identificando-o de
modo imediato com a “arte” e a “obra de arte” no sentido

21. G. Debord, “Perspective de modifications conscientes dans la vie


quotidienne”, loc. cit., p. 27.
146 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

tradicional. De modo indistinto e inseparável, “o apego à palavra


e à comunicação é uma das chaves da vida e da obra de Debord”,
sendo precisamente esta questão que “está no centro de suas
reflexões sobre a necessidade de uma ultrapassagem da arte”. 22
E está porque, em Debord, a superação da arte, buscada pelas
vanguardas do início do século, significa agora a passagem de
um “falar a” (parler à) a um “falar com” (parler avec).
No plano estético, este parler avec significa um novo modo
narrativo. Desde seu segundo filme, Sur le passage de quelques
personnes à travers une assez courte unité du temps (1959),
Debord rompe com a estética não-comunicativa que apresentara
em seu primeiro filme, Hurlements en faveur de Sade (1952).
Em Sur le passage..., Debord retoma a narrativa, procedimento
que se mantém em Critique de la séparation (1961), em In girum
imus nocte et consumimur igni (1978) e, com algumas variáveis,
nos seus últimos escritos (particularmente o Panégyrique I).
Contudo, esta posição comunicativa não significa a reintrodução
da narrativa clássica, desprezando aquele gesto crítico da arte
moderna de recusa da pseudocomunicação, gesto que Debord
valoriza e busca “salvar” em sua análise. V. Kaufmann parece
ter inteira razão quando, em diferença com a opinião apresentada
por P. Sollers,23 afirma que não se trata, nestes casos, de
nenhuma “narrativa clássica”, mas, ao contrário, de uma outra
forma de narrativa comunicativa, certamente, mas que incorpora
no texto o princípio da colagem, da montagem, tal como
experimentada pela arte moderna. O mesmo princípio que, aliás,
se apresenta num texto teórico como A sociedade do espetáculo
e na produção-colagem das imagens de seus filmes. Esta
narrativa comunicativa, ao incorporar esses elementos formais
da arte moderna, incorpora na verdade princípios expressivos
– em outras plavras, a expressão como forma é aí parcialmente
mantida, conservada –, mas lhes conduz a uma abertura à

22. V. Kaufmann, Guy Debord, la révolution au service de la poésie, p. 222.


23. P. Sollers, “La guerre selon Guy Debord” (1989), em La guerre du goût.
Paris: Gallimard, 1996, pp. 442 ss.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 147

comunicação, não apenas enquanto programa explicitamente


apresentado no texto, mas como estilo textual-imagético.24
Como perspectiva de crítica social, este parler avec
significa a afirmação de um sentido forte de comunicação que
não se identifica, mas ao contrário se opõe, buscando superá-
la, à experiência social reificada do “intercâmbio”, da
“comunicação” que Mallarmé já definia como “em silêncio, uma
moeda na mão do outro”. É esta concepção que afasta
radicalmente Debord das diversas correntes marxistas, pois ele
reconhece a anticomunicação fundada na forma-mercadoria
como presente também nas diversas outras formas de hierarquias
sociais, nas “teorias” separadas da práxis (que deste modo
seriam somente ideologias), na concepção do partido dito
“revolucionário”, no sindicalismo e no Estado.25 É, enfim, um
parler avec que carrega, com radicalidade, um sentido outro de
comunicação que, nomeada metafisicamente de linguagem
comum, reapresenta precisamente nestes termos o projeto

24. O significado teórico-filosófico deste procedimento eu o discuto no último


subcapítulo do capítulo IV deste livro.
25. Debord e os situacionistas entendiam a relação entre crítica prática e
crítica teórica como um mesmo trabalho do negativo. Recusavam, assim,
qualquer teoria separada, por mais coerente que fosse; coerência que
seria, no modo da separação, apenas ideologia revolucionária, “a coerência
do separado da qual o leninismo”, segundo Debord, “constitui o mais alto
esforço voluntarista” (SdS, § 105). “Nós não temos nenhuma necessidade”,
diz ele em outro contexto, referindo-se à própria experiência da I.S., “de
‘pensadores’ enquanto tais, isto é, de pessoas produzindo teorias fora da
vida prática. Na medida em que nossas teorias em formação me parecem
tão justas quanto possível, pelo momento e nas condições que encaramos,
eu admito que todo desenvolvimento teórico que pode se inscrever na
coerência do ‘discurso situacionista’ vem da vida prática, decola desta
legitimamente. Mas isto não é, ainda, em nada suficiente. É necessário
que as fórmulas teóricas retornem à vida prática, senão elas não valem o
esforço de um quarto de hora” (“Rapport de Guy Debord à la VIIe
Conférence de l’I.S. à Paris (extraits)” [1966], em La Véritable Scission
dans l’Internationale. Paris: Fayard, 1998, pp. 132-133). É esta unidade
práxis-teoria, fundada na comunicação e no diálogo práticos, que baseia a
concepção debordiana dos Conselhos Operários, compreendidos como
órgãos de um poder não mais separado e, neste sentido, dissolutores do
Estado e instrumentos de superação da reificação.
148 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

marxiano de uma sociedade sem classes e cuja condição histórica


primeira é a superação do domínio fetichista do valor sobre as
relações sociais cotidianas. Se Marx se referia ao comunismo,
n’O capital, como se constituindo de “relações transparentes e
racionais [dos homens] entre si e com a natureza”, 26 é este
mesmo horizonte que se reapresenta com Debord na formulação
de uma “transparência imediata de uma certa comunicação, do
reconhecimento recíproco, do acordo”. 27 Esta reivindicação
debordiana da transparência não possui qualquer traço
rousseauista, mas sim se refere estritamente às possibilidades
sociais do diálogo e da comunicação nas decisões executórias
acerca da vida comum dos homens numa sociedade liberada do
domínio fetichista das formas-valor. Sem esta última liberação,
nenhum diálogo verdadeiro e potente é possível à escala social;
mas também nenhuma verdadeira superação da economia
autonomizada é p o s s í v e l s e m a p r á x i s c o m u n i c a t i v a
revolucionária e anti-hierárquica. É esta juntura entre práxis
comunicativa e comunismo que fundamentalmente caracteriza
a crítica social de Debord. Para ele, trata-se de opor à sociedade
reificada, desde as lutas sociais cotidianas, a busca por “uma
comunicação direta [...] que possa, assim, transformar o mundo
segundo seu desejo”. 28

26. K. Marx, O capital, I, p. 76.


27. “All the King’s men”, em Internationale Situationniste nº 8, janeiro de
1963, p. 31.
28. Idem, ibidem.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 149

Capítulo IV

Crise e desvio da arte moderna

Não se diga que eu nada disse de novo: a


maneira de dispor a matéria é nova. [...]
Preferiria que me dissessem haver-me eu
utilizado palavras antigas. Assim como
pensamentos iguais, se dispostos de formas
distintas, constituem um corpo de discurso
diferente, p a l a v r a s i g u a i s compõem
pensamentos diversos, segundo o arranjo que
recebam. Arrumadas de maneira diferente, as
palavras ganham um sentido diferente; e os
sentidos, arrumados de maneira diferente,
provocam efeitos diferentes.
Pascal, Pensamentos

Pretendendo analisar a experiência da arte moderna como


uma totalidade, análise esta baseada no mesmo horizonte de
crítica da arte que o dadaísmo e o surrealismo protagonizaram
no entreguerras, Debord elabora uma teoria da constituição da
arte moderna que é, ao mesmo tempo, uma teoria de sua crise.
Em sua reflexão teórica, este movimento único de constituição
e definhamento da arte autônoma tem importância. É com base
nela que Debord articula um significado prospectivo para a
própria experiência histórica pela qual a arte, saída do universo
religioso da tradição e produzindo-se a si própria como
autônoma, portaria já, ela mesma, um sentido para a
autodestruição crítica da linguagem comum, nela ocorrida. É
150 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

precisamente este sentido que, nas condições de expropriação


da comunicação no capitalismo c o n t e m p o r â n e o e d e
esvaziamento ético-existencial dos novos experimentos
estéticos, ele busca compreender e afirmar programaticamente.
O que o conceito de crise da arte lhe permite, portanto, é
a própria concepção deste sentido, só passível de ser elaborado
e, portanto, recebido numa experiência de acabamento, de
transição que aquele mesmo conceito de crise encerra. Sendo
inseparável de sua natureza autônoma, independente, a crise
da arte moderna constitui a situação presente a partir da qual
um sentido histórico da totalidade de sua experiência pode ser
articulado e assumido prospectivamente. É por isso que a
articulação deste sentido histórico prospectivo se ampara
esteticamente no conceito de crise da arte e é dele inseparável.
Na interpretação desta crise, Debord procura justamente, com
fundamento na experiência social e estética presente, liberar
da ambigüidade que julga existir na arte moderna um sentido
que, dela constitutivo, somente se demonstra enquanto tal para
este mesmo presente, concebido como de “decomposição” e,
portanto, de “transição”. Deste modo, para concluir a exposição
sobre a perspectiva comunicativa que Debord elabora
criticamente para a experiência expressiva da arte moderna,
procede-se neste capítulo a uma apresentação e uma discussão
sobre seu conceito de crise da arte.

4.1 O barroco e a invasão da arte pelo histórico


Em A sociedade do espetáculo, a concepção da crise da
arte moderna busca fazer convergir uma consideração histórica
mais ampla sobre a experiência artística, a partir do barroco,
com a atual experiência social do capitalismo contemporâneo,
na qual Debord observa uma expropriação da comunicação. O
primeiro termo desta análise é fundamental à sua perspectiva
quanto à linguagem comunicativa, tal como ele a compreende
baseada na experiência artística, pois lhe permite pensá-la com
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 151

fundamento na invasão da arte pelo tempo histórico, algo que é


fundamental à sua visão da modernidade. Como pretende – por
uma exigência posta por sua afiliação às vanguardas do
entreguerras e por sua perspectiva de superação da “arte
separada” numa nova comunicação social – afirmar uma tendência
autodissolutora da arte moderna, inseparável de sua afirmação
como arte autônoma, Debord busca encontrar o princípio desta
dissolução na entrada da história no domínio especificamente
estético. É aí que ganha importância a experiência do barroco
que, segundo ele, expressaria a emergência da sociedade
histórica, pela sua ruptura com o mundo mítico-religioso, “na
própria esfera da arte”.
“O barroco”, diz Debord, “é a arte de um mundo que
perdeu seu centro” (SdS, § 189). Esta perda do seu “centro”
pelo mundo, Debord a apresenta já antes, no capítulo V de A
sociedade do espetáculo , também como uma “invasão” da
sociedade pelo “tempo irreversível”, quando da queda da ordem
mítico-religiosa da Idade Média. Este processo, diz ele neste
momento, “é ressentido, pela consciência presa à antiga ordem,
sob a forma de uma obsessão de morte. É a melancolia da
dissolução de um mundo, o último em que a segurança do mito
equilibrava ainda a história; e para esta melancolia toda coisa
terrestre se encaminha unicamente para a corrupção” (SdS, §
138). Em contraste com esta melancolia própria ao fim de um
determinado mundo de sentido, o barroco ter-se-ia constituído
em “arte da mudança”. Assumindo positivamente a perda da
“segurança do mito”, o barroco traz “em si o princípio efêmero
que ele descobre no mundo” (SdS, § 189). Citando Eugenio d’Ors,
Debord diz ainda que o barroco escolheu “a vida contra a
eternidade”.
O livro de d’Ors, com o qual Debord dialoga nestas
passagens de A sociedade do espetáculo, é uma das últimas
grandes obras acadêmicas que, nas primeiras décadas do século
passado, retomaram a discussão sobre o barroco. Sua tese
central é a de que o barroco não é um gênero específico na
152 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

história da arte, limitada à arquitetura e aos séculos 17 e 18,


mas sim um eon, uma “forma” ou “idéia” permanente e trans-
histórica da arte, cujo princípio é a mobilização daquilo que, sob
a civilização e a c u l t u r a , f u n d a n d o - a e ameaçando-a
constantemente, se pode nomear de “barbárie”. O princípio do
barroco seria o que Goethe chamou de Ewig-weibliche, o “eterno
feminino”, ou ainda, a contradição, o a favor e o contra; seria
Osíris, “quando Osíris era apenas uma palavra genérica para
designar ‘a morte’”. 1 Situado nesta instância metafísica, trans-
histórica, o eon do barroco tem, contudo, seu desenvolvimento
inscrito no tempo; nele, “o permanente tem uma história, a
eternidade conhece vicissitudes”. 2 Como eon, o barroco se opõe
permanentemente ao classicismo , que seria para d’Ors –
reproduzindo um pouco a oposição nietzschena entre o dionisíaco
e o apolíneo, ou a freudiana entre Eros e Thânatos – o princípio
da civilização, da cultura, da ordem. O que é importante nesta
concepção do barroco como um eon oposto ao classicismo, que
tampouco seria uma fase da história da arte, é que, com base
nela, d’Ors vê o princípio barroco se manifestar ainda uma vez
na arte moderna. É precisamente o conceito de eon – com o
qual, numa postura muito próxima da que foi também a de
Benjamin, ele se opõe ao método histórico-evolucionista de
Wölfflin3 – que lhe permite distanciar fenômenos artísticos de
uma mesma época e aproximar outros, temporalmente distantes,
e, assim, reconhecer uma “analogia entre alguns exemplos de
bizarria na literatura do passado e os gostos da arte de vanguarda
e, em geral, da produção ultramoderna”. 4

1 . E. d’Ors, Du baroque [1935]. Paris: Gallimard, 2000, p. 30.


2 . Idem, pp. 73-74.
3 . “[...] a afirmação de que o Barroco é um eon (categoria intemporal que se
desenvolve no tempo) [...] parece corresponder de muito perto à concepção
de Benjamin de que o drama barroco é uma idéia, cuja atualização se dá na
história” (S. P. Rouanet, “Apresentação” a W. Benjamin, Origem do drama
barroco alemão. Tr. br. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 26,
n. 9).
4 . E. d’Ors, Du baroque, p. 80.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 153

Em Debord, o que se preserva de d’Ors é a concepção de


uma fundamental continuidade histórica entre o barroco,
compreendido sob o princípio dissolutivo das formas, expressão
m e s m a d e s e u elemento “bárbaro”, “carnavalesco”,
“desordenado”, e a experiência da arte moderna, na qual se
encontra um processo constante de dissolução formal, até mesmo
através de transições e conexões dos diversos gêneros entre
si. Voltando a situar historicamente o barroco no início da era
moderna, Debord não o toma como um eon trans-histórico, tal
como o faz d’Ors, mas mantém da sua postura antievolucionista
a concepção de permanência, historicamente determinada, de
uma tendência barroca na totalidade da experiência artística
moderna. Para isso, contudo, pensa a experiência barroca e o
princípio que dele permanece na experiência artística que o
segue – algo ausente no texto de d’Ors – como constituídos no
e pelo movimento histórico de emergência do mundo moderno.
É verdade que d’Ors recorre à discussão sobre a
importância do luteranismo e da contra-reforma na constituição
do espírito barroco moderno e, deste modo, considera-o em
sua especificidade histórica. Mas, neste recurso, o que ele busca
é identificar a manifestação do próprio princípio supratemporal
do barroco no que diz respeito ao seu compromisso com a
“natureza”: “A natureza é vida, é atividade, mudança, fluência.
A natureza traz em si o movimento, é, ela mesma, movimento”. 5
Com o franciscanismo e o luteranismo, o barroco histórico teria
adotado, segundo d’Ors, uma postura de “reconciliação” com a
natureza, de “absolvição” dela. É precisamente nesta mesma
linha de “reconciliação” e “abolvição” da “natureza”, enquanto
assunção do seu princípio autocontraditório, de deperecimento
e morte, que se encontrariam o romantismo do século 19, a
pintura impressionista (por seu “panteísmo metodológico”), todo
o espírito epocal do primeiro pós-guerra de relativização dos
valores, da verdade etc. Como eon trans-histórico, o barroco

5 . Idem, p. 103.
154 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

não deixa de se associar precisamente a esta experiência


moderna tão própria aos séculos 19 e 20, pois, segundo d’Ors,
“o espírito que o dirige é um espírito em estado de ruptura
interior, um espírito partido que encerra uma oposição [...] [um]
espírito [que] imita os procedimentos da natureza [...] a
dualidade, a multiplicidade de intenções coexistentes, a ruptura
interior do espírito traduzida pelo antagonismo das formas [...]”. 6
Apesar de seu recurso à experiência histórica do início
da era moderna (luteranismo e contra-reforma) e de seu olhar
para a experiência presente nas primeiras décadas do século
20 (arte moderna e espírito pós-guerra), entre as quais enxerga
a continuidade do mesmo eon barroco, d’Ors não faz delas uma
análise histórica concreta, não as situa num mesmo e contínuo
processo de ruptura com um determinado mundo histórico de
sentido, ruptura a partir do qual a própria cultura moderna emerge
consubstanciada pelo “princípio” permanente de “inovação”. Ao
contrário, para Debord, o “espírito” barroco de que fala d’Ors
nada mais é do que expressão, que lhe é, todavia, essencial,
desta experiência moderna de perda da “segurança do mito”,
própria à “invasão” do tempo histórico e irreversível tanto na
experiência social quanto na artística; expressão
permanentemente ínsita, não a qualquer momento da civilização,
mas à cultura moderna mesma como um todo, da qual a luta
entre a “tradição”, constantemente resposta, e a “inovação”
constitui o próprio movimento interno, pois é uma determinação
essencial de tudo o que é “histórico”.
Neste sentido, a conclusão que Debord tira da análise de
d’Ors, determinando-a historicamente, está mais próxima
daquela de Benjamin, quando este descobre “conexões”
(Zusammenhänge) e “analogias” (Analogien) entre o barroco
alemão do século 17 e a literatura expressionista alemã do início
do século 20: ambos “não se desenvolvem a partir de uma

6 . Idem, p. 111.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 155

existência comunitária [Gemeinschaftsdasein]”, sendo esta


última experiência literária antecedida precisamente pelo
“colapso da cultura classicista alemã” (deustche klassizistische
Kultur).7 Como Debord, Benjamin concebe como o “núcleo”, o
“teor” e o “objeto mais autêntico” do barroco “a própria vida
histórica [geschichtliches Leben] como aquela época se a
apresentava”. 8 Esta “vida histórica”, tal como concebida pelo
barroco alemão, rompe precisamente com a representação
estética do “mito”, da “época pré-histórica”, do “passado
imemorial”, que eram a base da tragédia grega; e rompe porque,
voltado para os “acontecimentos atuais”, “aderindo ao mundo”
e à sensação de que ele marcha para a “catástrofe”, o barroco
“junta e exalta tudo o que é terreno, antes que ele se entregue
à consumação”. 9 Se o barroco é, como Debord assinala, a
contraface daquela consciência epocal para a qual “tudo se
encaminha para a corrupção” (ou para a “catástrofe”, no dizer
de Benjamin), é porque, precisamente como diz este último, o
barroco afirma positivamente a “tensão entre o mundo e a
transcendência”; rejeitando todo “emanatismo”, ele se assegura
na “imanência” terrena e histórica.
O que está no centro da concepção de mundo do barroco
é, para Benjamin, justamente a assunção do “acontecimento
histórico instável, precário” (schwankendes historisches
Geschehen), o reconhecimento da “manifestação da história”
(Offenbarung der Geschichte) e a consciência de que compõem
o destino de todas as criaturas a morte, o sofrimento, o
deperecimento. Por isto mesmo, na doutrina de soberania política
que lhe era essencial como concepção de mundo, impunha-se a
busca puramente mundana e imanente de constituição de uma

7 . W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão, p. 77, tr. levemente mod.;


Ursprung des deutchen Trauerspiels.Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,
1978, p. 37.
8 . Idem, p. 86; ed. alemã, p. 44.
9 . Idem, p. 90; ed. alemã, p. 48.
156 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

“instância que coíbe as suas [da história] vicissitudes”. 1 0


Encontra-se aí, conforme Benjamin, uma experiência histórico-
espiritual mais ampla, aquela da saída da civilização européia
da Idade Média cristã, cuja concepção de mundo é marcada pela
“história da redenção”, para uma outra, assentada na “história
empírica”. “Onde a Idade Média expõe a fragilidade, a
instabilidade dos acontecimentos do mundo e a fugacidade, a
perecibilidade da criatura como estações do caminho sagrado”,
diz ele, “o drama barroco alemão enfronha-se inteiramente no
desconsolo da condição terrena, mortal. [...] A renúncia à
escatologia do [anterior] teatro religioso [espiritual, geistlich]
distingue o novo drama na Europa inteira”. 11
Em sua análise, Debord não leva em conta a nova teoria
da soberania elaborada no século 17, como o faz Benjamin, mas,
como este, tem também em vista, na concepção de mundo do
barroco, a dupla face de um olhar para o mundo que o vê numa
dinâmica perecedoura e que, aí mesmo, busca inscrever uma
instância de estabilidade sabida como essencialmente instável.
A centralidade da “paisagem” no barroco, gênero de

10. Idem, pp. 94 e 97; ed. alemã, pp. 52 e 55.


11. Idem, p. 104, tr. lev. mod.; ed. alemã, p. 62. É uma das teses centrais de
Benjamin acerca do drama barroco do século 17 a afirmação de que, neste,
há a manifestação de uma concepção histórica do mundo. Consubstanciar-
se pela vida histórica é o que dá ao barroco sua característica “imanente”
e “mundana”. Tratar-se-ia, contudo, de uma concepção em que a existência
histórica equipara-se à existência natural, o acontecimento histórico ao
acontecimento natural, pois a concepção histórica do barroco basear-se-
ia na “condição humana”, na “fragilidade da criatura” situada numa natureza
desprovida de Graça, donde justamente a representação da efemeridade
de todas as coisas do mundo na idéia barroca da catástrofe. Em outras
palavras, a vida histórica é concebida pelo barroco alemão do século 17
com base na mortalidade e na fragilidade corpórea da criatura, em sua
condição natural. Por isto mesmo, Benjamin vê aí uma concepção de história
baseada na história natural. É a figura do príncipe, precisamente porque
ele expressa a efêmera condição humana e o esforço humano contra a
efemeridade do mundo humano, o que melhor manifestaria uma concepção
histórica baseada na condição natural do homem. O monarca, “primeiro
expoente da história”, é aquele que, como qualquer homem, não escapa à
morte e, contudo, deve manter o mundo humano a salvo da catástrofe: ele
expressa a história, pensada como natureza, e, ao mesmo tempo, a
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 157

representação que remete sempre à natureza, expressa aquela


absolvição, aquela assunção positiva da mudança, do movimento,
da fluência naturais, de que fala d’Ors. Mas é precisamente a
própria paisagem barroca que, na análise de Debord, se expressa
como um “centro de unificação” que é “a passagem que está
inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica do
todo” (SdS, § 189). Como passagem, a paisagem barroca busca
unificar, fragilmente equilibrar o que é vivido e concebido como
dinâmico, fluido, perecível. O barroco teria sido uma “festa
teatral” constituída como paisagem e passagem em “décor de
um lugar construído”, no qual a descoberta da passagem
irreversível do tempo, despossuído da anterior segurança mítico-
religiosa, é figurada e festejada. E, assim, articulada ludicamente
com sentido.
Na concepção de Debord, a festa teatral barroca seria
como o “trabalho de luto” de que nos fala Freud, um trabalho de
luto histórico pelo qual toda melancolia é evitada e a sensação
de morte e deperecimento é transformada em princípio de vida,
“contra a eternidade”. 12 Ao contrário do milenarismo camponês,
preso à melancolia, em virtude de uma concepção de mundo
que pensa a vida presente em função de uma restauração
qualquer (a “realização terrena do paraíso”), o barroco
aristocrático do século 17 responde positivamente, no seu
trabalho de luto, à emergência do tempo histórico e,
diferentemente daquele, expressa a consciência de se saber

necessidade de coibi-la. Esta visão benjaminiana do barroco – justamente


na medida em que o barroco alemão do século 17 pertence ao nascimento
da modernidade – diz respeito a uma ambigüidade e a uma contradição
central à modernidade capitalista: a de que nela a vida histórica está
aprisionada pelas “forças naturais”, “míticas” do capital (cf. meu já referido
artigo, “Imagem onírica e imagem dialética em Walter Benjamin”). É
evidente a aproximação desta concepção benjaminiana da modernidade
daquela desenvolvida por Debord em A sociedade do espetáculo, tal como
a expus no primeiro capítulo.
12. A expressão alemã Trauerspiel (Trauer, “luto”, Spiel, “jogo, brincadeira,
representação teatral”) guarda bem este sentido do barroco que Benjamin,
também ele, manteve e desenvolveu em sua análise.
158 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

histórico.13 A arte do barroco expressa, pois, a experiência


moderna do tempo histórico, irreversível, a experiência temporal
assinalada pela “destruição de Deus” (destruction de Dieu, SdS,
§ 182), pela qual precisamente a moderna cultura separada
emerge, tendo em seu âmago a história. Por causa disso, o eon
barroco, princípio de mudança e efemeridade, mas determinado
historicamente nos termos acima assinalados, por-se-ia, para
Debord, como o próprio princípio da cultura e da arte modernas.
“Do romantismo ao cubismo”, diz ele, “é finalmente uma arte
sempre mais individualizada da negação, se renovando
perpetuamente até o despedaçamento e a negação acabados da
esfera artística, que seguiu o curso geral do barroco” (SdS, §
189).
A experiência do barroco, marcada pelo mundano e
histórico e, por isso mesmo, constituída em eon da totalidade
da experiência artística moderna, é mais decisiva para a análise
debordiana da cultura e da arte modernas do que aquela do
“classicismo”, compreendido por Debord numa grande
proximidade do eon de d’Ors e ao qual se ligam, segundo diz,
“construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”.
O “classicismo artístico” – seja aquele do início do século 19,
oposto ao romantismo, seja a exigência realista em oposição
aos experimentos dissolutores das formas nas vanguardas e na
arte moderna – é, em sua natureza normativa, vista por Debord
como expressões de uma mesma tendência de aprisionamento
do princípio histórico celebrado pelo barroco e por toda a arte
moderna que, através do romantismo, lhe dá prosseguimento. A
arte moderna, ao contrário de todas as tentativas “classicistas”,
se caracteriza essencialmente por esta tendência “barroca” de
afirmação da história, enquanto existência vivida e concebida
como precária, transitória, passageira, vivência e concepção que

13. O milenarismo camponês é, para Debord, uma “luta de classe revolucionária


falando pela última vez a língua da religião, que é já uma tendência
revolucionária moderna à qual falta ainda a consciência de somente ser
histórica” (SdS, § 138).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 159

se manifestam até mesmo em suas experiências de


autodestruição formal.
Nas condições do capitalismo contemporâneo, seriam
ainda estes dois princípios – “classicista”, um, “barroco”, outro
– que mais uma vez se defrontariam, no interior da própria
experiência artística, mas numa situação em que esta teria
chegado a um certo limite, a uma certa zona de acabamento e
transição. Vista através do antagonismo entre o “classicismo”,
reposto na manutenção artificial da arte e da cultura separada,
e o “barroco”, presente na tendência de superação de ambas, a
experiência de crise da arte moderna é pensada por Debord
numa contraposição entre aquela situação histórica de
constituição da arte barroca, compreendida como eon d a s
tendências determinantes da arte moderna, e a atual situação
histórica do capitalismo espetacular. O barroco artístico foi um
“arte histórica que estava ligada à comunicação interna de uma
elite, que tinha sua base social semi-independente nas condições
parcialmente lúdicas ainda vividas pelos últimos aristocratas”
(SdS, § 189). Ao contrário, o capitalismo contemporâneo é aquele
em que “nenhuma comunicação artística não pode mais existir”,
pois é marcado pela “perda presente das condições de
comunicação em geral” (idem).
É precisamente com base nesta linha de continuidade e
antagonismo entre estes dois momentos histórico-sociais da
experiência artística social que Debord reconhece, no capitalismo
contemporâneo, a atualidade acabada da tendência da arte
moderna à autodissolução. Partindo da experiência histórica do
barroco, ele articula uma teoria da crise da arte moderna com
fundamento em um processo – verificado também no interior da
própria esfera da arte – no qual se encontra a emergência do
tempo histórico na sociedade e se constitui a moderna cultura
separada. Neste mesmo processo, concebe uma linha de
continuidade do barroco, através do romantismo, nas
experiências artísticas posteriores, indo até as de vanguarda.
Por fim, situa historicamente esta crise na presente experiência
160 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

social do capitalismo contemporâneo, no qual se dissolveram


aquelas condições de comunicação artística vivenciada pela
aristocracia no barroco, pois se encontram agora dissolvidas as
condições da comunicação em geral. Entre a comunicação
artística vivida pela arte histórica do barroco e a atual dissolução
da comunicação, tanto artística quanto social, é que se localiza
a experiência da arte moderna em sua posição afirmativa da
dissolução da antiga “linguagem comum”.
Nesta formulação, Debord apresenta apenas as linhas-
força do processo histórico de emergência da arte autônoma,
sua crítica nas experiências de vanguarda e, tendo como pano
de fundo a presente experiência social, um sentido histórico
para este processo de dissolução da arte, precisamente, o de
que “uma nova linguagem comum deve ser reencontrada”. Por
mais questionável, pois abstrata, que seja a validade desta teoria
da crise da arte, tal como articulada por Debord, ela tem, contudo,
dois momentos fortes: o primeiro, a articulação entre a
experiência social da linguagem e a experiência artística ( o
barroco, a arte moderna e as vanguardas); o segundo, a
concepção de um sentido histórico para a destruição crítica, na
e pela arte moderna, da antiga “linguagem comum”, sentido
este concebido a partir de uma certa compreensão de crise da
arte moderna nas condições do capitalismo contemporâneo,
marcadamente anticomunicativo. Esta concepção exposta em A
sociedade do espetáculo se apóia, contudo, em análises sobre a
experiência artística do pós-guerra que, ausentes na exposição
concisa do livro, foram desenvolvidas, durante os anos que o
antecederam, na revista Internationale Situationnniste. Em tais
análises, a crise da arte moderna é, em conexão com a própria
experiência social do capitalismo tardio pensada com base na
crise da expressão, compreendida como categoria fundamental
da arte moderna presente na “autodestruição crítica” da
linguagem, por ela protagonizada.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 161

4.2 A crise da expressão, enquanto crise da arte moderna


Na dis solução dos meios artísticos tradicionais pelo
modernismo, Debord encontra expressos tanto um radical
questionamento da cultura burguesa quanto o desenvolvimento
das forças produtivas da sociedade moderna, base histórica mais
ampla desse questionamento. A relação entre o desenvolvimento
das forças produtivas e a emergência da arte moderna –
considerando que os “sintomas modernos da arte” são,
precisamente, a aparição de “certas obras destrutivas”,
mormente nos anos 20 e 3014 – oferece uma determinação
histórica mais concreta à sua discussão sobre a destruição da
antiga linguagem comum e, por isso mesmo, uma maior
aproximação das experiências sociais e artísticas que lhe são
contemporâneas.
O caráter objetivamente “destrutivo” do desenvolvimento
das forças produtivas modernas também já tinha sido observado
por Benjamin, no que diz respeito à Erfahrung comunicável, que
constituía o conteúdo material da narrativa tradicional; e também
à própria arte já liberada da tradição: no século 19, esse
desenvolvimento na arquitetura e nas técnicas de construção
civil “emancipou, da arte, as formas figurativas” (hat [...] die
Gestaltungsformen von der Kunst emanzipiert);15 no século 20,
a emergência da informação “leva o romance a uma crise” (den
[Roman] einer Krise zuführt ). 16 Neste mesmo horizonte
materialista de reflexão e numa mesma perspectiva da crítica
d a s vanguardas à “arte”, Debord considera que o
desenvolvimento das forças produtivas configura historicamente
a pergunta pelo seu uso social, sendo precisamente esta a

14. “Avec et contre le cinéma”, em Internationale Situationniste nº 1, p. 8.


15. W. Benjamin, “Paris, Capitale du XIXe Siècle (Exposé de 1935)”, em Capitale
du XIXe. Siècle. Le livre des passages, p. 46; “Paris, die Hauptstadt des
XIX. Jahrhunderts”, Passagen-Werk, p. 59.
16. W. Benjamin, O narrador. Tr. br. S. P. Rouanet. Obras escolhidas, t. I, ed.
cit., p. 202; Der Erzähler, Gesammelte Schriften, B. II/1. Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag, 1991, p. 444.
162 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

pergunta que a arte moderna tematizou tanto em sua dimensão


performativa (estilos, técnicas, enfim, na destruição da linguagem
e das formas) quanto no conteúdo socialmente crítico de seus
temas. O próprio desenvolvimento da arte moderna, colocando
o problema do “sentido da vida” (sens de la vie), se fez
radicalmente contemporâneo da experiência histórica e social
mais ampla, fundada no desenvolvimento das forças produtivas
no capitalismo, pois “a questão do uso da vida é efetivamente
posta na margem da liberdade já atingida e, crescentemente, de
nossa apropriação da natureza”. 17 Ao tematizar o sentido da
vida, a arte moderna, em seus momentos mais ricos, teria sido
“a reivindicação de outros ofícios”. Em outras palavras, a arte
moderna tanto articula de modo consciente uma questão social
que, segundo Debord, se funda no desenvolvimento das forças
produtivas, quanto inscreve, precisamente deste modo, a
perspectiva de uma ultrapassagem da forma artística separada,
perspectiva que se constitui num princípio ético-estético das
experiências dissolutoras das formas que caracterizam todo o
modernismo.
Do ponto de vista formal, isto se teria realizado através
da representação poética, que é própria à arte moderna, da
experiência temporal no capitalismo: o “esmigalhamento”, o
“despedaçamento do tempo” (l’émiettement du temps) que, como
observa Debord, “adveio [...] da narrativa romanesca, com
Proust e Joyce”. 18 A centração temática na memória, quebrando
a unidade imediata do tempo, despedaçando-o, esmigalhando-
o, constitui-se no próprio fundamento das transformações
técnico-estilísticas altamente destrutivas que a Recherche e o
Ulysses introduziram na escrita e na narrativa do século 20.
Nestas experiências, tema e forma compõem inseparavelmente
uma dissolução formal do romance que, segundo Debord, se

17. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 4.


18. “Le cinéma après Alain Resnais”, Internationale Situationniste nº 3, p. 8.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 163

anuncia precisamente ali. Deste modo, esses autores teriam


realizado na escrita “o movimento de autodestruição que domina
toda a arte moderna”. Por que? Porque, explicaria Debord, “a
memória é forçosamente o tema significativo da aparição da
fase de crítica interna de uma arte, de seu questionamento, sua
contestação dissolvente [...] [pois] a questão do sentido da
memória está sempre ligada à questão do sentido de uma
permanência transmitida pela arte”. 1 9
Em outras palavras, Proust e Joyce teriam expressado o
significado do desenvolvimento social das forças produtivas no
interior da própria arte ao introduzir, na escrita, elementos
técnico-estilísticos destrutivos da forma romanesca, apontando
a tendência mais geral da arte moderna à dissolução e à transição
das formas; e o teriam ao se centrarem tematicamente na questão
fundamental da experiência do tempo, essencialmente histórica,
moderna: a memória. É esta experiência moderna do tempo,
com tudo o que ela traz consigo de destrutivo, que determina a
centralidade temática da memória, inseparável e reafirmadora
desta mesma experiência de dissolução; e reafirmadora
justamente porque, testemunha do processo dissolutor-
destrutivo da modernidade, busca não um qualquer resgate de
algo findado, mas sim construir um significado para este mesmo
definhamento. Em outras palavras, a centralidade da memória,
na escrita moderna, tem como pressuposto justamente a
dissolução do que lembra. Neste sentido, a escrita moderna, ao
centrar-se tematicamente na memória, traz consigo os elementos
dissolutores-destrutivos dos quais é testemunha, apresentando-
os nos próprios elementos estilísticos-formais como experiência
da destruição das formas.
Na Teoria do romance, o jovem Lukács já expunha a
importância da passagem do tempo para a literatura moderna,
apresentando-a fundada na “discrepância entre a realidade e a

19. Idem, p. 9.
164 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

idéia”: “[S]ó o romance, a forma do desterro transcendental da


idéia, assimila o tempo real, a durée de Bergson, à fileira de
seus princípios constitutivos”. 20 E o faz porque, ao contrário da
epopéia e das formas do drama, nas quais o tempo nada modifica
do destino ou do caráter do herói, a agora ausência de sentido
experimentada socialmente (e que, como busca de sentido, ganha
forma no romance) se manifesta também, e essencialmente, na
experiência do “decurso contínuo e indolente do tempo”. Este
decurso se apresenta, ele mesmo, como alheamento à e da
subjetividade e, contudo, como condição para a – e lugar da –
busca de sentido que caracteriza o romance; por isso mesmo, o
tempo se apresenta não apenas como matéria do esforço ético
da escrita romanesca, mas também como constitutivo da própria
forma. “No romance, separam-se sentido e vida e, portanto,
[o] essencial e [o] temporal”, diz Lukács; “quase se pode dizer
que toda a ação interna do romance não passa de uma luta contra
o tempo”. 21
Tirando conclusões diferentes daquelas com as quais
Lukács termina a Teoria do romance, Debord também concebe
como central, à escrita moderna, a figuração da passagem do
tempo. Para ele, a representação inseparavelmente temática e
formal da experiência do tempo constituiria precisamente o
problema-limite da arte moderna quanto ao “sentido de uma
permanência transmitida”. O significado desta enigmática
proposição pode ser aproximativamente esclarecido na
discussão, que encontramos em A sociedade do espetáculo, sobre
a expressão artística que “fala para outros o que foi vivido sem
diálogo real”, que representa, justamente deste modo, um “jogo
com o tempo”. Expressando uma concepção dialética da
caducidade temporal das coisas, própria ao tempo histórico da
sociedade moderna em sua radical distinção do tempo cíclico
das sociedades pré-capitalistas, Debord considera que a

20. G. Lukács, Teoria do romance, p. 127.


21. Idem, p. 129.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 165

produção artística moderna é sempre a expressão “[de] um


momento da vida [que] envelheceu e [que] não se deixa
rejuvenecer com cores resplandescentes, [que] se deixa evocar
unicamente na lembrança [em que] a grandeza da arte apenas
começa a aparecer no ocaso/na reconsideração [à la retombée]
da vida” (SdS, § 188). Que a arte moderna demonstre sua
grandeza, segundo estas palavras de Debord, somente como
ocaso e reconsideração da vida, tal é o modo sob o qual ela se
constitui formal e tematicamente numa denúncia da “insuficiência
da vida” presente; e se constitui nisso porque – como memória,
lembrança e expressão, “falando a outros o que foi vivido sem
comunidade”, “evocando na lembrança um momento envelhecido
da vida” – a arte moderna suscita o problema, que é um e o
mesmo, da experiência do tempo e da comunicação.
Este aspecto formal, que traz em si seu próprio conteúdo
social, é inseparável da representação do “despedaçamento do
tempo” pela qual a arte moderna introduz como tema o próprio
princípio histórico da cultura moderna (a passagem irreversível
do tempo, a caducidade de todas as coisas) e, deste modo,
expressa o princípio que a funda e que a liga à vida social. A
Recherche e o Ulysses manifestariam esta experiência
fundamental da arte moderna de consciência da passagem
irreversível do tempo ao tematizar a memória (com todas as
repercusões desta matéria temática nos aspectos técnico-
estilísticos, formais) e, por conseguinte, ao realizar este princípio
histórico-dissolutor na própria dissolução-transição da forma;
princípio este constituído, no âmbito da própria arte, pelo
desenvolvimento das forças produtivas modernas.
Em “Le sens du dépérissement de l’art”, Debord toma em
consideração essas condições sociais do surgimento da arte
moderna, bem como a elaboração de um seu significado histórico,
com vistas menos na tematização retrospectiva da experiência
modernista do que na reflexão sobre a experiência estética que
lhe é contemporânea. “A libertação das formas artísticas
166 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

significou em todo lugar sua redução a nada”, 22 ele constata


com relação às experiências estéticas dos anos 50-60.
Recusando qualquer solidariedade aos “críticos reacionários”
da arte moderna e ao “seu sonho de um retorno às belas maneiras
do passado”, Debord busca discutir neste texto principalmente
a situação do que julga ser um “naufrágio da expressão como
esfera autônoma, como objetivo absoluto”, tendo como pano de
fundo, nas condições materiais de existência do capitalismo
avançado, “a lenta aparição de outras dimensões da atividade”.
Em outras palavras, Debord busca pensar justamente a crise da
própria arte moderna, crise que, condicionada pelo mesmo
desenvolvimento das forças produtivas que provocaram seu
surgimento, que ela assumiu performática e tematicamente na
destruição da linguagem tradicional, das formas artísticas e na
aspiração a uma nova experiência vital, se manifesta agora na
própria categoria que mais fundamentalmente a constitui: a
expressão. Desde Baudelaire, de Mallarmé ao surrealismo, a
expressão poética – testemunhando nisso as condições sociais
que “concernem a todos os outros meios de expressões
artísticas” – teria manifestado, segundo Debord, “a sensação
profunda da vida e as contradições dos homens avançados de
seu tempo”. “Essa sensação e essas contradições”, diz ele,
“foram já expressas por toda a arte moderna – e justamente até
à destruição da própria expressão”.23
Na análise de Debord, esta destruição da expressão
aperece constituída por duas determinações. Em primeiro lugar,
pelas possibilidades outras de atividade sociais que, tematizadas
na arte moderna, são constituídas pelo desenvolvimento das
forças produtivas, o qual determina nas condições do capitalismo
contemporâneo, no interior da própria arte, a crise da expressão
artística. Em segundo lugar, pela ausência, nas “neovanguardas”,
adjetivadas ironicamente de “neodadaístas”, do sentido crítico

22. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 3.


23. Idem, p. 6.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 167

que a expressão refratária à pseudocomunicação teria portado


na arte moderna. No que diz respeito a esta segunda
determinação, a avaliação de que a categoria estética da
expressão está em crise, dando acabamento a uma tendência
imanente à sua própria constituição histórica na poesia moderna,
é menos um fato a ser “objetivamente” demonstrado do que a
manifestação de uma posição – até mesmo valorativa, mas jamais
“normativa” – diante da experiência estética do capitalismo do
segundo pós-guerra. Mas trata-se de uma valoração que se
ampara precisamente numa anterior concepção histórica da arte
moderna como um todo, cujo conteúdo crítico Debord opõe ao
“neodadaísmo” contemporâneo. Este “neodadaísmo”, ele o
verifica não apenas nos diversos pequenos grupos de
“neovanguarda”, mas também na “alta cultura”, na qual a
persistência de uma linguagem não-comunicativa – com Samuel
Becket, Eugène Ionesco, John Cage, Alain Robbe-Grillet – seria
admitida, consentida e até mesmo requerida pelo próprio sistema.
Repetindo sem cessar o gesto profundamente crítico e
historicamente fundado de destruição da linguagem pelo
dadaísmo, pelo surrealismo e por toda a arte moderna, porém
sem o sentido histórico e crítico destes, as experiências
“neodadaístas” afirmariam, segundo Debord, o “nada” (néant) e
o “vazio” (vide).24
A natureza acrítica e apologética dessas novas
experiências modernistas é explicitada de diversos modos. O
principal deles é a constatação de que a feição negativa ,
destrutiva e até mesmo experimental do gesto dadaísta é
reconvertida positivamente num novo cânone estético. O
“neodadaísmo”, diz Debord, “redescobre a importância do
movimento Dadá como uma positividade formal ainda a
explorar”. 25 Os “dadaístas ressuscitados” “exploram com a

24. “L’absence et ses habilleurs”, em Internationale Situationniste nº 2, p. 6.


25. “Communication prioritaire”, em Internationale Situationniste nº 7, abril
de 1962, p. 22.
168 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

parcimônia de pequenos rentistas a rejeição da literatura, a


própria destruição da escrita, [que] foi a primeira tendência
dos vinte ou trinta anos de pesquisa de vanguarda na Europa”. 26
Noutro passo, Debord amplia suas considerações críticas sobre
o “neodadaísmo”, opondo-lhe não apenas o dadaísmo do
entreguerras, mas o conjunto do que denomina “movimento da
arte moderna”, que “exprimia e combatia a incomunicação que
se estabeleceu efetivamente em todo lugar na sociedade”. 27
O problema da positivadora reconversão estética, pelo
“neodadaísmo” tardio, da crítica negativa das formas pelo
dadaísmo histórico é que, para Debord, a “anticomunicação
emprestada ao dadaísmo” não porta mais qualquer traço crítico,
negativo, pois ocorre justo numa época em que o próprio
capitalismo se demonstra completamente anticomunicativo e na
qual, por isto mesmo, “a urgência é de criar, no nível mais simples
como no mais complexo da prática, uma nova comunicação”. 28
Esta afirmação da necessidade de uma nova comunicação é
fundamental à sua crítica das “neovanguradas”, pois é o próprio
horizonte de toda a sua valoração negativa delas, inseparável
da valoração positiva da arte moderna e das vanguardas do
entreguerras. E o é porque a temática da comunicação se
constitui no próprio centro de sua reflexão não apenas estética,
mas social. Ao contrário de determinadas correntes da sociologia
francesa do período, que tratava a “questão da comunicação”
c e n t r a l m e n t e c o m o c o n c e r n e n t e a o s mass-media e à
“informação”, Debord a compreende – o que se demonstraria
precisamente pelos próprios meios massivos de informação –
como uma relação social , uma relação “de mão única, os

26. “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 14. Note-se: eles não


“exploram” (explorent), como numa pesquisa estética, científica ou numa
viagem a um país desconhecido, mas “exploram” (exploitent), como os
capitalistas aos proletários, um mineiro a uma mina ou um rentista ao seu
capital de crédito.
27. “L’absence et ses habilleurs (suite)”, em Internationale Situationniste nº
9, agosto de 1964, p. 9.
28. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 23.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 169

consumidores de comunicação não tendo nada a responder”. 29


Entendidos nestes termos, a informação e os masss media apenas
compõem e reproduzem uma divisão hierárquica mais geral,
radicalmente anticomunicativa e essencialmente constitutiva do
capitalismo moderno, entre dirigentes e dirigidos, “entre
organizadores e consumidores do tempo da sociedade industrial
(o qual integra e dá forma ao conjunto do trabalho e dos
lazeres)”. 30 Neste contexto, a informação, à qual foi reduzida a
comunicação social, não deve ser entendida numa dependência
estrita aos mass media, mas sim como parte integrante do
completo sistema da passividade e da não-comunicação
mercantil.
“A expropriação sistemática da comunicação
intersubjetiva, a colonização da vida cotidiana por uma mediação
autoritária”, escreve Debord em outra situação, “não é um
produto necessário do desenvolvimento técnico. É, ao contrário,
esta autonomização da potência social que necessita que toda
técnica possível seja dobrada a seus fins particulares de auto-
regulação do existente”. 31 Neste mesmo texto, ele explica a
referida autonomização da potência social pelo desenvolvimento
das relações mercantis: “o que se chama vagamente ‘crise da
comunicação’ na sociedade, e que é ao mesmo tempo a
concentração monopolizada da comunicação unilateral (da qual
os mass media são apenas uma expressão técnica) e a dissolução
de todos os valores comuns e comunicáveis [...] é produzida
pela vitória da aniquilação que, no terreno da economia, o valor
de troca alcançou sobre o valor de uso”. 32 Em A sociedade do
espetáculo, esta reflexão é retomada: a natureza espetacular
do capitalismo avançado não se constitui de seus meios técnicos,
m a s , a o c o n t r á r i o , o e s p e t á c u l o d á f o r m a social ao

29. Idem, p. 20.


30. Idem, p. 23.
31. “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 56.
32. Idem, p. 59.
170 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

desenvolvimento técnico da sociedade moderna. Os chamados


meios de comunicação são apenas a “manifestação superficial”
do espetáculo. São a “instrumentação” que mais propriamente
lhe convém, que se lhe impõe como mediação social, como meio
de administração e forma de contato entre os homens, apenas
porque a experiência comunicativa viabilizada por eles é, como
ocorre no conjunto da sociedade, “essencialmente unilateral”
(SdS, § 24).
Compreendendo deste modo a chamada “crise da
comunicação”, parece-lhe inteiramente falsa – e m
“Communication prioritaire” – a universalmente afirmada
oposição entre os chamados mass media e outras esferas da
vida social, as quais também tendem, em conjunto, a “modelar
todas as atitudes da vida cotidiana”. Nesta compreensão do
caráter universalmente anticomunicativo da sociabilidade
tardoburguesa, não haveria para Debord – e aqui reencontramo-
nos com sua crítica das “neovanguardas” – por que se opor à
alienação dos chamados mass media recorrendo, como a um
contraponto, à “alienação artística” (aliénation artistique). Esta
é uma oposição que certamente pareceria justa para quem
compreendesse a chamada “crise da comunicação” com base
no poder adquirido pelos mass media, produtores da chamada
“cultura de massas”, em distinção e até mesmo em contraposição
à “alta cultura”, na qual se situam os experimentos estéticos,
pretensamente críticos, do “neodadaísmo”. Porém, a existência
de uma “cultura de massas”, na qual a “informação” apenas
reproduz a passividade da totalidade da experiência social, tem
como face complementar a “massificação” da própria “alta
cultura”. Também nesta se expressam tanto o fenômeno mais
amplo de exclusão das “massas” de toda “ação livre”, exclusão
que constitui a própria essência do trabalho assalariado e da
passividade mercantil constituidores da chamada “crise da
comunicação”, quanto uma repetição sem fim e sem sentido
daquela destruição das formas inaugurada pela arte moderna e
pelas vanguardas. Sem senso histórico nem feição crítica (pois
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 171

reiteradora da não-comunicação do próprio sistema), esta


repetição leva os diversos produtos da “alta cultura” a se
imitarem mutuamente, reproduzindo o mesmo fenômeno que,
desde o século 19, ocorre na produção de massas dos objetos
de consumo: a “falsa novidade” (fausse nouveauté), a repetição
degradada e sem sentido do mesmo. Ao contrário da arte
moderna do entreguerras, que soube se tornar historicamente
contemporânea e crítica de seu próprio tempo, o “neodadaísmo”
se faz artificialmente contemporâneo de uma época que não é a
sua e, por isso, se torna acrítico diante de sua própria época. É
deste modo que cultura moderna (“alta” e “de massa”) deste
período se apresenta a Debord como o acabamento, a conclusão
da cultura iniciada no barroco; mas uma conclusão e um
acabamento cujo sentido histórico lhe permanece inconsciente.
Não é novidade que uma posição crítica em face das
“neovanguardas” seria comum a outros autores críticos do
capitalismo tardio, como Lukács e Adorno; contudo, além da
diferença já assinalada, quanto a este último, no que diz respeito
à categoria da expressão, há também a diferença maior com
relação a ambos, já indicada na introdução, no que diz respeito
ao próprio problema da forma. Diferentemente de Lukács e
Adorno, Debord critica a s “neovanguardas” (ou o s
“neodadaístas”), não em defesa da forma estética, mas sim
porque, ao positivarem esteticamente o movimento antes crítico
de destruição das formas pelas vanguardas históricas, os
“neodadaístas” abandonariam o elemento socialmente crítico
que os experimentos modernistas e de vanguardas afirmaram
no entreguerras. Trata-se, assim, de afirmar, na perspectiva
de Debord, uma relação inseparável entre posição formal (no
âmbito estético) e posição temática (no âmbito social). Deste
modo justamente, não seria um exagero afirmar que, em sua
análise, os “neodadaístas” – ao transformarem em “cânone
estético” a anterior destruição das formas – afirmariam uma
posição “classiscista”, ou seja, suas obras seriam também
“construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”.
172 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Isto porque, ao reintroduzirem a “classicista” positivação


estética, as “neovanguardas” se afastariam da tendência histórica
fundamental do modernismo e das vanguardas, tanto em termos
formais quanto em termos de crítica social. A “expressão” que
não nega, mas somente afirma a anticomunicação espetacular,
que não nega, mas apenas reafirma uma positividade estética,
já não tem mais qualquer relação com a poesia expressiva
moderna que, em seu desenvolvimento, manteve inseparáveis a
crítica das formas e a da pseudocomunicação na sociedade.33
Na medida em que esta tendência esteticamente positivadora e
socialmente conformista se exclui daquele desenvolvimento
crítico da expressão poética moderna, resta concluir, com
Debord, a crise da arte moderna manifesta na própria crise da
categoria da expressão; crise cujo sentido, na elaboração
debordiana, é a busca da práxis comunicativa.

4.3 Détournement e comunicação histórica


Na elaboração de uma perspectiva comunicativa para a
superação das experiências expressivas do dadaísmo, do
surrealismo e da arte moderna, experiências que considera terem
chegado a um certo limite histórico, encontram-se mobilizados
dois aspectos do pensamento de Debord, relacionados à
linguagem e à história e que, em sua juntura, constituem uma
concepção da dialética. Em A sociedade do espetáculo, esta
concepção é apresentada na explicação da linguagem empregada
no livro, no qual aparecem modificadas e recontextualizadas
palavras, frases e idéias de diversos outros autores. De imediato,
observa-se que – nesta linguagem, assim como nas imagens de

33. Não é demais lembrar, mais uma vez, que a obra de P. Bürger – que, no
prefácio à segunda edição, se manifesta teoricamente solidária à teoria da
“ação comunicativa” de J. Habermas – busca justamente concluir, “após
1968” (!), as categorias estéticas positivas que, passada a ilusão
vanguardista de “superação da arte”, se demonstrariam categorias
permanentes da arte na sociedade burguesa.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 173

seus filmes – se reapresenta a prática da colagem, da montagem,


do dépaysement tão comum em toda a arte moderna, pelo menos
desde Lautréamont. Em suas Poésies, este traz ao texto diversos
autores, os quais não cita, num jogo de palavras e temas que
em muito antecede as colagens dadaístas e surrealistas e a
própria exposição de Debord. Lautréamont explica este
procedimento do seguinte modo: “As palavras que expressam o
mal estão destinadas a vir a ter uma significação de utilidade.
As idéias melhoram. O sentido das palavras participa disso. // O
plágio é necessário. O progresso implica. Segue de perto a frase
de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma idéia
falsa, substitui-a por uma idéia justa. // Uma máxima, para ser
bem feita, não precisa ser corrigida. Precisa ser desenvolvida”. 34
Debord, que se apropria de modo desviado de uma parte
desta passagem no § 207 de A sociedade do espetáculo ,
considera que este método é o mesmo que, de formas distintas,
foi empregado por Hegel, Feuerbach, Marx e Kierkegaard; e,
com base nestes autores, priorizando a ação e a compreensão
conscientes da sociedade presente, Debord concebe o método
do dépaysement como um duplo movimento de détournement,
“desvio”, e de renversement, “desarrajamento”, “reviravolta”,
colocação no “reverso” das produções da cultura moderna,
incluídas a poesia, a crítica teórica, a psicanálise e, simplesmente,
a linguagem cotidiana; détournement e renversement operados
segundo uma compreensão crítica das condições e contradições
presentes na sociedade. 35 Ora, este método – que, seguindo
Debord, se nomeará aqui simplesmente de détournement – pode
ser pensado também como central à própria concepção

34. Lautréamont, Poesias [1870], Parte II. Obra completa. Tr. br. C. Willer.
São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277.
35. Referindo-se ao desvio das noções oriundas da experiência artística
moderna para uma crítica teórica do capitalismo desenvolvido, Debord
amplia o seu uso do termo “arte moderna” para o de “cultura” (moderna):
“Com a ‘arte moderna’, a gente quer dizer a cultura – da poesia à psicanálise,
por exemplo. Mas o conjunto das experiências culturais da época deduz já
174 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

debordiana de um certo acabamento, uma certa conclusão da


cultura moderna nas condições sociais e culturais do capitalismo
mais desenvolvido. Ao ser observado com mais cuidado, o
détournement revela-se não apenas uma técnica estética. Ao
recusar a mera repetição acrítica das mesmas coisas, tal como
feita pelo “neodadaísmo”, o détournement oferece ao mesmo
tempo a resposta à pergunta pelo que se deve fazer dos produtos
da cultura no momento de sua crise, bem como a racionalidade
imanente a esta mesma resposta. Deste modo, o desvio e a
reversão do significado dos produtos da cultura passada e mesmo
contemporânea buscam fundamentalmente a crítica consciente
do presente, crítica que é inseparável da centralidade teórico-
prática deste mesmo presente em face do passado. Numa
perspectiva mais ampla, pode-se dizer finalmente que o
détournement junta uma concepção histórica do passado com
base na crítica do presente a uma concepção histórica da própria
linguagem, já que no contexto em que é apresentado em A
sociedade do espetáculo este método busca justamente explicar
e justificar a “linguagem”, o “estilo” e o “modo de exposição”
do livro. Precisamente neste sentido, o détournement aparece
em Debord como uma concepção dialética por excelência.
Na medida em que contém uma reflexão sobre a linguagem
dialética, a concepção do détournement dá seqüência às reflexões
de Debord sobre a experiência “lingüística” no capitalismo
contemporâneo. “A teoria da informação ignora, logo de cara, o
principal poder da linguagem, que é o de se combater e de se
ultrapassar, em seu nível poético”, diz ele em “Communication
prioritaire”. 36 Em “All the King’s men”, Debord observa que,

tarefas políticas (‘política’, tanto quanto‘artística’, sendo finalmente termos


de especializações criticáveis)” (cf. carta a Branko Vucicovic, 05.01.1966).
Nesta ótica, trata-se de desviar também não apenas a psicanálise, mas o
próprio Marx e outros autores “marxistas”, como pode ser observado na
própria escrita de A sociedade do espetáculo e na tematização explícita
que este livro apresenta sobre o pensamento do autor de O capital nos §§
79-91.
36. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 21.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 175

embora as palavras “trabalhem” para a organização dominante


da vida e a gente viva na linguagem como no “ar viciado”, as
palavras não estão, contudo, “robotizadas”. Usadas pelo poder,
“elas [lhe] permanecem por algum lado radicalmente
estrangeiras”. A “insubmissão das palavras” manifestada por
toda a escrita moderna e até mesmo a possibilidade de uma
“contestação completa” em e a partir da linguagem devem-se
precisamente à sua dominação pelo poder instituído; mas
também, inseparavelmente, ao fato de que as palavras lhe
escapam permanentemente. A rigor, o poder não cria o sentido
das palavras, mas vive de “receptação” e “furto”: em outras
palavras, ele somente o “recupera”. Na constante recuperação,
pelo poder, da criação de sentidos pela linguagem, Debord
concebe uma potencialidade que a esta é permanentemente ínsita
de recriação de sentidos, o que faz dela um campo de batalha
entre o poder e a criação histórica (neste texto, nomeada de
“poesia”).
Contudo, a linguagem é criativa, é “poesia”, não ao ser
citada, mas ao “ser desviada, recolocada em jogo”. A recolocação
em jogo da poesia, da linguagem, das palavras se deve justamente
à sua potencialidade criativa e à sua natureza histórica,
testemunhadas em negativo p e l o s “ p e n s a d o r e s d a
automatização” justamente quando estes visam à fixação e à
eliminação “das variáveis na vida como na linguagem” e de “toda
acepção nova de uma palavra, tanto quanto suas ambivalências
dialéticas passadas”. 37 Já nestas reflexões de Debord, a
concepção histórica do passado com base na crítica do presente
está radicalmente ligada à própria concepção histórica da
linguagem: “O momento da poesia real, que ‘tem todo o tempo
diante dela’, quer sempre reorientar, conforme seus próprios
fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. [...] Recoloca em
jogo as dívidas não quitadas da história. Fourier e Pancho Villa,

37. “All the King’s men”, em Internationale Situationiste, nº 8, janeiro de


1963, p. 33.
176 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Lautréamont et os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores


inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de
Kronstadt ou de Kiel e todos aqueles que, no mundo, com e sem
nós, se preparam para lutar pela longa revolução, são também
os emissários da nova poesia”. 38 Que personagens e movimentos
sociais do passado, como Fourier e a rebelião de Kronstadt,
sejam mensageiros da “nova poesia”, isto se deve justamente à
recolocação em jogo, no presente (e com base nas condições de
vida e de luta do presente), de uma “poesia real”. Uma
recolocação em jogo que reapresenta, em função e em face do
presente, as dívidas não quitadas da história justamente porque,
nesta assunção das lutas presentes, a “poesia real” tudo
“reorienta segundo seus próprios fins”. Nesta recolocação em
jogo, as “ambivalências dialéticas” das palavras ditas, dos gestos
realizados e dos desejos expressos no passado são submetidas
à relação negativa com o presente, relação esta que unicamente
pode retirar da sua anterior ambigüidade um sentido dialético e
atual.
Ora, o capitalismo espetacular se constituiu historicamente
– a partir das derrotas das primeiras tentativas de revolução
social no início do século 20, das quais a arte moderna e as
vanguardas estéticas foram contemporâneas e solidárias – ao
neutralizar e recuperar para o interior de sua própria lógica as
demandas críticas que antes se lhe opunham. Ele mantém, de
modo invertido, pois incluso em sua própria lógica, o negativo
que antes o negava e que, ao ser recuperado, perde sua
negatividade. Do mesmo modo, as próprias potencialidades
presentes no desenvolvimento das forças produtivas do
capitalismo contemporâneo são realizadas de modo distorcido,
invertido, segundo a própria lógica inversora da alienação que é
essencial ao espetáculo. “No mundo realmente invertido”, diz
Debord, mais uma vez desviando uma fórmula hegeliana, “a
verdade é um momento do falso” (SdS, § 9). Nestas condições,

38. Idem, p. 32.


R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 177

a crítica dialética deve buscar renverser (desarranjar, revirar,


reverter) a inversão aí realizada e recolocar em jogo a crítica
que as revoluções sociais e, junto a estas, a poesia moderna
fizeram à sociedade produtora de mercadorias.39 Mas esta
retomada não pode ser feita às custas da pergunta pela sua
persistência, não pode seguir aquele movimento rebuscado e
sutil do “marxismo ocidental” que buscou e busca o “pensamento
genuíno” de Marx; pode apenas, como dito acerca da poesia,
ser “desviada, recolocada em jogo”.
Antes de tudo, esta retomada da crítica é, em Debord,
inseparável do reconhecimento do seu passado como algo
deperecido, pertencente a uma outra época e a um outro contexto
social; inseparável, portanto, da reflexão sobre suas anteriores
derrotas e das necessidades das lutas atuais. A persistência da
crítica social deve fazer a pergunta pela sua própria história,
pela concepção de sua própria trajetória e, na forma
“lingüístico”-teórica de sua apresentação, deve “exprimir a
dominação da crítica presente sobre todo seu passado” (SdS, §
206). Em outras palavras, a retomada da crítica anterior guarda
a “distância” (distance) histórica, própria à passagem do tempo
e ao devir que nele se move; e, assumindo seu caráter ambíguo,
a submete a um “desvio”, condição de sua “recolocação em
jogo” que é, ipso facto, a “recolocação em jogo das dívidas não
quitadas da história”. Na recepção presente da crítica anterior,
impõe-se o desvio graças à própria imutabilidade do passado,
ao seu caráter de “passado da crítica”. Se ela pode e deve ser
retomada no presente, é-o somente com base nas próprias
possibilidades presentes do mundo e , portanto, das necessidades
atuais da crítica social.

39. Insiste-se nestes múltiplos significados do renversement porque não se


trata, para Debord, de uma negação da reificação em vista de uma reposição
de uma qualquer situação “natural” e “verdadeira” do homem ou da
realidade; não se trata, portanto, de “reinverter” como se houvesse para
onde – histórica, ontológica ou antropologicamente – retornar. O mesmo
ocorre com a “recolocação em jogo” das lutas do passado: faz-se
necessário seu desvio, inseparável de seu renversement.
178 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

O conc eito de détournement traz consigo, deste modo,


uma concepção da história em que assumem um lugar central a
possibilidade, presente na concepção surrealista da história, e
o envelhecimento, o deperecimento da existência, essencial à
concepção barroca, segundo a interpreta Debord. 40 Em A
sociedade do espetáculo, como já dito, o détournement s e
apresenta antes de tudo como resposta à busca da linguagem
crítica e dialética, da qual a teoria mesma se constitui: uma
crítica “lingüístico”-teórica que deve expressar em seu próprio
modo de exposição a negatividade em face dos conceitos
existentes, incluindo “a inteligência de sua fluidez reencontrada”
e sua “destruição necessária” (SdS, § 205). Em outras palavras,
“dialética em sua forma como é em seu conteúdo [...] o modo
de exposição da teoria dialética testemunha o espírito negativo
que está nela” (SdS, §§ 204/206). Com base nisto, o détournement
se articula em duas dimensões indissociáveis. Como crítica do
presente, ele expõe, em sua própria linguagem détournée, a
“reversão do genitivo” e a “substituição do sujeito pelo
predicado”, apresentando “lingüístico”-criticamente o momento
verdadeiro que se encontra subsumido na totalidade do falso e,
nisto mesmo, a inteligência da possibilidade de sua reversão

40. E poder-se-ia dizer ainda que esta concepção barroca situa-se já no


próprio método ducassiano das Poésies: como busca mostrar L. Perrone-
Moisés, há “fios subterrâneos” que ligam, na obra de Lautréamont, o
barroco espanhol, o romantismo e o surrealismo (“Lautréamont e os
surrealistas” [1996], em Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, pp. 85 ss.). Trata-se, porém, não apenas das “ousadias retóricas do
barroco espanhol, verdadeiras prefigurações dos achados surrealistas [e
que] poderiam explicar boa parte do pré-surrealismo de Ducasse”
(Perrone-Moisés), os quais poderíamos se estender a Debord, mas também
da concepção histórica do barroco que se apresenta, em sua recepção por
Debord, no próprio método do détournement. Neste sentido é que, como o
faz G. Marelli, se pode dizer que “a estética situacionista ... [era] ... barroca
e, enquanto tal, enganosa, fugaz, ilimitada e provisória: o ser estático e
rígido se transforma em um devir harmônico e plástico entre o sujeito e o
objeto” (G. Marelli, La dernière internationale: les situationnistes au-delà
de l’art et de la politique. Tr. fr. D. Bosc. Arles: Éditions Sulliver, 2000, p.
56).
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 179

prática. 41 Perseguindo uma consciência histórica que falta à


linguagem tornada “espetáculo”, ele busca também “o desvio
de todas as aquisições da crítica anterior” (SdS, § 206).
Neste gesto, a anterior produção cultural, em seus
momentos de verdade (os que, nela, se demonstram verdadeiros
para a crítica atual), faz-se presente como “vestígio” (trace)
histórico na e da própria crítica do presente. Envelhecido pela
passagem do tempo e pela transformação das condições sociais,
um aspecto qualquer da cultura e da crítica se transforma em
“fragmento arrancado de seu contexto, de seu movimento e,
finalmente, de sua época, como referência global, e da opção
precisa que era no interior dessa referência, exatamente
reconhecida ou errônea” (SdS, § 208). Como fragmento desviado,
a crítica passada se apresenta imediatamente, em sua própria
linguagem, na linguagem crítica do presente; e a crítica presente
contém em seu próprio modo de exposição a persistência e a
modificação da crítica passada, mantendo em sua própria
linguagem crítica um vestígio histórico de que ela se apropria e
torna seu.
“O détournement”, diz Debord, “conduz à subversão as
conclusões críticas passadas que foram fixadas em verdades
respeitáveis, isto é, em mentiras” (SdS, § 206). Ele apanha a
própria crítica passada em seu deperecimento, imprimindo-lhe
fluidez e a tornando atual. Ao tomar o passado como
possibilidade, como ambigüidade e como deperecimento, o
détournement busca a persistência modificada da crítica anterior
submetendo-a ao presente e, assim, tanto mantém a memória

41. É porque, sob o espetáculo, a aparência social não é inteiramente falsa,


mas nela também se apresentam momentos de verdade, como discutido
no primeiro capítulo, que Debord pode estender – em seus filmes, em
panfletos e cartazes da I.S. por volta de 68 – seu método de détournement
até mesmo a frases da publicidade, a imagens de histórias em quadrinhos,
revistas pornográficas e a cenas de filmes comerciais. Também elas são
ambivalentes e, se bem desviadas, permitem à crítica revelar “atos falhos”
na presente consciência social reificada.
180 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

histórica da crítica atual e o domínio sobre o seu próprio passado,


em virtude de sua central referência no presente, quanto recusa
a fixidez, a coagulação e a manutenção de algo que supostamente
não sofreria o deperecimento, a passagem destruidora do tempo
e que, por isto mesmo, se tornaria somente numa “mentira”
caso usado como “citação” à qual se deveria reconhecer
“autoridade”.
Para Debord, a crítica social, sendo histórica, pois atada
ao presente, deve manter como essencial à sua elaboração e à
sua exposição a história da crítica. Ela certamente comete aquela
injustiça com o passado que, segundo Nietzsche, é própria a
toda ação no presente e ao esquecimento que esta ação exige,
pois o método do desvio é “a linguagem que nenhuma referência
antiga e supracrítica pode confirmar, [ele] não fundou sua causa
em nada de exterior à sua própria verdade como crítica presente”
(SdS, § 208). Mas também é somente este desvio que, impedindo
que a crítica e os produtos culturais do passado se tornem uma
“mentira respeitável”, “pode confirmar o antigo núcleo de
verdade que ele restitui [renova, volta a trazer, ramène]”. A
crítica passada é desviada em seu conteúdo, para fazer-se
presente – num outro contexto e noutro significado histórico –
através de suas palavras, suas imagens, seus gestos que,
ambíguos para este presente, podem nele e em função dele
obter “a ação histórica, e a correção histórica que é a sua
verdadeira fidelidade” (SdS, § 209).
Ao conceber uma perspectiva comunicativa para a
experiência expressiva da arte moderna, diante da crítica do
capitalismo contemporâneo e da expropriação das possibilidades
da comunicação que lhe é essencial, Debord propõe na verdade
um détournement da arte e da cultura modernas. Busca uma
ação no presente que significa, duplamente, uma confirmação
do “núcleo de verdade” e uma “correção histórica” de todo seu
conteúdo social crítico. Voltada para o presente, a concepção
histórica que funda esta busca é centrada numa visão da
permanente possibilidade de recolocação em jogo da poesia e
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 181

d a s dívidas históricas e, ao mesmo tempo, numa visão do


movimento de deperecimento de tudo que é histórico,
característica essencial à própria cultura moderna em sua
natureza barroca. Para Debord, somente o desvio é a “negação
real da cultura”, pois “é a única a conservar seu sentido” (SdS,
§ 210). Por isso, a reversão do horizonte expressivo em horizonte
comunicativo significa a reversão e o desvio para a práxis
revolucionária da busca poético-expressiva pela “comunidade”
que ele julga existir en négatif em toda a experiência da arte
moderna.
Este modo de superação da arte moderna a “corrige”
historicamente e, nisto mesmo, se lhe mantém “fiel”. É uma
forma d e correção e fidelidade que, c o n c e b i d a
metodologicamente como “modo de exposição” da crítica teórica
do capitalismo mais desenvolvido, faz presente em sua própria
elaboração e escrita a perspectiva comunicativa: Pascal ao lado
de Marx, os niveladores ao lado do Cardeal de Retz, Lautréamont
e Nietzsche ao lado de Hegel e Baltazar Gracián. Pode-se dizer
que, desta maneira, Debord experimenta em sua própria escrita
uma forma de comunicação histórica que, como aquela registrada
por Heródoto, deseja estar indissociada de uma comunicação
prática no presente. Nesta comunicação histórica ínsita ao modo
de exposição da teoria crítica, a dialética se torna, ela mesma,
um método por excelência comunicativo.
182 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 183

Considerações finais

Mas as teorias somente são feitas para morrer


na guerra do tempo: são unidades mais ou
menos fortes que é preciso engajar no justo
momento no combate e, quaisquer que sejam
seus méritos ou suas insuficiências, somente
podem ser seguramente empregadas as que
estão aí, em momento útil. Assim como as
teorias devem ser substituídas, porque suas
vitórias decisivas, mais ainda que suas derrotas
parciais, produzem seu desgaste, do mesmo
modo nenhuma época viva partiu de uma teoria:
havia de início um jogo, um conflito, uma
viagem.
Guy Debord, In girum imus nocte et
consumimur igni

A interpretação do pensamento de Debord aqui exposta


recoloca, a respeito do próprio Debord, a interpretação que este
propusera para a experiência da arte moderna e das vanguardas
do início do século 20, a saber, que seu centro se constitui
numa reflexão social sobre a linguagem. Se, segundo interpreta
Debord, todas as vanguardas e a arte moderna se constituíram
essencialmente na assunção consciente e crítica da destruição
das linguagens tradicionais, tornadas falsas no interior de uma
experiência social caracterizada pela destruição acrítica e
alienada das anteriores experiências comunicativas, é necessário
assumir, como chave de interpretação da própria reflexão de
Debord, a persistência e a continuidade desviada desta temática.
Debord a recoloca em jogo nas condições reificadas de
184 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

expropriação de toda linguagem comunicativa e de todos os


valores comunicáveis do capitalismo contemporâneo. Em outras
palavras, busquei nestas páginas trabalho explicitar o que, ao
lado de Agamben, Kaufmann e Virno, considero o centro da
reflexão de Debord, que é, como já salientado nas considerações
introdutórias, uma retomada da crítica da economia política que
desenvolve suas categorias no âmbito da experiência social da
linguagem. Neste desenvolvimento, opera-se uma juntura entre
a crítica teórica das formas-valor e a reflexão sobre a linguagem
não apenas na denúncia de que à expropriação da atividade
autônoma acompanha uma expropriação das potencialidades
comunicativas da sociedade, mas também – e é esta a
especificidade do presente livro – na elaboração de uma
perspectiva comunista na qual a superação das relações
fetichistas e a construção de uma nova comunicação são
inseparáveis.
Neste horizonte, a categoria metafísica da linguagem
comum, que orienta toda a reflexão de Debord sobre a linguagem
social, assume um outro significado na concepção debordiana
da dialética. Refiro-me justamente à categoria de totalidade.
Deve-se observar que esta categoria aparece em seus textos,
antes de tudo, na compreensão crítica de que o conjunto das
alienações do capitalismo contemporâneo conforma uma
totalidade fundada na determinação da forma-mercadoria sobre
a inteira vida social, as atividades e as relações entre os
indivíduos. A este fenômeno totalizante e totalitário, os
situacionistas chamaram de “economização da vida”. É o domínio
da economia, entendida no sentido estrito de economia de
mercado, que submete as relações humanas à lógica autônoma
da tranformação do dinheiro-capital em mais-dinheiro. As
relações produzidas e estabelecidas pelos homens ganham vida
própria e, assim, passam a dominá-los. Com base nesta
hierarquia primeira do valor econômico sobre as atividades
humanas e a utilidade das coisas se ergue a hierarquia da
economia sobre os homens e suas vidas, e dos especialistas e
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 185

dirigentes da produção mercantil sobre o conjunto da sociedade.


Esta hierarquia se demonstra também no Estado e num sistema
completo de hierarquias, alienações e expropriações da vida
que está pre sente em todo o cotidiano e nas instituições
separadas que, desde fora, planejam e controlam a cotidianidade.
Sabemos o quanto é problemático, hoje, falar em
totalidade. Em geral, este é um conceito que, em determinadas
vozes, faz lembrar – para o bem ou para o mal – o velho ideal
filosófico de sistema, de saber absoluto. Mas não é disso que se
trata para Debord e os situacionistas. Primeiro, porque a teoria
não é, para eles, um conhecimento positivo, e não se trata, assim,
de constituir um conhecimento do todo, um sistema de saber. A
teoria, para Debord, é tão finita e passageira quanto o são as
gerações dos homens; produzida no tempo, diz respeito às lutas
do tempo e, neste sentido, cumpre uma função estratégica. Assim,
longe de um saber total, ele propõe uma crítica total às condições
de existência da sociedade dominada pela mercadoria. Somente
como crítica de totalidade a negação da atual forma histórica da
sociedade pode ser de fato crítica e negativa, protegendo-se
da recuperação própria a qualquer crítica “no varejo”. E tal
crítica só podia ser total na medida em que, nesta sociedade,
uma determinação se fez total: as relações de compra-e-venda,
submetendo a si todas as dimensões da vida. Trata-se, portanto,
da crítica da má totalidade. Nesta crítica, Debord não lamenta o
fato de que a economia tenha dominado tudo, propondo contra
isso limitar a economia, mas denuncia a economia como
necessariamente totalitária e, contra ela, propõe sua dissolução,
que é ao mesmo tempo a dissolução do Estado e de todo o
sistema único de alienações e hierarquias.1

1 . A compreensão de que a posição teórica construída por Marx não se constitui


em disciplinas científicas modernas (economia política, ciência do direito,
filosofia etc.), mas em crítica (da economia política, do direito, da filosofia
etc.), é mais um elemento que liga a reflexão de Debord às de Karl Korsch
(especificamente, em Marxismo e filosofia) e de Lukács (em História e
consciência de classe). Para estes autores, como para Debord, não sendo
a tarefa da teoria crítica produzir uma ciência positiva ou um saber positivo
186 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Para além de uma categoria crítica, a totalidade aparece


também em seus textos como um telos metafísico inseparável
da “nova” linguagem comum e da comunidade histórica. Se a
totalidade lhe aparece como “a experiência real, o oxigênio da
crítica impiedosa do existente”, 2 ela também é o que falta à
experiência reificada da linguagem: “Somente a linguagem que
perdeu toda referência imediata à totalidade pode fundar a
informação”. 3 Neste aspecto, a totalidade se apresenta como o
que falta ao mundo das separações, do isolamento mútuo dos
indívíduos e da radical ausência de comunicação efetiva entre
os homens no capitalismo mais desenvolvido.
Neste aspecto, Debord se mantém muito próximo dos
termos apresentados por Hegel em Differenz des Fichteschen
und Schellingschen Systems der Philosophie (1801). Neste texto
juvenil, Hegel denuncia a “harmonia dilacerada” (zerrissene
Harmonie) e a “cisão” (Entzweiung ) no interior da cultura
(Bildung), na qual “a manifestação do absoluto se isolou do
absoluto e se fixou como algo autônomo”. 4 Este mundo cindido
é, ele mesmo, um “todo” (Ganzes) da multiplicidade de suas
limitações. Para Hegel, porém, este todo não é a totalidade, mas
apenas uma relação não-viva entre as partes; por isto, a cisão
do mundo não é superada no todo, mas nele se encontra expressa
e reposta como mundo cindido. Neste todo, a totalidade se
encontra “perdida nas partes”. Ao mesmo tempo, a “aspiração
da vida” (Bestreben des Lebens), presa nas partes deste todo,
se agita sob e contra ele, “para sair dali em busca da liberdade”.
Assumindo a forma da Razão – o que, para Hegel, significa

da realidade, mas justamente uma crítica do existente, é isto o que capacita


a esta mesma teoria crítica poder falar/saber sobre a realidade reificada.
Um saber, contudo, que se sabe provisório, pois produzido como momento
de uma práxis temporalmente delimitada.
2 . “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 17.
3 . Idem, p. 31.
4 . Hegel, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der
Philosophie [1801]. Werke in 20 Bänden, B. II. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1970, p. 19.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 187

superar o ponto de vista classificatório, calculador e enrijecedor


do Entendimento – a vida aniquila o todo das limitações e se
reencontra como totalidade, assim fazendo desaparecer a cisão.
Esta superação da cisão é, para Hegel, a tarefa da filosofia.
Preocupado em ir além da oposição própria à filosofia moderna
entre a “subjetividade absoluta” e a “objetividade absoluta”, o
filósofo alemão expressa, nesta concepção, o cuidado de
preservar, como necessidade e fator da própria vida, a existência
de inevitáveis cisões. A vida, diz ele, se autoconfigura
contrapondo-se perpetuamente (e a “aspiração da vida”, neste
sentido, não se constitui numa potência positiva, mas dialética,
pois autocontraditória). Destarte, a razão se opõe não à cisão
tout court, mas à “fixidez absoluta da cisão”, esta fixidez sendo
aquela em que “o poder de unificação desaparece da vida dos
homens e os opostos perdem sua viva relação e interação e
adquirem autonomia”. 5
Esta frase, citada no § 180 de A sociedade do espetáculo,
é desviada por Debord na análise da cultura moderna e na
averiguação de uma vocação que lhe seria ínsita de busca da
“unidade perdida” (unité perdue), busca na qual justamente “a
cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negar-
se”. Não é o caso aqui de voltar a discutir a teoria debordiana
da superação da moderna cultura separada, mas a localização,
em seu contexto original, dessa frase hegeliana citada em A
sociedade do espetáculo ajuda a compreender o segundo sentido
que a categoria da totalidade assume em Debord. Como categoria
metafísica prospectiva, que se confunde com a da linguagem
comum, a totalidade é a comunidade histórica a vir, na qual a
“cisão necessária” (Hegel) não é suprimida, mas posta em relação
viva. Longe de uma superação que identifique completamente
uma e outra, a oposição entre a subjetividade e a objetividade
perde, na totalidade, sua fixidez e, nos termos de Debord, inicia
sua existência “histórica”, como relação viva e interação jamais
inteiramente consolidada.

5 . Idem, p. 21.
188 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

Por fim, no centro desta perspectiva – e fundando-a –


está uma outra categoria hegeliana: justamente a da negatividade.
Mantendo como fundamento de sua reflexão a crítica teórica e
prática da economia política e, portanto, a consideração sobre
as condições sociais e históricas da experiência da linguagem,
Debord concebe o projeto de uma nova comunicação como
inscrito na negatividade presente na experiência da arte moderna
e, contemporaneamente, nas lutas sociais que ocorrem sob (e
contra) as condições do capitalismo espetacular. Deste modo,
sua crítica social se constitui numa imanência negativa às
próprias condições históricas da reificação. Em outras palavras,
em seu pensamento, a luta prática e a crítica teórica à reificação
só podem ter como base a própria reificação. O conceito de
alienação em Debord, mormente no que diz respeito à forma
que ela assume como expropriação da potência comunicativa
da linguagem, se reencontra tanto com a concepção de
autonegação, já suposta em Marx, quanto com a importância da
prática crítico-negativa, tomada por Debord como pressuposto
da comunicação direta.
A concepção de que a arte moderna assumiu consciente
e criticamente a destruição da linguagem, destruição esta que,
no entanto, é determinada antes de tudo pelo desenvolvimento
– ele mesmo, essencialmente destrutivo – das forças produtivas
modernas, assinala já uma atenção para a negatividade como
potência construtiva, justamente porque a perspectiva de uma
nova linguagem comum não é simplesmente concluída do
processo “objetivo” do desenvolvimento capitalista, mas antes
elaborada como sentido histórico da assunção crítica da
destruição da antiga linguagem pela arte moderna. Esta assunção
teria desempenhado, segundo Debord, uma posição negativa
em face da sociabilidade burguesa e da pseudocomunicação que
lhe é essencialmente constitutiva. Na perspectiva da
comunicação, Debord concebe sempre o “destrutivo” da
modernidade sob o modo dialético do negativo; concebendo-o,
pois, como negativo, o “destrut ivo” é, também para ele,
inseparável do “criativo” ou “construtivo”.
R EIFICAÇÃO E LINGUAGEM EM GUY DEBORD 189

No Prefácio à Fenomenologia do Espírito, escrito ao qual


Debord faz diversas referências em seus textos, Hegel afirma –
aparentemente numa polêmica contra Spinoza e Schelling – que
se deve acreditar no “poder do negativo” (Macht des Negativen).
Assumindo este horizonte como central à sua reflexão, Debord
desvia, para um significado dialético-negativo, as considerações
essencialmente positivas de Nietzsche sobre a comunicação.
“Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos
uns aos outros”, diz Nietzsche; “é preciso utilizar as mesmas
palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso,
enfim, ter a experiência em comum com o outro”. 6 Desviada
para uma base dialética, não é outra a concepção de
Debord sobre a comunicação: “a comunicação não existe jamais
em outro lugar que não seja na ação comum. E os mais
surpreendentes exageros da incompreensão estão, assim, ligados
ao excesso de não-intervenção”. 7 Aqui, a “ação comum” é
compreendida justamente como diálogo prático, crítica prática,
negação. Para ele, unicamente a negatividade ínsita à práxis
revolucionária – baseada no “destrutivo” das condições modernas
de existência e alimentada pela experiência da poesia moderna
– constitui a ação comum e, logo, a comunicação das quais pode
advir a comunidade realmente histórica.
Não podendo recorrer ao passado, tampouco à
interioridade subjetiva, Debord ampara sua perspectiva
comunista de uma nova comunidade apenas e exclusivamente
nas contradições da própria existência presente e na práxis
negativa em face delas. Como para o jovem Marx, a negatividade
significa, para ele, a única possibilidade de uma reflexão
puramente histórica, não metafísica (no sentido tradicional de
metafísica) da experiência social dos homens, pois constituída

6 . F. Nietzsche, Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro


[1886]. Tr. br. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1992, § 268, p. 182.
7 . “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 21.
190 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO

na própria existência social fabricada, produzida pela atividade


humana, ainda que (ou: precisamente porque) sob a forma da
autonegação. Negando o mundo que os nega, os sujeitos da
crítica prática se negam a si mesmos, isto é, negam as formas
alienadas em e sob as quais estão constituídos e reinventam a
si e ao mundo. É justamente deste modo que Debord concebe o
significado histórico dos Conselhos Operários húngaros (1956),
as greves com ocupações de fábrica em Maio de 68, na França,
e as Assembléias Autônomas nas grandes fábricas italianas e
portuguesas, durante os anos 70: como experiências negativas
de invenção da “história universal”, baseada na crítica prática e
no diálogo anti-hierárquico.
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http://www.wildcat-www.de/zirkular/62/z62situa.htm).
Wolin, R. Labirintos. Em torno a Benjamin, Habermas, Schmitt,
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Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
Wollen, “The Situationist International”, in New Left Review,
London, March/April 1989.
201

Esta obra foi composta em


Batang 10 e Garamond 12 e
impressa em papel Soft pólen
em outubro de 2006.

Impresso na Gráfica da Universidade de Fortaleza


da Fundação Edson Queiroz
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