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Marilena do Nascimento

(coordenadora)

MUSICOTERAPIA
E A REABILITAÇÃO DO
PACIENTE NEUROLÓGICO
© Marilena do Nascimento, 2009.

ISBN 978-85-7954-000-4

Impresso no Brasil em agosto de 2009.

Todos os direitos reservados e protegidos por lei. Proibida a duplicação ou reprodução


deste volume ou de qualquer parte deste volume, por quaisquer meios mecânicos ou
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Revisão gráfica: Amanda Estelles e Jaqueline Alves Murauskas
Ilustração de capa: Ana Alice Francisquetti
Projeto gráfico e capa: Catarina Ricci
Impressão: Provo Gráfica e Editora Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico / Marilena


Nascimento , (coordenadora) . -- São Paulo : Memnon,
2009.

Vários autores
Bibliografia
ISBN 978-85-7954-000-4

1. Musicoterapia - Uso terapêutico 2. Paciente neurológico -


Musicoterapia - Uso terapêurico 3. Reabilitação I. Nascimento,
Marilena.

09.07959 CDD-615.858154

Índices para catalogo sistemático:


1. Paciente neurológico : Musicoterapia : Reabilitação : Terapia
Alternativa.
615.858154
Assim como uma sinfonia depende de uma boa
e grande orquestra para ser executada,
também este livro só foi construído
por termos contado com uma boa
e grande equipe de profissionais formidáveis.

Agradecemos a todos os colaboradores visíveis,


e também à inestimável contribuição dos invisíveis,
cujas pesquisas e obras enriqueceram o conteúdo deste livro.
Coordenadora
Marilena do Nascimento
Musicoterapeuta, Especialista em Medicina Comportamental pela Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Supervisora do Setor de
Musicoterapia da AACD – Associação de Assistência à Criança Defici-
ente, Presidente da ABPC – Associação Brasileira de Paralisia Cerebral.

Colaboradores
Alice C. Rosa Ramos
Médica Fisiatra, Superintendente Técnica da Reabilitação da AACD.

Ana Cristina Sanchez A. Domingos


Musicoterapeuta da AACD / Osasco, SP.

Ana Grasielle Dionísio Corrêa


Mestre em Engenharia Elétrica pela Universidade de São Paulo (USP),
Doutoranda no Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécni-
ca da Universidade de São Paulo (USP) .

Andréa Siqueira Kokanj-Santana


Fonoaudióloga Clínica da AACD, Mestre em Fonoaudiologia pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

Camila da Veiga Prade


Psicóloga do Serviço de Neuropsicologia do Centro de Reabilitação do
Hospital Israelita Albert Einstein, Especialista em Neuropsicologia pelo
Conselho Federal de Psicologia.

Clara Y. Ikuta
Musicoterapeuta da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP, Psicóloga.

Cléo Monteiro França Correia


Musicoterapeuta, Doutoranda em Ciências no Setor de Neurologia do
Comportamento da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) /
Escola Paulista de Medicina (EPM).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico v


Edmar Zanoteli
Médico Neurologista da Clínica de Doenças Neuromusculares da
AACD, Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP) – Escola Paulista de Medicina (EPM), Professor da Discipli-
na de Neurologia Experimental da Faculdade de Medicina da Universi-
dade de São Paulo (USP).

Elizabete Tsubomi Saito Guiotoku


Médica Fisiatra da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP e do Instituto de
Medicina de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Me-
dicina da Universidade de São Paulo (USP).

Fernanda Moraes Rocco


Médica Fisiatra da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP e do Lar Escola
São Francisco.

Fernando Facetta Jr.


Médico Ortopedista, Coordenador da Clínica de Poliomielite da AACD /
Ibirapuera, São Paulo, SP.

Francisco Hélio Violante Filho


Médico Ortopedista Pediátrico da Clínica de Malformações Congênitas e
do Grupo Fixador Externo da AACD.

Gabriela Wagner
Musicoterapueta, Doutora em em Psicologia pela Universidad del Salva-
dor, Professora de Musicoterapia Clínica e Investigação da Faculdade de
Medicina da Universidad del Salvador, Buenos Aires, Argentina.

Gláucia Somensi de Oliveira Alonso


Médica Fisiatra da AACD, Especialista em Medicina Física e Reabilita-
ção pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universida-
de de São Paulo.

Heloiza Z. Goodrich
Terapeuta Ocupacional, Mestre em Terapia Ocupacional pela UAB.

Janice Maria Gomes de Sant´Anna


Musicoterapeuta AACD / Nova Iguaçu, RJ, Especialista em Psicomotri-
cidade Aucouturier.

vi Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Laís Miller Reis Rodrigues
Médica Fisiatra da Clínica de Amputados e da Clínica de Lesão Medular
da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP.

Lina Silva Borges Santos


Terapeuta Ocupacional, Supervisora Clínica na Área de Terapia Ocupa-
cional e Supervisora de Reabilitação do Setor de Terapia Ocupacional
Infantil da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP.

Marcelo de Jesus Justino Ares


Médico Fisiatra da Clínica de Lesão Medular e Gerente de Reabilitação
da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP.

Márcio Colossi do Amaral


Fisioterapeuta da AACD / Porto Alegre, RS, Especialista em Reeduca-
ção das Funções Neuromotoras.

Maria Angela de Campos Gianni


Médica Fisisatra da AACD / Osasco, SP, Especialista pela Sociedade
Brasileira de Medicina Física e Reabilitação, Vice-presidente da ABPC –
Associação Brasileira de Paralisia Cerebral.

Maria Cristina de Oliveira


Terapeuta Ocupacional, Mestre em Ciências Médicas pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).

Maria Cristina dos Santos Galvão


Fisioterapeuta da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP.

Maria Helena B. Cavalcanti Rockenbach


Musicoterapeuta a AACD / Porto Alegre, RS, Doutora em Letras pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Espe-
cialista em Musicoterapia pelo Conservatório Brasileiro de Música do
Rio de Janeiro.

Maria Helena Nunes Schaan


Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS), Especialista em Musicoterapia pela
FEEVALE / RS, Musicoterapeuta da AACD / Porto Alegre, RS e do
Menino Deus Sênior Residence (Porto Alegre, RS).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico vii


Marilene Knetsch Martiny
Fonoaudióloga da AACD / Porto Alegre, RS.

Maristela Smith
Musicoterapeuta, Mestre em Psicologia Social, Professora do Centro
Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).

Marla Fabiana Rodrigues Oliveira Sakamoto


Fonoaudióloga Clínica da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP, Mestre em
Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP).

Mauro César Moraes Filho


Médico Ortopedista Pediátrico, Supervisor do Laboratório de Marcha e
Diretor Clínico da AACD, Ortopedista do Grupo de Paralisias do Institu-
to de Ortopedia e Traumatologia e do Laboratório de Marcha da Divisão
de Medicina e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo.

Milene da Silva Ferreira


Médica Fisiatra da AACD e do Hospital Israelita Albert Einstein, Espe-
cialista em Geriatria e Doutora em Neurologia pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP).

Ricardo José de Almeida Leme


Médico Neurocirurgião da AACD, Doutor em Regeneração do Sistema
Nervoso Central pelo ICB da Universidade de São Paulo (USP).

Roseli de Deus Lopes


Professora Livre-docente do Departamento de Engenharia de Sistemas
Eletrônicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP),
Diretora da Estação Ciência da Universidade de São Paulo (USP).

Silmara do Nascimento
Psicóloga da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP.

Silvia Regina Carvalho


Musicoterapeuta da AACD / Mooca, São Paulo, SP.

viii Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Simone Pressioto Tibúrcio
Psicóloga Clínica e Musicoterapeuta, Especialista em Aquisição e De-
senvolvimento da Linguagem, Fundadora da Associação de Musicotera-
pia de Minas Gerais (AMT / MG).

Solange Sumire Aoki


Médica Fisiatra da Clínica de Paralisia Cerebral e Chefe da Clínica de
Malformações Congênitas da AACD / Ibirapuera, São Paulo, SP, Coor-
denadora do Serviço de Reabilitação do Hospital Municipal Pimentas
Bonsucesso da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Viviane Louro
Bacharel em Piano pela Faculdade de Artes Alcântara Machado, Mestre
em Música pela UNESP, Coordenadora do Curso de Música da Funda-
ção das Artes de São Caetano do Sul, SP.

Viviane Rose Fowler


Musicoterapeuta, Coordenadora do Projeto Talentos Especiais do Pro-
grama Oficinas Culturais do Governo do Estado de São Paulo.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico ix


x Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
SUMÁRIO

Preâmbulo
Prefácio ............................................................................................. xv
Como tudo começou... Breve história da fundação da AACD e da
implantação do Setor de Musicoterapia ............................................. xvii
A visão multidisciplinar na abordagem terapêutica da AACD .......... xxiii
As coisas não acontecem por acaso .................................................. xxv

27
Introdução .......................................................................................
Parte 1
A experiência AACD
1. Neurofisiologia da música ..........................................................
Ricardo José de Almeida Leme
30

2. O que precisamos saber sobre paralisia cerebral ........................ 43


2.1 Paralisia cerebral: aspectos clínicos e de reabilitação . 44
Maria Angela de Campos Gianni

2.2 O método neuroevolutivo ......................................... 54


Maria Cristina dos Santos Galvão, Marilena do Nascimento

2.3 Musicoterapia e o paciente com paralisia cerebral ..... 64


Marilena do Nascimento

2.4 Métodos de intervenção musicoterapêutica e suas


aplicações ................................................................... 82
Clara Y. Ikuta

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xi


2.5 Tolerância de sons na criança: modelo de
dessensibilização na intervenção musicoterapêutica ..... 102
Marilena do Nascimento

2.6 A Musicoterapia e a aquisição da linguagem ............... 113


Ana Cristina Sanchez A. Domingos

2.7 Protocolo de avaliação das funções musicais ............. 120


Marilena do Nascimento, Clara Y. Ikuta, Silvia Regina Carvalho

3. O que precisamos saber sobre lesão encefálica adquirida .......... 131


Gláucia Somensi de Oliveira Alonso, Milene da Silva Ferreira

3.1 A Musicoterapia e o paciente com lesão encefálica


adquirida ................................................................... 141
Maria Helena Rockenbach, Marilena do Nascimento

3.2 Musicoterapia e fonoaudiologia na clínica de lesão


encefálica adquirida ................................................... 150
Andréa Siqueira Kokanj-Santana, Marla Fabiana R. O. Sakamoto

4. O que precisamos saber sobre doenças neuromusculares ......... 153


Edmar Zanoteli

4.1 Fonoterapia e Musicoterapia na promoção de saúde e


na qualidade de vida de crianças com distrofia .......... 166
Maria Helena Nunes Schaan, Marilene Knetsch Martiny,
Marcio Colossi do Amaral

5. O que precisamos saber sobre lesão medular ............................. 176


Marcelo de Jesus Justino Ares
5.1 Musicoterapia e psicomotricidade: um fazer terapêuti-
co na lesão medular ................................................... 181
Janice Maria Gomes de Sant´Ana

5.2 Musicoterapia e psicoterapia de grupo: a construção de


uma parceria ........................................................... 195
Silmara do Nascimento

6. O que precisamos saber sobre outras condições incapacitantes . 207


6.1 Malformações congênitas e outras síndromes ............ 208
Francisco Hélio Violante Filho, Solange Sumire Aoki

xii Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


6.2 Defeitos do fechamento do tubo neural ...................... 228
Elizabete Tsubomi Saito Guiotoku, Fernanda Moraes Rocco

6.3 Amputações adquiridas .............................................. 231


Laís Miller Reis Rodrigues

6.4 Poliomielite .............................................................. 235


Fernando Facetta Jr.

6.5 Considerações gerais sobre a intervenção em crianças e


adultos com condições incapacitentes ............................ 248
Marilena do Nascimento

7. O brincar e a música ................................................................ 251


Lina Silva Borges Santos

8. As adaptações na Musicoterapia .............................................. 263


Lina Silva Borges Santos

9. Procedimentos de intervenção em Musicoterapia: Visão do Cen-


tro de Reabilitação da AACD para o Sistema da Qualidade ...... 281
Marilena do Nascimento

Parte 2
Outras experiências
10. Itiprofissional
mplicações neuropsicológicas no processo de reabilitação mul-
......................................................................... 294
Camila da Veiga Prade

11. Musicoterapia integrativa e reabilitação neurológica .................. 306


Gabriela Wagner

12. Música, emoção e memória musical ......................................... 337


Cléo Monteiro França Correia

13. Avaliação diagnóstica em Musicoterapia ................................... 349


Maristela Smith

14. Integração sensorial e Musicoterapia ......................................... 363


Heloiza Z. Goodrich, Maria Cristina de Oliveira

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xiii


15. Pensando sobre a vulnerabilidade ............................................. 376
Simone Pressioto Tibúrcio

16. Musicoterapia e ritmos biológicos ............................................ 386


Viviane Rose Fowler

17. Educação musical e Musicoterapia: adaptações do fazer musical


em prol da aprendizagem ou da reabilitação de
pessoas com deficiências .......................................................... 398
Viviane Louro

18. Explorando as possibilidades dos ambientes de realidade virtual


e aumentada no processo terapêutico ......................................... 411
Ana Grasielle Dionísio Corrêa, Roseli de Deus Lopes

xiv Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


PREFÁCIO

O número de indivíduos com necessidade de intervenção multiprofissional


na área da reabilitação vem aumentando devido a diversos fatores como os a-
vanços na medicina neonatal, a melhora na assistência ao politraumatizado, o
aumento da sobrevida em indivíduos com doenças crônicas, a maior longevidade
da população, o aumento da violência urbana e os acidentes relacionados ao
trânsito, dentre outros. Com esse cenário, a atuação dos reabilitadores se torna
fundamental e tem como objetivo o desenvolvimento e/ou a recuperação da fun-
cionalidade do indivíduo, sempre visando sua inserção ou reinserção social,
baseada em fundamentos práticos e científicos.
Com essa perspectiva, a Musicoterapia passou a contribuir, nos últimos
anos, de forma importante no processo de reabilitação de pacientes com múlti-
plas deficiências, em especial os pacientes com distúrbios motores e neurológi-
cos. A experiência acumulada no decorrer dos anos pelos musicoterapeutas da
AACD – Associação de Assistência à Criança Deficiente passa a ter registro
científico e documental com esta obra, que contribui de forma significativa para
a disseminação do conhecimento e da evolução dessa área de atuação.
Porém, não podemos deixar de salientar que é de extrema importância o
conhecimento dos princípios básicos, clínicos e terapêuticos das diversas enfer-
midades que acometem crianças (doenças congênitas, hereditárias e neonatais),
adolescentes e adultos jovens (lesões traumáticas), indivíduos de meia-idade e
seniores (doenças neurológicas e crônicas), para integrar a equipe de reabilitação
e, unindo forças e conhecimento, avançar na conquista dos objetivos e das metas
previamente traçados.
Dentro desse panorama, cada profissional, independentemente de sua área
de atuação, tem participação fundamental no processo de reabilitação, e a Musi-
coterapia passou a ocupar posição importante nesse cenário. Quando a equipe de
reabilitação realmente funciona como um time, com respeito entre os profissio-
nais e ciência dos limites de cada área de atuação, o resultado final é na maioria
das vezes gratificante, e isso é o que nos mantém motivados para o exercício de
nossas funções. As particularidades de cada especialidade nos dão a oportunida-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xv


de de realmente desenvolvermos um trabalho multiprofissional, e a participação
da Musicoterapia no processo de reabilitação é a expressão máxima da diversi-
dade profissional empenhada em um único objetivo: a reabilitação do paciente.

Mauro C. Morais Filho


Ortopedista Pediátrico
Diretor Clínico da AAC
Associação de Assistência à Criança Deficiente

xvi Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


COMO TUDO COMEÇOU...
BREVE HISTÓRIA DA FUNDAÇÃO DA AACD E DA
IMPLANTAÇÃO DO SETOR DE MUSICOTERAPIA

Marilena do Nascimento

No salão nobre da Associação Comercial de São Paulo, Capital, o Dr. Re-


nato da Costa Bomfim, em contato com os ortopedistas de sua época, com os
médicos da Santa Casa de São Paulo e do Hospital Samaritano, e a partir de suas
relações com a sociedade paulistana, no dia 3 de agosto de 1950, em sessão me-
morável, coloca a pedra embrionária que viria ser a Associação de Assistência à
Criança Deficiente – AACD.
Reabilitar para a vida diária era a tarefa da AACD nos anos 1950. Embora
tratando dos aspectos morfológico-funcionais, a AACD jamais esqueceu que
estava lidando com seres humanos sensíveis e com desvantagens psicofísicas e
sociais. Por isso, escolheu como eixo das atividades a inclusão do indíviduo no
convívio social e com objetivos claros: atender especificamente pacientes com
deficiências motoras e com capacidade para absorver o trabalho da reeducação,
em suas diferentes etapas, com o objetivo mais amplo da inclusão social e da
independência para a vida diária.
Conforme o livro comemorativo de 50 anos editado em 2000 pela direto-
ria da AACD, desde os primórdios de sua existência até os dias de hoje, a enti-
dade tem primado em receber eminentes profissionais internacionais das diferen-
tes áreas da reabilitação para cursos de educação continuada, avanços científicos
e prática de reabilitação.
A visão para educação formal, inclusão social e cultural para os pacientes
também foi preocupação dos fundadores e colaboradores, associada com as ati-
vidades médicas e terapêuticas da instituição.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xvii
Foto da AACD na década de 1980.

Logo nos primeiros anos, a diretoria da instituição organizava passeatas


com a apresentação de uma banda e dos pacientes, conforme documentado em
fotos da época que registram as atividades do grupo em campanha pelas ruas de
São Paulo para a captação de recursos.
Em 1960 a professora Anna Gojelis assumiu a direção da escola implan-
tada na unidade e ministrava também as aulas de música nas salas de aula.
Em meados de 1976, a pedido do Dr. Bomfim, um militar assumiu a Ban-
da da AACD, constituída somente dos pacientes que, munidos de uniforme e
instrumentos musicais com repertorio próprio, recepcionavam ilustres visitantes
e se apresentavam em campanhas e festas sociais (conforme depoimento dos
voluntários que participaram da instituição na época).
Outras professoras atuaram estimulando e desenvolvendo as habilidades
musicais dos pacientes da AACD, segundo o relato de colaboradores daquela
época, como a professora Maria Ivete e, posteriormente, a professora Catarina.
O Dr. Bomfim, que era amante das artes e da perfeição, tinha na estética
da vida a plasticidade da ortopedia. Visionário, deixou como patrimônio cultural
para a AACD o legado de primar terapeuticamente por seus pacientes a a possi-
bilidade de transitarem com a música e, em geral, com as artes.
Em 1984, quando iniciei meu trabalho na instituição como voluntária no
Setor de Recreação, encontrei como objetivo daquele setor o de ajudar a inclusão
dos pacientes, adultos ou crianças, nos serviços do Centro de Reabilitação. O
Setor de Recreação, desde que lançada a pedra fundamental da instituição, sem-
pre acompanhou de alguma forma o sistema de atendimento de seus pacientes.
xviii Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
Tanto o paciente que se encontrava internado na enfermaria (paciente in-
terno) quanto aquele que frequentava o Centro de Reabilitação (paciente exter-
no) participavam do programa de recreação entre os atendimentos das terapias e
das consultas ambulatoriais.
O objetivo dos atendimentos do Setor de Recreação era realizar, por meio
da arte – utilizando principalmente o papel, a tela, o lápis e as tintas coloridas,
entre outros materiais, de maneira pedagógica e extremamente lúdica, a estimu-
lação do potencial criativo inato do paciente, otimizando sua permanência no
Centro de Reabilitação nos intervalos entre as terapias.
A brincadeira, o contar histórias, e a exploração das habilidades faziam
parte do dia a dia do setor, e a música muitas vezes também transitava como o
tema escolhido para as atividades.
A sala era ampla, bem iluminada, com muitas janelas voltadas para um
grande jardim com piscina que era utilizada por pacientes que recebiam atendi-
mentos terapêuticos pela equipe da hidroterapia.
Os pacientes entendiam que o ambiente da sala de recreação era de extre-
mo conforto e descontração: com arte, com música, com dança e teatro, era o
momento da expressão individual e coletiva dentro do ambiente do sistema da
reabilitação.
O apoio do Dr. Bomfim, que foi visionário para sua época, em estimular
as atividades médicas e terapêuticas permeadas pelas atividades educativas e
artísticas foi decisivo como referência de qualidade para os pacientes da AACD.
Amante da música, possuía um teclado musical que foi doado para o Setor
de Arte-reabilitação na época em que ele presidia os trabalhos da diretoria, e
esse teclado, ainda nos dias de hoje, permanece nas prateleiras do setor como
idéia viva do fundador que, além de médico especialista, era também sensível e
grande parceiro para disseminação da arte, da cultura e dos esportes, acreditando
que os benefícios da educação eram o melhor caminho da inclusão social.
Muitos voluntários ajudaram com o trabalho de disseminar a música, e os
resultados dessas atividades, além de muita alegria e inserção sócio-cultural,
proporcionavam a melhora de qualidade de vida para o paciente e para o ambi-
ente de trabalho. Graças à solidariedade de muitos voluntários, a unidade sempre
esteve com atividades musicais. A professora voluntária Maria Helena Almeida,
com muito carinho, compôs em 1984 uma canção de Natal que ainda hoje é can-
tada pelas crianças no período do Natal (ver a partitura na página seguinte).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xix


Música natalina cantada pelas crianças e colaboradores desde 1984.

A música sempre permeou a história desde a fundação da instituição. No


começo foi aplicada como cultura, fazendo parte do entretenimento. À medida
que a visão do mundo foi mudando para o conceito de que, além de entreteni-
mento, a música também poderia ser aplicada nas ciências médicas como prática
terapêutica, a diretoria da AACD, embrionada na visão do Dr. Bomfim apoiou,
em março de 1994, a implantação do Setor de Musicoterapia na AACD.

xx Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Naquela época, a Musicoterapia no Brasil era tímida, e poucos locais con-
tratavam um profissional qualificado para seus serviços. A diretoria daquela
época também foi visionária ao abrir o caminho para os musicoterapeutas. Hoje,
no cenário mundial, encontramos trabalhos publicados por centros de estudos e
pesquisas conduzidas em países como Canadá, Austrália, EUA, Argentina, entre
outros, apresentando pesquisas com resultados positivos na prática da interven-
ção musicoterapêutica nos mais diferentes âmbitos da aquisição da saúde.
No conceito da profissão, divulgado no Congresso Internacional ocorrido
na Alemanha, em 1996, a Musicoterapia é “a utilização da música e/ou de seus
elementos (som, ritmo, melodia e harmonia) por um profissional qualificado, em
um paciente ou grupo, num processo para facilitar e promover a comunicação,
relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização, e outros objetivos
terapêuticos relevantes para alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais,
sociais e cognitivas. Objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer funções do
indivíduo para que possa alcançar melhor integração intra e/ou interpessoal e, em
consequência, melhor qualidade de vida, pela prevenção, reabilitação ou trata-
mento”.
O ambiente propício para o trânsito da música associada com a transdisci-
plinaridade, que é por natureza a essência da Musicoterapia, favoreceu a implan-
tação do setor nessa instituição em que a reabilitação física tem como modelo de
trabalho a interligação entre vários profissionais dentro do espírito de equipe
multidisciplinar.

Foto da AACD na década de 2000.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xxi


Seguindo a visão de um líder, uma diretoria que lhe deu continuidade de
maneira sensível, dinâmica e atualizada, acompanhando a evolução da prática da
reabilitação com a disponibilidade de aceitar novos paradigmas, manteve a porta
aberta para sedimentar a música e o profissional musicoterapeuta nos atendimen-
tos dos seus pacientes. Em 1994, um profissional foi contratado para a unidade
Ibirapuera, SP. Hoje (2009), contamos com mais profissionais contratados dis-
tribuídos nas unidades Ibirapuera, Mooca e Osasco (SP), Uberlândia (MG), Por-
to Alegre (RS), Nova Iguaçu (RJ), São José do Rio Preto (SP) e Teresina (PI).
Trata-se, atualmente, da maior equipe de musicoterapeutas contratada em um só
ambiente de trabalho no Brasil.
Agradecemos ao fundador e às diretorias subsequentes por terem aberto as
portas para o profissional musicoterapeuta que, com o seu trabalho, também
pode contribuir com as pessoas com necessidades especiais, harmonizando a
conquista da saúde com a qualidade de vida.

xxii Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A VISÃO MULTIDISCIPLINAR NA
ABORDAGEM TERAPÊUTICA
DA AACD

Marcelo de Jesus Justino Ares

O tratamento de reabilitação tem como princípio básico a palavra estímulo,


uma vez que a equipe envolvida deve avaliar as capacidades residuais de cada
paciente e, assim, estimular o potencial remanescente, nos âmbitos físico, emocio-
nal, intelectual e profissional. E é essa a filosofia que norteia o trabalho da Associ-
ação de Assistência à Criança Deficiente - AACD nos seus quase 60 anos de exis-
tência, desde que fundada pelo médico ortopedista Dr. Renato da Costa Bomfim.
Hoje, a instituição atende crianças e adultos que apresentam sequelas pre-
dominantemente motoras nas seguintes clínicas: Paralisia cerebral, Mielomenin-
gocele, Doenças Neuromusculares, Poliomielite, Malformações congênitas, e
Lesão encefálica adquirida no adulto e na criança.
Os pacientes que apresentam essas patologias são atendidos por profissio-
nais de diversas áreas, de forma integrada e sempre com objetivos e metas reais
e definidos, e cada caso é discutido em reuniões mensais ou trimestrais para
evitar a cronicidade do tratamento e para que se certifique de que as metas pre-
viamente traçadas estejam sendo cumpridas e atingidas.
A equipe multidisciplinar citada é formada por médicos (fisiatras, ortope-
distas e outros especialistas); fisioterapeutas (em solo e no meio líquido); tera-
peutas ocupacionais; psicólogos; fonoaudiólogos; musicoterapeutas; arte-
reabilitadores; pedagogos; professores; nutricionistas; assistentes sociais; enfer-
meiros; educadores físicos; ténicos em ortopedia e bioengenheiros.
O processo de reabilitação segue fluxo desde a entrada do paciente até o
término do programa proposto, o que inclui: triagem, exame médico inicial,
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xxiii
avaliação global com toda a equipe, o tratamento de reabilitação (terapias), a
reunião de alta, a alta programada após discussão de cada caso, e o reexame
médico que é realizado após o paciente receber alta de seu tratamento.
Muito importante salientar que a equipe deve estar coesa quanto aos pro-
cedimentos realizados e quanto aos objetivos propostos, sempre respeitando as
opiniões de cada profissional e unindo esforços para o sucesso do programa de
reabilitação.

xxiv Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


AS COISAS NÃO
ACONTECEM POR ACASO

Marilena do Nascimento

O desafio para a definição de Musicoterapia, como coloca Bruscia, é que


ela, por natureza, é transdisciplinar.
O que ele quer dizer em seu livro “Definindo Musicoterapia” é que a prática
não é uma disciplina isolada, mas sim uma combinação dinâmica de várias disci-
plinas em torno de duas áreas: a música e a terapia. Nós, os musicoterapeutas, por
natureza e pensando na plasticidade da música, temos naturalmente uma grande
abertura para transitar em outras áreas que podem ser caminhos ou canais para
resultados tanto na comunicação quanto na aquisição de saúde nas mais variadas
necessidades terapêuticas: físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas.
Transitar na equipe multidisciplinar constituída no modelo da AACD é
trocar experiência com os profissionais dos setores de fisioterapia, terapia ocu-
pacional, fonoaudiologia, psicologia, hidroterapia, pedagogia, arte-reabilitação,
reabilitação desportiva, assistência social, e da área médica que tem como coor-
denador da reabilitação o médico fisiatra.
O paciente, no modelo da AACD, recebe cuidados médicos das especiali-
dades: ortopedia, neurologia, pediatria, oftalmologia, cardiologia, pneumologia,
pediatria, psiquiatria, otorrinologia, entre outras, assim como cuidados odonto-
lógicos.
O médico fisiatra coordena as necessidades prioritárias frente à demanda
do paciente e elege o tratamento individualizado a partir da avaliação global
realizada com equipe multidisciplinar.
Quando iniciei meu trabalho em 1994 junto à equipe do Centro de Reabi-
litação Dr. Renato Bomfim, unidade Ibirapuera, SP, passei a observar o compor-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico xxv


tamento da equipe que discutia as necessidades de seus pacientes frente às suas
possibilidades individuais para a aquisição da mobilidade, da independência ou
para a adaptação às atividades da vida diária, que sempre foi a missão da institui-
ção desde sua fundação, e assim direcionei o trabalho do Setor de Musicoterapia.
Para executar o seu trabalho, o musicoterapeuta tem que ter em seu perfil
a habilidade desenvolvida da sua própria escuta.
Nada é por acaso...
Essa habilidade, a de escutar a equipe, o paciente, a família e o recurso
disponível para o tratamento é fundamental para o trabalho multidisciplinar.
Quando iniciei meus trabalhos profissionais na instituição, havia poucas
publicações científicas sobre Musicoterapia dentro da área de deficiência física e
nos moldes da reabilitação com equipe multidisciplinar. Passados esses 15 anos
de prática clínica em Musicoterapia na AACD, posso afirmar que a experiência
me levou a alguns resultados que serão apresentados neste livro.
Muita gente colaborou para a minha percepção de reabilitação e para a
prática clínica da Musicoterapia a serviço da reabilitação neurológica: os médi-
cos, em especial os fisiatras, a equipe técnica de reabilitação, na qual são firma-
das as parcerias com o objetivo comum da reabilitação do paciente. Mas, com
certeza, posso afirmar que a maior contribuição recebida para o aprendizado
descrito neste livro veio do próprio paciente e de sua família.

xxvi Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


INTRODUÇÃO

Alice C. Rosa Ramos

Dentre as terapias utilizadas para o tratamento dos pacientes com defici-


ências físicas, a Musicoterapia talvez seja uma das que temos menor número de
bibliografias disponíveis.
Este livro tem por objetivo auxiliar aos que trabalham na área ou que têm
interesse em conhecer o trabalho da Musicoterapia, em especial em um Centro
de Reabilitação.
Ainda é uma área em que são pouco difundidas as informações sobre os be-
nefícios trazidos pelo tratamento e à forma como poderia ser realizado quando a
deficiência física interfere na expressão e no manuseio dos instrumentos musicais.
A AACD hoje é a instituição que possui o maior número de musicotera-
peutas. Atualmente contamos com onze profissionais nas diferentes unidades
espalhadas em todo o território nacional.
Não há como trabalhar com pacientes com deficiências sem o conheci-
mento básico das bases neurofisiológicas e, para tanto, é necessária dedicação a
esta área que sabemos ser difícil, mas de fundamental importância para a prática.
Também se torna indispensável o conhecimento das doenças, suas limitações, e
o prognóstico de cada uma delas.
O musicoterapeuta fará parte do grupo de terapeutas que trabalhará o paciente
e tem que estar familiarizado com a linguagem técnica utilizada pelo grupo.
De modo geral, no Centro de Reabilitação, todas as modalidades terapêu-
ticas têm a oportunidade de apresentar para a equipe os motivos pelos quais as
intervenções podem trazer benefícios, naquele momento, ao tratamento do paci-
ente. A Musicoterapia participa dessa discussão contribuindo com suas conside-
rações.
Por vezes, essa terapia será utilizada inicialmente como forma de adapta-
ção da criança ao restante das indicações terapêuticas e, em outros momentos,
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 27
pode intervir como coadjuvante a outras terapias. Muitas vezes será uma forma
de integração social, promovendo a inserção e qualidade de vida.
Nos capítulos deste livro, o leitor poderá observar o trabalho realizado pe-
lo Setor de Musicoterapia da AACD. Foram anos de muito trabalho em busca da
criação de protocolos adequados a cada patologia e de indicadores para observar
os resultados obtidos. Essa diretriz tem sido o grande desafio para todos da área
das terapias da reabilitação, e a Musicoterapia tem se incluído na busca dos re-
sultados fazendo "Ciência através de evidências".
É de conhecimento as dificuldades observadas na obtenção de resultados
quantitativos, já que poucos se utilizam indicadores para avaliar a evolução dos
pacientes. Outro fator importante que poderá ser observado na prática das inter-
venções dentro do modelo multidisciplinar é a busca de objetivos terapêuticos
que são traçados, para cada paciente, no início do tratamento de Reabilitação.
Nesta obra, os leitores poderão encontrar informações recentes sobre as di-
ferentes patologias abordadas dentro da AACD. Também será possível obter
informações atualizadas de pesquisa em Musicoterapia e outras abordagens téc-
nicas. Vários profissionais de renome foram convidados para trazer suas experi-
ências e conhecimentos aos profissionais que se interessam pelo assunto.
Serão capítulos que muito têm a agregar no tratamento de pessoas com
necessidades especiais. O livro nos traz experiências com pacientes de diferentes
idades e mostra também a possibilidade do tratamento conjunto com outras es-
pecialidades terapêuticas. É dentro desta equipe, com diversos profissionais, que
vamos encontrar o trabalho gratificante realizado pela Musicoterapia. Com o
respeito observado entre os vários integrantes da equipe é que podemos obter
resultados cada vez melhores para os pacientes que nos procuram. Isso nos mo-
tiva para a busca da melhoria constante para a prática das nossas profissões.

28 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


PARTE 1
A EXPERIÊNCIA DA AACD

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 29


1
NEUROFISIOLOGIA DA MÚSICA

Ricardo José de Almeida Leme

É a partir dos sistemas sensoriais que o cérebro constantemente se informa


acerca do mundo externo. Os mecanismos de transdução da energia do estímulo
sonoro em sinais eletroquímicos estão cada vez mais claros nas suas dimensões
celular e molecular.
A codificação de estímulos é apenas uma das muitas funções dos sistemas
sensoriais. A compreensão atual das funções dos sistemas sensoriais é baseada
em estudos de componentes isolados de sistemas sensoriais individuais em con-
dições altamente controladas. Compreender como vários sistemas sensoriais
interagem na realidade, lidando com um fluxo constante de informações, repre-
senta o maior dos desafios em uma análise neurobiológica da percepção. O pro-
cessamento em tempo real das informações sensoriais, a operação básica de cada
sistema sensorial, está além da capacidade mesmo dos mais sofisticados compu-
tadores.

Noções anatômicas

O sistema auditivo se constitui de um componente periférico e outro cen-


tral; é um sistema de alta complexidade que filtra, amplifica e ajusta a estimula-
ção das células sensoriais.

30 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A orelha externa é constituída pelas seguintes estruturas: hélice, anti-
hélice, trago, antitrago, lóbulo, fossa triangular, concha auricular e o meato acús-
tico externo. Esse último é um funil sonoro em forma de “S” com cerca de 3 cm
de comprimento e 0,6 cm de diâmetro, sendo um terço cartilaginoso com glân-
dulas sebáceas e ceruminosas e dois terços, ósseos.
A orelha média (Fig. 1) é constituída pela cavidade timpânica em cujo in-
terior se encontram a membrana timpânica, os ossículos e alguns músculos. A
membrana timpânica (MT) tem 75 mm2 e possui uma parte flácida e outra tenas;
é um ressonador que aumenta a pressão transmitida à janela oval. A MT se liga a
uma cadeia de ossículos (martelo, bigorna e estribo) que, por sua vez, se conec-
tam com a janela oval.

Figura 1. Orelha média. (Extraído de Bear et al.1).

Os reflexos acústicos envolvem os músculos tensor do tímpano e estapé-


dio, localizados na orelha média. O músculo estapédio serve para amortecer as
oscilações dos ossículos do ouvido médio em resposta a estímulos acústicos de
alta intensidade, sendo inervado por fibras do nervo facial. Fibras auditivas do
complexo olivar superior se projetam bilateralmente aos neurônios motores do
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 31
músculo estapédio. As contrações do músculo estapédio, em resposta a sons de
intensidade elevada, servem para diminuir sua amplitude. Contrações do múscu-
lo tensor do tímpano, inervado por fibras trigeminais, também são iniciadas por
estímulos do complexo olivar superior. O músculo tensor do tímpano diminui a
sensibilidade da membrana timpânica ao som, tensionando a membrana. Final-
mente a tuba auditiva consiste num esqueleto ósteo-cartilaginoso que tem a fun-
ção de equalizar a pressão de ambos os lados da membrana timpânica, além de
servir de comunicação entre a orelha média e a parte nasal da faringe.
Na orelha interna se encontra a cóclea, um tubo enrolado e preenchido por
líquido, com altura aproximada de 35 mm no adulto, espiralizando-se em dois
giros e meio ao redor do modíolo (eixo ósseo que possui espaços ocos ramifica-
dos e que contém o gânglio espiral). O interior da cóclea possui três comparti-
mentos membranáceos: as rampas vestibular e timpânica e o duto coclear, sendo
as primeiras preenchidas pela perilinfa e o último pela endolinfa.

Neurofisiologia da audição

PORÇÃO PERIFÉRICA
A orelha externa e a média são responsáveis pelos fenômenos pré-receptivos.
O comprimento do meato acústico externo e as propriedades mecânicas da orelha
média determinam a faixa de frequências temporais transmitidas às células meca-
norreceptivas na orelha interna. Na raça humana, esta faixa de frequência audível
varia de 20 a 20.000 Hz, com um pico na faixa de 500 a 5.000 Hz. Na orelha média
ocorre a amplificação do sinal acústico, que objetiva compensar as diferenças de
impedância entre o ar e os líquidos (perilinfa e endolinfa) da orelha interna. Final-
mente, é nessa região que ocorre a dissipação da pressão sonora que se propaga da
base ao ápice da cóclea, permitindo a tonotopia coclear (propriedade pela qual cada
frequência sonora está representada em algum local da cóclea).
A energia das ondas sonoras que chegam à membrana timpânica é trans-
mitida por intermédio dos ossículos para a rampa vestibular (janela oval). A
membrana que cobre a janela oval na base da rampa timpânica se acomoda às
mudanças na pressão hidrostática. O órgão de Corti fica no interior do duto co-
clear e consiste em uma fileira de células ciliares interiores e três fileiras de célu-
las ciliares exteriores. A membrana tectória, ligada ao limbo espiral, fica sobre
as células ciliares. A ação de pistão sobre o estribo transmite a energia das ondas
sonoras para a rampa vestibular. A energia transmitida à perilinfa produz ondas
em direção à membrana basilar, que irão da base da cóclea até seu ápice. O des-

32 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


locamento da membrana basilar em resposta ao estímulo acústico causa a incli-
nação das células ciliares em contato com a membrana tectória. Os deslocamen-
tos dos cílios mais próximos ou mais distantes da janela oval e do estribo serão
traduzidos como percepção diferencial das frequências sonoras específicas. Des-
te modo, frequências mais altas são percebidas na base da cóclea, enquanto fre-
quências baixas são precebidas no seu ápice.

PORÇÃO CENTRAL
O nervo coclear se origina nas células do gânglio espiral situado no modíolo
coclear, e seu principal neurotransmissor é o glutamato. Os prolongamentos perifé-
ricos das células bipolares do gânglio espiral terminam em relação com as células
ciliadas do órgão de Corti. Os prolongamentos centrais das células ganglionares
formam o nervo coclear que termina nos núcleos cocleares. A partir de sinapses nos
núcleos cocleares, emergem fibras que, pelo lemnisco lateral, chegam aos colículos
inferiores (Fig. 2). Neste percurso, algumas fibras fazem sinapses intermediárias
com células da formação reticular, núcleos olivares superiores e com o núcleo do
corpo trapezóide. Das sinapses nos colículos inferiores se originam prolongamentos
para os corpos geniculados mediais no tálamo, de onde partem fibras que, pelas
radiações auditivas, se projetam para o córtex auditivo nos lobos temporais.
A destruição da cóclea, nervo coclear ou dos núcleos cocleares resulta em
surdez completa ipsilateral. Lesões no lemnisco lateral causam surdez parcial,
mais evidente no ouvido contralateral, pois esta via possui fibras que cruzam e
fibras que não cruzam a linha média.
Fibras do colículo inferior, do núcleo do lemnisco lateral e do núcleo oli-
var superior passam por núcleos intermediários e inibem diferencialmente im-
pulsos de certas frequências do espectro auditivo, aumentando, assim, algumas
frequências que não estão sujeitas à inibição central, fenômeno conhecido como
sintonia auditiva. O neurotransmissor envolvido nesta via é a acetilcolina, que
age hiperpolarizando a célula ciliada externa diminuindo o efeito amplificador
que elas produzem. A hiperpolarização seletiva destas células permite que algu-
mas frequências deixem de ser amplificadas e que outras passem normalmente,
melhorando a relação sinal ruído.
Algumas sinapses do colículo inferior estão relacionadas à orientação da
cabeça e do corpo na direção da fonte sonora assim como ao acoplamento do
som a informações visuais (colículo superior) e somestésicas.
O córtex auditivo primário é situado no giro temporal transverso superior
(área 41 de Broadman), possuindo uma coluna monoaural cujos neurônios apre-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 33


sentam organização tonotópica (Fig. 3) e uma coluna binaural cujos neurônios
respondem a uma mesma diferença interaural de intensidade.

Figura 2. Vias para a informação auditiva. (Modificado de Kolb e Whishaw7).

O córtex auditivo secundário, área 42 de Broadman, em contato com a á-


rea 22 (área de Wernicke) é o responsável pela interpretação dos aspectos abstra-
tos da fala no hemisfério dominante e pelo conteúdo emocional da fala no he-
misfério contralateral. A área 22 se conecta pelo feixe arqueado com a área 44
(área de Broca, situada no lobo frontal), responsável pelos padrões motores da
fala. Existe ainda uma área terciária de menor massa neural imediatamente pró-
xima e superior à área secundária.

34 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Figura 3. Organização tonotópica cortical. (Extraído de Bear et al.1).

Assim, a área primária estabelece o reconhecimento individual dos sons


em relação à intensidade, à frequência e à localização da fonte emissora. Os sons
são analisados isoladamente e são armazenados pelo córtex temporal com a me-
morização de notas e sua sequência temporal. A área secundária, excitada pela
primária, integra sons individuais em blocos maiores, através dos quais são ge-
rados padrões de harmonia, melodia e ritmicidade, também armazenados no
córtex temporal. Finalmente, a área terciária integra os blocos anteriores em
temas maiores, passando a caracterizar conceitos musicais e noções do que seja
uma composição musical.

Localizando sons no espaço


O sistema auditivo composto pelas orelhas e vias auditivas do cérebro
permite traduzir ondas de pressão do ar em sons e localizar as fontes sonoras. A
eficiência desse sistema é particularmente impressionante quando consideramos
que a energia numa onda sonora, mesmo em alto volume, é extraordinariamente
pequena, e que a maioria dos sons é composta por muitas frequências diferentes
no meio de um ambiente barulhento. Essa notável análise de sinais é realizada
pelo sofisticado sistema de transdução mecanoelétrico do ouvido interno traba-
lhando em conjunção com sistemas neurais que comparam sinais provenientes
dos dois ouvidos. Devido ao projeto mecânico do ouvido e à especificidade das
conexões cerebrais, os seres humanos são capazes de detectar sons que variam de
20 a 20.000 Hz com grande resolução espacial, chegando até um grau de arco.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 35


No cérebro, informações a partir dos dois ouvidos são combinadas no
tronco cerebral, e as vias auditivas separam informações sobre a cronologia e a
intensidade dos sinais, as duas pistas binauriculares para a localização do som. A
frequência dos sons também é representada nas vias auditivas centrais, e os neu-
rônios individuais são sensíveis a uma faixa limitada de frequências ou compri-
mentos de onda. Essas informações acerca da cronologia, intensidade e frequên-
cia dos sons ascendem em paralelo para áreas de processamento separadas no
córtex auditivo que analisam a localização, o volume e o tom, tal como, no cór-
tex visual, a forma, a cor e o movimento são processados em áreas separadas.

Interação dos sistemas sensoriais

Os sistemas auditivo, vestibular e visual têm receptores especializados e


axônios de nervos cranianos em suas periferias, núcleos específicos no tronco
encefálico, e áreas corticais específicas dedicadas a seu funcionamento. O siste-
ma auditivo geralmente funciona de forma independente dos outros dois siste-
mas, embora sons altos ou inesperados possam desencadear movimentos refle-
xos dos olhos e da cabeça para direcionar a visão em direção à origem desses
sons. Esses movimentos reflexos necessitam da atividade dos sistemas visual e
vestibular. A função do sistema visual é, em parte, dependente do sistema vesti-
bular porque a informação vestibular contribui para os movimentos oculares
compensatórios, mantenedores da estabilidade do esquema visual quando a ca-
beça é movida. A visão, por sua vez, contribui para a compreensão da linguagem
falada, uma vez que se compreende melhor a fala quando se podem acompanhar
os movimentos labiais de quem fala.

OUVIR E ESCUTAR
Uma vez descrito o processo de ouvir enquanto caracterização do sistema
auditivo, suas conexões e funcionamento, passamos a tratar da questão do escu-
tar, da interioridade da informação, e de como a consciência de cada ser se apro-
xima da informação captada.
Existe em cada ser um universo emocional interior único, cuja central de
organização, no sistema nervoso central, começa no sistema límbico (SL). Essa
qualidade ímpar de cada ser deve servir de alerta para a ciência estritamente
estatística que busca o “normal”, haja vista que no universo psíquico e subjetivo
o próprio conceito de normalidade deve ser redimensionado. Antes de a ciência
convencional tentar quantificar, ela deve se aproximar com a maior reverência

36 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


possível da qualidade dos fenômenos. No caso da escuta, por se tratar de fenô-
meno subjetivo, a possibilidade da quantificação ainda constitui um desafio à
metodologia científica convencional.
Estudos neurofisiológicos em pacientes com lesões cerebrais sugerem que
os princípios básicos que regem a teoria da harmonia, a consonância e a disso-
nância são reflexos das propriedades anatômicas e fisiológicas dos circuitos
auditivos. Atualmente está claro que ambos os hemisférios cerebrais estão rela-
cionados à percepção musical, sendo que a maioria dos casos de amusia se asso-
cia com afasia.
Alguns aspectos da melodia, como os intervalos, são seletivamente preju-
dicados em lesões no hemisfério esquerdo, enquanto a percepção dos contornos
melódicos continua intacta. A percepção do ritmo também é seletivamente pre-
judicada nas lesões do hemisfério esquerdo, e normalmente aparece intacta em
lesões do hemisfério direito. Várias evidências do ponto de vista neuropsicológi-
co apontam para a existência de circuitos neuronais autônomos para linguagem e
música. À semelhança das redes neuronais relevantes para a linguagem, domínio
espacial e numérico, também existem redes específicas para o processamento
musical.
Emoções são consistentemente provocadas pela ativação de áreas cere-
brais envolvidas no processamento auditivo, inclusive por estímulos musicais. É
reconhecido o papel dos lobos temporais no processamento tonal assim como o
papel das áreas frontais no processamento e discriminação melódicos em tarefas
cognitivamente mais complexas.
O SL tem importância capital nos mecanismos neurais que governam o
comportamento e as emoções. Sendo assim, esse sistema constitui importante
interface entre o corpo físico e as realidades musical, psíquica e espiritual em
que cada ser vivo está inserido. Os componentes desse sistema têm suas princi-
pais relações aferentes e eferentes com dois grandes campos funcionais: o neo-
córtex e a periferia víscero-endócrina. Dentro do SL, os corpos amigdalóides
têm papel crucial na mediação de respostas autonômicas, comportamentos emo-
cionais e alimentares. As amígdalas dão origem a fibras que se projetam para o
hipotálamo e tronco cerebral e regulam as respostas autonômicas aos estímulos
emocionalmente carregados. Existe uma projeção para o núcleo paraventricular
do hipotálamo de grande importância na mediação das respostas neuroendócri-
nas aos estímulos que causam medo ou estresse. Dessa forma, fica fácil antever a
importância das emoções em qualquer processo que tenha como objetivo a ma-
nutenção da saúde ou alcançar a cura.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 37


O SL é o deflagrador das experiências musicais e religiosas, e é nessa re-
gião que ocorre a vinculação das experiências vividas ao universo emocional do
indivíduo. Nas escutas musicais o SL se mostra particularmente ativo, conferin-
do grande peso ao vivido, esse é um dos motivos pelos quais essas experiências
muitas vezes são tão difíceis de serem descritas. Existe uma grande complexida-
de na resposta do sistema nervoso central durante o processo da escuta musical
que está intrinsecamente ligada à bagagem pessoal genética e cultural.
A situação conhecida como “orgasmo” musical, por exemplo, relaciona-se
com a liberação do mesmo hormônio ocitocina que ocorre no sexo feminino
durante o ato sexual e durante a amamentação (Fig. 4). Essas emoções intensas e
prazerosas podem ser despertadas em uma escuta musical que eventualmente
também pode despertar sensações de tristeza e pranto, conforme demonstrado
em estudos com ressonância magnética funcional.

Figura 4. Efeitos neuroendócrinos produzidos pela música. (Extraído de Douglas4).

38 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Blood e Zatorre2 estudaram as respostas emocionais de tristeza ou euforia
experimentadas durante a escuta musical que se associam a respostas autonômi-
cas psicofisiológicas denominadas “arrepios” ou “frios na espinha”. A atividade
cerebral foi mapeada por neuroimagem (PETscan), tendo sido evidenciado que a
intensidade dos “arrepios” se associou a respostas típicas do circuito da recom-
pensa, como aumento na atividade do estriado ventral esquerdo e região dorso-
medial do mesencéfalo, além de diminuição na atividade das amígdalas, hipo-
campo esquerdo e córtex pré-frontal medial. Maior ativação de regiões paralím-
bicas, observada em situações prazerosas, foi associada a momentos em que os
arrepios aumentavam.
Neste sentido, inúmeras pesquisas mostram o efeito da música na diminui-
ção de dores em pós-operatórios de neurocirurgia e ortopedia, além de servir de
atenuante em situações de depressão, estresse e ansiedade, caracterizando cada
vez mais o espaço da Musicoterapia na promoção e harmonização da saúde. A
base para esses estudos está na interação do campo emocional do paciente com o
estímulo musical, cujo ponto de encontro ocorre no SL.
Finalmente, mas não menos importante, o SL funciona como um centro de
mediação entre o sistema nervoso central, o sistema imunológico e o sistema
endocrinológico. Do ponto de vista neurofisiológico, fica evidente a íntima rela-
ção entre a música, o universo emocional do paciente e o potencial que ela pro-
mete na perspectiva de uma medicina preventiva de baixo custo.

Perspectivas no estudo da percepção musical

É inegável a importância do desenvolvimento da metodologia científica


na melhor compreensão dos fenômenos relacionados à fisiologia da audição.
Resta, no entanto, uma lacuna que cada vez mais vem recebendo atenção, já se
observando sinais de um olhar mais permissivo por parte da ciência. Nesse sen-
tido, estudos recentes no campo da vibroacústica sugerem que a experiência
auditiva pode estar além do campo receptivo do órgão da audição. O som, en-
quanto onda que se propaga, impressiona não só o sistema auditivo, mas toda a
estrutura corporal, que reage mudando funcional e estruturalmente, sugerindo
que a escuta ocorre em todas as células do corpo com o qual o som interage.
Ainda nesse sentido merece ser lembrado o trabalho do cientista japonês
Masaru Emoto5 que, estudando o processo de cristalização da água, demonstrou
empiricamente como diferentes estímulos sonoros podem promover padrões geo-
métricos com graus de organização e harmonia variáveis. O fato de o corpo huma-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 39


no ter a água como seu principal constituinte, em termos quantitativos, demonstra
o potencial desse tipo de estudo no sentido de abrir espaço para práticas de promo-
ção de saúde a partir da interação com estímulos musicais harmoniosos.
De acordo com Goswami6, estamos passando por um nível crítico de con-
fusão em que toda realidade que está além do campo material (realidade vital da
consciência, valores, Deus) está sendo corroída sob o ataque implacável do ma-
terialismo científico. Aceitamos o materialismo como dogma apesar de sua inca-
pacidade para explicar as experiências mais simples de nosso cotidiano. O mate-
rialista sustenta que os processos mentais subjetivos, produtos da consciência,
são apenas epifenômenos do mundo físico e podem ser reduzidos à questão do
cérebro material. Cada vez mais estudos como aqueles no campo da física quân-
tica sugerem que nossas escolhas, enquanto produtos da consciência, interferem
de forma decisiva na maneira como a realidade física se apresenta.
Defender o familiar e rejeitar o desconhecido é típico da natureza huma-
3
na . O autor relata sobre as ações remotas da consciência em artigo que foi rejei-
tado com o seguinte comentário do avaliador: “Este é o tipo de coisa que eu não
acreditaria mesmo que existisse”. Segundo Stephen Hawking nós não temos
idéia de como o mundo é realmente; tudo o que fazemos é construir modelos que
parecem comprovar nossas teorias. Os pontos de vista desses autores sugerem
que estarmos abertos a possibilidades pouco exploradas pela ciência é fundamen-
tal para o aprendizado e para a expansão do horizonte de conhecimento.

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42 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


2
O QUE PRECISAMOS SABER

SOBRE PARALISIA CEREBRAL


Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 43
2.1
PARALISIA CEREBRAL:
ASPECTOS CLÍNICOS E
DE REABILITAÇÃO

Maria Angela de Campos Gianni

De acordo com a United Cerebral Palsy Research and Educational Foun-


dation (EUA) e a Castang Foundation (RU), Paralisa Cerebral (PC) descreve
um grupo de desordens (a) permanentes (b) do desenvolvimento do movimento e
da postura, causando limitação da atividade, atribuída a distúrbios não progres-
sivos que ocorrem no encéfalo fetal ou infantil em desenvolvimento. As desor-
dens motoras (c) da PC são frequentemente acompanhadas (d) por distúrbios
sensoriais, perceptivos, cognitivos, da comunicação e do comportamento, por
epilepsia e por problemas músculo-esqueléticos secundários.
Esta definição chama a atenção para alguns aspectos intimamente ligados
ao tratamento:
(a) Mais que uma patologia, a PC é um grupo de desordens e, portanto,
necessita de um grupo de profissionais para lidar com ela.
(b) Essas desordens são permanentes, ou seja, não existe, para elas, trata-
mento de cura; por isso, é necessária clareza tanto dos profissionais quanto dos
pacientes e de seus familiares em relação aos limites de qualquer intervenção e

44 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


aos seus objetivos específicos; daí a importância de prognosticar com base em
dados científicos o potencial funcional, cognitivo, visual, social etc., para plane-
jar de forma realista o tratamento mais adequado para cada paciente, mas sem
excluir mesmo os mais gravemente comprometidos.
(c) A característica principal da PC é a desordem motora, que varia em suas
manifestações de acordo com a área encefálica comprometida. Assim, classifica-
se a PC como espástica, quando a área mais afetada é o córtex e as vias córtico-
espinhais, responsáveis pelo controle do tono e da movimentação ativa; sua le-
são leva a criança a ter diminuição dessa movimentação (a paresia) e liberação
do tono (a espasticidade). A soma desses dois distúrbios predispõe o desenvol-
vimento de contraturas e deformidades que vão comprometer ainda mais a per-
formance motora do paciente. Quando os núcleos da base e suas eferências, re-
conhecidos como “sistema piramidal”, são comprometidos, o quadro motor se
caracteriza por perda da modulação do movimento, com o aparecimento de mo-
vimentos involuntários, que parasitam a movimentação ativa e a dificultam, e
pelo tono flutuante; esse tipo clínico, denominado de PC discinética, geralmente
tem menos risco deformante, mas compromete o desempenho motor pela difi-
culdade do paciente em executar a ação motora de forma efetiva e programada.
Quando o movimento involuntário é de alta frequência e mais notado nas extre-
midades, é denominado de atetose, em contrapartida à coréia, que tem amplitu-
de maior e afeta principalmente a raiz dos membros; comumente, atetose e co-
réia se mesclam, causando a coreoatetose. A distonia também caracteriza lesão
do sistema extrapiramidal, e clinicamente se manifesta por movientos lentos em
posturas assimétricas e aberrantes, que se mantêm por algum tempo, às vezes
levando a confundí-la com o quadro espástico; pode-se diferenciar os dois por-
que a espasticidade geralmente compromete os grupos musculares de forma
simétrica e constante. O tipo clínico chamado de PC atáxica se manifesta basi-
camente por incoordenação e déficit de equilíbrio, causados por lesão cerebelar.
É bastante comum a associação de mais de uma forma de distúrbio do movimen-
to, o que se define como PC mista. A distribuição topográfica desses distúrbios
pode ser simétrica e semelhante nos quatro membros – tetraparesia; simétrica
com predomínio nos membros inferiores – diparesia; ou comprometer apenas
um dimídio corporal – hemiparesia. Atualmente, porém, sugere-se substituir
esses termos pouco elucidativos por descrição mais específica da manifestação
observada em cada paciente.
(d) Os distúrbios associados geralmente são tão ou mais limitantes que o
comprometimento motor, fato que reforça a importância do amplo conhecimento

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 45


a respeito, pois comprometimentos associados podem interferir na evolução
motora, e vice-versa; reforça também a necessidade de profissionais de diferen-
tes áreas de atuação que somem suas capacidades para tratar mais adequadamen-
te os portadores de PC.
PC é o diagnóstico desse quadro clínico amplo e variado, mas não é um
diagnóstico etiológico. Inúmeras condições patológicas podem levar a ela, desde
malformações do sistema nervoso fetal até traumas crânio-encefálicos e infec-
ções, congênitas (como a rubéola, a lues e o HIV) ou não (como meningites e
encefalites), que atingem a criança na primeira fase de sua vida até cerca de dois
anos. Porém, essas causas claramente definidas são consideradas, cada vez mais,
exceção cuja regra é uma etilogia determinada por inúmeros fatores de risco,
denominados de “padrão causal”. É cada vez mais claro que o fato de um bebê
ter nascido de um parto traumático, ter sofrido anóxia neonatal importante ou ter
uma mãe hipertensa ou diabética não determina, por si só, o diagnóstico etioló-
gico da PC.
A predisposição genética tem se mostrado aspecto relevante na gênese das
manifestações clínicas, apesar de não estar ainda determinada claramente. As-
sim, a realização de avaliação através de exame clínico minucioso e repetido ao
longo do tempo, de anamnese cuidadosa e de exames complementares é manda-
tória quando o médico se depara com um paciente cujo quadro sugere PC. O fato
de existirem alterações nos exames de imagem tampouco fecha o diagnóstico,
uma vez que nenhuma dessas alterações é patognomônica, ou seja, exclusiva da
patologia: imagens sugestivas de lesão anóxica, como a leucomalácia periventri-
cular e defeitos da substância branca, podem aparecer em doenças degenerativas
e quadros neurometabólicos; esses, apesar de progressivos, ocasionalmente pro-
gridem muito lentamente e, em algumas fases, chegam a estacionar, mimetizan-
do a “encefalopatia não evolutiva” da PC.
Conclui-se, portanto, que o diagnóstico da PC é multifatorial e, frequen-
temente, de exclusão, o que deve alertar a equipe de saúde para ser cuidadosa no
momento de concluí-lo e comunicá-lo à família. A forma como se transmite o
diagnóstico para os responsáveis frequentemente norteia toda a postura deles em
relação à equipe de reabilitação e ao tratamento proposto. Quando o enfoque se
dá nas potencialidades da criança e no que pode ser feito para desenvolvê-las,
sem deixar de colocar a irreversibilidade do quadro, de forma geral o comporta-
mento da família é positivo e cooperativo, e compreendem que a soma de esfor-
ços de profissionais e familiares, atuando como “aliados”, é fundamental para
que o tratamento seja eficaz e alcance suas metas.

46 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O tratamento global para o indivíiduo com PC, cujo objetivo será o de al-
cançar a melhor qualidade possível de vida, deve se basear num tripé composto
por: (1) conhecimento da patologia; (2) determinação objetiva do prognóstico
funcional; e (3) que cada aspecto possa receber a intervenção específica permea-
da da compreensão da necessidade do trabalho multidisciplinar.
Numa situação ideal, a equipe médica em uma “Clínica de Paralisia Cere-
bral” é constituida pelos profissionais abaixo, cuja atuação é sucintamente descrita:

1. Médico Fisiatra: é o coordenador da equipe, treinado para conhecer a


fundo o paciente, avaliar as suas dificuldades motoras, detectar se há ou não
distúrbios associados, determinar inicialmente o prognóstico global de reabilita-
ção (que será revisto à medida que o paciente seja avaliado pelos outros mem-
bros da equipe), encaminhar para as especialidades médicas de apoio e para ava-
liação com a equipe de reabilitação. De forma geral, é o Fisiatra que faz o diag-
nóstico do tipo de PC (se espástica, discinética, atáxica ou mista) e da sua distri-
buição, que prescreve órteses e outros aditamentos e mobiliário (juntamente com
a equipe de reabilitação), que avalia os distúrbios de movimentos (espasticidade,
distonias) e que realiza intervenções para tratá-los (prescrição de medicamentos,
bloqueios neuromusculares).

2. Médico Ortopedista: é a principal especialidade médica de apoio na clí-


nica de PC, já que a desordem motora é a sua característica básica. Avalia o
paciente do ponto de vista da viabilidade da cirurugia e sob o aspecto técnico;
discute o prognóstico funcional com o fisiatra e o objetivo principal do procedi-
mento, seja melhorar posicionamento, tratar dor ou promover marcha, entre ou-
tros, e juntos vão decidir se o procedimento deve ser realizado ou não.

3. Médico Neurologista / Neuropediatra: cerca de 45% dos portadores de


PC apresentam algum tipo de convulsão em algum momento da vida. Pacientes
convulsivos, quando adequadamente diagnosticados e tratados, podem levar
vidas produtivas e sem limitações decorrentes das convulsões per se. Auxilia o
fisiatra na elucidação do diagnóstico etiológico e também no tratamento dos
distúrbios dos movimentos, na indicação de procedimentos mais invasivos como
implantação de bombas de infusão de medicamentos ou rizotomias.

4. Médico Oftalmologista: as complicações visuais que atingem a PC são


várias, incluindo a retinopatia da prematuridade, a baixa acuidade visual de ori-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 47


gem cortical, o estrabismo por desequilíbrio da musculatura intrínseca do olho, e
muitas outras, chegando a ocorrer em 90% dos pacientes. As alterações visuais
podem dificultar desde atividades básicas, como a função manual e a marcha, até
funções mais elaboradas, como a aprendizagem. Em crianças muito pequenas,
nem sempre é simples detectar baixas visuais importantes, e não é incomum
essas crianças serem confundidas com deficientes mentais. Vale ressaltar que o
conceito de visão subnormal compreende um comprometimento da visão mesmo
após as correções dos problemas observados – erros de refração, estrabismo.
Apesar das correções, o indivíduo tem acuidade visual baixa, campo visual redu-
zido e/ou alterações da percepção da luz, mas, ainda assim, é potencialmente
capaz de utilizar a visão para planejamento ou execução de uma tarefa, necessi-
tando, para tanto, ser devidamente diagnosticado e ter indicados os auxílios ade-
quados (lentes, lupas, magnificação em vídeo etc.).

5. Médicos Gastrenterologistas, Pneumologista, Otorrinolaringologista e


Nutricionista: nos últimos anos, a sobrevivência de prematuros extremos e de
bebês de muito alto risco tem levado aos Centros de Reabilitação crianças com
quadros graves de PC, frequentemente associados com doença do refluxo gastre-
sofágico, disfagia orofaríngea, síndrome aspirativa, broncopneumonias de repe-
tição e desnutrição crônica. Além disso, esses bebês, muitas vezes intubados por
longos períodos no berçário, e sofrendo de problemas respiratórios próprios do
recém-nascido, podem cursar com quadros de laringotraqueomalácia ou terem
necessitado de traqueostomia, e ainda a estarem usando quando chegam ao Cen-
tro de Reabilitação. Dessa realidade nasceu a necessidade das especialidades
acima passarem a fazer parte das “Clínicas de apoio” da Clínica de Paralisia
Cerebral, para que o paciente seja adequadamente diagnosticado do ponto de
vista nutricional, respiratório e da capacidade de se alimentar.

6. Médico Psiquiatra: a PC é secundária a um dano no sistema nervoso


central em desenvolvimento; esse sistema nervoso, sede de funções motoras,
sensoriais, perceptivas e cognitivas, também é a sede da mente, muito mais com-
plexa de definir e compreender. Alterações de comportamento, manifestações do
espectro autista, psicoses e outros distúrbios que se observam, mas que não pare-
cem ser causados por nenhuma alteração neurológica, podem ser avaliados pelo
Psiquiatra, que auxiliará a equipe na melhor compreensão e intervenção do caso.

48 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A equipe multidisciplinar de reabilitação atua somando o conhecimento
específico de cada área na avaliação funcional do paciente, na determinação do
prognóstico, no planejamento da intervenção terapêutica e no tratamento propri-
amente dito. Cada área possui instrumentos padronizados, de reconhecimento
internacional, para avaliação e seguimento dos pacientes, e também métodos de
intervenção de valor reconhecido. Abaixo são citados os profissionais que fazem
parte dessa equipe e algumas características básicas de cada um deles.

1. Fisioterapia: atua diretamente sobre o aspecto motor, mas não apenas


nele. Existem métodos diferentes de tratamento, cada um com suas particulari-
dades. A Fisioterapia atua de forma diferenciada no paciente pós-operatório e no
paciente submetido a tratamento para espasticidade. Cabe ao Fisioterapeuta es-
timular as aquisições motoras, treinar formas de locomoção, seja a deambulação,
seja o uso de aditamentos, seja o uso de cadeiras de rodas. A Fisioterapia Respi-
ratória é uma área específica de atuação dentro da especialidade, assim como a
Fisioterapia Aquática, quando se dispõe de piscina aquecida onde se pode asso-
ciar ao trabalho fisioterapêutico as características físicas benéficas da água.

2. Terapia Ocupacional: o principal objetivo é a indepêndencia do pacien-


te em sua vida, conseguindo realizar as tarefas do dia a dia de acordo com suas
características particulares; para isso, o Terapeuta Ocupacional (TO) vai lançar
mão dos mais variados meios e instrumentos, de forma criativa, sempre baseado
em profundo conhecimento científico. Por exemplo, ao tratar uma criança pe-
quena, o TO vai usar o brincar com objetivos terapêuticos definidos; ao trabalhar
com um paciente em idade escolar, poderá usar adaptações como substituição de
preensão ou lápis engrossado para facilitar o grafismo, e assim por diante. Ge-
ralmente, cabe também ao TO prescrever mobiliários, cadeiras de rodas e suas
adaptações, e é dentro dessa área que tem se desenvolvido muito a ciência mo-
derna conhecida como “Tecnologia Assistiva”.

3. Fonoaudiologia: dentro da Clínica de Paralisia Cerebral, as principais


áreas de atuação da Fonoaudiologia são as disfunções dos órgãos relacionados à
alimentação / deglutição / respiração – tratamento voltado para a disfagia; dis-
funções da fala / linguagem – tratamento fonoaudiológico das disartrofonias,
métodos de comunicação suplementar e aumentativa (CSA), método Hanen de
comunicação; e as disfunções relacionadas a déficit auditivo.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 49


4. Psicologia: a atuação da Psicologia é ampla e pode ser didaticamente
dividida em três níveis:
- junto ao paciente, avalia potencialidades cognitivas e dificuldades emo-
cionais, trabalha com os pacientes individualmente, em grupos simples ou com
outras especialidades, atua como vínculo com profissionais de outras áreas e de
outras instituições, prepara para intervenções invasivas, entre outros;
- junto aos familiares, acolhe, orienta, trabalha a dinâmica familiar, a
compreensão e aceitação das limitações etc.;
- junto aos outros profissionais da equipe, participa na determinação do
prognóstico com dados quanto ao potencial cognitivo e emocional, auxilia a
manter a equipe coesa e perceber sinais de “estresse de contato” que possam
prejudicar o bom desempenho profissional do grupo. A síndrome de burnout é
um capítulo à parte que deve ser ressaltado, quando o assunto menciona profis-
sionais da área de saúde, especialmente aqueles que atuam com pacientes crôni-
cos e incuráveis. O papel de cuidador em tempo integral muitas vezes leva esses
profissionais a negligenciarem a sua própria necessidade de cuidados, no sentido
de preservar aspectos privados da vida e da saúde emocional, levando a desgaste
crescente até completo esgotamento de suas reservas de energia. Isso causa per-
da da motivação e do sentido primordial de qualquer trabalho, que deve ser de
realização e gratificação pessoal, culminando, muitas vezes, no prejuízo da ca-
pacidade profissional de beneficiar o paciente através do conhecimento científi-
co, além da solidariedade.

5. Pedagogia: com a nova lei de inclusão escolar, que torna direito de toda
criança, portadora de deficiência física ou não, o acesso à escola, e dever de toda
escola acolhê-la, o importante papel da Pedagogia na Clínica de Paralisia Cere-
bral se torna ainda mais fundamental. As principais formas de atuação dessa
especialidade são a estimulação cognitivo-pedagógica, o trabalho específico das
dificuldades de aprendizagem e a prática concreta da inclusão.

6. Reabilitação Desportiva: os benefícios da prática de esportes são reco-


nhecidos para qualquer indivíduo; na infância e adolescência têm papel funda-
mental no desenvolvimento da autoestima, no aprendizado de regras e limites e
do convívio em sociedade. Para os portadores de deficiências em geral, e de PC
em particular, agregam-se a esses benefícios os relacionados ao trabalho físico,
com ênfase no planejamento motor, na coordenação e na automatização do mo-
vimento. Além das modalidades consagradas, como a Natação e o Basquete

50 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


adaptados, hoje em dia se vê a prática de inúmeros outros esportes nos Centros
de Reabilitação, como a Capoeira, a Bocha, o Futebol, o Tênis de Mesa etc.,
cada um com os objetivos gerais já descritos, mas enfatizando aspectos diferen-
ciados conforme suas características específicas.

7. Arte-reabilitação: é a utilização dos recursos artísticos com fins tera-


pêuticos. Permite a expressão de conteúdos e potencialidades pessoais do paci-
ente através de meios verbais e não-verbais. O Arte-terapeuta é o mediador que
torna acessível ao paciente o material artístico e o processo criativo; é ele que
traça os objetivos para a terapia, e esses objetivos são amplos, podendo ter maior
enfoque motor, emocional ou social, conforme a avaliação de cada caso junta-
mente com toda a equipe.

8. Musicoterapia: dispensa comentários neste ponto, por ser justamente o


assunto deste livro.

Além destes profissionais, também são de grande importância na Clínica


de Paralisia Cerebral:

- Enfermeiro: é o profissional que faz o vínculo entre pais / cuidadores e


médicos se tornar mais próximo. Pode explicar a posologia de medicações, as
informações básicas sobre procedimentos cirúrgicos indicados, os cuidados pós-
operatórios, como curativos, os cuidados gerais para manutenção da saúde rela-
cionados à higiene, alimentação etc.
- Técnico em órteses: um bom técnico em órteses é fundamental no trata-
mento do portador de PC, especialmente quando apresenta espasticidade, utiliza
órteses por longos períodos de sua vida, de vários tipos, para vários segmentos
corpóreos, com finalidade tanto de posicionamento como de auxílio funcional.
Além disso, se o técnico tiver algum conhecimento de marcenaria, poderá auxi-
liar na confecção de mobiliário, de adaptações para a cadeira de rodas etc.
- Assistente Social: tem a função imprescindível de auxiliar paciente e
familiares na busca dos serviços a que têm direito, como aposentadoria, auxilio
de custos com medicamentos, fraldas, sondas etc. Em algumas situações mais
extremas, pode prover condições básicas de vida, como cestas básicas e outras
doações. Ainda é papel do Assistente Social tomar providências diante de crian-
ças expostas a maus tratos.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 51


A ação conjunta desses profissionais tem a finalidade de trazer ao porta-
dor de PC um tratamento integral que contemple todas as suas necessidades.
Porém, para que esse tratamento seja adequado e realista, é fundamental a de-
terminação do prognóstico global de reabilitação de cada paciente, com base na
avaliação particular de cada função.
Para se traçar um plano de tratamento em relação ao aspecto motor, deve-
se saber não apenas o diagnóstico, mas também determinar o impacto que esse
comprometimento acarreta sobre a função motora, que pode ser muito variável
de criança para criança. O conhecimento do Sistema de Classificação da Função
Motora Grosseira (Gross Motor Function Classification System – GMFCS) pela
equipe de reabilitação é de fundamental importância para que se determine o
nível de inabilidade motora de cada paciente, estabelecendo-se, a partir daí, o
prognóstico sobre o qual serão planejadas as metas a se atingir através da inter-
venção terapêutica. Seu foco principal é diferenciar as crianças com base na
mobilidade funcional, independentemente do tipo e da distribuição da desordem
motora, e prevendo a futura mobilidade. Essa classificação define cinco níveis
de comprometimento motor, sendo o nível I o de melhor potencial para indepen-
dência na locomoção, e o nível V o de maiores limitações funcionais, em cinco
faixas etárias diferentes (antes dos 2 anos; de 2 a 4 anos; de 4 a 6 anos; de 6 a 12
anos; e de 12 a 18 anos). Deve-se, entretanto, ter em mente que deficiências
outras, associadas à motora, interferem nesse prognóstico e, portanto, precisam
também ser avaliadas e levadas em conta.
O prognóstico para independência nas atividades de vida diária, para co-
municação, para aprendizagem e para participação ativa na sociedade também
precisa ser determinado de maneira objetiva e científica, lembrando que reabili-
tar o portador de PC não se restringe a estimular sua locomoção da forma mais
autônoma possível, mas buscar sua máxima autonomia em todos os aspectos da
vida. Assim como o GMFCS, criado com objetivo motor específico, há outros
sistemas de classificação e métodos de avaliação que priorizam aspectos diver-
sos. É o caso do MACS (Manual Ability Classification System), que divide os
pacientes em cinco níveis de gravidade em relação à função manual; do PEDI
(Pediatric Evaluation of Disability Inventory), que determina limitações nas
habilidades funcionais em autocuidado, mobilidade e função social; do Progra-
ma Hannen, que avalia níveis de desenvolvimento da comunicação da criança
com o meio e com as outras pessoas e propõe maneiras de potencializá-lo; dos
diversos testes especiais para avaliação cognitiva, de distúrbios específicos de
leitura e escrita, das várias funções neuropsicológicas, e assim por diante. Cada

52 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


uma dessas avaliações tem suas especificidades, e é necessário que o profissio-
nal que se propõe a usá-las esteja treinado e familiarizado não só com sua apli-
cação, mas principalmente com a interpretação dos resultados, e possa, partindo
desses resultados, criar estratégias de tratamento para minorar as limitações do
paciente.

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Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 53


2.2
O MÉTODO NEUROEVOLUTIVO

Maria Cristina dos Santos Galvão


Marilena do Nascimento

Nos centros de reabilitação em que o atendimento é interdisciplinar, é na-


tural que os termos utilizados transitem especialmente na área de intervenção
física e que sejam de conhecimento de toda a equipe. O Método Neuroevolutivo
tem sido utilizado na AACD como um dos métodos de referência para os aten-
dimentos, havendo, assim, a necessidade da participação da equipe, em especial
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e a fonoaudiólogas, nos cursos de for-
mação e aprimoramento do método.
Os termos utilizados pelo método acabam fazendo parte de outras áreas
terapêuticas e das áreas médicas, constituindo meio de comunicação técnica de
toda a equipe. Essa é a razão pela qual este capítulo elucidará aspectos importan-
tes dessa comunicação técnica, de modo que o leitor possa entender melhor a
visão de base do Método Neuroevolutivo.
O tratamento neuroevolutivo foi idealizado por Berta e Karel Bobath em
1943, e desde então tem passado por várias mudanças, embora o seu conceito
básico não tenha sido modificado. O principal objetivo do tratamento é encorajar
e melhorar a função e a habilidade para mover-se, na maneira mais normal pos-
sível, modificando os padrões de postura anormal e facilitando padrões motores
mais normais como uma preparação para maior variedade de habilidades funcio-
54 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
nais. Esse conceito é baseado no reconhecimento da importância de dois fatores:
(1) A interferência na maturação normal do cérebro pela lesão, levando ao atraso
ou à interrupção de alguns ou de todos os aspectos do desenvolvimento; e (2) A
presença de padrões anormais da postura e do movimento resultantes do tono
postural anormal. [Entenda-se por tono o estado normal de resistência e de elas-
ticidade de um tecido ou de um órgão].

Definições e terminologia

No Método Neuroevolutivo, cada termo adotado tem definição própria e


específica, como veremos a seguir.
Reação associada: Refere-se ao aumento anormal de tono em uma parte
do corpo, como resultado do esforço de outra parte, que geralmente é menos
afetada ou não afetada. Essa reação está associada à espasticidade, é vista como
um movimento na criança com espasticidade leve / moderada e é sentida como
aumento de tono na criança com espasticidade severa. Por exemplo, a criança
hemiplégica que usa o lado não afetado pode mostrar aumento na espasticidade
no lado afetado, que mais parece um movimento; a criança diplégica, quando
usa seus braços, pode apresentar aumento de tono nas pernas.
Movimentos associados: Normalmente são movimentos coordenados que
ocorrem na ausência de espasticidade. Eles são vistos na infância, quando os mo-
vimentos ainda são muito globais devido à imaturidade (por exemplo, os movi-
mentos em espelho), ou durante uma nova atividade. Também podem ser vistos
em adultos, quando estão experimentando uma nova tarefa ou quando há esforço.
Balanço (Balance): Definido como a habilidade de permanecer ou recu-
perar determinada posição, é o resultado da interação das reações de endireita-
mento, equilíbrio e proteção. Reações de endireitamente se referem a movimen-
tos que mantêm ou que retornam o corpo em alinhamento observados nas pri-
meiras etapas do desenvolvimento motor, ou quando as reações de equilíbrio
ainda não estão suficientemente desenvolvidas.
Tono básico: É determinado pela avaliação do tono em descanso e sob
mínima estimulação.
Cocontração: Cocontração normal é a ativação simultânea dos músculos
esqueléticos agonistas e antagonistas, com o objetivo de dar mobilidade com
estabilidade. Isso torna possível o movimento suave, graduado e coordenado.
Distonia: É o aumento repentino do tono que fixa a criança temporaria-
mente em uma postura extrema. Com frequência, depende da posição da cabeça.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 55


O padrão é previsível, mas não o momento de ocorrência.
Reações de equilíbrio: Referem-se a um grupo de movimentos automáti-
cos (que ocorrem sem planejamento mental e sem esforço) e altamente comple-
xos que servem para manter e recuperar o equilíbrio antes, durante e depois de
um deslocamento do centro da gravidade.
Facilitação: É uma técnica de manuseio que faz os movimentos ativos (ou
seja, movimentos realizados sem auxílio por uma criança) ficarem mais fáceis,
tornando possível a sua realização.
Inibição: Definida como a habilidade de refrear uma ação em favor de ou-
tra, refere-se a posições e movimentos que reduzem a tensão muscular causada
pelo aumento anormal do tono muscular. Inclui as reações normais à estimula-
ção, isto é, respostas que estão em relação apropriada (adequada) à intensidade e
ao tipo de estímulo, à escolha do tipo de reação e da resposta localizada.
Pontos-chave de controle: São partes do corpo em que o terapeuta pode
controlar e modificar, com maior eficácia, os padrões de postura e de movimen-
tos em outras partes do corpo. Podem ser usados para inibir, facilitar e estimular.
Padrões de movimentos: Paralisia cerebral (PC) é uma desordem da co-
ordenação dos padrões da atividade muscular, não da função individualizada dos
músculos e articulações. A preocupação do Método Neuroevolutivo é a postura e
o movimento global, e não as amplitudes de movimentos em uma articulação, ou
a contração ou relaxamento de um grupo muscular específico. Por exemplo,
definir um movimento isolado do ombro não é adequado. É necessário também
indicar o que está acontecendo com o tronco, cotovelo e punhos. Está envolvida
a coordenação de um número de grupos musculares em diferentes sinergismos.
O Método Neuroevolutivo enfoca os padrões predominantes de atividade,
para descrever um padrão global de atividade; por exemplo, uma criança pode
apresentar um padrão predominante de flexão (ou dobrar os membros e espinha),
embora existam elementos do padrão extensor.
Ajuste postural: É a experiência / prontidão postural automática que as-
segura um movimento mais fácil, eficiente e mais econômico a qualquer tempo,
antes, durante e depois do movimento.
Reações de proteção: Provê a última etapa da defesa no sistema nervoso
central maduro e um elo entre as reações de equilíbrio e de endireitamento du-
rante o desenvolvimento.
Padrões influenciando o tono (P.I.T.): São padrões de atividade usados
para modificar os padrões anormais de postura e de movimentos pelos quais se
inibe a hipertonia e/ou o desenvolvimento da hipertonia.

56 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Reações de endireitamento: Englobam cinco reações que trabalham em
conjunto com as reações de equilíbrio e são especialmente envolvidas com o
alinhamento, controle de cabeça e de tronco, e com a rotação sobre o eixo do
corpo. Elas são vistas isoladas somente em experiências com animais e, até certo
ponto, no bebê em desenvolvimento.
Rigidez: Está presente quando há resistência contínua e imutável ao mo-
vimento em todas as direções. É como se movimentar através de cola. Isso torna
difícil a iniciação do movimento.
Estimulação: Vem de muitas fontes, tanto do próprio corpo como do
meio ambiente. Isso inclui modalidades tais como os pensamentos, as emoções,
a visão, a audição, o tato, a propriocepção, a dor e a temperatura.
Compensação: Termo tipicamente usado para descrever o excesso de
movimentos de partes do corpo menos envolvidas.

Fases do desenvolvimento motor

No Método Neuroevolutivo, inicia-se o tratamento pela avaliação do nível


funcional e gradativamente se focam as razões dos problemas.
A PC afeta a criança por inteiro, podendo alterar, além dos movimentos, a
fala, a audição, a visão, a percepção e a socialização, que estão relacionadas
entre si, dificultando a compreensão para quem cuida da pessoa portadora da
deficiência ou a atende terapeuticamente.
Portanto, cabe à equipe terapêutica promover tratamento global, com in-
teração de todos os terapeutas que atendem a criança. Embora cada membro da
equipe se concentre mais em certo aspecto das inabilidades da criança e trabalhe
para melhorar as diferentes áreas de atividades, deve haver um esforço comum,
mais do que cada um trabalhando isoladamente.
A visão do Método Neuroevolutivo estabelece uma forma comum de ver e
avaliar os problemas da criança com PC.
O ser se expressa com movimentos e, mesmo a fala, necessita de coorde-
nação final da musculatura pertinente, assim como qualquer movimento precisa
da coordenação dos músculos. Aprender a mover-se significa aprender a dar
respostas adequadas às demandas do ambiente e a desenvolver atividades fun-
cionais para a independência e para, mais tarde, ser capaz de ir à escola. A crian-
ça normal precisa de cinco anos de desenvolvimento físico e social para poder
aproveitar a escola. Ela precisa de grande quantidade e de longo tempo de aqui-
sições no desenvolvimento para estar pronta para o período futuro de sua vida.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 57


Segundo Piaget3, “o aprendizado é baseado na experiência sensório-
motora”, ou seja, na possibilidade de sentir os próprios movimentos.
A criança normal inicia seu aprendizado com os movimentos do corpo e
das mãos. Coloca seus dedos na boca e brinca com mãos e dedos. Aprende sobre
texturas dos objetos quando os toca e os leva à boca. Aprende sobre seus lábios e
língua através de suas mãos e quando move a comida na boca. Aprende sobre
seu próprio tamanho quando alcança objetos ou pessoas, quando engatinha sob
móveis e sobe neles. A criança descobre seu ambiente quando circula por ele,
seja rolando e arrastando-se, engatinhando e, mais tarde, andando. Dessa forma,
a criança aprende sobre o espaço e desenvolve a percepção espacial.
Para a criança normal, o movimento significa segurança, conforto e prote-
ção. Com o desenvolvimento das reações de endireitamento, aprende como sair
de posições desconfortáveis, com o desenvolvimento das reações de equilíbrio, e
aprende como se ajustar a mudanças do centro de gravidade e, dessa forma, sen-
tir-se segura quando é movimentada e quando se move por si1.
O desenvolvimento perceptual e visomotor também são influenciados pelo
desenvolvimento físico da criança.

As limitações da capacidade de uma criança para movimentos


ativos têm a probabilidade de retardar seu desenvolvimento perceptual
e, dessa maneira, sua habilidade intelectual global, favorecendo o sur-
gimento dos problemas na escola.1

As interações na linguagem, fala e movimentos têm sido estu-


dadas por muitos. Por um longo tempo, até que a criança possa falar,
comunica-se principalmente através dos movimentos e gestos. Muito
antes de falar, a coordenação de seus movimentos e de seu controle
postural, contra a gravidade, desenvolveu-se suficientemente para
permitir que ela se equilibre e ande, e usando as mãos para manipular,
brincar e auto-ajudar-se. Quando pode falar, ela o faz alto para si mes-
ma (...).4

[reforçando sua brincadeira com a fala e sua fala com o movimento, o que
pode ser visto em muitas brincadeiras típicas da idade].
O desenvolvimento social e emocional é afetado pela sua habilidade em
mover-se, porque o movimento a faz independente da atenção constante de sua
mãe. Nos primeiros dias de vida, a criança responde à manipulação de sua mãe
com movimento, quando ela é levantada, ou colocada no berço, lavada, vestida,
alimentada, e outras atividades de cuidados em geral. Dessa maneira, a criança
58 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
aprende a ajustar-se às mudanças de postura e a desenvolver reações posturais
normais contra a gravidade. Continua sendo manipulada e movimentada dessa
forma, até que seja capaz de mover-se por si só. Começa então a afirmar sua
independência, e quer fazer tudo sozinha. Quer alimentar-se só, embora com
bastante bagunça, e passa a protestar e a lutar quando não quer ser levantada,
lavada, vestida etc.

Quando a criança normal estabelece as habilidades básicas do


controle postural, como andar e usar as mãos, vai continuar a adquirir
habilidades novas e mais difíceis, tais como correr, pular, pegar e jogar
bola, escrever, pintar e muitas outras.Vai conseguir e aperfeiçoar todas
essas coisas por tentativa e erro, como todos nós aprendemos uma nova
habilidade mesmo na fase adulta. A criança normal vai usar, modificar
e adaptar suas experiências sensório-motoras presentes, e o conheci-
mento e a memória de experiências passadas, para a aquisição de novas
atividades. Toda habilidade nova é difícil a princípio e será executada
de maneira desajeitada, em um ritmo lento, com esforço excessivo e
tensão dos músculos. Os mesmos movimentos que já foram perfeita-
mente coordenados, rápidos e sem esforço em atividades anteriores
tornam-se menos coordenados por um tempo. Sempre ocorre uma re-
gressão temporária a uma atividade motora mais primitiva e menos se-
letiva, quando movimentos anteriormente bem coordenados têm que
ser usados em combinações diferentes de padrões, para tarefas novas e
mais difíceis. A mudança e adaptação dos padrões de movimentos pre-
sentes a novas atividades, durante qualquer performance, dependem do
input sensorial e da direção, isto é, da visão, audição, tato, pressão e da
própriocepção. Essa informação é checada, organizada e selecionada,
para produzir uma nova e bem integrada experiência sensório-motora.
A repetição fará a performance mais automática, rápida e suave, reque-
rendo menos esforço.1

A aprendizagem acontece através da sensação, o que quer dizer que não


aprendemos movimentos, mas sim a sensação dos movimentos. Uma criança,
normal ou anormal, pode apenas lembrar-se de usar o que ela experimentou an-
tes. A criança normal vai usar e desenvolver seus padrões motores normais (ou
seja, movimentos que ocorrem como resultado de muitos músculos trabalhando
juntos, e que são a base de todas as atividades de vida diária), enquanto que a
criança com PC continuará a usar e, portanto, reforçará seus padrões motores
anormais atuais. A criança com PC, segundo a visão Bobath, terá seu desenvol-
vimento prejudicado, sem a experiência, talvez, da maioria dos padrões de mo-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 59


vimentos que uma criança normal adquire com bem pouca idade, e os quais pro-
videnciam a base para habilidades mais complexas e difíceis que ela vai adquirir
mais tarde. A criança com PC tem, assim, duas grandes desvantagens:
1) Instrumental insuficiente para desenvolver habilidades funcionais;
2) Falta de experiência sensório-motora normal, na qual se baseia um de-
senvolvimento mais amplo que ela poderia adaptar à demanda do ambiente.

O input sensorial, que é importante por si, e também para o de-


senvolvimento, vai resultar somente em um output inadequado e anor-
mal.1

Na criança que tem seu desenvolvimento normal, essas etapas acontecem


naturalmente. Para a criança com PC, é necessária atenção especial para promo-
ver essas etapas, lembrando que uma fase depende da outra para estabelecer
aprendizado.

Desenvolvimento de padrões na paralisia cerebral

Segundo o conceito Bobath, a criança fisicamente deficiente não consegue


“se fazer” independente do apoio e da manipulação de sua mãe, e pode perma-
necer dependente dela física, emocional e, até mesmo, intelectualmente. Se a
criança não pode agir por ela mesma, pode não aprender a pensar por ela mesma
e, em consequência, o desenvolvimento de sua personalidade será restrito. Na
criança atetóide e na criança espástica, a frustração pelas habilidades funcionais
limitadas poderá levar a problemas comportamentais que podem afetar a família
inteira de modo desagradável. A criança mais severamente afetada, que não pode
mover-se, vai ajustar-se precocemente à dependência permanente, e seu desen-
volvimento será impedido.
Quando o terapeuta aplica seus conhecimentos sobre o desenvolvimento
normal no tratamento da PC, deve perceber que a avaliação e o tratamento pu-
ramente evolutivo, em termos de marcos principais e seu uso funcional, não são
suficientes, segundo a visão Bobath. Atualmente existe grande número de clíni-
cas e centros de avaliação para crianças com PC.
A orientação dada geralmente é oferecer à criança muita estimulação senso-
rial, motivação e o ensinamento de habilidades. Embora isso possa ser suficiente
para estimular o desenvolvimento de crianças deficientes mentais e aquelas com
alguns outros tipos de deficiência motora, não é suficiente para a criança com PC.

60 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


(...) A aprendizagem acontece através da sensação, o que quer
dizer que não aprendemos movimentos, mas sim a sensação dos mo-
vimentos. Uma criança, normal ou anormal, pode apenas lembrar-se e
usar o que ela experimentou antes. A criança normal vai usar e desen-
volver seus padrões motores normais, enquanto que a criança com Pa-
ralisia Cerebral continuará a usar, portanto, reforçar seus padrões mo-
tores anormais atuais (...).1

A criança poderá somente responder e funcionar em maneiras anormais a


qualquer estímulo sensorial que ela receba. Na PC, as atividades ocorrem com
diferentes graus de anormalidade, isto é, tono postural e padrões motores anor-
mais, que interferem no desenvolvimento da criança. Há também o perigo real de
ocorrerem (e aumentarem com o tempo) as contraturas (definidas como tensões
musculares e articulares permanentes ou aparentemente fixas) e as deformidades
(definidas como posturas específicas adotadas de forma fixa pelos membros ou pelo
corpo) em decorrência do desuso e do mau uso da atividade física e postural.
A tarefa do terapeuta quando trata da criança com PC é a conscientização
das necessidades especiais dessa criança. Deficiências associadas com déficits
de visão, de audição e de fala aumentam a complexidade da condição da criança.
Deve-se evitar a generalização das necessidades dessas crianças com relação ao
tratamento, equipamento e orientações, tanto domiciliares como escolares.
Entretanto, para uma compreensão geral dos principais problemas e ne-
cessidades dessa criança, os tipos de PC serão divididos didaticamente em dois
grupos: os espásticos e os atetóides, que necessitam de método de tratamento
diferente.
A criança espástica precisa de movimento, mas ela é mais dura para mo-
ver-se. Todo movimento é lento e, para ela, enseja um grande esforço. Quando a
criança se senta ou levanta, não movimenta as pernas, e tem medo de cair, e isso
a faz mais parada e mais dura. Para que se sinta mais segura, tem que ser capaz
de equilibrar-se, mas o equilíbrio precisa de muitos movimentos. Dessa forma,
um círculo vicioso se estabelece:
♦ A espasticidade aumenta porque a criança não se move, e os movimen-
tos se tomam mais difíceis à medida que o tempo passa. O terapeuta deve tornar
os movimentos fáceis, divertidos e seguros para a criança, de forma que a crian-
ça goste de se movimentar e sinta uma vontade grande de fazê-lo;
♦ A criança atetóide apresenta um problema totalmente diferente. Movi-
menta-se demais e não consegue controlar ou dosar seus movimentos. Nesse
caso, o terapeuta deve tornar possível, para a criança, a manutenção da postura,

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 61


motivando a inibição dos movimentos (ficar quieta), levando-a a se mover len-
tamente, graduar e controlar seus movimentos, ajudando a fixar e a estabilizar a
criança, organizando suas atividades.
Com todas as crianças, a tarefa do terapeuta é prepará-las para a função,
para obter coordenação mais normal, e prevenir ou aliviar as deformidades.

Diversas condições da criança com paralisia cerebral

A PC não é uma condição que necessita de tratamentos padronizados, ou


de um número de exercícios, ou de um programa rígido para obter realizações do
desenvolvimento1. Confrontamo-nos com crianças com PC em condições com-
pletamente diferentes, tais como espasticidade, atetose (ou movimentos contí-
nuos e indesejáveis que a crinça não consegue controlar), ataxia (ou falta de
equilíbrio e movimentos em arranque), paralisia cerebral mínima, assim como
uma mistura desses sintomas.
Quadriplegias (todo o corpo afetado), diplegias (todo o corpo afetado, mas
com maior comprometimento das pernas) e hemiplegias também apresentam
problemas diferentes que precisam de tratamentos diferentes.
Crianças com idades diferentes, com experiências domiciliares diferentes,
com pais ou cuidadores com níveis sócio-culturais diferentes necessitam de a-
bordagem terapêutica planejada a partir de sua história natural. O conceito de
tratamento neuroevolutivo divide:
a) Diferentes tipos de PC, inclusive as suas misturas;
b) Diferentes idades (mudando de figura de bebê ao adulto);
c) Diferenças na distribuição do tono postural anormal: quadriplegia, he-
miplegia, diplegia, paraplegia (apenas as pernas são afetadas), monoplegia;
d) Diferentes qualidades de tono postural: espástico, atetóide, atáxico, hi-
potônico;
e) Diferentes graus de envolvimento: leve, moderado ou severo;
f) Diferentes habilidades cognitivas;
g) Diferentes deficiências associadas: visão, audição, percepção, comuni-
cação, emoção / comportamento, cognição;
h) Diferentes condições domiciliares e experiências da criança.

(...) a incapacidade resultante da lesão, no caso o portador de


Paralisia Cerebral, pode ser manifestada por dificuldades para a movi-
mentação, dor ou alterações cognitivas e de comunicação.2

62 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Como não se podem tratar todas as crianças da mesma forma, ou prescre-
ver um conjunto específico de exercícios para todas, cada criança terá suas ne-
cessidades individuais e requererá um programa individual de terapia. Nestas
condições, o método neuroevolutivo concluiu que os objetivos terapêuticos de-
verão ser:
♦ Estimular movimentação facilitando as posturas fisiológicas;
♦ Estimular a conscientização do corpo no espaço e da imagem corporal;
♦ Acompanhar a instalação de contraturas e orientar paciente e cuidador;
♦ Estimular o aprendizado (auditivo, visomotor e memória motora).

Considerações finais

Os conceitos do Método Neuroevolutivo Bobath foram referendados neste


capítulo apenas para que o leitor tenha contato com os relevantes princípios do
método. Em momento algum este conhecimento qualifica o profissional a utili-
zar o método sem que obtenha o título de especialista, depois de frequentar obri-
gatoriamente os cursos de formação e de aprimoramento para sua aplicação.
Essas considerações sobre os principais aspectos do método são apenas elucida-
tivas, e devem ser entendidas como uma possibilidade de apoio para a interven-
ção musicoterapêutica.

Referências
1. Bobath Centre. Notes to accompany the 8-week course in cerebral palsy. [Tradução de
Sonia Gusman e Pessia Meyerhof]. Londres: Bobath Centre; 1997.
2. Lianza S. Medicina da reabilitação. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001.
3. Piaget J. A epistemologia genética. [Tradução de Nathanael C. Caixeiro]. São Paulo:
Vozes; 1971.
4. OliveiraMK. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento. Um processo sócio-histórico.
4. ed. São Paulo: Scipione; 2001. (p. 52).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 63


2.3
MUSICOTERAPIA E O PACIENTE
COM PARALISIA CEREBRAL*

Marilena do Nascimento

A criança com diagnóstico de Paralisia Cerebral (PC), conforme orienta-


ção da Organização Mundial de Saúde (OMS), deverá ser cuidada, preferenci-
almente, pela equipe de reabilitação.
A visão prática da reabilitação envolve os conceitos de Neurologia, da Fi-
siatria, da Ortopedia, da Oftalmologia, da Odontologia, da Fisioterapia, da Fono-
audiologia, da Terapia Ocupacional, da Psicologia, da Psicopedagogia e da Mu-
sicoterapia, entre outros. A união de todas essas áreas, representadas por profis-
sionais clínicos e estudiosos da reabilitação, objetiva o tratamento para os paci-
entes com déficits neurológicos, nos quais se inclui a criança com PC.
A reabilitação física vem se tornando uma especialização para todas essas
áreas cujos profissionais, além de suas graduações, adquirem conhecimentos
específicos que visam o aperfeiçoamento de técnicas para o atendimento de pa-
cientes que delas necessitam.
A Musicoterapia, quando aplicada em um centro de reabilitação para a e-

*
Agradeço à mestra Clementina Nastari, que me introduziu na especialização em Musicoterapia, e à médica
fisiatra Ângela Maria Costa de Souza, que me introduziu no universo dos estudos sobre Paralisia cerebral, e
continua sendo minha mentora inspiradora.

64 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


xecução de um programa individual desenvolvido para o paciente, trabalha em
estreita e recíproca colaboração com as outras áreas da equipe multidisciplinar,
levantando as prioridades terapêuticas do indivíduo e adequando seus objetivos.
Os dados de cada paciente, reunidos, classificados e analisados por toda a equi-
pe, permitem estabelecer um plano completo de assistência individual.
A PC na infância constitui grave problema social, pois, devido à sua mag-
nitude, além das implicações de ordem pessoal e familiar da moléstia incapaci-
tante, a comunidade é atingida como um todo pelos encargos econômicos que
deve assumir para suprir as necessidades do indivíduo incapaz de ser auto-
suficiente e que, desse modo, necessita do amparo da Previdência Social.
A Musicoterapia vem colocando seus serviços à disposição da reabilitação
física, com grandes benefícios para os pacientes, contemplando o desenvolvi-
mento e a expressão motora, bem como a estimulação cognitiva, ajudando na
reabilitação global e nas avaliações da evolução do tratamento.
Este capítulo tem como objetivo apresentar, a partir dos conceitos perti-
nentes à PC e seu tratamento, observações do desenvolvimento motor natural
comparado ao possível desenvolvimento da criança com PC, levantando as prin-
cipais questões que norteiam os objetivos para o tratamento da criança enqua-
drada em um centro de reabilitação motora, alinhadas com a proposta de um
processo musicoterapêutico. A proposta é a de que a intervenção musicoterapêu-
tica possa estar alinhada aos objetivos comuns da equipe multidisciplinar.
A interação musicoterapêutica motiva a criança promovendo e potenciali-
zando suas ações que impactam na evolução do seu tratamento de modo geral;
como objetivo terapêutico específico podemos considerar o de ampliar suas con-
quista motoras.

A musicoterapia ocupa um lugar de coadjuvante nos processos,


como seria nos casos cujos objetivos seriam conseguir movimentos na
reabilitação motora (...).2

Muitos já escreveram sobre a influência dos sons no ser humano.


Quando o indivíduo com deficiências elege instrumentos musicais ou fontes
sonoras diversas (como o bater palmas), elabora sons a partir do próprio corpo ou
explora sonoridades diferentes a partir de elementos como madeira, metal, couro,
água e outros, é mister que o musicoterapeuta inclua no programa de reabilitação,
dentro do contexto multidisciplinar, as experiências sensório-motoras musicais.
A criança com déficit de desenvolvimento motor tampouco tem como re-
ferencial vivências com o tambor, o chocalho, instrumentos simples de corda ou
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 65
sopro, ou mesmo brinquedos como língua de sogra e reco-reco. Os pais e famili-
ares, para não frustrarem a criança com PC (ou eles mesmos), não oferecem
experiências que, para a criança com desenvolvimento normal, são oferecidas
naturalmente.

Na musicoterapia utilizamos esses efeitos que a música pode


produzir nos seres humanos nos níveis físicos, mentais, emocionais, e
também sociais, atuando como facilitador da expressão humana, dos
movimentos e sentimentos, promovendo alterações que levem ao a-
prendizado, uma mobilização e uma organização interna que permitam
ao indivíduo evoluir em busca, seja ela qual for.1

A criança normal inicia seu aprendizado com os movimentos do corpo e


das mãos. Essa afirmação é postulada por vários autores que afirmam que o de-
senvolvimento da criança acontece através das suas aquisições motoras. Colo-
cam, ainda, que a possibilidade da movimentação dentro dos padrões de norma-
lidade significa segurança, conforto e proteção.
Quando a criança normal está interagindo com o meio através de sua mo-
bilidade, naturalmente estará também estimulando suas habilidades da percepção
visomotora e cinestésica. Após grande número de aquisições para o seu desen-
volvimento é que estará pronta para a escola, efetivando sua comunicação e ga-
nhando independência nas atividades, o que possibilitará sua inserção.
O mesmo não acontece para a criança com PC; o desenvolvimento social
e emocional dessa criança será afetado pela sua inabilidade em mover-se. Falta
de movimento significa constante dependência da atenção da mãe ou do cuida-
dor. No caso da criança com PC que tem o seu instrumental insuficiente, o de-
senvolvimento das habilidades funcionais não será acionado, e a falta da experi-
ência perceptual e sensório-motora dificultará sua adaptação ao meio.
Importante lembrar que o input sensorial que não chega como nos padrões
da normalidade vai gerar um output inadequado e anormal.
A PC pode afetar a criança nos seus movimentos, na fala, na audição, na
visão, na percepção e na socialização. Essas habilidades se relacionam entre si e
podem trazer dificuldades de compreensão para quem cuida da criança ou a a-
tende terapeuticamente.
A criança muitas vezes precisa de ajuda para efetivar sua comunicação. A
interação com o meio solicita da criança a comunicação verbal e gestual, e para
dar as respostas adequadaa às demandas do ambiente e desenvolver atividades
funcionais a criança precisa aprender a mover-se.

66 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Planejamento da intervenção na reabilitação

Como já foi colocado em capítulo anterior, o tratamento inicia preferenci-


almente com a avaliação do nível funcional e, gradativamente, foca as razões
dos problemas. Deverão ser observadas com atenção especial as etapas do de-
senvolvimento da criança com PC, lembrando que uma fase depende da outra
para acontecer o aprendizado.
Cada profissional da equipe multidisciplinar poderá se concentrar em um
dos aspectos das inabilidades da criança. O ideal é que um esforço comum so-
breponha o trabalho isolado, cabendo à equipe promover um tratamento global,
com a interação de todos os terapeutas que atendem a criança.
Lianza8 cita os níveis de atenção à saúde propostos por Itoh e Lee (Quadro
1), segundo os quais a equipe de reabilitação, cada vez mais, deve fazer parte
integrante da atenção secundária e primária no tratamento das pessoas com defi-
ciências físicas e/ou cognitivas.

Quadro 1. Níveis de atenção à saúde conforme Itoh e Lee (citados por Lianza8).
CUIDADOS
PRIMÁRIOS SECUNDÁRIOS TERCIÁRIOS
Promoção da saúde Diagnóstico precoce Limitação da incapacidade
Proteção específica Reabilitação Cuidados assistenciais de manutenção

O importante é que os médicos, ao identificarem as necessidades de seus


pacientes, possam intervir clinicamente, e oportunamente encaminhar para aos
procedimentos musicoterapêuticos, alinhados com a reabilitação, com ênfase nas
prioridades da demanda individual.
Conforme o modelo exposto no Quadro 1, a Musicoterapia pode entrar
nos cuidados secundários, com o objetivo de estimulação precoce ou tratamento
apropriado, ou nos terciários, como cuidados de manutenção.
Como já foi colocado, cada criança tem suas necessidades individuais e
condições diferentes, com diferentes graus de acometimento pela PC, do mais
leve até os mais severos, o que requer um programa individual de terapia.
De modo geral podemos apontar as seguintes metas terapêuticas:
♦ Estimular movimentação facilitando as posturas fisiológicas;
♦ Estimular a conscientização do corpo no espaço e imagem corporal;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 67


♦ Acompanhar eventual instalação de contraturas e orientação para o pa-
ciente / cuidador;
♦ Estimular as habilidades auditivas, visomotoras e a memória motora,
entre outras, conforme as bases da intervenção musicoterapêutica.
Segundo Hagberg (1989, apud Souza12),

Paralisia Cerebral é o termo usado para designar um grupo de


desordens motoras, não progressivas, porém sujeitas a mudanças, re-
sultante de uma lesão no cérebro nos primeiros estágios do seu desen-
volvimento.

Sugestionados pela possibilidade de mudança, a equipe investe nas abor-


dagens terapêuticas com esta finalidade. A criança com PC pode ter grande difi-
culdade motora que inviabilize a aplicação de testes, e caso a criança não consi-
ga falar, é necessário um profissional experiente para compreender o que a cri-
ança está realmente entendendo da situação que está ocorrendo. Para estabelecer
comunicação, muitas vezes necessitará de Comunicação Alternativa, que são
estratégias desenvolvidas especialmente na Fonoaudiologia, e que levam em
conta que suas respostas são prejudicadas pelo déficit motor e não pela falta de
compreensão da criança quanto ao fato exposto, e nessa situação alternativa para
comunicação o profissional poderá entender do que realmente a criança é capaz.
A capacidade intelectual diminuída impacta respostas empobrecidas na relação
com o mundo.

O aumento dos potenciais da intervenção precoce, o mais cedo


possível com a criança com PC, torna-se importantes para abordagens
preventivas e terapêuticas antes que o fracasso se estabeleça. (Meye-
rhof, In: Souza e Ferraretto13).

A Musicoterapia vem oferecer nestes casos uma gama variada de aborda-


gens segundo diferentes autores:

O tratamento musicoterapêutico proposto depende das anomalias


apresentadas e através do ritmo, da melodia, do uso de instrumentos a-
dequados, muitas vezes adaptados às necessidades físicas e emocionais
dos pacientes, podemos trabalhar a coordenação motora, o tono muscu-
lar, o esquema corporal, o desenvolvimento da linguagem e a modulação
vocal; na parte emocional, a motivação com relação aos demais trata-
mentos (muitas vezes dolorosos e contínuos), aceitação da deficiência, o

68 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


aumento da autoestima e a consequente integração social.1

O aspecto psicológico do deficiente físico, que não participa de


momentos musicais, sociais, recreativo ou acadêmico (por déficit físi-
co), que tem sua inteligência e escrutínio conservados, gera uma gran-
de dose de frustração e infelicidade.7

A mola propulsora para desencadear a atividade motora estrutu-


rada e inteligente é o querer fazer e de determinado modo. O interesse
leva ao caminho mais curto da sabedoria. A palavra “interesse” expri-
me uma relação de conveniência entre o indivíduo e o objeto (instru-
mento musical, ou fonte sonora) que lhe importa em um dado momen-
to. O interesse não é evidente na qualidade objetiva das coisas. Estas só
se tornam interessantes à medida que se relacionam com a necessidade,
que são capazes de determinar o comportamento, no sentido que im-
porta ao indivíduo: “O interesse é o princípio fundamental da atividade
mental“ (Thomdike e Gates, 1936 apud Nascimento7).

A necessidade impulsiona a criatividade.3

Utilizar o potencial que existe no indivíduo é desejável ou pre-


ferível com relação ao desenvolvimento e a sua evolução.5

[A saúde do corpo, da mente, do espírito, tem seus alicerces na escada do


crescimento individual].
O potencial individual do desenvolvimento da criança está baseado em
suas condições fisiológicas e nas circunstâncias dos vários contextos em que
vive. Não há dois indivíduos que tenham as mesmas alternativas ou possibilida-
des de saúde. A motivação poderá ser um dos agentes a acionar o potencial in-
terno do indivíduo na busca do desenvolvimento e da saúde

Quadro de avaliação de problemas e necessidades


da criança com paralisia cerebral

A criança com deficiência física pode permanecer dependente fisicamen-


te, emocionalmente e até mesmo intelectualmente da mãe ou do cuidador, por-
que não consegue se fazer independente do apoio e da manipulação. A criança
que não pode agir por si mesma terá dificuldades para suas próprias decisões e,
em consequência, o desenvolvimento de sua personalidade poderá ser compro-
metido. A frustração da criança frente às habilidades funcionais limitadas poderá
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 69
acarretar problemas comportamentais que afetam a família inteira. O comprome-
timento motor severo poderá levar a criança afetada a ajustar-se precocemente à
dependência permanente da mãe ou do cuidador, e o seu desenvolvimento estará
mais fadado ao insucesso.
Como já foi colocado em capítulo anterior, a criança funciona e responde
de maneira anormal a qualquer estímulo sensorial que recebe. Observamos que
na PC existem diferentes graus de anormalidade, isto é, tono postural e padrões
motores anormais que interferem no desenvolvimento da criança. Pode haver ocor-
rências de contraturas e deformidades pelo desuso ou pelo mau uso da atividade
física e postural.
A tarefa do terapeuta quando trata da criança com PC é conscientizar-se
das necessidades especiais, ou seja: deficiências associadas com déficits de vi-
são, audição e da fala que aumentam a complexidade das condições da criança.
Ressalte-se que devemos evitar generalizar as necessidades das crianças em
relação ao tratamento ou ao equipamento ou às orientações, tanto domiciliares
como escolares, porque o que pode servir para uma criança pode não ser indica-
do para outra, mesmo que tenham o mesmo diagnóstico.
Não se pode tratar todas as crianças da mesma forma. Cada criança tem
suas necessidades individuais e requer um programa individual de terapia. O
Musicoterapeuta deverá ter o conhecimento teórico do desenvolvimento normal
e saber como se comporta o desenvolvimento patológico e suas evoluções, para
poder interpretar as habilidades musicais do paciente com déficits neurológicos e
estabelecer as etapas terapêuticas no planejamento do tratamento.
Nesse sentido, devemos estar cientes de que as necessidades terapêuticas
de crianças com PC espástica não são iguais às das crianças com atetose. Embo-
ra essa divisão (espasticidade / atetose) seja mais de ordem didática, podemos
sugerir, com base no conceito neuroevolutivo, que os objetivos terapêuticos da
intervenção musicoterapêutica sejam alinhados com a visão de reabilitação mo-
tora apresentada no Quadro 2A e B.
Também é importante esclarecer que possuir os canais sensoriais íntegros
não basta. Para as respostas adaptativas, os canais sensoriais (o tátil, o proprio-
ceptivo, o visual, o olfativo, o auditivo e o gustativo), na prática, é que trazem
uma resposta motora a um estímulo. E, para isso, toda criança necessita integrá-
los.

70 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Quadro 2A. Problemas e necessidades de crianças com PC tipo atetóide (Bobath4).
A CRIANÇA COM ATETOSE PRECISA
(CARACTERÍSTICAS) (PARA INTERVENÇÃO)

1. 1.
- Qualidade de tono postural flutuante; - Estabilidade do tono postural e combate
os espasmos intermitentes [Espasmos são
movimentos incontrolados repentinos
decorrentes de tensionamento repentino e
intermitente do(s) músculo(s)];
- Mudanças repentinas variando entre hipotonia e - O tono pode ter que ser aumentado se
hipertonia; tiver muito baixo;

- Mudanças de tono imprevisíveis, com movimen- - O movimento tem que ficar mais organi-
tos involuntários (ou seja, não intencionais e que zado, vagaroso e controlado. Amplitude
ocorrem sem aviso) com padrões variáveis, movi- de movimentos deve ser menor.
mentos desajeitados e muito rápidos.

2. 2.
- A criança tem sustentação de tono postural contra - Cocontração e sustentação do tono pos-
a gravidade e nenhuma fixação; tural contra a gravidade;
- Os movimentos são muito amplos, e amplitudes - Fixação para que possa controlar seus
médias não conseguem ser graduadas; movimentos;
- Falta inervação recíproca sem controle dos ago- - Movimentos lentos controlados, evitan-
nistas e antagonistas; do grandes amplitudes;
- A criança não consegue ficar parada; - Uso de pressão, peso e compressão para
- Todos os movimentos são desorganizados e in- a estabilidade.
controlados;
- Não consegue manter postura.

3. 3.
- Reações de equilíbrio e endireitamento são reali- - Ajuste e controle da performance de
zadas anormalmente; endireitamento e equilíbrio.
- O uso de braços e mão para o apoio/preensão e - Suporte de braço e preensão adequados.
segurar no mobiliário comum é inadequado.

Como proposta para atendimento musicoterapêutico, a avaliação inicial é


importante para estabelecer as condições motoras, os aspectos visuais, de comu-
nicação verbal, pedagógicos, psicológicos, o grau de independência das ativida-
des de vida diária e do estado geral da saúde da criança. Como protocolo de
avaliação, deve-se utilizar Ficha de Anamnese e Ficha de Musicoterapia para
dados de identificação, história pessoal e identidade sonoro/musical, social e
cultural.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 71
Quadro 2B. Problemas e necessidades de crianças com PC tipo espástico (Bobath4).
A CRIANÇA COM ESPASTICIDADE PRECISA
(CARACTERÍSTICAS) (PARA INTERVENÇÃO)

1. 1.
- Seu tono postural é permanentemente alto e modi- - Redução da hipertonia combatendo os
fica-se muito pouco; padrões de espasticidade;
- O grau e a extensão (posição reta dos membros e - Grande quantidade e variedade de mo-
da espinha) da espasticidade muda de forma previ- vimento que devem ser largos, em ampli-
sível, mas devagar, com a excitação e esforço; tude e velocidade, gradativamente aumen-
tadas;
- Evitar posturas estáticas e esforços,
aumentando cuidadosamente a estimula-
ção, sem aumentar a espasticidade;

2. 2.
- Tem excesso de cocontração de músculos espásti- - Tratamento móvel e não postura fixa;
cos, com fixação de posturas anormais;
- Não tem relaxamento recíproco dos antagonistas - A facilitação (que é manobra para tornar
na primeira contração. Pequena amplitude de mo- o movimento da criança mais fácil ou
vimentos com grande esforço. mesmo possível) de sequências de movi-
mentos;
- Movimentos lentos trabalhosos; - Ativação e iniciação do movimento, com
amplitude e ajustamento.
- Deve-se obter suporte para os braços
para dar maior segurança.

Segundo Bruscia5,

(...) a música envolve e afeta muitas facetas do ser humano, e


em função da grande diversidade de suas aplicações clínicas, a musico-
terapia pode ser utilizada para se obter um grande espectro de mudan-
ças terapêuticas. As áreas abaixo relacionadas são as mais frequente-
mente visadas como alvos de mudanças.
♦ Fisiologia: Frequência cardíaca, pressão arterial, respiração,
resposta galvânica da pele, dilatação da pupila, ondas cerebrais, respos-
tas musculares, eletromiografia, motibilidade gástrica, temperatura, ní-
veis hormonais, secreções glandulares, funções neurológicas, respostas
de imunidade, estrutura vibratória dos órgãos.
♦ Psicofisiologia: Dor, níveis de lucidez, níveis de consciência,
estado de tensão ou relaxamento, nível de energia ou fadiga, biofeed-

72 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


back, imagem do corpo e de suas funções.
♦ Desenvolvimento sensório-motor: Respostas reflexas e sua
coordenação, esquemas sensório-motores (controle, integração e inter-
nalização de funções cinestésicas, táteis, auditivas e visuais), coorde-
nação motora grossa e fina.
♦ Percepção: Apreensão das relações de figura-fundo, parte-
todo, igual-diferente; discriminação das diferenças; conservação da
semelhança.
♦ Cognição: Amplitude, profundidade e duração da atenção; re-
tenção de curto e longo prazos; habilidades de aprendizagem; nível de
conhecimentos; padrões e processos do pensamento, atitudes, estilo
cognitivo de crenças, constructos.
♦ Comportamento: Padrões, nível de atividade, eficiência, re-
forços contingenciais, produtividade no trabalho, segurança, moral.
♦ Música: Preferências, técnica e extensão vocal, técnica ins-
trumental, hábitos de prática, repertório, habilidade para tocar em con-
junto; tendências rítmicas, melódicas e formais quando executando,
improvisando ou compondo.
♦ Emoções: Extensão, variabilidade, adequação e congruência
das emoções; reatividade, expressividade, vitalidade, defesas, impulsi-
vidade, ansiedade, agressividade, depressão, motivação, imagens, fan-
tasias, símbolos, entre outras.
♦ Comunicação: Capacidade expressiva e receptiva da fala, lin-
guagem e outras modalidades não-verbais, inclusive música, dança,
dramatização, poesia e artes plásticas.
♦ Interpessoal: Consciência, sensibilidade, intimidade e tolerân-
cia com os outros, capacidade de interagir, papéis comportamentais,
padrões e estilos de relacionamento, entre outras.
♦ Criatividade: Fluidez, originalidade, inventividade e talento.

Planejamento do tratamento em Musicoterapia

Alinhando os objetivos terapêuticos dos fundamentos da Musicoterapia


aos objetivos terapêuticos para a deficiência física, segundo Lopes e Carvalho9,
podemos relacionar:

A RELAÇÃO TERAPÊUTICA
Quando encaminhada para o setor de Musicoterapia no contexto da reabi-
litação, a criança deverá estar acompanhada de seus responsáveis/cuidadores
para a aplicação da Ficha de Anamnese do setor (muitas crianças têm sua comu-
nicação verbal alterada, ou são muito pequenas, e necessitamos que uma pessoa

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 73


acostumada com a criança possa trazer o maior número de informações neste
primeiro contato).
Na ocasião do atendimento, para uma avaliação inicial do quadro motor,
com o objetivo de identificar o atual momento do desenvolvimento em que se
encontra a criança, são consultados, no prontuário, os relatórios terapêuticos, das
avaliações da Clínica Médica, dos exames de laboratório e de imagem; as infor-
mações da Assistência Social; os desligamentos ou altas; as prescrições de orte-
ses ou próteses ou facilitadores; enfim, dados de toda a intervenção a que a cri-
ança foi submetida até aquele momento. Essas informações serão registradas na
Ficha de Anamnese.
Na Ficha Musicoterapêutica serão registrados os aspectos da vivência so-
noro-musical do paciente, de seu meio ambiente e de sua condição sócio-
cultural, para uma avaliação do desenvolvimento proximal do paciente. [Para
Vygotsky, zona de “desenvolvimento proximal” ou zona de “desenvolvimento
potencial” refere-se à busca de compreender até onde a “criança já chegou” no
seu desenvolvimento, e qual o seu prognóstico de potencial para dar continuida-
de no desenvolvimento14.]

Este modo de avaliar o desenvolvimento de um indivíduo está


presente nas situações de vida diária, quando observamos as crianças que
nos rodeiam, e também corresponde à maneira mais comumente utiliza-
da em pesquisas sobre o desenvolvimento infantil. O pesquisador sele-
ciona algumas tarefas que considera importantes para o estudo do de-
sempenho da criança e observa que coisas ela já é capaz de fazer.10

A aplicação desses formulários ao paciente e acompanhante, ocasião em


que a história natural de vida e da família, na maioria das vezes, surge esponta-
neamente, principalmente quando se resgata o sonoro-musical e se traz para o
ambiente terapêutico o “sonoro conhecido, o de foro íntimo”, acaba estabelecen-
do o vínculo da relação terapêutica: a criança vivencia um ambiente sonoro co-
nhecido e a família reconhece um ambiente, que acolhe a sua criança.
Neste primeiro contato, preferencialmente, estabelece-se o vínculo, o que
inclui a ciência de como funcionam as normas internas da instituição, quais as
expectativas do paciente e do acompanhante em relação aos atendimentos do
setor, esclarecendo-se, da melhor forma possível, os objetivos iniciais para o
atendimento musicoterapêutico e quais as responsabilidades do terapeuta e as do
paciente, e em que modalidade de atendimento ele será enquadrado: individual
ou em grupo.

74 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


As sessões seguintes terão o compromisso de aprofundar as questões dos
objetivos terapêuticos, utilizando-se um dos métodos ou modelos ou abordagens
musicoterapêuticos.

Desenvolvimento das etapas neuroevolutivas no


contexto musicoterapêutico

No contato sonoro-musical que se estabelece no setting musicoterapêuti-


co, mediante a oferta das possibilidades de manipulação de instrumentos musi-
cais ou sonoros, da música cantada ou ouvida, a construção sonora da interação
da criança ou, no desejo em que o outro faça por ela, observamos em que etapa
se encontra o paciente. A partir das observações dessa manipulação do instru-
mental oferecido, apresenta-se a oportunidade de trabalhar as questões da reabi-
litação física e cognitiva, observando cada fase do desenvolvimento da criança e
seu atual interesse lúdico.
Para a criança com PC é de relevância a análise de seu comprometimento
motor e cognitivo antes do oferecimento da proposta musical, selecionando o
procedimento conforme a sua demanda.
A criança, para ter o seu desenvolvimento normal, necessita brincar. Dife-
rentes autores, sob diferentes visões, afirmam que, enquanto brinca, a criança:
- “Provoca situações nas quais pode lidar de maneira positiva com ansie-
dades e incertezas, adquirindo a capacidade de controlar a realidade” (Visão
Psicodinâmica; conforme Freud e Erikson);
- “Explora sensações e movimentos para desenvolver a linguagem e capa-
cidade de resolver problemas abstratos, aprende a lidar com regras e a socializar-
se, manifestando o seu desempenho cognitivo” (Visão Cognitivista11).
- “Aprende a lidar com normas, valores, regras e comportamentos sociais,
formando-se social e culturalmente” (Visão Sócio-Cultural14).
No entanto, a criança com deficiência física, na maioria das vezes, está
impossibilitada de brincar, de interagir espontaneamente com o meio (espaço,
objetos, pessoas).
Os atendimentos para os procedimentos em Musicoterapia contemplam as
situações acima mencionadas. Então, podemos sugerir sua aplicação nas seguin-
tes condições de análise de necessidades individuais:
♦ Vivenciar música;
♦ Estimular a sensoriedade (o ouvido em primeiro lugar);
♦ Desenvolver a expressão corporal, verbal e de sentimentos;
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 75
♦ Desenvolver a criatividade;
♦ Desenvolver a autoestima;
♦ Desenvolver o sentido rítmico;
♦ Melhorar a qualidade de comunicação;
♦ Estimular a socialização.
A proposta da intervenção musicoterapêutica para a criança com PC será
planejada frente às suas necessidades individuais, e será escolhido um dos mode-
los ou abordagens que a literatura especializada oferece e que se encontram des-
critos em capítulo posterior deste livro.
Entre essas abordagens, podemos destacar a proposta da Musicoterapia
para reeducação, ou melhor, no caso de uma criança com PC, entendemos que a
abordagem enfatizará a habilitação.
A abordagem estabelece comunicação e aprendizado, vivenciando a músi-
ca e a musicalidade, estimulando a sensorialidade em todos os seus aspectos e
nuanças, desenvolvendo a expressão corporal, verbal e de sentimentos. A criança
recebe estímulos para o seu potencial de criatividade e abstração, concentração e
memória, desenvolvendo sentido do ritmo, sequenciação e andamento7.
Melhorar a qualidade de comunicação resulta na melhora da socialização
e da autoestima. Com as intervenções, o paciente poderá se organizar melhor e
dar uma resposta adaptativa. A criança, na medida em que treina, consolida a
ação, reforçando as atividades mais primitivas.
Geralmente, a criança com PC apresenta restrições para o seu desenvol-
vimento, como andar de bicicleta, jogar bola, andar de patins, subir em árvores e
realizar outras brincadeiras naturais da infância.
Cantar, tocar instrumentos, representar e criar elementos sonoros, traba-
lhando criatividade e expressão, virão ao encontro das necessidades primárias da
criança com PC.
Entre as questões de adaptação ao meio podemos citar:
- Normalização do tono: as grandes aliadas para o sucesso da normaliza-
ção do tono são a motivação e a concentração espontânea que o instrumento
evoca.
- Desenvolvimento da linguagem: a palavra cantada, sua repetição siste-
mática, nas rodas e brincadeiras infantis, estimula o desenvolvimento espontâneo
da linguagem e o reforçam de maneira lúdica e prazerosa.

O prazer que os indivíduos desfrutam com a comunicação,


quando essa se estabelece, constitui a força motriz que os induz a pro-
curar as relações humanas; é a pedra angular da saúde mental.7
76 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
A melodia tem sido de grande valia nos casos em que há indicação para a
estimulação auditiva e de comunicação.
Quando os itens anteriores estão estabelecidos, melhoram naturalmente a
integração e a socialização
A Musicoterapia estabelece e amplia canais de comunicação, agregando,
na ação terapêutica, movimentos compensatórios para a reabilitação do paciente
com PC.
No caso de uma criança com PC, para lidar com essas questões que estão
descritas nas diversas abordagens musicoterapêuticas, o musicoterapeuta neces-
sitará transcender a sua disciplina, e discutir com a equipe multidisciplinar as
prioridades do tratamento da criança, buscando as orientações pertinentes em
cada caso, para, dessa meneira, potencializar o tratamento.

Recursos técnicos

Em consonância com os fundamentos da Musicoterapia, quando acontece


a interação com instrumentos musicais, ou mesmo com a utilização da voz, é de
extrema importância ter supervisão tanto para o o desenvolvimento de adapta-
ções que facilitarão as respostas das crianças com PC quanto para aprofunda-
mento de conhecimentos das questões da adequação postural.
Adequação postural é uma especialização da Terapia Ocupacional ou da
Fisioterapia, que têm a visão adequada do melhor posicionamento para os indi-
víduos com deficiências físicas. Seu objetivo é prevenir o desenvolvimento de
contraturas, retrações ou deformidades, ou evitar o seu agravamento, diminuindo
o grau energético, pois permite a simetria do corpo. A adequação postural facili-
ta padrões de movimento e inibe padrões anormais.
Os instrumentos musicais que são utilizados para a reabilitação podem ou
não ser adaptados, o que vai depender do grau de necessidade de cada paciente e
de sua própria adaptação ao instrumento musical. A criatividade e a habilidade
do musicoterapeuta podem fazer a diferença em promover a adaptação.
A Musicoterapia e a Terapia Ocupacional, atuando em conjunto, poderão
elaborar objetivos terapêuticos tanto específicos quanto comuns às duas discipli-
nas, trazendo para o atendimento dos pacientes possibilidades únicas para o res-
tabelecimento ou para a manutenção de suas condições funcionais.
Encontramos a aproximação dessas duas áreas na supervisão em relação
às necessidades do paciente quanto às adaptações dos instrumentos. O terapeuta
ocupacional, mediante recursos técnicos, desenvolve e elabora as adaptações que

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 77


facilitam o manuseio e a manutenção do tono postural que acontece durante a
intervenção musicoterapêutica. Alguns modelos dessas adaptações serão apre-
sentados em capítulo especifico deste livro.

Considerações finais

A Musicoterapia tem como um dos seus objetivos estimular a criança com


PC para as atividades funcionais de vida diária, para sua maior independência
possível, promovendo sua segurança e autoestima e contribuindo, dessa forma,
para a sua habilitação e adaptação ao meio.
Gostaríamos de lembrar que a visão do método neuroevolutivo pode ser,
para o musicoterapeuta, uma linha condutora para avaliar seu planejamento nas
questões da reabilitação física e cognitiva e para entender a proposta da equipe
como um todo. As colocações dos principais aspectos sobre esse método devem
ser consideradas como pontos de apoio para a intervenção musicoterapêutica
acrescida dos objetivos da reabilitação motora.
É importante observar as habilidades e as inabilidades da criança, anali-
sando cuidadosamente a atividade para a qual está sendo trabalhada, evitando
frustrações ou atividades que venham a aumentar contraturas ou deformidades, o
que pode promover a iatrogenia.
Ao analisarmos primeiro como a criança desempenha essas habilidades
funcionais, que acontecem através da expressão sonora de instrumentos musicais
ou do próprio corpo, observamos como faz essa expressão e por que a faz dessa
forma. Muitas vezes, a produção sonora e a investigação da produção sonora,
através de equipamentos, necessitam adaptações e estimulação para a expressão
musical.
Existe ainda a possibilidade de a criança não se expressar porque não tem
o aprendizado motor anterior, ou não possui tono para extrair sonoridade ou
padrão muscular para sustentar a sequência de movimentos que produzirão a
sonoridade que seu cognitivo planeja.
Para exemplificar essa colocação, podemos citar uma peça musical que
exige desempenho mediano, nada complexo. Quando executada por um indiví-
duo que tem seu aprendizado anterior, suas bases fisiológicas e cognitivas já
estabelecidas, o resultado sonoro seria o esperado frente às dificuldades da peça
musical. Outro indivíduo, com o mesmo potencial fisiológico, músculos e estru-
tura física e cognitiva adequadas, mas sem o aprendizado mínimo anterior das
questões musicais, ou seja, memória motora, mesmo que tenha um mínimo de

78 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


conhecimento musical, provavelmente terá dificuldades na execução e levará
algum tempo para aprimorar o aprendizado cognitivo e motor. Portanto, essas
questões analisadas em indivíduos com o mesmo potencial físico e cognitivo
dependem de um aprendizado anterior específico. O indivíduo que não tem o
aprendizado anterior, mesmo executando a peça, percebe que precisa treinar
mais para ter desempenho adequado.
A criança com PC que tem o desenvolvimento cognitivo preservado tam-
bém percebe o seu desempenho e poderá querer expressar sua musicalidade pró-
xima de seus parâmetros estéticos musicais.
Uma criança com PC, além de seus impedimentos físicos, ainda poderá ter
a falta de vivência anterior, associada a dificuldades de expressão verbal e de
coordenação visomotora, em graus diferentes, que dificultam a análise de seu
potencial de desenvolvimento.
Os esquemas de aprendizado dependem da repetição do gesto. A repeti-
ção, o reconhecimento e a generalização de ações motoras são importantes para
todas as crianças no seu processo de desenvolvimento.
A questão é, então, que o potencial de desenvolvimento tem o prognóstico
de poder ser aumentado em capacidade e execução, dependendo da vivência
para aumentar suas habilidades.
O desenvolvimento das crianças com PC ocorre também nesse processo
de repetição, reconhecimento e generalização de experiências auditivas, visuais e
motoras com instrumentos musicais, nos procedimentos de Musicoterapia, que
devem estar amparados pela visão do método neuroevolutivo, de modo a preve-
nir contraturas e deformidades. A criança precisará de tempo para vivenciar seus
aprendizados motores e cognitivos, estabelecer seu potencial de desenvolvimen-
to no ambiente terapêutico para, então, alçar voo em suas possibilidades indivi-
duais intelectuais e, principalmente, na verdadeira resposta emocional.
Lembramos que suas primeiras experiências são respostas reflexas, ainda
aprendendo a manipulação do instrumento com suas condições motoras, e não
podem ser consideradas como respostas para as finalidades musicoterapêuticas,
conforme considerações tecidas por Bruscia6 em “Modelos de Improvisação em
Musicoterapia”.
O importante é trabalhar sem promover contraturas e deformidades. O ins-
trumento musical, ao ser tocado em um setting terapêutico, traz aos olhos do
musicoterapeuta a identidade sonora de quem o toca. A criança com PC, ao utili-
zar o instrumento musical como objeto intermediário, deverá estar apta para
manejá-lo, trazendo sua expressão condizente com a ação muscular, e a ação

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 79


muscular deve estar realinhada aos seus desejos íntimos de expressão. Quando
isso não é possível pela incapacidade física, o que ela expressa frente às solicita-
ções dos procedimentos musicoterapêuticos deverá ser cuidadosamente avaliado,
no sentido de se determinar até que ponto se vincula a essa análise a interpretação
ou mesmo o desejo do terapeuta, e de que forma a criança entende o processo.
A Musicoterapia é entendida como comunicação do tipo regressivo, reme-
tendo a situações já vivenciadas, e as etapas em que aparecem as atividades mo-
toras antecedem o controle sensorial. Podemos observar, então, que, para chegar
diretamente à estimulação motora, é necessária a abertura de canais de comuni-
cação que, através da música, podem se realizar quase que de forma direta, se-
guindo o princípio da Identidade Sonoroa (ISSO), que se resume à noção da
existência do som ou de um conjunto de sons ou de fenômenos sonoros internos
que nos caracteriza e nos individualiza.
A música é movimento no espaço e no tempo. Para a criança com PC, to-
mar consciência de um movimento através de sua imagem mental, produzida
pelos sons associados, enriquecerá seu desenvolvimento, e a observação dos
princípios da visão neuroevolutiva para o manuseio dos instrumentos contribuirá
para o sucesso do tratamento.
Promover os procedimentos da Musicoterapia pensando apenas na autoes-
tima de uma criança com PC terá o mesmo valor da música aplicada no lazer ou
em brincadeiras.
A visão da criança encaminhada para a intervenção musicoterapêutica,
principalmente aquela que não teve a oportunidade de ser estimulada anterior-
mente, pode ser comparada à da ponta de um iceberg, na qual se vislumbra ape-
nas uma parte de um todo extremamente maior. A outra, enorme e submersa,
poderá surgir direcionada por um trabalho sério, fundamentado na ciência e com
dedicação profissional.
Como nos fala Benenzon2, não se improvisa no sentido de planejamento e
de objetivos musicoterapêuticos. A Musicoterapia tem suas possibilidades tera-
pêuticas tão profundas que, da mesma forma que podem promover a saúde, tam-
bém podem abrir caminho para a iatrogenia, que são os resultados opostos às
intervenções da promoção da saúde; portanto, o seu manejo com livre arbítrio é
profano.

Referências

1. Baranow, AL von. Musicoterapia: Uma visão geral. Rio de Janeiro: Enelivros; 1999.

80 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


2. Benenzon RO. Manual de musicoterapia. [Tradução de Clementina Nastari]. Rio de
Janeiro: Enelivros; 1985.
3. Bobath K. A neurophysiological basis for the treatment of cerebral palsy. 2. ed. Lon-
don: Spastics Medical Publications; 1984.
4. Bobath K. Notes to accompany the 8-week course in cerebral palsy. [Tradução de
Eliane de Jorge]. London: The Bobath Center, 1993.
5. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2 .ed. [Tradução de Mariza Velloso Fernandez
Conde]. Rio de Janeiro: Enelivros; 2000.
6. Bruscia KE. Improvisational models therapy. Springfield: Charles Thomas; 1987.
7. Nascimento M. Musicoterapia: Princípios e prática. In: Fernandes AC, Ramos ACR,
Casalis MEP, Hebert SK. Medicina e reabilitação: Princípios e prática. São Paulo: Artes
Médicas; 2007.
8. Lianza S. Medicina da reabilitação. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001.
9. Lopes AL, Carvalho P. Musicoterapia com hemiplégicos: Um trabalho integrado à
fisioterapia. Rio de Janeiro: Elenivros; 1999.
10. Oliveira MK. Vygotsky: Aprendizado e desenvolvimento. Um processo sócio-
histórico. 4. ed. São Paulo: Scipione; 2001.
11. Piaget J. A epistemologia genética. [Tradução de Nathanael C. Caixeiro]. São Paulo:
Vozes; 1971.
12. Souza AMC, Ferraretto I. Paralisia cerebral: Aspectos práticos. São Paulo: Memnon;
2001.
13. Souza AMC, Ferraretto I. Como tratamos a paralisia cerebral. São Paulo: Escritório
Editorial; 1997.
14. Vygotski S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes; 1984.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 81


2.4
MÉTODOS DE INTERVENÇÃO
MUSICOTERAPÊUTICA
E SUAS APLICAÇÕES

Clara Y. Ikuta

Os métodos de intervenção musicoterapêutica utilizados em vários seg-


mentos da prática clínica podem ser aplicados na reabilitação / habilitação da
criança com paralisia cerebral (PC) conforme a variabilidade de objetivos frente
à variabilidade dos quadros clínicos apresentados.
A Musicoterapia (MT) é transdisciplinar por natureza. A prática clínica
dos musicoterapeutas está fundamentada na sua própria teoria e é alimentada por
outras teorias e conhecimentos como as psicológicas, as pedagógicas, as educa-
tivas, as musicais, as de medicina, as biológicas, as físicas, as antropológicas, as
sociológicas, entre outras.
Na evolução da Musicoterapia como disciplina, conforme os seus funda-
mentos epistemológicos, encontramos o modelo médico, o modelo comporta-
mental, a musicoterapia psicanalítica, o modelo de musicoterapia de Benenzon, a
musicoterapia analítica, o modelo Guided Imagery and Music (GIM), o modelo
Nordoff-Robbins, o modelo de musicoterapia humanista e a Abordagem Pluri-
modal.
82 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
Esses modelos trazem a sua terminologia específica para referir-se às in-
tervenções musicoterapêuticas como métodos, ou técnicas ou abordagens; são
utilizadas para a linguagem musicoterapêutica terminologias como não-verbal
ou modos expressivo-receptivos, assim como a pessoa em tratamento é referida
como paciente, cliente ou usuário. No presente discurso usaremos o termo pa-
ciente, independentemente da fonte de referência.
O modelo médico tem uma noção mecanicista sobre os efeitos da música.
O uso da música tem envolvido a redução do estresse e dor vinculada ao trata-
mento de diversas doenças, assim também como no ajuste de processos fisioló-
gicos relacionados a técnicas de relaxamento19.
O modelo comportamental utiliza-se da música para intensificar ou mo-
dificar comportamentos adequados ou adaptados e eliminar comportamentos
inadequados ou desadaptados8. O método compreende a música como ferramen-
ta facilitadora das técnicas comportamentais e cognitivas. Nessa linha de traba-
lho, explica-se o comportamento humano principalmente como resultado de
circunstâncias externas, sendo que alguns estudos nessa área envolvem, por e-
xemplo, a alteração de comportamento não-cooperante.
A contribuição da teoria psicanalítica para a compreensão da música e a
prática da Musicoterapia se baseia diretamente no trabalho de Freud e no seu
esquema conceptual. A ênfase quanto à natureza biológica do ser humano, seus
impulsos e necessidades básicas está claramente refletida nas teorias e métodos
musicoterapêuticos. Técnicas como condensação, deslocamento, inversão, lapso
etc. são utilizadas na criação musical. Elementos da música como ritmo, melodia,
harmonia e modos também parecem ter um significado específico como, por
exemplo, “a repetição rítmica e ênfase rítmica como meios de descarga”19. Den-
tro do enfoque psicanalítico, a Musicoterapia objetiva auxiliar o paciente na
obtenção de um ajuste mais adequado de sua personalidade.
O Modelo Benenzon de MT (MBMT) se fundamenta no modelo psicana-
lítico; na evolução de sua formação profissional, Benenzon5, ao eleger a sua
dedicação à psiquiatria, iniciou a sua vivência em psicoterapia grupal e individu-
al, permitindo-lhe “comprovar os estudos profundos freudianos da psicanálise”,
entendendo que a psicanálise era a “observação constante e real do psiquismo
humano”.
A MT Analítica se sustenta sobre três técnicas baseadas na improvisação
e nas quais se desenvolve um diálogo musical; facilita a expressão, sintetiza as
energias liberadas através de símbolos, sonhos e imagens guiadas, dando novas
direções através da música. Seus autores, Wright e Mary Priestley, justificam o

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 83


trabalho “pelas possibilidades de comunicação da música, sua capacidade de
ultrapassar a censura verbal consciente e sua ligação íntima com a vida interior
do ser humano”19. A MT Analítica se consolidou com a publicação de “Music-
Therapy in Action”16.
O modelo Guided Imagery and Music (GIM), iniciado por Helen Bonny,
se trata de uma técnica muito profunda na qual a relação entre a música e a pes-
soa se produz em níveis de estados alterados de consciência por meio da imagi-
nação16.
O GIM utiliza a imaginação no processo de autotransformação, envolven-
do valores mais espirituais na modificação e processo de crescimento do ser
humano da teoria humanista19.
O modelo musicoterapêutico humanista/existencial, portanto com influên-
cia da psicologia humanista ou existencial, posiciona-se pelo respeito ao valor
das pessoas, respeito pelas diferenças de abordagens, abertura quanto a métodos
aceitáveis e interesse na pesquisa de novos aspectos do comportamento humano.
Enfatiza qualidades humanas distintas como a criatividade, o eu, o crescimento,
a gratificação básica necessária, espontaneidade, diversão, humor, afeto, natura-
lidade, autonomia, responsabilidade, significado, espírito esportivo etc. (Severin,
apud Ruud19).
O modelo Nordoff-Robbins, desenvolvido por Paul Nordoff e Clive
Robbins, considera o processo de Musicoterapia como um processo de cresci-
mento a ser iniciado na criança; é um método altamente criativo segundo o qual
o processo começa com o diagnóstico do paciente para confrontá-lo musical-
mente com o objetivo de evocar respostas musicais que o conduzam ao desen-
volvimento de habilidades musicais, autoexpressão e interação16. É um método
de improvisação; envolve o processo criativo musical na intervenção para o de-
senvolvimento terapêutico do cliente. Os autores “descrevem seu enfoque meto-
dológico com orientação de sentido empírico criativo” (apud Pólit16).
Neste modelo musicoterapêutico, assim como na terapia do relacionamen-
to da psicologia humanista, há respeito pela natureza única da criança; o terapeu-
ta se relaciona com a criança em experiência vivas, de crescimento; vivenciar
esta experiência é o que constitui o núcleo da terapia. A criança tem a liberdade
de falar, de se expressar; é estimulada a tomar decisões, de tal forma que o reco-
nhecimento do seu eu e o processo envolvido nessas experiências a capacitem a
recuperar ou descobrir um senso de autoestima (Moustakas, apud Ruud19.
Nordoff e Robbins (apud Ruud19) consideram a música uma linguagem
que “pode encorajar, animar, encantar e falar com a parte mais interna da crian-

84 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ça. A música certa, utilizada com discernimento, pode retirar a criança incapaci-
tada dos limites de sua patologia e colocá-la num plano de experiência e reação”.
Com a formação das Ciências Humanas foram se constituindo novos pa-
radigmas epistemológicos em que os pesquisadores observam as “várias possibi-
lidades de se entender a relação sujeito / objeto quando da experiência do conhe-
cimento, configurando-se várias perspectivas epistemológicas” – o “pluralismo
epistemológico”21.
A aliança entre Musicoterapia e psicologia humanista tornou possível a u-
tilização de métodos de pesquisa qualitativa. Ruud19 expõe o trabalho de Carolyn
Kenny (1987) que “utiliza uma abordagem fenomenológica para estudar uma
improvisação livre de diagnóstico entre ela mesma e um paciente”. O autor con-
sidera a importância desse trabalho no aspecto de ter um potencial e valor imedi-
ato para o musicoterapeuta atuante. Enfatiza a necessidade de se observar e fazer
um relatório sobre qual direção seguir na “expressão musical ou pessoal, preser-
vando ao mesmo tempo as qualidades terapêuticas inerentes ao processo criativo”.
Em 2008, Pólit16 organiza o modelo teórico e metodológico da musicote-
rapia humanista enfatizando a criação terapêutica além dos exercícios estrutura-
dos, a partir das necessidades das pessoas, com uma metodologia clara funda-
mentada na cocriação e na relação profunda com o outro. Integra os planos: físi-
co, emocional, intelectual, energético e espiritual na construção de um modo
holístico de relação terapêutica, relação essa “fundamentada no respeito, na con-
sideração positiva incondicional, na empatia e na congruência”.
O musicoterapeuta, através de seus recursos perceptuais e de sua própria
história musical, pode observar a pessoa de forma holística, seu modo de expres-
são através do “seu tom de voz, seus movimentos, seu ritmo ao falar, suas melo-
dias e suas harmonias”. Com base no respeito e na empatia com a pessoa, o tera-
peuta tem a possibilidade de eleger a música adequada assim como pode manter
a empatia usando o mesmo recurso instrumental ou vocal, ou outro que produza
timbres ou alturas similares. O diálogo pode ser utilizado no final da sessão para
integrar verbalmente o que ocorreu durante o trabalho musicoterapêutico.
Pólit16 explicita a base humanista nas atitudes do musicoterapeuta que es-
tão implícitas nas atitudes de Carl Rogers como o “respeito, a responsabilidade e
a flexibilidade”. O processo terapêutico deste modelo herdou da Gestalt o ponto
de vista existencial, sendo essencialmente fenomenológico, e trabalha o que está
presente no aqui e agora. Enfatiza o desenvolvimento das potencialidades, bus-
cando o equilíbrio do ser, o restabelecimento das relações interpessoais, o de-
senvolvimento da autoestima e da autorrealização.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 85


Considerando que “a teoria musicoterapêutica é gerada refletindo-se acer-
ca de seus próprios constructos teóricos, revisando-os e modificando o que é
necessário transformar”, Diego Schapira20 organiza, com seus colaboradores, a
Abordagem Plurimodal (APM).
A APM resulta teoricamente do estudo de distintas correntes do pensa-
mento teórico, denominando-se “plurimodal por não estar inscrita de maneira
indissolúvel dentro de nenhum dos modelos teóricos musicoterapêuticos”20.
O universo epistemológico que constrói a APM se fundamenta no modelo
de MT Analítica, considera o ser humano como uma unidade “biopsicossocioes-
piritual”, atua dentro do pensamento psicodinâmico, com regras éticas de neutra-
lidade associadas aos modos expressivos-receptivos do musicoterapeuta, observa
os condicionamentos do paciente conforme a sua história de vida, a sua música
interna, adere à concepção do “ser em la música” da teoria da abordagem de
Nordoff-Robbins; ainda neste universo espistemológico da APM são considera-
dos os mecanismos de defesa, o conceito de transferência e contratransferência
musicoterapêutica, o conjunto de elementos do enquadre (espaço terapêutico,
periodicidade das sessões, honorários, formação do musicoterapeuta, os objeti-
vos do tratamento, setting instrumental, arquivo de música editada)20.
A APM adere ao princípio de analogia (os processos musicais são equiva-
lentes aos processos psíquicos), ao conceito de “metáfora” (a forma de pensar,
de entender o mundo), às origens musicais, à musicalidade terapêutica; postula o
conceito de representações sociais musicais, a conceitualização dos modos ex-
pressivo-receptivos.
A seguir serão descritas características de alguns modelos de Musicotera-
pia pertinentes à prática clínica institucional como temos a oportunidade de ex-
perienciar.

Sobre Bruscia, reconhecendo e respeitando


a singularidade da diversidade das
abordagens musicoterapêuticas

No livro “Definindo Musicoterapia”, ao considerar a natureza transdisci-


plinar da MT, Bruscia7 oferece uma definição de trabalho que nos parece ade-
quada à nossa prática clínica:

“Musicoterapia é um processo sistemático de intervenção em


que o terapeuta ajuda o cliente a promover a saúde utilizando experi-
86 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
ências musicais e as relações que se desenvolvem através delas como
forças dinâmicas de mudança”.

O processo musicoterapêutico, portanto, é uma sequência de intervenções e


não simplesmente uma única manobra ou ato terapêutico isolado, na qual há o de-
senvolvimento de uma relação paciente-terapeuta, que acontece mesmo quando o
período da terapia for relativamente breve (por exemplo, três a seis sessões).
O tipo de processo envolvido na MT depende da forma como é aplicada,
do tipo de paciente, da natureza do problema a ser trabalhado e da orientação
teórica do terapeuta. Bruscia relaciona os seguintes tipos de processo: desenvol-
vimentista, educacional, interpessoal, artístico, criativo e científico. Os tipos de
processo não se excluem mutuamente; ao contrário, frequentemente se super-
põem, com maior ou menor ênfase no decorrer do processo.
Portanto, as sequências de intervenções podem envolver os estágios de ma-
turação ou desenvolvimento, a aprendizagem gradual, o desenvolvimento dos rela-
cionamentos pessoais, a execução, composição e improvisação musicais, a explora-
ção, experimentação e seleção de alternativas, assim como a avaliação contínua dos
efeitos da terapia no progresso do paciente através de meios objetivos.
A partir da análise das abordagens musicoterapêuticas, Bruscia estabelece
os quatro principais métodos de MT: a improvisação, a re-criação, a composição
e a audição.
Na audição, ou experiências receptivas, o paciente faz a escuta de músicas
ao vivo ou gravadas, respondendo verbalmente ou por outras formas. Essa expe-
riência pode envolver aspectos físicos, emocionais, intelectuais, estéticos ou
espirituais da música, de acordo com o objetivo terapêutico.
As experiências de escuta (audição) são indicadas para pacientes com ne-
cessidade de desenvolver habilidades da atenção e receptividade, assim como
facilitar respostas específicas, seja analiticamente, projetivamente, fisicamente
e/ou emocionalmente.
A audição pode promover o relaxamento, estimular os sentidos, melhorar
a escuta perceptiva, a integração auditiva com as outras modalidades sensoriais,
evocar respostas comportamentais específicas, organizar ritmicamente compor-
tamentos motores do paciente, servir de estratégia de mediação no aprendizado
ou na memorização de informações, auxiliar a compreensão ou apreciação musi-
cail, promover a associação livre por meios verbais ou não-verbais.
Na re-criação o paciente executa, reproduz, transforma ou interpreta parte
da música ou o modelo musical todo. Pode ser feita através de experiências ins-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 87


trumentais, vocais, em produções que envolvam audiência ou atividades e jogos
musicais.
Os objetivos clínicos da re-criação podem ser7:
• desenvolver habilidades sensório-motoras;
• promover comportamento ritmado e a adaptação;
• melhorar a atenção e orientação;
• desenvolver a memória;
• promover a identificação e a empatia com os outros;
• desenvolver habilidades de interpretação e comunicação de idéias e de
sentimentos;
• aprender a desempenhar papéis específicos nas várias situações inter-
pessoais;
• melhorar as habilidades interativas e de grupo.
As experiências re-criativas são indicadas para o desenvolvimento de
comportamentos e habilidades específicas, assim como para a interação e socia-
lização.
Na composição o paciente pode escrever canções, a letra ou a parte ins-
trumental, assim como qualquer outro produto musical. A composição pode ser
original ou ter a característica de paródias, envolvendo sempre um registro do
produto final. O papel do terapeuta é auxiliar nos aspectos mais técnicos do pro-
cesso, seja quanto à harmonia ou aspectos melódicos.
Os principais objetivos clínicos da composição são7:
• desenvolver habilidades de planejamento e organização;
• desenvolver habilidades para solucionar problemas de forma criativa;
• promover a autorresponsabilidade;
• desenvolver a habilidade de documentar e comunicar experiências internas;
• promover a exploração de temas terapêuticos através das letras das canções;
• desenvolver a habilidade de integrar e sintetizar partes em um todo.
Na improvisação o fazer musical envolve o tocar ou o cantar, de improvi-
so, sozinho, em dueto ou grupo, através de vários recursos como a voz, sons
corporais, instrumentos musicais variados etc.
Os objetivos da improvisação podem ser7:
• estabelecer um canal de comunicação não-verbal e uma ponte para a
comunicação verbal;
• dar sentido à autoexpressão e à formação de identidade;
• explorar os vários aspectos do eu na relação com os outros (...);
• desenvolver habilidades grupais;

88 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


• desenvolver a criatividade, a liberdade de expressão, a espontaneidade e
capacidade lúdica;
• estimular e desenvolver os sentidos;
• desenvolver habilidades perceptivas e cognitivas.
O papel do terapeuta é ajudar o paciente com informações, demonstrações
ou ainda apresentando uma idéia não-musical, como uma imagem ou uma história.
Uma improvisação ativa pode frustrar pacientes com deficiência neuroló-
gica, com grave prejuízo do planejamento motor (apraxia ou afasia) ou prejuízo
da coordenação motora (paralisia cerebral). Nestes casos, o instrumento pode ser
adaptado ou podem ser utilizadas atividades relacionadas com a improvisação,
como contar histórias ou a escuta, por exemplo, que tenham menor exigência do
aspecto motor8.

Sobre o Modelo Benenzon de Musicoterapia

O Modelo Benenzon de MT se fundamenta no modelo psicanalítico e


compreende duas partes essenciais: a diagnóstica e a terapêutica. A parte diag-
nóstica realizada pelo musicoterapeuta tem por objetivo descobrir o conjunto de
sons internos que caracterizam o paciente ou o grupo (Identidade Sonora - ISO),
assim como o objeto intermediário e o objeto integrador que facilitarão a parte
terapêutica.
Na fase diagnóstica as informações são obtidas mediante a ficha musicote-
rapêutica e a testificação não-verbal. Na segunda fase, seguem-se as sessões
musicoterapêuticas, com objetivo de estabelecer canais de comunicação para a
futura integração em grupos ou em outras terapias, conforme a demanda do pa-
ciente.
Para o autor, a criança com dano encefálico deve ser vista além das sequelas
da lesão, sendo compreendida como “um ser humano nascido com os caracteres
hereditários de seus pais e antecessores e que sofre as influências do meio”4.
O musicoterapeuta deverá atuar diretamente sobre as reservas dos setores
ilesos do cérebro, das quais o organismo pode extrair elementos de substituição,
compensação ou restituição dos defeitos resultantes dos danos sofridos.
A MT como técnica de comunicação, com objetivo de produzir novas vias
no cérebro lesado, deve evitar que o movimento se converta em automático, ou
seja, a criança com PC deve tomar “consciência de um movimento através de
sua imagem mental do movimento – produzido pelos sons associados com uma
emoção”1.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 89


Benenzon5 observa que é necessária a abertura de canais de comunicação
para se chegar diretamente à estimulação motora, o que através da música se
pode realizar quase em forma direta, seguindo o princípio de ISO. Acrescenta
que a combinação com a estimulação sensorial poderá trazer resultados positi-
vos. Para a abertura de canais de comunicação, a observação como o primeiro
passo da sessão musicoterapêutica tem sua relevância nos aspectos de aproxima-
ção, como uma técnica que consiste na posição de receptividade, no saber espe-
rar, o que permite ao musicoterapeuta “escutar, perceber, receber, aceitar, com-
preender”.
A técnica de aproximação compreende1:
• abertura de canais de comunicação para com o musicoterapeuta, e de-
pois para os demais pacientes do grupo e da equipe da saúde;
• utilizar elementos de comunicação próprios desses pacientes, seja um
ruído ou outro meio expressivo;
• integrar técnicas de trabalho, como a terapia ocupacional, por exemplo,
permitindo adaptar instrumentos musicais de acordo com as necessidades e pos-
sibilidades do paciente.
Para utilizar elementos de comunicação próprios desses pacientes, Benen-
zon3 descreve técnicas a que se recorre em um processo simples de comunicação
em Musicoterapia:
• Imitação: o musicoterapeuta utiliza o eco-rítmico, através do mesmo ins-
trumento ou outro similar, demonstrando que compreendeu o paciente.
• Imitação parcial: o musicoterapeuta acompanha a expressão do paciente
ou responde imitando, porém em outra tonalidade ou modificando alguns aspec-
tos ou parâmetros da produção sonora.
• Perguntas e respostas: o musicoterapeuta responde ao paciente com ou-
tras sequências ou outras produções sonoras utilizando ou não outro instrumento.
Como princípio metodológico, Benenzon1 observa que “no primeiro con-
tato não devemos aplicar um método predeterminado, mas é necessário encon-
trar o meio para que a criança se expresse. Pode ser o ritmo, o ruído, o som ou a
melodia”.
Considerando a etapa da repetição como uma etapa normal no desenvol-
vimento da criança, enfatiza que a repetição no contexto não-verbal, não é ne-
cessariamente a monotonia, mas a compreensão de uma mensagem.
Tendo em vista que a criança com PC pode apresentar distúrbios relacio-
nados, como os comprometimentos mentais, auditivos ou comportamentais,
estratégias específicas na técnica de aproximação devem ser consideradas.

90 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Em relação ao ambiente, muitas vezes pode se aproveitar e incluir os ruí-
dos externos dentro do contexto de uma sessão de MT como, por exemplo, o
trinar dos pássaros, ruído de carros, a chuva etc. Se as estratégias empregadas
envolvem a aprendizagem, é conveniente que aparelhos de som estejam à vista
“para evitar elementos associativos mágicos projetados pela criança acerca da
origem do som”1.
Aqui se ressalta a importância de um instrumental auxiliar, como bolas,
cordas, ou seja, objetos em geral que possam conduzir ao movimento e que se-
jam utilizados durante jogos musicais, assim como o uso do corpo como instru-
mento de movimento e percussão, de formas variadas, com objetivos de consci-
ência corporal e organização do movimento. Acrescenta-se a utilização da voz
como meio sonoro-melódico ou da boca como um instrumento de percussão
através de ruídos feitos com a língua, lábios etc.
As canções são consideradas “a atividade musical sintética mais importan-
te da criança”. Nelas, todos os elementos musicais, ritmo, melodia e harmonia,
estão presentes. Nesse trabalho, além das canções do repertório, enfatiza-se a
importância de os musicoterapeutas e de as crianças inventarem canções, com
textos breves, adaptados à situação imediata. Benenzon1 observa que “falar,
ouvir, ou emitir e receber são dois atos dotados de um mesmo valor e de uma
mesma significação psicossensorial e psicomotriz”.
O autor comenta sobre a facilidade das crianças com comprometimento
mental para vivenciar a intensidade do som, ou seja, o forte, o suave, o crescen-
do e o decrescendo. Quanto ao ritmo, diz que, através dele, a criança aprende a
viver o tempo que passa.
Em relação aos casos em que houver distúrbios relacionados na área audi-
tiva, outros sistemas capazes de perceber o som são utilizados: o sistema de per-
cepção interna, o sistema tátil e o sistema visual, sendo o sensório-tátil o mais
importante.
Dessa forma, através das vibrações sentidas através da pele, dos músculos,
dos ossos, do sistema nervoso autônomo (simpático e parassimpático), a criança
capta elementos como o ritmo, a acentuação, a altura, a intensidade, a duração
que, somados à percepção interna do movimento, permitem a apreciação de ele-
mentos do som. Os aparelhos auditivos são instrumentos valiosos nesse processo
de comunicação.
Os procedimentos poderão ser individuais ou em grupo, com preferência
da integração em grupos de ouvintes, permitindo às crianças visualizar o movi-
mento coletivo, elevando seu nível de iniciativa e expressão.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 91


O musicoterapeuta deve ter por princípio básico que “o som será percebi-
do por um sistema total, global, de percepção, e que, portanto, o esforço de co-
municação será dirigido para essa totalidade e não exclusivamente a um sistema
determinado”1.
O instrumento mais importante é o próprio corpo, o do musicoterapeuta e
dos integrantes do grupo. Sentir as vibrações do corpo ao cantar, dançar ou gri-
tar, perceber o batimento cardíaco, por si só é uma experiência rica de comuni-
cação.
Benenzon dá exemplos de instrumentos como o piano, a harpa, o pandei-
rinho, utilizados por suas vibrações; observa que os sons graves são os que mais
facilmente se percebem, enquanto que as maiores falhas auditivas estão ao nível
dos tons altos. Segundo o autor, a criança com prejuízo auditivo se interessa
mais pelo ritmo do que pela melodia; neste caso, o primeiro passo da aproxima-
ção se faz através do movimento, uma vez que ela busca em si mesma seu pró-
prio ritmo, desenvolvendo no espaço os movimentos correspondentes, como
resposta à sua imaginação.
A MT é a primeira técnica de aproximação para os casos em que houver
distúrbios relacionados à área comportamental, semelhantes ao espectro autista,
devido ao enquadre não-verbal, que lhe permite estabelecer os canais de comu-
nicação.
De acordo com o grau de comprometimento físico e os distúrbios relacio-
nados, os pacientes poderão se encaminhar para a metodologia da iniciação mu-
sical, relativa à educação especializada, isto é, podem passar das sessões de Mu-
sicoterapia para um outro momento, o de adaptação para as aulas de música, que
poderá ser feita com o professor especializado de música.

Sobre a abordagem plurimodal

Na prática clínica, a APM20 se desenvolve sobre quatro eixos de ação: a


técnica de estimulação de imagens / sensações através do som, a improvisação
musical terapêutica, o trabalho com canções e o uso seletivo da música editada.
Essa prática é conduzida pelo musicoterapeuta dentro de uma plasticidade de
abordagem, conforme a demanda do cliente / paciente ou do grupo.
A técnica de estimulação de imagens e sensações através do som (EISS)
tem características exclusivamente receptivas; consiste na audição de uma se-
quência de estímulos musicais com o objetivo de se obter uma possível resposta
imediata e contextualizar a experiência do paciente. Schapira20 observa que essa

92 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


técnica se diferencia da técnica GIM por não se darem consignas prévias à audi-
ção como cenários ou títulos. As respostas imediatas podem ser sensações cor-
porais, recordações, emoções, metáforas, alegorias, imagens abstratas, imagens
concretas ou fantasias.
A música na técnica EISS é construída “artesanalmente” pelo musicotera-
peuta, com o objetivo de estimular imagens relativas ao individual do paciente
ou vinculadas ao processo grupal.
A improvisação musical terapêutica traz a oportunidade de a pessoa “estar
e ser” na música, sendo o seu produto irrelevante sob uma perspectiva estética
artística, mas um meio de estabelecer uma relação interpessoal e alcançar sua
dimensão terapêutica a partir de sua análise e interpretação.
A análise da improvisação musical terapêutica, denominada “análise inte-
grativa da APM”, é feita através dos seis perfis – integração, variabilidade, ten-
são, congruência, saliência e autonomia – criados pelo Dr. Kenneth Bruscia8; são
os IAPs – sigla com que se conhecem os perfis de avaliação das improvisações.
A esses perfis foram agregados algumas considerações teóricas da Musicoterapia
morfológica e a classificação de interações musicais de Pavlicevic (In: Wigram,
1999, apud Schapira20).
No trabalho com canções, atualmente a APM conta com 15 modalidades:
(1) criação; (2) canto conjunto; (3) improvisação; (4) indução evocativa consci-
ente; (5) indução evocativa inconsciente; (6) exploração de material; (7) associa-
ção livre cantada; (8) questionário projetivo de canções; (9) questionário social
de canções; (10) expansão de sentido; (11) confecção de cancioneiro; (12) mate-
rial “viajero”; (13) dedicatória; (14) a canção pessoal; (15) trama de canções.
O quarto eixo de ação da APM, o uso seletivo da música editada, deve se-
guir critérios de seleção considerando o musicoterapeuta, o usuário e a música;
esta não é um fim em si mesma, mas sim um meio em que as pessoas são. A sua
função é contemplar a singularidade das pessoas com que se trabalha, facilitando
a expressão vocal, o movimento ou a execução instrumental.
A abordagem plurimodal na reabilitação intervém no nível cognitivo e só-
cio-afetivo. Estimula as funções cognitivas cerebrais, a partir das capacidades
preservadas, tendo em conta a relação das funções musicais com as outras capa-
cidades cognitivas. Colabora nas questões sócio-afetivo-emocionais do paciente
com o objetivo de alcançar melhor qualidade de vida.
A experiência musical envolve a percepção musical (o sistema de entrada
da informação) e a produção musical (o sistema de saída da informação). Para a
percepção musical o modelo de funcionamento neuropsicológico da APM se

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 93


baseia nos trabalhos da Dra. Isabelle Peretz, segundo os quais as funções percep-
tivas / expressivas musicais e as alterações dessas funções estão relacionadas
com dominâncias cerebrais.
As etapas do processo musicoterapêutico na APM compreendem o diag-
nóstico inicial – VIM (valoración diagnóstica inicial de musicoterapia), a etapa
de tratamento e a de avaliação e alta.
Na avaliação inicial, as oito primeiras sessões, conforme Ferrari10, têm por
objetivo compreender o paciente como ser humano, suas condições de vida, seus
problemas, seus potenciais e recursos para, depois, compreender quais são suas
necessidades terapêuticas. Concordando com o Dr. Bruscia, a autora diz que essa
compreensão implica na observação do que o paciente faz com a música e como
suas dificuldades se veem refletidas nela; isto é, “vamos estudar e analisar a
música do paciente e fazer inferências acerca dele baseadas na música”.
As informações nesta etapa inicial são obtidas a partir de diferentes pro-
postas de experiências intra e intermusicais, as informações clínico-patológicas
do paciente conforme o registro em prontuário, as informações dos profissionais
envolvidos na equipe multidisciplinar e a entrevista com a família.
Na etapa de avaliação inicial a improvisação musical terapêutica na APM
busca a expressão de conteúdos internos a partir da experiência musical, aspec-
tos da estrutura de personalidade do paciente.
O trabalho com canções nesta etapa possibilita a utilização da voz canta-
da, o canto conjunto, a informação sobre a história pessoal e seus modos expres-
sivos e receptivos através dos questionários projetivo e social de canções.
Da mesma forma, o uso seletivo de música editada na etapa inicial possi-
bilita reconhecer o “tipo de ouvinte”15 com que estamos trabalhando, assim co-
mo as suas “representações sociais musicais (RSM)”20.
Após a etapa de avaliação inicial o musicoterapeuta pode interpretar os
dados, planejar o tratamento ou a colaboração específica para com a equipe no
trabalho institucional. No planejamento se desenhará uma estratégia de trata-
mento que considere qual eixo de ação da APM será privilegiado, como serão
combinados e por qual eixo se iniciará.
Sobre a musicalidade terapêutica a serviço do paciente, Ferrari10 cita
Mendes Barcellos12:

A capacidade do musicoterapeuta para perceber os elementos


musicais contidos na produção-reprodução musical de um paciente,
significa não só perceber esses elementos, mas sim ter condições de ar-
ticular os mesmos com a história do paciente, com a etapa de sua vida
94 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
ou ainda com a situação em que os elementos estão sendo produzidos,
com o objetivo de captar possíveis significados-sentidos-conteúdos,
vinculados através dessa produção.12

O tratamento pode ser individual ou grupal, com o estabelecimento do set-


ting, da frequência e duração das sessões, sendo que nesta etapa o fator de efeti-
vidade será “ter um foco”, ou seja, determinação para meta-objetivo terapêutico.
As ferramentas utilizadas nesta abordagem, os quatro eixos de ação – a
improvisação musical terapêutica, o trabalho com canções, a técnica de estimu-
lação de imagens e sensações através do som e o uso seletivo da música editada
– são selecionados e utilizados de acordo com a singularidade de cada processo e
das necessidades e possibilidades de cada paciente ou grupo.
As experiências musicais são gravadas, e para a interpretação dos dados são
utilizados os “Modelos Improvisacionais em Musicoterapia” de Bruscia, assim
como são utilizadas as investigações sobre “Gêneses das funções musicais”10.
A avaliação é constante na APM; conforme Ferrari10, “observar, compa-
rar, relacionar e determinar se existiram trocas durante o processo nos possibilita
revisar nossas práticas para assim poder determinar e analisar os alcances de
nossas intervenções”.
Na APM são feitas reuniões periódicas com a família, quando são consi-
derados os resultados alcançados e as dúvidas que possam existir por parte da
família, com o objetivo de comprometer a família com o processo, com o traba-
lho em conjunto. A partir dos resultados obtidos se determinará como seguir
com o processo ou promover a alta do paciente.

Sobre alguns aspectos da técnica músico-verbal

Dentre as várias técnicas musicoterapêuticas, algumas estratégias da nossa


prática clínica têm por base a técnica músico-verbal.
Esta técnica teve como ponto de partida o “princípio de homeostase ou
equilíbrio”13, segundo o qual ninguém canta por acaso, ou seja, a música é utili-
zada para necessidades de expressão de sentimentos e emoções.
Os critérios básicos para a aplicação desta técnica podem ser:
• “diálogo consigo mesmo”, quando, frente ao espelho ou à sua fotografia,
o cliente canta uma canção;
• “dedicatória musical do cliente”, quando o cliente pode dedicar uma
canção a algo ou a alguém significativo;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 95


• rádio imaginário;
• experimento ou associação livre;
• dedicatória musical do terapeuta.
As melodias e canções utilizadas no processo terapêutico não são escolhi-
das previamente, mas sim as que surgirem espontaneamente em momentos estra-
tégicos da sessão. Na interação terapeuta / cliente “o terapeuta atua como facili-
tador da emersão de conteúdos internos” e “o cliente os libera”13.
A técnica músico-verbal pode ser ampliada com os elementos da Gestalt;
são utilizadas dramatizações musicais sobre as canções trazidas pelo cliente /
paciente.
Na utilização desta técnica pode-se observar a mesma temática em parte
das canções entoadas; há sempre uma complementaridade de assunto relaciona-
do à atual vida emocional do paciente. Os improvisos ocorrem na música e letra
ou somente na letra, sobre uma melodia conhecida.
As funções do canto são didaticamente divididas quando as canções são
usadas como recurso terapêutico. Essas funções seriam relativas, por exemplo,
ao canto falho, ao prazer, à expressão de vivências inconscientes, ao comunica-
tivo e ao canto corporal.
O canto comunicativo se refere aos diálogos musicais entre terapeuta e
paciente ou entre membros de um grupo terapêutico, possibilitando momentos
expressivos e comunicativos.

A metodologia e a prática clínica com pacientes


com paralisia cerebral

As metodologias e técnicas de intervenção musicoterapêuticas citadas nos


orientam para a importância da organização do trabalho, seu registro e divulga-
ção, com base na ética, para o desenvolvimento da Musicoterapia.
A MT na reabilitação envolve a utilização das experiências musicais e as
relações que se desenvolvem através delas como meio para ajudar os clientes
que foram debilitados por doenças, lesões ou traumas a readquirirem os níveis
anteriores de funcionamento ou possível adaptação.
Para a criança com déficit neurológico, segundo Nascimento14, a interven-
ção musicoterapêutica é de habilitação, conforme a visão fundamentada na práti-
ca; os estímulos musicais são utilizados para promover o desenvolvimento da
criança, ou seja, o seu aprendizado. As vivências sonoro-musicais são utilizadas
para potencializar os objetivos gerais e específicos do tratamento. Esses objeti-
96 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
vos são identificados e priorizados durante discussão da equipe de reabilitação
com o médico responsável, e se tornam as principais metas tarapêuticas.
A proposta da MT no atendimento da criança com PC, portanto, será fren-
te à necessidade individual, potencializando os objetivos de estimulação precoce
ou tratamento apropriado.
A PC, como colocada em capítulos anteriores, envolve tipos distintos de
distúrbios motores, dependendo da área do encéfalo mais atingida pelo insulto.
“É um grupo de desordens no controle dos movimentos, da postura e do tono
muscular, não progressiva, porém sujeita a mudanças”23.
Aos distúrbios motores frequentemente se associam problemas da fala, vi-
são e audição, com vários tipos de distúrbios da percepção, certo grau de retardo
mental e/ou epilepsia.
A intervenção musicoterapêutica utiliza-se de medidas e informações in-
terdisciplinares como, por exemplo, o grau de comprometimento motor dos ní-
veis do Gross Motor Function Measure – GMFM e a classificação dos níveis de
desenvolvimento da comunicação descritos pelo método Hanen.
Para compreender, acolher, interagir e agir com a criança com distúrbios
neurológicos é necessário uma metodologia global, que possa desenvolver as
suas potencialidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais14. Essa metodolo-
gia global parece se aproximar da abordagem plurimodal, com a influência das
demais metodologias de acordo com as características de formação acadêmica /
pessoal e sócio-cultural dos musicoterapeutas que integram a nossa equipe.
A metodologia na prática clínica musicoterapêutica com pacientes com
PC, em uma equipe interdisciplinar, compreende três partes essenciais, sendo a
primeira de caráter diagnóstico; a segunda parte tem caráter terapêutico, ou seja,
nas sessões de Musicoterapia nas quais o paciente e o musicoterapeuta trabalham
ativamente; e a terceira parte que envolve o processo de alta, a avaliação frente
aos objetivos propostos.
A primeira etapa do processo compreende a entrevista inicial associada à
coleta da história sonora do paciente e à testificação musical. A partir da avalia-
ção inicial, verifica-se a possibilidade do atendimento e os objetivos musicotera-
pêuticos para o quadro clínico atual. Através dos objetivos se fará a indicação
para o atendimento individual ou grupal.
Com os dados obtidos, através da identificação da ISO e/ou objeto intermedi-
ário, inicia-se a segunda etapa do processo, a terapêutica, que deverá ser registrada
por escrito e/ou gravada e periodicamente reavaliada. As identidades grupais, cultu-
rais, universais também são observadas para o devido planejamento. Nesta etapa de

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 97


intervenção terapêutica é utilizada a técnica de aproximação de Benenzon, um re-
curso imprescindível nas intervenções em que se privilegia a relação social.
Em situações específicas as sequências técnicas de imitação eco-rítmica,
imitação parcial, perguntas e respostas e associações córporo-sonoro-musicais
são utilizadas como estratégias de intervenção e observação.
A técnica músico-verbal de Millecco et al.13 é associada ao trabalho com
canções da APM20.
Dentre as demais técnicas utilizadas podemos citar a re-criação, audição,
improvisação (livre ou orientada) e composição musicais; vibração, criação de
imagens, dramatização musical e exploração vocal/corporal.
Na intervenção musicoterapêutica com crianças com PC, mesmo conside-
rando seus comprometimentos no desenvolvimento, é importante podermos con-
tar com um guia de orientação como a síntese elaborada por Ferrari dos postula-
dos teóricos desenvolvidos por K. Bruscia e Pilar Pascual Mejía, que discrimina
cronologicamente “as distintas instâncias de aquisição das habilidades musicais,
tanto perceptivas (via de entrada) como expressivas (via de saída)“10.
Na fase terapêutica, a avaliação é constante e os estímulos oferecidos as-
sociados à percepção e à produção musical da criança são observados e analisa-
dos conforme o modelo de funcionamento neuropsicológico da APM.
O processo de alta do tratamento musicoterapêutico ocorre quando se al-
cançam os objetivos inicialmante propostos, ou ao se constatar que o paciente
mantém um quadro de evolução estacionário, ou por solicitação da família.
Devido ao vínculo estabelecido com o musicoterapeuta durante o processo
terapêutico, a alta pode tornar-se um fato sensível que, se não manejada com crité-
rios técnicos bem definidos, podem levar a situações terapêuticas negativas. Dessa
forma, é importante que, para a finalização do tratamento musicoterapêutico, se
observem aspectos técnicos, como o reforço junto à família acerca da evolução do
processo terapêutico, apontar as mudanças produzidas no paciente e dar orienta-
ções quando for o caso, para prosseguir com programas musicais, se a criança
apresentar interesse e possibilidades para as atividades da iniciação musical.
Uma vez estabelecida a alta do tratamento musicoterapêutico conforme os
objetivos específicos do enquadre inicial, podem-se considerar os objetivos de
habilitação dentro do desenvolvimento infantil. Em outro momento do seu tra-
tamento de reabilitação o paciente poderá recorrer novamente para a intervenção
musicoterapêutica, de preferência com outra proposta de intervenção
Observamos que a metodologia na nossa prática clínica envolve caracte-
rísticas das metodologias e técnicas citadas e a sequência de intervenção, con-

98 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


forme a classificação de tipos de processo de Bruscia, será sempre desenvolvi-
mentista, devido a envolver estágios do crescimento, maturação ou desenvolvi-
mento; será interpessoal, nos casos de as dificuldades de comunicação se evi-
denciarem como prioridades; será sempre artística, pois que se utiliza do fazer
musical através da execução e improvisação musicais; será sempre criativa, uma
vez que estará envolvendo identificações, exploração, experimentação e seleção
de alternativas; será sempre científica, pela responsabilidade do terapeuta em
avaliar continuamente os efeitos da terapia no progresso do paciente através de
meios objetivos; e poderá ser educacional, no momento de preparação da alta,
para as crianças que apresentem possibilidade e a motivação necessária para
prosseguir com atividades musicais.

Como podemos melhorar a nossa prática?


A nossa metodologia?

Várias pesquisas apontam a eficácia da utilização da música em trabalhos


interdisciplinares6,11,17,18,24-28.
Nos estudos da neurociência cognitiva a música se tornou um modelo
muito útil para a investigação da percepção e da cognição no cérebro. Thaut26
observa que, ao estudar a “fisiologia e neurologia da função cerebral” musical,
poderemos obter conhecimentos gerais “em relação à percepção de estímulos
auditivos sonoros complexos, processamento do tempo e ritmo, processamento
diferenciado da música e da linguagem fonética como dois sistemas de comuni-
cação, substratos biológicos da aprendizagem versus talento inato nas artes, e
transformação de funções cognitivas relacionadas com a maior temporalidade e
emoção”.
A neurociência motora tem demonstrado que o estímulo auditivo rítmico
pode melhorar ou promover respostas motoras e, ainda mais diretamente, esti-
mular o movimento. O ritmo pode ser mais bem descrito como um “temporiza-
dor” sensorial que utiliza conexões, fisiologicamente, muito sensíveis entre o
sistema auditivo e o motor no cérebro para influenciar o controle temporal no
movimento26.
“Na pré-ativação (priming, em inglês) há facilitação no processamento de
determinadas informações apresentadas previamente”11.
O som tem forte impacto no priming do sistema motor para dar início ao
estado de alerta através das vias retículo-espinal nos níveis do tronco cerebral e
da medula espinhal26.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 99
Portanto, ao repensarmos a Musicoterapia na reabilitação / habilitação
como um serviço inserido em uma equipe multidisciplinar, poderíamos, para um
futuro próximo, conciliar a visão da instituição quanto à agilidade, à qualidade e
à eficiência no atendimento do paciente, com a necessidade da especialização
em intervenções neurológicas musicoterapêuticas de caráter pontual e interdisci-
plinar.

Referências
1. Benenzon RO. Manual de musicoterapia. [Tradução de Clementina Nastari]. Rio de
Janeiro: Enelivros; 1985.
2. Benenzon RO. Teoria da musicoterapia: Contribuição ao conhecimento do contexto
não-verbal. 2. ed. [Tradução de Ana Sheila M. de Uricoechea]. São Paulo: Summus; 1988.
3. Benenzon RO, et al. La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen; 1998.
4. Benenzon RO. Aplicações clínicas de la musicoterapia. Buenos Aires: Lúmen; 2000.
5. Benenzon RO. Musicoterapia: De la teoría a la práctica. Barcelona: Paidós, 2000.
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coterapia 1996; 1(1):3-7.
7. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2. ed. [Tradução de Mariza Velloso Fernandez
Conde]. Rio de Janeiro: Enelivros; 2000.
8. Bruscia KE. Modelos de improvisación en musicoterapia. [Tradução de María Sán-
chez Sotres]. Espanha: Agruparte; 1999.
9. Fernandes AC [org.]. Medicina e reabilitação: Princípios e prática. São Paulo: Artes
Médicas; 2007.
10. Ferrari KD. Genesis de las funciones musicales. In: Schapira D. Musicoterapia: A-
bordaje plurimodal. Buenos Aires: ADIM Ediciones; 2007.
11. Helene AF, Xavier GF. Memória e (a elaboração da) percepção, imaginação, incons-
ciente e consciência. In: Landeira-Fernandez J, Silva MTA [org.]. Intersecções entre
psicologia e neurociências. Rio de Janeiro: MedBook; 2007.
12. Mendes Barcellos LR. Musicoterapia: Alguns escritos. Rio de Janeiro: Enelivros, 2004.
13. Millecco Filho LA, Brandão MRE, Millecco RP. É preciso cantar: Musicoterapia,
cantos e canções. Rio de Janeiro: Enelivros; 2001.
14. Nascimento MF. Musicoterapia: Princípios e prática. In: Fernandes AC [org.]. Medi-
cina e reabilitação: Princípios e prática. São Paulo: Artes Médicas; 2007.
15. Pereira de Queiroz GJ. Os tipos de ouvinte. Revista Brasileira de Musicoterapia
2002; 6.

100 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


16. Pólit VM. Musicoterapia humanista: Um modelo de psicoterapia musical. México:
Ediciones Libra; 2008.
17. Rahlin M, et al. Use of music during physical therapy intervention for an infant with
Erb's palsy: A single-subject design. Physiother Theor Pract 2007; 23(2):105-17.
18. Rodrigues FV, Pereira Jr. A. Contribuições do estudo de bateria para o desenvolvi-
mento de habilidades psicomotoras gerais. Ciência e Cognição 2005; 2(4):55-60.
19. Ruud E. Caminhos da musicoterapia. São Paulo: Summus; 1990.
20. Schapira D. Musicoterapia: Abordaje plurimodal. Buenos Aires: ADIM Ediciones;
2007.
21. Severino AJ. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. [rev. e atual.]. São Paulo:
Cortez; 2007.
22. Souza AMC [org.] A criança especial: Temas médicos, educativos e sociais. São
Paulo: Roca; 2003.
23. Souza AMC. Paralisia cerebral. In: A criança especial: Temas médicos, educativos e
sociais. São Paulo: Roca; 2003.
24. Staum MJ. Music and rhytmic stimuli in the rehabilitation of gait disorders. J Music
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25. Thaut MH. The use of auditory rhythm and rhythmic speech to aid temporal muscu-
lar control in children with gross motor dysfunction. J Music Ther 1985; 22(3):108-28.
26. Thaut MH. Rhythm, music and the brain: Scientific foundations and clinical applica-
tions. Sheridan Books; 2008.
27. Thaut MH, Kenyon GP, Schauer ML, McIntosh GC. The connection between
rhythmicity and brain function. Engineering in Medicine and Biology Magazine 1999;
18(2):101-8.
28. Van de Winckel T, et al. Cognitive and behavioural effects of music-based exercises
in patients with dementia. Clin Rehabil 2004; 18:253-60.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 101


2.5
TOLERÂNCIA A SONS NA CRIANÇA
COM PARALISIA CEREBRAL:

MODELO DE DESSENSIBILIZAÇÃO
NA INTERVENÇÃO
MUSICOTERAPÊUTICA*

Marilena do Nascimento

Neste capítulo relataremos os resultados de pesquisa intitulada “Correla-


ção dos resultados da avaliação de tolerância de sons nas crianças com a dessen-
sibilização através da terapia cognitiva em musicoterapia”, realizada no centro
de reabilitação da AACD, por meio da qual foi identificada, em algumas crian-
ças com paralisia cerebral (PC), baixa tolerância para os estímulos sonoros am-
bientais dentro dos parâmetros considerados normais para a atividade social.

*
Extrato de pesquisa orientada pelo Dr. José Carlos Fernandes Galduróz, docente do Curso de Especialização
em Medicina Comportamental.

102 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A paralisia cerebral

As paralisias cerebrais são caracterizadas por disfunção motora quase


sempre acompanhada por outros distúrbios da função cerebral, entre os quais se
destacam alterações cognitivas, visuais, auditivas, linguísticas, sensitivo-
corticais, de atenção, vigilância e de comportamento3.
O desconforto auditivo dessas crianças frente à exposição sonora ambien-
tal se faz notar no ambiente terapêutico. A criança pode apresentar comporta-
mento refratário na terapia, não aderindo ao tratamento, o que pode influenciar
em resultados negativos para sua reabilitação.
Para compreender este desconforto auditivo (a intolerância) da criança e o
seu comportamento devemos entender alguns conceitos sobre a hiperacusia.
Muitas pessoas se irritam diante de sons altos e contínuos, e algumas são
especialmente sensíveis e não conseguem tolerar mesmo níveis normais de som.
Estes indivíduos apresentam o que Sanchez et al.4 chamam de hiperacusia.
A hiperacusia ocorre em indivíduos com audição normal (normouvintes) e
representa sensibilidade auditiva anormal, ou seja, intolerância a sons de baixa
ou moderada intensidade. É causada por alteração no processamento central de
sons, estando a cóclea preservada.
Para o ouvinte, a manifestação da hiperacusia provoca sensação de des-
conforto a inúmeros sons do meio ambiente, mesmo de baixa ou moderada in-
tensidade, independentemente da frequência que os compõe, como, por exemplo,
água corrente, campainha, telefone, portas fechando etc. Está presente na popu-
lação geral, os normouvintes.
O adulto pode manifestar verbalmente o seu desconforto auditivo e, a par-
tir da realização de exames médicos e laboratoriais e da avaliação audiológica,
poderá ser classificado como hiperacúsico.
Na criança, principalmente naquelas muito pequenas ou naquelas que te-
nham dificuldades na fala, pode ser observado o comportamento refratário para
certos estímulos sonoros ambientas, identificando-se baixo limiar auditivo para
esses estímulos. Nesses casos, sugerimos que o quadro seja denominado de des-
conforto auditivo, ou intolerância auditiva, ou baixo limiar auditivo para os es-
tímulos sonoros ambientas.
Em espaços terapêuticos, o comportamento refratário adotado pela criança
que, desmotivada pelo baixo limiar de tolerância auditiva, passa a não colaborar
na terapia pode impactar a qualidade do atendimento terapêutico ou a sua intera-
ção social. A queixa é trazida pela família e/ou pelo terapeuta que a atende, que

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 103


relatam comportamento difícil e refratário. Na prática da Musicoterapia pude-
mos observar e perceber a resposta aversiva de alguns pacientes que apresentam
esse comportamento.
Para ilustrar esse desconforto auditivo, apresentamos o depoimento de
uma mãe que teve seu filho com a hipótese de desconforto auditivo para os estí-
mulos de sons ambientais dentro da normalidade:

Não vou a festas de aniversários porque meu filho, na hora do


parabéns, é so apagar a luz, já entra em pânico... ou quando ele vê as
bexigas... se estourar alguma vou precisar ir embora da festa, porque
vai ser difícil se acalmar... Costumo ficar em um quarto do fundo para
que ele fique pelo menos na casa da festa.

Situações como festas ou ambientes muito amplos com vários estímulos


auditivos, como shopping centers, lugares públicos movimentados, pessoas com
a voz muito estridente, fogos de artifícios, bombinhas, ruído de escapamento de
motocicleta, entre outros, podem provocar na criança um comportamento refra-
tário que impede sua integração social e familiar.
Para entender os casos de intolerância auditiva, obtivemos relatos de famí-
lias segundo os quais a criança se recusava a participar de eventos ou situações
em que o estímulo sonoro vinha a desencadear o sentimento de insegurança, ou
choro ou pânico. O desconforto auditivo presente na criança pode trazer alto
grau de ansiedade e provocar o comportamento refratário.
A proposta do método de dessensibilização é o de aumentar o limiar audi-
tivo para os estímulos sonoros e, consequentemente, melhorar a qualidade de
vida e de integração social.

A dessensibilização

De acordo com a descrição de Dessensibilização Sistemática de Caballo2,


essa intervenção terapêutica pode eliminar comportamentos aversivos, ensinan-
do respostas contrárias à ansiedade. O procedimento é composto de relaxamento
progressivo e exposições graduais ao estímulo.
Algumas explicações sobre a teoria de inibição da ansiedade sugerem que
“é simplesmente a exposição ao estímulo temido pelo paciente o que diminui a
ansiedade”. Segundo Caballo2, Aaron Beck explica como se reestruturam as
cognições do paciente.

104 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Técnicas de exposição graduada e enfrentamento são utilizadas nos pro-
cessos terapêuticos comportamentais cognitivos de forma a se criarem oportuni-
dades para a mudança de resposta1.
Com base nessas observações, uma vez mapeada a ocorrência da intole-
rância para estímulos sonoros ambientais na criança com paralisia cerebral, a
intervenção musicoterapêutica poderá atuar na dessensibilização auditiva, au-
mentando a tolerância auditiva e melhorando a reação comportamental em am-
bientes que ofereçam número variado desses estímulos.
Sugerimos que a exposição ao estímulo sonoro musical seja feita de acor-
do com o plano de trabalho a seguir descrito, o qual serviu de base para a pes-
quisa ora relatada, para que possa reduzir a sensibilidade característica do des-
conforto auditivo e aumentar a tolerância à intensidade e/ou à qualidade do som
na criança com PC. Com esta pesquisa, pretendemos validar o trabalho metodo-
lógico da Musicoterapia Comportamental, com embasamento na teoria cognitiva
comportamental, para o tratamento do desconforto auditivo para estímulos am-
bientais considerados normais, proporcionando melhores condições de adapta-
ção da criança com PC em seu ambiente cotidiano.
O plano de trabalho desenvolvido e utilizado na pesquisa incluiu:
1. Levantamento da incidência do desconforto auditivo em crianças com
PC por meio da aplicação de questionário e de testificação;
2. Exposição ao estímulo sonoro a partir de jogos, com a ação motora da
criança trabalhando sons fortes e fracos (correlacionados com tamanhos);
3. Exposição ao estímulo sonoro a partir de jogos sonoros, com a ação
motora da criança trabalhando graves e agudos (correlacionados com vozes);
4. Exposição ao estímulo sonoro a partir de jogos sonoros, com a ação
motora da criança trabalhando timbres variados (imagens guiadas e histórias
sonorizadas infantis – sonoplastia);
5. Exposição ao estímulo sonoro a partir de ruídos percusivos e assobios;
6. Exposição ao estímulo sonoro a partir da variabilidade de vozes dos a-
nimais e ruídos ambientais;
7. Aplicação de nova testificação sonora dentro dos parâmetros iniciais de
60 dB a 80 dB: Exposição ao estímulo sonoro de acordo com a segunda e tercei-
ra partes da testificação frente a estímulos sonoros do teclado Yamaha PSR 620;
8. Re-aplicação do questionário inicial e comparação das respostas;
9. Alta do procedimento e orientação final.
O estudo foi realizado a partir do levantamento da incidência de descon-
forto auditivo em crianças em atendimento no ambulatório da AACD. Para o

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 105


levantamento dessa incidência, foram incluídas crianças com PC do tipo hemiparé-
tica, diparética e tetraparética ou com retardo do desenvolvimento neuro-
psicomotor (RDNPM), na faixa etária de 2 a 8 anos e 11 meses, que recebiam tra-
tamento no centro de reabilitação da AACD, e cujos pais ou responsávei consenti-
ram expressamente a sua participação no estudo. Foram excluídas crianças com
deficiência auditiva comprovada em relatório médico arquivado em prontuário.
Primeiramente, aplicou-se questionário aos pais ou cuidadores da criança,
a fim de identificar o comportamento da criança frente à exposição sonora com o
teclado Yamaha PSR 620, o que chamamos de testificação.
O questionário foi elaborado com perguntas simples e objetivas para os
pais ou cuidadores, com o objetivo de identificar o desconforto auditivo da cri-
ança manifestado pelo comportamento aversivo.
Para a primeira etapa da testificação, as crianças foram expostas a fonte
sonora musical determinada por equipamento eletrônico do tipo teclado Yamaha
modelo PSR 620. Esse equipamento foi calibrado dentro dos parâmetros consi-
derados normais para a audição no seu potenciômetro de volume pelo equipa-
mento Medidor de Nível de Pressão Sonora e Dosímetros de Ruído, Modelo
decibelimêtro CEL, série 400, comercializado por JJR, ajustado e configurado
no departamento de Bioengenharia da AACD.
Realizou-se o levantamento quantitativo da intensidade da fonte sonora e
sua classificação no timbre, de acordo com a legenda a seguir apresentada, mo-
nitorado pelo terapeuta, observando-se a forma comportamental com que a cri-
ança respondeu ao estímulo oferecido.

Classificação dos comportamentos

A partir das queixas dos pais e dos terapeutas, foi possível categorizar al-
guns comportamentos e criar um sistema de pontuação em que quanto maior os
pontos atribuídos, maior a relevância do comportamento, conforme quadro apre-
sentado na página seguinte.

Incidência

A incidência foi determinada a partir das repostas das famílias que obser-
vam o desconforto da criança frente a exposições sonoras ambientais, e compro-
vada pelas observações realizadas na testificação. Importante ressaltar que o
nível de desconforto não foi considerado neste estudo.

106 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Comportamento Pontuação
Nenhum comportamento 0
Piscar os olhos 1
Apresentar espasmos nos membros superiores 2
Irritar-se e resmungar 3
Colocar as mãos nos ouvidos 4
Chorar 5

Para as crianças que apresentaram três ou mais reações de desconforto,


consideramos a resposta como afirmativa na tabela de testificação da incidência
de intolerância auditiva.
Nos casos em que a família não observou desconforto ou em que se ob-
servou menos de três reações frente ao estímulo, consideramos que o desconfor-
to não tem impacto sobre o comportamento da criança (desconforto mínimo).
Deste modo, identificou-se incidência de desconforto auditivo na popula-
ção de crianças com PC atendidas no ambulatório da AACD.

Resultados

Depois de constatada a incidência, a dessensibilização por exposição foi


utilizada como metodologia para a intervenção de musicoterapêutica e aplicada a
quatro crianças extraídas desse grupo maior, observando-se os resultados ilus-
trados nos Gráficos 1 a 4. Para a compreensão desses gráficos ilustrativos dos
resultados, enfatizam-se, a seguir, os procedimentos em cada testificação:

1ª testificação: Foi aplicada no primeiro atendimento, COM o elemento


surpresa, ou seja, sem avisar qual estímulo sonoro aconteceria, e sem ter recebi-
do a intervenção musicoterapêutica comportamental.
2ª testificação: Foi realizada logo após a 1ª testificação, SEM o elemento
surpresa, ou seja, avisando ao testando o que iria acontecer. O aplicador comuni-
cava ao paciente (com palavras de fácil compreensão) o que escolheria para
emitir as sonoridades do teclado, qual o nome do registro escolhido, e qual seria
a intensidade: fraca (entre 60 dB e 70 dB), médio (com 75 dB) e forte (com 80
dB). Por exemplo: “Vou tocar o piano que vai “falar” baixo” (exposição número
1), e assim por diante.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 107


Após dez intervenções musicoterapêuticas comportamentais através da
dessensibilização sistemática, procedia-se à terceira testificação.
3ª testificação A: O teste era aplicado COM o elemento surpresa, ou seja,
o processo era iniciado sem aviso.
3ª testificação B: O teste era realizado logo em seguida à 3ª testificação A,
SEM o elemento surpresa, ou seja, era avisado o que seria emitido de sonorida-
de.

Na análise dos resultados, considerou-se que quanto maior o valor numé-


rico observado, menor a tolerância para os estímulos sonoros musicais e ambien-
tais; por outro lado, quanto menor o valor numérico, maior a tolerância para
esses estímulos.

10
9
8
7
Pontuação

6
5
4
3
2
1
0
1a. 2a. 3a. A 3a. B

Te stificações

Gráfico 1. Paciente VMSF, 4 anos, com paralisia cerebral tetraespástica.

10
9
8
7
Pontuação

6
5
4
3
2
1
0
1a. 2a. 3a. A 3a. B

Te stificações

Gráfico 2. Paciente JVCT, 6 anos, com paralisia cerebral diparética espástica.

108 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


10
9
8
7
Pontuação

6
5
4
3
2
1
0
1a. 2a. 3a. A 3a. B

Te stificações

Gráfico 3. Paciente ARNP, 4 anos, com paralisia cerebral tetraespástica.

10
9
8
7
Pontuação

6
5
4
3
2
1
0
1a. 2a. 3a. A 3a. B
Te stificações

Gráfico 4. Paciente IAL, 5 anos, com paralisia cerebral diparética espástica.

RELATÓRIOS DOS ATENDIMENTOS


1) O paciente VMSF, 4 anos, com paralisia cerebral tetraespástica, foi en-
quadrada no atendimento musicoterapêutico com a queixa de pouca aderência ao
tratamento de reabilitação e vínculo exacerbado com a mãe, com o objetivo de
estimulação global. No primeiro atendimento foi realizada a testificação, e nos
demais atendimentos de 40 minutos semanais foi aplicado o plano de trabalho. A
partir do décimo atendimento, foi observado aumento do limite frente a estímu-
los sonoros musicais, sendo reaplicada a testificação, cujos resultados se encon-
tram no Gráfico 1. A família respondeu o questionário de alta e recebeu orienta-
ção para reforçar o novo comportamento da criança.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 109
2) O paciente JVCT, 6 anos, com paralisia cerebral diparética espástica,
foi enquadrado no setor para estimulação de coordenação motora com a queixa
de pouca interação da criança com o serviço de reabilitação, mostrando-se tími-
da, de “poucos amigos”, e com iniciativa pobre. A criança convive apenas com o
pai (foi abandonada pela mãe). Recebeu atendimento semanal de 40 minutos.
Observada a reação de desconforto frente à exposição de fontes sonoras musi-
cais, optamos para a dessensibilização auditiva, com boa resposta. A motivação
para o jogo sonoro com o equipamento foi a mola propulsora para o resultado da
intervenção. O questionário de alta foi aplicado com orientação de reforço para o
atual comportamento frente à exposição sonora musical.
3) O paciente ARNP, 4 anos, com paralisia cerebral tetraespástica, foi en-
quadrado no atendimento musicoterapêutico com a queixa de pouca aderência ao
tratamento de reabilitação, vínculo exacerbado com os pais, poucos amigos,
resistência a pessoas estranhas do convívio familiar, pobre comunicação gestual
(paciente apresenta disartria grave). A queixa da família era a intolerância da
criança frente a estímulos musicais. O comportamento da criança impedia a con-
vivência com os pais, que são músicos da Orquestra Sinfônica de São Paulo.
Durante a testificação e a aplicação do plano de trabalho, a criança teve a opor-
tunidade de experienciar a modulação do volume e de timbres dos instrumentos
musicais a partir da sua ação motora, e pôde-se observar o controle e domínio do
espaço sonoro musical e melhorar a adaptação ao ambiente sonoro de modo
geral. Para a alta, foram reaplicados a testificação e o questionário de alta do
setor, com orientação aos pais para reforço do novo comportamento da criança.
4) O paciente IAL, 5 anos, com paralisia cerebral diparética espástica, foi
enquadrado no setor de Musicoterapia com o objetivo de ampliar comunicação
verbal e foco de concentração para atividades direcionadas. Observado o quadro
de desconforto frente a estímulos sonoros, foram aplicados os testes e o plano de
trabalho. Mesmo apresentando desconforto auditivo, a criança mostrou-se bem
adaptada ao meio, interagindo dentro de seus limites neuropsicomotores. A par-
tir da modulação de volume e timbres, através da coordenação motora da crian-
ça, observou-se evolução na ampliação do limite de estímulos sonoros, sem o
desconforto inicial. Foram aplicados a testificação final e o questionário de alta
com orientação para a família.

Questionários de alta

O questionário foi aplicado ao final da terapia, no momento de alta do se-

110 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


tor, com o propósito de avaliarar a eficácia do tratamento. Para essa avaliação,
interessaram especialmente duas dentre todas as perguntas que compõem o ques-
tionário, que é aplicado ao responsável, de maneira a identificar se ele havia
observado ou não mudanças em relação às queixas iniciais.
A primeira dessas perguntas se referia à criança ter apresentado melhora
na tolerância a exposições sonoras ambientais; já a segunda enfatizava a melhora
na interação da criança com o seu ambiente. Além de responder “sim” (melho-
rou) ou “não” (não melhorou), o responsável também era solicitado a atribuir
uma nota, na escala de zero a dez, de modo a ser possível a mensuração dessa
melhora, ainda que sob a perpectiva subjetiva do respondente.
Desde o princípio, foi devidamente explicado ao responsável da criança o
que ele deveria avaliar no seu comportamento antes do enquadramento e após a
intervenção proposta. No quadro a seguir se encontram as respostas e respectivas
notas atribuídas pelos responsáveis das quatro crianças estudadas.

Questões
Paciente Melhora na tolerância a exposições Melhora na interação da criança com
sonoras ambientais o seu ambiente
Nota Comentários Nota Comentários
VMSF 2 Discreta intolerância 10 Interação com o ambiente dentro
do comportamento esperado
JVCT 4 Intolerância a exposições sono- 8 Interação com o ambiente dentro
ras ambientais do comportamento esperado,
mesmo apresentando desconforto
auditivo mínimo
ARNP 5 Intolerância a exposições sono- 8 Interação com o ambiente dentro
ras ambientais do comportamento esperado,
mesmo apresentando desconforto
auditivo mínimo
IAL 2 Discreta intolerância a exposi- 10 Interação com o ambiente dentro
ções sonoras ambientais do comportamento esperado

Considerações finais

Crianças com PC, independentemente da classificação de tipo (hemipare-


sia, diparesia e tetraparesia) ou com RDNPM, podem apresentar desconforto
auditivo para estímulos sonoros musicais e ambientais em diferentes graus e com
impacto na adaptação a ambientes sociais ou a terapias comunitárias, como ocor-
re com modelos da fisioterapia ou da terapia ocupacional.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 111
A família normalmente traz a queixa do choro da criança e da intolerância a
festas de aniversários ou a passeios em espaços amplos. Identifica a criança como
“de poucos amigos” ou “mal humorada”. Coloca sua dificuldade em receber visi-
tas em casa, sem que a criança fique incomodada, tímida, chorona, pegajosa, e que
prefere brincar sozinha, longe principalmente de outras crianças, aceitando pouca
a interação com novas pessoas que participam de sua vida diária (novas terapeutas,
professores, amigos da escola, entre outras possibilidades de mudanças).
Na criança com PC é esperado déficit de percepção sensorial ou hipersen-
sibilidade, como é o caso do desconforto exacerbado auditivo. E como foi possí-
vel demonstrar, a sensibilidade excessiva pode ocasionar dificuldades na criança
para a adaptação a ambientes com excesso de estímulos auditivos, dificultando a
concentração ou a interação social por conta do desconforto gerado pelo ambien-
te, e gerando, consequentemente, pobre adaptação a ambientes diferentes da sua
vida domiciliar. Como a criança fica bem em casa, muitas vezes pode passar
despercebido por todos que a criança possui hipersensibilidade auditiva, o que
compromete sua adaptação a outros ambientes.
Observamos que a testificação final apontou para a melhora da intolerân-
cia aos estímulos sonoros ambientais, melhorando a adaptação de modo geral da
criança ao ambiente, e os responsáveis confirmaram o novo comportamento da
criança. Identificamos a melhora entre a primeira e a última testificação, ou seja,
comparando os resultados da criança com ela mesma após a dessensibilização
por exposição.
A dessensibilização auditiva através da Musicoterapia comportamental,
fundamentada na teoria cognitiva, vem ao encontro da necessidade de melhorar
a adaptação da criança com PC ou crianças com outros diagnósticos que apre-
sentem déficits neurológicos, e principalmente para as que necessitam de adap-
tação em interação social e no seu tratamento de reabilitação física.

Referências
1. Beck JS. Terapia cognitiva: Teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 1997.
2. Caballo VE. Manual de técnicas de terapia e modificação do comportamento. São
Paulo: Editora Santos; 1996.
3. Miller G, Clark G. Paralisias cerebrais: Causas, consequências e condutas. [Tradução
de Denise Borges Bittar]. São Paulo: Manole; 2002.
4. Sanchez TG, Pedalini MEB, Bento RF. Hiperacusia. Arquivos da Fundação de Otorri-
nolaringologia 1999; 3(4).

112 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


2.6
A MUSICOTERAPIA E A
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Ana Cristina Sanchez A. Domingos

Atualmente, as neurociências ajudam a entender melhor o cérebro e as ar-


tes, derrubando velhos paradigmas segundo os quais era mais comum associar as
artes às abstrações do que a um trabalho da massa encefálica5.
As pesquisas hoje dão provas de que o cérebro é capaz de encontrar rotas
alternativas. Pequenas metamorfoses neurológicas ocorrem todos os dias, pro-
cesso em que a plasticidade é o mecanismo pelo qual o cérebro responde ao
mundo externo. Assim, áreas mais requisitadas por algum tipo de aprendizado,
como o estudo musical, podem transformar-se em verdadeiros latifúndios neuro-
nais5.
A música é capaz de mudar a anatomia do cérebro: A ciência comprovou
que o corpo caloso é maior nos músicos profissionais, e que pessoas que sabem
tocar um instrumento musical têm uma área mais extensa do córtex cerebral
ativada pela audição de música5.
Por não ser processada em uma única região do cérebro, a música recruta
variadas funções cognitivas, favorecendo a organização mental e o desenvolvi-
mento cerebral. Ouvir e produzir música implica em uma tentadora mistura de
quase todas as funções humanas cognitivas. Mesmo o simples ato de cantarolar

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 113


uma melodia familiar requer mecanismos complexos de processamento auditivo,
atenção, memória e integração sensório-motora, entre outros5.
As funções cerebrais são por um lado intra-hemisféricas, mas, por outro,
inter-hemisféricas e integrativas. Todas as realizações práxicas e simbólicas
especificamente humanas se caracterizam pelo corolário das cofunções hemisfé-
ricas4. Da mesma forma as funções musicais têm suas divisões a nível cerebral;
no entanto, a atividade musical recrutará simultaneamente ampla gama de fun-
ções cerebrais inter-hemisféricas.
Há duas funções comuns à vida e ao conhecimento: a conservação da in-
formação (memória) e a antecipação. A criança necessita da possibilidade de
exploração e aprendizado, da capacidade de retenção das informações adquiridas
para, por fim, conseguir antecipar essas informações quando necessárias1,8.
Através da análise de aspectos biológicos quanto ao desenvolvimento au-
ditivo, neurológico, dos órgãos orofaciais e da voz, enfim, de todas as habilida-
des que se relacionam ao ato de falar, primeiro se identifica a origem da dificul-
dade que impede a aquisição da linguagem, para que seja possível fazer um tra-
tamento eficaz com objetivos coerentes ao prognóstico6.
O distúrbio no desenvolvimento da aprendizagem da linguagem pode ter
origem em erros na discriminação auditiva, análise-síntese auditiva, memória
auditiva sequencial, reaudição, articulação ou qualquer combinação desses pro-
cessos1. Assim, a criança tem dificuldades para perceber a diferença entre os
sons e, portanto, ouve e articula errado11.
Algumas crianças, por exemplo, têm dificuldades na discriminação auditi-
va e na memória auditiva; outras podem entender a palavra falada, mas não con-
seguem converter o que escuta em movimentos articulatórios; há ainda as que
aprendem como soam as letras, mas não o sinal gráfico que as representa, ou os
mecanismos de memória e retenção não funcionam adequadamente e, em conse-
quência, são incapazes de reter uma sequência de sons de uma palavra2,11.
Inicialmente se aprende a reconhecer e identificar sons, e depois a fazer a
discriminação sonora. Em seguida se aprende a identificar uma palavra como um
todo (uma sequência sonora)1,11.
A compreensão dos sons da fala humana está diretamente relacionada com
a discriminação de padrões temporais sonoros e da alteração de frequências. Os
sons da fala consistem de uma série de tons (vogais) e outros sons (consoantes),
que se fundem formando a linguagem. A seleção dos sons distinguíveis e a aná-
lise sequencial desses sons levarão à percepção da linguagem que, por sua vez,
se baseia numa experiência anterior e depende da memória e retenção1,7,11.

114 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A qualidade do falar em relação à experiência anterior estará intimamente
ligada aos aspectos ambientais, favoráveis ou não, em que os pais ou cuidadores
têm papel de interlocutor para a criança. Mesmo não tendo garantias quanto à
compreensão da criança acerca do que falam, conversar com ela, apresentando o
mundo, pessoas, objetos, demonstra que os pais já a incluem no diálogo e a es-
timulam para que fale1.
Quanto mais palavras a criança ouve, mais rápido ela aprende a lingua-
gem, não importa que palavras a mãe usa – monossílabos parecem funcionar
melhor. Há um imenso vocabulário a ser adquirido, e ele somente pode ser ad-
quirido através da exposição repetida às palavras6,9.
A criança discrimina um número maior de sons do que os adultos, inclusi-
ve sons da fala. Por isso, a facilidade em aprender mais de um idioma na infân-
cia. O que acontece é que, entre os seis e oito meses, as crianças passam a foca-
lizar sua percepção auditiva na sua língua materna. Nos primeiros meses de vida,
a criança produz sons testando seu aparelho vocal (o ritmo, quantidade de libera-
ção de ar); é o período do balbucio2,7. A partir do primeiro ano, ela começa a
falar as primeiras palavras. Por volta do segundo ano até o terceiro, a criança
inicia a elaboração de frases. Dos quatro aos sete anos ocorre o aperfeiçoamento
desse processo – uso da concordância, conjugação correta de verbos e narração
de fatos. Apesar de existirem fases claras de desenvolvimento, cada criança tem
o seu tempo para iniciar e concluir cada estágio3,4.
As dificuldades de comunicação na criança ou jovem com paralisia
cerebral (PC) são o déficit mais significativo no seu processo de desenvolvi-
mento. Não só a exclui da maioria dos envolvimentos da nossa sociedade, como
limita ou, por vezes, impede o desenvolvimento equilibrado a nível social,
afetivo, emocional e mesmo cognitivo7.
Os pais poucas vezes percebem o papel importante e imprescindível que
eles próprios desempenham como “professores” de linguagem10. A interação entre
a criança e seus pais permite o desenvolvimento da primeira linguagem, com bases
sócio-afetivas, que se revela extremamente eficaz no ato da comunicação.
Para exemplificar, podemos citar o caso do paciente A., 6 anos, com PC
coreoatetóide, que, após 20 atendimentos semanais de 40 minutos, demonstrou
evolução na capacidade de comunicação acompanhada da iniciação do uso da
expressão oral. Inicialmente apresentava grande dificuldade de emissão vocal,
tendo como forma comunicativa breves grunhidos, sem uso de gestos indicati-
vos. Havia pouca iniciativa para comunicação, demonstrando comportamento de
isolamento frente à dificuldade, já que sua manifestação oral não era valorizada

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 115


como tal. O trabalho seguiu uma sequência de evolução melódica: primeira-mente
o uso dos grunhidos (sua única forma de expressão) foi colocado dentro de um
contexto comunicativo. No decorrer do preocesso evoluiu para uso de intervalos
melódicos, onomatopéias + figuras (que lhe davam sentido para a emissão),
pequenas sequências melódicas (já sendo incluídas no vocábulo), finalizando com
curtas melodias em que era estimulado a realizar gestos que acompanhavam
expressões de uso diário. Os cuidadores passaram a perceber que ele era capaz de
participar de um diálogo e expressar suas vontades desde que fosse incluído no
diálogo e que fosse auxiliado a descobrir novas formas de expressão. Dessa forma,
A. passou a sentir-se motivado para a comunicação e a interagir com seu meio,
independentemente de suas limitações orais, e essa atitude foi de fundamental
importância para o processo de sociabilização e aprendizado.
O nascimento de uma criança deficiente provoca nos pais imensa
angústia, sentimentos de culpa, de vergonha, de desespero, de incompetência,
sentimentos esses que podem limitar as possibilidades de diálogo com o filho. E
dessa forma não se estabelece um sistema de comunicação inicial satisfatório.
As necessidades básicas da criança, como alimentação, higiene, vestuário
etc., são satisfeitas, mas não as necessidades que privilegiam o contato e o
desejo de se comunicar.
Os pais costumam despercebidamente se antecipar aos desejos da criança,
em vez de lhe darem opções, receando que o filho não saiba tomar uma decisão
e expressá-la de modo que eles possam entendê-la. Então, preferem adivinhar o
que o filho quer dizer em vez de lhe fazer perguntas, e tudo isso gera um círculo
vicioso que bloqueia a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de
comunicação. A família tende a superproteger a criança, adiantando-se à suas
necessidades, tendendo, assim a reforçar comportamentos de isolamento e
passividade18. Dessa forma, como serão aprendidas as funções da linguagem se a
criança não necessita se comunicar?10
A criança, pela interação com os pais e com o meio, aprende as primeiras
respostas comunicativas não verbais. A criança pode comunicar-se através do
olhar, da produção vocal não verbal e de expressões desde que haja o agente e o
receptor7. Sem esse nível de Comunicação Humana, não se pode esperar que
estratégias de intervenção sobre a linguagem sejam efetivas. É importante que os
pais acompanhem os estágios de desenvolvimento da criança, para que possam
relatar suas características, conhecer os seus hábitos, a forma como reage à estimu-
lação dos sons, como e quando fala. Desse modo, poderão, então, pensar se o meio
linguístico da criança está sendo facilitador para a aquisição da linguagem7.

116 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Algumas das características da linguagem que o adulto usa quando
interage com crianças deficientes incluem:
- regra geral, utiliza frases extensas, muito acima do nível linguístico da
criança;
- acomoda-se ao estilo comunicativo da criança, sem estimular outras
formas de comunicação;
- os diálogos são quase sempre iniciados pelo adulto;
- e não há equilíbrio de turnos no diálogo, tornando-se quase sempre mo-
nólogos, pois o adulto não espera a resposta da criança.
Tais padrões de conduta relegam a criança deficiente para um papel
passivo, contrariamente ao papel ativo e participativo necessário para a aquisição
da linguagem.
[Para aprofundar essas considerações a respeito da importância da relação
entre a família e a criança e sobre a devida estimulação, é válido conhecer o
Método Hanen, criado por Ayaka Manolson, fonoaudióloga canadense].
O programa terapêutico para uma criança com PC geralmente se dirige
para técnicas e conceitos específicos, relacionados com o problema motor. Claro
que é imprescindível o conhecimento de todo o comportamento motor, já que a
intervenção terapêutica deve objetivar a inibição dos sintomas da patologia e
facilitar padrões de movimentos ditos normais. Mas é imprescindível também
criar condições para melhorar qualitativa e quantitativamente a interação pais-
filho, fortalecendo a comunicação sócio-afetiva, caso contrário qualquer
intervenção terapêutica sairá fracassada10.
A escolha da Musicoterapia advém da própria natureza da música, e para
entendê-la, é necessário primeiro compreender a ação da música no organismo.
Um paciente pode ter uma audiometría (medição da audição) normal, mas
não necessariamente "escutar bem". Por exemplo, crianças com déficit de aten-
ção podem ter uma medição normal da audição, mas não conseguem concentrar-
se e apresentam muita dificuldade para ler. O problema está no processo de "es-
cutar", e não no processo de "ouvir".
Ao chegarem aos ouvidos, os sons são convertidos em impulsos que per-
correm os nervos auditivos até o tálamo, região do cérebro que é considerada a
estação central das emoções, das sensações e dos sentimentos1.
Os impulsos provocados pela música no cérebro repercutem em todo o corpo
e podem ser detectados pelas novas técnicas de escaneamento cerebral ou neuroi-
magem. O ritmo musical influencia os padrões de sono e vigília, a respiração, os
batimentos cardíacos, a circulação sanguínea e as secreções de diversas glândulas.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 117


O desafio é estimular o cérebro para que o órgão reorganize suas funções
e consiga desenvolver a linguagem, exercitando novas redes e conexões neuro-
nais para a reabilitação. Dar à criança a oportunidade de encontrar formas de se
comunicar, de se expressar e de interagir com o meio é permitir que ela se torne
um ser que manifesta suas vontades independentemente da linguagem oral7.
Os sons formam os fonemas que, por sua vez, formam as palavras; mas,
mesmo não alcançando o estágio da emissão da palavra, a criança ainda pode
reproduzir a maneira como percebe o meio que a rodeia. Desta forma, a atuação
musicoterapêutica dará ênfase aos seguintes aspectos:
• Fornecer ou facilitar um canal comunicativo, assegurando o desenvol-
vimento cognitivo, afetivo e social;
• Suprir uma limitação existente;
• Tornar o indivíduo o mais independente possível em situações comuni-
cativas.
• Ajudar os pais numa perspectiva emocional e também prática, fornecen-
do-lhes um modelo de intervenção diária;
• Aproveitar as capacidades e o potencial existentes, de forma a minimizar
as dificuldades e maximizar as possibilidades de êxito;
• Favorecer, facilitar e dinamizar a comunicação, como parte integrante de
todo o processo de reabilitação.

Considerações finais
A intervenção musicoterapêutica nos casos que necessitam de estimulação
da linguagem tem se mostrado eficaz, podendo contribuir para as questões abor-
dadas neste capítulo com resultados satisfatórios. A Musicoterapia, atuando den-
tro do contexto interdisciplinar, apresenta-se hoje com estratégias terapêuticas
que podem favorecer a melhora na capacidade de comunicação das crianças,
traçando objetivos comuns com as demais terapias envolvidas.
Além do potencial genético que habilita a espécie humana para ser falante
e para ser cantante, sem dúvida a inserção, o contacto social e a estimulação
adequada são os princípios fundamentais para que se processem fenômenos
comunicativos, levando a criança ao domínio da pragmática linguística. A
capacidade de comunicar-se é algo independente da capacidade de manifestar-se
através da palavra oral.
O fenômeno da habilidade musical permeia a atividade humana e toda a
rede de comunicação que favorece o aprendizado e a inserção social.

118 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Referências
1. Castaño J. Bases nerobiológicas del lenguaje y sus alteraciones. Rev Neurol 2003;
36(8):781-5.
2. Cervera-Mérida JF, Ygual-Fernández A. Intervención logopédica em los transtornos
fonológicos desde el paradigma psicolinguístico del procesamiento del habla. Rev Neu-
rol 2003; 36(supl. 1):36-53.
3. Costa DI, Azambuja LA, Nunes ML. Avaliação do desenvolvimento neuropsicomo-
tor. In: Nunes ML, Marrone ACH. Semiologia neurológica. Porto Alegre: EDIPUCRS;
2002.
4. Fonseca V. Educação especial: Pprograma de estimulação precoce. Uma introdução às
idéias de Feuerstein. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.
5. Graieb C. Revista Veja. Sãi Paulo, 20 de setembro de 2007. p. 98-105.
6. Landry SH, Smith KE, Swank PR. Environmental effects on language development in
normal and high-risk child population. Semin Pediatr Neurol 2002; 9(3):192-200..
7. Nogueira S, Fernández B, Porfírio H, Borges L. A criança com atraso na linguagem.
Saúde Infantil 2000; 22(1):5-16.
8. Paín S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. [Tradução de Ana
Maria Netto Machado]. Porto alegre: Artes Médicas; 1985.
9. Rescoria L, Mirak J. Normal language acquisition. In: Bodensteiner JB [ed.]. Semi-
nars in Pediatric Neurology. Philadelphia: W.B.Saunders; 1997.
10. Shaywitz SE, Shaywitz BA. Dyslexia: Specific reading disability. Pediatr Rev 2003;
24(5):147-53.
11. Tarnopol L [ed.]. Crianças com distúrbios de aprendizagem: Diagnóstico, medica-
ção, educação. [Tradução de Betti Raquel Lerner e Lydia Rosemberg Aratangy]. São
Paulo: Edart; 1980.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 119


2.7
PROTOCOLO DE AVALIAÇÃO DAS
FUNÇÕES MUSICIAS (PAFM)*

Marilena do Nascimento
Clara Y. Ikuta
Sílvia Regina Carvalho

O protocolo e a importância da aquisição do ritmo


e suas aplicações

O Protocolo de Avaliação das Funções Musicais (PAFM) é um instrumen-


to que avalia o desempenho das habilidades musicais, permitindo registrar o
comportamento da criança frente aos instrumentos musicais da bandinha rítmica
antes e após a intervenção musicoterapêutica, de forma quantitativa. Possibilita
comparar os dados coletados inicialmente e verificar se o comportamento da
criança no aspecto de sua interação com o instrumento musical apresenta mu-
danças ou não após as intervenções musicoterapêuticas e quais as possíveis apli-
cações para a reabilitação.

*
Projeto realizado com o apoio do médico Dr. Mauro César de Morais Filho e da fisioterapeuta Catia Kawa-
mura (Laboratório de Marcha da AACD) e da fisioterapeuta Maria Cristina dos Santos Galvão (AACD /
Ibirapuera, SP).

120 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O protocolo tem sido aplicado em crianças com déficits neurológicos, em
especial na criança com paralisia cerebral (PC) que, como já foi colocado anteri-
ormente, apresenta prejuízos e danos que se refletem sobre o tono muscular, o
movimento e a postura, associados ou não às alterações sensitivas, cognitivas e
perceptuais.
A estimulação sensorial é essencial para a percepção do mundo. A música
se constitui em importante objeto de estimulação sensorial porque ocorre simul-
taneamente no tempo e no espaço, proporcionando a vivência desses elementos
musicais em diferentes velocidades, alturas e durações4.
As sucessões de sons de diferentes velocidades e ritmos podem dar à cri-
ança, através do feedback auditivo, a sensação do movimento lento ou rápido, ou
das intensidades forte e fraca, e ainda a origem da sonoridade, como em cima ou
embaixo, de um lado ou do outro, promovendo movimentos amplos em diferen-
tes posições. A utilização da música pode estimular o movimento, seja na reali-
zação da sensibilidade tátil ou da imagem mental.
O embalar da mãe cantando para o filho proporciona movimentos rítmicos
que desempenham papel importante para que a criança se expresse futuramente,
através do movimento, da linguagem ou da dança7.
A criança com PC apresenta déficits diretamente relacionados à aquisição
das habilidades em decorrência da lesão que interfere no amadurecimento do
sistema nervoso central. As áreas não lesionadas podem ser estimuladas para que
a criança amplie, mantenha ou restaure funções sensoriais, cognitivas e motoras.
A falta de estimulação rítmica compromete o mecanismo da sincronização,
o que, segundo Fraisse5, é definido como a capacidade que o estímulo auditivo
rítmico provoca ao favorecer a sincronia das respostas motoras. A sincronização
pode ser favorecida pelas músicas infantis e brinquedos cantados, uma vez que,
do ponto de vista musical, a estrutura das músicas infantis de várias culturas se
caracteriza pelo compasso binário, correspondente a dois tempos marcados, sen-
do um forte e o outro fraco, com variação melódica contendo intervalos melódi-
cos de fácil memorização. Através dos estímulos rítmicos musicais, a percepção
qualitativa da sucessão dos tempos marcados sugere ordem e organização, além
da percepção temporal. Especialmente nas culturas pré-letradas, segundo Sacks11,
encontramos na música a utilização da palavra em forma de recitação, com ritmo
e rima linguística; o autor coloca que “tanto rima como ritmo derivam do grego e
contêm significados combinados de medida, movimento e sucessão”.
As músicas infantis apresentam muitas vezes, contidas em suas letras, su-
gestões que induzem ao movimento corporal, nas diferentes partes do corpo. A

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 121


canção é “a atividade musical sintética mais importante da criança”. Na canção
todos os elementos musicais, ritmo, melodia e harmonia, estão presentes1.
As músicas do acervo folclórico infantil brasileiro e os brinquedos canta-
dos são transmitidos de geração a geração, de maneira simples e carregados de
afetividade, colaborando para a vivência rítmica musical das crianças. Encon-
tramos a música, de modo geral, nas atividades motoras nas escolas de educação
infantil. As crianças com PC nem sempre puderam participar desse universo, o
que felizmente vem mudando atualmente com a educação inclusiva.
A relação entre o sistema auditivo e o motor pode ser observada na sin-
cronização espontânea dos movimentos com uma cadência musical externa, e
essa ligação dos sistemas “parece ser universal nos humanos, revelando-se es-
pontaneamente no começo da vida”11.
A natureza profunda do ritmo é de origem motora. Muitas pessoas, ao per-
ceberem o ritmo, sentem movimentos que não podem evitar. Reprimido em um
músculo, aparecerá em outro. É comum aparecerem pequenos movimentos na
laringe, na raiz da língua e no aparato respiratório, demonstrando a estreita relação
ritmo-organismo. Acredita-se que a percepção da música se concebe de forma
pura e também como percepção puramente auditiva; porém, a música não existe
sem o ritmo: toda percepção musical é uma percepção rítmica6.
A palavra ritmo é usada para descrever os diferentes modos pelos quais
um compositor agrupa os diferentes sons musicais, principalmente do ponto de
vista da duração dos sons e de sua acentuação2.
O ritmo agrega as diferenças entre tempos métricos e não métricos; refere-
se à pulsação da música relacionada ao pulso do coração ou ao ritmo do andar de
uma pessoa; a pulsação da melodia se reflete no seu andamento, o qual produz o
ritmo, no qual acentos repetidos se apresentam ciclicamente. A contribuição do
ritmo no desenvolvimento das habilidades psicomotoras gerais10, assim como a
utilização do ritmo musical potencializando a ação motora e a marcha em paci-
entes neurológicos são citadas em várias pesquisas3,14,16. Podemos citar também
o estímulo rítmico auditivo utilizado na reabilitação de pacientes neurológicos,
favorecendo o controle proprioceptivo da marcha rítmica13.
Segundo Thaut16, qualquer movimento é organizado entre tempo e espaço.
A música também é organizada ritmicamente em tempo e espaço, possuindo
batidas que determinam o ritmo e que ocorrem em intervalos previsíveis e con-
sistentes. Essa qualidade da música permite que seja usada como um marcador
para as atividades físicas. Os estímulos auditivos ativam a prontidão motora no
planejamento neural. Os estímulos rítmicos podem controlar o movimento:
- pela sincronia associada à ativação neural de movimentos motores;

122 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


- pela redução da percepção da fatiga muscular;
- fornecendo sugestões para a previsibilidade de movimentos;
- promovendo e estimulando a qualidade do movimento motor.
O ritmo é um componente básico que pertence a todo movimento organi-
zado, e os estímulos rítmicos auditivos podem ser indicados para:
- realçar atividades locomotoras e não locomotoras;
- aumentar a potencialidade para responder às variações no tempo, no a-
cento rítmico, na intensidade da ação motora para a resposta do volume sonoro,
na batida subjacente e no padrão rítmico;
- melhorar a habilidade de imitar e interpretar através do movimento rít-
mico criativo;
- promover e estimular a capacidade rítmica auditiva.
Um novo foco de estudos está direcionado para o efeito da música no mo-
vimento. A neurociência motora demonstrou que o estímulo auditivo rítmico
pode estimular o movimento, inclusive influenciando o controle temporal do
movimento. Além disso, o som tem forte impacto sobre o estímulo (priming) do
sistema motor para dar início ao estado de alerta através das vias retículo-espinal
nos níveis do tronco cerebral e da medula espinhal.
Como fator potencial que contribui para o controle motor, Thaut15 men-
ciona a formação de memória da música (tema pouco investigado), que é guiada
primariamente por seu padrão forte e estruturada pelo “fraseamento” (agrupa-
mento de notas em frases musicais), o qual cria a organização temporal e métri-
ca. O caráter motivacional da música na resposta física pode prover um estímulo
importante na terapia, facilitando o início das respostas motoras, as quais podem,
então, ser mais desenvolvidas a partir de outras metas funcionais na reabilitação.
Recentemente, o impacto da música e do ritmo sobre o processo motor se tornou
foco de estudos científicos e de práticas clínicas para a reabilitação neurológica.
Na reabilitação física de pacientes neurológicos, o ritmo musical assume
papel importante devido à necessidade de organização, de sequência e de coorde-
nação, podendo ser o componente essencial e primário da coordenação motora.
Com bases nessas afirmativas e visando potencializar a reabilitação de
crianças com deficiências decorrentes de lesão neurológica, levantamos a hipó-
tese de que o ritmo musical contido nas canções folclóricas e infantis pudesse ser
um instrumento facilitador e motivador para a reabilitação motora. Para tanto,
procedeu-se a uma revisão sobre o tema, e foram encontrados vários estudos
confirmando a hipótese, a partir dos quais se elaborou um projeto de pesquisa
para o Setor de Musicoterapia da AACD.
A aplicação do PAFM: Estudo de caso
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 123
Para ilustrar o projeto, relatamos o caso da criança SCAL, sexo feminino,
8 anos de idade, com diagnóstico de PC diparética espástica, que não havia rece-
bido anteriormente qualquer estimulação musical formal ou decorrente de inter-
venção musicoterapêutica e que se encontrava enquadrada para reabilitação no
setor de fisioterapia da AACD.
O projeto contou com o apoio de dois fisioterapeutas e de um médico para
o levantamento de dados quantitativos sobre as possíveis mudanças da criança.
Para o levantamento desses índices quantitativos, foram usados os seguintes
instrumentos de avaliação:
- Protocolo de Avaliação das Funções Musicais (PAFM), aplicado pelo
musicoterapeuta;
- Gross Motor Function Measure (GMFM), aplicada pelo fisioterapeuta;
- Exame de Laboratório de Marcha, aplicado pela equipe e pelo médico
responsável do setor.
Os dados foram coletados com a aplicação de todos os três instrumentos
antes das intervenções e após a última intervenção musicoterapêutica, conforme
estabelecido no projeto de pesquisa.
O PAFM foi inicialmente desenvolvido para o trabalho “Análise da inter-
venção rítmico-musical em crianças com diagnóstico de paralisia cerebral dipa-
retica espástica: Estudo de caso”8, a partir da necessidade de quantificar o com-
portamento da criança. É composto de questões relacionadas ao comportamento
frente aos estímulos e instrumentos musicais, com o objetivo de avaliar a intera-
ção, observando a expressão da musicalidade espontânea através das emissões
sonoro-musicais instrumentais e das expressões verbais ou melódicas.
As intervenções musicoterapêuticas foram realizadas em 15 sessões se-
manais, com duração de 40 minutos. Os estímulos sonoro-musicais escolhidos
foram as canções da identidade sonora da criança e do folclore brasileiro infantil.
Essas intervenções consistiram de ações como o ouvir, o cantar, o acompanha-
mento rítmico através das palmas e com instrumentos de percussão, marcando os
acentos (tempo forte e fraco) da música. As ações foram sugeridas a partir das
mais simples e possíveis de execução para a criança, aumentando o grau de difi-
culdade paulatinamente no decorrer das terapias.
As ações propostas se referem a ações comuns na interação musical da
criança. No setting terapêutico, no entanto, a ênfase foi colocada sobre a expres-
são corporal, a linha melódica e o ritmo relacionados com a coordenação dos
membros inferiores e superiores, respeitando a musicalidade latente da criança e

124 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


observando sua ISO rítmica e suas condições psico-afetivo-mentais, conforme
modelo musicoterapêutico comportamental.
Inicialmente, o PAFM foi desenvolvido com oito itens. Após revisão cui-
dadosa, atualmente é composto de nove itens, e cada um deles engloba cinco
observações diferentes que recebem uma pontuação numérica. Para cada item só
é possível uma pontuação. Caso o desempenho da criança seja diferente do con-
ceito da observação, existe um campo especifico para as anotações. Para concei-
tuar as observações, foi também desenvolvido o Manual de Aplicação que expli-
ca passo a passo a aplicação do PAFM. Recomenda-se que o PAFM seja de uso
exclusivo do musicoterapeuta devidamente treinado para aplicá-lo.
Os nove itens avaliados antes das intervenções e na última intervenção in-
cluem: 1) Exploração dos instrumentos – EXI; 2) Coordenação motora global –
CMG; 3) Coordenação motora com instrumento – CMI; 4) Pulsação – P; 5) An-
damento – A; 6) Memória rítmica imediata – MRI; 7) Atenção – AT; 8) Criati-
vidade – C; e 9) Expressão melódica verbal –EMV.
As pontuações obtidas nas duas aplicações do protocolo são registradas
em ficha cujo modelo se encontra a seguir:

Itens avaliados
Aplicações Total
EXI CMG CMI P A MRI AT C EMV
Primeira
Data: / /
Segunda
Data: / /
Diferença entre as pontuações totais

Através da aplicação deste protocolo foi possível ao Musicoterapeuta o


levantamento dos dados quantitativos para o projeto no que se refere à mudança
de comportamento da criança frente aos estímulos musicais.
Para o levantamento de dados quantitativos relativos ao padrão da marcha,
a criança foi submetida ao exame do Laboratório de Marcha no início das ses-
sões musicoterapêuticas e ao final da 15ª sessão. Laboratório de Marcha se refe-
re a um conjunto de equipamentos sofisticados, conectados entre si por meio de

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 125


computadores que analisam de maneira tridimensional a posição de diversos
segmentos corpóreos durante a marcha. A análise do Laboratório de Marcha
permite identificar alterações ocorridas na velocidade e na cadência dos passos e
medir na movimentação das articulações os graus de alterações.
Para o levantamento dos escores da coordenação motora grossa e da mar-
cha, foi aplicada a escala GMFM ao início e logo após a 15ª intervenção.

RESULTADOS DO PROJETO
Na avaliação do Laboratório de Marcha os resultados demonstraram que a
velocidade da marcha não sofreu alteração significativa, mas houve aumento
bilateral na extensão dos quadris no apoio e redução na assimetria da pelve no
plano transverso. Na avaliação do GMFM, os resultados se encontram a seguir:

Primeira avaliação Segunda avaliação


Dimensões
10/10/05 23/11/05
Dimensão A 100% 100%
Dimensão B 100% 100%
Dimensão C 100% 100%
Dimensão D 79,48% 79,48%
Dimensão E 76,38% 79,16%
Escore total GMFM 88 91,17% 91,73%
Escore total GMFM 66 71,22 71,69

Entre a primeira e a segunda aplicação do GMFM, observou-se discreta


mudança nos escores totais, dentro do intervalo de confiança de 95% proposto
para o instrumento GMFM 66 (de 68,12 a 74,32). A criança apresentou maior
dificuldade nas habilidades de correr e pular (Dimensão E). A velocidade de
marcha permaneceu adequada e com sutil aumento dos valores de referência de
91,5% para 92,5%.
Os resultados do PAFM evidenciaram:
• Aumento da capacidade de expressão verbal cantada;
• Manutenção regular do ritmo (anteriormente desorganizado);
• Diminuição da defensibilidade frente aos sons de instrumentos de per-
cussão.
A criança ainda apresenta dificuldades em manter duas funções simultâ-
126 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
neas, como cantar e bater palmas ou os pés. Nessa situação, SCAL acaba per-
dendo uma das funções, mas aumentou a capacidade de deslocamento pelo espa-
ço físico, com mais estabilidade e segurança, observação ratificada pela compa-
ração entre os desempenhos de marcha evidenciados nas gravações de vídeo
realizadas pré e pós-intervenção musicoterapêutica.

Comentários
Observamos mudanças apontadas pelos resultados do Laboratório de
Marcha e da GMFM, mesmo que sutis, na coordenação motora grossa e na mar-
cha. A velocidade da marcha não sofreu alterações significativas, mas mudanças
ocorreram na extensão dos quadris, o que favoreceu uma marcha com maior
estabilidade. Foi observada de forma quantitativa através da pontuação do
PAFM a mudança do comportamento da criança frente aos estímulos sonoros
musicais. Os resultados positivos foram confirmados pelas respostas ao questio-
nário aplicado aos pais e cuidadores quanto à evolução da criança nos aspectos
do aprendizado em geral, que relataram o desempenho da criança como mais
bem adaptada na vida escolar e social.

PESQUISAS COMPLEMENTARES
Na discussão deste estudo os autores referem que a função musical é uma
das poucas “atividades bi-hemisféricas, envolvendo o hemisfério esquerdo para
o ritmo e o hemisfério direito para o canto e a percepção musical”12.
Ao considerar a neuroplasticidade não somente como fator biológico, mas
resultante de relações com o meio, os autores afirmam que temos a música e os
estímulos sonoros musicais como ferramentas potencializadoras da neuroplasti-
cidade, favorecendo várias respostas simultaneamente.
Com base nestes resultados, a pesquisa foi ampliada com o seguinte for-
mato:
• Grupo experimental formado por cinco crianças entre 3 e 6 anos de ida-
de, com diagnóstico de paralisa cerebral diparética espástica, nível motor entre I
e II, conforme o sistema de classificação da função motora grossa para paralisia
cerebral (GMFCS). Essas crianças não receberam intervenção musicoterapêutica
anterior e não foram submetidas à aplicação de fenolização ou toxina butolínica
nos 6 meses anteriores, ou à cirurgia ortopédica nos 12 meses anteriores, e esta-
vam em tratamento na Fisioterapia.
• Grupo-controle formado por cinco crianças com os mesmos critérios a-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 127


cima, mas que não receberam a intervenção musicoterapêutica.
Os dados foram colhidos de anamnese, aplicação da ficha musicoterapêu-
tica e aplicação do PAFM. Os instrumentos de percussão utilizados na aplicação
do protocolo foram o tambor de madeira, pandeiro com pele, chocalho de madei-
ra, baquetas de madeira, chocalho de alumínio, campanela com quatro guizos e o
metalofone soprano. Ficaram disponíveis para o uso do musicoterapeuta o gra-
vador e os instrumentos musicais: teclado musical, piano e violão.
A intervenção musicoterapêutica comportamentalista incluiu entre 12 e 16
atendimentos semanais de 40 minutos de duração, por quatro meses.
As músicas folclóricas ou infantis foram selecionadas a partir do histórico
da ficha musicoterapêutica com recriação ativa das músicas escolhidas.
Os instrumentos de avaliação foram aplicados antes e após a intervenção
musicoterapêutica. O questionário foi aplicado ao responsável/cuidador apenas
após a intervenção musicoterapêutica.
Os resultados mostraram que o grupo que recebeu a intervenção musicote-
rapêutica tinha escores iguais ou maiores do que o grupo-controle. Na discussão
dos resultados, os autores observaram que os estímulos rítmico-musicais na in-
tervenção musicoterapêutica associada aos da fisioterapia podem potencializar a
função motora através da percepção auditiva e do aprendizado rítmico-motor-
corporal, promovendo mudança no padrão da marcha. Os resultados desse se-
gundo estudo foram apresentados no XII Congresso Mundial de Musicoterapia9.
O PAFM revisado está sendo aplicado a crianças com PC diparética es-
pástica e hemiparética e a outras crianças com déficits neurológicos que tenham
possibilidade da interação sensório-motora com os instrumentos musicais, avali-
ando os seguintes aspectos: a atitude motora, a verbal e a gestual elaborada pela
criança através da sua resposta rítmica-sonora-musical com instrumentos de
percussão, frente a estímulos sonoro-rítmicos musicais.
Os instrumentos musicais utilizados na avaliação do protocolo rítmico so-
noro-musical são os da bandinha musical. Foram escolhidos pela possibilidade
de oferecer auditivamente o feedback da ação motora, assim como por serem de
fácil manejo e não exigirem aprendizagem anterior para sua execução.
O protocolo pode ser aplicado a crianças a partir de 3 anos, com qualquer
diagnóstico ou nível motor, com possibilidades de manuseio dos membros ou
hemicorpo. A criança tem que apresentar a possibilidade de movimentação de
pelo menos de um dos membros (superior ou inferior) para a execução rítmica-
sonora instrumental.
O tempo necessário para a aplicação do PAFM é de aproximadamente 20

128 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


a 30 minutos, observando-se que uma apresentação do estímulo sonoro-musical
pode ser utilizada para preencher diferentes itens do protocolo. A aplicação do
protocolo rítmico é realizada em dois momentos: na primeira intervenção com a
criança, após a anamnese e a aplicação da ficha musicoterapêutica, para avaliar a
performance inicial desta criança; e no momento indicado para o levantamento
da evolução do paciente ou sua alta.
A análise dos resultados das duas aplicações permite avaliar o desenvol-
vimento do desempenho rítmico-sonoro-musical da mesma criança em momen-
tos diferentes, indicando quantitativamente a expressão da musicalidade.
Sugerimos que as mudanças da expressão da musicalidade podem impac-
tar também mudanças no controle motor, com novas aquisições de funcionalida-
de, conforme os fundamentos da neuroplasticidade.
Até o momento os resultados coletados com o PAFM evidenciam mudan-
ças comportamentais positivas nos aspectos das habilidades do aprendizado so-
noro-musical, na localização de tempo e espaço, assim como na percepção do
espaço físico, com aumento da capacidade de deslocamento. Observou-se tam-
bém a melhora na percepção proprioceptiva e a melhora dos aspectos sociais
como a comunicação corporal e verbal.
Sugerimos que estudos mais aprofundados com maiores amostras possam
evidenciar a real amplitude da interferência rítmica sonora musical para o de-
sempenho motor e sincronização de movimentos para os pacientes neurológicos.

Referências
1. Benenzon RO. Manual de musicoterapia. [Tradução de Clementina Nastari]. Rio de
Janeiro: Enelivros; 1985.
2. Bennet R. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora; 1988.
3. Blasco F. La utilización del ritmo musical en fisioterapia. Revista Brasileira de Musi-
coterapia 1996; 1(1):3-7.
4. De Lisa JA, Gans BM. Tratado de reabilitação: Princípios e prática. São Paulo: Mano-
le; 2002.
5. Fraisse P. Psicologia del ritmo. Madrid: Morata; 1974.
6. Fridman R. Los comienzos da conducta musical: Del primer vagido al lenguage ento-
nado y articulado. Buenos Aires: Paidós; 1974.
7. Jeandot N. Explorando o universo da música. 2. ed. São Paulo: Scipione; 1993.
8. Nascimento M, Ikuta C, Galvão MCS, Morais M,Yamashita MLB, Carvalho SR.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 129


Análise da intervenção rítmico-musical em crianças portadoras de deficiência física:
Estudo de caso. Arquivos Brasileiros de Paralisia Cerebral 2007; 2(6); 34-38.
9. Nascimento M, Ikuta C, Galvão MCS, Morais M, Yamashita MLB, Carvalho SR.
Análisis de la intervención musicoterapêutica em pacientes com parálisis cerebral dipa-
rética espástica: Estudo de casos. In: XII Congreso Mundial de Musicoterapia. Buenos
Aires: Akadia; 2008. [Anais].
10. Rodrigues FV, Pereira Jr. A. Contribuições do estudo de bateria para o desenvolvi-
mento de habilidades psicomotoras gerais. Ciência e Cognição 2005; 2(4):55-60.
11. Sacks O. Alucinações musicais: Relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo:
Companhia das Letras; 2007.
12. Schapira D. Musicoterapia: Abordaje plurimodal. Buenos Aires: ADIM Ediciones;
2007.
13. Staum MJ. Music and rhytmic stimuli in the rehabilitation of gait disorders. J Music
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14. Thaut MH. The use of auditory rhythm and rhythmic speech to aid temporal muscu-
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15. Thaut MH. Rhythm, music and the brain: Scientific foundations and clinical applica-
tions. Sheridan Books; 2008.
16. Thaut MH, Kenyon GP, Schauer ML, McIntosh GC. The connection between
rhythmicity and brain function. Engineering in Medicine and Biology Magazine 1999;
18(2):101-8.

130 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


3.
O QUE PRECISAMOS SABER SOBRE
LESÃO ENCEFÁLICA ADQUIRIDA

Milene Silva Ferreira


Gláucia Somensi de Oliveria-Alonso

Entende-se por encéfalo a soma das estruturas corticais e subcorticais


(hemisféricas) com tronco encefálico e cerebelo. Essa estrutura simplesmente
comanda todas as nossas ações, pensamentos e comportamentos. Somos o que o
nosso encéfalo captou de informações ao longo da vida, registrou, decodificou e
respondeu. O modo de viver e exprimir nossas emoções, as escolhas existenciais
que elas elegem são a base da personalidade.
Um indivíduo, ao sofrer uma lesão encefálica, pode experimentar a perda
de várias de suas funções físicas, sensoriais, cognitivas e emocionais. Familiares
de indivíduos com alterações cognitivas e comportamentais referem haver trans-
formação da essência que o caracterizava anteriormente. É como se fossem ou-
tras pessoas após a lesão.
Cabe à equipe de reabilitação resgatar não só a autonomia e a independên-
cia, mas também a essência desses indivíduos. Resgatar sua história, dar sentido
e continuidade a ela.
Obviamente essa missão não é fácil, e é por isso que é necessário o traba-
lho de uma equipe, e não apenas de um profissional. Tais profissionais precisam
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 131
trabalhar para um mesmo objetivo, que deve ser traçado sempre de acordo com a
vontade do paciente e de seus familiares.
Evidências científicas afirmam que um paciente com sequelas de acidente
vascular encefálico evolui melhor quando tratado em unidades especializadas,
por equipe multiprofissional que tenha metas claras e realistas.
O papel do médico fisiatra nesta equipe é o de auxiliar no diagnóstico,
prognóstico e educação dos pacientes, e ainda identificar e tratar complicações
secundárias que possam impedir o paciente de atingir um resultado favorável em
sua reabilitação. É importante que o médico favoreça a troca de idéias, apoie as
tomadas de decisão, estimule o espírito de equipe e de aprendizado constante.
O médico, em geral, é treinado e habituado a olhar a doença e tratá-la. Em
reabilitação, devemos olhar o indivíduo, seu ambiente, seus hábitos e oferecer-lhe
um tratamento fundamentado em um conceito de saúde muito mais amplo, base-
ado em qualidade de vida. A partir dessa afirmativa, então, se subentende que o
tratamento de reabilitação deve ser individualizado, único para cada paciente.

Lesões encefálicas adquiridas


Por definição, Lesão Encefálica Adquirida (LEA) é uma lesão encefálica
que ocorre após o nascimento, sendo excluídas doenças hereditárias, congênitas,
degenerativas ou induzidas por trauma no momento do parto. Uma lesão encefá-
lica adquirida resulta em mudanças na atividade neuronal, afetando a integridade
física, metabólica ou funcional da célula. Pode acarretar incapacidade leve, mo-
derada ou grave, em uma ou mais áreas, incluindo funções motoras, cognição,
comunicação, memória, atenção e concentração, abstração, funções psicossociais
e comportamentais, conforme definição adotada pela Brain Injury Association
Board of Directors1.
Dentre as causas de LEA podemos citar: Acidente vascular encefálico
(AVE); Traumatismo crânio-encefálico (TCE); Anóxia; Neuroinfecções; e Tu-
mores cerebrais.
É importante lembrar que uma pessoa que apresenta lesão encefálica é ú-
nica. Os efeitos são complexos e variam de pessoa para pessoa. As consequên-
cias de uma lesão vão depender da causa, localização e de sua gravidade. Tam-
bém se deve considerar a idade na época da lesão, tendo em vista as diferenças
que existem entre o encéfalo imaturo e o encéfalo de um adulto (veja Box nas
páginas seguintes).

132 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


LEA na infância versus LEA na idade adulta

O encéfalo de um adulto não é igual ao encéfalo de uma criança. No final da gestação,


o encéfalo já está formado e se parece com um encéfalo adulto, mas ainda está muito
longe disso. O peso do encéfalo de um recém-nascido é de aproximadamente 400 gramas,
enquanto o encéfalo adulto pesa por volta de 1.400 gramas. Muito desse peso é ganho nos
primeiros três anos após o nascimento, mas sua completa maturação termina por volta dos
vinte anos de idade. Com o envelhecimento, o peso encefálico vai declinando2.
Ao nascimento, todos os neurônios já estão formados. Então, o desenvolvimento en-
cefálico pós-natal se dá pelo aumento das células da glia e outras células de suporte,
crescimento dos vasos e axônios, e mielinização desses últimos. Porém, o fator mais
importante para o desenvolvimento encefálico seria o crescimento e a elaboração dos
neurônios entre si. Não somente há aumento do corpo celular, como também ocorre inten-
sa arborização dendrítica. Mais de 80% do crescimento dendrítico ocorre após o nasci-
mento. E esse processo é fundamental para que ocorra o aumento das sinapses, da forma-
ção dos circuitos neurais tão importantes para o desenvolvimento da criança. Mas, este
processo não é tão simples assim. O desenvolvimento não se dá apenas adicionando si-
napses. Há um grande rearranjo e poda de sinapses ao longo do desenvolvimento. Ou seja,
muitas sinapses são adicionadas e outras são perdidas. Olhando apenas para o número de
sinapses, ocorre um pico entre os seis e oito meses de vida e, a partir daí, começa a haver
um declínio. Os estímulos do meio ambiente influenciam o rearranjo das sinapses2.
É importante enfatizar que nem todas as partes do sistema nervoso central amadure-
cem simultaneamente. A medula espinal e o tronco encefálico são as primeiras estruturas
a completar sua mielinização, por volta de um a dois anos de idade. A última estrutura a
finalizar a mielinização seria o córtex pré-frontal, área relacionada com planejamento,
julgamento, intencionalidade e razão. Esta área termina sua mielinização por volta dos 18
anos de idade ou mais.

ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO


O AVE é caracterizado por déficit neurológico súbito causado após uma
injúria não-traumática resultante de oclusão ou ruptura de um vaso sanguíneo
cerebral.
Pode ser de etiologia aterosclerótica ou tromboembólica, e os fatores de
risco ainda vêm sendo estudados. No adulto, além dos fatores de risco já conhe-
cidos como hipertensão, diabetes melittus, dislipidemias, tabagismo, etilismo,
obesidade, arritmias, idade mais avançada, raça negra, história familiar, ataque
isquêmico transitório, trombofilias e sedentarismo, outros fatores vêm sendo
associados à ocorrência do AVE, como os fatores ambientais (como a poluição)
e os emocionais (como a depressão)4,6,13,15.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 133


LEA na infância versus LEA na idade adulta

Os primeiros anos da vida de uma criança são críticos, pois o encéfalo, estando em
franco desenvolvimento, acaba sendo mais sensível à injúria. Então, embora existam
similaridades entre uma lesão ocorrida em um encéfalo em desenvolvimento e em um
encéfalo adulto, existem evidências que lesões encefálicas pediátricas oferecem desafios
diferentes para o médico, tanto na fase aguda, quanto na reabilitação. Estudos clínicos e
experimentais demonstram que o encéfalo imaturo é mais vulnerável a uma lesão traumá-
tica, quando comparado com o encéfalo de um adulto. A resposta inflamatória é muito
maior em um encéfalo imaturo, o controle do estresse oxidativo é diferente, e existe maior
dificuldade para eliminar o ferro livre. E, sendo assim, aumentam as lesões secundárias. É
observado que crianças com menos de quatro anos de idade geralmente evoluem com
maiores sequelas motoras e, principalmente, cognitivas14.
Por outro lado, a neuroplasticidade é maior nas crianças. Chamamos de neuroplastici-
dade a capacidade dos circuitos neurais se moldarem em resposta aos estímulos ambien-
tais. A plasticidade neural serve de base ao aprendizado ao definir a seleção de conexões
sinápticas que moldam habilidades e comportamentos. Perante uma lesão, o encéfalo vai
se valer de mecanismo de neuroplasticidade para se reorganizar. As técnicas de reabilita-
ção estimularão essa reorganização, criando novos circuitos e resgatando circuitos anti-
gos. Mas, apesar da maior plasticidade neural, crianças que apresentam uma lesão encefá-
lica em idade pré-escolar ainda estão em desvantagem quando comparadas com crianças
maiores, adolescentes e adultos.
Durante a reabilitação de uma criança após uma LEA, devemos sempre considerar a
idade em questão. Diferente do que acontece com o adulto, deve-se estimular a aquisição
de novas etapas do desenvolvimento que ainda não haviam sido adquiridas anteriormente
à lesão. Durante o processo de reabilitação, muitas funções serão resgatadas e outras serão
adquiridas pela primeira vez a partir de um encéfalo lesado (habilitação).

A doença cerebrovascular representa a terceira causa de morte no mundo


e é a principal causa de incapacidade em adultos. A deficiência associada ao
AVE é extremamente variável, e a incapacidade resultante dependerá não só do
quadro clínico, mas também do status pré-morbido, da qualidade do tratamento
recebido e do suporte social e familiar.
Estudos norte-americanos mostram que de cada 100 pessoas que sobrevi-
vem ao AVE, dez retornarão ao trabalho com incapacidades leves, 40 terão in-
capacidades moderadas, 40 terão incapacidades graves e 10 serão institucionali-
zadas4,6.
Apesar de as afecções cerebrovasculares em crianças e adolescentes serem
mais raras quando comparadas à população adulta, ainda é uma causa significati-
va de incapacidade na infância. O quadro clínico inicial se caracteriza por instala-

134 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ção súbita de manifestação convulsiva, que pode ser precedida por alteração de
comportamento, particularmente em crianças abaixo dos dois anos de idade. No
período pós-crise pode ser constatada a hemiparesia. A mais importante distinção
entre AVE em pacientes adultos e em crianças é a variedade de condições patoló-
gicas, causadoras de comprometimento vascular na infância.
Dentre os fatores de risco para AVE isquêmico na infância, podemos citar:
doenças cardíacas, anemia falciforme, dissecção arterial, vasculites, coagulopati-
as, doenças metabólicas e AVE-like, homocistinúria, e a doença de Moyamoya.
Dentre os fatores de risco para AVE hemorrágico na infância podemos citar as
malformações arteriovenosas, cavernomas ou angioma cavernoso, aneurismas
arteriais11. As principais causas de AVE na infância seriam anemia falciforme e
doença cardíaca3,8.
Após um AVE na infância, é importante a investigação da etiologia, pois
há risco de recidiva. Determinando a causa, geralmente é possível instituir tra-
tamento profilático, para evitar novos episódios. Porém, frequentemente a etio-
logia permanece indefinida, mesmo após vasta investigação5.

TRAUMATISMO CRÂNIO-ENCEFÁLICO
O TCE acontece quando há um agente mecânico externo agressor forte o
suficiente para causar lesão ao tecido encefálico, como evidenciado por perda de
consciência, amnésia pós-traumática ou déficits neurológicos específicos consta-
tados ao exame físico que possam ser atribuíveis ao trauma, havendo ou não
fratura craniana. No Brasil, os acidentes de trânsito são os maiores responsáveis
pelas lesões traumáticas do sistema nervoso central. A violência interpessoal é a
segunda causa10.
Os danos causados pelo TCE geralmente resultam de mais de um meca-
nismo e podem ser classificados em primários e secundários. A lesão primária é
resultante da ação direta da força agressora e, portanto, está ligada ao mecanis-
mo do trauma. Temos como lesões primárias as fraturas cranianas, as contusões
e lacerações da substância cinzenta e a lesão axonal difusa. Já as lesões secundá-
rias ocorrem segundo alterações estruturais encefálicas decorrentes da lesão
primária, bem como de alterações sistêmicas decorrentes do traumatismo. Temos
como lesões secundárias os hematomas intracranianos, a hipertensão intracrani-
ana, herniações, lesão hipóxico-isquêmica e infecções9.
O atendimento na fase aguda visa evitar ou minimizar lesões secundárias.
Ou seja, um bom atendimento na fase inicial do paciente com TCE será determi-
nante para o prognóstico.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 135


Também podemos classificar as lesões em focais e difusas. Como lesões
focais temos a fratura craniana, as contusões e lacerações da substância cinzenta
e os hematomas intracranianos (hematomas extradural, subdural e intraparen-
quimatoso). Como lesões difusas podemos citar a lesão axonal difusa, lesão hi-
póxico-isquêmica, swelling e alterações neuroquímicas. Geralmente as lesões
difusas apresentam prognóstico pior que as focais.
A lesão axonal difusa ocorre quando uma força de impacto com um com-
ponente de aceleração rotatória atinge os feixes de fibras perpendicularmente,
fazendo com que ocorra um cisalhamento das fibras mielínicas. Frequentemente
está associada ao coma prolongado e a um prognóstico mais reservado. É impor-
tante lembrar que as crianças são mais suscetíveis à lesão axonal difusa, e este
fato pode ser explicado pela maior relação cabeça/corpo, maior fraqueza da
musculatura cervical e menor mielinização17.
Na maioria das vezes o TCE faz parte de um quadro de politraumatismo,
e, sendo assim, não é incomum a associação de outras lesões como lesão medu-
lar, lesões nervosas periféricas, fraturas, perfuração de vísceras, laceração de
baço ou fígado, entre outras. Muitos casos de fraturas ou lesões ligamentares são
diagnosticados tardiamente, por vezes durante a reabilitação.
As sequelas dependerão do local, extensão e gravidade da lesão. Coma
com duração maior que seis horas já configura TCE grave. Porém, nunca deve-
mos fechar prognóstico na fase aguda. É importante aguardar o “despertar” do
paciente, iniciar a reabilitação assim que possível e mensurar sua evolução ao
longo do tempo.

ENCEFALOPATIA POR ANÓXIA12


O metabolismo encefálico normal requer oxigênio e glicose. O encéfalo
representa, aproximadamente, 2% da massa corporal total e é o responsável pela
utilização de 20% do oxigênio total e 25% da demanda total de glicose. Dada a
grande demanda de oxigênio para o metabolismo encefálico, uma falência cardi-
opulmonar de 10 a 15 segundos acarreta perda de consciência e, após cinco mi-
nutos, pode ocorrer lesão encefálica irreversível.
Apesar de a anóxia corresponder a um acometimento difuso, algumas re-
giões encefálicas são mais suscetíveis à lesão que outras, devido às diferentes
demandas metabólicas. A substância cinzenta do córtex cerebral, particularmen-
te do lobo frontal, apresenta as mais altas taxas de demandas metabólicas. Em
seguida temos os lobos occipital, parietal e temporal, núcleos da base e cerebelo.
O tronco encefálico apresenta as menores demandas metabólicas do encéfalo.

136 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Assim, perante uma anóxia, provavelmente a primeira região lesada será o cór-
tex do lobo frontal, e, de acordo com a gravidade da anóxia, outras regiões serão
afetadas. A última região a ser lesada será o tronco encefálico (responsável pela
regulação da respiração e frequência cardíaca). As consequências após um even-
to anóxico podem variar de leve a grave, de acordo com a duração da anóxia.
Outros fatores a serem considerados são temperatura corporal, pressão arterial e
complicações clínicas concomitantes.
Algumas causas de anóxia incluem:
- Quase afogamento
- Sufocação
- Corpo estranho em vias aéreas
- Choque elétrico provocando parada cardiorrespiratória (PCR)
- Intoxicação por monóxido de carbono
- Lesão traumática no sistema respiratório
- Complicações intra ou pós-operatórias provocando PCR
- PCR devida a doenças sistêmicas.

NEUROINFECÇÕES
O sistema nervoso central (SNC), pelo tipo de atividade que desenvolve e
pelo grau de precisão requerido na maioria de suas funções, é um dos órgãos
mais protegidos do organismo. Conta principalmente com a proteção mecânica
da caixa craniana, com os envoltórios meníngeos e com o líquido cefalorraquidi-
ano (LCR), que possui ambiente metabólico e imunológico local particular, gra-
ças à função da barreira hematoencefálica (BHE). O cérebro e a medula são
envolvidos por membranas, as meninges, dispostas em três camadas (pia-máter,
aracnóide e dura-máter).
Meningites são entidades clínicas que se caracterizam pela ocorrência de
processo infeccioso nas meninges. A meningite decorre da invasão de germes no
SNC de maneira direta (TCE ou malformações) ou indireta, pela colonização nas
vias aéreas superiores (mucosa da nasofaringe), com posterior disseminação
hematogênica, bacteremia e comprometimento da BHE. Uma vez que o agente
infeccioso consegue atingir o LCR, espalha-se rapidamente por toda a sua exten-
são, incluindo o sistema ventricular. Nessa eventualidade, o SNC desenvolve
uma reação inflamatória intensa, caracteristicamente restrita ao espaço continen-
te do LCR. Efeitos secundários como o edema, que acompanha a resposta infla-
matória, podem ocasionar graves danos ao sistema nervoso, mecanicamente
delimitado pela caixa craniana7.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 137


A maioria das bactérias ataca preferencialmente as meninges, poupando o
parênquima encefálico. Alguns vírus, no entanto, podem acometer também as
células do tecido nervoso, ocasionando o aparecimento das encefalites ou me-
ningoencefalites. Fenômeno semelhante ocorre com alguns fungos e com os
bacilos da tuberculose.
A meningite bacteriana ainda hoje apresenta elevadas taxas de morbidade
e mortalidade, sendo mais frequente e grave nas crianças que nos adultos. Os
fatores prognósticos e a incidência de complicações vão depender da idade do
paciente, do agente etiológico, da precocidade do diagnóstico e das condições
clínicas associadas. Os sintomas e sinais clássicos como cefaléia, vômitos, febre
e rigidez de nuca podem estar ausentes em crianças menores. Também podem
ser constatados outros sintomas, como fotofobia, sonolência, confusão mental e
convulsões.
As encefalites podem ser divididas em agudas, resultantes da invasão dire-
ta e replicação do agente causal no SNC (como o vírus do Herpes simplex 1 e 2,
enterovírus, caxumba, sarampo etc.); pós-infecciosas, resultante de processo
imunomediado (após sarampo, caxumba, varicela, influenza etc.) e de infecções
virais lentas (HIV, panencefalite esclerosante subaguda etc). O prognóstico nas
encefalites é reservado. Podem ficar sequelas motoras, cognitivas, psicocompor-
tamentais, epiléticas, visuais e auditivas. O prognóstico a curto e a longo prazo
depende do agente etiológico e da idade da instalação do quadro. Lactentes apre-
sentam risco de mortalidade maior em relação às crianças maiores. Pacientes
com encefalite por Herpes simplex ou Mycoplasma pneumoniae têm risco maior
de mortalidade e de sequelas graves que os infectados por outros agentes16.
Ainda como processos infecciosos do SNC, podemos citar a neurotuber-
culose, a neurocisticercose, a neurotoxoplasmose, e a neuroesquistossomose.

TUMORES CEREBRAIS
Os tumores cerebrais podem ser malignos ou benignos dependendo de sua
capacidade de recidiva e possibilidade de ressecção cirúrgica. Mas vale lembrar
que mesmo os tumores benignos podem deixar sequelas. Também podem ser
classificados em primários, quando a divisão anormal de células se inicia no
próprio encéfalo, ou metastáticos, quando o tumor primário está localizado em
outro órgão. Em crianças é mais comum a presença de tumores primários e, em
adultos, é mais comum a presença de tumores encefálicos metastáticos.
Os sintomas de um tumor encefálico vão depender de sua localização e
velocidade de crescimento. Tumores que elevam a pressão intracraniana podem

138 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


provocar cefaléia, vômitos e alteração do nível de consciência. Em crianças,
cujas fontanelas ainda não se fecharam, a elevação da pressão intracraniana pode
levar a um aumento do perímetro cefálico e abaulamento das fontanelas.
Os exames de imagem, como tomografia computadorizada e ressonância
nuclear magnética, são de suma importância no diagnóstico dos tumores. O tra-
tamento varia de acordo com o tumor e pode incluir cirurgia para ressecção tu-
moral, radioterapia e quimioterapia.
É fundamental o conhecimento do prognóstico tumoral para se traçar um
plano de reabilitação, visto que algumas classes tumorais apresentam sobrevida
extremamente curta. Durante o processo de reabilitação, deve-se atentar para
qualquer mudança no quadro clínico que possa indicar sinais de recidiva.

Sequelas neurológicas
Dependendo do local, extensão e gravidade da lesão, poderemos ter varia-
dos tipos de sequelas:
- Motoras: diminuição da movimentação voluntária em algum segmento
do corpo, alteração de tono muscular, presença de movimentação involuntária,
alteração de coordenação, entre outras;
- Sensoriais: deficiência visual, auditiva, alteração de sensibilidade e/ou
de propriocepção;
- Alterações de fala e linguagem;
- Alterações cognitivas: déficit de atenção, memória, execução, raciocínio
lógico, dificuldade para abstração;
- Alterações comportamentais: impulsividade, dificuldade para julgamento, ir-
ritabilidade, desmotivação, labilidade emocional, apatia, letargia, isolamento social.
A evolução dependerá de uma somatória de fatores: neurológicos, clíni-
cos, emocionais, sociais e familiares. Mas dependerá também da precocidade e
da especificidade da intervenção de reabilitação. O tratamento deve ser individu-
alizado, com metas reais definidas pela equipe de reabilitação, abrangendo e
valorizando igualmente as áreas física, emocional, educacional e profissional.

Referências
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Brain Injury Association Board of Directors. March 14, 1997. Disponível em: http://
www.biausa.org. Acesso em 17/06/09.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 139


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A neurologia que todo médico deve saber. São Paulo: Maltese; 1991.
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comes after acquired brain injury. Arch Phys Med Rehabil 2003; 84(Suppl 1).

140 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


3.1
A MUSICOTERAPIA E O PACIENTE
COM LESÃO ENCEFÁLICA ADQUIRIDA

Maria Helena Rockenbach


Marilena do Nascimento

Como terapeutas, reconhecemos a necessidade de compreender o


paciente dentro do contexto de sua própria história pessoal. E como mu-
sicoterapeutas temos consciência da importância de se conhecer a histó-
ria musical do mesmo. Um dos objetivos principais de se examinar a his-
tória do paciente é determinar em que etapa de desenvolvimento ele se
encontra, se está em uma etapa condizente com a sua idade ou apresenta
atrasos, alterações ou fixações em seu desenvolvimento2.

A lesão cerebral pode afetar as mais diversas funções humanas, as bases


da ação, adaptação, aquisição de conhecimentos, comunicação, memórias, con-
centração, julgamentos e emoções. Uma lesão cerebral em uma criança inter-
rompe abruptamente seu processo de desenvolvimento e leva à perda de capaci-
dades já adquiridas. No adulto, uma das maiores dificuldades é a aceitação do
esquema corporal. As representações do mundo e do corpo não se encontram
apenas em nosso cérebro, elas também existem, em sua essência, com um fim
específico: dirigem o nosso comportamento e conseguem que este tenha tanto
mais êxito quanto mais próximas estiverem da realidade concreta. Também a
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 141
família sofre com as modificações de seus filhos e/ou parentes e passam, em
geral, por um processo de luto. Nesse processo de aceitação da nova realidade
todos passam pelas fases comuns a doentes terminais e aos que perdem entes
queridos ou algo de que gostem muito: a) choque inicial; b) raiva; c) barganha e
d) aceitação.
No Centro de Reabilitação da AACD, em geral, os pais e/ou responsáveis
pela criança e/ou adulto com lesões encefálicas adquiridas (LEA) estão deprimi-
dos, confusos, e “até assustados“ com a nova situação de seu familiar. Por uma
equipe multidisciplinar são atendidos e orientados para participarem das terapias
oferecidas pela instituição, entre elas a Musicoterapia.
Estudos teóricos comprovam que a música é uma atividade neuropsicoló-
gica, já que envolve diversas funções mentais: auditiva, motora, visual, tátil.
A música estimula a expansão de redes neuronais, sem precisar de decodi-
ficação linguística. Ela tem acesso às regiões límbicas (emocionais, motoras e
impulsivas) e auxilia na reorganização das regiões cerebrais traumatizadas (fun-
ciona em uma área cerebral para ser transferida para outra). Do mesmo modo, a
música tem ligação direta com o sistema de percepções cinestésicas ligadas a
áreas associadas de confluência cerebral que integram as mais variadas formas:
gustativas, olfativas, visuais e propriocepção. A música também beneficia com-
petências cognitivas como memória, atenção, resolução de tarefas especiais.
Ainda estimula os sistemas sensório-motores, que coordenam a percepção senso-
rial com os movimentos. Por todas essas propriedades da música, as interven-
ções musicoterapêuticas podem ser benéficas e trazer bons resultados para a
melhora do paciente e de sua qualidade de vida no processo de reabilitação.

Intervenções musicoterapêuticas em crianças com lesões


encefálicas adquiridas

Em geral, utilizamos nas sessões de Musicoterapia com crianças, as técni-


cas musicoterapêuticas desenvolvidas por Bruscia2: audição musical, re-criação,
improvisação e composição musical. Também nos valemos da técnica das vi-
vências musicoterapêuticas com a literatura infantil6 e do uso da mídia (compu-
tadores e jogos eletrônicos). No setting terapêutico, proporcionamos às crianças
intervenções musicoterapêuticas levando-as a saírem de um estado passivo, le-
tárgico, para uma conduta transformadora de ação, dentro de suas limitações
corporais, físicas e emocionais. As crianças se tornam produtivas e sentem pra-
zer no “brincar musicalmente”. Descobrir melodias, timbres, acordes, andamen-
142 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
tos, interagir com as terapeutas, criar suas próprias histórias sonoras e canções
começam a fazer parte de sua rotina e de modificar a sua vida.
Há relatos verbais e escritos de pais e familiares, no momento de alta des-
sas crianças, apontando as mudanças comportamentais e as melhorias obtidas
com a Musicoterapia.
Na sala de Musicoterapia da unidade de Porto Alegre da AACD, por e-
xemplo, convivem, ao lado dos instrumentos musicais, o boneco de madeira
Pinóquio, o fantoche de sapo e uma “bruxa amarela” que possibilitam a criação
de histórias sonoras e o envolvimento da criança com os instrumentos musicais.
Crianças que nunca tiveram contato com instrumentos musicais, através do Pi-
nóquio, vão ao piano, ao teclado, descobrem a formação de acordes, escalas
ascendentes e descendentes, timbres, glissandos, a possibilidade de “fazer a sua
música”. Inferimos nessas crianças a melhora da atenção, da hiperatividade, da
concentração, da irritabilidade e da memória.

Relato de experiência com criança com lesão


encefálica adquirida

A., sexo masculino, três anos, com diagnóstico de LEA, dupla hemipare-
sia, hipotonia severa, enquadrado em terapias na AACD, inclusive no setor mu-
sicoterapêutico em atendimento individual.
Os pais vivenciam o luto pela perda do filho idealizado e fantasiam a pos-
sibilidade de A. ”ser como antes”. Têm acompanhamento psicológico e da equi-
pe multidisciplinar, e estão comprometidos com o tratamento do filho. No início
da terapia, A. não conseguia percutir os instrumentos, nem se interessava pelos
instrumentos musicais, embora reagisse aos estímulos sonoros. Era desatento,
agitado e impulsivo, com dificuldades de limites. Aos poucos foram introduzidas
peças instrumentais de música erudita na audição musical, e o paciente se tornou
mais atento e mais tranquilo. Com o auxílio de adaptações, orientadas pelas te-
rapeutas ocupacionais, A. conseguiu segurar as baquetas dos tambores e percutir
o instrumento. Hoje, A. está interagindo com a terapeuta no piano, no teclado,
reconhecendo padrões melódicos e rítmicos e começando a verbalizar algumas
palavras das canções e improvisações feitas na terapia. A avó e os pais estão
relatando e comemorando os progressos da criança com a terapia e levam grava-
ções das sessões para casa como que as prolongando.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 143


Intervenções musicoterapêuticas em adultos com lesões
encefálicas adquiridas

Para os adultos portadores de LEA, um dos desafios primordiais dos mu-


sicoterapeutas será o de adaptação do paciente à sua condição de vida atual. Em
geral, são indivíduos que foram, até bem pouco tempo, produtivos no mercado
de trabalho, independentes, com muitas expectativas e planos para o futuro. As
consultas dentro da equipe interdisciplinar da AACD representam a base da
maior parte de nosso trabalho. Só com a abordagem da equipe, podemos enten-
der a magnitude da lesão que se produziu no paciente, as esperanças de reabilita-
ção, as atitudes e as respostas emocionais dos membros da família que frequen-
temente são decisivas para a evolução do paciente.
Sabe-se que as sequelas neurológicas influem nas capacidades motoras
dos indivíduos lesionados, resultando na diminuição de movimentos voluntários
em algum segmento do corpo, transtornos de marcha, alteração do tono muscu-
lar, presença de movimentos involuntários, alteração da coordenação etc. Há
também sequelas sensoriais, resultando em perdas visuais, auditivas, alteração
de sensibilidade e de propriocepção. A linguagem e a fala também ficam altera-
das, com surgimento de afasia e/ou disartria. Observam-se alterações cognitivas
na atenção, memória, execução e planejamento de tarefas, raciocínio lógico,
dificuldade de abstração. O comportamento do paciente também se modifica.
Ele pode se tornar impulsivo, irritável. O paciente tem ainda dificuldade para
julgamento, apresenta labilidade emocional, apatia, letargia, isolamento social.
A consciência de que, em uma experiência musical, estão em jogo funções
diferentes, que se desenvolvem a partir da linguagem verbal, nos permite enten-
der, como exemplo, que pacientes que não possuem ou que perderam a lingua-
gem verbal encontram, no elemento sonoro, um modo diferente e facilitador para
a compreensão e para a resolução de algo que lhes aflige. Para Ferrari3, a análise
de uma experiência musical em Musicoterapia não apenas nos permite verificar
a capacidade de nosso cliente, usuário ou paciente, mas também possibilita a
compreensão de processos biológicos, psíquicos, éticos e culturais que perfazem
a identidade desse ser. Segundo Sacks7, para os portadores de afasia, a incapaci-
dade de comunicar-se verbalmente pode ser quase insuportável por causa da
frustração e do isolamento decorrentes. Para ele, essas pessoas, muitas vezes, são
tratadas como idiotas, porque não conseguem falar. Em sua opinião, boa parte
disso pode mudar com a descoberta de que esses pacientes são capazes de cantar
não só as melodias, mas também a letra de óperas, hinos ou canções. Subitamen-
144 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
te, sua incapacidade e seu isolamento são reduzidos. Sacks7 aponta que cantar
não diz apenas que “Estou vivo, estou aqui!”, mas pode expressar pensamentos e
sentimentos que, em um dado momento, não podem ser expressos pela fala.
Dentre os objetivos gerais da Musicoterapia com adultos com LEA que
podem ser considerados prioritários se destacam: o aumento do sentimento de
segurança; a facilitação do movimento fonoarticulatório pela melodia, auxilian-
do para a desinibição na comunicação verbal e não verbal; a socialização; a es-
timulação do tono muscular e da coordenação motora5.
Em síntese: as intervenções musicoterapêuticas com adultos são focadas
na estimulação sensorial, no esquema corporal, na orientação para a realidade,
na motivação para vida e na ativação de lembranças e memórias passadas, vincu-
ladas ao presente do paciente.

Relato de experiências com adultos com lesão


encefálica adquirida

L.C., 53 anos, músico profissional, acometido de um AVC isquêmico,


com dupla hemiparesia, teve atendimento musicoterapêutico individual na
AACD / Porto Alegre, RS, pelo período de três meses. Vocalista de uma banda
de música de muito sucesso no Rio Grande do Sul, estava deprimido devido às
perdas resultantes do AVC. O objetivo principal das intervenções com L.C. foi
melhorar sua autoestima, possibilitando a expressão de seus sentimentos e emo-
ções sobre a doença, a estimulação do tono muscular, da memória, e contribuir
para a melhora da fala, que “era a sua principal queixa”. O paciente improvisava
e cantava, anteriormente, em todos os tons da Escala Musical e, mesmo com as
habilidades preservadas para reconhecimento de melodias, timbres, intervalos,
era exigente para a sua performance musical. Para L.C. os objetivos terapêuticos
prioritários foram: aceitar as perdas motoras, as alterações na fala e a dependên-
cia da esposa para as atividades de vida diária. Iniciamos os atendimentos com
as canções do repertório musical que cantava na banda, em sua maioria canções
de Frank Sinatra, Piazzola, MPB e Roberto Carlos. No decorrer das sessões,
L.C. apresentou comportamento mais seguro, soltando a voz e participando de
apresentações com os integrantes do grupo de Fonoaudiologia e Musicoterapia
nas datas festivas de comemoração do Natal e no Carnaval, realizadas na institu-
ição. Próximo à alta, o paciente se permitiu improvisar e compor com a musico-
terapeuta uma canção em Dó m, com os seguintes versos:

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 145


Eu sou L.C.
Guerreiro, bravo, lutador
Não tenho medo de nada
Vou suportar a minha dor.

Meu canto ecoa


do fundo da minha alma
O tempo e o andamento
perfazem a minha melodia.

Há gente que duvida


da minha superação
Mas o futuro dirá
quem tem razão.

Com essa canção pudemos inferir os objetivos alcançados com a terapia: a


aceitação de seu estado atual e a possível superação de suas deficiências por
meio do canto e da música. O paciente descobriu uma nova forma de cantar e,
atualmente, mesmo com dificuldades, inicia o dedilhar no violão.

Vários exemplos poderiam ser relatados neste capítulo, mas, para finalizá-
lo, apresentaremos uma canção feita por uma jovem de 27 anos, em parceria
com a musicoterapeuta.
A. é portadora de LEA causada por anóxia. No início da terapia, estava
deprimida, tímida e lembrava-se constantemente de seu noivo, da vida que leva-
va antes do acidente, de sua mãe falecida. Durante as sessões de Musicoterapia
descobriu que podia cantar, percutir os guisos e chocalhinhos, marcando, com
exatidão, o pulso das canções, expressando, dessa forma, os seus sentimentos e
“fazer música” narrando a sua própria história. Próximo da programação da alta
terapêutica, externou o desejo de “cantar como a nova A.”. A improvisação mu-
sical foi feita na oportunidade e gravada em fita-cassete, na tonalidade de Dó m.
Segue a letra da canção idealizada pela paciente:

Era uma jovem alegre


com muitos amigos e planos para o futuro
Até que um dia
inesperadamente
tudo se apagou.

Uma dor muito forte

146 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


e logo o coma
no hospital.
Ninguém acreditava
na sua recuperação
Até os médicos achavam
que A. iria morrer.

Mas A. é forte,
muito forte
e superou o prognóstico
que a tornaria vegetativa.

Pra ela não há tristezas


nem dor
que o tempo não cure
A vida é longa
e há que se viver
intensamente
cada segundo.

Assim é a A.
canção da vida
a canção do amor.

Em notas musicais
expressa
a sua melodia
Do fundo da alma
na canção do amor.

As técnicas empregadas nas intervenções musicoterapêuticas com adultos


incluem, além das já mencionadas que são utilizadas com crianças, também o
bingo musical, atividade em que os pacientes têm de associar figuras com senti-
mentos expressos pela música; “frases de canções” em que há de se reconhecer o
nome da canção; a criação de canções partindo de poesias escolhidas e/ou com-
postas pelos pacientes; o reconhecimento de jingles publicitários e de músicas de
filmes; bem como associações musicais com fotos. Também são realizados rela-
xamentos neuromusculares com audição de música erudita. Essas intervenções
musicoterapêuticas, entre outras, favorecem tanto a memória de curto prazo
quanto a de longo prazo, a memória semântica, a memória episódica e a memó-
ria musical.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 147


No dizer de Sanchez8, há associações entre os episódios vividos pelos pa-
cientes e a memória musical. Endentemos que uma palavra pode desencadear
uma lembrança de uma canção que não escutávamos há algum tempo, canção
que estava ali nos aguardando para dizer algo de nós e trazendo, além disso, a
recordação de uma situação. Quando fazemos uma indução evocativa inconsci-
ente, segundo a autora, fazemos também uma associação da memória musical
com a memória semântica (no caso da palavra, evocar essa lembrança).
Não se pode prescindir da história de vida anterior e atual dos pacientes
com LEA, das canções passadas e das canções futuras que poderão advir de sua
criatividade, de sua capacidade de superação e de viver. A música atua em nosso
organismo, do mesmo modo que outros estímulos biológicos adicionais impor-
tantes9. A música estimula o sistema de recompensa do próprio corpo, que tam-
bém é estimulado pelo sexo ou por substâncias euforizantes que se fazem acom-
panhar de liberação de dopamina (dos neurônios da zona A10 para o núcleo a-
cumbens) e de opióides endógenos (dos neurônios do núcleo acumbens para
grande parte do lobo frontal).
Embora a música não seja considerada essencial para a sobrevivência hu-
mana nem para a reprodução, acaba por ser uma substância farmacológica, no
sentido técnico do termo. A ativação desses sistemas cerebrais, por meio de um
estímulo com determinado grau de abstração, tal como a música, é uma emer-
gente característica complexa das capacidades mentais do ser humano. Todas
essas atribuições concernentes à música justificam a sua utilização em pacientes
com LEA, levando-os à inclusão social e melhorando sua qualidade de vida.

Considerações finais
Pelo exposto, observamos que as atividades musicoterapêuticas têm um
papel relevante na reabilitação de pacientes adultos e crianças com lesões cere-
brais adquiridas. A música pode ajudar na inclusão social desses pacientes, mui-
tas vezes, isolados, desmotivados, devido às perdas motoras e cognitivas provo-
cadas pela doença4.
Resgatar a autoestima, torná-los mais independentes em suas atividades de
vida diária, estimular o lado criativo, respeitando suas limitações e deficiências,
tornam possível uma nova história de vida para os pacientes, diferente da anteri-
or, mas adaptada à realidade de seu estado atual.
A Musicoterapia lhes possibilita criar e entender o mundo como uma par-
titura nova, em que cada um deles pode registrar a sua melodia, escolher o tim-

148 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


bre, o ritmo, o andamento, o compasso e as notas adequadas à sua composição,
tornando-a única e verdadeira.

Referências
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Aires: Bonum; 1993.
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9. Spitzer M. Aprendizagem: Neurociências e a escola da vida. Lisboa: CLIMEPSI; 2007.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 149


3.2
MUSICOTERAPIA E
FONOAUDIOLOGIA NA CLÍNICA DE
LESÃO ENCEFÁLICA ADQUIRIDA

Andréa Siqueira Kokanj-Santana


Marla Fabiana Rodrigues Oliveira-Sakamoto

Pacientes com LEA podem apresentar alterações fonoaudiológicas impor-


tantes e se beneficiar de intervenções integradas com a Musicoterapia. Os qua-
dros fonoaudiológicos frequentes nesses pacientes incluem distúrbios de lingua-
gem (afasia), distúrbios linguístico-cognitivos, apraxia de fala e disartrofonia.
Levando em conta que a música (objeto de estudo da Musicoterapia) e a
comunicação (objeto de estudo da Fonoaudiologia) consistem em elementos
rítmicos e melódicos, e que estrutura temporal, duração, ritmo e controle motor
são essenciais para o mundo da música e da comunicação, consideramos que a
Musicoterapia pode enriquecer e auxiliar o processo de reabilitação fonoaudio-
lógica por meio de recursos e de estratégias específicas de sua área de atuação.
Na AACD fazemos esse trabalho integrado há seis anos. Atualmente exis-
tem dois tipos de grupos: um para pacientes afásicos e outro para pacientes di-
sartrofônicos. Nos dois grupos, visamos a melhora da expressividade comunica-
tiva do paciente. Este trabalho é realizado em uma sessão semanal de uma hora e

150 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


conta com a presença de um musicoterapeuta e um fonoaudiólogo. O objetivo
desse trabalho conjunto é atuar nos distúrbios de voz, da fala e da linguagem,
utilizando estratégias da Musicoterapia, considerando que os aspectos perceptu-
ais envolvidos na música possibilitam o processamento das informações auditi-
vas, a estimulação da expressão verbal e das habilidades cognitivas do paciente.
Além disso, os aspectos envolvidos na voz cantada auxiliam na voz falada.
Pacientes com afasia apresentam alteração nos aspectos da expressão e/ou
compreensão verbais, desencadeada por lesão no sistema nervoso central, em
zonas responsáveis pela linguagem. Em níveis diferentes, há frequente dificul-
dade em codificar e decodificar os símbolos por meio de canais auditivos, visu-
ais e táteis. Muitas vezes a habilidade de cantar não é frequentemente afetada em
pacientes que sofrem alterações de linguagem, após LEA, demonstrando a espe-
cialização do hemisfério direito para a música, já que o hemisfério esquerdo é
responsável pela compreensão da linguagem e pela produção da fala. No hemis-
fério direito não residem apenas aspectos das habilidades musicais exclusiva-
mente; os aspectos do processo musical que requerem julgamentos sobre dura-
ção, ordem temporal, sequência e ritmo envolvem o hemisfério esquerdo, en-
quanto o direito é diferentemente envolvido quando são exigidos julgamentos
sobre memória tonal, timbre, reconhecimento de melodia e intensidade.
Os pacientes com disartrofonia podem apresentar alterações em uma ou
todas as bases funcionais da produção da fala, quais sejam: respiração, fonação,
ressonância, articulação e prosódia.
Cabe ao fonoaudiólogo avaliar, estabelecer e priorizar objetivos terapêuti-
cos específicos para cada paciente. Esses pacientes, na maior parte das vezes,
fazem terapia individual no Setor de Fonoaudiologia concomitante à participa-
ção no Grupo de Musicoterapia e Fonoaudiologia.
Dessa forma, podemos trabalhar de maneira específica e individualizada,
bem como realizar o trabalho em grupo, quando o paciente terá a oportunidade
de interagir com os demais pacientes durante atividades envolvendo aspectos
cognitivos, de linguagem e das bases funcionais da fala por meio de estratégias
da Musicoterapia.
Sabemos que exercícios envolvendo a pulsação, o ritmo, a entonação e a
melodia presentes em atividades musicais, assim como o próprio canto, auxiliam
a produção e a qualidade de execução das atividades fonoarticulatórias na reabi-
litação da fala do paciente com LEA. Além disso, os pacientes têm o espaço para
trocar informações, conversar, treinar os novos padrões de fala durante as ativi-
dades em grupo. Assim, temos a oportunidade, com as atividades realizadas no
grupo, de estimular:

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 151


• Quanto ao discurso e à interação: o contato visual, a iniciativa e a in-
tenção comunicativa, a manutenção de diálogos respeitando as trocas de turno.
• Quanto às habilidades cognitivas: as funções executivas, memória, a-
tenção, organização, planejamento, entre outras.
• Quanto à audição: o processamento auditivo, a discriminação, a atenção
e a memória auditiva.
• Quanto à linguagem: recepção e expressão linguística, tanto oral quanto
gráfica.
• Quanto à fala/voz: o planejamento, a programação e o controle motor
oral (como a precisão articulatória), a coordenação respiração-fala/canto, resso-
nância, fonação, extensão vocal, modulação de loudness e pitch, velocidade da
produção, auxiliando na inteligibilidade da fala.
Todos os exercícios e atividades realizados nos grupos têm como finalida-
de a sua transposição para a comunicação espontânea. A exploração dos aspec-
tos da métrica musical (ritmo, tempo, duração), o trabalho com percepção audi-
tiva: pitch (altura), loudness (intensidade) e com a qualidade musical (entonação,
melodia, harmonia) proporcionam o canto e, consequentemente, um feedback
positivo para o paciente, no qual a produção verbal é possível, mesmo que adap-
tada. O paciente se reconhece como um interlocutor possível. Dessa forma, en-
tendemos a música como processadora dos sons da fala que permite o engrama e
o mapeamento das palavras cantadas em significados.
Sabemos que é necessário nos basearmos em evidências para uma investi-
gação do impacto da Musicoterapia sobre a reabilitação neurológica em pacien-
tes com distúrbios da comunicação, no sentido de mensurarmos as mudanças,
mas vale dizer que nossa experiência clínica tem demonstrado efeitos positivos
na qualidade e no desempenho da comunicação desses pacientes.

Bibliografia consultada
Aldridge D. Music therapy and neurological rehabilitation. London: Jessica Kingsley
Publishers; 2005.
Lopes Filho OC, Campiotto AR, Levy C, Redondo MC, Anelli W. Tratado de fonoaudi-
ologia. Ribeirão Preto: Tecmedd; 2005.
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Springer SP, Deutsch G. Cérebro esquerdo, cérebro direito. 50. ed. São Paulo: Editora
Santos; 2008.
Tamplin J, Baker F. Music therapy methods in neurohabilitation. London: Jessica Kings-
ley Publishers; 2006.

152 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


4.
O QUE PRECISAMOS SABER SOBRE
DOENÇAS NEUROMUSCULARES

Edmar Zanoteli

As doenças neuromusculares (DNM) são definidas como um grupo de de-


sordens que afetam algum componente da unidade motora, ou seja, corpo neuro-
nal na medula, nervo periférico, placa mioneural e tecido muscular. Doenças que
afetam o trato córtico-espinhal na medula espinhal, o cerebelo e as vias espino-
cerebelares também têm sido incluídas no grupo das DNM. As principais doen-
ças que afetam o trato piramidal são a esclerose lateral amiotrófica e a parapare-
sia espástica familiar (doença de Strumpell-Lorraine). O cerebelo e as vias cere-
belares são envolvidos nas ataxias hereditárias. Outras doenças se caracterizam
pelo comprometimento do corpo do neurônio motor localizado no corno anterior
da medula espinhal, como ocorre na amiotrofia espinhal progressiva e na escle-
rose lateral amiotrófica, ou do nervo periférico, como ocorre nas neuropatias
periféricas hereditárias (doença de Charcot-Marie-Tooth) ou adquiridas (poli-
neuropatias diabética e alcoólica). A miastenia grave se caracteriza pela produ-
ção de autoanticorpos contra receptores da acetilcolina na placa motora, resul-
tando em paresia e fadigabilidade da musculatura ocular, bulbar e dos membros.
As doenças musculares podem ser de causa adquirida ou genética. Exemplos de
miopatias de causa adquirida incluem as miopatias inflamatórias (polimiosite e

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 153


dermatopolimiosite), miosites infecciosas e tóxicas. Dentre as miopatias de cau-
sa genética as mais frequentes são as distrofias musculares, as distrofias muscu-
lares congênitas e as miopatias congênitas.
Neste capítulo serão apresentadas informações básicas com relação ao
quadro clínico, diagnóstico e aspectos do tratamento das DNM mais prevalentes
em centros de reabilitação.

Esclerose lateral amiotrófica (ELA)


A ELA é uma doença neurodegenerativa que afeta os neurônios do trato
córtico-espinhal e do corno anterior da medula espinhal, manifestando-se com
sinais e sintomas tanto de comprometimento do primeiro neurônio motor (espas-
ticidade e hiperreflexia) quanto do segundo (hipotonia, arreflexia, atrofia muscu-
lar e fasciculações). Cerca de 10% dos casos têm caráter genético, mas no
restante dos casos não se conhece a sua causa. Dentre os casos familiares, aque-
les relacionados à disfunção da enzima superóxido-dismutase (cromossomo 21)
são os mais comuns. A doença afeta preferencialmente indivíduos do sexo mas-
culino, e após os 40 anos de idade. As principais manifestações clínicas da doen-
ça incluem fraqueza, atrofia e fasciculações nos membros, de início assimétrico.
Mais tardiamente, na evolução da doença, os músculos bulbares e respiratórios
são também afetados. Disfonia e disfagia são manifestações frequentemente
observadas nos estágios mais avançados da doença. No entanto, o envolvimento
da musculatura bulbar pode ser a manifestação predominante, ou mesmo a única
anormalidade. Os pacientes com ELA não desenvolvem comprometimento sen-
sitivo, autonômico ou visual; e os nervos que controlam os movimentos ocula-
res, e os segmentos sacrais inferiores da medula espinhal, que controlam os es-
fíncteres, não são afetados. As funções corticais superiores, como inteligência e
memória, não são comprometidas. A ELA é uma doença progressiva, e em 60%
dos casos o óbito ocorre entre dois e cinco anos após o início da doença. A insu-
ficiência respiratória é a principal causa de óbito, e em geral está associada à
disfagia com broncoaspiração.
Alguns exames são úteis com o objetivo de afastar outras doenças que po-
dem simular o diagnóstico de ELA, destacando a eletroneuromiografia (ENMG),
o estudo do líquido cefalorraquiano, dosagem sérica de creatinofosfoquinase
(CK), tomografia computadorizada (CT) e ressonância magnética (RM) de me-
dula espinal e encéfalo. Até o momento ainda não existe tratamento eficaz ou
cura para a ELA. O tratamento desses pacientes é baseado na reabilitação e de-

154 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


pende de uma abordagem multidisciplinar. O uso do medicamento Riluzole, um
antagonista do glutamato, em pacientes com ELA tem proporcionado um peque-
no prolongamento no tempo de sobrevida, especialmente naqueles com maior
comprometimento bulbar.

Amiotrofia espinhal progressiva (AEP)


A AEP é uma doença genética de herança autossômica recessiva que afeta
o corpo do neurônio motor localizado no corno anterior da medula espinhal. É
uma das doenças neuromusculares mais prevalentes em crianças que estão em
tratamento nos centros de reabilitação. Caracteriza-se clinicamente por hipotonia
e fraqueza muscular difusas, de predomínio nas porções proximais dos mem-
bros, arreflexia tendínea profunda, fasciculações e tremor fino das extremidades.
Os membros inferiores são preferencialmente afetados. Os músculos respirató-
rios, bulbares e paravertebrais são caracteristicamente afetados, ao contrário dos
músculos faciais e oculares que tendem a ser poupados. Tal achado faz com que
essas crianças apresentem expressão facial bem preservada, em comparação com
o grave comprometimento motor apendicular. Conforme a época do início e a
gravidade da doença a AEP tem sido classificada em três formas:
- O tipo 1 (doença de Werdnig-Hoffmann, ou forma grave) é caracterizado
por início precoce, antes dos 6 meses de vida, e grave comprometimento motor e
respiratório. Nesses casos, há importante comprometimento bulbar com disfagia.
As crianças não adquirem a habilidade de sentar sem apoio. O óbito ocorre, em
mais de 90% dos casos, antes dos dois anos de idade.
- O tipo 2 (forma intermediária) apresenta sintomatologia menos intensa,
com início das manifestações ocorrendo antes dos 18 meses de vida. As crianças
são capazes de sentar sem apoio, porém não chegam a deambular. São crianças
com expressão facial normal, mas com grave comprometimento apendicular,
especialmente de membros inferiores. Frequentemente se associa com deformi-
dades oesteoesqueléticas diversas, tais como retrações musculares e escoliose.
- O tipo 3 (doença de Kugelberg-Welander, ou forma leve) possui um
quadro clínico mais brando, com início das manifestações ocorrendo após os 2
anos de vida. Clinicamente, caracteriza-se por fraqueza e atrofia muscular das
cinturas, hipotonia, e arreflexia tendínea profunda. Os pacientes apresentam
algum período de deambulação. A perda da marcha ocorre após a primeira déca-
da de vida dependendo do comprometimento motor. Apesar do curso mais be-
nigno do tipo 3, observa-se piora lentamente progressiva do quadro motor.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 155


Em todos os três tipos a inteligência tende a ser preservada. O fator prog-
nóstico mais importante na AEP é o comprometimento respiratório, usualmente
agravado pelo desenvolvimento da escoliose. Os exames mais comumente utili-
zados para o diagnóstico são a ENMG e a biópsia muscular. Aproximadamente
98% dos indivíduos com AEP apresentam mutação no gene SMN1 (sobrevida do
neurônio motor), localizado no cromossomo 5 (5q). A presença de um número
aumentado da cópia SMN2, a qual é capaz de codificar uma pequena porção da
proteína funcional, é o principal determinante da gravidade da doença. Assim,
nas AEPs tipos 2 e 3, observam-se pelo menos três cópias do gene SMN2.

Ataxias hereditárias

As ataxias hereditárias compõem um grupo amplo de doenças neurodege-


nerativas nas quais as manifestações predominantes incluem ataxia, incoordena-
ção motora dos membros e disartria. Na infância e na adolescência, a forma mais
comum é a ataxia de Friedreich, enquanto que após a primeira década de vida as
ataxias espinocebeleares de herança autossômica dominante são predominantes.
A ataxia de Friedreich é uma doença de herança autossômica recessiva
causada por mutações no gene frataxina localizado no cromossomo 9. O início
da doença ocorre na primeira década de vida, e as manifestações são decorrentes
do envolvimento do cerebelo e das vias espinocerebelares. Clinicamente, carac-
terizam-se por incoordenação motora, marcha atáxica, nistagmo, fala escandida
e arreflexia tendínea profunda. Outras manifestações frequentemente presentes
incluem polineuropatia periférica, escoliose, cardiomiopatia e diabete. A doença
progride lentamente, com perda da capacidade para deambulação por volta dos
25 a 35 anos de idade. A sobrevida varia de 20 a 30 anos após o início da doen-
ça, e os principais fatores prognósticos são o desenvolvimento de cardiopatia e
insuficiência respiratória.
As ataxias espinocerebelares (AEC), de herança autossômica dominante,
manifestam-se predominantemente com incoordenação motora, ataxia, nistagmo
e disartria. Em geral, o início das manifestações ocorre na vida adulta, após a
adolescência. O cerebelo e as vias espinocerebelares são predominantemente
afetados; no entanto, outros sistemas neurológicos, tais como o piramidal, o
extrapiramidal e oftalmológico, são também envolvidos. Assim, ao lado da ata-
xia, outras manifestações que estão usualmente presentes são espasticidade, fra-
queza e atrofia musculares, oftalmoparesia, atrofia óptica, degeneração de retina,
distonia, parkinsonismo, coréia, fasciculações, disfunção cognitiva, polineuropa-

156 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


tia periférica e retração palpebral. A doença progride lentamente e a sobrevida
varia de 20 a 30 anos após o início da doença. Atualmente, vários subtipos de
AEC têm sido identificados, dependendo dos sinais e sintomas e do defeito ge-
nético. Os exames de TC ou RM do crânio revelam atrofia do cerebelo, das oli-
vas e do tronco encefálico. No Brasil, a forma mais comum de AEC é o tipo 3,
também conhecida como Doença de Machado-Joseph (DMJ). Os pacientes com
DMJ pertencem a etnia luso-açoriana, e os sinais neurológicos mais importantes
são ataxia cerebelar, espasticidade, distonia, parkinsonismo e atrofia muscular.
Outros sinais e sintomas incluem oftalmoplegia externa progressiva, disfagia,
fasciculações e retração palpebral. As funções corticais superiores são poupadas.
A DMJ é causada por uma repetição expandida do trinucleotídeo CAG no cro-
mossomo 14.
Na ataxia de Friedreich e nas AEC, o diagnóstico é obtido por critérios
clínicos e exames complementares. A ENMG demonstra em muitos casos uma
leve ou moderada redução das velocidades de condução dos nervos periféricos.
Os exames de TC ou RM de crânio revelam na maioria dos casos atrofia do ce-
rebelo. O diagnóstico definitivo é obtido pela identificação do defeito genético
específico através do exame do DNA.

Paraparesia espástica familiar


(Doença de Strumpell-Lorraine)

A paraparesia espástica familiar é uma doença genética caracterizada por


comprometimento predominante do trato córtico-espinhal na medula espinhal. A
época do início é variável, ocorrendo em geral nos primeiros 5 anos de vida.
Clinicamente, manifesta-se por dificuldade lentamente progressiva para a mar-
cha decorrente de espasticidade, com pouca fraqueza e atrofia muscular. A fra-
queza, quando presente, predomina nas porções distais dos membros inferiores.
Os reflexos estão hiperativos e o sinal de Babinski está quase sempre presente.
Disartria e incoordenação motora também podem ser observados. Em alguns
casos se nota séficit cognitivo associado, o qual dificulta o diagnóstico diferen-
cial com aquelas crianças portadoras de encefalopatia crônica não-evolutiva
(paralisia cerebral). Naqueles casos familiares, a doença pode ser transmitida por
uma herança autossômica dominante, autossômica recessiva ou mesmo ligada ao
cromossomo X.
Outro grupo de crianças apresenta uma forma da doença chamada de Do-
ença de Strumpell complicada. Isso ocorre quando, ao lado da espasticidade, há
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 157
sinais de envolvimento de outros sistemas, tais como retardo mental, distúrbios
do movimento, disfunções retinianas e neuropatia periférica.
Alguns exames subsidiários são importantes no sentido de excluir outros
diagnósticos de lesão encefálica ou medular, tais como RM de medula e crânio,
ENMG e líquido cefalorraquiano. Ao lado de um programa de reabilitação mo-
tora, a espasticidade pode ser aliviada com o uso de benzodiazepínicos e baclo-
feno, e o padrão da marcha pode ser melhorado com a aplicação de toxina botu-
línica e fenolização em grupos musculares específicos. Tratamento cirúrgico
também pode estar indicado em alguns casos.

Polineuropatia periférica hereditária


(Doença de Charcot-Marie-Tooth)

A Doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT), ou polineuropatia periférica


hereditária, compõe um grupo variável de doenças, de caráter genético, que afe-
tam o nervo periférico. A CMT tem prevalência de 1:2.500, e é caracterizada
clinicamente por fraqueza e atrofia muscular predominando nas porções distais
dos membros inferiores e superiores. Os músculos peroneais são caracteristica-
mente afetados. Os sintomas começam na primeira ou segunda década de vida,
manifestando-se por marcha escarvante (steppage gait) e deformidades nos pés.
A atrofia muscular confere aspecto afilado nas pernas abaixo dos joelhos. A
atrofia dos músculos intrínsecos das mãos ocorre mais tardiamente. Nota-se
grande variação quanto ao grau de comprometimento motor entre os pacientes,
inclusive dentro de uma mesma família. As deformidades dos pés são frequen-
tes, podendo constituir a única manifestação da doença nos familiares com com-
prometimento leve. Na maioria dos casos, o quadro motor é usualmente leve, e
os pacientes permanecem deambuladores por um longo período ou por toda a
vida. No entanto, naqueles casos com comprometimento motor mais acentuado e
de início mais precoce, os músculos proximais dos membros inferiores também
podem ser afetados, levando à perda da marcha. As alterações sensitivas quando
presentes são discretas, e os reflexos tendíneos profundos são diminuídos ou
abolidos. A maioria dos casos familiares é transmitida por herança autossômica
dominante. Porém, há descrições de famílias com herança autossômica recessiva
ou ligada ao cromossomo X.
A CMT tipo 1 é conhecida como a forma hipertrófica, devido ao espessa-
mento dos nervos. A ENMG revela, nesses pacientes, redução das velocidades
de condução nervosa motora e sensitiva. A CMT tipo 2 é caracterizada por de-
158 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
generação axonal, sem desmielinização. Há uma forma grave de neuropatia peri-
férica, rara, desmielinizante, autossômica recessiva, de início na infância (forma
severa precoce da CMT-1), conhecida como síndrome de Dejerine-Sottas, na
qual as velocidades de condução nervosa estão profundamente reduzidas. Nesses
casos, observa-se elevação dos níveis de proteínas no líquido cefaloraquidiano.
Algumas formas de neuronopatia motora pura, com comprometimento
motor distal (peroneal) e sem anormalidades sensitivas, também têm sido descri-
tas. O tratamento é baseado na reabilitação e na correção cirúrgica das deformi-
dades nos pés.

Distrofias musculares

DISTROFIAS MUSCULARES DE DUCHENNE E DE BECKER


As distrofias musculares de Duchenne (DMD) e de Becker (DMB) são
doenças genéticas de herança recessiva ligada ao cromossomo X que afetam
primariamente a musculatura esquelética e cardíaca. São causadas por mutações
no gene localizado na posição Xp21 que codifica a proteína distrofina, uma pro-
teína citoesquelética localizada junto ao sarcolema, a qual apresenta a função de
manter a integridade da membrana da fibra muscular. Tal deficiência resulta em
deterioração contínua das fibras (necrose muscular) com substituição do tecido
muscular por gordura e tecido conjuntivo. Na DMD há deficiência total da dis-
trofina, e na DMB há apenas uma redução no peso molecular ou na quantidade
da distrofina (déficit parcial) produzindo um quadro clínico mais brando.
A DMD é a miopatia mais comum na infância, com incidência de um em
cada 3.000 nascimentos do sexo masculino. O início das manifestações ocorre
por volta dos 3 aos 5 anos de idade, e é caracterizado por quedas frequentes,
lentidão para a marcha, dificuldade para subir escadas e levantar-se do chão. A
fraqueza muscular afeta especialmente as cinturas pélvica e escapular de forma
simétrica. A criança assume uma marcha com báscula da bacia (anserina), com
postura hiperlordótica, e ao levantar-se do chão faz o clássico levantar de Go-
wers. Um sinal clínico na DMD bastante característico é o aumento do volume
das panturrilhas devido à infiltração do tecido muscular por gordura e fibrose.
Com a progressão da doença, a perda da deambulação ocorre entre 7 e 13 anos
de idade. Vários fatores interferem na época em que a criança perde a capacida-
de para a deambulação, e dentre eles se destacam o desenvolvimento de defor-
midades em membros inferiores (retrações nos quadris e joelhos), aumento ex-
cessivo de peso corporal, imobilização prolongada (procedimentos cirúrgicos,

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 159


fraturas ósseas) e até mesmo quadro depressivo. Com a progressão da doença
ocorre comprometimento dos membros superiores e da musculatura respiratória.
O desenvolvimento de retrações musculares e de escoliose se torna evidente
após o confinamento na cadeira de rodas. O comprometimento cardíaco fica
mais evidente nos estágios mais avançados da doença. Cerca de 30% a 50% dos
pacientes com DMD têm retardo mental. A maioria dos casos morre na terceira
década de vida por falência respiratória e cardíaca. Não existe um tratamento
definitivo para a DMD, porém vários estudos têm mostrado que os corticosterói-
des (predinisona, deflazacort) são capazes de prolongar o tempo de marcha em
crianças com DMD e, consequentemente, retardar as complicações decorrentes
da imobilidade. As principais complicações incluem ganho de peso, osteoporose
e catarata (especialmente com o deflazacort).
A DMB manifesta-se mais tardiamente que a DMD (depois dos 5 anos de
idade), e a perda da marcha ocorre após os 16 anos de idade. A maioria dos pa-
cientes mantém a capacidade para a marcha após a segunda ou terceira décadas
de vida. Como na DMD, os pacientes apresentam postura hiperlordótica, com a
marcha anserina, e com fraqueza muscular predominando nas porções proximais
dos membros inferiores. O comprometimento cardíaco é bem mais evidente que
na DMD.
Tanto na DMD como na DMB, os níveis séricos das enzimas musculares
(CPK, aldolase) se encontram aumentados pelo menos acima de 10 vezes o limi-
te superior da normalidade. A ENMG mostra padrão miopático nas duas situa-
ções. O diagnóstico definitivo é obtido pelo exame de DNA, através da detecção
de mutações no gene da distrofina. Nos casos em que não foram detectadas mu-
tações, o diagnóstico é confirmado pela demonstração da ausência (DMD) ou da
deficiência parcial (DMB) da distrofina no tecido muscular, obtido por biópsia
muscular, por reações imunoistoquímicas e/ou Western blot. O estudo nas mães
portdoras é passo fundamental, na tentativa de prevenir novos casos de DMD e
de DMB. A CPK se encontra aumentada em 80% das mães portadoras.

DISTROFIAS MUSCULARES DE CINTURAS


As distrofias musculares de cinturas ou Limb-Girdle Muscular Dystrophies
(LGMD) formam um grupo de miopatias de caráter progressivo com grande
variabilidade clínica e genética. A doença se manifesta com fraqueza muscular
predominando nas porções proximais dos membros e hipotonia muscular. A
época do início dos sintomas é muito variável; há pacientes que manifestam a
doença na primeira década de vida, e outros que iniciam as manifestações na

160 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


vida adulta. Há também grande variabilidade quanto ao grau de comprometi-
mento motor; alguns casos apresentam sintomatologia similar à DMD (Duchen-
ne-like), enquanto outros evoluem com mínimo comprometimento das capacida-
des funcionais. Em praticamente todos os casos o valor sérico da CK se encontra
acima do limite superior da normalidade. O exame de biópsia muscular revela
alterações distróficas.
Atualmente, através de técnicas para análise da expressão de proteínas,
imunoistoquímicas e Western blot, pode-se classificar as LGMD conforme a
deficiência protéica específica. As formas de herança autossômica dominante
constituem o tipo 1 (LGMD1), e as formas autossômicas recessivas, o tipo 2
(LGMD2). No grupo LGMD2, os tipos mais comuns são causados pela deficiên-
cia das proteínas calpaína (LGMD2A) e disferlina (LGMD2B). Mutações nos
genes das proteínas sarcoglicanas (alfa, beta, gama e delta) (LGMD2C-F), tele-
tonina (LGMD2G), TRIM32 (LGMD2H), proteína relacionada à fukutina
(LGMD2I) e à titina (LGMDJ) cursam com formas mais raras. O grupo LGMD1
é mais raro tanto no Brasil quanto no resto do mundo, e a forma mais comum é
causada pela deficiência da proteína caveolina. Em todos os casos o tratamento é
baseado na reabilitação.

DISTROFIA MIOTÔNICA DE STEINERT


A distrofia miotônica de Steinert (DMS) é a forma mais comum de distro-
fia muscular no adulto, com incidência estimada de um em cada 8.500 indiví-
duos. A DMS é uma doença de herança autossômica dominante caracterizada
por miotonia, fraqueza muscular de predomínio nas porções distais dos membros
e manifestações sistêmicas (catarata, endocrinopatias, cardiopatias). Com rela-
ção à época do início das manifestações e à gravidade da doença, três formas da
doença estão bem definidas: forma congênita, com início na infância e com iní-
cio na vida adulta. A DMS é causada por repetição expandida do trinucleotídio
(CTG)n na região 3' não traduzida do gene localizado no cromossomo 19
(19q13.3), acarretando falha na produção da proteína miotonina-quinase. Indiví-
duos normais possuem em média de cinco a 37 repetições (CTG). Pacientes
afetados podem ter de 50 até 8.000 repetições. Existe correlação entre o tamanho
da expansão e a gravidade do quadro clínico. Em sucessivas gerações, ocorre
aumento da gravidade da doença (fenômeno de antecipação) devido ao aumento
progressivo no número de repetições do trinucleotídeo CTG.
Outra forma de distrofia miotônica menos comum, com quadro clínico
semelhante, porém com fraqueza muscular predominando nas porções proximais

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 161


dos membros, foi recentemente associada com expansão do CTG no íntron 1 do
gene ZNF9, sendo chamada de distrofia miotônica tipo 2. Nos casos que exibem
manifestações clínicas típicas da doença, o diagnóstico clínico se torna fácil. Nos
casos subclínicos, ou nos parentes de indivíduos afetados, o melhor método para
o diagnóstico é a ENMG, a qual revela descargas miotônicas ao lado de potenci-
ais miopáticos. Fundamental para o diagnóstico precoce da catarata, o exame
oftalmológico é importante para o estudo dos parentes mais idosos que não pos-
suem sintomatologia de comprometimento neuromuscular. O diagnóstico defini-
tivo é feito pelo estudo do DNA.

DISTROFIA FASCIOESCAPULO-HUMERAL (FSH)


A FSH é uma doença de herança autossômica dominante, causada pela de-
leção de um pequeno fragmento de DNA no braço longo do cromossomo 4 (4q).
Clinicamente, caracteriza-se pelo envolvimento da musculatura da cintura esca-
pular, da face e dos músculos umerais (bíceps e tríceps). Fraqueza dos músculos
faciais ocorre em mais de 50% dos casos. Na cintura escapular, a fraqueza é
frequentemente assimétrica e predomina o comprometimento dos fixadores da
escápula e do peitoral maior. O músculo deltóide é afetado apenas nos estágios
finais da doença. A época do início dos sintomas é variável e ocorre em geral na
segunda década de vida. Em média, a progressão é lenta e a maioria dos pacien-
tes tem sobrevida normal. Apenas 10% a 20% dos pacientes perdem a capacida-
de de deambulação. A fraqueza dos membros inferiores, quando presente, ocorre
especialmente no compartimento tibial anterior. Outro grupo muscular caracte-
risticamente afetado é o abdominal. O diagnóstico é baseado nos achados clíni-
cos especialmente quanto ao padrão de envolvimento muscular. O exame de
biópsia muscular revela achados miopáticos inespecíficos e, em alguns casos,
reação inflamatória endomisial. O valor sérico da CK se encontra pouco ou mo-
deradamente elevado. O diagnóstico definitivo é obtido pelo estudo do DNA.

Miopatias congênitas
As miopatias congênitas se manifestam nos primeiros anos de vida, e são
classificadas conforme a presença de alterações estruturais nas fibras musculares
detectadas na biópsia muscular dos pacientes. Os principais tipos incluem as
miopatias central-core, nemalínica e centronuclear, e desproporção congênita de
fibras. De maneira geral, esses pacientes apresentam hipotonia, atrofia e fraque-
za musculares generalizadas. O quadro clínico tende a ser estacionário ou com

162 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


evolução lentamente progressiva. Os músculos das porções proximais dos mem-
bros são preferencialmente afetados, embora os músculos distais sejam também
afetados. As deformidades são comumente observadas e ocorrem devido à fra-
queza e hipotonia musculares. Os músculos faciais, mastigatórios e oculares
extrínsecos são caracteristicamente afetados. O nível cognitivo tende a ser nor-
mal. Outras manifestações são arreflexia tendínea profunda, disfagia, disfonia e
má oclusão dentária. O prognóstico está diretamente relacionado ao grau do
comprometimento respiratório, que depende da fraqueza da musculatura inter-
costal e das deformidades torácicas e da coluna vertebral. Formas clínicas de
início na vida adulta são também descritas, assim como casos com intenso com-
prometimento motor e respiratório no período neonatal. A dosagem da CPK
pode estar normal ou levemente aumentada, e a ENMG evidencia padrão normal
ou miopático. O diagnóstico é confirmado pela biópsia muscular com estudo
histoquímico.

Distrofias musculares congênitas (DMC)

As DMC compõem um grupo de miopatias caracterizadas por comprome-


timento motor notado já ao nascimento ou no primeiro ano de vida. Na biópsia
muscular se nota aspecto distrófico de intensidade variável, sem substrato histo-
patológico específico. A herança genética em geral é autossômica recessiva, mas
há famílias com herança autossômica dominante. As principais características
clínicas são hipotonia, atrofia e fraqueza muscular de evolução lentamente pro-
gressiva ou estacionária, em associação com deformidades osteoesqueléticas
diversas. A presença de retrações musculares é uma característica marcante da
doença. A fraqueza muscular predomina nas porções proximais dos membros, e
os músculos paravertebrais, cervicais, mastigatórios e faciais são também aco-
metidos. O prognóstico depende do grau do comprometimento muscular, em
geral já definido no primeiro ano de vida, e do grau do comprometimento da
musculatura respiratória. Quanto à etiologia, vários genes estão envolvidos na
DMC. Quase a metade dos casos é causada por mutações no gene da cadeia α2
da laminina-2 (merosina), uma proteína da matriz extracelular. Outras formas de
DMC são causadas pela deficiência genética de diversas proteínas, tais como
colágeno VI (forma de Ullrich), selenoproteína-N1 (forma com espinha rígida),
Lamina A/C, α7-integrina, fukutina-relacionada (DMC1C), fukutina (doença de
Fukuyama), O-manose β -1,2-N-acetilglucosamiltransferase (doença músculo-
olho-cérebro) e O-mannosyltransferase-1 (doença de Walker-Warburg). Na mai-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 163


oria dessas formas o diagnóstico é feito através do estudo de proteínas muscula-
res específicas na biópsia muscular dos pacientes ou através do estudo de muta-
ções nos genes envolvidos. Os pacientes com deficiência da merosina (DMC-
MD), que representam em torno de 40%-50% dos casos, apresentam fenótipo
mais grave. Clinicamente são crianças com grave comprometimento motor, não
chegam a deambular, e frequentemente desenvolvem grave comprometimento
respiratório. Nesses casos, os exames de imagem do SNC mostram comprome-
timento da substância branca do sistema nervoso central, embora o nível cogni-
tivo seja normal na maioria das crianças. A dosagem de CPK sérica apresenta
aumento moderado a acentuado.

Considerações finais

Embora não haja tratamento definitivo para a maioria das DNM, isso não
significa que não podemos tratá-las. Os objetivos fundamentais da reabilitação
desses pacientes incluem, entre outros, aprimorar as habilidades funcionais, pro-
longar e manter a capacidade para a marcha, prevenir deformidades esqueléticas
e melhorar a qualidade de vida, produzindo, assim, meios para uma melhor inte-
gração social.
Doenças em estágios finais, com intensas deformidades esqueléticas e re-
trações articulares, certamente terão benefício menor com os programas de rea-
bilitação. No entanto, alguns fatores são determinantes no sucesso das terapias,
incluindo-se a época do início do tratamento, motivação e colaboração do paci-
ente e experiência da equipe profissional. Ao lado da equipe médica, uma equipe
de reabilitação composta por profissionais que possuam experiência com essas
doenças, consistindo de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólo-
gos, musicoterapeutas, psicólogos, pedagogos, entre outros, além do trabalho
específico de cada profissional, deve, de forma coordenada, trabalhar buscando
adaptar o paciente o mais próximo das atividades da vida diária, promovendo a
sua integração na vida comunitária.

Bibliografia consultada
Adan RD, Victor M. Degenerative diseases of the nervous system. In: Principles of neu-
rology. 5. ed. New York: McGraw-Hill; 1993. p. 957-1009.
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164 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


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São Paulo: Artes Médicas; 2007. p. 115-40.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 165


4.1
FONOTERAPIA E MUSICOTERAPIA
NA PROMOÇÃO DE SAÚDE E
NA QUALIDADE DE VIDA DE
CRIANÇAS COM DISTROFIA

Maria Helena Nunes Schaan


Marilene Knetsch Martiny
Márcio Collossi do Amaral

Este capítulo refere-se ao projeto desenvolvido em dupla terapêutica pelos


Setores de Fonoaudiologia e Musicoterapia para o atendimento de um grupo de
pacientes infantis com diagnóstico de doenças neuromusculares em processo de
reabilitação na AACD / RS.
Trata-se do relato das atividades desenvolvidas no setor de Musicoterapia,
onde a atuação conjunta e integrada das duas práticas terapêuticas se apresenta
como alternativa viável e com resultados que podem sinalizar mudanças impor-
tantes na atitude dos pacientes frente à patologia, com influência no controle e
na consciência respiratória, repercutindo sobre a qualidade de vida dessa cliente-
la.

166 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O projeto conta com a participação de fisioterapeuta para a medição inici-
al da capacidade respiratória dos pacientes e para o seu monitoramento através
de medições periódicas com o uso do manovacuômetro, e na observação dos
exames solicitados no acompanhamento clínico dos pacientes.
Alguns aspectos característicos da evolução da doença [como deformida-
de de tronco, comprometimento cardíaco (que afeta 50% a 85% dos casos em
DMD, e é a segunda causa mais frequente de morte), e comprometimento respi-
ratório crônico (55% a 90% dos casos morrem de insuficiência respiratória entre
16 e 19 anos, e raramente após os 25 anos)] bem como alternativas terapêuticas
estabelecidas para cada paciente devem ser considerados e registrados. Dessa
forma, a manovacuometria avalia a força dos músculos respiratórios, que mede, no
nível da boca, as pressões estáticas máximas – pressão inspiratória máxima (Pi
máx) e pressão expiratória máxima (Pe máx). Com tais valências podemos fazer
inferências quanto à relação entre os valores de volumes de ar mobilizado pelo
paciente (e, com isso, na capacidade respiratória) e a demanda de terapias ofereci-
das, sendo esse um dado quantitativo para avaliação do desempenho dos pacientes,
que é monitorada bimensalmente ao longo das intervenções terapêuticas.
Consta também da avaliação inicial de cada paciente a contagem dos tem-
pos de fonação na produção de algumas vogais e fonemas fricativos, repetidos
após um período de terapia; assim todos os dados colhidos desde o início até o
término do grupo vão sendo observados.

Grupo de Musicoterapia e Fonoaudiologia:


Métodos e práticas

O projeto tem como proposta oferecer atendimento diferenciado aos paci-


entes em razão do processo gradativo de perdas motoras, comuns a doenças neu-
romusculares.
Participaram do grupo quatro pacientes da Clínica de Doenças Neuromus-
culares da AACD, assim caracterizados:
1) I., menino, nove anos, com diagnóstico de DMD;
2) A., menino, 12 anos, com diagnóstico de doença mitocondrial;
3) V., menino, 7 anos, com diagnóstico de Doença de Charcot-Marie-Tooth;
4) R., menina, 6 anos, com diagnóstico de distrofia de cinturas escapulares.
Os encontros foram semanais, com duração de 80 minutos, durante seis
meses. O enquadramento do paciente no projeto atendeu a objetivos específicos,
alinhados àqueles do plano terapêutico global pré-definido individualmente. As
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 167
atividades foram desenvolvidas no setting de Musicoterapia, com atuação em
dupla da fonoaudióloga e da musicoterapeuta, tendo em vista a utilização de
recursos sonoros e musicais como fundamentais no trabalho terapêutico.
O fisioterapeuta acompanha desde o início as atividades do grupo para o
monitoramento periódico da função respiratória. Considerando-se o compro-
metimento dos músculos esqueléticos nas distrofias, através de reavaliações
dessa testagem, podemos inferir quanto a possíveis dados clínicos apresentados
na evolução da doença, associando-os ao quadro de piora ou melhora de valores
de pressões avaliados ao longo do tempo.
Segundo Azeredo1, “a avaliação da força muscular é importante para que
seja conhecido e quantificado seu trabalho muscular. Seguindo a base da fisiolo-
gia da respiração, a força gerada pelos músculos respiratórios é a mesma criada
pela pressão desenvolvida pelos mesmos”.
Os encontros se desenvolveram da seguinte forma: acolhimento dos paci-
entes no setting, com breve conversa sobre os acontecimentos da semana, exer-
cícios respiratórios e pneumofonoarticulatórios e aquecimento vocal, coordena-
dos pela fonoaudióloga, preparando o grupo para a experiência musical.
Dentre as técnicas musicoterapêuticas mais utilizadas, destaca-se a recria-
ção de canções. O canto é priorizado nas atividades do grupo tendo em vista os
seus benefícios nas questões respiratórias. Os objetivos terapêuticos relativos aos
aspectos respiratórios são sempre enfatizados no atendimento da Clínica de Do-
enças Neuromusculares.
Os recursos desenvolvidos para apoiar as atividades terapêuticas enfoca-
ram o contexto ecológico e as demandas de cada criança, no intuito de motivá-
las para a integração no trabalho terapêutico. Assim, a singularidade de cada
paciente é observada e determinante para a constituição do repertório musical do
grupo, construído por todos no desenvolvimento do projeto. Na interação com
canções, a música editada ou a música recriada pelo grupo e a musicoterapeuta
obedecem aos critérios de seleção que contemplam a história de cada paciente
(Modelo Plurimodal). A cada encontro surgem novas canções, indicadas espon-
taneamente pelo grupo e/ou selecionadas pela musicoterapeuta. Registramos a
frequência maior de cantigas folclóricas, do cancioneiro popular brasileiro, can-
ções regionais do Rio Grande do Sul (vivências comuns aos pacientes oriundos
do interior do estado), canções que estejam presentes nos meios de comunicação
social no momento (trilhas de novelas e filmes), canções alusivas a datas come-
morativas, entre outras. No princípio, as crianças costumavam entoar timida-
mente as canções recriadas com o acompanhamento do violão ou do teclado ou

168 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


do piano e com pequenos instrumentos de percussão. Em poucos encontros o
grupo passou a cantar em conjunto, integrando-se à experiência com naturalida-
de. Constituiu-se, então, um repertório exclusivo formador da identidade do
grupo.
Schapira10 considera, como um dos eixos fundamentais da atividade musi-
coterapêutica, o trabalho com canções. Afirma que “as canções são ferramentas
poderosas a que estamos expostos ao longo de toda a nossa vida e de onde se
assume parte de nossa identidade, vivências e emoções”. Na abordagem do au-
tor, a Musicoterapia em reabilitação intervém em dois níveis complementares:
1. o nível cognitivo, que abrange a estimulação das funções cognitivas ce-
rebrais, de acordo com o quadro específico do paciente, partindo das capacida-
des conservadas e tendo em conta a importância da função musical e das suas
relações com outras capacidades cognitivas;
2. o nível sócio-afetivo, observando-se que a intervenção musicoterapêuti-
ca precisa contemplar as necessidades emocionais do paciente, geradas por de-
terminada alteração cerebral, colaborando com a adaptação à nova situação,
possibilitando trocas, visando alcançar melhor qualidade de vida.
No grupo, o paciente tem participação ativa na terapia, desde a execução
dos exercícios respiratórios que favorecem e dão suporte ao canto, até o início da
experiência musical. A dupla de terapeutas atua no sentido de favorecer a ex-
pressão tanto individual quanto grupal, seja ela verbal, gestual ou propriamente
musical. O setting é o espaço ideal para a interação e relacionamentos, e a Musi-
coterapia é facilitadora desse processo. Diversos instrumentos musicais são dis-
ponibilizados aos pacientes que podem tocar, cantar, improvisar e movimentar-
se livremente no setting. Todas as manifestações expressivas são acolhidas pela
dupla terapêutica, que estrutura cada novo encontro com base na demanda apre-
sentada pelo grupo.

Intervenções em dupla terapêutica

Em uma equipe multidisciplinar, cada modalidade terapêutica possui seus


objetivos específicos e formas de atendê-los, independentes umas das outras,
mas com o foco em um objetivo comum: o de promover a reabilitação global do
paciente, descobrindo potenciais, investindo em capacidades preservadas, sem
deixar de observar os limites impostos pela patologia. Para o melhor esclareci-
mento dos objetivos do projeto, tecemos algumas considerações sobre a atuação
conjunta de duas disciplinas.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 169


A música é agente facilitador das funções neuropsicomotoras por meio
dos sons, ruídos, vibração, além de outros efeitos por ela gerados. Sanchez8 con-
sidera que um estímulo musical é uma complexa combinação de diferentes pa-
râmetros acústicos que se integram num mosaico auditivo. Frente à escuta de
uma experiência musical, são diferentes os estímulos que ingressam e impactam
nosso sistema nervoso central. A decodificação musical desses estímulos se de-
nomina “Percepção Musical”. Desse modo, a voz humana, os instrumentos mu-
sicais, com seus timbres e possibilidades sonoras diferenciadas, e todos os de-
mais elementos sonoro-musicais da música, essenciais para a experiência musi-
cal, atuam no desenvolvimento da Percepção Musical.
As palavras de Schafer9 esclarecem o que se observa no setting em relação
ao desenvolvimento musical do grupo:

... a prática da música pode ajudar a criança na coordenação


motora dos ritmos do corpo. O andante caminha (do italiano andare =
caminhar). A música pode também correr, saltar, claudicar, balançar.
Pode ser sincronizada com bolas que pulam, com ondas do mar, com
galopes de cavalos e com centenas de outros ritmos cíclicos ou regene-
rativos, tanto da natureza quanto do corpo. Cantar é respirar. O Univer-
so vibra com milhões de ritmos, e o homem pode treinar-se para sentir
as pulsações.

O imáginário de que a estimulação das funções musicais pode associar as


vivências do aprendizado é colocado por Bruscia2, que enfatiza que uma das
premissas da Musicoterapia é o fato de que a experiência musical envolve mui-
tas facetas do ser humano.
Cada mudança musical que o paciente faz é indicativa de mudanças não
musicais de algum tipo. É possível que as mudanças observadas no comporta-
mento dos pacientes no grupo em estudo possam estar influenciando o seu sis-
tema imunológico. Segundo Maranto7, “a música é, sem dúvida, um comunica-
dor emocional e o tipo adequado à pessoa proporciona uma experiência emocio-
nal positiva. Experiências emocionais positivas intensificam o funcionamento do
sistema imunológico”.
A ciência que estuda e age diretamente sobre os distúrbios da comunica-
ção busca atuar com a Musicoterapia de modo harmônico, somando saberes,
trocando idéias, intervindo juntamente com os pacientes para lhes proporcionar
momentos agradáveis, nos quais a complementação interprofissional se empenha
na obtenção de melhores resultados terapêuticos.

170 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A atuação fonoterápica visa facilitar a comunicação verbal do paciente por
meio da fala e do canto, de modo que possa comunicar-se globalmente, obser-
vando-se na interação terapêutica a medida da exigência imposta, para não pro-
vocar iatrogenia vocal.
No decorrer do trabalho se enfatizaram os aspectos de higiene vocal; co-
ordenação pneumofonoarticulatória; aproveitamento da capacidade respiratória
durante a fonação, que favorece maior controle abdominal na expiração; exten-
são e intensidade vocal; e articulação dos sons da fala e seu ritmo. Utilizaram-se
técnicas de emissão de fricativos, sons nasais, sons vibrantes, emissão de sons de
apoio com escala ascendente e descendente, entre outros. Durante a atividade
que prioriza a intervenção fonoarticulatória é solicitado do grupo infantil maior
tempo de concentração, e nesse momento os recursos lúdicos facilitam a realiza-
ção dos exercícios. O trabalho integrado das duas terapias vem ao encontro do
paciente, com recursos criativos e uso de técnicas musicoterapêuticas de impro-
visação e de composição de canções.
Para estimular a memória musical dos pacientes, foram utilizados recursos
lúdicos, como jogos e brincadeiras musicais com pequenos desafios: lembrar de
uma canção do repertório e cantar parte dela em boca chiusa para que o grupo
pudesse identificá-la e cantá-la com a letra; utilizar o microfone e cantar em solo
uma canção; criar uma canção com os sons que estavam sendo trabalhados, e
assim por diante.
Há outros aspectos significativos envolvidos nesse processo, de modo que
a expressão vocal do paciente possa estar adequada ao contexto social, à mensa-
gem verbal, à sua psicodinâmica vocal. Ferreira5 esclarece que, “sob o ponto de
vista psicológico, a respiração indica os ritmos da vida e é o processo mais flexí-
vel de nosso organismo, o primeiro a se alterar em resposta a qualquer estímulo
interno ou externo. Assim, a respiração influencia e é influenciada pelo estado
psicossomático em que nos encontramos; podemos modificar conscientemente
nosso estado físico e mental pela maneira como respiramos”.
Segundo Ferreira4, para Prater e Swift (1984), as crianças em idade esco-
lar devem ser capazes de sustentar vogais durante um tempo aproximado de 10
segundos. Além da medida de fonação de vogais, a partir de Boone (1971), a
literatura aponta para a avaliação do tempo de fonação de consoantes /s/ e /z/,
sendo que Tait et al. (1980), avaliando crianças, concordam com Boone (1971),
dizendo que a aferição com os fonemas /s/ e /z/ permite conhecer melhor a ação
vocal. Ainda para Prater e Swift (1984), o tempo de /s/ para crianças antes da
puberdade seria de 10 segundos, e após a produção de /s/, com uma nova inspi-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 171


ração, é pedida a emissão de /z/ no maior tempo possível, sendo que, para indi-
víduos normais não haveria diferença no registro de segundos, ou, se dividir o
tempo de /s/ pelo de /z/, a proporção seria igual a 1,0. Segundo esses autores,
para indivíduos com capacidade vital reduzida ou com controle deficiente de
forças expiratórias, os tempos estariam reduzidos, mas a diferença proporcional
seria mantida.

Evoluções observadas no processo terapêutico do grupo

Considerando o desempenho de cada paciente no processo do grupo, cabe


destacar o possível observar do desenvolvimento das funções musicais: o estabe-
lecimento do pulso, a melhor percepção dos parâmetros musicais (timbre, dura-
ção, altura, intensidade e ritmo), o reconhecimento e a reprodução de padrões,
como imitação rítmica e reprodução de movimentos corporais rítmicos.
A título de informação, "funções musicais" são o conjunto de atividades
cognitivas e motoras envolvidas no processamento da música. Tais funções exi-
gem operações mentais multimodais, pois a sua prática envolve a modalidade
visual para as notações musicais; a modalidade auditiva para apreciar melodias,
ritmos, harmonias e timbres, combinação que define uma peça musical; a ex-
pressão motora para a execução musical, que requer a coordenação de diversos
músculos e os processos cognitivos e emocionais envolvidos na interpretação da
música3.
Encontramos na Gênese do Desenvolvimento Evolutivo Musical10, dis-
criminadas cronologicamente, as diferentes instâncias de aquisição de habilida-
des musicais, tanto perceptivas (via de entrada) como expressivas (via de saída).
Esses dados servem como um guia de orientação na hora de analisar as experi-
ências musicais em Musicoterapia, indicando áreas de dificuldade bem como
evoluções nesses índices.
Os quatro pacientes observados no grupo apresentaram alteração nas fun-
ções musicais. Todos modificaram, em níveis diferentes, o comportamento inici-
al e a performance final das funções da musicalidade. Apenas um dos pacientes
apresentou dificuldade em identificar e imitar padrões rítmicos. A ansiedade
observada nesse paciente pode ter interferido na habilidade exigida, mas não
alterou sua motivação para a participação no grupo. Observou-se melhora nas
habilidades sensório-motoras, especialmente quanto ao uso dos instrumentos
musicais. Durante a interação, pudemos apontar a melhora geral da afinação,
(percepção das alturas dos sons) e maior facilidade em aderir ao ritmo proposto

172 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


pelo grupo. O tempo de atenção de cada paciente e do grupo foi ampliado, bem
como a escuta do outro ficou mais evidente. Cabe observar que os pacientes
passaram a escolher os timbres dos instrumentos que mais lhes agradavam, sen-
do que antes das intervenções não havia uma escuta mais especializada na dife-
renciação de sons e timbres.
No início do projeto o grupo de pacientes da clínica de DNM se apresen-
tava silencioso, com dificuldades para interagir e para se expressar, ou mesmo
para citar canções de seu repertorio pessoal, aparentemente com pouco estímulo
de vivências musicais. A partir das intervenções percebemos a melhora na quali-
dade das relações interpessoais que se estabeleceram entre os participantes. Pa-
cientes que apresentavam comportamento introvertido e tímido se tornaram mais
participativos. Podemos citar momentos em que o grupo compartilhou verbal-
mente seus temores, desconfortos, situações de exclusão e dificuldades. Por e-
xemplo, o paciente R. não conseguia entender a dificuldade de A. em segurar
uma baqueta de madeira (que teve previamente sua estrutura oca para adaptar-se
ao uso do paciente). R. fazia perguntas ao colega sobre a sua diminuída capaci-
dade motora. A. explicou-lhe que a sua doença não lhe permitia agir diferente.
R., sem fazer mais comentários, passou a cuidar de alcançar-lhe os instrumentos
desejados, juntando o que lhe caía das mãos.
Gil6 afirma que, “etimologicamente, a emoção é um movimento; quando a
efervescência emocional percorre o indivíduo, ela desperta a sua atenção, colore
positiva ou negativamente os sentimentos, induz modificações autonômicas (a-
celeração do pulso, rubor ou palidez do rosto), endócrinas, musculares (crispa-
ção do rosto, sorriso) e comportamentais (agitação, evitação e aproximação)”. E
conclui: “o comportamento emocional também se inscreve na comunicação in-
ter-humana: há uma vertente receptiva (identificar as emoções do outro) e outra
expressiva, que são os polos de todo o sistema de comunicação”.
Novos hábitos adotados pelos pacientes indicaram a promoção de saúde,
como o hábito de tomar água (hidratar-se), que é saudável e simples, se revestiu
de um significado muito especial nos encontros do grupo e foi adotado na rotina
do dia-a-dia. Ilustramos com o seguinte relato: O paciente V. ingressou no grupo
negando-se a tomar água. Após tentativas frustradas, recorremos à mãe do paci-
ente, a qual revelou que o paciente se recusava a beber e comer fora de casa,
motivo de tensão para a família. O grupo já adaptado à rotina de tomar água,
antes e durante a atividade, passou a envolver V. Motivado pelo grupo, o menino
passou a hidratar-se naturalmente, o que se estendeu para a sua rotina diária, e
passou a trazer espontaneamente sua própria garrafa de água.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 173


Considerações finais
Nesse trabalho no qual lidamos com patologias degenerativas, em proces-
sos nos quais as perdas motoras ficam mais evidentes, e não propriamente as
evoluções, nosso foco esteve sempre direcionado às intervenções terapêuticas
que, respeitando as condições de cada paciente, pudessem auxiliar na promoção
da saúde e da qualidade de vida. Nesse sentido, as mudanças observadas no com-
portamento individual e de grupo se constituem, a nosso ver, em indicadores signi-
ficativos de evolução. As novas atitudes dos pacientes também foram percebidas e
apontadas nos âmbitos da escola e da família, bem como nas discussões de casos
clínicos e nas supervisões com a equipe realizadas em nossa unidade.
Se considerarmos os dois níveis já mencionados sobre as evoluções no
processo de reabilitação dos pacientes do grupo, no nível sócio-afetivo enfatiza-
mos o estabelecimento das relações intra e interpessoais. Se observado o nível
cognitivo, podemos pensar nas aquisições percebidas nas funções musicais dos
pacientes. Categorizamos as seguintes evidências observadas no grupo, nos dois
níveis citados:
- melhora da socialização e das habilidades interativas do grupo;
- desenvolvimento de habilidades sensório-motoras;
- ampliação dos tempos de atenção e concentração;
- maior facilidade na memorização do texto das canções e do repertório;
- especialização e desenvolvimento da escuta;
- desenvolvimento de percepção rítmica, melódica e de afinação;
- motivação e curiosidade para novas experiências;
- criatividade:
- desvelamento de habilidades e de si mesmo;
- aumento da verbalização e da linguagem, melhor articulação da fala;
- melhora dos tempos de fonação.
Sob os parâmetros quantitativos (monitoramento da força respiratória a-
través do manovacuômetro e controle dos tempos de fonação de alguns fonemas)
também foi observada discreta evolução, evidenciada no controle e no aprovei-
tamento do ar expiratório durante a fonação, com indício de aumento desses
tempos. Podemos destacar como relevante, após as intervenções, a aquisição da
consciência respiratória por parte dos pacientes e o quanto eles passaram a cola-
borar na realização dos exercícios fonoarticulatórios. Acreditamos que o grupo
esteja mais ciente dos benefícios desse trabalho para a condição de cada um,
tendo em vista a atitude mais colaborativa dos pacientes na terapia.

174 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A intensidade das experiências musicais com o grupo revelou o potencial
criativo das crianças. A par de suas perdas motoras, elas se mantêm aptas a exer-
citar o que há de melhor na infância: brincar, se expressar, fazer novos amigos,
participar integralmente de um grupo, usufruir de novos aprendizados e viver
sua vida com mais qualidade.

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Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 175


5
O QUE PRECISAMOS SABER
SOBRE LESÃO MEDULAR

Marcelo de Jesus Justino Ares

As lesões que acometem a medula espinhal geralmente levam à instalação


de quadro clínico e emocional considerado um dos mais graves dentro da área da
reabilitação e ainda sem possibilidades de reversão, de acordo com os recursos
atuais.
A incidência desta síndrome incapacitante varia de 40 a 50 indivíduos por
milhão de pessoas (segundo dados da Organização Mundial da Saúde), e no Brasil
deve girar em torno de 5 mil novos pacientes por ano. Esses números se tornam
mais importantes, se considerarmos que a grande maioria dos indivíduos acometi-
dos é composta de adultos jovens do sexo masculino, com média de 32 anos de
idade, ou seja, em plena idade produtiva em vários aspectos de suas vidas.

Causas de lesão medular

Dados epidemiológicos e estatísticos no mundo e no Brasil apontam que


os episódios chamados traumáticos são os mais comuns causadores de lesão
medular, independentemente de sexo ou idade. As principais causas desses aci-
dentes traumáticos são os acidentes de transporte (predominantemente os moto-
176 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
ciclísticos e os automobilísticos); as quedas (de escada ou de lajes); os acidentes
de mergulhos em água rasa; os traumatismos decorrentes da prática de esportes
em geral; as lesões causadas por violência e ferimentos por arma de fogo ou por
arma branca que, infelizmente, compõem as grandes estatísticas dos centros
urbanos e, atualmente, também nas zonas rurais.
Entre as causas não traumáticas predominam as tumorais, as vasculares, as
infecciosas, entre outras, e as sequelas de doenças degenerativas.
O conhecimento das causas que levam o indivíduo a adquirir uma lesão
medular é de fundamental importância para as estratégias de informação à popu-
lação com as devidas medidas de prevenção.

Sequelas e consequências da lesão medular

Dependendo do grau e do nível de acometimento de lesão da medula espi-


nhal (Fig. 1), o paciente pode ser classificado como tetraplégico (quando existe
comprometimento de função de membros superiores, tronco e membros inferio-
res, após lesão dos segmentos cervicais) ou paraplégico (quando a lesão acomete
a função de tronco e membros inferiores, após lesão de segmentos torácicos,
lombares ou sacrais).

Figura 1. Níveis da lesão medular.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 177


O nível exato da lesão é determinado após exame realizado de acordo com
as diretrizes padronizadas pela ASIA - American Spinal Injury Association, que
determinou músculos e dermátomos-chave para a classificação dos diversos
quadros clínicos.
O grau da lesão é determinado após o exame feito por profissional especi-
alizado, que classificará a lesão em completa ou incompleta, de acordo com a
preservação ou não das funções sensitiva e motora abaixo do nível da lesão,
incluindo os segmentos sacrais.
Além dos déficits motores e sensitivos e de suas traduções clínicas, o paci-
ente com lesão medular também apresenta problemas que afetam consideravel-
mente sua qualidade de vida e seu desempenho social. Seguem alguns deles:
- Alterações respiratórias, que são mais evidentes nas fases agudas e nos
tetraplégicos.
- Alterações cardiovasculares, como as hipotensões posturais e tromboses
venosas profundas.
- Alterações esfincterianas de controle da função urinária e intestinal que,
quando não são tratadas adequadamente, podem levar a graves complicações
e/ou ao isolamento social.
- Lesões de pele (as úlceras de pressão), causadas pela diminuição ou au-
sência de sensibilidade, que é uma das complicações mais comuns (apesar de
evitáveis); podem culminar com desfecho clínico nada favorável.
- Espasticidade e automatismos, que constituem consequências de lesão
no neurônio motor superior e que, se interferirem em postura e /ou função, de-
vem ser alvo de procedimentos terapêuticos focados.
- Dor, que pode ser de origem nociceptiva ou neuropática e que deve me-
recer atenção especial por parte da equipe sempre que interferir nos aspectos de
bem-estar e independência do paciente.
- Disautonomias, que são alterações da regulação térmica.
- Disreflexia autonômica, que se refere a quadro clínico típico de pacien-
tes com lesão acima do nível T6, geralmente relacionado à distensão de vísceras
ocas, e que deve ser diagnosticado e tratado com rapidez. Manifesta-se por rubor
facial, sudorese, cefaléia latejante, aumento brusco da pressão arterial.
- Ossificações heterotópicas, desenvolvidas abaixo do nível da lesão, nas
regiões para-articulares, que devem ser diagnosticadas e tratadas precocemente
para que não causem limitações motoras graves no futuro.

178 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Alterações psicoemocionais na lesão medular

As alterações citadas e muitas outras estão associadas ao fato de serem


adquiridas e instaladas abruptamente, e podem levar o paciente a diferentes tipos
de reações de acordo com o tempo decorrido da lesão e de acordo com as suas
características biopsicossocioespirituais e, principalmente, com suas estratégias
de enfrentamento.
Didaticamente as fases de mudança comportamental pelas quais o pacien-
te pode passar estão mencionadas a seguir, porém, são mutáveis, podem ser pu-
ladas ou mantidas:
- Fase de choque (desconhecimento, confusão);
- Fase de negação (percepção da realidade, expectativas irreais);
- Reconhecimento (consciência, reações de depressão);
- Adaptação (reestruturação dentro de seus limites).
O reconhecimento dessas fases deve ser feito pela equipe de reabilitação,
pelos familiares e pelos cuidadores, para que se possa traçar planos e metas ade-
quados, evitando risco de frustração de uma das partes, o que poderá comprome-
ter todo o processo da reabilitação do paciente.

A reabilitação do paciente com lesão medular

Para a reabilitação do paciente com lesão medular é fundamental a atua-


ção de uma equipe multidisciplinar, de preferência sob a coordenação de um
médico fisiatra, com um programa realista de recursos disponíveis e, principal-
mente, que tenham metas precisas e predeterminação do período para serem
atingidas.
A equipe deve ser composta por diversos profissionais que poderão dar
sua contribuição durante todo o processo, mas é importante que a equipe tenha
uma unidade com a integração de conceitos e objetivos.
As informações devem chegar aos pacientes, aos familiares e aos cuidado-
res de forma coesa e sempre motivadora, para que o potencial residual do lesado
possa ser despertado e colocado em ação para sua readaptação física, emocional,
educacional e profissional.
Segue uma proposta de programa que tem apresentado sucesso na AACD,
de acordo com os recursos disponíveis de cada paciente:

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 179


Treinamento motor
Treinamento esfincteriano
Prevenção e correção de complicações
Acompanhamento psicológico
Curso teórico-prático sobre lesão medular
Orientações sexuais
Orientações educacionais e/ou profissionais

A equipe trabalha sempre aberta para receber a proposta de outras inter-


venções que podem ser feitas pelo paciente ou cuidador ou por um dos integran-
tes da equipe em discussão de caso e que venha a colaborar para o sucesso do
processo de reabilitação.

180 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


5.1
MUSICOTERAPIA E
PSICOMOTRICIDADE: UM FAZER
TERAPÊUTICO NA LESÃO MEDULAR

Janice Maria Gomes de Sant´Ana

Este trabalho tem como objetivo oferecer uma possibilidade de tratamento


musicoterapêutico a partir da psicomotricidade, em especial da Prática Psicomo-
tora Aucouturier (PPA), criada e desenvolvida por Bernard Aucouturier, reno-
mado psicomotricista francês, fundador e presidente da Associação Européia das
Escolas de Formação na Prática Psicomotora (ASEFOP) e membro da Academia
Nacional de Medicina. Essa prática tem como finalidade, entre outras, a de “fa-
vorecer o desenvolvimento da função simbólica pelo prazer de agir, de brincar e
de criar, e, além disso, ajudar a passagem de diferentes níveis de simbolização,
que permitirão às crianças viver, em um determinado ambiente, o percurso do
prazer de agir ao prazer de pensar o agir”1.
É importante contextualizar que a PPA é destinada às crianças, e que os
efeitos benéficos desta metodologia são nitidamente percebidos na evolução
infantil.
O estudo e a vivência da PPA oportunizam a observação dos fenômenos
psicomotores com clareza, oferecendo valiosos instrumentos de trabalho e de
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 181
percepção do paciente na prática clínica musicoterapêutica, em especial na reabi-
litação física, seja com crianças ou adultos.
Partindo desse ponto de vista é possível, por exemplo, pensar na dialética
entre o percurso do prazer de agir ao prazer de pensar o agir e o percurso do
prazer sensório-motor do fazer musical e o prazer de pensar o fazer musical, no
próprio processo de exploração e criatividade musicais. Essa relação recíproca
nos leva à evolução psíquica e emocional e, consequentemente, à evolução mo-
tora dentro dos níveis possíveis para o paciente.
Logo, a musicalidade na prática clínica ajuda o paciente progressivamente a
descentrar-se tônico–emocionalmente na direção do outro como resultado da evolu-
ção psíquica que se deu a partir da vivência musical e que permitiu a descoberta do
prazer de agir e do prazer de pensar o agir.
A título de informação, descentração tônico-emocional é um conceito da
psicomotricidade originado do conceito de descentração de Piaget, que significa
“perceber o meio externo com o mínimo de projeção pessoal ou emocional pos-
sível, logo o processo de descentração supõe a integração da emoção nas repre-
sentações mentais e a clareza em relação à própria identidade, favorecendo a
relação e a comunicação com o outro”1.

O paciente lesado medular


A representação de si é um continente psíquico que perdura no
campo do não-consciente, até mesmo do Pré-consciente. Ela é um
componente ativo, indispensável ao prazer de ser si mesmo, ao prazer
de sonhar, de imaginar e de pensar. Mas qualquer dificuldade ou abalo
na unidade de prazer, causados por um mundo intrusivo, violento ou
excitante, cria uma perda da continuidade de si que tem como conse-
quência distúrbios da representação de si, podendo ser mais ou menos
graves e demandar uma ajuda terapêutica1.

Ao refletirmos acerca de pessoas que viveram o trauma de perderem a-


bruptamente algum movimento pela imobilidade de um ou mais membros de seu
corpo e passaram a vivenciar diversas situações não habituais, necessitando se
adaptar a uma nova realidade não desejada e reconstruir diversos esquemas e
possibilidades motoras para cada nova situação, nos faz perceber mudanças na
relação dessa pessoa com seu corpo que resultam em dificuldades de autorreco-
nhecimento e de negação a esse novo corpo, que pode ter diversas dificuldades
combinadas como: perda sensorial, proprioceptiva, motora, sexual, disfunção
182 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
esfincteriana e problemas respiratórios, que levam a sensações de estranheza e
desconforto4.
É comum observarmos que esses pacientes passam a focar a sua atenção
nas perdas sofridas e tentam escondê-las, modificando seu comportamento, sua
expressividade e sua relação com o mundo.
Em entrevista inicial no setor de Musicoterapia é comum o relato de paci-
entes que mudam significativamente sua dinâmica social após o trauma, e seus
contatos sociais se restringem em geral aos familiares e, às vezes, a poucos ami-
gos. O lazer, o prazer, a mobilidade, o deslocamento se tornam pouco frequen-
tes, quando não raros.
A comunicação verbal vem carregada de sentimentos de baixa autoestima,
de tristeza e de apatia, que são proporcionais à gravidade da lesão ou à atitude
comportamental do paciente diante dela.

A expressão sonora livre

Nos primeiros contatos com pacientes com lesão medular é possível veri-
ficar expressividade musical tímida, que pode ser resultado da falta de motiva-
ção ou de idéias pré-concebidas da estética musical, ou seja, a pouca ou nenhu-
ma intimidade com os instrumentos musicais oferecidos, ou as duas coisas com-
binadas. Disso resulta a necessidade de oportunizar o contato com variados ins-
trumentos e a expressão sonora livre a fim de minimizar os bloqueios causados
pela autoexigência da performance musical e favorecer a aproximação do paci-
ente aos instrumentos e sua sonoridade.
A expressão sonora livre leva a descobertas sobre o som, como o forte e o
fraco, o rápido e o lento, o longo e o curto, o grave e o agudo, e mesmo as nuanças
de timbres no mesmo instrumento musical, dependendo de como é manipulado.
Essas experiências levam ao domínio do som desejado, e dominar um som
ou ruído necessariamente é o domínio de um gesto (fonador, no caso da voz, ou
motor, quando do movimento dirigido ao objeto sonoro) que demonstra a evolu-
ção não apenas motora, mas principalmente a evolução psicológica. Trata-se da
aquisição da capacidade de ousar, de ser e existir sonoramente no espaço e no
tempo. A iniciativa, a escolha, o controle do gesto e a evolução do ritmo se dão
na medida em que a pulsão rítmica ganha espaço e o sujeito se expressa7.
Aquele que produz o som escolhe o objeto de produção sonora, o tempo
de duração, a intensidade, a velocidade, o timbre e a altura ou, ainda, se o méto-
do de sonorização será percussivo, teclado ou soprado.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 183


A evolução da expressão sonora permite a comunicação, não apenas entre
dois indivíduos que interagem musicalmente, neste caso paciente e musicotera-
peuta, mas também do indivíduo com ele mesmo.
A música, então, como expressão sonora livre, derivada de um gesto, é o
resultado de combinação de sons, alturas, ritmos e harmonia cujas frases musi-
cais estão carregadas de afetos, desejos e significados que fornecem o material a
ser trabalhado terapeuticamente, permitindo o início e o avanço do processo
musicoterapêutico.
Para melhor compreensão, podemos citar um exemplo: Um paciente, ao
iniciar programa de reabilitação, compareceu no setor de Musicoterapia para
avaliação com quadro de paraplegia por acidente de arma de fogo e consequente
perda da sensibilidade e dos movimentos de membros inferiores, trazendo histó-
rico de quadro depressivo e resistência ao uso da cadeira de rodas. Relatou afas-
tamento da vida social, restrito deslocamento em casa, permanecendo a maior
parte do dia no sofá por não desejar fazer uso da cadeira de rodas, alegando não
ter superado o trauma. As informações para anamnese foram obtidas após cons-
tante estímulo da musicoterapeuta por conta da comunicação verbal do paciente
ser evasiva e de poucas palavras.
Na testificação musical (ou seja, procedimento musicoterapêutico cujo ob-
jetivo é observar a competência nas funções musicais, potencialidades e dificul-
dades diante da musicalidade e o relacionamento do paciente com os instrumen-
tos musicais), o paciente se apresentou apático e inicialmente desinteressado
pelos instrumentos oferecidos, comprometendo a avaliação.
Após estímulo verbal, o paciente timidamente aceitou pegar o violão, mas
relatou sua pouca intimidade com o instrumento, já que seu contato sempre foi o
de quem apreciava o outro tocar. O instrumento escolhido deveria ser explorado
de forma livre, simples e sem compromisso, como uma brincadeira ou como um
primeiro contato com alguém que acaba de se conhecer construindo um pequeno
diálogo como: perguntar o nome, dar um aperto de mão. Essa atividade teve
como objetivo fazê-lo compreender que a proposta era explorar livremente o
instrumento.
Foi aguardado o tempo estabelecido pelo paciente na exploração do instru-
mento, até que ele ganhasse maior intimidade com o violão. Aos poucos, apesar da
timidez e do pouco volume sonoro, apresentou postura próxima à convencional e
pulsação rítmica regular ao dedilhar as cordas do violão, o que foi valorizado pela
musicoterapeuta. Neste momento, o paciente foi prevenido de que a musicotera-
peuta iniciaria interação sonoro-musical através do tamborim e do pandeiro.

184 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A entrada dos instrumentos de percussão favoreceu o ritmo e ofereceu
sustentação ao fazer musical improvisado do paciente, que provocou surpresa e
mudança de atitude, saindo da apatia musical inicialmente observada para a des-
contração, evoluindo musicalmente, aparecendo o relaxamento e o sorriso es-
pontâneo nos momentos de maior entrosamento entre musicoterapeuta e paciente
e entre o paciente e o instrumento explorado.
O volume cresceu, o ritmo ganhou personalidade e a melodia, a partir da
exploração das cordas soltas, tornou-se criativa e sonora.
No final da testificação ficou evidente a mudança de humor e de atitude
comportamental do paciente, concluindo-se que o recurso musicoterapêutico
oferecido (a expressão sonora livre) favoreceu a abertura do paciente ao setor e
ao tratamento proposto, como também ficou evidente o potencial mobilizador e
transformador dos sons e da música, pela obtenção do prazer e abertura de ca-
nais de comunicação.
É importante diferenciar o uso da música em terapia e da música como te-
rapia. O primeiro trata de uma técnica utilizada principalmente por psicoterapeu-
tas para mobilizar emoções e sentimentos: o paciente ouve a música e depois
fala sobre o que o mobilizou na música. Já na música como terapia, o paciente
está comprometido como agente musical junto com o musicoterapeuta. Neste
caso, o paciente se expressa pela própria música, cujas propriedades organizadas
e elaboradas conferem à música o status de linguagem simbólica2.
Segundo Schineider (in Jeandot6), “a música nunca expressa uma idéia inte-
lectual definida” (diferente do texto falado, cujos sons e ritmos verbais expressam
uma idéia definida), “nem um sentimento determinado, mas somente aspectos psico-
lógicos absolutamente gerais, abstratos”, porém essa generalidade não é “uma abs-
tração vazia, mas uma espécie de expressão e determinação diferentes das que cor-
respondem ao pensamento conceitual”, e justamente por ter essa particularidade
pode favorecer a comunicação e a linguagem emocional não verbal, ou melhor,
musical.
A música, aqui executada como expressão livre, oportuniza para o adulto
em terapia a reconciliação dele com ele mesmo e com o outro, a partir das inte-
rações musicais com o musicoterapeuta, analogicamente como a “brincadeira
reconcilia a criança com ela mesma e, ao mesmo tempo, com os outros, pois
estimula o encontro, as trocas autênticas entre as crianças, a partir de suas expe-
riências afetivas mais longínquas, independentes de sua origem cultural”1.
Além do aspecto mobilizador, simbólico e emocional, organizador, rela-
xante, transformador da música, entre outros, há o aspecto motor, que no caso de

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 185


pacientes inseridos em um programa terapêutico em uma unidade de reabilitação
física é de extrema importância.
O som depende do movimento e não existe na ausência dele, mesmo o
som vocal, pois há movimentos do sistema orofacial e respiratório que são fun-
damentais para a existência do som vocal, o que nos leva a enfatizar o potencial
reabilitador da música em pacientes com prejuízos motores.

Relato de caso

Relatamos o caso do paciente CSP, sexo feminino, 26 anos, natural do Rio


de Janeiro, solteira, balconista, encaminhada para o processo de reabilitação na
Clínica de Lesão Medular da AACD / RJ, em 04/10/07, com histórico de lesão
expansiva bulbomedular, para o qual apontamos algumas estratégias de trata-
mento com base no trabalho da Musicoterapia e voltadas para a recuperação das
incapacidades decorrentes da lesão medular.
O relato da paciente sobre a doença começa em 2004, com a queixa de
cervicalgia. Em junho de 2006 procurou assistência médica, tendo sido medica-
da para dor sem resultado positivo. Em janeiro de 2007 iniciou quadro progres-
sivo de perda de força de membros superiores (MMSS) e, posteriormente, de
membros inferiores (MMII) evoluindo para tetraparesia de maior comprometi-
mento de membro superior esquerdo (MSE), apresentando disfagia para líquidos
na fase aguda da lesão. Em 25/06/07 foi realizado o exame de ressonância mag-
nética que revelou lesão expansiva do bulbo e transição bulbomedular com indi-
cação neurocirúrgica.
A paciente foi hospitalizada em 06/07/07 e submetida à cirurgia para res-
secção do tumor em 09/07/07, recebendo alta em 24/07/07. Após o procedimen-
to cirúrgico, apresentou ganhos sensitivos e motores.
Após a consulta médica de triagem na AACD, foi avaliada por uma equipe
multidisciplinar no procedimento de Avaliação Global (21/02/08), sendo enqua-
drada para programa de reabilitação nos setores de fisioterapia, terapia ocupacio-
nal, psicologia, hidroterapia e fonoaudiologia.
Segundo exame físico da época, foram verificados os seguintes achados:
Limitação do arco de movimento do pescoço pelo uso de colar cervical, arco
completo de movimento à mobilização passiva em todas as articulações de
MMSS e MMII. Presença de hipoestesia e alteração da propriocepção de MSE
associadas à hipotrofia de musculatura escapular e fraqueza de musculatura in-
trínseca da mão esquerda. Marcha com passos curtos, diminuição da flexão de

186 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


quadril durante fase de balanço e fixação de cintura escapular com instabilidade
lateral à esquerda quando desviada a sua atenção. Apresentava parestesia notur-
na em membro superior direito, fadiga muscular aos esforços e cifoescoliose
postural com convexidade à direita, além de aumento do tono muscular em regi-
ão de trapézios bilateralmente e urgência miccional.
Quanto à funcionalidade motora, encontrava-se semi-independente nas a-
tividades de vida diária, com dificuldades em coordenação motora fina. Em ava-
liação na fonoaudiologia foi evidenciada voz rouca e fraca com pouca projeção e
pitch diminuído e agravado.
Segundo avaliação do setor de psicologia, a paciente apresentava fragili-
dade emocional, com histórico de perdas significativas na sua estrutura familiar
e profissional, irritabilidade, impaciência e incômodo ao barulho, que antes não
percebia dessa forma.
Iniciou tratamento nas terapias em 20/03/08 com boa evolução, apresen-
tando ganhos na força muscular de MMSS e MMII. Progrediu com melhora do
equilíbrio dinâmico e estático na postura em pé, alcançando marcha com pouca
dissociação de cinturas, porém com melhora da dissociação dentro do meio lí-
quido.
Durante o processo de reabilitação foi encaminhada ao Programa do Tra-
balho Eficiente (PTE), desenvolvido pelo setor de psicologia, com objetivo de
reinserção profissional. Após essa atividade, surgiu a oportunidade de uma vaga
de emprego como copeira na instituição. Na ocasião, a paciente se encontrava
independente para as atividades da vida diária; entretanto, persistia prejuízo da
sensibilidade superficial de MSE associado com alteração do tato discriminativo
e da propriocepção segmentar. Essas alterações dificultavam a utilização unilate-
ral do MSE, mas esse déficit era compensado pelo recurso visual em realização
da atividade bi-manual, a fim de evitar a fadiga muscular. Dessa forma, a paci-
ente se encontrava apta a exercer a atividade profissional em questão.
Reforçando o programa de reabilitação, foi solicitada a avaliação inicial no
setor da Musicoterapia, com indicação de estimulação sensório-motora com ênfase
na coordenação motora de MSE aliada aos objetivos musicoterapêuticos, a fim de
favorecer seu desempenho profissional.
Na avaliação inicial no setor de Musicoterapia, a paciente trouxe a queixa
de hipersensibilidade a barulhos, com sustos que chegavam ao tremor, dificulda-
de em expressar-se para o outro, e pouca sensibilidade da mão esquerda, da qual
fazia pouco uso, sobrecarregando o uso da mão direita. Na testificação musical,
a interação com os instrumentos musicais se deu com baixa intensidade, reali-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 187


zando movimentos exagerados e descoordenados com pulso esquerdo prejudi-
cando a execução rítmica. A exploração de instrumentos que exigiam função
bimanual foi realizada por curto período e com pulsação rítmica irregular. Apre-
sentou dificuldade no alcance das teclas do teclado com os dedos da mão es-
querda por conta do déficit sensorial. Foi observada timidez musical e verbal.
Em ficha musicoterapêutica a paciente relatou nenhuma vivência instru-
mental anterior, o que pode ter se refletido na sua expressividade sonoro-musical
na oportunidade; porém, levando em consideração que a própria paciente relatou
dificuldades na expressão e na comunicação, a timidez musical pôde nos oferecer
uma percepção diferenciada da paciente com relação à sua relação com o outro.
Após a avaliação inicial a paciente foi enquadrada no setor de Musicote-
rapia para atendimento individual, com o objetivo de trabalhar estimulação sen-
sorial de MSE, coordenação motora de MMSS em função bimanual, expressivi-
dade e criatividade musical.
Os atendimentos no setor de Musicoterapia foram semanais, com duração de
40 minutos. O objetivo inicial foi estabelecer relação com os instrumentos musicais,
vínculo terapêutico e abertura de canais de comunicação. Ressaltamos que, nesse
período do tratamento, a paciente frequentou apenas o setor de Musicoterapia.
Como metodologia de trabalho foi utilizada a expressão sonora livre. Os
instrumentos foram oferecidos para escolha e exploração organizada livremente
pela paciente, sendo observado que eram privilegiados os que não exigiam a
função bimanual, fazendo maior uso do MSD.
A paciente, sendo destra, manteve sua dominância lateral direita após o
trauma, apresentando manifestação rítmica com pulsação regular na mão direita,
oportunizando abertura ao “prazer” da expressão sonoro-musical. Gradativamen-
te a mão esquerda passou a explorar os instrumentos, ainda que de forma tímida,
porém iniciando a regularidade na pulsação rítmica.
A dificuldade rítmica do MSE era principalmente devida à postura inade-
quada e pela movimentação irregular e exagerada do pulso esquerdo por conta
do déficit sensorial e proprioceptivo. Porém, observamos potencial de melhora,
sendo iniciada intervenção musicoterapêutica.
A paciente foi comunicada sobre as observações descritas acima, e foi
proposto o uso do chocalho, instrumento relativamente leve e de fácil execução.
Foi solicitado que observasse sua postura de braço e pulso ao tocar o chocalho e,
em seguida, fizesse a mesma experiência com a mão direita para sua própria
observação. Essa atividade proporcionou à paciente a conscientização do próprio
corpo em relação ao seu “fazer musical” e a possibilidade de recursos autodida-

188 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


tas a partir da observação do conjunto de movimentos e posicionamentos neces-
sários para uma determinada atividade motora oferecido pelo “membro bom”,
ajudando seu membro esquerdo a ganhar em postura, gestos e ritmo, iniciando o
aprendizado a partir da observação do seu lado direito.
Para a paciente foi interessante perceber como seu membro superior es-
querdo passou a realizar as funções musicais simples de forma organizada e
adequada, proporcionando retorno sonoro mais agradável e gratificante, favore-
cendo as interações sonoro-musicais entre ela e a musicoterapeuta.
Gradativamente a paciente passou a buscar instrumentos de maior com-
plexidade de movimentos, posturas e funções, graças ao seu próprio trabalho de
pesquisa do corpo, da expressão sonora livre e do prazer de agir. Cada nova
atividade era repetida muitas e muitas vezes espontaneamente.
A repetição é necessária, pois assegura “a superação das hesitações e das
resistências tônico-emocionais, bem como a superação das angústias sem me-
do”1, levando progressivamente a ações que antes não seriam possíveis de serem
realizadas.
A paciente adquiriu maior autoconfiança, permitindo o início do trabalho
de estimulação da função bimanual partindo da sua própria evolução, do conhe-
cido e do possível, evitando assim frustrações futuras. Outra proposta foi a de
realizar a exploração ritmo-sonora com um instrumento escolhido pela paciente
com os olhos fechados e abertos alternadamente.
A dificuldade na manutenção do instrumento em uma mesma altura com a
mão esquerda provocou risos na paciente, evidenciando a evolução emocional e
preparando a continuidade do programa terapêutico iniciado para maiores desafios.
Após várias tentativas houve sensível melhora na manutenção do braço
esquerdo, na atividade motora, na sonoridade ritmada e no volume, favorecendo
sua expressividade e criatividade musical. Isso foi percebido na realização das
atividades musicais feitas com maior segurança e na maior descontração apre-
sentada pela paciente.
O prazer sensório-motor solicita sensorialidade tátil e visual bem como a
sensação do equilíbrio e da musculatura1, assim como o prazer da sonoridade na
expressão livre, que é similar ao sensório-motor, solicita a sensorialidade auditi-
va e proprioceptiva além das descritas acima, oferecendo importante recurso
terapêutico no setting musicoterapêutico.
A paciente passou a realizar alcance e exploração digital nas teclas do te-
clado sem hesitação, coordenando mão direita e esquerda. Ficou evidente sua
preferência por esse instrumento, evoluindo rítmico-melodicamente de forma

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 189


criativa, fazendo uso frequente das teclas pretas fá #, sol #, e lá #, que exigem
(bastante) destreza digital.
Nas brincadeiras com o teclado realizou trabalho imitativo tocando uma
frase melódica com a direita na região aguda e repetindo-a com a esquerda, na
região grave, e depois com as duas juntas, integrando, assim, os lados direito e
esquerdo. O lado direito ensina e o esquerdo imita e aprende, ensaiando um diá-
logo musical que é percebido sonora e visualmente pela paciente. Isso favoreceu
uma nova imagem corporal, mais saudável e competente, oportunizando o resga-
te de sua identidade corporal tanto a nível sensorial como a nível simbólico:
“Meus dedos podem, meus dedos conseguem, e é agradável de serem ouvidos e
vistos. Eu também posso e consigo, e sou agradável de ser vista e ouvida”.
Com a evolução do tratamento, uma nova proposta foi incluída: ao final
de cada sessão seria realizada uma pequena avaliação verbal das experiências
vivenciadas.
A passagem da experiência sensorial obtida pela ação sonoro-musical para
a comunicação verbal ofereceu a passagem do prazer de agir para o prazer de
pensar o agir. A comunicação verbal teve como objetivo a tomada de consciên-
cia, a fim de levar a possíveis mudanças comportamentais fora do espaço tera-
pêutico.
Dentro da dinâmica verbal, ainda foi possível completar com outros signi-
ficados, como sua percepção de mundo, de seu próprio ritmo e do ritmo do ou-
tro, seu potencial de saúde, sua inteligência, sua capacidade criativa e musical,
entre diversos outros.
Na ocasião dessa sessão a paciente já havia experimentado diversas ativi-
dades musicais em função bimanual, e evoluía
significativamente no manuseio dos instrumentos
musicais. Foi oferecido o pau de chuva, instru-
mento geralmente feito de bambu, com aproxi-
madamente 60 centímetros de comprimento. Ao
longo do tubo são presos pregos que atravessam
a circunferência interna do tubo. No seu interior
estão contidas pequeninas pedras que deslizam
quando inclinado, passando pelos pregos e pro-
vocando som semelhante ao som da chuva, ori-
ginando o nome pau de chuva (ver figura ao
lado). Trata-se de instrumento de fácil execução,
pois basta alternar inclinações laterais do tubo.

190 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Foi utilizado um cone para ser colocado próximo ao canal auditivo, a fim
de amplificar o som produzido, oportunizando uma experiência auditiva privile-
giada. Inicialmente, o uso do cone foi realizado com ajuda, a fim de favorecer o
prazer de ouvir. Depois, a própria paciente passou a segurar o cone com uma
mão e tocar o pau de chuva com outra, realizando sozinha os movimentos neces-
sários à produção sonora. A paciente passou quase todo o tempo da sessão en-
volvida nessa atividade, buscando formas diferentes de produção sonora, veloci-
dades e continuidade do som sem interrupção. Isto exigiu bastante atenção, con-
trole e coordenação motora do MSE.
Após a experiência sonora, no momento da avaliação verbal, a paciente re-
latou a sua busca pelo prazer de ouvir as últimas pedrinhas caindo, o que nem
sempre era possível por exigir movimentação bem específica e de difícil realiza-
ção. Relatou ainda ter achado o pau de chuva, no início, um instrumento pouco
interessante, mas depois de conhecê-lo melhor, pôde perceber suas qualidades.
Partindo dessa fala, foi possível fazer uma analogia entre a experiência vi-
venciada e suas atitudes comportamentais. A paciente, com ajuda da musicote-
rapeuta, pôde relacionar o julgamento feito do instrumento musical ao julgamen-
to que fazemos das pessoas, afastando-nos delas pela falta de conhecimento, e
ainda a como acreditamos que as pessoas nos julgam e, por isso, dificultamos
que nos conheçam e nos descubram no que temos de melhor, como as últimas
pedrinhas do pau de chuva quando caem.

Na musicoterapia, o processo de resolver “problemas musicais”


é concebido de forma semelhante ao processo de resolver “problemas
da vida”.3

O trabalho musicoterapêutico prosseguiu, e a expressão verbal evoluiu:


CSP passou a se colocar com maior frequência, fazendo novas conexões, refe-
rindo-se ao seu cotidiano, relatando mudanças na sua comunicação, nas atitudes
sociais e no lazer, comentando situações vividas em encontros com amigos que
demonstram espontaneidade e descontração. Recentemente a paciente relatou
ganho de novas funções motoras como:
- Unir e manter a mão em concha ao lavar o rosto.
- Conseguir passar o sabonete no braço direto com a mão esquerda.
- Manter as mãos na altura do cotovelo com os olhos fechados por algum
tempo no momento da oração na igreja (inicialmente se preocupando e conferin-
do se a aparência da mão se apresentava “normal”, porém relata estar superando
esse conflito e que se sente mais livre para ser ela mesma).
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 191
- Melhora na sensibilidade de membro superior esquerdo.
- Melhora na hipersensibilidade e na irritabilidade auditivas.
Atualmente mantém a atividade profissional como copeira da instituição e
está recebendo treinamento para uma possível transferência de setor, o SAME
(Serviço de Agendamento Médico e Estatístico).

Considerações finais

Uma das principais características da expressão sonoro-musical é favore-


cer a abertura de canais de comunicação, o que acontece e evolui no tempo e no
espaço a partir do ato motor e corporal, promovendo a autodescoberta e o senti-
mento de existência.
Podemos afirmar que a experiência musical, a partir das sensações vividas
e das trocas musicais, no aqui e agora, oferece a sensação da continuidade da
representação de si, o resgate da identidade e da singularidade do sujeito.
O significado de cada experiência sensibiliza o indivíduo para uma mu-
dança, a partir da sua sensorialidade e da ação livre, construindo uma nova ima-
gem corporal que se reflete na sua autoestima e o expande do individual para o
familiar, e desse para o social.
No “fazer musical” livre são realizadas diversas posturas e movimentos
com pulso, cotovelo, ombro, pescoço, cintura, pernas, pés etc., dentro das possi-
bilidades de cada um. Em flexão e extensão, em abdução ou adução e rotação.
Lentos ou rápidos, suaves ou fortes, e que integram visão, audição, tato, proprio-
cepção, força, controle muscular e equilíbrio, bem como integram os dois lados
do corpo, favorecendo o aprendizado.

Uma vez que as memórias tenham sido armazenadas no sistema


nervoso elas se tornam parte do mecanismo de processamento. Os pro-
cessos de decisão do cérebro comparam experiências sensoriais novas
com as memórias armazenadas; as memórias ajudam a selecionar as in-
formações sensoriais novas consideradas importantes, em como canali-
zá-las para áreas apropriadas de armazenamento, com vistas a utiliza-
ções futuras.5

Levando em consideração a afirmação acima, é possível fazer algumas re-


flexões sobre a relação entre a sensorialidade, a motricidade, a percepção e a
cognição na construção de um novo fazer. Tocar coquinhos (instrumento feito da
casca de coco seco que produz som ao serem tocadas as duas metades externas

192 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


da casca seca do coco) ou rolar o Kabuletê entre as mãos (instrumento parecido
com um tambor pequenino, com duas peles em cada lado, cujo corpo fica preso
a uma haste; o som é produzido pelo giro da haste que faz com que duas cordas,
com bolas nas pontas, presas na caixa de percussão girem e acertem as peles)
lembra unir as mãos em concha para lavar o rosto?
O deslizar suave das pedrinhas no pau de chuva remetem ao deslizar sua-
ve do sabonete em suas mãos?
Manter o agogô no ar para ser percutido com os olhos fechados se apro-
xima do ato de manter a mão posicionada no momento da oração?
E as novas conquistas não favoreceriam uma nova autoimagem corporal e
psíquica que, por sua vez, oportuniza outras tantas novas conquistas?
Apreciar o próprio ritmo, criar a própria melodia, sentir o corpo se mo-
vendo no espaço e produzindo som é perceber a si próprio e aprender a construir
uma nova forma de se colocar no mundo.
A Musicoterapia, neste caso e em tantos outros casos, favoreceu e favore-
ce não apenas a aquisição de novas funções motoras e o aperfeiçoamento de
funções motoras anteriores, mas também contribuiu para o desenvolvimento da
expressão e da comunicação, elementos fundamentais para a evolução emocio-
nal da paciente e de sua personalidade, agora mais segura e dinâmica.
O trabalho musicoterapêutico descrito, segundo os princípios que o orien-
tam, não está centrado sobre as dificuldades apresentadas pela paciente, que
fundam as angústias, mas sim sobre a descoberta do prazer do agir e do pensar
que, segundo Aucouturier1, é o meio indispensável para encontrar ou reencontrar
o prazer de aprender.
A ajuda psicomotora é uma terapia da ação. A ação musical aproxima a
Musicoterapia dos fenômenos psicomotores que, por sua vez, aproximam o mu-
sicoterapeuta da psicomotricidade na medida em que sua disponibilidade musi-
cal e os ajustes rítmicos e sonoros equivalem à sua disponibilidade corporal e
aos ajustes tônico-emocionais na direção do paciente1.
Estabelecer uma relação tônico-emocional recíproca e empática com o pa-
ciente é perceber suas sutis mensagens corporais.
É preciso acolher e assegurar suas demandas corporais e sonoras através
de um toque, um sorriso, uma palavra, um som, um ritmo ou uma música canta-
da ou tocada, a fim de restaurar o elo entre o psíquico e o corporal e, assim, di-
minuir os distúrbios da expressividade motora.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 193


Referências
1. Aucouturier B. O método Aucouturier: Fantasmas de ação e prática psicomotora.
Aparecida: Idéias e Letras; 2007.
2. Barcellos LRM. Cadernos de musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros; 1992.
3. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2. ed. Rio de Janeiro: Enelivros; 2000.
4. Fernandes AC, Ramos ACR, Casalis MEP, Hebert SK. Medicina e reabilitação: Prin-
cípios e prática. São Paulo: Artes Médicas; 2007.
5. Guyton AC, Hall JE. Tratado de fisiologia médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koo-
gan; 1996.
6. Jeandot N. Explorando o universo da música. São Paulo: Scipione; 1990.
7. Lapierre A, Aucouturier B. A simbologia do movimento: Psicomotricidade e educa-
ção. [Tradução de Márcia Lewis]. Porto Alegre: Artes Médicas; 1986.

194 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


5.2
MUSICOTERAPIA E
PSICOTERAPIA DE GRUPO:
A CONSTRUÇÃO DE UMA PARCERIA

Silmara do Nascimento

O atendimento em grupo de adolescentes feito em conjunto entre os seto-


res de Musicoterapia e Psicologia da AACD tem originado experiências gratifi-
cantes para os terapeutas, para os pacientes e para seus familiares. Esta modali-
dade de atendimento nos serviços da AACD surgiu quando alguns pacientes
nessa faixa etária que estavam enquadrados no setor de Musicoterapia apresenta-
ram demandas além do espaço musicoterapêutico, ocasião em que se fez neces-
sária a presença do psicólogo no que diz respeito ao acolhimento e à orientação
para a família. Em contrapartida, os adolescentes com dificuldades em externar
verbalmente suas dificuldades emocionais têm nesse espaço de modalidades
conjuntas de atendimento a estratégia da comunicação não verbal, que é o fio
condutor da música em Musicoterapia.
Cada fase da vida é marcada por situações particulares de cada indivíduo.
Essas fases são comuns a todos os humanos, como ocorrem, por exemplo, na
primeira infância, o andar, o falar, as primeiras experiências com familiares,
depois no meio social e na escola. Na escola a criança vai se deparar com todas
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 195
as diferentes culturas e aprenderá a se relacionar de acordo com sua vivência,
acionando o repertório interno que possui ou não, e com os seus recursos enfren-
ta as crises, os problemas e as vitórias.
Para a criança será importante que possua uma rede familiar e social que,
ao longo de seu desenvolvimento, a apoie, fortalecendo e suprindo suas necessi-
dades básicas e vitais, como também no desenvolvimento de sua criatividade e
na flexibilidade para adaptação às circunstâncias, de modo que consiga superar
os desafios e as etapas da vida.
O grupo terapêutico tem como princípio aplicar recursos da terapia com-
portamental e da Musicoterapia comportamental para auxiliar e tratar jovens
com pouco repertório para a condução de suas vidas que, embora possuam po-
tencial para a aprendizagem, demonstram dificuldades escolares e de adaptação
na vida social: não conseguem acompanhar a classe escolar, são mais lentifica-
dos, por vezes tímidos, ou se tornaram agressivos ou pouco assertivos com os
colegas, os professores e seus familiares.
Cabe ressaltar que a formação desses adolescentes sofreu interferências
agudas que podem ter ocorrido já desde o nascimento ou no decorrer de suas
histórias, a partir de um diagnóstico difícil de aceitar, muitas vezes difícil de
tratar, o qual será levado como uma marca registrada por toda a vida, tendo-se
que provar do que se é capaz de realizar e tendo-se que enfrentar preconceitos e
intolerância no mundo competitivo em que vivemos.
Neste capítulo apresentamos a experiência adquirida por uma psicóloga e
uma musicoterapeuta no grupo terapêutico formado por jovens com alguma
deficiência física na faixa etária entre 11 e 16 anos, constituindo um dos mode-
los de atendimento no centro de reabilitação da AACD. Por se tratar de um gru-
po aberto e heterogêneo, devido à demanda apresentada na instituição, atende-
mos jovens com paralisia cerebral, mielomeningocele, distrofia neuromuscular
progressiva, malformação congênita e lesão encefálica adquirida. O grupo obe-
dece a critérios do regimento interno da instituição e tem o enquadramento em
caráter experimental. Para o enquadramento neste grupo de adolescentes, o paci-
ente não pode estar em atendimento individual ou em grupo no setor de psicolo-
gia, evitando-se, assim, conflitos na conduta. Durante os atendimentos os paci-
entes são observados quanto à aderência ao tratamento, e para a funcionalidade
do procedimento também observamos o bem-estar de todos os participantes;
caso uma dessas condições não seja observada, a conduta é revista, e o paciente
é encaminhado ao setor de psicologia para orientação ou para outros atendimen-
tos utilizando os recursos da comunidade.

196 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Perfil do grupo

O grupo é formado por pré-adolescentes e adolescentes (início por volta


dos 11 anos de idade e término por volta dos 16 anos), que devem apresentar
bom desenvolvimento cognitivo, de acordo com o escopo da instituição, e apre-
ciar música. Pacientes de todas as clínicas podem participar, desde que estejam
realizando alguma terapia na instituição, e a família deve estar interessada e
envolvida no tratamento, o que é constatado pela frequência aos atendimentos.
Os pacientes apresentam queixa emocional/comportamental como dificul-
dades de relacionamento interpessoal e/ou dificuldades de adaptação e aprendi-
zado na escola e no ambiente familiar.
O formato do grupo sofre alteração à medida que mudam as demandas dos
pacientes. Dependendo da formação do grupo, essas demandas incluem:
- Estimulação cognitiva para os casos de lesão encefálica adquirida e para-
lisia cerebral;
- Trabalhar questões de aceitação, imagem corporal e adaptação ao meio,
mais evidenciadas nos casos de distrofia neuromuscular e malformação congênita;
- Dificuldade de expressão e relacionamento na maioria dos casos.
O grupo é aberto e composto por uma psicóloga e uma musicoterapeuta,
com o mínimo de três pacientes enquadrados. Os encontros são semanais, com
duração de uma hora. Os encontros com os pais são realizados após seis ou oito
atendimentos terapêuticos, ou podem ser antecipados, de acordo com a demanda
da família e do paciente. Os pais ou responsáveis são convocados para o encon-
tro com a psicóloga com o objetivo de acompanharem a evolução do tratamento.

Objetivos do grupo

O objetivo terapêutico para o grupo é o de melhorar a qualidade de vida


do paciente, ajudando-o a entrar em contato com suas questões emocionais e
possíveis dificuldades encontradas no seu dia-a-dia, no ambiente social e famili-
ar. Essas dificuldades são advindas tanto da própria fase do desenvolvimento
quanto da história natural de vida e da deficiência.
Na interação do grupo, um ambiente de troca de experiências e vivências
sonoro-musicais favorece um trabalho que aborda as questões mencionadas aci-
ma dentro do processo terapêutico. O objetivo final é o de ajudar o paciente a
desenvolver habilidades, trocas sociais pela convivência no grupo, e a utilizar a
música como recurso fundamental.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 197
Na Musicoterapia, o terapeuta não é o único agente a atuar sobre o cliente;
na verdade, algumas vezes, o terapeuta nem é a principal fonte de intervenção. A
música exerce papel essencial no processo terapêutico, algumas vezes servindo
como uma parceria do terapeuta e, em outras, facilitando ou induzindo mudanças
no cliente com pouca ou nenhuma ajuda do terapeuta3.

Método

As atividades são propostas a partir da demanda do grupo e coordenadas


pela musicoterapeuta. Os pacientes trazem seus interesses e preferências musi-
cais, que são utilizados durante a terapia. As músicas são ouvidas e/ou interpre-
tadas na medida da motivação e da mobilidade individual de cada paciente. A
interação entre os integrantes do grupo também produz conteúdos que vão emer-
gindo durante a sessão. A psicóloga atua como mediadora do grupo e, à medida
que esses conteúdos vão surgindo, faz- se uma reflexão e novos temas surgem e
são abordados de maneira que todos participem com as condições pessoais da-
quele momento.
Nos encontros com os pais, quando a psicóloga faz a devolutiva da evolu-
ção do paciente, são discutidos os temas que emergiram durante a terapia e que
podem acrescentar na integração do paciente e familiares.
Para iniciar os atendimentos no grupo, o paciente recebe a indicação dos
seguintes procedimentos:
• Avaliação inicial que consta do protocolo da Musicoterapia (ficha da
musicoterapia e anamnese).
• Entrevista com o responsável e com o paciente conduzida pela psicóloga.
Para iniciar no grupo, o paciente já deve ter realizado avaliação psicológi-
ca prévia. Nos casos de alteração significativa do comportamento do paciente
durante o tratamento, deve ser indicada a reavaliação psicológica para as medi-
das cabíveis em cada caso.
Os pacientes recebem alta quando atingem os objetivos propostos no iní-
cio do tratamento ou quando atingem a idade limite para o atendimento (16 anos
e 11 meses).
O paciente que manifesta interesse pelo aprendizado musical formal rece-
be orientação para a inclusão em programas pedagógicos musicais.
Em qualquer momento dos atendimentos em grupo o paciente pode rece-
ber indicação para nova modalidade de terapia e, se necessário, será revisto na
discussão de casos.

198 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A relevância do grupo
Cada vez mais há uma aproximação de profissionais de áreas diversas no
tratamento das pessoas. A interdisciplinaridade promove uma compreensão mai-
or do paciente e, com isso, espera-se melhor resultado na promoção de saúde.
De acordo os estudos de Leinig5, é muito importante aos integrantes da
equipe multidisciplinar que haja conexão entre si, e o resultado positivo do tra-
balho está na somatória das habilidades de cada um. Os impasses surgirão, mas a
discussão e a troca de informações devem favorecer o tratamento. O musicotera-
peuta abre um canal de comunicação para as outras terapias, facilitando a aceita-
ção do paciente a elas. No caso da musicoterapia grupal, a autora destaca alguns
resultados importantes para as pessoas, tais como melhora da autoestima, estabi-
lização das normas de conduta na instituição em que convivem os pacientes,
aumento das possibilidades de o paciente se sentir mais seguro no ambiente hos-
pitalar, e ajuda na comunicação e integração entre eles.
A situação de grupo é facilitadora ao processo terapêutico e tem suas van-
tagens na aquisição de habilidades sociais. Caballo4 define comportamento soci-
almente habilidoso como um ”conjunto de comportamentos emitidos por um
indivíduo em um contexto interpessoal que expressa os sentimentos, atitudes,
desejos, opiniões ou direitos desse indivíduo, de um modo adequado à situação,
respeitando esses comportamentos nos demais, e que geralmente resolve os pro-
blemas imediatos da situação enquanto minimiza a probabilidade de futuros
problemas”.
O indivíduo não é um ser estanque, destacado de sua cultura. Ele é um ser
social, produto de sua cultura, história de vida e herança genética. “O compor-
tamento social surge porque um organismo é importante para o outro como parte
de seu ambiente.”6
Quando o paciente chega a este grupo, traz consigo sua história de vida e
padrões de comportamentos muitas vezes pouco adaptados. Os elementos do
grupo daquele momento formarão uma experiência única e original. Cada inte-
grante deixará sua marca no grupo e ajudará a formar as qualidades inerentes a
esse grupo específico. É com isso que trabalhamos: com a demanda do momen-
to; o grupo cria sua própria identidade.
No grupo, os elementos podem experimentar situações novas, mudar o pa-
radigma em que se encontram e ao qual estão acostumados, devido à troca de
experiências e pontos de vista. Então, após um período de adaptação, o grupo
começa a se manifestar como uma unidade que se comporta independentemente

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 199


de cada indivíduo. As consequências reforçadoras geradas pelo grupo tendem,
então, a aumentar o efeito reforçador das respostas do grupo em comparação às
respostas do indivíduo isoladamente6.
Cabe às terapeutas desenvolver habilidades para discernir sobre o movi-
mento do grupo e verificar se as pessoas estão integradas e completamente à
vontade na expressão de suas opiniões e vontades. É necessário lembrar que a
nossa clientela possui características peculiares que pudemos observar e agrupar
ao longo de nossa experiência. São jovens que, em sua maioria, proveem de
famílias de baixa renda, portadores de alguma deficiência e com atraso no de-
senvolvimento neuropsicomotor. Esse atraso, por si só, já seria responsável por
uma alteração da capacidade de percepção, memória, atenção e raciocínio do
indivíduo sobre seu ambiente. Junte-se a isso o fato de contemplarmos uma faixa
etária que traz como características físicas e psicológicas, típicas do desenvolvi-
mento, as mudanças hormonais e na aparência.
A faixa etária do grupo atendido apresenta características próprias ao de-
senvolvimento da puberdade à adolescência, fase entre 12 e 20 anos2.
Bee2 destaca as mudanças físicas como estirão do crescimento e desen-
volvimento da maturidade sexual. Entretanto, aponta que há poucas mudanças
nas capacidades perceptivas nessa fase. Com relação ao pensamento, em muitos
jovens é desenvolvida a operação formal, o pensamento dedutivo e o julgamento
moral em função de princípios. Quanto à socialização, os grupos de companhei-
ros se tornam mistos, e os papéis sexuais se tornam mais diferenciados. A fase
de desenvolvimento entre a infância e a juventude pode ser organizada em está-
gios e em transições entre esses estágios. Nos períodos de transição, a pessoa
tende a apresentar desorganização do comportamento, até passar para o outro
estágio. Quando a passagem por esses estágios é marcada por sucesso nas tarefas
de cada fase, o jovem apresenta excitação e encantamento. Nas crianças, o auto-
conceito, que é definido como a diferenciação entre o eu e o outro, se apresenta
no nível concreto, ou seja, focado em traços físicos e atividades concretas.
Já na adolescência, o autoconceito começa a ser mais abstrato, o que sig-
nifica focar em crenças, atitudes e qualidades físicas. Crianças com autoestima
elevada podem ter um rendimento melhor na escola e nas relações. Observa-se
que essas crianças advêm de famílias que valorizam e elogiam o desempenho de
seus filhos, como também apresentam afeto e estabelecimento de limites claros.
Com relação ao conceito de desenvolvimento do papel sexual, marcante
nessa fase, Bee2 destaca três teorias básicas sobre o assunto: Segundo Mischel
(1966, 1970), a teoria da aprendizagem aponta para o papel do reforçamento e da

200 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


imitação dos modelos do mesmo sexo; para Kohlberg (1966), o ponto de vista
cognitivo-desenvolvimental aponta que a imitação do modelo do mesmo sexo
ocorre apenas depois de a criança desenvolver o conceito de gênero; por último,
inclui Freud, que também valoriza a imitação em sua teoria, mas no sentido de
identificação na resolução da crise edipiana.
O desenvolvimento da personalidade equivale ao desenvolvimento de pa-
drões individuais de ação e reação ao mundo animado e inanimado que são rela-
tivamente estáveis, os quais distinguem uma pessoa da outra. Bee2 aponta três
teorias básicas para a compreensão do desenvolvimento da personalidade: a
teoria da aprendizagem; a teoria biológica; e a teoria psicanalítica. Neste mo-
mento, ressaltaremos a teoria de aprendizagem social, recomendando maior a-
profundamento a partir da leitura dos autores de cada uma das demais duas teo-
rias, respectivamente Erikson e Freud.
A teoria da aprendizagem supõe que os padrões de comportamento social
sejam aprendidos através de reforço e imitação. Segundo Bandura (1977, apud
Bee2), a criança imita apenas o que lhe prende a atenção e pode lembrar. O
mesmo autor aponta que o comportamento é fortalecido pelo reforçamento, e
isso se aplica à timidez, às ligações afetivas e à competitividade.
Com isso, ressaltamos de forma geral o momento pelo qual passa a crian-
ça que frequenta o grupo e o que é trabalhado dentro do contexto grupal: A troca
de experiências e o fomento de contingências reforçadoras para o aprendizado de
habilidades sociais mais adaptadas.
A questão da deficiência permeia o desenvolvimento dessa criança, desde
a mais tenra idade, na formação de seu autoconceito e na formação da rede de
relacionamentos ao longo de sua vida, o que leva a pensar na questão sobre a
inclusão.
Os pacientes atendidos no grupo se encontram muitas vezes no limite en-
tre pessoas que não possuem nenhuma incapacidade física e as que possuem
uma deficiência mais grave, as quais exigem outro tipo de intervenção que não é
a atual proposta deste o grupo.
Esses pacientes acabam ficando “sem lugar” porque, no seu ambiente so-
cial, se tornam “o diferente”, pois possuem algo que limita sua atuação, mas,
quando comparados a outras pessoas com deficiências mais graves, eles se tor-
nam “ótimos”. Isso gera conflitos e sentimentos de inadequação ao indivíduo.
Na revisão feita por Aranha1, o tema inclusão é abordado desde a sua ori-
gem até os dias atuais, e constata-se que, no nosso país, ainda se segrega e se
exclui, e com um agravante: centra-se na própria pessoa com deficiência o moti-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 201


vo da sua exclusão. Embora haja a integração dessas pessoas a partir de serviços
da comunidade, a inclusão social de fato da criança especial deverá ser construí-
da por toda a sociedade, pois diz respeito a todos nós.
Uma mudança de cultura leva tempo para ocorrer. Mas pequenas iniciati-
vas empreendedoras e programas de conscientização através da educação ajuda-
rão bastante no aumento de ofertas para todos os tipos de demanda. Realmente
há espaço para novos trabalhos com toda essa clientela. Todo esforço em direção
à melhoria do serviço de saúde será bem-vindo. O grupo se mostra como uma
iniciativa de intervenção capaz de promover recursos a esses pacientes e familia-
res na instituição para enfrentarem situações em suas comunidades.
Isso exposto, entende-se que tornar o grupo acolhedor, reforçador e seguro
para que seus membros possam aumentar a probabilidade de emitirem respostas
mais adequadas e adaptadas ao ambiente social é quase que uma condição para o
terapeuta obter bons resultados. O que significa isso? Para alcançarmos os resul-
tados desejados, realizamos a avaliação comportamental sugerida por Caballo3,
enfocando o motivo da consulta e a queixa tanto do familiar mais próximo (a
mãe, na maioria das vezes) quanto do paciente: “Seleção e descrição dos com-
portamentos-problema”.
O grupo possui um objetivo específico e, portanto, faz- se necessário uma
seleção do perfil do grupo, a partir da avaliação psicológica que é realizada atra-
vés de entrevista com os pais ou cuidadores e com a criança e da utilização de
testes cognitivos. Nessa avaliação, é feito um levantamento da queixa compor-
tamental atual tanto do ponto de vista do cuidador como do paciente. A musico-
terapeuta também faz sua avaliação, na qual obtém dados sobre sensibilidades
aos sons, como é o comportamento do paciente e da família em relação à música
etc. O prontuário do paciente é o seu histórico na instituição e, por isso, contém
dados relevantes para a conclusão da avaliação e para o direcionamento do tra-
tamento. A participação e o comprometimento da família do paciente são fun-
damentais para um bom resultado.

Relato de uma experiência

A experiência relatada a seguir corresponde a uma mostra do que tem sido


o trabalho neste grupo até o momento.
As atividades são propostas pela musicoterapeuta. Na rotina básica, inici-
almente conduzimos uma “roda da conversa”, na qual o paciente conta suas no-
vidades ou problemas etc. Esse é o momento do quebra-gelo. Após, a musicote-

202 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


rapeuta entra em ação, e a psicóloga atua como um suporte, observando e inter-
vindo quando necessário. O entrosamento entre as duas é fundamental para que
saibam a hora de uma atuar e a outra recuar. Através dos instrumentos e da voz
falada é construída e apresentada a “voz” do grupo. Como é isso? As decisões
são tomadas e viabilizadas por todos os integrantes, o que preconiza o treino de
habilidades sociais. O paciente sai de uma postura passiva para uma postura
mais ativa, acaba se deparando com críticas, mas também com aceitação. Passa
por um processo de exposição gradativa, num ambiente acolhedor e o menos
aversivo possível, com a intervenção terapêutica. O paciente passa a desenvolver
autonomia, no sentido de que vai treinando o seu repertório e adquirindo mais
confiança, fazendo as suas escolhas e “bancando” as consequências. Com mais
recursos, vai se mostrando mais e mais seguro ao se expor, dentro de seu poten-
cial, pois ele é somente comparado a ele mesmo em sua evolução.
O recurso da música se torna fundamental nesse processo, principalmente
no momento em que nem todos ainda se conhecem, ou quando têm grande difi-
culdade em tocar num assunto dolorido. Vão se revelando sem utilizar a fala,
apenas através do instrumento ou da música. Exprimem seus sentimentos sem
passar pela censura da palavra.
Por se tratar de um grupo aberto, podemos notar as mudanças nas deman-
das das novas formações. Os mais antigos demonstram mais experiência, e isso
parece dar-lhes mais autoconfiança para expressar suas idéias à medida que os
novos integrantes vão chegando. Os novos ainda se mostram um pouco insegu-
ros, mas recebem o apoio dos antigos, o que é muito bem-vindo. A exposição
pessoal acontece gradualmente. Como regra, todos têm a sua vez para demons-
trar sua performance: falar, cantar ou explorar o instrumento sobre um tema
trazido pelo grupo. Como regra, é promovido o hábito de que todos os integran-
tes devam respeitar o outro na sua produção musical. Isso ajuda na exposição de
idéias com respeito mútuo. Fica estabelecido indiretamente que há um objetivo
maior em questão, ou seja, a produção em si. E o foco não fica na dificuldade de
cada um, mas na superação dela. As terapeutas observam como os pacientes se
expressam, e vão intervindo quando necessário. Assim, à medida que os pacien-
tes vão ganhando confiança e desenvoltura, somadas à coesão do grupo, ganham
outro desafio: o de se expor através da produção musical para os familiares e
outras pessoas.
Quando se organiza uma apresentação da produção musical do grupo para
uma platéia, geralmente no final do ano, encerrando as atividades, os pacientes
ficam muito preocupados no início. O processo da escolha de repertório, o en-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 203


saio, a organização e a apresentação é que se tornam o processo terapêutico em
si. Por quê? Eles não se dão conta, mas os objetivos estão nas etapas preliminares
importantes para a apresentação. O medo, os sentimentos de impotência e inade-
quação ou a autocrítica exagerada que impeça de cumprir a tarefa, em resumo, a
fuga e esquiva da situação são trabalhados passo a passo em terapia. Aspectos
cognitivos acabam sendo trabalhados também, visto que precisam se organizar,
planejar a atividade e memorizar as músicas e sequências da apresentação.
O objetivo não é uma apresentação formal, afinada e livre de críticas. Mas
é a oportunidade de estarem naquele momento apresentando a sua produção.
Para esses pacientes, isso fica explícito no brilho dos olhos, no sorriso, no alto
grau de tensão que vai se dissipando ao final, quando tudo vai se resolvendo e
vão ficando mais relaxados com a participação da platéia cantando junto, fazen-
do parte daquele espetáculo! E no final, claro... o aplauso! Depois? Festa, co-
memoração, trabalho cumprido. Lá no fundo... aquele sentimento: ”Eu fiz!”.
Claro, tudo isso não é mensurado, mas fica na memória a evolução de ca-
da paciente que consegue se superar na sua limitação e história de perdas. Essa
experiência dificilmente será esquecida. E acreditamos que essa experiência
contribui para a formação ética desse paciente: o cuidado com o outro, a empati-
a, a coragem de se expor, observar os limites de cada um e as diferenças. Como
também para a melhora de algumas funções cognitivas.
Podemos citar que um indicador de que o grupo ajuda seus participantes é
o retorno colocado pelos pacientes e familiares, em termos da alta frequência aos
atendimentos e dos comentários positivos feitos por eles. Quando há conflitos e
situações mais complicadas, que entendemos como rebeldia encontrada na ado-
lescência e que às vezes aflora, as terapeutas atuam com cuidado para que não
quebrar o vínculo de confiança no grupo.
Para exemplificar essa afirmação, citamos um fato que foi o falecimento
de um dos integrantes de um grupo, e isso causou grande impacto nos outros
elementos. Mesmo assim, não houve resistência dos pacientes em vir e partici-
par, mesmo que fosse para estar ali, sem dizer nada nos atendimentos. Eles vie-
ram à terapia e formaram uma rede de suporte emocional entre eles. Foi interes-
sante observar o fator de resiliência dentro desse grupo.
Para complementar, a alta é conduta das terapeutas, mas com o conheci-
mento, entendimento e aceitação do paciente. A alta é discutida quando o paci-
ente se torna capaz de se autoavaliar dentro de seus parâmetros, descrevendo o
que melhorou ou não no seu dia a dia, apropriando-se, assim, do seu tratamento
e evolução.

204 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Considerações finais
As estratégias para a interação do grupo são alinhadas através dos mode-
los de abordagem musicoterapêutica. A psicóloga atua participando da interação
musical, observando cada manifestação individualmente e, sempre que possível,
reforçando a atitude comportamental musical e construindo uma ponte para ati-
tude comportamental vivencial que possa colaborar para a aquisição da saúde
mental.
A troca de informações sobre a percepção de cada terapeuta enriquece,
traça diretrizes para novas condutas, e é relevante para destacar os comporta-
mentos-alvo. Através da análise das manifestações musicais e verbais de cada
paciente é possível concluir o atual momento social e identificar suas reais de-
mandas para a inserção. Nessa construção grupal motivadora, a ajuda entre os
membros do grupo floresce sua musicalidade e experiências próprias; ao mesmo
tempo, um pode conhecer o outro na sua diferença, percebendo o que o revela e
o que revela o outro, transpondo-se para sua realidade no espaço que ele ocupa
como um ser atuante.
Em nossa experiência, observamos no grupo mudanças comportamentais,
e também obtivemos o relato verbal dessas mudanças pelos membros do grupo e
familiares, mais especificamente pelo relato das mães, que eram as pessoas que
acompanhavam os jovens na maioria das vezes. De modo geral, os pacientes
apresentaram diminuição da agressividade, aumento e melhora da comunicação
e afetividade, maior atenção na escola, maior interesse por música e valorização
do próprio gosto musical.
Por se tratar de julgamento subjetivo, não temos como mensurar o quanto
o grupo influenciou nas mudanças. Sugerimos que pesquisas possam vir a do-
cumentar cientificamente o que, por depoimento e pelas experiências vivencia-
das com o grupo de adolescentes, temos tido a oportunidade de vivenciar, e que
essas experiências possam vir a ser um campo de pesquisa na construção de
conhecimento sobre o atendimento conjunto da musicoterapia e psicologia.

Referências
1. Aranha MSF. Inclusão social da criança especial. In: Souza AMC. A criança especial.
São Paulo: Roca; 2003.
2. Bee H. A criança em desenvolvimento. 3. ed. São Paulo: Harper and Row; 1984.
3. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2. ed. [Tradução de Mariza Velloso Fernandez

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 205


Conde]. Rio de Janeiro: Enelivros; 2000.
4. Caballo VE. Manual de técnicas de terapia e modificação do comportamento. São
Paulo: Santos; 1996.
5. Leinig CE. A música e a ciência se encontram: Um estudo integrado entre a música, a
ciência e a musicoterapia. Curitiba: Juruá; 2008.
6. Skinner BF. Ciência e comportamento humano. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes;
1994.

206 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


6
O QUE PRECISAMOS SABER

SOBRE OUTRAS CONDIÇÕES

INCAPACITANTES
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 207
6.1
MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS E
OUTRAS SÍNDROMES

Francisco Hélio Violante Filho


Solange Sumire Aoki

Malformações congênitas
A descrição das Malformações Congênitas (MFC) envolve conceitos se-
gundo os quais o conhecimento de determinados termos nos esclarece e ajuda a
elucidar quadros sindrômicos ou de malformações isoladas. A variação anatômi-
ca nos seres humanos pode ser considerada a regra, e não a exceção. Mas, quando
essa alteração atinge magnitude em que tanto a função natural quanto a aparência
estão prejudicadas, podemos observar a presença de uma deformidade.
O termo “congênita” se refere à anomalia que se encontra presente já ao
nascimento. Devemos lembrar que a célula consiste de uma estrutura básica, e é
essa unidade que formará os tecidos. O tecido é composto por um conjunto de
células, e o agrupamento de diferentes tecidos levará à estruturação de um órgão.
A reunião de órgãos integrados formará um sistema que, por sua vez, fará a
composição de um organismo.
Conhecendo esse processo de organização estrutural, quando observamos
a presença de uma anomalia, essa pode ser explicada com base em um problema
208 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
na morfogênese, que desencadeará uma cascata de defeitos subsequentes. A
presença de padrões de defeitos estruturais denomina-se sequências, as quais
podem ser divididas em quatro categorias:
1. Sequência de malformação: ocorrência de uma malformação tecidual
única que inicia uma cadeia de defeitos subsequentes. Pode se manifestar de
forma leve a grave, possuindo risco de recorrência de 1% a 5%.
2. Sequência de deformação: não se observa presença de um problema no
embrião ou no feto, mas se detectam alterações nas forças de contração uterina
que pode levar a uma morfogênese alterada. Por exemplo: oligodrâmnio (dimi-
nuição do líquido amniótico), com consequente formação de deformações.
3. Sequência de disrupção: o feto normal está sujeito a um problema des-
trutivo que pode levar à ruptura de tecidos normais. As causas dessa ocorrência
podem decorrer de alterações de origem vascular, infecciosa e até mecânica. Por
exemplo: disrupção em tecidos desenvolvidos normalmente, levando ao desen-
volvimento de bandas de constrição (bridas amnióticas).
4. Sequência de displasias: o defeito primário decorre da falta de organi-
zação normal das células nos tecidos.
Neste capítulo, abordaremos algumas patologias que ocasionam malfor-
mações congênitas e que acometem principalmente o sistema músculo-
esquelético.

CLASSIFICAÇÃO
As MFC do sistema músculo-esquelético abrangem amplo espectro de de-
formidades que podem ocorrer de forma isolada ou global. Dentre as várias clas-
sificações utilizadas, descreveremos aquela relatada por Swansom, que divide as
MFC em sete tipos, de acordo com a falha embriológica responsável pela produ-
ção da malformação. Assim, temos:
1. Falha na formação das partes ou interrupção no desenvolvimento do
embrião: pode ocorrer de forma completa ou parcial e acometer partes moles
e/ou tecidos ósseos. Podem ser subdivididas em dois subtipos:
- transversa: o defeito ocorre em um plano transverso e envolve toda a
largura do membro. Por exemplo: amputações congênitas de membros (hemime-
lia transversa terminal de antebraço);
- longitudinal: presença de defeito no eixo longitudinal do membro. Nes-
ses casos, podemos descrever aqueles em que o envolvimento ocorre no nível
pré-axial do osso rádio ou tíbia (por exemplo: hemimelia tibial), e outros em que
se nota alteração no eixo central de um membro, levando à ausência do 2º/3°/4°

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 209


raios das mãos ou dos pés (por exemplo: ectrodactilia, também conhecida como
mão ou pé em “pata de lagosta” (Fig. 1).

Figura 1. Deformidade típica conhecida como “pata de lagosta”


em pés.

2. Falha na diferenciação (alteração na separação das partes): observa-se o


envolvimento de defeitos em unidades básicas (osso, pele, músculos, nervos) en-
volvidas que não estão separadas (por exemplo, sindactilia, ou seja, dedos juntos).
3. Duplicação: este tipo de malformação resulta de alterações na divisão
da porção embrionária original, e em decorrência dessa agressão sofrida pelo
núcleo de formação do membro. (por exemplo: polidactilia, ou seja, dedos ex-
tranumerários).
4. Gigantismo (sobrecrescimento): observa-se que todo o membro ou so-
mente parte dele possui formato desproporcionalmente grande. Pode acometer
dedos de mãos / pés, antebraço, perna, e envolver a parte óssea e/ou partes mo-
les. (por exemplo: macrodactilia, ou seja, dedo gigante).
5. Hipoplasia: nota-se crescimento insuficiente do membro superior e/ou
inferior, podendo se manifestar de forma isolada (unhas, dedo, pele) ou global.
6. Bandas de constrição: consiste na manifestação de uma faixa ou banda
de constrição que pode levar a uma amputação de um membro ou parte dele
ainda no período intrauterino da gestação (por exemplo: síndrome de Streeter
(Fig. 2).

210 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Figura 2. Presença de bandas de constrições em dedos de mãos
(Síndrome de Streeter).

7. Anomalias esqueléticas gerais: observa-se presença de várias malfor-


mações músculo-esqueléticas decorrentes de alterações na formação óssea, prin-
cipalmente (por exemplo: osteogênese imperfeita, displasias ósseas ou acondro-
plasia).

ETIOLOGIA
Geralmente, a maioria das MFC de membros tem causas desconhecidas;
entretanto, há várias patologias cujas formas de ocorrência e transmissão já são
conhecidas e dentre as quais se destacam: herança genética; anomalias cromos-
sômicas; uso de medicações (talidomida, misoprostol, warfarina, ácido valprói-
co); uso de drogas ilícitas; uso de bebidas alcoólicas; tabagismo; mutações gêni-
cas (que levam ao aparecimento de novas doenças); presença de doença materna
(diabetes melittus); e infecções (como toxoplasmose e sífilis, entre outras).
O risco de um casal saudável e não consaguíneo ter um descendente com
alguma malformação congênita é estimado em 1% a 5%. Quando é conhecido o
mecanismo de transmissão da doença, é possível a efetivação de aconselhamento
genético para que ocorra o devido planejamento e a realização de um pré-natal
adequado, permitindo que o diagnóstico precoce e preciso seja realizado e as
intervenções terapêuticas sejam estabelecidas o quanto antes.
A seguir faremos a descrição das principais características de algumas pa-
tologias congênitas mais comumente encontradas em nossa prática clínica.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 211


Artrogripose múltipla congênita (AMC)
Artrogripose provém de termo de origem grega, em que arthros significa
articulação, e grip, encurvada. Trata-se de uma síndrome complexa, que se carac-
teriza pela presença de contraturas articulares (com mais de três de articulações
acometidas) ao nascimento. As contraturas apresentam diversos graus de fibrose
das estruturas articulares e periarticulares, tais como músculos, cápsula articular,
tendões e ligamentos. Geralmente, observa-se o encurtamento e espessamento
desses elementos, e não há característica progressiva na evolução do quadro.
Há que se ressaltar que uma grande variedade de condições em que encon-
tramos contraturas articulares que são equivocadamente designadas como artro-
gripose. Entretanto, cada uma delas tem suas características específicas com
causas, história natural e tratamento direcionado.
O quadro de artrogripose clássica tem incidência de 1:3.000 nascidos vivos.

ETIOLOGIA
Trata-se de uma apresentação comum a uma grande variedade de doenças,
justificando-se a característica multifatorial na elucidação de sua etiologia. O
quadro típico de artrogripose, geralmente, está correlacionado com limitação dos
movimentos fetais (acinesia) após a 10ª semana de vida uterina. Na embriogêne-
se fetal normal, a formação dos membros apendiculares e articulações ocorrem
nas primeiras semanas de vida, e, quando ocorrem interferências nesse período
gestacional, o crescimento e o desenvolvimento dos membros podem ficar com-
prometido.

CLASSIFICAÇÃO
Em 1981, Hall (apud Bevan et al.3) classificou 350 casos de pacientes que
possuíam contraturas articulares em três grandes categorias:
1. Presença de contraturas articulares congênitas que envolvem primaria-
mente os membros. Este grupo pode ser subdividido em:
- amioplasia: que se refere ao quadro típico de artrogripose clássica;
- artrogripose distal: observa-se o acometimento principalmente das ex-
tremidades (mãos e pés).
2. Presença de contraturas articulares congênitas múltiplas e com envol-
vimento de outras áreas do corpo.
3. Presença de contraturas articulares congênitas múltiplas e com disfun-
ção do sistema nervoso central.

212 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


QUADRO CLÍNICO DA ARTROGRIPOSE CLÁSSICA
Os portadores de artrogripose clássica possuem os quatro membros (supe-
riores e inferiores) caracteristicamente envolvidos (Fig. 3). Observamos que os
membros superiores apresentam uma atitude típica, de rotação interna dos om-
bros, extensão dos cotovelos e flexão de punho e dedos.
Nos membros inferiores, nota-se uma variedade de deformidades combi-
nadas: quadris em flexo abdução e rotação externa, joelhos fixos em extensão ou
flexão, e pés tortos artrogripóticos (deformidade em equino varo ou varo aduto).
Nos casos mais comprometidos, pode ocorrer o envolvimento da coluna verte-
bral com variados graus de deformidades (escoliose).

Figura 3. Caso de amioplasia típica ou artrogripose clássica.

TRATAMENTO E PROGNÓSTICO
O tratamento dos portadores de artrogripose demanda abordagem de uma
equipe interdisciplinar composta por médicos e terapeutas especializados com
conhecimento da patologia, sua evolução e prognóstico funcional, para haver
melhor programação da reabilitação global.
A correção cirúrgica ortopédica das deformidades músculo-esqueléticas
apresentadas nos membros impõe um grande desafio, pois estamos lidando com
uma condição muscular anômala e com deformidades muitas vezes tecnicamente
muito difíceis de serem totalmente corrigidas. O perfeito alinhamento dos mem-
bros pode não ser suficiente para um bom prognóstico funcional, pois temos que
considerar a força muscular presente, principalmente nos músculos antigravita-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 213


cionais, para possibilitar o ortostatismo e a impulsão para movimentação ativa
para a deambulação.
Muitas vezes, na maioria dos casos é necessária a utilização de órteses em
membros inferiores para manter as correções obtidas com cirurgia, e ainda de
auxiliar de locomoção para que algum tipo de deambulação seja alcançado. Por-
tadores de AMC mais globalmente acometidos podem alcançar um padrão de
marcha para curtas distâncias e necessitar do uso de cadeira de rodas para sua
locomoção na comunidade.
No que se refere à realização de suas atividades de vida diária (AVDs),
que incluem cuidados com alimentação, vestuário, higiene e banho, a depender
do tipo de AMC, o comprometimento funcional pode demandar grande auxílio
de terceiros para obtenção de resultado efetivo.
A confecção de adaptações individualizadas requer a experiência do tera-
peuta, no sentido de conhecer o potencial motor do paciente, mesmo na presença
de deformidades limitantes; além disso, há que se respeitar o interesse e a moti-
vação do paciente na realização dessas AVDs.
Para os pacientes com prognóstico funcional mais reservado, nos quais se
observa grave comprometimento motor global, com força muscular bastante
precária em membros superiores e inferiores (às vezes com discreto esboço de
movimento), deve-se priorizar a manutenção do bom alinhamento vertebral e a
melhor independência possível dentro das suas limitações, pois, mesmo que
tenha poucas atividades funcionais, elas podem ser motivo de grande satisfação
e de realização pessoal. Nesses casos, torna-se imprescindível a prescrição de
cadeira de rodas com adequação postural, muitas vezes sendo útil a cadeira mo-
torizada, que permite o deslocamento desses pacientes de forma independente.
Geralmente, o aspecto cognitivo das crianças com AMC se encontra pre-
servado, o que possibilita a sua inclusão em escola da rede regular de ensino,
pois a compreensão permite o processo de alfabetização adequado à sua faixa
etária. Muitas vezes, a dificuldade motora global pode não possibilitar que a
criança apresente a capacidade de preensão de um lápis e de execução de uma
escrita funcional; entretanto, devemos lembrar que não se trata de um fator im-
peditivo para que ela adquira os conhecimentos oferecidos.
A abordagem da equipe interdisciplinar, dentro desse processo terapêutico
e abrangente, favorece o despertar e a sensibilização dos pacientes e de outros no
intuito de promover sua socialização e maior / melhor integração ao meio em
que convive, devendo possibilitar sua expressão através da música, da arte e
também do esporte adaptado.

214 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Deficiência congênita do fêmur (DCF)

Trata-se de malformação que se caracteriza pela ausência parcial ou total


do fêmur, o que pode levar ao comprometimento de todo o membro inferior.
Compreende amplo espectro de deformidades que são características da patolo-
gia. É descrita incidência de 1:50.000 nascidos vivos, e sua etiologia é desco-
nhecida na maioria dos casos estudados.

CLASSIFICAÇÃO
Este tópico é bastante discutido na literatura, da qual podemos citar as
classificações de Aitken2, de Pappas6 e, mais recentemente, a de Paley5. A classi-
ficação descrita por Paley é considerada aquela que possibilita o direcionamento
do prognóstico e do tratamento possíveis para a doença, conforme quadro a se-
guir.

Classificação de deficiência congênita de fêmur de Paley5.


TIPOS SUBTIPOS

1. Fêmur intacto e presença de mobi- 1A. ossificação normal do fêmur


lidade no quadril e joelho 1B. atraso na ossificação do fêmur

2. Pseudoartrose móvel (solução de 2A. Imobilidade da cabeça femural e no joelho


continuidade no fêmur proximal) 2B. Cabeça femural ausente ou rígida e presença de
mobilidade de joelho

3. Deficiência diafisária do fêmur 3A. Mobilidade de joelho maior de 45°


3B. Joelho rígido com mobilidade menor que 45°

QUADRO CLÍNICO
Dentre as principais características da deficiência congênita do DCF (Fig. 4),
podemos observar:
- discrepância dos membros inferiores, com encurtamento (de grau varia-
do) do membro acometido;
- diminuição do diâmetro e do comprimento da coxa ipsilateral;
- atitude em rotação externa e flexo-abdução do quadril ipsilateral;
- presença de instabilidade de joelho, em alguns casos até com subluxação
do joelho e patela;
- contraturas articulares de quadril, joelho e tornozelo;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 215


- associação com hemimelia fibular (outro tipo de malformação congênita
que acomete membro inferior) pode estar presente em cerca de 60% dos casos.

Figura 4. Deficiência congênita do fêmur de mem-


bro inferior direito.

TRATAMENTO E PROGNÓSTICO
A DCF pode ser considerada uma das mais difíceis e complexas patologi-
as que acometem o desenvolvimento do membro inferior, sendo necessário o
planejamento e a abordagem de uma equipe interdisciplinar e especializada.
O grande desafio no tratamento dessa doença está em obter uma equaliza-
ção do comprimento de membros inferiores, o alinhamento do membro e a cor-
reção das deformidades ortopédicas existentes.
O tratamento cirúrgico compreende duas vertentes que consistem da ci-
rurgia ablativa ou de reconstrução do membro afetado. A cirurgia ablativa pode
ser indicada nos casos em que a discrepância de membros na maturidade esque-
lética seja de tal magnitude que impossibilite o alongamento ósseo. A amputação
tipo Syme do pé, no nível do tornozelo, associada ou não com fusão ileofemural
(utiliza o joelho ipsilateral como uma articulação do quadril), pode ser necessá-
ria para obtenção de melhor função do coto com vestimenta de uma prótese.
Outro tipo de cirurgia a ser considerada é aquela que tem por objetivo a
reconstrução do membro afetado que inclui a correção das deformidades e o
alongamento ósseo, através da utilização do método com fixador externo tipo

216 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Ilizarov. Esse tipo de tratamento parece ter mais vantagens que a cirurgia ablati-
va; entretanto, devemos considerar a sua indicação naqueles casos em que há
possibilidades de execução, pois é muito complexo e de difícil execução. As
condições do quadril e do joelho devem ser favoráveis à sua realização.
A consideração de tratamento conservador está indicada naqueles casos
em que não há aceitação para qualquer realização de procedimentos cirúrgicos,
quando prescrevemos uma prótese não convencional que acomoda o pé em e-
quino máximo, mantendo o joelho rígido (Fig. 5).

Figura 5. Paciente com deficiência congênita de


fêmur utilizando prótese não convencional.

Nos casos em que há acometimento bilateral dos membros inferiores, a


baixa estatura é a regra, e geralmente está indicado o tratamento conservador,
sem indicações de procedimentos cirúrgicos.

Hemimelia fibular

Trata-se de malformação congênita caracterizada pela ausência parcial ou


total da fíbula. Abrange amplo espectro de malformações associadas que podem
acometer todo o membro, e não envolve simplesmente a falta de um osso longo
(fíbula).
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 217
A incidência da hemimelia fibular gira em torno de 1:10.000 nascidos vi-
vos, e em cerca de 60% dos casos pode estar associada com deficiência congêni-
ta do fêmur. A sua etiologia é desconhecida na maioria dos casos.

QUADRO CLÍNICO
Dentre as principais características clínicas desta malformação que aco-
mete o membro inferior (Fig. 6), podemos encontrar:
- encurtamento de variado grau do membro afetado em relação ao contra-
lateral;
- deformidade anterocurvomedial da tíbia ipsilateral;
- joelho e tornozelo com deformidade em valgo;
- associação de malformação do pé, geralmente com ausência dos raios la-
terais.

Figura 6. Presença de hemimelia fibular em


membro inferior direito (vista posterior).

CLASSIFICAÇÃO
Achtermann e Kalamchi1 classificaram a hemimelia fibular em dois tipos:
1. Ausência parcial da fíbula. Nesses casos, pode ser subdividida em dois
subtipos, a depender do comprimento da fíbula.
2. Ausência total da fíbula.

218 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


TRATAMENTO
Nos casos mais simples, nos quais a diferença no comprimento dos mem-
bros, no final da maturidade, é de poucos centímetros, a utilização de palmilha
e/ou compensação no solado do calçado pode ser a terapêutica mais recomendada.
O tratamento cirúrgico ortopédico visa a equalização de comprimento de
membros inferiores, sempre que possível. A correção das deformidades associa-
das e a obtenção de um pé plantígrado são as metas dessa terapêutica; entretanto,
há que se considerar a viabilidade de realização desse procedimento. Nos casos
em que a dismetria a ser atingida na maturidade esquelética for bastante acentu-
ada, torna-se inviável a cirurgia de alongamento ósseo (com fixador externo tipo
Ilizarov), sendo indicada a amputação tipo Syme (ressecção do pé), que nem
sempre é um tratamento aceito pela família e pelo paciente, sendo prescrita para
esses casos uma prótese não convencional (órtese-prótese), de forma a acomodar
o membro acometido com suas deformidades, e permitir deambulação razoável.
A cirurgia de amputação tipo Syme seguida de protetização está indicada para
aqueles em que existe malformação importante do pé, com presença de menos que
três artelhos no pé, ou quando a alteração é muito grave, comprometendo acentua-
damente a função do membro, e a cirurgia de reconstrução se torna inviável.
Levando em consideração todas as condições citadas e a aceitação pelo
paciente e pela família, a avaliação do tratamento individualizado dos portadores
dessa patologia deve ser criteriosa e definida após detalhado estudo das condi-
ções para a realização da conduta terapêutica mais adequada.

Hemimelia tibial

Trata-se de malformação congênita de rara aparição, que é caracterizada


pela ausência parcial ou total da tíbia, com a presença de uma fíbula geralmente
intacta. Abrange amplo espectro de deformidades do membro acometido. A sua
incidência é descrita em 1:1.000.000 de nascidos vivos, e sua etiologia ainda é
desconhecida na maioria dos casos.

CLASSIFICAÇÃO
Existem várias classificações de hemimelia tibial, porém a mais utilizada
é a descrita por Jones et al.4, que a dividiram em quatro tipos, de acordo com os
achados radiológicos:
1. Ausência da tíbia proximal (1a). Em alguns desses casos, podemos de-
tectar a presença de um molde cartilaginoso da tíbia proximal que se ossificará

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 219


posteriormente (1b).
2. Presença da tíbia proximal associada com fíbula intacta, que pode estar
em uma posição de migração superior.
3. Ausência da tíbia proximal, com presença da porção distal da tíbia e
presença de uma fíbula intacta, porém luxada superiormente.
4. Luxação congênita do tornozelo (diástese congênita do tornozelo).

QUADRO CLÍNICO
As características mais marcantes da hemimelia tibial (Fig. 7) incluem:
- discrepância entre os membros, com encurtamento do lado afetado;
- deformidade em varo do joelho e da perna;
- acentuada instabilidade do joelho naqueles casos em que não existe a tí-
bia proximal.

Figura 7. Hemimelia tibial com acometimento


bilateral de membros inferiores.

TRATAMENTO
O tratamento da hemimelia tibial é bastante controverso entre os especia-
listas. Os objetivos são coincidentes com aqueles propostos para o da hemimelia
fibular, mas são mais complexos e desafiadores.
A opção conservadora consiste no uso de uma prótese não convencional
que preserva o membro, na tentativa de acomodá-lo; porém, não é funcional ou
220 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
efetiva, pois as deformidades que envolvem joelho, perna e pé costumam ser
graves. Geralmente, os pacientes acabam não se adaptando a essa órtese-prótese
e optam pela deambulação com descarga do peso em joelhos e com as deformi-
dades das extremidades voltadas para trás dos membros.
Dentre as alternativas relativas a procedimentos cirúrgicos ortopédicos,
temos a amputação versus a reconstrução. Nos casos em que a amputação é ne-
cessária, o resultado pós-cirúrgico permite protetização adequada e bastante
funcional. A discussão dessas indicações é ampla e complexa, por isso constitui
motivo de grandes debates entre os principais centros especializados em ortope-
dia pediátrica do mundo.

Displasias ósseas
Os distúrbios que acometem a formação óssea e o tecido conectivo são
bastante raros e, quando presentes, se tratam de patologias desafiadoras e muitas
vezes de limitado tratamento.
Na literatura médica sempre houve muita confusão quanto à terminologia
empregada, pois os vários autores relatavam casos e síndromes usando epônimos
para muitas dessas condições clínicas, o que dificultava o entendimento de todos
os interessados.
O termo displasia, que foi amplamente referido e difundido pelo termo
“nanismo”, caracteriza-se de forma comumente semelhante, devido à baixa esta-
tura desses indivíduis, mas algumas características são peculiares a patologias
específicas. A palavra disostose é empregada quando as alterações afetam ape-
nas um osso ou parte do segmento do esqueleto.
As osteocondrodisplasias são doenças decorrentes do acometimento pato-
lógico da cartilagem e/ou do crescimento e do desenvolvimento ósseo, podendo
levar a graves deformidades angulares no esqueleto.
As displasias ósseas compõem um espectro de patologias que podem a-
cometer a formação da matriz óssea (por exemplo: osteogênese imperfeita), a
formação do osso endocondral (condroplasia), e da diáfise e/ou epífise do osso
(displasias metaepifisárias), e geralmente se apresentam com grande variedade
de expressão clínica. Trata-se de assunto extremamente extenso, motivo pelo
qual optamos pela descrição dos casos de osteogênese imperfeita, por se tratar de
condição que, apesar da rara aparição, tem expressão considerável em nossa
prática clínica.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 221


Osteogênese imperfeita (OI)
Trata-se de uma desordem de caráter hereditário, que acomete a formação
do tecido conjuntivo, levando a diversas desordens esqueléticas. A fragilidade
óssea é sua característica mais marcante. Em decorrência da acentuada alteração
na matriz do osso, ocorrem fraturas repetitivas que podem envolver todos os
segmentos do corpo. Manifesta-se clinicamente por deformidades angulares,
muitas vezes bastante curvadas, dos ossos longos de membros superiores e infe-
riores.
A sua incidência é estimada em 1:20.000-30.000 nascido vivos, e a sua
prevalência na América Latina, incluindo o Brasil, gira em torno de 4,3:100.000.
A transmissão hereditária é reconhecida. Entretanto, têm sido descritos
casos em que ocorrem mutações gênicas.

CLASSIFICAÇÃO
A classificação mais comumente utilizada foi descrita por Sillence7 em
1978, modificada em 1981, e expandida por outros autores, conforme demons-
trado no quadro apresentado na página seguinte.

QUADRO CLÍNICO
Dentre as principais características clínicas (Fig. 8), destacam-se:
- baixa estatura;
- fácies triangular típico;
- osteoporose generalizada e acentuada;
- frouxidão (hipermobilidade) ligamentar;
- esclera azulada (não presente em todos os tipos);
- dentinogênese imperfeita (não está presente em todos os tipos);
- perda auditiva (principalmente no tipo I e a partir da 2ª/3ª décadas de vida);
- variados graus de deformidades angulares nos ossos longos de membros
superiores e inferiores (tipo ântero, látero e/ou curvo). Podemos ter alterações
extremamente bizarras quanto à angulação nesses ossos;
- deformidades vertebrais na coluna (tipo escoliose);
- tórax tipo tonel;
- presença de ossos wormianos;
- sudorese excessiva.

222 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Classificação da osteogênese imperfeita proposta por Sillence7 e expandida por
outros autores.
TIPO GRAVIDADE QUADRO CLÍNICO HERANÇA
I Leve Estatura normal/baixa, esclera azulada, ausên- AD
cia de dentinogênese imperfeita (Autossômica Dominante)
II Letal ↑↑ fraturas ao nascimento em ossos longos e AD (maioria)
costela,↑osteoporose acentuada, esclera AR (Autossômica Recessiva)
azulada (mosaicismo)
II A Letal Ossos sanfonados, costela tipo “colar de AD
pérolas” (muitas fraturas)
II B Letal Ossos longos sanfonados AD
II C Grave Ossos longos finos fraturados, costelas tipo AD
contas
III Moderada Baixa estatatura, graves deformidades verte- AD (maioria)
brais e de membros, fácies triangular típico, AR (consaguinidade)
dentinogênese imperfeita
IV Moderada Baixa estatatura moderada, escoliose le- AD
ve/moderada, esclera branca
V Moderada Baixa estatatura leve/moderada, escoliose, AD
calo hiperplásico, esclera branca, sem denti-
nogênese imperfeita, deslocamento da cabeça
do rádio, membrana interóssea mineralizada
VI Moderada/Grave Baixa estatatura moderada, escoliose, presen- AD
ça aumentada de osteóides, esclera bran-
ca,sem dentinogênese imperfeita, padrão
escama de peixe no osso
VII Moderada Baixa estatura leve, encurtamento de mem- AR
bros proximais, coxa vara, semdentinogênese
imperfeita

Figura 8. Paciente com osteogênese imperfeita tipo III.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 223


TRATAMENTO E PROGNÓSTICO
Os pacientes portadores de OI tipo I são considerados mais levemente a-
cometidos pela doença, e geralmente apresentam bom prognóstico, favorável
para deambulação comunitária. Já aqueles que possuem o tipo II apresentam
grave acometimento global e fragilidade óssea, podendo ir a óbito ainda no pri-
meiro ano de vida, geralmente por um quadro de insuficiência respiratória ou
hemorragia intracraniana. O tipo III costuma apresentar grande número de fraturas
recidivantes em ossos longos de membros e achatamento vertebral que resulta na
formação de graves e acentuadas deformidades que, muitas vezes, são inviáveis
para correção cirúrgica (considera-se também a péssima qualidade óssea, com
estreitas diáfises de ossos longos); o prognóstico é bastante reservado para aqui-
sição de marcha funcional.
Os outros tipos de OI são considerados expressões clínicas intermediárias,
e o prognóstico de marcha é promissor para curtas/médias distâncias, com auxí-
lio de órteses e/ou aditamentos. Mesmo assim, pode ser necessária a utilização
de cadeira de rodas adaptada para locomoção na comunidade.
Com relação ao tratamento medicamentoso mais comumente utilizado, temos
o uso dos bisfosfonados (pamidronato, zolendronato), que têm por objetivo inibir a
reabsorção óssea e sua ação nos osteoclastos, e, assim, tentar reduzir o grau de fragi-
lidade óssea e consequente recidiva de fraturas e deformidades subsequentes.
O tratamento cirúrgico dessa patologia é visto como um grande desafio,
pois temos que lidar com a acentuada fragilidade óssea que dificulta ou não
permite a fixação de material de síntese, como placas e parafusos na parede cor-
tical do osso. Atualmente, têm sido utilizadas hastes intramedulares expansíveis
introduzidas na diáfise óssea após realização de osteotomias, as quais permitem
manter o alinhamento ósseo; são destinadas para os casos com prognóstico favo-
rável para a aquisição de marcha, ou indicadas simplesmente para evitar a gran-
de frequência de fraturas nos membros inferiores.
Antes de se considerar a possibilidade de indicações cirúrgicas, devemos
considerar uma série de fatores necessários para a sua realização, tais como pa-
rede cortical óssea razoável; pertuito da diáfise óssea que permita a introdução
de uma haste telescopada; presença de força muscular em membros inferiores e
superiores que possibilitem ortostatismo e impulsão; e, ainda, preparo psicológi-
co adequado para o paciente/família frente ao conhecimento da patologia e ris-
cos de ajustes e complicações.
Trata-se de uma doença que necessita a intervenção de uma equipe inter-
disciplinar com treinamento especializado, para que possa lidar com os receios

224 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


impostos pela patologia junto ao paciente e família, pois a possibilidade eminen-
te de fraturas e mesmo de mínimos traumas leva a um sentimento de superprote-
ção do cuidador em relação ao doente.
É comum encontrarmos situações de grande imobilismo nos portadores de
OI no seu cotidiano e a presença de um cuidador bastante temeroso a qualquer
manuseio, fazendo-se necessária a intervenção da psicologia em todos os casos.
O tratamento cirúrgico com objetivo de correção de deformidades angulares em
membros superiores e/ou inferiores pode não ser viável, mas continua se fazendo
necessária a abordagem de uma equipe interdisciplinar que visará a maior inde-
pendência possível do paciente, mesmo na presença de alterações esqueléticas.
A viabilização desse processo poderá permitir que os portadores de OI frequen-
tem o ambiente escolar adequado à sua faixa etária, além de convivência com
outros e socialização saudável.
Dentre os meios terapêuticos a serem utilizados, podemos ressaltar a hi-
droterapia, que traz grandes benefícios no processo de fortalecimento muscular e
mobilização articular global, além de permitir o ortostatismo com corpo imerso
em água e com menor risco para a ocorrência de fraturas dos ossos longos. O
empuxo da água permite essa regulação de carga no tecido ósseo adequando
carga e força à fragilidade óssea.
A aquisição de marcha funcional pode não ser o objetivo a ser consegui-
do; entretanto, há que se ressaltar que maior independência e a melhor qualidade
de vida possível podem ser metas a serem atingidas e de grande valia para porta-
dores de OI mais gravemente acometidos.

Considerações finais

As malformações congênitas, apesar de serem patologias de ocorrência ra-


ra, merecem a avaliação e a abordagem de uma equipe de médicos (ortopedista,
fisiatra, geneticista, pediatra, oftalmologista, otorrinolaringologista, pneumolo-
gista e outros) e de terapeutas especializados (fisioterapeuta, terapeuta ocupacio-
nal, fonoaudiólogo, psicólogo, musicoterapeuta, arterapeuta, pedagogo, assisten-
te social), pois nem sempre as deformidades existentes são passíveis de corre-
ções, e nem sempre é possível a aquisição de um padrão de marcha funcional. O
alcance de maior independência na realização de atividades de vida diária, a
possibilidade de se tornar produtivo profissionalmente e a melhor qualidade de
vida para os portadores dessas doenças e seus familiares serão o resultado de um
tratamento de reabilitação e interdisciplinar bem sucedido.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 225


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Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 227


6.2
DEFEITOS DO FECHAMENTO
DO TUBO NEURAL

Elizabete Tsubomi Saito Guiotoku


Fernanda Moraes Rocco

Dentre os defeitos de fechamento do tubo neural, a mielomeningocele é o


mais frequente, afetando cerca de 85% do total de casos. A mielomeningocele é
um tipo de malformação congênita da coluna vertebral e medula espinhal, carac-
terizada por paraplegia flácida e alteração sensitiva abaixo do nível da lesão, o
que implica em comprometimento neurológico, urológico e ortopédico. Outros
problemas gerais podem ocorrer, como obesidade (aumento da ingestão alimen-
tar e diminuição do gasto energético), úlceras de pressão (áreas de hiperpressão
sobre pele insensível), obstipação e/ou incontinência fecal e disfunção sexual
nos pacientes adultos. Entre os problemas neurológicos podemos citar a bolsa
(na mielomeningocele podemos visualizar uma bolsa revestida por epiderme que
contém em seu interior medula espinhal e raízes nervosas, ambas displásicas, e
envoltas por líquido cerebrorraquidiano), hidrocefalia obstrutiva (em 90% dos
casos causada por tamponamento do forame magno pelas amígdalas cerebelares)
e medula presa (tethered cord).
A melhora do tratamento intervencionista, como correção cirúrgica preco-
ce da bolsa e realização de derivação ventrículo peritoneal associadas ao trata-
228 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
mento adequado da bexiga neurogênica, tornará possível a esses pacientes atin-
gir a idade adulta.
Os defeitos do fechamento do tubo neural ocorrem entre a terceira e a
quinta semana de vida intrauterina, devido à falha na fusão dos elementos poste-
riores da coluna vertebral. A etiologia é desconhecida, mas com características
multifatoriais (genéticas e ambientais). Sabe-se que mulheres com dieta pobre
em ácido fólico (vitamina B9) possuem chance maior de terem filhos afetados
pela doença. A suplementação com ácido fólico para mulheres em idade fértil,
por pelo menos três meses antes da concepção, é considerada efetiva na preven-
ção da mielomeningocele. A incidência mundial é variável, sendo em média de
um para mil nascidos vivos. A chance de recorrência é de 5% para um segundo
filho, 10% para um terceiro filho e 25% para um quarto filho do mesmo casal. O
diagnóstico pode ser feito no período pré-natal por meio de ultrassonografia
morfológica (onde se observa alargamento do canal vertebral), dosagem de alfa-
fetoproteína (não específico, mas valor elevado é forte indício da doença), e
eletroforese de acetil-colinesterase no líquido amniótico.
A alergia ao látex pode ocorrer em até 30% dos casos dos pacientes com
mielomeningocele. O quadro clínico mostra sinais e sintomas inespecíficos,
como vômito, diarréia, rinite, conjuntivite ou urticária, e alguns pacientes podem
evoluir para choque anafilático, com edema de glote e óbito. Não existe trata-
mento específico para alergia ao látex. Os profissionais de saúde e os familiares
deverão ser orientados para evitar que o paciente entre em contato com produtos
que contenham látex.
Hoffer1 classificou a mielomeningocele em níveis funcionais de acordo
com o comprometimento neurológico: torácico, lombar alto, lombar baixo, sa-
cral e assimétrico. O nível torácico não apresenta movimentação ativa nos mem-
bros inferiores. O nível lombar alto apresenta funcionantes os músculos psoas,
adutores e, eventualmente, o quadríceps. O nível lombar baixo apresenta funcio-
nantes os músculos psoas, adutores, quadríceps, flexores mediais do joelho e,
eventualmente, o tibial anterior e/ou glúteo médio. O nível sacral apresenta fun-
cionantes os músculos acima citados e também possui função flexora plantar
e/ou extensora do quadril.
O prognóstico de marcha e os objetivos a serem alcançados na reabilita-
ção dependem não somente do nível neurológico, mas também da presença ou
não de deformidades ortopédicas, obesidade, rebaixamento do perfil cognitivo e
condições sócio-econômicas da família.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 229


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230 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


6.3
AMPUTAÇÕES ADQUIRIDAS

Laís Miller Reis Rodrigues

As referências mais antigas sobre amputações datam de 1.500 à 1.800


a.C., no manuscrito indiano (Rig-Veda) que relata a história da rainha Vishpla
que, devido a um grave ferimento sofrido em batalha, precisou ter o membro
inferior amputado.
Hipócrates fez a primeira descrição de amputação de membro por gangre-
na em torno de 400 a.C.; a técnica utilizada era a guilhotina em articulação e
tecido morto, sem sensibilidade, e a hemostasia era feita com ferro quente.
Herodotus (485-425 a.C.) fez referência a um pé de madeira confecciona-
do por um soldado persa, Hegistratus de Elias, que, após ter sido capturado e
preso pelo pé por soldados espartanos, teria amputado o próprio pé para conse-
guir escapar, e posteriormente retornou para guerra com seu pé protético.
A descrição seguinte foi feita por Aurelius Cornelius Celsus (25 a.C - 50
d.C.), e a técnica não era necessariamente realizada através da articulação, mas
entre o tecido saudável e a parte doente, preocupando-se em deixar o osso arre-
dondado, realizar a ligadura de vasos e reposicionar a pele para cobrir todas as
estruturas.
Dados históricos de membros superiores datam de 218-202 d.C., referindo
que o general Marcus Sergius perdeu a mão direita em uma guerra e foi proteti-
zado com uma mão de aço.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 231


O marco da evolução das técnicas cirúrgicas teve Ambroise Paré (1500-
1590) como responsável, descrevendo locais preferenciais para as amputações e
reintroduzindo a ligadura de vasos. Acredita-se que seja ele o responsável pela
primeira amputação transfemoral bem sucedida, e em torno de 1550 coube a esse
cirurgião militar francês o primeiro desenho de um membro protético.
Já no século XX, após a Primeira Guerra Mundial, houve a necessidade do
aprimoramento das técinicas cirúrgicas, assim como de aparelhos protéticos e cen-
tros especializados para o tratamento do grande número de mutilados no pós-guerra.

Incidência e etiologia
No Brasil não existem dados oficiais referentes à incidência de amputa-
ções; porém, estudos norte-americanos mostram que a incidência de amputações
de membros inferiores é de 130.000 por ano.
Dillingham et al.1 referem que amputações de membros inferiores corres-
pondem a 97% de todas as amputações.
Em relação à etiologia, a doença vascular periférica é a principal respon-
sável (82%), seguida pelos traumas (16%) e tumores (0,9%). O risco de amputa-
ções aumenta significativamente em pacientes com mais de 65 anos.
A proporção entre amputações de membros superiores e inferiores corres-
ponde 1:4,9, e a etiologia traumática é a principal responsável, seguida por tu-
mores e doenças vasculares. Dentre as causas traumáticas, estudos epidemioló-
gicos relatam que o acidente de trabalho é a mais frequente, correspondendo a
maior acometimento do membro superior direito.
Em levantamento realizado na AACD de maio a dezembro de 2008, foram
avaliados 111 pacientes. Dessa amostra, 69% eram do sexo masculino, e 31% do
sexo feminino, com média de idade de 49,6 anos. Dessa amostra, 90% dos casos
se referiam a amputações de membros inferiores, 8% a membros superiores, e
2% a amputações de membros inferiores e superiores associadas. As etiologias
mais frequentes para membros inferiores foram vascuopatia (57%), trauma
(27%), infecção (9%) e tumor (4%); para membros superiores, a principal causa
foi a traumática. Também foi possível observar que quanto maior a idade, maior
foi o índice de comorbidades associadas. Dentre as complicações descritas, as
mais observadas foram deformidades no coto, comprometimento de membro
contralateral, sensação fantasma, dor fantasma e neuroma doloroso.

232 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Reabilitação
A amputação de um membro, após todas as tentativas possíveis para pre-
servar a extremidade acometida, não deve ser entendida como falha da medicina
moderna, mas como parte do processo de reabilitação.
Para o sucesso do processo de reabilitação é indispensável uma equipe
multidisciplinar que tenha conhecimento da doença e do prognóstico funcional
para cada paciente, adequando suas expectativas durante o tratamento. Para de-
terminar o prognóstico funcional, devem ser levados em consideração fatores
como idade, etiologia da amputação, comorbidades e nível sócio-cultural. Não é
infrequente que a reabilitação do paciente amputado seja confundida com a pro-
tetização; porém, o objetivo principal é a funcionalidade, a independência nas
atividades de vida diária e a reinserção social, visando melhor qualidade de vida.
No início do tratamento (fase pré-protética) a equipe multidisciplinar ori-
entará o paciente em relação aos cuidados com o coto e membro contralateral,
preparando o paciente para uma possível protetização. O paciente será encami-
nhado para terapeutas específicos, de acordo com suas necessidades.
Nessa fase a ênfase é colocada na redução do volume do coto e dessensi-
bilização do neuroma doloroso, através de enfaixamento, massagens e meios
físicos, além de mobilização cicatricial. Também é necessário orientar posicio-
namento, trocas posturais, transferências, alongamentos e fortalecimentos mus-
culares, propriocepção e conscientização corporal. No caso das amputações de
membros inferiores, sempre que possível será iniciado treino de marcha e de
independência nas atividades de vida diária com auxiliares ou, quando isso não
for possível, o treino de independência será na cadeira de rodas. No caso das
amputações de membros superiores, quando necessário, deverá ser trabalhada a
troca de dominância e a confecção de adaptações para facilitar o dia a dia.
Durante o acompanhamento psicológico o foco será direcionado para a
autoimagem, autoestima e perda do membro, sendo muito importante tanto o
trabalho individual, quanto trabalho em grupo e, quando possível, a associação
com dança, música e arte.
Ao término da fase pré-protética e juntamente com liberação cardiológica
e estabilidade clínica, o médico prescreverá a prótese mais indicada, levando em
consideração a atividade física e a condição econômica de cada paciente.
Após a aquisição da prótese, o paciente passa para a fase protética, e as o-
rientações seguintes serão referentes à colocação e aos cuidados com a pele e
com a prótese. O treino de marcha é iniciado primeiramente entre barras parale-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 233


las, depois com auxiliares e, se possível, sem nenhum meio auxiliar em terrenos
planos, passando posteriormente para treino em terrenos irregulares e rampas.
No caso de próteses para membros superiores, além da colocação e dos cuidados
com a pele, o treino terá como foco a independência com a prótese associando-
se, quando necessário, adaptações para as atividades de vida diária.
Após todos os objetivos atingidos durante a reabilitação, o paciente conti-
nuará com acompanhamento médico e com orientações esporádicas nos setores
específicos, com a finalidade de checar a manutenção dos ganhos adquiridos
durante todo o processo.

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234 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


6.4
POLIOMIELITE

Fernando Facetta Jr.

A poliomielite é uma doença conhecida desde a Antiguidade. O documen-


to mais antigo sobre a existência dessa patologia está no museu de Kopenhagen,
e é representado por uma lápide egípcia do ano 1.580 a.C. A própria criação da
Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) em 1950, pelo Dr. Re-
nato da Costa Bomfim, tem raízes no tratamento dos pacientes com poliomielite.
Admite-se que foi descrita pela primeira vez por Underwood, em 1789,
passando a ser mais reconhecida a partir das pesquisas de Von Heine, em 1840.
É definida como uma doença infecciosa aguda de ocorrência endêmica ou
epidêmica, causada por um vírus que ataca o neurônio motor periférico.
Com o aumento do conhecimento sobre a doença, o nome que lhe havia
sido originalmente atribuído – paralisia infantil – tornou-se inadequado, pois,
no hemisfério norte, indivíduos em idades mais avançadas, como adolescentes e
mesmo adultos, também foram atingidos. Na epidemia de Danish em 1934, em
uma população de quatro milhões de habitantes, ocorreram 4.500 casos da doen-
ça, e um terço dessas pessoas estava acima dos 13 anos de idade.
Observou-se também que indivíduos com idade mais avançada eram fre-
quentemente de zona rural e apresentavam quadros mais graves. Em períodos
epidêmicos, indivíduos submetidos à amigdalectomia e/ou adenoidectomia pré-
via apresentavam maior incidência da forma bulbar e bulboespinal da doença.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 235


Nos meses mais quentes do ano, como o fim do verão e principalmente o
outono, havia maior incidência da poliomielite nos países de clima temperado,
em sua forma epidêmica.
Na epidemia de Nova York em 1916, registraram-se 13.200 casos e mor-
talidade de 27%. Em 1926, Biesalki relatou estatística na Alemanha computando
cerca de 30.000 inválidos em consequência da poliomielite, representando um
pesado encargo social.

Etiologia

O vírus pertence ao gênero enterovírus (sorotipos I, II e III), que resiste à


exposição à luz, calor e congelamento por longo tempo. O vírus da poliomielite
se transmite através de secreções da orofaringe dos portadores da doença, água e
alimentos contaminados, podendo ser encontrado nas fezes até seis semanas
depois do ataque agudo. Portadores sadios, insetos e animais domésticos tam-
bém têm sido responsabilizados pelo contágio. Possui alta infectividade; entre-
tanto, apresenta baixa patogenicidade, sendo que apenas 0,1%-2% dos indiví-
duos infectados desenvolvem a forma paralítica.

Patologia
Trata-se de uma infecção generalizada com comprometimento maior do
sistema nervoso central, no qual dois processos são reconhecidos como impor-
tantes: primeiro a hemorragia e o edema e, posteriormente, a destruição das célu-
las do corno anterior da medula.
Inicialmente ocorre uma meningite intersticial aguda pela infiltração de
pequenas células mononucleares na vizinhança dos vasos sanguíneos das lepto-
meninges, proporcional à vascularização da área, sendo mais pronunciada no
assoalho do quarto ventrículo, na região cervical e na região lombar, principal-
mente na fissura anterior onde os vasos penetram na medula.
A substância cinzenta do corno anterior da medula, que é altamente
vascularizada, mostra lesões acentuadas, e a substância cinzenta posterior quase
sempre é poupada.
A característica mais notável na poliomielite é a seletividade da paralisia e o
predomínio da paralisia muscular parcial sobre a total. As destruições costumam
ser regionais ou em pontos isolados, de modo que, como norma geral, não há en-
volvimento de todos os neurônios, exceto em casos graves de paralisia total.
236 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
As alterações que se observam da medula para cima com relação ao sis-
tema nervoso central (SNC) são principalmente intersticiais, enquanto que o
grupo celular do corno anterior constitui a localização principal da lesão paren-
quimatosa, parecendo haver especial afinidade pelas grandes células do corno
anterior da medula lombar. Em casos fatais, o vírus e as lesões se distribuem por
todo o sistema nervoso.
No início da fase crônica da poliomielite, verifica-se que, após a necrose
das células afetadas e fagocitose dos seus restos, ocorre proliferação da neuro-
glia, substituindo as estruturas nervosas destruídas. Como resultado da destrui-
ção das células do corno anterior da medula, o nervo periférico degenera, e os
músculos supridos entram em atrofia. A extensão da degeneração muscular de-
pende de quanto do nervo foi envolvido. Segue-se atrofia de desuso, e os ossos
também são envolvidos no processo patológico, tornando-se mais delgados e
com grau considerável de rarefação. A medula óssea é reduzida, e pode ocorrer
encurtamento por desuso e envolvimento dos centros nervosos. As cápsulas e
ligamentos articulares se tornam afrouxados e estirados, dando hipermobilidade
articular e ocasionalmente luxação.

Quadro clínico

Na etapa inicial (fase aguda), os sinais clínicos gerais de febre, taquicardia,


cefaléia, dor de garganta e perturbações gastrintestinais dominam o quadro nas
primeiras 24h a 48h, e não diferem de qualquer outra doença infecciosa da in-
fância. Segue-se um curto período afebril de um a quatro dias com melhora dos
sintomas gerais, e depois uma segunda hipertermia associada com sintomas do
SNC, como cefaléia, sonolência e sinais de irritação meníngea, como rigidez de
nuca, sinais de Kernig e Brudzinski.
Em um número variável de casos aparece a paralisia usualmente no tercei-
ro e quarto dias após o acesso febril, havendo casos em que as paralisias se esta-
belecem mesmo durante o surto febril. A paralisia pode ser limitada ou mais
extensa, sendo particularmente grave nos casos de forma bulbar com paralisia
respiratória, podendo culminar em morte. Na lesão da medula cervical, o centro
do nervo frênico (situado no terceiro e quarto segmentos cervicais) fica com-
prometido, e o diafragma paralisado compromete a inspiração. A paralisia do
diafragma associada à dos intercostais constitui obstáculo respiratório grave.
Alguns músculos ficam totalmente paralisados, enquanto outros, em grande nú-
mero, enfraquecidos, tornando-se dolorosos e sensíveis ao toque e à manipula-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 237


ção durante semanas.
Os primeiros reflexos a desaparecerem na fase paralítica são os abdomi-
nais e os cremastéricos. Os reflexos profundos normalmente são exagerados no
início da doença e desaparecem com o progresso da paralisia. Pode haver reten-
ção urinária temporariamente por dois a três dias.
Um sintoma comum nessa fase é a baixa da temperatura das extremidades,
podendo tornar-se cianosadas, se não forem protegidas.
A distribuição das paralisias varia grandemente, sendo caracteristicamente
assimétricas. Os músculos mais acometidos do membro inferior são o quadrí-
ceps, tibial anterior e glúteos.
A predominância de um grupo muscular sobre outro produz grande varie-
dade de deformidades. No membro inferior, devido à carga suportada, uma de-
formidade em qualquer uma das principais articulações causa repercussão nas
articulações vizinhas ou à distância, o que não acontece no membro superior.
Considerando-se a dinâmica da marcha, existem algumas deformidades
dentro do quadro de paralisias que ajudam a estabilizar o membro inferior e que,
portanto, não devem ser corrigidas, como, por exemplo, o pé equino de compen-
sação e o genu recurvatum na paralisia do quadríceps.

TIPOS CLÍNICOS
Os tipos clínicos são caracterizados pela predominância de alguns sinais e
sintomas. Em grande número de casos, apresentam-se como uma infecção geral,
com hipertermia, cefaléia, dores musculares difusas, dor de garganta, náuseas e
vômitos, sem quadro de paralisia associado, podendo simular várias doenças, e
ficando difícil pressupor que se trata de poliomielite anterior aguda. Em outros
casos, os sintomas predominantes são de dor, parestesias, anestesias, caracteri-
zando o tipo neurítico, nos quais não se observa o aparecimento de paralisias. No
tipo meningítico, são proeminentes os sinais de irritação meníngea, e tampouco
evolui com o aparecimento de paralisias. Pelo fato de não surgirem paralisias
nesses tipos referidos, foram chamados de abortivos pela maioria dos autores.
Nos tipos clínicos nos quais a paralisia surge de modo mais ou menos
comprometido, temos descrito o tipo espinal, que representa cerca de 75% dos
casos com paralisias de grau variável que se segue aos sintomas gerais, com
índice de mortalidade de 3%.
No tipo bulbar ficam comprometidos o 9º, 10º e 11º nervos cranianos,
com alteração na fonação, deglutição e paralisia respiratória, correspondendo de
10% a 20% dos casos, com mortalidade acima de 75%.

238 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O tipo cortical combina sinais pré-paralíticos gerais, como os da encefali-
te, com lesões do neurônio motor superior.

Diagnóstico

A forma espinal é a forma mais comum da poliomielite anterior aguda,


com período de incubação de dois a 30 dias, apresentando-se inicialmente com
sinais de infecção geral que culminam com quadro de paralisia flácida assimétri-
ca. Em uma criança apresentando esses sinais e sintomas em regiões em que
existe a prevalência da doença, é importante o exame do líquor por punção lom-
bar, principalmente para diagnóstico diferencial.
O principal exame a ser solicitado é a coleta das fezes, que deve ser feito pre-
cocemente, preferencialmente nas duas primeiras semanas do início da paralisia,
coletando-se duas amostras com intervalo mínimo de 24 horas. As fezes devem ser
conservadas entre +2 e +8ºC, até três dias, e após esse período em -20º ou -70ºC. O
diagnóstico sorológico pode ser feito, se for observado aumento de quatro vezes ou
mais do título de anticorpos neutralizantes ou fixadores de complemento.
Qualquer caso de paralisia flácida aguda em menores de 15 anos ou de
pessoas de qualquer idade com suspeita diagnóstica de poliomielite deve imedia-
tamente ser notificado ao serviço de Vigilância Epidemiológica da região ou à
Central de Vigilância Epidemiológica.
Outro exame importante a ser considerado é a eletroneuromiografia que, ape-
sar de não dar diagnóstico definitivo da doença, auxilia no diagnóstico diferencial.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Quadros que constituem diagnóstico diferencial para poliomielite incluem:
1. Infecção aguda sem paralisia, englobando febre tifóide, febre reumática
e doenças respiratórias.
2. Outras doenças do sistema nervoso, englobando encefalite letárgica,
mielite transversa aguda, meningite tuberculosa, meningite piogênica, spina
bífida oculta, paralisia espástica, polirradiculoneurite (Síndrome de Guillan Bar-
ré), polineurite alcoólica, e ataxia aguda.
3. Doenças com pseudoparalisia ou espasmo, como distrofia muscular
pseudo-hipertrófica e escorbuto.
4. Condições com fraqueza muscular devida a lesões outras que não a po-
liomielite, englobando tuberculose osteoarticular, pé torto, luxação congênita do
quadril, artrite aguda, osteomielite, LUES (sífilis), e mialgias.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 239


5. Outras infecções, como Coxsackie e Campylobacter jejuni.
O diagnóstico diferencial com essas diferentes patologias deve ser consi-
derado em qualquer caso de poliomielite anterior aguda. Cita-se que, no Centro
de Poliomielite Anterior Aguda do Hôpital dês Enfants Malades (Paris), entre
1947 e 1950, dos 509 pacientes diagnosticados com poliomielite na fase aguda,
em 71 (14%) não se tratava de poliomielite.

Tratamento

NOS PRIMEIROS DOIS MESES APÓS


O ATAQUE AGUDO DA DOENÇA
Durante os períodos de hiperestesia e espasmos musculares, o paciente
deve permanecer no leito. No entanto, esse período de imobilização não pode ser
muito prolongado, começando-se a movimentação o quanto antes possível, des-
de que assintomática e bem dosada.
Somente em casos de paralisias no tronco, e como prevenção de possível
escoliose paralítica, prolonga-se um pouco mais o repouso no leito com posicio-
namento funcional das articulações para evitar contraturas. Nos casos com para-
lisia respiratória, deve-se dar suporte ventilatório adequado, e as complicações
pulmonares devem ser evitadas, pois frequentemente levam à morte.
Nenhum tratamento fisioterapêutico ativo deve ser aplicado nesta fase,
aguardando-se o declínio da febre, os sintomas clínicos e a estabilização das
paralisias. O uso do calor como meio de diminuir a dor dos pacientes e os es-
pasmos musculares constitui recurso bastante eficaz, favorecendo a profilaxia
das contraturas e deformidades devidas sobretudo ao desequilíbrio muscular.

A PARTIR DO SEGUNDO MÊS ATÉ DOIS ANOS


APÓS O INÍCIO DA DOENÇA
A partir do segundo mês, estabelecida a maior parte da regressão espontâ-
nea das paralisias, três processos terapêuticos são principalmente empregados: a
fisioterapia, procurando obter o máximo de recuperação dos músculos atingidos;
o so de aparelhos ortopédicos, para tornar possível o ortostatismo e a reabilitação
da marcha; e a correção das deformidades e contraturas.

Fisioterapia
Para manutenção das boas condições das fibras musculares não afetadas,
as aplicações de raios ultravioletas (efeito estimulante) e a diatermia de ondas

240 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


curtas (efeito sobre a circulação e tono muscular) foram muito usadas no início.
A hidroterapia, contudo, se tornou um recurso direto e importante para desen-
volver o tono muscular, facilitando o exercício ativo dos músculos enfraquecidos
e eliminando a ação da gravidade.
A reeducação muscular dentro da fisioterapia é aparentemente a técnica
mais importante. Na reeducação muscular o objetivo principal é o músculo debi-
litado pela paralisia, e não o completamente paralisado, que vai responder ao
método reeducativo. O programa de reeducação muscular tem de ser elaborado
em etapas sucessivas, e cada uma das quais representa uma ação motora mais
completa que a anterior. Ensina-se primeiro o paciente a sentar e equilibrar-se,
passando em seguida a deambular, e terminando com movimentos mais comple-
xos das extremidades, requerendo-se, para isso, qualificação do profissional em
terapia física e reabilitação.
A reeducação muscular por exercícios metódicos é considerada excelente
por dissociar movimentos substitutivos em massa por treinamento muscular
individual e exercícios seletivos.
A massagem tem seu valor no sentido de estimular o fluxo sanguíneo veno-
so e arterial assim como o sistema linfático. Os músculos são manipulados direta-
mente, retardando a atrofia muscular pela melhora da circulação e nutrição local.

Aparelhos ortopédicos
No tratamento das sequelas da poliomielite, as principais indicações para
aparelhos ortopédicos (Fig. 1) são:
- Evitar deformidades;
- Suprir uma função deficiente ou perdida;
- Estabilizar o tronco e membros, possibilitando a locomoção.
No membro inferior, podem estabilizar:
1. Tornozelo e pé;
2. Joelho, tornozelo e pé;
3. Pelve, joelho, tornozelo e pé;
4. Tronco, pelve, joelho, tornozelo e pé;
Para prevenir deformidades, empregavam-se vários tipos de goteiras no-
turnas e aparelhos com hastes metálicas articuladas para serem usadas durante o
dia. As palmilhas e botas ortopédicas também se enquadram neste grupo.
A função mais importante e mais complexa dos aparelhos ortopédicos é
permitir a marcha, devendo-se, antes da prescrição, fazer uma análise minuciosa
das alterações estáticas e dinâmicas produzidas pelas paralisias.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 241


Figura 1. Órtese longa (à esquerda) e ortetização (à direita).

É preciso sempre considerar a cadeia cinética constituída pelo tronco e


membros inferiores e a estreita interdependência entre as diversas articulações,
pois a boa relação mecânica entre elas é essencial para a locomoção.
A correção das deformidades e o posicionamento correto das articulações
deve sempre preceder o planejamento do aparelho de marcha.

Correções das deformidades e contraturas


Muitas vezes nos deparávamos com contraturas e deformidades muito a-
centuadas, cuja profilaxia fora subestimada ou ignorada, que eram impossíveis
de serem corrigidas por métodos incruentos. Nessas eventualidades, muitas ve-
zes seremos obrigados a fazer uma tenotomia ou alongamento de tendão para
possibilitar a aplicação de uma órtese para marcha.
Isso, contudo, deve ser excepcional, devendo as intervenções cirúrgicas
serem realizadas somente a partir do segundo ano do início da doença. A corre-
ção de uma deformidade nesta fase deve ser seguida da aplicação de uma órtese
que impeça a recidiva.
Consideramos que grande número dos chamados “métodos incruentos” u-
tilizados no passado se tornaram obsoletos, como as osteoclasias, epifisiólises,

242 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


correções forçadas, trações e manipulações, por serem traumatizantes e de alto
risco de complicações, maiores que os métodos “cruentos” atuais.
Corrigidas as deformidades de uma maneira ou de outra, geralmente se
prescreve um aparelho ortopédico para permitir a marcha e evitar a recidiva da
deformidade.

TRATAMENTO A PARTIR DE DOIS ANOS APÓS


O ATAQUE AGUDO DA POLIOMIELITE
São em grande número os processos cirúrgicos idealizados e empregados
para o tratamento das sequelas tardias da poliomielite. As intervenções cirúrgi-
cas podem ser feitas praticamente sobre todas as estruturas do aparelho locomo-
tor. Em grande número podem ser classificadas nos seguintes grupos, segundo o
seu objetivo:
- Operações corretivas
- Operações restauradoras
- Operações estabilizadoras
- Operações associadas.

Princípios gerais do tratamento cirúrgico das sequelas tardias da


poliomielite no membro inferior
Em geral, as deformidades se encontram associadas. É muito comum o
encontro de deformidades complexas, como pode ocorrer, por exemplo, no qua-
dril, determinadas pela retração do trato ílio-tibial conhecida como síndrome da
fáscia lata, consistindo em uma atitude em flexo-abdução e rotação externa asso-
ciada à rotação tibial externa com flexão do joelho e com pé equino ou balante.
Outra associação frequente é a do pé equino com joelho recurvado.
Consequentemente, os processos cirúrgicos muitas vezes são realizados
em vários níveis. O plano cirúrgico deve ser cuidadosamente elaborado e, se
necessário, em diversos tempos, na ordem mais adequada.
Quando necessário intervir em diversas articulações do mesmo lado, é de
regra começar sempre pela articulação proximal para se obter posição correta em
relação ao tronco.
Se tivermos que corrigir um pé equino associado a um flexo de joelho,
devemos iniciar a correção pelo joelho, pois só então poderemos avaliar exata-
mente o encurtamento real e verificar a posição correta que deveremos dar ao pé,
conservando o grau de equinismo necessário à compensação. Ao fazer um alon-
gamento do tendão de Aquiles combinado com uma artrodese subtalar, será pru-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 243


dente começar pela artrodese, pois a ressecção que se faz das superfícies dessa
articulação já corrige parcialmente o equinismo.

Poliomielite no membro superior e tronco


É de grande importância assinalar que existe uma diferença fundamental
entre a função motora no membro superior e no inferior, no que se relaciona com
a adaptação da transferência muscular e seus resultados. No membro superior os
movimentos automáticos ou associados são mínimos, tendo cada músculo uma
função mais individualizada, podendo-se transferi-lo para exercer uma função
diversa da anterior com fácil adaptação. No membro inferior a função da marcha
se faz mais automaticamente graças a uma série de reflexos condicionados pela
sensibilidade proprioceptiva e exteroceptiva. Por isso, no membro superior, os
músculos apresentam função mais independente, podendo-se adaptar mais fa-
cilmente a novas situações, ao passo que, no membro inferior, o deslocamento
de um músculo altera significativamente um conjunto de movimentos interde-
pendentes ou associados de modo que não mais um só músculo, mas todo grupo
muscular sinérgico deve se readaptar às novas condições criadas pela cirurgia.
O membro superior é afetado com uma frequência muito menor que o infe-
rior (12% contra 47% na epidemia de 1946, e 16% contra 34% na epidemia de
1948 ocorridas em Iowa, EUA). Os músculos abdominais são comprometidos com
muita frequência. Nos casos mais graves se desenvolve uma lordose lombar na
paralisia simétrica e uma escoliose na paralisia assimétrica. Uma vez que esse tipo
de deformidade tende a se desenvolver na fase de sequela, todas as tentativas de-
vem ser feitas para reduzir a curvatura por meio de coletes, mesmo considerando
que o tratamento seja bastante demorado, cansativo e de resultados duvidosos.
Desde que se consiga uma correção, deve-se proceder a uma cirurgia de estabili-
zação e fusão vertebral em idade apropriada com as técnicas de instrumentação
atualmente utilizadas e que permitem correção adicional no ato cirúrgico.
Assim como para o membro inferior e como princípio fundamental no tra-
tamento dessa doença, todas as deformidades devem ser prevenidas ou corrigi-
das, cruentamente ou não, antes que se possa selecionar cuidadosamente a cirur-
gia mais apropriada ou mesmo uma ortetização, o que dependerá do local aco-
metido, grau da paralisia e idade do paciente. De início, também aqui as tentati-
vas devem ser dirigidas em primeiro lugar para a reabilitação funcional. Seria de
pouco proveito, por exemplo, estabilizar cirurgicamente o ombro na melhor
posição de abdução se o resto do membro está totalmente paralisado. Esta opera-

244 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ção poderia ser de utilidade somente se os dedos tivessem alguma atividade fun-
cional.
Além das operações corretivas, podem ser indicadas também operações
restauradoras do reequilíbrio muscular e operações estabilizadoras seguindo o
mesmo raciocínio usado para os membros inferiores, não devendo ser praticadas
antes de dois anos após o início da doença, pela possibilidade da melhora da força
muscular pelos tratamentos conservadores. Essas operações também estão mais
indicadas aos 10-12 anos de idade, possibilitando que os exercícios de reeducação
sejam mais rapidamente absorvidos e facilmente realizados pelo paciente.
A transferência muscular pode ser indicada para restabelecer o equilíbrio
muscular, prevenir ou corrigir deformidade e também para melhorar a estabili-
dade quando associada com a artrodese. Apesar de ser geralmente mais útil e
mais satisfatória para melhorar uma função, os resultados geralmente não cor-
respondem à expectativa. Contudo, algumas transferências dão uniformemente
bons resultados; por exemplo, a transferência da origem dos epicondilianos me-
diais, quando intactos, para um nível mais alto na paralisia dos flexores primá-
rios do cotovelo (bíceps, braquial e braquiorradial), conhecida como operação de
Steindler.
Bons resultados das transferências musculares também são referidos nas
paralisias de punho e dedos, principalmente na paralisia dos extensores do pu-
nho, sendo poucas as indicações de artrodese desta articulação.
De modo geral, as transferências musculares, consideradas sempre as ci-
rurgias mais fisiológicas para reabilitação dos movimentos e por não exigirem
grande força muscular, dão melhores resultados nos membros superiores, deven-
do ser a primeira escolha no tratamento das sequelas de poliomielite.
Na paralisia do deltóide, de início, pode-se fazer a transferência do trapé-
zio para o úmero ou a transferência do bíceps e tríceps para o acrômio. Contudo,
na maioria dos casos de paralisia do deltóide a operação de escolha é a artrodese
na idade apropriada.
Quanto à artrodese do cotovelo, ela raramente é indicada, mesmo na falha
das transferências musculares, pois o cotovelo pode ser controlado de modo
suficiente com um aparelho ortopédico.
Na transferência músculo-tendinosa do cotovelo, o objetivo principal deve
ser dirigido para a obtenção da flexão, sendo a extensão passiva pela ação da
gravidade. Em havendo extensores ativos no cotovelo, pode ser indicada a trans-
ferência para os flexores, na falha da operação pela técnica de Steindler ou para-
lisia dos epicondilianos.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 245


Síndrome pós-polio

A síndrome pós-polio é uma entidade clínica caracterizada por perda fun-


cional em pacientes previamente acometidos por poliomielite, vários anos após o
surto inicial.
Cerca de 50% dos pacientes com a poliomielite evoluem com a síndrome
pós-polio. Acredita-se que seja causada por disfunção da unidade motora afetada
pela pólio.
Os sinais e sintomas mais comuns são fadiga, fraqueza, dores musculares,
distúrbios da marcha, distúrbios respiratórios, distúrbios da deglutição, distúr-
bios do sono, intolerância ao frio, cãibras, fasciculações, novas atrofias, dificul-
dades nas atividades da vida diária.
Para se estabelecer o diagnóstico da síndrome pós-pólio, o paciente deve
apresentar: história confirmada de poliomielite, período de estabilidade após
recuperação da fase aguda, novos sinais e sintomas levando à perda funcional e,
por fim, a exclusão de outras patologias.
Em relação ao tratamento, ainda não se conhece nenhum medicamento
específico para essa patologia. O tratamento deve ser multidisciplinar, visando
diminuir a sobrecarga biomecânica, através da diminuição do gasto energético,
mas, ao mesmo tempo, preparando a musculatura para as atividades. Essa tera-
pêutica deve incluir exercícios de conscientização corporal (que auxiliam não só
o autocuidado como também orientações posturais), hidroterapia, fisioterapia
(alongamentos e fortalecimentos musculares criteriosos e cuidadosos e treino de
marcha), além de órteses que facilitem as atividades de vida diária.

Considerações finais

Graças ao tratamento preventivo proporcionado pelo advento das vacinas


Salk e Sabin, a Humanidade pode se considerar livre dos grandes problemas
médicos, sociais e econômicos causados pelas epidemias desta doença muitas
vezes fatal e altamente incapacitante.
As campanhas de vacinação em todo o mundo são essenciais para diminu-
ir e eventualmente erradicar a poliomielite. Para os que conviveram com esta
doença no passado, e que ainda guardam na memória os casos agudos de crian-
ças com a forma bulbar da doença (respirando com auxílio de câmaras de vácuo
denominadas de “pulmão de aço”), é uma grande felicidade e satisfação verificar
cada vez mais a ausência de suas vítimas nos nossos consultórios e ambulatórios,

246 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


vítimas essas que, por capricho de nossas vidas, nos permitiram grande experiên-
cia, aprendizado profissional e humano.
Dados da Organização Mundial da Saúde mostram, infelizmente, que a
doença aguda ainda é fato corrente principalmente na África Central e na Ásia
Menor, áreas em que está se intensificando as campanhas de vacinação via oral.

Bibliografia consultada

Campbell´s Operative Orthopedics. Saint Louis: C.V. Mosby Company; 1949. [Cap.
XXII. Anterior poliomyelitis].
Godoy FEM. Princípios fundamentais do tratamento da paralisia infantil (membro infe-
rior). Revista dos Tribunaes; 1939.
Mercer W. Orthopaedic surgery. 4. ed. London: Edward Arnold; 1950.
Steindler A. Post-gratuated lectures on orthopedic diagnosis and indications. In: Thomas
CC. Paralysis: Poliomyelitis. Illinois; 1954.
Silver JK, Gawne AC. Postpolio syndrome. Philadelphia: Hanley and Delfus; 2004.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 247


6.5
MUSICOTERAPIA PARA
CRIANÇAS E ADULTOS COM
CONDIÇÕES INCAPACITANTES

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Marilena do Nascimento

Para o sucesso do processo de reabilitação é indispensável uma equipe


multidisciplinar que tenha conhecimento da doença e do prognóstico funcional
para cada paciente, adequando suas expectativas durante o tratamento.
Para determinar a abordagem musicoterapêutica a ser utilizada em crian-
ças e adultos portadores de diferentes condições incapacitantes, devem ser leva-
dos em consideração fatores como idade, etiologia da doença, comorbidades e
nível sócio-cultural do paciente, assim bem como os aspectos terapêuticos es-
senciais levantados pela equipe multidisciplinar.
Como princípio metodológico, no primeiro contato não devemos aplicar
qualquer método predeterminado; é necessário, antes, encontrar o meio pelo qual
o paciente se expressa: pode ser o ritmo, o ruído, o som ou a melodia.

248 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Com a experiência adquirida no exercício da profissão de musicoterapeuta
em um Centro de Reabilitação de referência, posso afirmar que a intervenção
musicoterapêutica em pacientes com as diversas patologias incapacitantes des-
critas neste capítulo não foge à visão da prática da Musicoterapia, ou seja, so-
mente a partir dos dados adequadamente registrados na ficha musicoterapêutica
é que será possível e efetivo eleger a melhor conduta para a aquisição da saúde e
qualidade de vida do paciente.
Por outro lado, em um Centro de Reabilitação de referência, geralmente as
metas e objetivos terapêuticos são estabelecidos para curto e médio prazo, de
modo que o maior número possível de pessoas possa se beneficiar de um proces-
so reabilitacional. Desse modo, pacientes com essas doenças amplamente inca-
pacitantes de certa forma ficam em desvantagem, já que apresentarão necessida-
des específicas também em longo prazo, ou mesmo ao longo de toda a vida.
Com o propósito de reduzir essa desvantagem, tem sido nossa prática tra-
balhar individualmente com esses pacientes a aceitação do momento vivido, e
depois, sempre que possível, inseri-lo em um grupo aberto.
A experiência do trabalho dentro de uma comunidade em que o paciente
não é diferente (nessa situação apenas o terapeuta é o diferente) tem a sua mági-
ca. Quando acontece o trabalho individual, a questão fica dividida em dois po-
los: um elemento tem deficiência (paciente); o outro não (terapeuta).
No grupo, como são vários os elementos com deficiência, eles deixam de
ser diferenes para serem iguais, e o elemento que não tem a deficiência é que
fica em desvantagem...
Quando bem conduzida essa experiência, o grupo se une e inicia um pro-
cesso de autoconhecimento nunca antes explorado por cada um deles individu-
almente, tornando o ambiente mais facilitador inclusive em relação ao atendi-
mento individual.
O terapeuta deixa de ser a única referência, que passa a ser partilhada com
os membros do grupo, dentre os quais sempre há um (paciente), em cada grupo e
em diferentes momentos, que passa à liderança, assumindo, inclusive, o papel do
verdadeiro terapeuta do processo.
Daí, a partir desse momento mágico, será muito mais fácil construir uma
ponte para a inserção social.
Desconheço que haja uma receita prática de abordagem musicoterapêutica
para cada caso, mas considero que o acolhimento no atendimento individual, que
coloca no indivíduo ecológico o seu maior valor, constrói na relação terapêutica
o sentimento de confiança.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 249


Essa relação estabelecida entre o paciente e o terapeuta será o fator dife-
rencial para a evolução do tratamento e para o momento da indicação para o
trabalho em grupo.
Cabe ressaltar que, em alguns casos, os pacientes são resistentes, devido
tanto à exposição da deficiência quanto ao momento vivenciado na doença. São
refratários à alta ou ao trabalho em grupo. Nesses casos, é de importância fun-
damental o vínculo estabelecido na relação terapêutica para o sucesso da mudan-
ça de conduta.
Essa mesma confiança será novamente fundamental para o momento da
alta que, em um programa de reabilitação institucional, como já foi mencionado,
será temporalizada para curto ou médio prazo.
Para todos os profissionais que se dedicam à reabilitação física, com a vi-
são da reabilitação possível, o desafio da profissão será entender e introjetar
que:
 Conforme o comprometimento neurológico, na maioria dos casos a cu-
ra é impossível.
 A visão para a reabilitação será necessariamente a adaptação do pacien-
te ao melhor nível possível nos âmbitos social, físico e psicológico.
Dentro desse paradigma, o melhor serviço para o paciente é a inserção so-
cial na sua comunidade, amparado pela família e orientado para a melhor quali-
dade de vida possível.
Tem sido comum os pacientes receberem a orientação para programas que
apoiam a inserção social por meio do aprendizado e da cultura, dentre os quais
citamos o Instituto Efort (www.institutoefort.org.br), a Estação Especial da Lapa
(www.acessasp.sp.gov.br) e o Teatro de afásicos (www.seremcena. org.br).

250 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


7.
O BRINCAR E A MÚSICA

Lina Silva Borges Santos

É sabido que já ouvimos os sons mesmo antes do nascimento. O ventre


materno não é um local escuro e sem sons; muito pelo contrário, uma parte de
luz consegue entrar pela parede do estômago, principalmente em dias claros. O
corpo da mãe emite vários sons; as batidas do coração da mãe nos transmitem os
sons com ritmos; o pulsar do sangue nas veias também tem seu ritmo; o ar que
entra nos pulmões, o barulho do estômago na digestão, cada qual com sua melo-
dia aguda ou grave, ritmada ou descompassada. O bebê já vai colocando “músi-
ca” e sons em sua vida.
Ao nascer mais sons se juntam aos já conhecidos, mas um deles é inter-
pretado como o mais “gostoso de se ouvir”: a voz de minha mamãe. E assim são
responsivos a vozes humanas, e se dirigem para a localização desses sons já com
horas de vida. Os sons agudos são os preferidos, entrando neste conjunto a voz
feminina. Considerado universal, temos o fato dos homens que, ao falar para os
bebês, tornam suas vozes mais agudas para conseguir uma comunicação mais
eficaz.
Essa “fala de bebê” parece ser um fenômeno universal, diz Charles A.
Ferguson, linguista de Stanford. Ele revelou que mães de seis nacionalidades
diferentes passam repentinamente a fazer sons semelhantes e a usar sílabas sem
sentido, frases curtas e vozes de falsete, sejam quais forem suas línguas nativas5.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 251


Quando bebês ou ainda crianças pequenas, somos embalados por nossas
mães e avós com cantigas de ninar. Somos estimulados quando estamos acorda-
dos, com sons diferentes e com vários significados. Temos vários brinquedos com
música: móbiles, chocalhos, ursinhos, bonecas que cantam. E ainda temos nossa
mãe que canta e sorri para nós, em todos os ritmos, frequências, tonalidades.
É muito bom brincar de ouvir tudo o que está à nossa volta. Esses sons
trazem tranquilidade, agilidade, esperteza, movimento, gestos, sorrisos, choro,
mágica. A imagem 1 retrata a interação conseguida por meio do olho no olho
desde pequeno, traduzida em sorriso, mímica, sons e movimentos. A imagem 2
ilustra oportunidades de experimentar movimentos e sons: o controle dos ritmos,
da intensidade, depende de como me movimento e como quero fazê-lo.

Imagem 1. Imagem 2.

O brincar
O brincar é um fenômeno mundial. Ele existe em todas as raças, culturas,
povos, sem distinção econômica, social e cultural. Traz alegria para qualquer
parte de nosso universo, quando crianças, em uma proporção “gigantesca”, pois
vivemos para brincar e brincamos para viver. Já quando adultos, permanecemos
aptos e com habilidades para este brincar que, todavia, sofre interferências de
um mundo rápido, controlador, exigente e, por vezes, até “sem graça”.

252 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Além de ser um fenômeno humano universal, o brincar faz parte do reino
animal. Os animais de pequeno porte, principalmente os mamíferos, são vistos
brincando entre si de luta, de movimentos diversos, de se bater, de morder, de
pular de galho em galho etc., conforme exemplifica a imagem 3.
Porém, é a criança o ser que mais tempo brinca e que desenvolve as brin-
cadeiras mais complexas, sofrendo naturalmente interferências culturais e soci-
ais. A imagem 4 demonstra o mesmo comportamento de brincar dos filhotes
visto nas crianças.

Imagem 3. Imagem 4.

Conceito do brincar

É um trabalho difícil encontrar consenso para um conceito para o brincar.


Usam-se muito os termos “atitude lúdica”, recreação, jogar.

É comum, portanto, que os termos brincar e jogar, dentro da


Língua portuguesa, sejam usados como sinônimos, significando diver-
timento, passatempo, zombaria. A palavra brincar, no entanto, só existe
na nossa língua.3

Brincar é consagrar-se a uma atividade por diversão, pelo pra-


zer. O brincar não tem outra finalidade além de si próprio; a criança
brinca para brincar. Se aprende alguma coisa no seu decurso, é de certa
forma por acidente, pois não era esse o seu objetivo primeiro.4

Vários autores buscam definir o brincar, mas nota-se que sempre trazem à
tona a questão do prazer, do estar bem, do querer estar feliz, não importando se é

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 253


usado como um brincar por si só ou como um meio para a realização de uma
atividade. A definição dada por um menino de 8 anos, ao ser questionado sobre
o que era brincar e porque ele brincava, foi respondida sem demonstrar surpresa
nem dúvida: “Brincar é coisa de criança, e eu brinco porque sou criança, se eu
fosse gente grande trabalhava”.
As imagens 5 e 6 mostram a alegria do brincar na realidade do dia e na
imaginação de outros seres que fazem parte de nossa infância.

Imagem 5. Imagem 6.

Por que Brincar


Temos vários motivos a serem pontuados de por que brincamos. Abaixo
vamos relatar alguns dos benefícios que esse brincar desenvolve e proporciona:
 Descobrimos e determinamos os limites do corpo.
 Traz alegria e divertimento.
 Resolve conflitos e ansiedades.
 Desenvolve criatividade, competência intelectual, força e a estabilidade
emocional e... sentimentos de alegria e prazer; o hábito de ser feliz.
 Desenvolve confiança em si mesmo e em suas capacidades.
 Desenvolve percepções sobre as pessoas e compreensão das exigências
do mundo.
 Desenvolve flexibilidade e espontaneidade.
 Promove repetições para o domínio e controle do ambiente, confiança

254 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


para desenvolver habilidades motoras e mentais.
 Promove experiências sensoriais.
 Promove exploração de potenciais e limitações.
 Promove a manipulação dos objetos e nos ensina quais são as suas ca-
racterísticas, suas propriedades e os seus funcionamentos.
 “Ao brincar, a criança desenvolve, portanto, um saber-fazer e um saber-
se; por outras palavras, aptidões e atitudes que utilizará em diversas situações da
sua vida cotidiana”3.

Brincar é indispensável à saúde fisica, emocional e intelectual


da criança. É uma arte, um dom natural que, quando cultivado, irá con-
tribuir no futuro, para a eficiência e o equilíbrio do adulto.2

Para brincar, então, temos o motivo: a alegria.


E as vantagens: desempenho ótimo perante a vida.
A música entra neste brincar quando nos deparamos com a alegria de can-
tar, ouvir música, dançar e bailar. As imagens 7 e 8 mostram crianças prontas
para o baile, onde a música e o movimento serão os pilares de sua perfomace.

Imagem 7. Imagem 8.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 255


A música dentro do brincar
Ao iniciarmos nosso brincar “musical” nesse mundo, temos uma mãe que
canta para nós, brinquedos sonoros, cantigas de roda, instrumentos musicais à
nossa disposição, e iniciamos o som à nossa moda.
As imagens 9 e 10, nos mostram diferentes e semelhantes situações de
crianças vivendo em tempos diferentes de vida.
A imagem 9 data do ano de 1965, e a criança nela vista é hoje o pai da
criança retratada na imagem 10, em 2002. O que nos chama a atenção? Com
certeza, é a confirmação da universalidade do brincar e de sua perpetuação no
tempo e no espaço. O fato de termos em tempos diferentes da vida dessas duas
crianças a mesma situação do brincar, usando a música e seu instrumento como
motivador, nos deixa certos da definição já apontada pela criança de 8 anos: o
brincar é para crianças. Se brincar é experimentar um sentimento de controle
sobre o ambiente e, consequentemente, sobre os objetos nele presentes, podemos
sentir que dominamos parte de nossa vida. A criança define, sozinha, o tema de
sua música, o ritmo, o instrumento a ser usado, e desenvolve a sua brincadeira.
Nestas imagens, o tempo passou, fomos de 1965 para 2002. Mas... eles estão
com seus violões em seus braços, fazendo suas músicas, por motivos que co-
mungam do mesmo propósito e da mesma justificativa: ser feliz, porque sou
criança, e faço minha música e meu ritmo como eu quero e sei...

Imagem 9. Imagem 10.

256 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Os brinquedos
Brinquedos são definidos como coisa de criança; fazem parte do mundo
da criança desde o início de sua vida. Já no ventre da mãe, o bebê ganha seus
brinquedos coloridos, alegres, simples ou sofisticados. Eles são os meios utiliza-
dos para realizar a brincadeira. Assim que vai crescendo, a relação com esses
objetos vai se reforçando. O brinquedo é muito mais que só divertimento, é uma
oportunidade de desenvolvimento de aptidões, de experimentar escolhas, de
aguçar a curiosidade e promover a autoconfiança.
A história do homem pode ser contada através da história dos brinquedos.
Brinquedos vistos hoje em dia têm suas origens nas antigas civilizações. Temos
que as bonecas foram criadas há quarenta mil anos na Ásia e na África. Os cho-
calhos foram encontrados no Egito 1.300 a.C. As pipas surgiram na China, no
ano 1.000 a.C., junto com os ioiôs de pedra e cerâmica na Grécia. Vários brin-
quedos hoje produzidos e usados pelas crianças foram usados por seus pais e
continuarão sendo usados pelos seus filhos. Trata-se de uma atividade inerente à
condição humana. “Assim como as brincadeiras tradicionais, os brinquedos tam-
bém constituem uma espécie de herança cultural que se perpetua de geração em
geração através dos tempos. Fazer parte desta cadeia é uma experiência que po-
demos ter a felicidade de compartilhar com nossos filhos”7.
As imagens 11 e 12 nos mostram a construção de brinquedos comparti-
lhados entre adulto e crianças, e o produto final é a satisfação de ambos em
construir aquilo que pode trazer alegria e promover capacidade de criar e ser
criativo. Nestes casos estão sendo construídos instrumentos musicais que, com
certeza, produzirão sons e músicas que tocarão direto o coração cheio de alegria
e deixarão os papais cheios de orgulho.

Imagem 11. Imagem 12.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 257


As imagens 13, 14 e 15 mostram uma bateria musical construída na praia
com objetos variados. A criatividade e a imaginação foram os principais meios
para se conseguir o resultado final, ou seja, a formação de um baterista que po-
derá usar todos os seus talentos e experimentar todas as relações de causa e efei-
to possibilitadas por esses objetos juntos, o que permitirá o desenvolvimento de
sua capacidade criadora e de sua autoconfiança.

Imagem 13.

Imagem 14.

Imagem 15.

O brincar e a criança com dificuldades neuromotoras


As crianças com dificuldades motoras e sensoriais buscam e necessitam o
brincar como qualquer outra criança. Os motivos e benefícios que o brincar ofe-
rece são válidos também a elas e, por conseguinte, devem e podem existir dentro
de seu contexto de vida. O brincar, por si só, por vezes é alterado pela incapaci-
dade de exploração independente que essa criança tem. Mas esse brincar neces-
sário para a existência dessa criança requer fundamental atenção de todos os que
estão fazendo parte da sua vida.

258 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


As habilidades da criança com deficiência física em explorar, interagir e
dominar seu ambiente estão comprometidas pelas dificuldades motoras e/ou
sensoriais associadas.
Podemos entender como dificuldades motoras: a alteração de tono postu-
ral, as assimetrias, a falta de dissociações, a falta de coordenação manual, a falta
de locomoção, entre outras. Porém, cabe aqui afirmar que não existe falta do
desejo de brincar nessa criança.
O brincar, então, nesse contexto, é atividade de brincar, pois há interfe-
rência terapêutica, pela qual o brincar passa a ter objetivos definidos, já que é
um meio para se chegar a um fim. Mas, ao se avaliar do que brincar e como se
deve brincar, não são retirados os propósitos de bem-estar, de aumento de auto-
estima, de conhecimento e de aprendizagem que o brincar livre oferece.
Várias são as áreas da reabilitação que usam a atividade de brincar. A te-
rapia ocupacional é uma delas. Para tanto, o profissional dessa área realiza avali-
ação na qual as dificuldades sensoriais (baixa visão, perda auditiva, defensivida-
de tátil, desorganização espacial e proprioceptiva) e motoras (alteração de tono,
assimetrias, fixações, desequilíbrio muscular, falta de coordenação manual, difi-
culdades de preensão e alcance etc.) são convertidas em propostas de interven-
ção.
Outros fatores que interferem no brincar da criança com dificuldades são:
- a baixa motivação e a baixa autoestima que essas crianças apresentam,
decorrentes muitas vezes das frustrações advindas da falta de habilidade motora
de execução;
- a maior dependência de outros para a promoção de seu brincar;
- a dificuldade de desenvolver habilidades sociais, vindas muitas vezes
das restrições sociais a que essas crianças são submetidas;
- os fatores sócio-econômicos que impedem aquisições de materiais e
brinquedos, e a possibilidade de adaptações ambientais e/ou estruturais;
- limitação dos próprios cuidadores quando apresentam atitudes de super-
proteção, ou de valorizar exclusivamente “exercícios físicos”, relegando o brin-
car como algo “supérfulo e desnecessário no contexto da deficiência”.

Atividade de brincar
Ao se usar o brincar como atividade de brincar, como ocorre nos casos das
terapias, alguns pré-requisitos precisam ser considerados:
- a terapia deve ser prazerosa buscando motivação, alegria, divertimento;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 259


- deve existir o conhecimento das dificuldades da criança, e o favoreci-
mentoento das habilidades necessárias para seu melhor desempenho;
- deve-se permitir escolhas e ter suficiente conhecimento sobre como ofe-
recê-las;
- deve-se ter conhecimento das relações dos objetos, ambiente e suas pro-
priedades para promoção do seu uso de forma adequada;
- deve-se instigar e promover a competência, a autonomia e a independên-
cia, quando possível;
- deve-se promover o bem-estar geral.

Imagem 16. Imagem 17.

Imagem 18. Imagem 19.

Consideraçoes finais

“Brincar é um direito fundamental reconhecido pela Convenção Interna-


cional dos Direitos da Criança (ONU, 1989). Pode se ler no artigo 31: Os esta-
dos partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direi-
to de participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade.”4
260 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
Em nossa sociedade, o brincar é valorizado como meio de aprender e de-
senvolver habilidades físicas, emocionais, sociais, culturais. Toda criança tem o
direito de brincar e de construir brinquedos, brincadeiras. O ato de brincar é
inerente à condição humana, é intrínseco à vida e traz aprendizado, experiências,
que vão contribuir para a formação da pessoa adulta. A criança com ou sem difi-
culdades é naturalmente curiosa, ela sempre se sente atraída pelo ambiente que a
cerca.
Os brinquedos que são colocados à sua disposição serão sempre manusea-
dos com prazer, curiosidade, motivação, em busca de aprendizado ou do próprio
prazer da descoberta de brincar; porém, na criança com dificuldades, especial-
mente motoras, esse manuseio dos objetos necessita intervenção terapêutica, de
modo que os manuseios facilitem tono e fixações para que deem lugar a ampli-
tudes de movimento funcionais que a torne capaz de execução.
Deve-se sempre encorajar a participação ativa da criança, com ou sem di-
ficuldades, em todas as atividades de brincar, para que todas as experiências
conseguidas possibilitem o uso de todos os sentidos e movimentos. Também
para que se possa promover a interação com outras crianças e adultos, aprenden-
do várias habilidades, princípios e valores sociais.
Brincar é um direito da criança e um veículo de aprendizagem sobre o
meio em que se encontra.
Não brincar significa não ser criança.
Para brincar, há brinquedos, brinca-
deiras, movimentos, cantigas, ritmos, sons.
Brincar de música faz parte da infância, e
manusear os instrumentos refletem a trans-
missão de geração para geração de uma
brincadeira tradicional, que não é simples-
mente uma parlenda ou rima infantil que
está sendo ensinada, e sim é uma concep-
ção de mundo que está sendo manifestada;
diferentes realidades e contextos sociais e
culturais se expressam por meio das brin-
cadeiras.
É importante ressaltar que devemos
estar atentos para a qualidade das oportuni-
dades que estão sendo oferecidas às crian-
ças, principalmente as que possuem difi-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 261


culdades motoras / sensoriais, uma vez que muitas delas necessitam de nossa
intervenção direta para executar esse brincar e, assim desenvolver suas potencia-
lidades.

Referências
1. Carneiro MAB, Janine JD. A descoberta do brincar. São Paulo: Melhoramentos / Boa
Companhia; 2007.
2. Cunha N. Brinquedos, desafios e descobertas. Petrópolis: Vozes; 2005.
3. Dorothy E. Aprender cedo. Lisboa: Estampa; 2005.
4. Ferland F. Vamos brincar? Na infância e ao longo de toda a vida. Lisboa: Climepsi
Editores; 2006
5. Klaus M, Klaus P. O surpreendente recém-nascido. [Tradução de Maria Cristina Gou-
lart Monteiro]. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989.
6. Moyles JR. Só brincar? O papel do brincar na educação infantil. Porto Alegre: Art-
med; 2002.
7. Zatz S, Halaban S. Brinca comigo! Tudo sobre brincar e os brinquedos. São Paulo:
Marco Zero; 2006.

262 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


8.
AS ADAPTAÇÕES NA
MUSICOTERAPIA

Lina Silva Borges Santos

O processo de reabilitação tem, dentro de um contexto geral, o objetivo de


otimizar a independência e a autonomia do indivíduo com incapacidade, para
que ele possa se tornar o ser que promove o seu próprio bem-estar e suas pró-
prias ações e escolhas. Dois profissionais, neste momento, agem em parceria na
busca desse objetivo: são eles o terapeuta ocupacional e o musicoterapeuta.
Na prática da Musicoterapia, os instrumentos musicais que são utilizados
em um centro de reabilitação podem ou não ser adaptados. Essas adaptações
dependerão da necessidade de cada paciente, como também do quão motivado
esse paciente está para desempenhar a tarefa.
Para promover a adaptação do instrumento musical, o musicoterapeuta
busca junto à sua equipe de trabalho o profissional de Terapia Ocupacional para,
juntos, em uma tríade <TO – Paciente – Musicoterapeuta>, identificarem como
deve ser realizada essa daptação, e em que demanda ela está embasada. Cabe
aqui a tarefa ao Terapeuta Ocupacional, pois é ele quem realizará a avaliação
funcional do desempenho do paciente e, a partir daí, elaborará um plano de ação
conjunta, para que o desejo inicial do paciente e do musicoterapeuta quanto ao
uso do instrumento musical seja efetivado.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 263


A terapia ocupacional e o processo de adaptação
Terapia Ocupacional é uma disciplina da saúde que se preocupa
com pessoas que estão fisicamente e/ou mentalmente prejudicadas, de-
sabilitadas ou em desvantagem, seja temporária ou permanentemente.
O Terapeuta Ocupacional habilitado envolve os pacientes em a-
tividades destinadas a promover o restabelecimento e o uso máximo de
suas funções, com o objetivo de ajudar essas pessoas a satisfazer as
demandas que podem ser profissional, pessoal e doméstica e a partici-
par da vida num sentido mais amplo.3

E a adaptação é “um ramo da tecnologia assistiva que se define como a


modificação da tarefa, método e meio ambiente, promovendo independência e
função. O ato de adaptar promove ajuste acomodação e adequação do indivíduo
a uma nova situação”3.
Para que o processo de adaptação traga as respostas desejadas, o terapeuta
ocupacional deve realizar uma avaliação do paciente focalizando todo o seu
contexto de vida, e não somente a prescrição da adaptação. A sua necessidade
deve ser levada em consideração, e a interface com o processo da Musicoterapia
também, ou seja, é preciso identificar em que momento ele está dentro deste
processo que é construído de vários momentos.
Ao adaptar instrumentos, introduzir posturas facilitadoras, intervir em e-
quipamentos no setor de Musicoterapia, o terapeuta ocupacional está contribuin-
do diretamente para melhora de perfomace em uma área que contém estratégias
diferenciadas para ganhos motores (destreza manual e outros), melhora da co-
municação e da fala e, principalmente, aumento da autoestima. “A musicoterapia
rompe o conceito de vulnerabilidade, uma vez que as possibilidades do paciente,
sejam elas quais forem, são tomadas como condição real e inegável, na qual se
articula e se dá o progresso. A face artística da abordagem terapêutica, num dado
momento, conduz o paciente a romper as barreiras da patologia, revelando po-
tencias de expressão. E, como na arte, quando há qualquer potencial de expres-
são, se torna uma necessidade”2.

Segundo Trombly, o processo de adaptação envolve sete aspectos:


1. Análise da tarefa: identificação das habilidades do indivíduo
versus ambiente físico.
2. Identificação do problema.
3. Reconhecimento dos princípios de compensação: por exemplo,
talher angulado.

264 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


4. Propostas de soluções: utilização de criatividade do terapeuta
em conjunto com a colaboração do paciente e da família.
5. Conhecimento de recursos alternativos para solução do pro-
blema.
6. Verificação periódica da adaptação.
7. Treinamento, visando ao uso funcional da adaptação.3

No caso das adaptações para instrumentos musicais, a análise é realizada


em conjunto com o musicoterapeuta, situação em que as particularidades instru-
mentais precisam ser consideradas, pois o produto final geralmente é auditivo e
sonoro. Não se pode correr o risco de a melodia e o ritmo serem perdidos ou
alterados. Além do mais, o treinamento dessa adaptação será realizado pelo mu-
sicoterapeuta, uma vez que é o seu processo em questão. Cabe dizer, aqui, o
quão importante é essa parceria entre os dois profissionais, para que os ajustes
necessários possam ser realizados e transformados segundo as necessidades e
para que as revisões sistemáticas dessa adaptação sejam realizadas e monitora-
das. Todo esse processo ocorre com supervisão de casos, que é solicitada pelo
musicoterapeuta quando avalia, inicialmente, tanto a necessidade para os pacien-
tes de adaptar os instrumentos quanto as interferências nos mobiliários, para que
seu processo consiga alcançar o desenvolvimento estabelecido. Essa supervisão
é realizada in loco, com o paciente em atividade no Setor de Música, e essa par-
ticipação do terapeuta ocupacional no setor vai acontecer quantas vezes forem
necessárias, até que o paciente e o musicoterapeuta concordem em que a etapa
que envolvia o terapeuta ocupacional está finalizada no momento.
Nas páginas seguintes, são apresentados exemplos de adaptações e mobi-
liários usados no Setor de Musicoterapia da AACD – Associação de Assistência
à Criança Deficiente em parceria com a Terapia Ocupacional.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 265


ESPELHO MÓVEL

Especificações:
Altura do espelho: 1,70 m
Largura do espelho: 70 cm
Altura do lateral: 40 cm
Largura da lateral: 50 cm
Rodízios: de chapa de 3”

A utilização deste espelho facilita a autocorreção da postura, a lateralidade


e a expressão corporal.

266 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


PRANCHA INCLINÁVEL COM REGULAGEM DE ALTURA

Especificações:
Largura: 54 cm
Comprimento: 39 cm
Altura: de 19 a 28 cm, com intervalo de 1,5 cm (as medidas po-
dem variar, de acordo com as necessidades do paciente)
Observações: Coloca-se uma borda na parte inferior da prancha para
apoiar a folha. A prancha deve ser forrada com fórmica.

O uso dessa prancha auxilia na percepção visual, uma vez que permite a
aproximação das imagens a serem vistas, como no caso de partituras etc.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 267


MESA COM RECORTE E PÉS DOBRÁVEIS

Especificações:
Largura: 60 cm
Comprimento: 56 cm
Altura da mesa: 50 cm
Recorte da mesa: 16 cm
Observações: A mesa deve ser forrada com fórmica.

Para a manipulação de instrumentos musicais, a criança deverá estar bem


sentada e posicionada, com os pés apoiados, liberando os membros superiores
para a função, com estabilidade de tronco e altura adequada para apoio dos
membros superiores sobre a mesa.

268 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


SUPORTE PARA TRIÂNGULO, METALOFONE E OUTROS
INSTRUMENTOS DE PERCUSSÃO

Este suporte facilita a utilização de baquetas, mesmo quando o paciente se


encontra sentado em banco baixo ou no chão.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 269


SUBSTITUIDOR DE PREENSÃO PARA BAQUETA

Trata-se de adaptação realizada em material termomoldável para paciente


com Distrofia Muscular, com dificuldade de manter a preensão dos objetos.

SUPORTES PARA PANDEIRO,


COM ALTURA E INCLINAÇÃO VARIÁVEIS

270 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ADAPTAÇÃO PARA FLAUTA PARA PACIENTE COM
DISTROFIA MUSCULAR CONGÊNITA

CADEIRAS PARA O SETOR DE MÚSICA

A cadeira utilizada no Setor de Musicoterapia (à esquerda) será adaptada


(à direita) mediante a necessidade do paciente do ponto de vista de altura e de
profundidade, de modo a favorecer a postura adequada.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 271


CONJUNTO DE ESPUMAS PARA ENCOSTO DE CADEIRA

Esse conjunto de espumas serve para complementar a adaptação da cadei-


ra, conforme a necessidade do atendimento do paciente.

POLTRONINHA

Favorece a intervenção pela adaptação da profundidade desejada das ca-


deiras.

272 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ADAPTAÇÃO FEITA COM MATERIAL TERMOPLÁSTICO
PARA PACIENTE COREATETÓIDE, PARA INTERAÇÃO COM
TECLADO ELETRÔNICO

ADAPTAÇÃO TRIANGULAR (para facilitação da preensão em pinça)

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 273


TUBOS DE ESPUMA (para facilitação da preensão)

Esses materiais (adaptações triangulares e tubos de espuma) são encontra-


dos no mercado especializado (casas de aparelhos ortopédicos) e servem para
facilitar a preensão e o manuseio, e podem ser adaptados a baquetas e a outros
instrumentos musicais como, por exemplo, o chocalho.

274 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


BIG KEYBORAD

Instrumento musical desenvolvido com material resistente ao toque com a


mão fechada (em punho), que facilita o processo de atividade física dos mem-
bros superiores. Este equipamento funciona em interface com o teclado, utili-
zando todos os recursos do teclado interfaceado.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 275


MATERIAIS ENCONTRADOS NO MERCADO DE
INSTRUMENTOS MUSICAIS

ADAPTAÇÃO PARA PALHETA DE VIOLÃO

276 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


TAMBOR ADAPTADO

Especificações:
Comprimento: 32 cm
Profundidade: 26 cm
Altura: 44 cm
Tela para prender a pele: 36 x 26 cm

Tambor confeccionado para ser


colocado embaixo da cadeira e ser
tocado com os pés, geralmente para
crianças com grande movimentação
involuntária de membros superiores.

BANCOS DE MADEIRA PARA APOIO

Especificações:
Banco Comprimento Largura Altura
1 56 cm 24 cm 58 cm
2 51 cm 24 cm 51 cm
3 46 cm 24 cm 44 cm
4 42 cm 24 cm 36 cm
5 38 cm 24 cm 29 cm
6 33 cm 24 cm 22 cm
7 30 cm 24 cm 15 cm
8 26 cm 24 cm 8 cm

Para serem utilizados para apoio


dos pés e facilitar as alturas posturais
necessárias que favoreçam a execução de
instrumentos, com melhor controle pos-
tural e transferência de peso.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 277


COLETE DE NEOPRENE

O colete possibilita o posicionamento de tronco, proporcionando melhora


do desempenho dos membros superiores no uso do instrumento.

ADAPTAÇÃO DE BAQUETAS PARA BATERIA

Adaptação feita para paciente com malformação congênita de membros su-


periores.

278 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ADAPTAÇÃO PARA BERIMBAU

Esta adaptação para berimbau foi realizada pelo próprio capoeirista.

Considerações finais
A Musicoterapia na reabilitação é a utilização da experiência
musical e das relações que se desenvolvem através delas, como meio
para ajudar pessoas que foram debilitadas por doenças, lesões ou trau-
mas a readquirirem os níveis anteriores de funcionamento ou adapta-
ções na extensão do possível.1

Dentro do universo da reabilitação, o terapeuta ocupacional e o musicote-


rapeuta trabalham em conjunto, quando necessário, na busca pela habilitação e
reabilitação do indivíduo. É sabido que se fazem necessárias adaptações, ajustes
posturais e intervenções por meio de manuseios para a adequação do tono mus-
cular e das possibilidades de dissociações de movimentos etc. Mas esses profis-
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 279
sionais em conjunto precisam estar atentos ao ambiente no qual o paciente está
inserido, pois esse ambiente é considerado o primeiro momento de motivação e
estimulação para o paciente para que qualquer modalidade de intervenção acon-
teça. O trabalho em equipe aqui descrito tem o paciente e sua família como os
membros mais importantes da equipe, porque somente assim as dificuldades
iniciais poderão ser transformadas em desempenho funcional e em consequente
autonomia.

Referências
1. Fernandes AC, Ramos ACR, Casalis MEP, Hebert SK. Medicina e reabilitação: Prin-
cípios e prática. São Paulo: Artes Médicas; 2007.
2. Lima CLA, Fonseca LF. Paralisia cerebral: Neurologia, ortopedia, reabilitação. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan; 2004.
3. Teixeira E, et al. Terapia ocupacional na reabilitação física. São Paulo: Roca; 2003.

280 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


9.
PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO
EM MUSICOTERAPIA PARA O
SISTEMA DA QUALIDADE
VISÃO DO CENTRO DE REABILITAÇÃO DA AACD

Marilena do Nascimento

O Centro de Reabilitação da AACD, por sua excelência ao atendimento à


pessoa com deficiência física e neurológica, possui a certificação do Sistema da
Qualidade ISO-9001 para prestação de serviços de reabilitação e tem os proce-
dimentos de todos os setores alinhados a essa filosofia. Os procedimentos tera-
pêuticos seguem rigorosamente as exigências dessa certificação. Segue a descri-
ção parcial dos procedimentos em Musicoterapia, que se encontra arquivada na
íntegra em pasta do setor e no Escritório da Qualidade da AACD.

Avaliação inicial
O procedimento de avaliação inicial tem por objetivo levantar os dados
pessoais do paciente (adulto ou criança) e informações sobre suas condições
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 281
psico-afetivo-motoras e suas funções de musicalidade, para identificar objetivos
musicoterapêuticos na visão da reabilitação física / cognitiva aplicada no setor
de Musicoterapia.

DEFINIÇÕES
- Anamnese: histórico biográfico e clínico do paciente.
- Ficha musicoterapêutica: histórico sonoro-musical do paciente.
- Testificação sonoro-musical: é uma etapa específica e complementar da
ficha musicoterapêutica, na qual se observa a reação aos sons, ao ritmo, aos dife-
rentes instrumentos, ou seja, o que os estímulos sonoros provocam no paciente.

DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
A avaliação é individual. São atendidas crianças de 8 meses a 16 anos e
11 meses, e adultos a partir de 17 anos. A avaliação infantil ou de adultos é rea-
lizada em sessão com uma hora e 20 minutos de duração.
Na avaliação é realizada a coleta de dados no prontuário do paciente e en-
trevista com o responsável / cuidador. O musicoterapeuta preenche o formulário
de Anamnese de Musicoterapia e a Ficha Musicoterapêutica. A partir dos dados
colhidos, elabora-se o relatório de avaliação inicial.
No caso do enquadramento do paciente no setor, o musicoterapeuta deve
transmitir ao responsável / cuidador / paciente os objetivos terapêuticos defini-
dos. O paciente poderá ser enquadrado em um dos seguintes procedimentos:
 Atendimento individual;
 Orientação;
 Grupo musicoterapêutico infantil;
 Grupo Fonoaudiologia e Musicoterapia (infantil / adulto);
 Grupo Psicologia e Musicoterapia.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: todas as clínicas atendidas na instituição.
Origem: encaminhamento pelo setor médico, Avaliação Global (avaliação
multiprofissional) ou reuniões de discussão de casos.

Atendimento individual
O atendimento individual tem por objetivo estimular e desenvolver as ha-
bilidades perceptivas e cognitivas através das funções musicais que venham a

282 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


contribuir para a reabilitação física, cognitiva e de integração social do paciente
(adulto e infantil).

DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
O atendimento é realizado por um musicoterapeuta a um paciente infantil
ou adulto que tenha realizado a avaliação inicial do setor.
O atendimento acontece uma vez por semana, com duração de 40 minu-
tos. O período de tratamento varia de três a 10 meses, conforme a demanda do
paciente.
O paciente receberá alta do setor quando os objetivos iniciais tenham sido
alcançados; casos de pacientes sem evolução deverão ser revistos em supervisão
interna do setor ou em supervisão geral ou reunião mensal, para os pacientes
adultos.
De preferência a cada três meses, o atendimento deverá ser realizado com
a participação do paciente / responsável / cuidador, para os esclarecimentos da
evolução do tratamento.
Os atendimentos deverão ser registrados em relatório terapêutico.
O musicoterapeuta deverá elaborar o relatório de evolução trimestral, e o
relatório de alta ou desligamento.
Na Testificação Sonoro-Musical, o musicoterapeuta observará constante-
mente as reações do paciente frente aos estímulos sonoros percussivos rítmicos
melódicos musicais, em diferentes instrumentos, e avaliará o que esses estímulos
podem provocar durante a terapia.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: Paralisia Cerebral, Lesão Encefálica Infantil Adquirida, Lesão
Encefálica Adquirida (Adulto), Malformação Congênita, Mielomeningocele,
Doença Neuromuscular, Amputados, Poliomielite, Lesão Medular.
Origem: encaminhamento pelo setor médico ou Avaliação Global ou reu-
nião de discussão de caso.

MÉTODOS UTILIZADOS NO ATENDIMENTO


• Testificação Sonoro-Musical
• Improvisação
• Re-criação
• Composição
• Receptivo

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 283


• Modelo: Musicoterapia criativa (Nordoff-Robbins); Musicoterapia Analí-
tica (Mary Priestley): Imagens guiadas (GYIM) e Musicoterapia comportamental.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos, considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

Orientação
O procedimento de orientação tem por objetivo orientar o paciente / fami-
liar / cuidador para as possibilidades de inclusão social do paciente (crianças ou
adultos) através da musicalização e do aprendizado musical, quando for de inte-
resse do paciente e da família.
A orientação é realizada por um musicoterapeuta para o paciente infantil
ou adulto, que tenha passado por avaliação inicial do setor.
O atendimento é realizado uma vez por semana, com duração de 40 minu-
tos. O período total de orientação pode variar de um a 12 atendimentos. Os aten-
dimentos são registrados no relatório terapêutico e, no momento da alta ou desli-
gamento, é elaborado o relatório final.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: todas as clínicas atendidas na instituição.
Origem: encaminhamento pelo setor médico ou Avaliação Global ou reu-
nião de discussão de caso.

MÉTODOS UTILIZADOS NO ATENDIMENTO


• Testificação Sonoro-Musical.
• Musicoterapia receptiva e ativa (escuta, imitação, improvisação, re-
criação e composição).
• Musicoterapia didática.
• Musicoterapia comportamental.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos, considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

284 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Grupo musicoterapêutico
O procedimento musicoterapêutico em dupla tem como objetivo agrupar
pacientes para os quais tenham sido identificados os mesmos objetivos terapêu-
ticos e com desenvolvimento neuropsicomotor semelhante.
Os objetivos terapêuticos incluirão o favorecimento de trocas sociais e de
experiências, focadas na reabilitação física e cognitiva, estimulando as habilida-
des musicais, a função dos membros superiores, atenção-concentração, comuni-
cação verbal e não-verbal.
Para iniciar o atendimento, os pacientes deverão ter realizado a avaliação
inicial do setor.
As duplas são abertas com pacientes que possuam nível mental / cronoló-
gico semelhantes, independentemente do diagnóstico clínico.
O grupo tem duração de três a 10 meses, e os atendimentos são realizados
uma vez por semana em sessão de 40 minutos.
Após esse período, o paciente receberá alta do setor quando os objetivos
iniciais tenham sido alcançados; os casos de pacientes sem evolução deverão ser
revistos em supervisão interna do setor ou supervisão geral ou reunião de discus-
são de caso (pacientes adultos).
A cada três meses, o atendimento deverá ser realizado com a participação
do paciente / responsável / cuidador, para esclarecimentos sobre a evolução do
tratamento.
Cada atendimento realizado deverá ser registrado em relatório terapêutico.
O musicoterapeuta deverá elaborar o relatório de evolução trimestral e o
de alta ou desligamento.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: Paralisia Cerebral, Lesão Encefálica Infantil Adquirida, Lesão
Encefálica Adquirida (Adulto), Malformação Congênita, Mielomeningocele,
Doença Neuromuscular, Amputados, Poliomielite.
Origem: encaminhamento pelo setor médico ou Avaliação Global ou reu-
nião de discussão de caso.

MÉTODOS UTILIZADOS NO ATENDIMENTO


• Testificação Sonora.
• Musicoterapia recreativa, receptiva e ativa (escuta, imitação, improvisa-
ção, re-criação e composição).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 285


• Associação de materiais diversos, imagens e escrita com o estímulo sonoro.
• Exercícios de percepção e execução rítmica instrumental, vocal e corporal.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos, considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

Atendimento conjunto de Musicoterapia e


Fonoaudiologia

As intervenções no atendimento em conjunto de Fonoaudiologia e Musi-


coterapia visam:
Para a criança:
- Estimular, através do “fazer musical”, a função dos membros superiores,
a atenção-concentração, a comunicação verbal e não-verbal, propiciando a inte-
ração social.
- Favorecer trocas de experiências e aceitação de limites, despertando po-
tenciais das habilidades musicais e promovendo melhora da autoestima.
- Adequar a coordenação pneumo-fono-articulatória.
Para o Adulto:
- Favorecer a comunicação, a produção fonoarticulatória e os aspectos
cognitivos da linguagem através das funções musicais.
Na Testificação Sonoro-Musical, o musicoterapeuta exerce observação
constante das reações do paciente frente aos estímulos sonoros percussivos rít-
micos melódicos musicais, em diferentes instrumentos, e avalia o que esses es-
tímulos podem provocar durante a terapia.

DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO

1. INFANTIL
Os atendimentos são realizados por um musicoterapeuta e um fonoaudió-
logo, no Setor de Musicoterapia.
O atendimento em conjunto pode ser oferecido a um até três pacientes que
possuam nível mental / cronológico semelhante, independentemente do diagnós-
tico clínico. Tem duração de até 10 meses, e é realizado em uma sessão semanal
de 40 minutos. Em qualquer momento, após atingir os objetivos propostos, o
286 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
paciente poderá receber a alta.
O musicoterapeuta deverá preencher a avaliação inicial, e o fonoaudiólogo
deverá realizar a avaliação de linguagem na criança.
Os terapeutas responsáveis deverão elaborar, em conjunto, o relatório de
evolução trimestral e o relatório de alta ou desligamento.
A cada três meses deverá ser realizado o relatório de evolução em conjun-
to. Os casos que excederem 10 meses de atendimento deverão ser discutidos em
supervisão interna do setor ou supervisão geral, a fim de reavaliar os objetivos
com a proposta de alta ou desligamento.
O atendimento realizado deverá ser registrado em relatório terapêutico. A
cada três meses, o atendimento deverá ser realizado com a participação do paci-
ente e do responsável / cuidador, para esclarecimentos sobre a evolução do tra-
tamento.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: Paralisia Cerebral, Lesão Encefálica Infantil Adquirida, Doença
Neuromuscular, Lesão Medular, Mielomeningocele, Malformação Congênita,
Amputados.
Origem: encaminhamento por avaliação inicial do Setor de Musicoterapia
e da Fonoaudiologia e/ou por reunião de discussão de caso.

MÉTODOS UTILIZADOS NO PROCEDIMENTO


• Testificação Sonora.
• Musicoterapia recreativa, receptiva e ativa (escuta imitação, improvisa-
ção, re-criação e composição).
• Associação de material lúdico e imagens com o estímulo sonoro.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

2. ADULTO
Os atendimentos são realizados por um musicoterapeuta e um fonoaudió-
logo, no Setor de Musicoterapia.
Como requisito para o enquadramento no procedimento, é necessário que
o paciente tenha realizado a avaliação inicial e submetido à aplicação da ficha

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 287


musicoterapêutica específica. O fonoaudiólogo deverá submeter o paciente à
avaliação específica do seu setor.
O atendimento em conjunto pode ser oferecido a um até três pacientes que
possuam condições clínicas e capacidade intelectual semelhantes, independen-
temente do diagnóstico clínico e fonoaudiológico. O atendimento é realizado em
uma sessão semanal de 40 minutos para um paciente, estendida para 80 minutos
a partir do segundo paciente, com duração de até 10 meses. Em qualquer mo-
mento, um dos pacientes pode receber alta.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: Lesão Encefálica Adquirida, Doença Neuromuscular, Lesão
Medular, Poliomielite, Amputados.
Origem: encaminhado por reunião mensal ou por avaliação inicial do Se-
tor de Musicoterapia ou Fonoaudiologia.
Disponibilidade familiar / paciente.

MÉTODOS UTILIZADOS NO PROCEDIMENTO


 Testificação Sonoro-Musical.
 Musicoterapia receptiva e ativa: escuta, imitação, improvisação, re-
criação e composição através de:
1) Exercícios de percepção e execução rítmica instrumental e corporal.
2) TREINO das habilidades auditivas através de sons verbais, ambientais
e instrumentais.
 Exercícios para estimular os níveis fonêmico, fonológico, sintático, le-
xical, semântico e pragmático da linguagem oral e/ou escrita.
 Exercícios para estimulação de habilidades cognitivas.
 Exercícios vocais e fonoarticulatórios universais.

CRITÉRIO DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

Grupo de Musicoterapia e Psicologia


O Grupo de Musicoterapia e Psicologia está dirigido para crianças com di-
ficuldades de adaptação em grupos pré-existentes e para favorecer as trocas de

288 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


experiências e aceitação dos limites através de habilidades musicais, perceptivas
e cognitivas, promovendo aprendizado, integração social e a melhora da autoes-
tima.

DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
A terapia é realizada por um psicólogo e um musicoterapeuta, no Setor de
Musicoterapia.
O enquadramento no procedimento será realizado a partir da avaliação
inicial do Setor de Musicoterapia e do levantamento da ficha musicoterapêutica.
É realizada avaliação psicológica das crianças.
O grupo é composto de quatro a oito pacientes (grupos semiabertos) que
possuam nível mental / cronológico semelhante, independentemente da patologia.
A idade dos participantes pode variar de 10 a 14 anos.
Na Testificação sonoro-musical, o musicoterapeuta exerce observação
constante das reações do paciente frente aos estímulos sonoros percussivos rít-
micos melódicos musicais, em diferentes instrumentos, e avalia o que esses es-
tímulos podem provocar durante a terapia.
Os atendimentos são realizados uma vez por semana, em sessão de uma
hora de duração. O tempo total de atendimento em grupo pode durar até 10 me-
ses. Após esse período, será necessário revisar o caso em reunião de discussão
de caso ou supervisão interna do setor ou supervisão geral, para alteração de
conduta ou fechamento do caso.
O musicoterapeuta deve elaborar o relatório terapêutico semanal do aten-
dimento realizado.
A cada 12 sessões, o grupo conta com a participação do responsável / cui-
dador para avaliação da evolução do tratamento.
Trimestralmente, o relatório é elaborado em conjunto pelos terapeutas. Na
alta ou desligamento, o relatório dever ser elaborado também em conjunto pelos
terapeutas.

CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE


Clínicas: Paralisia Cerebral, Lesão Encefálica Infantil Adquirida, Doença
Neuromuscular, Mielomeningocele, Lesão Medular, Amputados, Poliomielite,
Malformação Congênita.
Origem: após avaliação psicológica e musicoterapêutica por encaminha-
mento da reunião de discussão de casos.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 289


MÉTODOS UTILIZADOS NO PROCEDIMENTO
• Testificação Sonoro-Musical.
• Musicoterapia recreativa.
• Musicoterapia receptiva.
• Musicoterapia ativa.
• Improvisação, re-criação, composição.
• Modelos: imagens guiadas (GYM).
• Musicoterapia comportamental.
• Método psicoafetivo.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

Grupo de Musicoterapia e Fonoaudiologia


O Grupo de Musicoterapia e Fonoaudiologia visa favorecer a comunica-
ção, a produção fonoarticulatória e os aspectos cognitivos da linguagem por
meio das funções musicais.

DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
Para o enquadramento no grupo, o paciente deve ter realizado avaliação
inicial no Setor de Musicoterapia e uma avaliação no Setor de Fonoaudiologia.
A terapia é realizada por um musicoterapeuta e um fonoaudiólogo. O gru-
po poderá ser composto de três a cinco pacientes.
As atividades envolvidas no atendimento incluem:
 Exercício de aquecimento vocal, respiração, fonação, ressonância, en-
toação e articulação de fala. Treino das habilidades de ritmo, velocidade de fala
e intensidade vocal (quando se aplicar).
 Estimulação da compreensão e da expressão da linguagem oral, gráfi-
ca, através de conteúdos linguísticos e musicais melódicos.
 Estimulação das habilidades cognitivas (atenção, memória, planeja-
mento).
 Encaminhamento para avaliação específica, quando necessário.
Os terapeutas devem elaborar relatório bimestral em conjunto para discus-
são de caso em reunião de equipe e elaborar o relatório de alta ou desligamento.

290 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DO PACIENTE
Clínicas: Lesão Encefálica Adquirida, Doença Neuromuscular, Lesão
Medular.
Origem: encaminhamento por avaliação global ou reunião de discussão de
casos.
Disponibilidade familiar / paciente.

MÉTODOS UTILIZADOS NO PROCEDIMENTO


• Exercícios vocais e fonoarticulatórios universais.
• Exercícios para estimular os níveis fonêmico, fonológico, sintático, lexi-
cal, semântico e pragmático da linguagem oral e/ou escrita.
• Exercícios para estimulação de habilidades cognitivas.
• Treino das habilidades auditivas através de sons verbais, ambientais e
instrumentais.
• Testificação sonora musicoterapêutica.
• Musicoterapia receptiva e ativa (escuta, imitação, improvisação e re-
criação).
• Exercícios de percepção e execução rítmica instrumental e corporal.

CRITÉRIOS DE ALTA E DESLIGAMENTO


Alta: quando os objetivos do tratamento forem atingidos considerando o
diagnóstico, o prognóstico e o tempo de realização das terapias.
Desligamento: de acordo com os critérios da instituição.

O Sistema da Qualidade, por se tratar de um modelo dinâmico, tem como


princípio a melhoria contínua dos processos de trabalho. Essa melhoria contínua
implica na atualização e na revisão dos documentos do Sistema da Qualidade,
conforme os requisitos da norma ISO 9001, e da exigência interna de seus usuá-
rios, dos colaboradores e da política interna da instituição.
A finalidade da implantação do sistema é oferecer um serviço de excelência
aos clientes; portanto, os documentos acima referidos são válidos para este mo-
mento histórico e servem exclusivamente para o ambiente interno de trabalho.
As descrições dos procedimentos norteiam e definem o trânsito da atuação
dos mais diferentes setores que compõem a organização da AACD, dentre os
quais, sinteticamente, poderíamos citar: Administração, Centro de Reabilitação e
Hospital. O Setor de Musicoterapia tem seus serviços implantados no Centro de
Reabilitação. Portanto, seus procedimentos terapêuticos transitam, de modo mul-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 291


tidisciplinar, com outros 22 setores (terapeutas dos outros setores, setor médico,
setores de apoio e o setor de agendamento do paciente).
A definição das áreas de atuação entre as equipes é necessária por se tratar
de uma equipe multiprofissional com grande número de profissionais de diferen-
tes áreas.
A importância do Sistema da Qualidade também é verificada nos treina-
mentos de equipes e na implantação das novas unidades de reabilitação.
Com base em experiências que tenham cunho científico e metodologia e
em novas técnicas de abordagem terapêutica, a implementação é disseminada em
todas as unidades em cada área específica.
Pelo Sistema da Qualidade, organiza-se a logística do trânsito dos pacien-
tes entre as terapias, com a metodologia aplicada em cada área a partir da descri-
ção de seus procedimentos.
As descrições dos procedimentos norteiam os passos necessários para o
desenvolvimento dos serviços oferecidos para a reabilitação. O sistema contem-
pla também a exigência de educação continuada, promovendo, dessa forma, a
retroalimentação da atualização e do aperfeiçoamento técnico, bem como a evo-
lução de todos os colaboradores da instituição.
Cabe colocar que o sistema define atuações dentro da área terapêutica
com a visão na logística dos atendimentos ao paciente, priorizando a reabilitação
de forma individual e com nível qualitativo muito próximo, indiferente ao pro-
fissional que venha a atender este sujeito.
Para a área de Musicoterapia, poderíamos abrir um leque ainda maior de
possibilidades de atendimento terapêutico; mas, para isso, precisaríamos de maior
área física de atendimento ao paciente, mais equipamentos e mais colaboradores.
Seria necessário um novo projeto-modelo para implantação, o que se faz com
levantamentos e estudos prévios para a sua aplicação.
O Sistema da Qualidade não tem a missão de definir o programa terapêu-
tico, e sim a dinâmica entre as áreas, com o objetivo de otimizar o trânsito do
paciente, a eficiência e a efetividade dos serviços, e a qualidade do atendimento
terapêutico, seja para o paciente atendido na unidade central ou em outra unida-
de afiliada.

292 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


PARTE 2
OUTRAS EXPERIÊNCIAS

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 293


10.
IMPLICAÇÕES NEUROPSICOLÓGICAS
NO PROCESSO DE REABILITAÇÃO
MULTIPROFISSIONAL

Camila da Veiga Prade

A Neuropsicologia é especialidade da Psicologia que estuda a relação en-


tre o funcionamento cerebral, em condições normais e patológicas, e o compor-
tamento humano. Por sua vez, a abordagem neuropsicológica conceitualiza o
comportamento em termos de três sistemas funcionais: cognição (como o cére-
bro processa e lida com informações), emoção (sentimentos e motivação) e fun-
ções executivas (como o cérebro regula a expressão do comportamento). Uma
condição de sofrimento cerebral raramente leva a distúrbios em apenas um des-
ses sistemas, e em geral pode envolver todas as dimensões do comportamento5.
O sistema cognitivo se refere àquelas habilidades relacionadas à maneira
como o cérebro processa e lida com estímulos e informações, as quais podem ser
divididas em funções receptivas – representadas pelas habilidades sensoriais,
perceptivas, visoespaciais e agnosias (habilidades de seleção, aquisição, classifi-
cação e integração de informações); funções de memória e aprendizagem (habi-
lidades de registro e evocação de informações); funções de pensamento (habili-
dades de organização e reorganização de informações); e funções expressivas –

294 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


representadas pelas habilidades práxicas, construtivas e de linguagem (meios
pelos quais as informações se tornam ações ou se exteriorizam). Ao investigar-
mos o funcionamento cerebral pela observação do comportamento, devemos ter
em mente que as “habilidades cognitivas são propriedades funcionais de um
indivíduo que não são diretamente observáveis, mas sim inferidas pelo compor-
tamento (...). Todo comportamento (incluindo o desempenho em testes neuropsi-
cológicos) é multideterminado: um paciente pode falhar em uma tarefa de pen-
samento abstrato não por conta de um déficit em formação de conceitos, mas
devido a um déficit de atenção, linguagem ou discriminação do estímulo”8.
Ademais, a consciência, a atenção e a velocidade de processamento de-
vem ser consideradas como variáveis altamente responsáveis pela eficiência dos
processos mentais, uma vez que envolvem uma série de pré-requisitos que ga-
rantem e mantêm as atividades das funções cognitivas.
Em relação ao sistema relativo à emoção, fortemente viabilizado por es-
truturas do sistema límbico e lobos frontais, que envolvem mecanismos neurais
específicos de controle de comportamento emocional e social, ressaltamos que
desordens afetivo-emocionais e de personalidade são frequentes após uma lesão
cerebral, desordens essas que incluem, por exemplo, alterações do humor, do
insight e da motivação. Destacam-se, principalmente, alterações como agitação
psicomotora, labilidade emocional, desinibição ou inibição do comportamento
(perseveração mental e motora, diminuição da iniciativa – quadros de abulia),
alterações do comportamento sexual e apetite, e alterações afetivo-emocionais
(alterações do humor, apatia, afeto achatado, descontroles emocionais e agressi-
vidade). Devemos, ainda, atentar para distúrbios emocionais não relacionados
diretamente à organicidade dos quadros neurológicos, mas que se configuram
como reações psicológicas de ajustamento e enfrentamento da condição de ado-
ecimento e incapacidade, dentre os quais podemos citar depressão, ansiedade e
irritabilidade, frequentemente associadas a conteúdos de medo do futuro, isola-
mento social, vergonha ou pânico da perda de habilidades intelectuais, baixa
autoestima e mudanças na aparência física. Cabe, ainda, ressaltar o quadro de
“reação catastrófica”3 descrito como resposta de ansiedade e frustração frequen-
temente observada em pacientes com lesão cerebral. Ocorre em pacientes que
parecem adaptar-se suavemente a situações-problema, mas começam a apresen-
tar, abruptamente, mudanças de humor com a manifestação de estados agudos
depressivos e/ou ansiosos, não-cooperação com o tratamento, irritação, verbali-
zações emocionalmente inapropriadas e evitação / resistência em situações soci-
ais desafiadoras ou difíceis. Esaa reação parece aumentar à medida que o indiví-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 295


duo experimenta episódios recorrentes de fracasso e ampliação da percepção de
sua condição, sentindo-se sobrecarregado e incapaz de lidar com tarefas facil-
mente solucionáveis.
Outro conceito importante a ser apontado é a anosognosia – déficit da au-
topercepção que tem causas orgânicas envolvendo o sistema cognitivo (associ-
ando-se à hemianopsia e hemiplegia em lesões de lobos parietal direito e sistema
córtico-talâmico, e à amnésia, em lesões de lobos frontais). Nessa condição, o
indivíduo não consegue perceber seus déficits motores, sensitivos e cognitivos,
nem reconhece que algo está errado, negando ativamente as dificuldades. Em
algumas situações, uma avaliação neuropsicológica pode diferenciar a anosog-
nosia da negação defensiva, reação psicológica que parece motivada pela preo-
cupação do indivíduo com o autoconceito, eleita como forma de reduzir a ansie-
dade frente ao reconhecimento da incapacidade, e, nesse sentido, o indivíduo
muitas vezes pode até reconhecer o déficit quando confrontado.
Finalmente, o sistema que envolve as funções executivas é o responsável
pela regulação da cognição e do comportamento social, sendo fortemente associ-
ado aos lobos frontais. São funções regulatórias de planejamento, iniciativa,
execução de comportamentos dirigidos a metas, principalmente em novas situa-
ções. Incluem desde o comportamento motor até flexibilidade e antecipação
mental, abstração e formação de conceitos, automonitorização, capacidade de
beneficiar-se do feedback do meio para autocorreção, julgamento e crítica, e
regulação da expressão emocional. Desordens nesse sistema podem afetar desde
tarefas rotineiras e previsíveis (vestir-se, comer, dirigir) até aquelas mais com-
plexas e inusuais, pois afetam ambos os pólos de iniciação e terminação de um
comportamento, surgindo aí déficits de iniciativa e de perseveração mental e
motora. Cabe ressaltar que déficits em funções executivas podem ocorrer con-
comitantemente com desempenho razoável em funções básicas e intelectuais
preservadas, e mesmo prejuízos sutis podem ser socialmente disfuncionais e
causar comportamentos de difícil manejo.

Avaliação neuropsicológica e o impacto das alterações


neuropsicológicas na funcionalidade

O planejamento de um programa de reabilitação multiprofissional do pa-


ciente neurológico deve incluir, idealmente, a realização de uma avaliação neu-
ropsicológica formal para o entendimento do perfil neuropsicológico do indiví-
duo. Supondo que qualquer atividade funcional envolva diversas habilidades
296 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
cognitivas, a aplicação de uma bateria de testes neuropsicológicos é um método
que permite relacionar estas atividades com o nível e padrão das habilidades
atuais. Permite, ainda, a identificação de forças e fraquezas cognitivas por meio
de medidas padronizadas, gerando inferências sobre capacidades funcionais e,
assim, provendo respostas à razão pela qual o indivíduo falha nas tarefas a ele
solicitadas. Além disso, sua aplicação é fundamental para registro formal e pa-
dronizado do desempenho do paciente ao longo de seu processo de recuperação
neuropsicológica e funcional4.
A seguir será descrita cada uma das principais funções neuropsicológicas
investigadas em uma avaliação neuropsicológica, bem como as alterações usu-
almente observadas e sua relação com a funcionalidade do indivíduo.
Os processos de atenção incluem habilidades simples e complexas que e-
xigem a disponibilidade do indivíduo para canalizar e focalizar seus recursos de
atenção e manter e processar informações recebidas das modalidades tanto ver-
bais quanto visuais. A correlação neuroanatômica de tais processos se refere ao
sistema reticular ativador ascendente e suas relações com núcleos intralaminares
do tálamo que têm função excitatória do córtex cerebral, permitindo que o orga-
nismo se oriente para os estímulos. Estruturas como a amígdala, o hipocampo e
os lobos frontais também intervêm nessa reação de orientação aos estímulos. É
importante saber que mesmo déficits de atenção mais sutis podem contribuir
para a ocorrência de reações de baixa tolerância à frustração, inquietação, e po-
dem, inclusive, se exacerbar em situações de estresse, ambiguidade e em tarefas
mais complexas que os terapeutas venham a solicitar ao paciente6. Sabe-se que o
comprometimento da atenção não é sempre difuso e global, mas pode ser especí-
fico (tipos de atenção) e relacionado a modalidades verbal / visual, dependendo
do hemisfério cerebral lesionado. É importante lembrar que déficits de atenção
podem estar relacionados à velocidade lenta de processamento, devendo-se rea-
lizar testes de tempo de reação ou analisar os tempos de execução, quando há
suspeita.
Em geral, a avaliação neuropsicológica investiga os seguintes processos
da atenção: amplitude da atenção (habilidade de reter quantidade razoável de
informações mentalmente para a realização de determinada tarefa); controle
mental / memória operativa (habilidade de reter e operacionalizar informações
mentalmente); atenção sustentada (habilidade de manter o foco atencional ao
longo de uma tarefa contínua); atenção seletiva e controle inibitório (habilidade
de resistir às interferências para focalizar estímulos); atenção dividida (habilida-
de de manipular dois ou mais tipos de informações simultaneamente); e atenção

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 297


visoespacial (habilidades de atenção a detalhes e varredura de estímulos visuais).
Na esfera da atenção, é particularmente relevante a avaliação de uma possível
síndrome de heminegligência, que tem especial importância na avaliação do
retorno ao trabalho, sendo bastante incapacitante devido à implicação direta com
a deambulação independente e autonomia geral4. A síndrome de heminegligên-
cia, classicamente observada em lesões do córtex parietal direito, pode ser defi-
nida como uma tendência a ignorar estímulos e iniciar a ação tanto em hemies-
paço como hemicorpo contralateral à lesão. Estudos em humanos apontaram que
este tipo de déficit não é relacionado a dificuldades de orientação ao estímulo
localizado no hemiespaço contralateral ao hemisfério cerebral lesado, mas sim a
uma incapacidade de o indivíduo liberar sua atenção caso esteja focalizando um
estímulo posicionado no lado do espaço não afetado, em geral o direito2.
A avaliação das habilidades sensório-motoras e perceptivas tem grande
valor para a investigação da funcionalidade do indivíduo, bem como para a cor-
reta interpretação do desempenho do sujeito nas diversas atividades que avaliam
o sistema cognitivo. Os resultados dos testes referentes a tais funções, além de
indicar a necessidade de uma avaliação ortóptica ou audiológica complementar,
alerta a equipe para incapacidades que podem estar sendo distorcidas pelo pro-
cessamento anormal de informações sensoriais. Soma-se a isso o fato de que um
distúrbio sensório-motor ou perceptivo pode acarretar incapacidades motoras na
ausência de deficiência física / motora1,4.
As habilidades visoperceptivas , visoespacias, visoconstrutivas e as agno-
sias visuais integram o sistema visual e podem ser afetadas por lesões de hemis-
fério direito (informações partem do córtex visual primário e fluem em direção
aos lobos parietal e temporal). A avaliação neuropsicológica pode incluir a ava-
liação dessas funções, o que permitirá identificar possíveis dificuldades que têm
relação direta com a funcionalidade do indivíduo, tais como problemas em per-
ceber distâncias e posições relativas entre objetos no espaço, dificuldades para
diferenciar uma figura de um fundo, achar rapidamente um objeto-alvo, reco-
nhecer padrões, movimento e localização de estímulos visuais (por exemplo,
colocar água em um copo, ou pegar escada rolante, realizar sínteses visuais, que
permitem discernir um objeto mesmo sem vê-lo inteiramente (por exemplo, re-
conhecer um livro se estiver empilhado, ou placas encobertas no trânsito), ante-
cipar mentalmente quando um estímulo se encaixará com outro, e para a leitura
de textos.
Outras habilidades associadas ao sistema visual que a avaliação neuropsi-
cológica pode investigar são as habilidades visoconstrutivas e de orientação

298 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


espacial, as quais envolvem a integração das habilidades visoperceptivas com
atividade motora (por exemplo, cópia de desenhos, imitação de modelos, fazer
uma escultura e leitura). A habilidade construtiva está apoiada em outras habili-
dades, tais como detecção de ângulos, determinação de distância ou comprimen-
to, orientação espacial, percepção de profundidade, coordenação visomotora,
síntese visual e funcionamento motor. Prejuízos na habilidade construtiva inter-
ferem na atividade ocupacional e recreacional (por exemplo, carpintaria, empa-
cotar, tocar um instrumento, copiar modelos, pintar etc.). A orientação espacial
envolve a habilidade de navegação no espaço, podendo interferir, se prejudicada,
em atividades tais como ler um mapa ou uma partitura, situar-se na vizinhança,
reconhecer pistas visuais e espaciais como nomes de ruas e símbolos. Quanto à
habilidade de leitura, podemos citar a alexia pura, que se refere à incapacidade
de reconhecer letras visualmente, o que não é relacionado a uma desordem espe-
cífica de linguagem expressiva e/ou receptiva.
Ainda nesta esfera, devemos citar a agnosia visual, incapacidade de ter
acesso ao reconhecimento de certos componentes do mundo visual, na ausência
de qualquer distúrbio sensorial elementar, de linguagem e de perturbações inte-
lectuais. Pode estar relacionada a objetos, figuras, formas, letras, números, cores,
fisionomias, sendo que esses déficits frequentemente estão associados. A agno-
sia resulta de lesão das áreas associativas sensoriais, causando dificuldades na
etapa discriminativa de identificação visual (agnosia visual aperceptiva) e na
etapa de categorização do estímulo visual, e os erros podem ser morfológicos,
funcionais ou perseverativos.
Outro domínio cognitivo a ser coberto pela avaliação neuropsicológica
são as praxias. As praxias são as habilidades relacionadas à capacidade de exe-
cutar um movimento, cujas perturbações são definidas como apraxias. As apra-
xias consistem na incapacidade de realização de atos motores sob comando ou
imitação, na ausência de déficit de compreensão, de sensibilidade ou da força
muscular, que podem ocorrer como resultado de lesão da área pré-motora ou
motora suplementar, por lesões parietais e suas conexões. Destacam-se a apraxia
ideomotora, apraxia ideatória e apraxia construtiva. A primeira se refere a gestos
simples e que não incluem a manipulação de objetos reais. É a inabilidade de
realizar atos motores sob comando verbal, embora esses atos sejam facilmente
realizados de modo espontâneo; portanto, pode não ser notada na vida cotidiana,
que comporta inúmeros movimentos já automatizados pelo aprendizado repeti-
do. A apraxia ideatória é uma incapacidade bilateral e em geral associada à a-
praxia ideomotora, que se refere a manipular objetos adequadamente e a pertur-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 299


bações dos gestos que implicam na manipulação de objetos reais. O indivíduo
apráxico vai demonstrar suas dificuldades por meio de gestos inapropriados,
pouco elaborados, incoerentes e desorganizados. A apraxia construtiva designa a
alteração da capacidade de construir, ou seja, reunir elementos em dois ou três
planos no espaço. Envolve o manejo de dados visoperceptivos e visoespaciais,
ordenados pela atividade motora. É observada quando o indivíduo se mostra
incapaz de reproduzir ou copiar um modelo visual apresentado, na ausência de
distúrbios visuais, perceptivos ou motores.
A avaliação das alterações da linguagem é fundamental, pois influenciam
no desempenho cognitivo global do indivíduo, prejudicam a interação social e
são extremamente frustrantes quando afetadas. As regiões cerebrais implicadas
nos processos de linguagem se localizam no hemisfério esquerdo, na grande
maioria dos casos, e compreendem como principais áreas o lobo frontal (área
motora primária, área de Broca), o lobo temporal (área de Wernicke, área auditi-
va primária) e regiões subcorticais (fascículo arqueado). Em geral, o exame neu-
ropsicológico da linguagem envolverá a investigação de habilidades tanto do
polo receptivo (compreensão da linguagem falada e escrita) e expressivo (escri-
ta, gestos e expressão facial), devendo abarcar componentes fundamentais tais
como: o discurso espontâneo, capacidades de repetição, fluência, compreensão,
nomeação, leitura e escrita. As habilidades referentes à voz e à fala (disfonias e
disartrias) são, em geral, investigadas na avaliação fonoaudiológica1.
A análise cuidadosa do padrão de déficits nas áreas de memória e aprendi-
zagem tem grande importância na eleição de estratégias de reabilitação, em vir-
tude de os déficits de aprendizagem de novas informações terem efeito profundo
no progresso da reabilitação, no engajamento e na manutenção das estratégias
propostas pelo terapeuta. O lobo temporal medial inclui estruturas implicadas na
memória verbal e visual, como hipocampo, córtex entorrinal e para-hipocampal.
A preservação de tais estuturas é necessária para registro e recordação de infor-
mações previamente apreendidas. Outras áreas importantes para os processos de
memória são a região diencefálica (tálamo e corpos mamilares) e córtex frontal,
implicado na organização de informações, o que é essencial para sua aquisição e
recuperação eficientes e para sua codificação em curto prazo, manipulação e
organização.
Os testes neuropsicológicos visam a investigação do desempenho do indi-
víduo em diversos tipos de memória, podendo ser em ambas as modalidades, a
verbal e a visual. Os principais tipos de memória avaliados são: memória semân-
tica (conceitos e ideias que aprendemos gradualmente ao longo dos anos); me-

300 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


mória episódica (memórias de experiências pessoais, familiares e sociais. Permi-
te o registro e a lembrança de informações referenciadas em um contexto tempo-
ral e espacial); memória para habilidades e procedimentos (memória de habilia-
des que se tornam automáticas com a prática); e memória prospectiva (memória
para coisas que estamos planejando fazer no futuro). Além disso, o exame neu-
ropscológico investiga o desempenho mnéstico do indivíduo no aspecto relativo
à duração de tempo que se passou entre a recepção da informação e sua posterior
recordação, sendo, então, dividido em: memória de curto prazo ou memória de
trabalho (informação recebida alguns segundos antes) e memória de longo prazo,
que inclui a memória tardia (informação recebida alguns minutos antes), a me-
mória recente (informação recebida alguns dias-semanas antes) e memória remo-
ta (informação recebida alguns anos antes).
Uma esfera de grande relevância é a que se refere às funções executivas,
já descritas anteriormente. Para a investigação de tais funções, a avaliação neu-
ropsicológica engloba medidas e tarefas que exigem raciocínio lógico e resolu-
ção de problemas, o que depende da integração de diversas funções cognitivas
básicas, que estão relacionadas com a capacidade de julgamento, insight, abstra-
ção e formação de conceitos. Além disso, o neuropsicólogo também observa
qualitativamente o desempenho do paciente, uma vez que habilidades para lidar
com situações novas e resolver problemas não fazem parte da bateria de testes
convencional, e mesmo déficits sutis em funções executivas podem ser disrupti-
vos socialmente e funcionalmente, evidenciando comportamentos de difícil ma-
nejo social, e podem afetar diversas funções cognitivas. O conhecimento do
nível de funcionamento do indivíduo nesta esfera é relevante, já que uma disfun-
ção em um único componente pode ser devastadora e causar incapacidades sig-
nificativas do ponto de vista funcional. Indivíduos com dificuldades nesta área
tendem ao pensamento concreto, o que certamente influenciará em seu nível de
crítica e engajamento no tratamento9.
A investigação sobre o nível de eficiência intelectual e habilidades aca-
dêmicas também é medida importante. Para tanto, as baterias de inteligência
envolvem em geral subtestes verbais e não-verbais / execução, a fim de se avali-
ar o padrão global dos pacientes com lesão cerebral. No que se refere à reabilita-
ção de indivíduos vítimas de lesão encefálica adquirida, os subtestes verbais se
mostram menos sensíveis, pois avaliam funções cristalizadas e, portanto, menos
susceptíveis aos efeitos da lesão. Por outro lado, os subtestes de execução são
mais úteis, pois avaliam habilidades “fluidas”, muito sensíveis aos efeitos da
lesão. Dentre as habilidades acadêmicas, medidas como Matemática, Leitura e

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 301


Escrita são úteis para adequar opções vocacionais e vida independente e decidir
a abordagem do tratamento1.
Por fim, é de extrema importância a investigação de desordens afetivo-
emocionais, que são frequentes após uma lesão cerebral traumática. Disfunções
nessa esfera afetam paciente e familiares, influindo na qualidade de seu engaja-
mento e na aceitação do tratamento. Acima de tudo, uma boa avaliação desses
aspectos auxilia na diferenciação entre déficits de crítica e comportamentos rela-
cionados ao mecanismo de defesa psíquica de negação em algumas situações
durante o processo de reabilitação. Auxiliar os pacientes a ampliar a compreen-
são de sua condição após a lesão é tarefa difícil. Exposição repetida e gradual a
tarefas que revelem as forças e limitações dos pacientes é importante para a am-
pliação da autopercepção após uma lesão. Além disso, é crucial a avaliação do
funcionamento emocional atual do paciente, por meio de levantamento acurado
de padrões emocionais e traços de personalidade anteriores. Estes dados serão
importantes para a contemplação de problemas e para se levantar quais recursos
o paciente possui para enfrentar problemas como: controle da raiva, desordens
alimentares, sensibilidade social, motivação para mudança, habilidade de susten-
tação de metas e objetivos e percepção das necessidades e consequências das
mudanças comportamentais.

A avaliação neuropsicológica e sua contribuição


no processo de reabilitação multiprofissional

Ao refletirmos sobre remediação ou minimização de déficits neuropsico-


lógicos (envolvendo cognição, emoção e funções executivas), devemos entender
que o dano cerebral que o indivíduo sustenta pode causar limitações nas várias
habilidades cognitivas necessárias para suportar atividades funcionais demanda-
das pelo mundo real e, portanto, nas atividades demandadas pelas diversas disci-
plinas em um processo de reabilitação. Para tanto, é necessária a realização de
uma avaliação não apenas quantitativa dos déficits neuropsicológicos, mas tam-
bém qualitativa e funcional, que acesse o maior número possível de funções
neuropsicológicas em caráter situacional, que simulem ou se realizem no ambi-
ente característico do paciente.
Aqui, devemos discutir a diferença entre a avaliação neuropsicológica
formal e a avaliação neuropsicológica de natureza funcional. Na avaliação neu-
ropsicológica formal, o neuropsicólogo, por meio da utilização de testes padro-
nizados, visa identificar déficits e disfunções cognitivas com uma preocupação
302 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
diagnóstica. Seu objetivo é responder às questões relativas ao nível intelectual,
estabelecer medidas comparativas (idade e escolaridade), e a relação entre o tipo
de distúrbio neuropsicológico (por exemplo, memória, leitura) e as esferas cog-
nitivas. Por sua vez, o neuropsicólogo profissional de reabilitação também deve
agregar à sua investigação métodos voltados para a avaliação funcional de habi-
lidades para guiar e monitorar futuras intervenções, preocupando-se com o tra-
tamento e remediação. Seu objetivo é responder às questões concernentes a pro-
blemas da vida diária (este indivíduo pode voltar para sua casa, para a escola e
para o trabalho?). Para tanto, o profissional deve interagir com os outros terapeu-
tas envolvidos no tratamento, observando o paciente nas diversas situações tera-
pêuticas (em sessões de terapia ocupacional, musicoterapia, fisioterapia, fonoau-
diologia etc.), e deve estabelecer uma relação direta e contínua com o tratamento.
Para o entendimento do que seria uma avaliação neuropsicológica mais
funcional e voltada para reabilitação, devemos rever algumas definições como a
de McLellan7 sobre reabilitação cognitiva: “Processo em que indivíduos que
sofreram lesão cerebral trabalham juntos com profissionais de saúde com o obje-
tivo de remediar ou aliviar déficits cognitivos decorrentes de um dano cerebral”,
bem como a definição de Wilson sobre a reabilitação neuropsicológica: “Proces-
so mais abrangente, uma vez que inclui e visa a melhora de déficits cognitivos,
emocionais, psicossociais e comportamentais causados por uma lesão cerebral”.
Tais definições nos apontam aspectos fundamentais a serem levados em conta no
processo de avaliação neuropsicológica que pretende auxiliar o planejamento de
uma reabilitação multiprofissional: a necessidade de uma compreensão multidis-
ciplinar do paciente, a importância do papel do próprio paciente na identificação
de suas dificuldades e o aspecto abrangente e para além das alterações cogniti-
vas, incluindo-se aí as esferas emocional e psicossocial do comportamento.
Assim, a avaliação neuropsicológica para reabilitação deve incluir testes e
atividades em que o indivíduo fique frente a frente com múltiplas prioridades,
imprevistos e interações interpessoais. Ela não exclui a realização de uma bateria
de testagem neuropsicológica, como já descrito, mas deve somar às suas conclu-
sões informações extraídas de métodos compreensivos e ecológicos, tais como:
entrevista inicial que englobe aspectos funcionais e de vida diária, procedimen-
tos de observação do comportamento, utilização de testes com validade ecológi-
ca e escalas e questionários padronizados.
Os resultados da bateria neuropsicológica, já discutidos, somados às
conclusões de abordagens mais funcionais servem direto ao levantamento de
hipóteses e à formulação de possíveis estratégias compensatórias para as habili-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 303


dades disfuncionais a serem utilizadas no planejamento de um programa multi-
profissional de reabilitação.
A avaliação neuropsicológica provê informações que auxiliam no plane-
jamento das atividades mais adequadas ao paciente e, principalmente, na defini-
ção dos elementos a serem observados e levados em conta pelos demais terapeu-
tas, tais como suas habilidades de organização, estilo de comunicação, uso es-
pontâneo de estratégias, preparação, execução e término das atividades e possí-
veis reações emocionais. Assim, dá subsídios ao terapeuta na tarefa de contextu-
alizar os domínios cognitivos, ou seja, compreender como a disfunção neuropsi-
cológica detectada na avaliação se dá nas atividades propostas. Boas situações
de observação para o terapeuta, além da situação de atendimento em sua disci-
plina, são as próprias atividades de vida diária, situações na casa, escola, traba-
lho e terapias, atividades ocupacionais e na comunidade. Observações inciden-
tais podem ter especial utilidade, como em intervalos de avaliação e sala de es-
pera, ligações telefônicas, maneira como o paciente chega às consultas, em inte-
rações com outras pessoas e no ambiente da reabilitação.
Durante o procedimento de observação, o terapeuta deve estar atento ao
ambiente, ao paciente e a si mesmo. Em relação ao ambiente, devem-se registrar
os fatores que causaram variação no desempenho, tais como: momentos nos
quais o indivíduo se distraiu, eventuais pistas ambientais que utilizou, diferenças
no desempenho diante da presença de outras pessoas ou em diferentes períodos
do dia. Quanto ao paciente, deve-se atentar para seu nível de motivação, familia-
ridade com a tarefa e grau de fadiga e estresse na atividade. Deve-se, por fim,
registrar os comportamentos do próprio terapeuta, como, por exemplo, o tipo de
assistência fornecida, aspectos da postura e relação estabelecida com o paciente
durante a atividade. Pode ser útil também realizar um registro quantitativo da
observação, como o tempo levado para completar as tarefas, número de erros,
número de pistas fornecidas (verbais, escritas ou físicas) e número de passos
iniciados pelo paciente espontaneamente.
Em síntese, a avaliação neuropsicológica formal somada a abordagens fun-
cionais de avaliação contribui para o trabalho da equipe multiprofissional de reabili-
tação, uma vez que auxilia no planejamento da intervenção e na seleção de métodos
e estratégias mais apropriados e direcionados à condição do paciente. A Neuropsico-
logia contribui para a equipe multiprofissional de reabilitação entender melhor as
demandas e as condições do ambiente em que se espera que esse indivíduo atue,
bem como os comportamentos que devem ser levados em conta para auxiliar o paci-
ente a reaprender, recuperar ou compensar a perda de suas habilidades.

304 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Referências
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injury in adults. In: Bigler ED [ed.]. Traumatic brain injury: Mechanisms of damage,
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logia e neurociências. Rio de Janeiro: Medbook; 2007. p. 83-101.
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viduals. Behav Modification 1987; 11:312-28.
5. Lezak MD, et al. Basic concepts. In: Neuropsychological assessment. New York:
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Acute care to recovery. New York: Plenum; 1992. p. 75-89.
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Swash M, Oxbury J [ed.]. Clinical neurology. Edinburgh; 1991. p. 768-90.
8. Sivan AB, Benton AL. Cognitive disabilities, diagnosis. Encyclopedia of neuros-
cience. 2. ed. Amsterdam: Elsevier; 1999.
9. Sohlberg MM, Mateer CA, Stuss DT. Contemporary approaches to the management
of executive control dysfunction. J Head Trauma Rehab 1993; 8:45-58.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 305


11.
MUSICOTERAPIA INTEGRATIVA E
REABILITAÇÃO NEUROLÓGICA

Gabriela Wagner

(Revisão do texto traduzido de Maria Helena B. Cavalcanti Rockenbach)

Neste artigo nos propomos a abordar o trabalho do musicoterapeuta a par-


tir da compreensão integrativa da experiência sonoro-musical com objetivos
terapêuticos no campo da reabilitação da pessoa com comprometimentos neuro-
lógicos em geral, e/ou da criança e adolescente em particular.
Antes de nos aprofundarmos neste tema, é importante destacarmos nosso
reconhecimento aos pacientes e a seus familiares por sua comovente criatividade
para enfrentar, conviver e superar com esforço suas limitações e viver o dia-a-
dia, apesar de tudo.
A complexidade das necessidades dessa população requer uma abordagem
interdisciplinar, na qual o musicoterapeuta atue junto a médicos clínicos, neuro-
logistas, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, arte-terapeutas,
mestres e professores em oficinas e espaços de recreação. Sem dúvida, o ser
humano é sempre mais do que uma dessas disciplinas, ou seja, de especializa-

306 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ções nas quais nos formamos. Mas é a partir desta especificidade que tentamos
otimizar nossa contribuição ao seu bem-estar, à melhoria de sua qualidade de
vida, à sua habilitação ou reabilitação.
Em musicoterapia, quando falamos de “processo terapêutico”, referimo-
nos a uma proposta de interação e intervenção a partir de possibilidades que o
“complexo-som-ser-humano”4 pode nos oferecer. Este sistema aberto que nos
identifica como receptores e produtores de sonoridades, por sua vez imersos em
uma paisagem sonora, sejam musicais ou não, caracteriza-se também por sua
particular complexidade.
Sabemos que a complexidade humana nunca será plenamente compreen-
sível para nós mesmos, pois sua dimensão é maior do que as construções men-
tais que possamos fazer. Nosso trabalho está fundamentado na experiência clíni-
ca, na qual se dão diferentes orientações de desenvolvimento com objetivos
compartilhados e específicos. A reabilitação neurológica se beneficia da coope-
ração interdisciplinar.
Como musicoterapeutas nos distinguimos por colocar em jogo a experiên-
cia subjetiva de anos de formação musical, nossa relação de amor e ódio com a
música e nossas possibilidades de utilizá-la como recurso e/ou ferramenta para o
esboço de técnicas e procedimentos para acompanhar a um outro em um cami-
nho possível de subjetivação. Diferenciamo-nos pela experiência de musicaliza-
ção, além da formação como agentes de saúde. Acordamos com todos aqueles
que consideram que, como musicoterapeutas, trabalhamos com uma das inven-
ções mais notáveis, junto com a linguagem verbal, que caracterizam o ser huma-
no, e acredito em seu poder transformador no marco da relação terapêutica.
Entendemos por Musicoterapia Integrativa uma proposta terapêutica
fundamentada a partir de uma hipótese que contempla a realidade psiconeuroi-
munoendócrina da experiência musical e dos processos predominantemente não
verbais sonoro-musicais, intra e interpessoais envolvidos.
Em relação à experiência musical, por um momento, só a consideramos
como um processo participativo que envolve a percepção e a expressão a partir
de vivências que, nem sempre, são possíveis de serem explicadas por meio de
palavras. Falar dessa experiência sempre nos deixará cientes de sua incompletu-
de, ao não se poderem acessar as diferentes facetas do inefável, o que apenas
podemos compreender pela própria experiência.
Os diferentes âmbitos de utilização da Musicoterapia nos conectam a in-
divíduos com diferentes necessidades. As técnicas e os procedimentos são sele-
cionados a partir de presunções sobre a particularidade do outro, sua relação com

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 307


seu ambiente, seu sofrimento e sua criatividade para lidar com ele. O produto
corpóreo-sonoro-musical da sessão se ressignifica no marco de um esquema
conceitual, referencial e operacional musicoterapêutico (ECROMT)16.
Neste caso falamos de ressignificação como um processo de interpreta-
ção dos dados de observação e registro dos processos corpóreo-sonoro-musicais
não verbais, verbais e verbais musicais, intra e interpessoais da sessão de Musi-
coterapia. Analisar os êxitos sonoro-musicais nos apresenta o desafio de nomear,
estabelecer categorias de análises para a experiência musical, produto das técni-
cas e procedimentos utilizados. Do mesmo modo, traz à consciência experiên-
cias, conhecimentos e emoções, em função de uma atribuição retrospectiva para
construir um novo significado. Ressignifica-se o antigo que surgiu no “aqui e
agora”, condicionando o futuro do processo musicoterapêutico.
Desta maneira, cada modelo teórico prático de Musicoterapia ressignifica
os êxitos de uma sessão, tendo em vista uma concepção do ser humano e um
conhecimento ou epistemologia próprios. Por exemplo, do ponto de vista das
musicoterapias psicodinâmicas, o produto corpóreo-sonoro-musical (PCSM)
da sessão se ressignifica como discurso corporal sonoro-musical em intera-
ção. No esquema conceitual, referencial e operativo musicoterapêutico
(ECROMT) dos modelos de improvisação de Mary Priestley e Juliette Alvin,
influenciadas pelas teorias psicanalíticas anglo-saxônicas, os parâmetros musi-
cais se modificam à maneira de reflexo de processos emocionais e psicodinâ-
micos subjacentes. Matizes, textura, densidade cronométrica, tempo, duração,
altura, harmonia, centro tonal, processos de configuração de estruturas sonoro-
musicais, seleção de instrumentos, produção vocal não verbal, músico-verbal e
verbal nos abrem as portas do inconsciente. As formas particulares de expressão
serão determinadas pelos mecanismos de defesa do sujeito para manejar os pro-
cessos subjacentes mencionados.
A lógica psicodinâmica para acessar o não verbal latente em toda a comu-
nicação se complementa no Modelo Benenzon de Musicoterapia, com uma mo-
dificação paradigmática que resulta de sua formulação de ISO de ressonância2 e
ISO de identidade sonora3 em interação com conceitos ligados a este
ECROMT. A dinâmica da sessão, os objetivos, as técnicas essenciais e os proce-
dimentos terapêuticos são determinados pelos conhecimentos referidos aos pro-
cessos de subjetivação do outro. A generalização e os gráficos quantitativos de
investigação são excluídos como opção de esboço neste ECROMT. Cada histó-
ria musicoterapêutica entre paciente(s) e o musicoterapeuta é resultado de inter-
subjetividades únicas.

308 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O PCSM se ressignifica de modo diferente desde as teorias comporta-
mentais dos modelos médicos. Neste ECROMT estamos falando da utilização
da experiência musical em interação e de seus elementos de diagnóstico, prog-
nóstico e tratamento. A realidade multisensorial nos envolve de acordo com a
organização funcional do sistema nervoso. A pessoa em qualquer fase da vida
pode apresentar diferentes problemáticas em relação ao sistema de entrada da
informação, ou seja, percepção, integração, associação intermodal, conhecimen-
to semântico e seleção léxica do código verbal, conhecimento do código gestual,
da dança ou outras interações não verbais convencionais. Quanto ao sistema de
saída de informação, ele pode apresentar apraxias e desordens visoconstrutivas,
entre outros. Neste constructo teórico- prático, falamos de sistemas funcionais de
cooperação hemisférica, sistemas linguísticos e sistemas de controle supramodal.
O musicoterapeuta, neste contexto, se forma com o objetivo de prever,
colaborar com o diagnóstico e prognóstico e tratar das problemáticas derivadas
das dificuldades dos pacientes utilizando a experiência musical como ponto de
partida para uma atenção multimodal, predominantemente não verbal, corpóreo-
sonoro-musical, e que o envolve em seus aspectos biofisiológicos, afetivos e
sensações corporais (cinestésicas e kinestésicas) que o acompanham, imagens,
aspectos cognitivos e condutas da pessoa na interação social. A investigação
qualitativa não é relevante neste contexto.
O modelo matemático-estatístico para descrever uma situação, em uma
mostra estatisticamente significativa, que permita a possibilidade de generalizar
e inferir possíveis previsões sobre a evolução e possíveis resultados do trata-
mento, conduz a diversos caminhos científicos, altamente consensuais. Este
ECROMT pode embasar uma investigação na Musicoterapia Baseada em Evi-
dências a partir dos modelos da Medicina Baseada em Evidências (EBM).
Considerando-se as etapas propostas por Jean Piaget, o PCSM é o reflexo
de um processo contínuo de estados sucessivos do desenvolvimento das inteli-
gências, das possibilidades de operações mentais, jogos, socialização etc. As
técnicas e os procedimentos, bem como as consignas dos musicoterapeutas, de-
vem levar em conta os níveis de compreensão que o paciente possa ter.
A ressignificação do PCSM na interação musicoterapêutica no contexto
da Musicoterapia Criativa, Música centrada no Modelo Nordoff-Robbins,
vem se transformando desde a sua criação. Inicialmente as idéias de Rudolf
Steiner, fundador da Antroposofia, e mais tarde a Psicologia Humanista Existen-
cial de Abraham Maslow foram referências do conceito de homem e seu signifi-
cado. Ao considerar-se musicocentrada, a ressignificação está focalizada nas

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 309


técnicas e procedimentos musicoterapêuticos que facilitam o desenvolvi-
mento da musicalidade e seus efeitos, tanto no paciente ou cliente, como no
musicoterapeuta.
Se a ressignificação se realiza desde os pressupostos das escolas france-
sas de Musicoterapia, os processos emocionais e psicodinâmicos subjacentes na
interação de improvisação da sessão de musicoterapia se ressignificam a partir
de presunções sobre a dinâmica inconsciente e o papel da narrativa verbal como
via de acesso.
Focalizar o olhar sobre os efeitos da experiência musical receptiva, não
improvisada, como condutor de uma viagem interior, tendo como guia um musi-
coterapeuta especializado nesta abordagem, é a base de sua ressignificação, preco-
nizada por Helen Bonny, em seu Modelo de Imagens Guiadas e Música (GIM).
Hoje, há dez anos do X Congresso Mundial de Musicoterapia realizado
em Washington, podemos nos dar conta dos novos constructos e ECROMT de
musicoterapeutas que enriquecem nossos conhecimentos. Repensar, aprofun-
dar, analisar e compartilhar, a partir de seus fundadores, os caminhos da Mu-
sicoterapia mais relevantes neste momento foram os objetivos de Bruscia quando
convocou especialistas nos seguintes cinco modelos: Modelo Benenzon de Musi-
coterapia, Modelo Cognitivo Conductual, Modelo Analítico, Modelo Nordoff
Robbins e Modelo GIM, para um trabalho conjunto prévio ao Congresso. A mobi-
lização das idéias pós-Seminário foi sumamente valiosa já que, entre outras possi-
bilidades, permitiu uma metanálise das diferenças e convergências. A experiên-
cia pessoal de coordenar a apresentação dos representantes do Modelo Benenzon
de Musicoterapia com o Dr. Bruscia resultou ser um ano de trabalho inesquecível
para a autora deste capítulo. Nestes dez anos têm surgido novas propostas, porém
não é o objetivo deste capítulo aprofundar a compreensão delas.
Do ponto de vista neuropsicológico, a experiência musical é, em si
mesma, uma vivência integradora. Sobre este tema discorreremos mais adiante.
Por hora, sugiro repensar as diferentes opções de ressignificação das vivên-
cias sonoro-musicais em interação no processo musicoterapêutico, breve-
mente expostas, anteriormente, em função de uma visão integradora. Integração
não é sinônimo de soma, e sim de reformulação e mudança de paradigma. Co-
meçaremos por aplicar uma visão sistêmica nas convergências encontradas na
meta-nálise dos diferentes modelos de Musicoterapia, tendo como foco as possí-
veis necessidades da criança e do adolescente com comprometimentos neuroló-
gicos.

310 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


1. A Musicoterapia:
Dos estudos empíricos à confirmação científica

De acordo com a definição da Federação Mundial de Musicoterapia, Mu-


sicoterapia é a utilização da música e/ou de seus elementos (som, rítmo, melodia
e harmonia), por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente ou grupo,
destinada a facilitar e promover a comunicação, relação e aprendizagem, mobili-
dade, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, a fim de
atender suas necessidades físicas, mentais, sociais e cognitivas. A Musicoterapia
busca desenvolver potenciais físicos e restaurar funções do indivíduo para que
ele ou ela alcance melhor organização intra e interpessoal e, consequentemente,
melhor qualidade de vida através da prevenção, reabilitação e tratamento.
Toda prática musicoterapêutica é baseada em nossas capacidades en-
volvidas na escuta e decodificação de uma mensagem sonoro-musical e na pro-
dução, reprodução, criação livre, composição e improvisação do outro. É funda-
mentada em algumas das arestas de um “fazer musical” com objetivos não musi-
cais. “Fazer música” é sinônimo de experiência musical ou de musicalização.
A experiência de “musicalização” se desenvolve desde o momento de
nossa concepção em situação de interação com outras pessoas e com nosso am-
biente. Esta vivência compartilhada é inerente ao ser humano. É uma experi-
ência universal predominantemente não verbal, multisensorial, que nos inte-
ressa, sobretudo, pelos aspectos sonoro-musicais a partir dos quais surge a op-
ção humana de produzir ideias musicais. O corpo em movimento é nossa opção
de fonte sonora para o rítmico. A voz é o “instrumento” melódico primário por
excelência. Os instrumentos musicais são prolongamentos de nosso corpo.
Os estudos empíricos da prática musicoterapêutica têm demonstrado que a
música e seus parâmetros, sob o ponto de vista da neurocomunicação, permitem
compartilhar estados de ânimo (alegria, tristeza etc.). Em relação à comunicação
social, promovem a integração (coros, orquestras, grupos de dança), e do ponto de
vista psicológico, podem provocar mudanças intrapsíquicas e interpessoais.
Sabemos que seu valor semântico variará conforme esteja ou não acom-
panhada pelos processos linguísticos (canção com letra). Do ponto de vista se-
mântico, por seu caráter analógico, é polissêmica (significados múltiplos). A
comunicação não verbal sonoro-musical e as infinitas matizes de seus medido-
res, tais como a mímica, os gestos, a dança, a pintura, a escultura, e a própria
música, tornam-se protagonistas da criatividade humana em reabilitação. A
experiência musical na interação terapêutica facilita a percepção dinâmica de
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 311
outro e/ou outros, em movimento, em uma temporalidade espacial inserida em
um devir constante, ao mesmo tempo em que permite situações reparadoras das
falhas vinculares, promovendo a integração de um vínculo “eu e tu”, “eu e nós,”
em um plano não verbal.
O desenvolvimento das técnicas de neuroimagem tem contribuído, e-
normemente, para a investigação de nossa musicalidade, confirmando os suces-
sos das investigações empíricas em Musicoterapia.
Ainda que a oposição entre as Musicoterapias psicodinâmicas e as neu-
rológicas seja ainda notável na América Latina, estabelecemos um diálogo entre
os diferentes modelos de Musicoterapia em benefício da pessoa com comprome-
timento neurológico. Do ponto de vista epistemológico, é interessante discutir se
este diálogo se dá entre:
- Temas criados por nossa mente para uma orquestra de incrível precisão
e complexidade como nosso corpo?
- Temas gerados por um complexo humano surpreendente e maravi-
lhoso?
Neste trabalho estabelecemos uma integração das possíveis respostas a es-
sas perguntas, recordando que, neste capítulo, nos propomos a abordar o traba-
lho do musicoterapeuta a partir da compreensão integrativa da experiência
sonoro-musical com objetivos terapêuticos no campo da reabilitação da pessoa
com comprometimento neurológico em geral, e da criança e adolescente em
particular.

1.1 Um modelo de improvisação psicodinâmica a partir de


uma concepção da mente criativa e da experiência na
história de vida

Sintetizando Benenzon, o termo Musicoterapia se refere, de forma simul-


tânea, a dois campos de questionamentos inter-relacionados entre si. Por um
lado, se refere a uma disciplina científica cujo objeto de estudo é o complexo
som-ser-humano-som3 assim como a busca de elementos diagnosticados e méto-
dos terapêuticos derivados. Por outro lado, o mesmo termo é utilizado para defi-
nir um processo e um método terapêutico específico, com tendência a modificar
aspectos psicodinâmicos da personalidade humana e a superar sintomas patoló-
gicos de diversas etiologias17.

312 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A Musicoterapia é um processo terapêutico musical e interpessoal. A rela-
ção vincular com o musicoterapeuta é fundamental para seu desenvolvimento.
Lembremos que a música é um dos elementos que Benenzon3 denomina
de “complexo som-ser humano-som”. Este conceito é parte do sistema de con-
ceitos referenciais que fundamentam a prática do Modelo Benenzon de Musico-
terapia.
É fundamental considerar que cada definição de Musicoterapia forma par-
te de um esquema conceitual, referencial e operativo que alicerça sua prática.
Este ECROMT (esquema conceitual, referencial e operativo musicoterapêuti-
co)16 define as opções de experiência musical bem como seu sentido. Esse últi-
mo surge da ressignificação realizada no padrão do ECROMT.
Como definir a experiência musical?
Este termo faz referência à experiência humana resultante de nossos com-
portamentos musicais em interação com outros e com o ambiente.
Experiência e percepção são termos relacionados. O dicionário da Língua
Espanhola6 define experiência como “aprendizagem que se adquire com o uso, a
prática, ou o viver”. O termo “viver” cede lugar a dois conceitos utilizados, com
frequência, em Musicoterapia: “vivência” e “ vivencial”. O termo “vivência” se
define também como o “ato psíquico”.
A experiência musical é um processo complexo a partir de uma vivência
estética cheia de transformações de dimensões fisiológicas, emocionais, cogniti-
vas e espirituais. Falamos de música como uma combinação intencional de sono-
ridades, no marco de uma cultura, graças a processos criativos de estruturação
formal em uma linguagem com características semânticas próprias. A experiên-
cia musical é sempre multissensorial. A vivência musical é multifacetada.
Os sons e a música são informantes de situações a serem compartilhadas.
Imaginemos os sons do pátio de um jardim de infância durante o recreio. Sua
paisagem sonoro-musical é composta por barulhos, passos acelerados de corri-
das, gritos, palavras, risos, choros, rimas cantadas, em coro, para pular corda, e
mais adiante há uma serenata de crianças cantando com a professora etc. Tudo
isso nos permite imaginar como estão. Imaginemos agora passar pela porta de
um Centro de Reabilitação para crianças com diferentes problemas neurológicos,
do desenvolvimento e retardo mental, quando estão em seu tempo livre. A pai-
sagem sonora é diferente. É provável que escutemos o ruído do movimento de
cadeiras de rodas, bem como lamentos ou gritos, sussurros e silêncios, golpes
estereotipados, risos ou choros que nos remetem à identidade sonora ambiental
do lugar (ISO Ambiental).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 313


Estamos submersos em uma esfera de som onde a música pode acontecer
em qualquer parte. Esta, por sua vez, pode ser percebida como comunicação ou
isolamento, como escolha ou submissão ao desejo do outro. Pode ser mensagem
ou manipulação subliminar. O advento da tecnologia ligada à produção de músi-
ca, bem como seu registro, sua execução e sua reprodução, produziram modifi-
cações transformadoras em nosso ambiente sonoro. Esses desenvolvimentos e
mudanças têm efeitos, às vezes, positivos e, às vezes, nitidamente negativos.
Continuando nossa explanação, tomaremos como base um esquema pro-
posto por Benenzon para compreensão e estudo de sua complexidade.

Esquema I Silencio

Tambor de Agua
Temperatura
Color Transtemporalidad
Ti
e
Consciente Rituales
Yo- m
Pie po Iso Familiar
(ANZ Transespacialidad de Iso Ambien-
IEU) la- tal
Vacío
Preconsciente (Microfenómenos te
Totémicos) nc
ia
Caos

Iso Cultural
Iso en Inte-
racción
Me-
Iso Gestáltico mo-
Iso Universal ria
Comunicación
no-
Inconsciente
Inconsciente ver-
bal
Musicoterapeuta Paciente

Este esquema tem como ponto de partida o conceito dualístico de corpo


biológico e erótico. Apropria-se da dinâmica do aparato psíquico proposto por
Freud em seu primeiro tópico, formulado ao fim do século XX. Este modelo
topográfico (consciente, pré-consciente e inconsciente) propõe uma compreen-

314 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


são dos processos de recordação, esquecimento e evocação consciente ou in-
consciente. Simboliza os processos de retroalimentação (feedback) entre pacien-
te e terapeuta na interação (na percepção e ao expressar-se) utilizando setas.
Define categorias para a compreensão dos diferentes processos intrapsíquicos
envolvidos. Sugere uma hipótese sobre a construção de um mundo intersubjetivo
com características trans-temporais e trans-espaciais como resultado da interação
no contexto não verbal.
Pressupõe a existência de um psiquismo fetal. Os vestígios das memórias
intrauterinas estão inscritos principalmente em nosso inconsciente. Eles suge-
rem a corporalidade ou corporeidade da experiência através do conceito “Eu-
pele” de Anzieu. Neste espaço relacional entra em jogo a interação não verbal
que pode ser corporal, vocal ou instrumental. Pode haver simultaneidade ou
sucessão de eventos sonoros musicais. O conceito de caos se liga ao de incerteza
no aparecimento de uma sucessão de silêncios e interação sonora. O lugar privi-
legiado de objeto intermediário está representado pelo tambor de água. O fluir
das energias psíquicas está representado pela linha pontilhada.
Benenzon considera que o princípio de Identidade Sonora condensa, além
dos arquétipos sonoros herdados, tanto seus aspectos ontogenéticos como filo-
genéticos5.
Resumindo: entende-se como experiência musical um processo de partici-
pação que envolve a percepção e a expressão a partir de vivências nem sempre
codificadas em palavras. Falar da experiência musical nos deixa sempre à mar-
gem de inconclusão ao não se poder acessar as diferentes facetas do inefável e
que só é possível resolver pela própria experiência.
Há algo mais sobre a experiência musical. Ouvir, escutar, reproduzir, cri-
ar, simbolizar, e decodificar, aprender e executar um instrumento musical, me-
morizar e evocar uma frase musical, uma canção, com ou sem palavras, construir
um objeto sonoro e afiná-lo etc., são atividades complexas que envolvem pro-
cessos emocionais internos e competências muito diferentes.
Permitir a comunicação é o primeiro elo da função simbólica. É o produto
de processos internos, simbólicos, intuitivos, racionais, emocionais, afetivos,
místicos e/ou criativos, possíveis graças a desenvolvimentos maturativos neu-
ropsicológicos que também são muito complexos.
A história da sonoridade do homem nos mostra algo do seu “lado obscu-
ro”, complementando os conhecimentos oriundos de séculos de pensamento
positivista. Seu estudo enriquece nosso conhecimento sobre nós mesmos.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 315


Sabemos que as experiências prematuras são e serão de suma importância
na constituição do psiquismo. As musicoterapias psicodinâmicas coincidem na
alegação de que essas primeiras relações vinculares com o ambiente são funda-
mentais. Neste mundo intersubjetivo entre adultos e crianças pequenas a música
ocupa um lugar privilegiado em todas as culturas. A reabilitação de uma criança
com distúrbios neurológicos deve facilitar a construção desse diálogo íntimo da
relação não verbal, musical, corpóreo-sonoro-musical.
A identidade sonoro-musical da criança tem tantas faces como situações
de interação com o ambiente e com seu mundo interior. A musicalidade da cri-
ança tem componentes inatos, universais, pois foram construídos durante a
gestação, e até agora, pelo menos, são assim.
Há aspectos particulares em seus movimentos, em suas formas de expres-
são sonora como o choro, o cantarolar e os protorrítmos implícitos nessa expres-
são, o registro e a extensão de sua voz, entre outros parâmetros, que são carac-
terísticas individuais (configuração particular desse complexo único de sonori-
dades, ou seja, a identidade sonora como Gestalt). Na interação da criança com
sua mãe e/ou cuidadores, haverá um processo de autorreconhecimento mútuo,
benéfico para ambos. A relação complementária que a mãe desenvolve no
reconhecimento das necessidades da criança e seus recursos para o desenvolvi-
mento de bem-estar e de responder em função delas permite reconhecer-se em
situações novas e enfrentar o desafio que exige acompanhá-la (identidade
sonora complementária da mãe). Mãe e filho estão imersos em uma cultura. O
crescimento dessa criança com necessidades especiais, devido ao seu compro-
metimento neurológico, acontecerá dentro deste contexto sócio-cultural.
Existem períodos críticos para o estabelecimento de vínculos de apego.
Com frequência as crianças pequenas com problemas neurológicos são institu-
cionalizadas com a ideia de que um tempo maior de reabilitação ajudará para o
melhor desenvolvimento de suas potencialidades.
Não concordamos com essa ideia. Os pais devem converter-se em aliados
da equipe de reabilitação, por isso é fundamental que participem de reuniões
psicoeducacionais com outros pais. As separações prolongadas sem outras figu-
ras compensatórias podem provocar, mais tarde, a falta de esperança, tristeza e
desespero11.
Dubourdieu7 cita Kohut quando nos fala da necessidade de vivenciar espe-
lhamento e aceitação, afirmando que é interessante rever o conteúdo verbal das
canções infantis. Com frequência, em ambos os aspectos, a narrativa e a forma
musical sugerem contenção e aceitação. Kohut12 também faz referência à neces-

316 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


sidade humana de fusão com a grandeza, com a força e com a calma. A experi-
ência musical permite essas vivências em uma tenra idade, que logo podem ser
revividas na sessão de Musicoterapia, em momentos de necessidade de tratamen-
to, e na possibilidade de inclusão em um grupo ou coral após a alta. Há necessi-
dade de vivenciar a presença de algo em essência similar a ele. É neste nível que
se desenvolve nossa identidade grupal sonora musical, ou ISO grupal. As rela-
ções serão fraternais, gemelares ou de semelhança, mas não de complementari-
dade. Essas necessidades empáticas nos acompanham durante toda a nossa vida,
porém são essenciais nos períodos de vulnerabilidade e dependência de outros.
A interação corpóreo-sonoro-musical baseada na associação livre e criativa
do musicoterapeuta tem que estar acompanhada de saberes como da psicologia
do desenvolvimento e da musicalidade fundamentados em conhecimentos da
neuropsicologia.
Reconsideremos nosso objeto de estudo inicial, ou seja, o “complexo
som-ser-humano-som”. Neste esquema podemos observar a complexidade do
fenômeno da experiência sonoro-musical do ser humano. A própria formação do
musicoterapeuta implica na integração de conhecimentos em diferentes discipli-
nas que têm como foco o ser humano.
O musicoterapeuta se prepara como profissional em cursos, escolas, uni-
versidades, conservatórios etc., com diferentes conteúdos programáticos. Os
programas de estudo devem abranger uma área musical, uma área de psicotera-
pia e psiquiatria, uma área médica, outra de educação especial, e dos processos
cognitivos envolvidos em toda aprendizagem e, evidentemente, a utilização es-
pecífica aprendida na clínica musicoterapêutica.
Ao falar de complexo devemos abstrair o conceito de estímulo e busca de
respostas de causa e efeito na reabilitação da criança com problemas neurológi-
cos de diversas etiologias. Outra vez devemos recorrer ao paradigma da comple-
xidade, à teoria dos sistemas abertos e à do caos14, bem como à teoria geral dos
sistemas (Esquema I). A mesma sessão de Musicoterapia está inscrita em um
“vir a ser” em que cada experiência musical tem um sentido dinâmico no manejo
da energia vibratória. A sonoridade humana e de seu ambiente tem o valor da
paisagem sonora.
Benenzon denomina este fenômeno de identidade sonora ambiental. O
embrião, e mais tarde o feto, relaciona-se com seu ambiente intrauterino de for-
ma multissensorial. No entanto, é importante recordar que a memória auditiva é
uma das primeiras a desenvolver-se. A identidade sonora ambiental intrauterina
está cheia de sonoridades e de polirritmias, regulares e irregulares, que se con-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 317


fundem com as ressonâncias das vozes, instrumentos musicais e ruídos do ambi-
ente, associados a uma sensação cinestésica de bem-estar. A geração de ideias
sonoro-musicais pode ter como objetivo evocar essas ou outras recordações in-
conscientes.
O Esquema I nos introduz a uma visão psicodinâmica para acessar a pró-
pria história sonoro-musical e por onde há aspectos das experiências do processo
de musicalização do musicoterapeuta. Em outras palavras: o lugar da música na
própria biopsicografia.
Do ponto de vista empírico, está demonstrado o valor das canções e suas
variações como recurso para um grande número de técnicas e procedimentos. A
história de vida sonoro-musical, resgatada durante as entrevistas musicoterapêu-
ticas, aproxima-nos dessa biopsicografia.
O objetivo da exposição que segue é aproximar o leitor a uma das evidên-
cias científicas que nos dão respostas para o “como?” e o “por quê?”.

1.2. Para repensar em 2009:


Tomografia cerebral por emissão de pósitrons de regiões
ativadas pelo reconhecimento da música familiar
Sach M, Takeda K, Nagata K, Shimosegawe E, Kuzuhara S.
Positron-Emssion Tomography of brain regions activated by recogni-
tion of familiar music. Am J Neuroradiol 2006; 27:1101-6.

Resumo do trabalho apresentado

ANTECEDENTES E OBJETIVO: Podemos reconhecer a mú-


sica que nos é familiar, escutando apenas um ou dois compassos inici-
ais. As regiões cerebrais que participam neste processamento cogniti-
vo ainda são indeterminadas. Foi utilizada a tomografia por emissão
de pósitrons (PET) para estudar as mudanças no fluxo sanguíneo ce-
rebral regional (rCBF) que ocorrem quando se escuta música familiar.
MÉTODO: Foi utilizada a técnica de obtenção de imagens de PET
(tomografia por emissão de pósitrons) para identificar as regiões ce-
rebrais associadas ao reconhecimento das melodias familiares (reco-
nhecimento de familiaridade), como, por exemplo, melodias de can-
ções de ninar muito conhecidas. Pessoas que não eram músicos reali-
zaram dois tipos de atividades musicais: o reconhecimento de peças
musicais familiares (capacidade para o reconhecimento da familiari-
dade) e a detecção da alteração deliberada de notas nas mesmas pe-

318 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ças (capacidade para detecção da alteração). RESULTADOS: Du-
rante o reconhecimento de uma melodia familiar se observa a ativação
de porções bilaterais dos lóbulos temporais, regiões temporais superi-
ores e giros para-hipocampais. A tarefa de detecção de alteração bila-
teral ativa a regiões de precunias superiores / inferiores de lóbulos
parietais, e a superfície lateral dos lóbulos frontais, o que parece mos-
trar uma correlação com a análise da música. CONCLUSÃO: Levan-
tamos a hipótese de que, durante a tarefa de reconhecimento de uma
melodia familiar (reconhecimento de familiaridade), as regiões do cé-
rebro participam na recuperação da memória de longo prazo e no
processamento verbal e emocional das melodias familiares. Nossos re-
sultados reforçam a hipótese encontrada na literatura como resultado
de estudos de grupos e de caso em que as regiões dos lóbulos tempo-
rais participam no reconhecimento de melodias familiares.

[Nota do autor: Foi adicionada às imagens originais a imagem


de uma mão adulta segurando a de uma criança, com a ideia de sugerir
a ressignificação desta informação na função de uma relação musicote-
rapêutica.]

Regiones cerebrales que participan en el reconocimiento de melodías familiares Regiones cerebrales que participan en el reconocimiento de melodías familiares.
con alteraciones.

Regiões cerebrais ativadas durante o reconhecimento de melodias familiares (à esquerda) e regiões


cerebrais que participam do reconhecimento de melodias familiares com alterações (à direita).

O espaço à nossa disposição não permite analisar todas as possíveis con-


tribuições desse estudo para uma evidência científica neurológica do que foi
observado desde a investigação musicoterapêutica da teoria e da prática.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 319


No entanto, acreditamos ser importante acrescentar suas conclusões rela-
cionadas aos processos cognitivos envolvidos e as regiões cerebrais que susten-
tam esta possibilidade.
Quando os sujeitos da amostra deviam julgar se a melodia lhes era famili-
ar ou não (escutar, discriminar alturas e perceber a sequência como configura-
ção [Nota do autor]), esses investigadores sugerem que interviriam os seguintes
processos cognitivos:
1. A primeira tarefa diz respeito à recuperação de melodias arquivadas na
memória de longo prazo, e a comparação dessas melodias com as representadas
no estímulo musical. As porções anteriores dos lóbulos temporais e a interação
entre o giro superior temporal direito e as áreas motoras suplementares poderiam
participar nessa recuperação e na geração da imagem melódica, respectivamente.
A informação linguística, como título e letra da canção, poderia ter relação com
a ativação do giro inferior esquerdo, do giro frontal e do giro temporal superior
esquerdo. Os giros para-hipocampais se ativariam pelas respostas emocionais.
Os autores propõem acrescentar a essa informação a referência de que os proces-
sos cognitivos musicais, linguísticos e emocionais que acompanham a experiên-
cia interferem na função de escutar uma melodia familiar. Escutar uma melodia
familiar em diferentes instrumentos; escutar a mesma melodia com a voz canta-
da de um ser querido; escutar a própria voz gravada; ou escutar melodias fami-
liares em caixinhas de música ou gravadas no arquivo das possibilidades sono-
ras de uma brincadeira etc. [Nota do autor para facilitar a ressignificação, ou
seja, a interpretação dos dados extraídos da história clínica dos exemplos de
tratamento incluídos].
2. Na segunda tarefa, ou seja, detectar as notas que foram alteradas nas
melodias familiares, foram ativadas regiões cerebrais superiores e inferiores do
pericúneo, conforme prosseguem os investigadores. E os lóbulos frontais ativa-
dos foram similares aos ativados na tarefa de concentrar-se em aspectos vocais
de uma harmonia, tal como se encontrou nos estudos prévios. Propõe-se, assim,
que todas as regiões poderiam estar envolvidas na análise (discriminação [Nota
do autor]) de alturas.
Tal como podemos constatar neste exemplo, entre tantos, do ponto de vis-
ta da neurologia, o desenvolvimento tecnológico atual dos diagnósticos por
imagem complementa os testes neuropsicológicos convencionais e proporcio-
nam as bases para a compreensão científica dos processos mentais envolvidos na
interação musicoterapêutica. Todos esses conhecimentos são surpreendentes,

320 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


porém não são definitivos. Cada achado é um ponto de partida para os outros
pesquisadores que ainda virão.

1.3 Quais são os componentes da atividade musical a serem


considerados para uma possível teoria do comportamento
musical?

Tedd Judd10, neurologista norte-americano, formulou questões a respeito


de uma teoria do comportamento musical que contemplasse sua complexidade.
Propôs um esquema para atividades possíveis e experiências corpóreo-sonoro-
musicais do processo de musicoterapia. [Nesse esquema, adaptado ao espaço
físico deste livro pelos editores, a linha superior se refere às atividades; a linha
inferior, às capacidades; e na linha do meio são colocadas as interligações possí-
veis entre as atividades e as capacidades.]

Esquema II

ATIVIDADES

Improvisar em Tocar a Tocar um solo Dirigir uma Compor uma Relaxar Expressar de
um grupo de guitarra em de metalófono orquestra canção escutando forma verbal
percussão uma sessão de na sessão de sinfônica música um comentário
MT MT proposta por acerca de um
um MT evento musical

INTERLIGAÇÕES POSSÍVEIS

Escutar Discriminar Movimento Sincronizar Conhecer a Ler música Fazer um Compor


alturas do ritmo com um teoria da ditado idéias
pulso música musical musicais
externo

CAPACIDADES

O desenvolvimento dessas capacidades inicia com o “alimento musical”


que a mãe dá ao filho. A canção de ninar, os contos e as rimas são como nutrien-
tes de contenção e modeladores da distração da criança. Dessa relação de empa-
tia que considera a individualidade da criança, surgirão as normas que facilitarão
sua autorregulação emocional. O desenvolvimento da linguagem musical é para-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 321


lelo ao verbal. Ambos se assemelham, pois são sistemas vocal-auditivos univer-
sais, de estrutura gramatical de transformação, se podem ler e escrever e permi-
tem o uso da percepção de categorias de elementos básicos10.
Cada comportamento musical envolve nosso corpo de maneira diferente,
mas não podemos conceber a produção e a escuta sonoro-musical sem o corpo,
sem esse corpo, que é produto de uma evolução filo e ontogenética. Desta ma-
neira, por exemplo, para poder tocar um tambor, tocar uma flauta transversal ou
pressionar as teclas de um piano se necessita de um delicado controle dos dedos
da mão. Para cantar uma canção foi necessária a evolução do balbucio sonoro-
musical ao controle delicadíssimo dos músculos da laringe, da elevação do pala-
to, da inspiração e da expiração. Do ponto de vista da psicogênese e dos proces-
sos de semiótica musical, podemos dizer algo parecido. Incluir a música como
estruturante da personalidade nos põe frente a uma continuidade psicogênica do
desenvolvimento que não começa no momento do nascimento, mas sim antes.
Como atividade, desenvolve capacidades e pode favorecer a integração sensorial.
O musicoterapeuta propõe um processo de musicalização interativa que
contempla a individualidade irrepetível do paciente. Os comportamentos musi-
cais observáveis durante a experiência musical da sessão de Musicoterapia po-
dem ser considerados, entre outras opções, como:
- Reflexo de processos de amadurecimento do SNC.
- Reflexo de processos psicodinâmicos possíveis de inferências a partir do
observado.
- Reflexo de processos de estruturação da inteligência.
- Ponto de partida para a valorização inicial das possibilidades e necessi-
dades do paciente.

2. Dois exemplos de casos em processos de Musicoterapia:


Reconhecimento de particularidades e de potencialidades,
e tratamento

SABRINA

Idade: 3 anos e 3 meses; Sexo: feminino; Irmãos: João (de 1 ano).


Diagnóstico: Hemiplegia flácida esquerda, decorrente da retirada parcial
do corpo caloso para deter a propagação de epilepsia de um hemisfério para o
outro. Antes da intervenção, Sabrina sofria ataques severos, que foram tratados

322 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


com medicação, porém sem melhora do quadro. A cirurgia foi prescrita por uma
equipe de neurologistas pelas razões já citadas. Até o momento da cirurgia, rea-
lizada aos dois anos e meio, Sabrina vivia praticamente dormindo devido à me-
dicação recebida. No momento da consulta, os pais se mostraram muito felizes
“começando a conhecer” a Sabrina. Depois da intervenção, os ataques cederam
e, com redução de doses de medicamentos, cessaram as convulsões de Sabrina.
Ela participa de duas sessões semanais de fisioterapia e fonoaudiologia.
Alguns comentários da mãe, retirados da primeira entrevista: “É mui-
to boazinha, pobrezinha, sofreu muito. (...) Estamos conhecendo a ela a nós,
pois antes estava sempre dopada. (...) Entretanto, não fala quase nada, porém
entende tudo. (...) Tem carinho pelo seu irmão menor. (...) Gosta de música e se
movimenta como se quisesse dançar. (...) Assim que a operaram começou a
reabilitação, porque ainda não andava com dois anos e meio.”
Encaminhamento à Musicoterapia: Chega à Musicoterapia encaminhada
pelo neurologista para uma avaliação neuro-sonoro-musical com o objetivo de:
- Estabelecer canais de comunicação sonoro-musicais que facilitem um
processo posterior de avaliação de suas capacidades musicais.
- Reconhecer aspectos de sua identidade sonora em nível expressivo.
- Reconhecer suas preferências e possibilidades de utilizar instrumentos
musicais.
- Elaborar uma possível abordagem para seu problema de atraso de desen-
volvimento psicomotor e de linguagem.

Dados relevantes de sua história de vida sonoro-musical para a


compreensão do Tema Clínico Escolhido

Canções preferidas mais significativas: Campanero, Vamos a remar, Es-


rellita, Canção de Ninar de Brahms, Mary had a little lamb (em castelhano e em
Inglês) e Arroró mi niño, Duerme mi niño (só em castelhano), entre outras can-
tados por sua família e cuidadores para ela e para o irmão menor. Estas canções
estão na tonalidade maior, possíveis de serem acompanhadas com acorde de I, V
e IV graus.

Recortes extraídos da análise e da gravação da segunda sessão


de reconhecimento de suas particularidades e potencialidades na
interação corporal sonoro-musical

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 323


Sabrina veio acompanhada de sua mãe. Quando apresentou
flacidez no hemicorpo esquerdo, podia deslocar-se com pouca ajuda,
utilizando sapatos ortopédicos para compensar a desigualdade no
comprimento das pernas. Apresentava negligência parcial de membro
superior e hipotonia. Sua mão esquerda era ligeiramente menor que a
direita. Sua mãe informou que tinha leves dificuldades com a visão que
estava sendo avaliada. Neste terceiro encontro, sua mãe a deixou e se
retirou. Sabrina aceita ficar na sessão.
3º Encontro, 2ª Sessão com Sabrina:
No início, Sabrina fica sem problemas na sessão, uma vez que
a mãe se foi, porém não inicia nenhuma atividade.
Canção de Saudação, considerando a melodia de uma das can-
ções da história de vida sonora musical, ou seja, familiar para Sabri-
na. Ela olha para a musicoterapeuta, porém não responde.
A Mt. convida Sabrina com uma ordem entoada, chamando-a
para tocar, para brincar com os instrumentos e brinquedos colocados
sobre o colchonete. A Mt propõe uma brincadeira musical de mútuo
reconhecimento do esquema facial. “Nariz de botão” (apontando seu
nariz), ”olhinhos de amêndoa” (idem com os olhos),“boquinha de co-
ração” (idem com a boca). A mesma canção é repetida com cócegas,
com a boneca e com a caixinha de música. Sabrina permite ser tocada,
se mantém atenta, mas sem intervir ativamente.
Ao não ter resposta vocal, a MT comenta que a caixinha de
música em forma de urso tem voz, aciona a caixinha. Ambas a escu-
tam.
Mais tarde: A Mt. convida Sabrina para tocar os instrumentos
cantando uma de suas canções familiares para ela. Vamos remar...
Vamos tocar este pandeiro? Apresenta os sons dos instrumentos. Inter-
rompe e agrega à canção: Agora qual?
Aproximadamente aos cinco minutos de interação e brincadei-
ra, Sabrina estende seu braço direito e aponta o metalofone. Tenta to-
cá-lo com a mão direita sem baqueta, uma baqueta lhe é oferecida pa-
ra que possa agarrar. Cada vez que consegue o som de uma placa,
sorri com satisfação. Não se escuta sua voz. A Mt. escolhe outro meta-
lofone e tenta tocar nos silêncios. Sabrina não tem vontade ou não po-
de dialogar. Ela deixa de tocar. A Mt. dá lugar ao silencio para deixar
Sabrina ter iniciativa.
Um pouco depois: Sabrina aponta a caixinha de música. Desta
vez produz sons com a musicoterapeuta, mão sobre a mão. A Mt. tenta
fazer Sabrina explorar a caixinha com a mão esquerda. Mão sobre a
mão ajuda-lhe a tocar. Sabrina não se interessa. Não se interessa ou
se lembra de que antes de sua cirurgia podia movê-la? Negligência?

324 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Duelos? Frustração? Todas estas respostas cognitivas e emocionais
podem coexistir.

Este pequeno relato provavelmente seja familiar a cada um dos musicote-


rapeutas que o leiam. Atrevo-me a dizer que inclusive as mães gostam de brincar
com música. A diferença não está no “fazer” do aqui e agora, mas na sua ressig-
nificação em função de um projeto de reabilitação ou habilitação para o futuro.
No marco de um processo de Musicoterapia, são levados em consideração
diferentes conhecimentos para integrá-los em busca de melhor qualidade de
atenção de “pessoa a pessoa”, para Sabrina, com sua problemática particular.
Por exemplo, neste caso, é importante conhecer a literatura publicada an-
teriormente, relacionada com o tratamento e evolução de crianças pequenas com
secção parcial do corpo caloso. São relevantes todos os estudos em relação à
neuroplasticidade para ressignificar os conhecimentos da neuropsicologia,
suas mudanças positivas e/ou negativas, e para compreender melhor seus proces-
sos de memória necessários para desenvolver suas capacidades comunicativas.
Porém, Sabrina, antes de tudo, é uma criança, e como tal é única e insubstituível.
Necessita de uma abordagem integral que aproveite suas particularidades de
expressão e percepção da experiência musical terapêutica em um espaço relacio-
nal intersubjetivo.

Informação neurosonoromusical de Sabrina


Este exemplo tem como objetivo mostrar um guia para avaliação sonoro-
musical que resulta de uma adaptação e integração de nossa avaliação neuroso-
noromusical com as descobertas de outros autores como Benenzon, Wigram,
Winnicott e Boxil.
Na primeira sessão incluiu-se a mãe para interagir com ambas em contex-
to não verbal sonoro musical. Em uma entrevista com a mãe foi montada a histó-
ria vital sonora musical de Sabrina.
O que entendemos por avaliação neurosonoromusical: considera-se uma
situação experimental / experiencial de reconhecimento das particularidades
sonoro-musicais e do movimento que serve de estímulo para uma interação con-
textualizada no padrão de uma relação criança-musicoterapeuta. A sequência de
itens (assinalados na proposta adjunta) foi desenvolvida entre os anos 1981/1982
no CIRA - Centro de Investigação e Reabilitação do Afásico19. Desde então foi
utilizado como protocolo de investigação em adultos20, e com ligeiras modifica-
ções para crianças e adolescentes. Mesmo que a avaliação seja um guia de ob-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 325


servação, avaliam-se situações de jogos musicais interativos. Neste caso, o que
foi observado em interação está incluído em cada um dos itens considerados a
seguir. (Para maiores informações, deve-se consultar os anexos 1 a 3 ao final
deste capítulo).

- Interação em geral: A atitude de Sabrina foi de colaboração


com níveis curtos de atenção. Ela aceita o contato físico e a proximi-
dade. Não utiliza a mão esquerda de forma espontânea. A execução de
instrumentos à sua disposição é realizada com a mão direita.
• Comunicação: Apresenta atraso da linguagem. Durante a si-
tuação de jogo sonoro musical interativo, responde às ordens simples
tanto de sua mãe como da musicoterapeuta, sua expressão facial é in-
diferente ou sorri. Em algumas situações aponta alguns objetos e os
pede utilizando palavra-frase. Para suas respostas há que se calcular
certo tempo de latência, ou seja, de espera. Mantendo esta modalidade
de reação, Sabrina pode manter um jogo interativo “eu-tu” por tempo
curto. Não apresenta tiques nem estereotipias.
• Expressão e percepção sonoro-musical: adapta-se ao tempo
externo ao escutar música e balançar-se com ela, de forma espontâ-
nea. Participa com entusiasmo de todas as atividades nas quais é mo-
bilizada junto com a música. Por exemplo: Canto descrevendo seus
movimentos como “Vamos brincar, mexendo a cabeça”,”mexendo a
mão”,”olhando no espelho”. Participa de jogos rítmicos enquanto a
imitação é simultânea, ou seja, que toca “com” a musicoterapeuta.
Não utiliza sua voz para cantar. Reconhece-se na gravação.
• Adapta-se ao tempo externo e ao escutar música. Tem prefe-
rência pelos instrumentos agudos. Durante a avaliação de sua capaci-
dade de improvisação livre os percute ou sacode sem estruturação in-
tencional de sequências rítmicas ou melódicas, utilizando um tempo
levemente mais lento que o habitual para essa idade, ao modo de uma
sonorização direta de tensões. Não pode se desprender do compasso
da música.
• Em situação de improvisação estruturada respeita os turnos
“tu e eu”, se lhe dão ordens cantadas ou faladas. Imita a execução de
instrumentos de forma correta com a mão direita. Não se detém quan-
do termina a execução do instrumento de sustentação ou acompanha-
mento. Por exemplo: Mt. tocando o piano. Não chega a estabelecer di-
álogo sonoro-musical. Ao tocar, Sabrina prestou atenção quando to-
cou o piano, mão sobre a mão, com a musicoterapeuta em blocos.
• Desempenho psicomotor: possui equilíbrio adequado ao sen-
tar-se e ao parar, apresenta negligência do hemicorpo esquerdo, ma-
nipula os instrumentos musicais, os jogos e outros objetos intermediá-
rios.
326 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
RODRIGO

Idade: 17 anos; Sexo: masculino; Naturalidade: La Rioja, Argentina.


Um ano antes da consulta musicoterapêutica, R sofreu um acidente auto-
mobilístico junto com um grupo de amigos. R foi o único que ficou gravemente
ferido e com sequelas: traumatismo craniano e de coluna vertebral. Por causa de
uma infecção na zona cerebral frontal, necessitou de intervenção cirúrgica em
duas ocasiões diferentes. R recebeu tratamento fonoaudiológico para estimular e
facilitar a deglutição, e fisioterapia para a prevenção de complicações derivadas
de sua espasticidade. Depois da última cirurgia realizada há dois meses, até o mo-
mento da entrevista, não haviam sido observados movimentos voluntários em
nenhuma parte de seu corpo. Havia um ano que R se encontrava em Buenos Aires
com sua mãe, enquanto seu pai e seus irmãos permaneciam em sua cidade natal.
A partir da observação sistemática de sua interação sonoro-musical, bem
como dos gestos e dos movimentos que o acompanhavam, pôde-se desenvolver
um espaço acústico-relacional9 com o objetivo de estabelecer uma relação trans-
ferencial, na qual o mesmo vínculo pôde atuar como fomentador de processos
terapêuticos.
Partimos da hipótese de que R compreendia, mas não podia se comunicar.
A sistematização da avaliação nos permitiu selecionar provas que pudessem ser
adequadas às possibilidades de R e, assim, poder incluir elementos de sua histó-
ria de vida sonoro-musical.
Nesta primeira entrevista foi apresentado à musicoterapeuta bem como à
atividade a que nos propusemos a compartilhar. Lembremos que, nesta apresen-
tação, deve-se incluir o nome do profissional e a descrição da atividade. É reali-
zada tanto de forma falada como de forma cantada, com apoio gestual e da mí-
mica. A forma musical escolhida impõe o uso de um centro tonal, de uma escala
menor ou maior, selecionada de acordo com a sensação cinestésica que desperta
no paciente e no musicoterapeuta no “aqui e agora” da sessão musicoterapêutica.
O paciente é outro. Este outro tem o direito de receber a informação que lhe
permita contextualizar a situação na qual se envolve.
Considerando-se os aspectos regressivos de R, a melodia escolhida tem as
características formais de uma canção de ninar em escala maior. Os conteúdos
verbais da canção, além do que já foi colocado, incluíam mensagens como “a-
nima-te a tocar estes instrumentos”, ou perguntas de tipo “conhece estes instru-
mentos?”, e referências à minha disposição de esperar todo o tempo que fosse
necessário para fazermos música juntos. Consideramos que o canto, nestes

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 327


casos, é uma configuração acústica, na qual a música e a palavra se reforçam
mutuamente.

Recorte extraído da primeira entrevista:

Diante das ordens entoadas, R relaxou e suas queixas cederam.


Sua expressão ausente se modificou. No entanto, por não ter uma res-
posta comunicativa, tentou-se um nível mais regressivo, no qual se pu-
desse estabelecer a interação através da expressão corporal.
As próximas canções improvisadas faziam referências ao es-
quema corporal do jovem, em especial, ao seu rosto e às suas mãos.
Acariciando, com suavidade, seu semblante, foram lembrados aspectos
de sua história de vida sonoro-musical. Logo se tentou o mesmo com
suas mãos rígidas e contraídas que ficavam estendidas ao longo do
seu corpo. Recordemos que é importante repetir os mesmos movimen-
tos em ambas as mãos, buscando, de forma sistemática, as pequenas
variações que nos permitem detectar a intencionalidade nas possíveis
mudanças posturais e de movimentos da mão.
Ao fazer uma referência concreta a sua mão, tratando de inte-
grar sensações táteis, cinestésicas, resultantes da pressão, a carícia,
juntamente com a mensagem auditiva mista, formada pelo aspecto
verbal e musical de uma canção, pode-se perceber uma intenção de
movimento no dedo indicador da mão esquerda de R.

Imediatamente foi colocado um pandeiro ao seu alcance, com a finalidade


de estimular o acompanhamento das canções. Ele pode fazê-lo. O manejo varia-
do do tempo foi o que permitiu comprovar que o jovem poderia adequar seu
acompanhamento às variações de tempo propostas. Este foi o ponto de partida.
Resumindo e considerando que a ordem dos elementos musicais tal como
se apresentaram no processo evolutivo normal, podemos observar que:

1. reagiu gestualmente ao ouvir um som;


2. tentou produzir um som com o dedo indicador da mão direi-
ta, o que não ocorreu com a mão esquerda;
3. estabeleceu interação sonoro-musical.
O próximo passo foi avaliar os aspectos receptivos (exemplos).
Reconhecimento de canções conhecidas, possibilidades de dife-
renciá-las de outras. Foi convidado a “acompanhar com a voz”. O
uso da voz, da expressão facial, a explicação falada e cantada; e a e-
xemplificação, ou seja, a integração multissensorial foram algumas

328 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


das ferramentas utilizadas. As expressões de R assim como a emissão
de seus sons começaram a variar.
Ao escutar “Guns and roses” e “Los redonditos de ricota” em
forma de gravação, em seguida “El Hino Nacional” e as canções in-
fantis tradicionais cantadas, teve-se a sensação de que algo mudou. R
vocalizou várias vezes. Entusiasmo? Desgosto? Casualidade? Reco-
nhecimento? Não podemos determinar, com segurança, nesta primeira
sessão. Sem dúvida, ficou claro que N, sua mãe, tinha razão: R tinha
recursos para sair de seu isolamento.

Os leves movimentos voluntários do dedo indicador foram o ponto de par-


tida para o seu tratamento. Foi um passo decisivo quando conseguiu transferir o
que foi realizado em Musicoterapia para sua vida cotidiana. Seu tio desenhou um
dispositivo elétrico que ele pode acessar para indicar o SIM ou o NÃO. R voltou
a ser protagonista de sua vida.
Sabemos que os diferentes métodos de entoação melódica são de extrema
utilidade na reabilitação e na comunicação falada. No caso de R foi utilizada
mais adiante no tratamento.

Eu gostaria de terminar esta breve explanação de ideias com uma anedota.


Em 1985 conheci Philippe Van Eeckhout, terapeuta da linguagem, de origem
belga, destacado por seu trabalho de reabilitação de pessoas afásicas. Em sua
passagem por Buenos Aires apresentou vários casos de abordagem para a recu-
peração da palavra falada a partir de inclusão sistemática dos parâmetros da voz
cantada na reabilitação da comunicação verbal. Como musicoterapeuta, minha
experiência com a voz cantada e a reabilitação do afásico também foi muito
positiva.
Coincidimos com o fato de que a prática demonstrava a utilidade da inter-
venção musicoterapêutica. Se a isso acrescentamos os resultados obtidos, em
Boston, pelo Dr. Martin Albert em 1973, não houve dúvidas de sua eficácia.
Restaria saber se havia alguma maneira de demonstrar que nosso trabalho havia
deixado pistas. Há alguns anos me chegou uma publicação no American Aca-
demy of Neurology1. Nesse estudo com PET, puderam ser detectadas modifica-
ções no fluxo sanguíneo cerebral em sete pacientes afásicos que se submeteram
à terapia de entonação melódica. Os protocolos de avaliação incluíam testes de
repetição de palavras com e sem entoação melódica, e teste de percepção auditi-
va, com variações no fluxo sanguíneo que permitiam levantar hipóteses sobre as
formas de ativação e desativação, normais e anormais, em função da lesão sofri-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 329


da. Considerou-se que o método de entoação melódica produziu uma troca siste-
mática da configuração acústica da linguagem tanto para perceber como para pro-
duzir. Encontrei dados sobre as impressões mnêmicas e seu armazenamento e
sobre como a Musicoterapia favorece uma reorganização interna de nosso cérebro.
Pessoalmente acredito que a inimizade, não declarada, entre as musicote-
rapias psicodinâmicas e as neurológicas deva ser deixada de lado. O estudo e a
experiência musical como tal se relacionam diretamente com o conceito de plas-
ticidade neuronal. Está amplamente demonstrado que a experiência deixa im-
pressões em nosso cérebro.
“Em cada cérebro”13 é um livro publicado por Pierre Magistretti, neuro-
biólogo, e o psicoanalista François Ansermet. Se eles podem unir seus esforços,
não deveríamos também nos unir?
O diálogo entre a musicoterapia psicodinâmica de orientação psicanalítica
e as neurociências está acontecendo. Esta possibilidade de articular saberes em
busca de convergências e complementações é também um alvo na busca da au-
tonomia profissional.
O saber nos torna mais livres como pessoas e profissionais e beneficia,
sem dúvida, aos nossos pacientes. Jamais deveríamos perder de vista o objetivo
final de toda proposta terapêutica, que é “o ser humano que sofre e luta”.

Considerações finais
Recordemos que, neste capítulo, nos propusemos a abordar o trabalho mu-
sicoterapêutico a partir da compreensão integrativa da expressão sonoro-
musical com objetivos terapêuticos no campo da reabilitação neurológica da
pessoa com comprometimento neurológico em geral, e da criança e do adoles-
cente em particular.
A prática clínica e a construção da teoria e da investigação configuram
um sistema de retroalimentação que permite o desenvolvimento e o crescimento
da Musicoterapia em beneficio dos nossos pacientes.
Um processo musicoterapêutico tem uma sequência de procedimentos
formados por:
• entrevistas iniciais;
• reconhecimento das potencialidades e limitações do paciente (assess-
ment) na interação corpóreo-sonoro-musical, instrumental, vocal;
• valorização da informação colhida,valorização da informação recebida;

330 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


• elaboração de estratégias e articulações de recursos no marco interdisci-
plinar da equipe que atende o paciente;
• concepção e seleção de procedimentos específicos e formas de incluir a
experiência sonoro-musical expressiva, receptiva, com instrumentos eleitos, tipo
e forma de musicalização com objetivos terapêuticos;
• observação e valorização sistemática das possibilidades de trocas atribu-
ídas ao processo musicoterapêutico;
• realização de modificações e ajustes no mesmo tratamento;
• análise do processo musicoterapêutico em função de critérios de alta ou
a finalização do tratamento;
• análise interdisciplinar do processo.
Alcançar uma visão integrativa da Musicoterapia para abordagens com
crianças, adolescentes, adultos e indivíduos na terceira idade com problemas
neurológicos ainda vai levar anos.
A partir de estudo sistemático do “complexo som-ser humano-som” se
construiu a hipótese integrativa psiconeuroimunoendocrinológica da experiência
musical e, assim, integram-se os incríveis avanços atuais das neurociências com
os achados das musicoterapias psicodinâmicas e a consideração da influência do
ambiente e dos vínculos na constituição do psiquismo.
Na primeira parte deste capítulo nos referimos brevemente às disciplinas
que têm como objetivo de estudo o “complexo som-ser humano-som”.
A partir da consideração dos constantes e das variáveis da experiência
musical interativa e da sessão de Musicoterapia, refletimos sobre a ressignifica-
ção do produto corpóreo-sonoro-musical (PCSM) resultante e introduzimos o
leitor na lógica dos diferentes modelos de Musicoterapia
Considerando uma visão sistemática multicausal dos processos humanos,
o paradigma da complexidade, procuro transmitir nossa experiência em trabalhar
cada caso de reabilitação neurológica como um sistema aberto de permanente
fluxo de intercâmbios.
Escolhemos o modelo psicodinâmico Benenzon de musicoterapia
(MBMT) por sua ampla difusão nos países de língua latina, para propor um mo-
delo integrativo de tratamento. São incluídos recortes de casos para ilustrar a
conveniência de conhecer não apenas a disciplina, mas também de ter os conhe-
cimentos básicos de inter-relações entre ambas.
Para finalizar este capítulo, sugerimos reconsiderar a importância da expe-
riência musical com fins terapêuticos na formação do musicoterapeuta em seus
níveis de musicalização, musicalidade clínica e musicoterapia didática. É no

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 331


âmbito da equipe interdisciplinar, a partir do manejo dessas experiências, que se
alcançam suas interações e intervenções específicas.

Referências
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intonation therapy: A PET study. Neurology 1996; 47(6):1.504-11.
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3. Benenzon RO. Manual de musicoterapia. Buenos Aires: Paidós; 1981.
4. Benenzon RO. Manual de musicoterapia. Buenos Aires: Paidós; 1986.
4. Benenzon RO, Gainza V, Wagner G. La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen;
5008.
6. Diccionario de la Lengua Española. Madrid: Real Academia Española; 1992. [Tomo
I].
7. Dubourdieu M. Psicoterapia integrativa PNIE: Psiconeuroinmunoendocrinología.
Integración cuerpo-mente-entorno. Buenos Aires: Psicolibros; 2008.
8. Federación Mundial de Musicoterapia. Definición aprobada por el Consejo de la Fede-
ración Mundial de Musicoterapia. 8º Congreso Mundial de Musicoterapia. Hamburgo;
1996.
9. Gallardo RD. Musicoterapia en salud mental. Buenos Aires: Ediciones Universo;
1998.
10. Judd T. Neuropsychological rehabilitation of musicians and other artists. In: Margo-
lin DI [ed.]. Congnitive neuropsychology in clinical practice. New York: Oxford Univer-
sity Press; 1998.
11. Kandel ER. En busca de la memoria. Buenos Aires: Katz; 2007.
12. Kohut H. ¿Cómo cura el análisis? Buenos Aires: Paidós; 1986.
13. Magistretti P, Arsermet F. Cada cual su cerebro. Buenos Aires: Katz; 2008.
14. Murray S. El nuevo paisaje sonoro. Buenos Aires: Ricordi; 1968.
15. Sacks O. El hombre que confundió su mujer con un sombrero. Barcelona: Muchnik
Editores; 1991.
16. Wagner G. Actas del 1er. Simposio Argentino de Musicoterapia. Buenos Aires:
ASAM; 1998.
17. Wagner G. A avaliação neuro-sonoromusical e o tratamento musicoterapêutico de
afásicos. In: Benenzon RO. Teoria de musicoterapia. São Paulo: Summus; 1986. [Cap.
V].

332 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


18. Wagner G. La evaluación neuro-sonoro-musical y el tratamiento musicoterapéutico
del afásico: Aportes para una neurosonología musical. In: Benenzon RO, Gainza V,
Wagner G. La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen; 2008. p. 243-78.
19. Wagner G, Allegri RF, D’Assero L, Sánchez V, Alcoba G, Tamaroff L. Estudio de
las funciones musicales en los pacientes afásicos. In: Benenzon RO, Gainza V, Wagner
G. La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen; 2008. p. 279-87.
20. Wagner G, et al. L’essere musicale come punto di partenza per il recupero di capatà.
In: Benenzon RO. Mussicoterapia e coma. Roma: Phoenix Editrice. p. 163-77.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 333


Anexo 1

Entrevista

Musicoterapêutica
(Wagner)

Entrevista Entrevista com familiar


• Fechada ou com pessoa com a
individual al • Aberta qual convive
• Mista

I. Histoória sonoro-musical
II. Relação con a música
• Ao expressar-se
• Ao escutar
• Ao interagir
• Hábitos
• Desejos
• Gostos
• Rechaços

Os diferentes níveis quantitativos e


qualitativos dos dados obtidos podem ser
correlacionados.
Ao se establecer essa inter-relação,
obtén-se informação sobre as modalidades e
características da interação familiar e/ou social
do paciente.

334 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Anexo 2

Avaliação musicoterapêutica: si-

tuação experiencial e experimental de

reconhecimento das particularidades

sonoro-musicais e o movimento que serve

de estímulo para uma interação contextuali-

Componentes predominan- Componentes predominantemen-


temente expressivos te receptivos

A. Avaliação rítmica: A. Reação espontânea gestual frente ao


material sonoro proposto.
1. Prova de ritmo
2. Prova de ritmo entonado
3. Adequação a tempos externos
4. Reprodução de sequências sonoras B. Reconhecimento do compasso.
(Estruturas não musicasi)
5. Reproducción de estructuras rítmicas.
6. Reprodução de esquemas selecionados C. Reconhecimento melódico.
de improvisação e instrumental
7. Reprodução rítmica de canções

D. Reconhecimento de obras de
preferência mencionadas
anteriormente na entrevista
B. Avaliação do canto
pessoal.
E. Discriminação de sons e reídos gravados.
1. Correspondência som-palabra
C. Autorreconocimiento da voz 2. Correspondência som-imagen
3. Correspondência som- gesto

F. Discriminação e memória auditiva


D. Avaliação do manuseio instrumental

1. Instrumento musical aprendido previa- H. Apresentação vocal de intervalos.


mente.
2. Instrumentos musicales utilizados en
musicoterapia. G. Discriminação de timbres.
3. Valorização da resposta.
4. Aspectos de projeção temporal e formali- I. Superposição de reuídos e/ou sons.
zação.
5. Formalização possível.
6. Comentários verbais durante a e execu-
ção J. Relato surgido por uma sequência de
7. Atitudes corporais. sons representativos de situações
cotidianas. (Decodificação e associação
libre de ideias)

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 335


Anexo 3

ESTÁGIOS DE APROXIMAÇÃO COM


PACIENTES COM PROBLEMAS
DE COMUNICAÇÃO
BENENZON-WAGNER

Primeira etapa: Abertura de canais


de comunicação corpóreo-sonoro-
musical. Reconhecimento da ISO do
paciente.

História de vida sonoro-musical


Testificação do enquadramento não verbal
Testificação dos elos de comunicação familiar.

Segunda etapa: Utilização dos


elementos de comunicação do
paciente en interação

Primeiro Nível

Musicoterapeuta Paciente
Musicoterapeuta Equipe Interdisciplinar de Saúde

Segundo Nível

Musicoterapia Paciente Grupo familiar


Musicoterapia Paciente Grupo de Pais

336 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


12.
MÚSICA, EMOÇÃO E
MEMÓRIA MUSICAL

Cléo Monteiro França Correia

Todos têm uma relação importante com a música, desde tenra idade. Ela
faz parte da vida nas diversas fases evolutivas e em diferentes circunstâncias,
marcando épocas, momentos e pessoas, o que permite a construção da nossa
história sonoro-musical.
Muitas vezes nos recordamos de fatos ao ouvirmos determinadas músicas,
quer sejam agradáveis ou não, e, alguns deles, carregados de emoção, fatos que
jamais seriam lembrados sem o auxílio delas, no caso de pessoas com distúrbios
de memória, devido a doenças neurológicas e/ou psiquiátricas.
Izquierdo12 refere que “somos aquilo que recordamos, literalmente”. Atra-
vés da memória remontamos nossa história de vida e construímos o nosso saber.
Nosso passado nos permite delinear uma trajetória percorrida e criar as bases
para a construção do futuro, fundamentadas nas experiências vividas e na apren-
dizagem. A memória caracteriza a nossa identidade, isto é, a nossa conduta, os
nossos relacionamentos, nossos gostos, nossos pensamentos. As nossas vivên-
cias são muito particulares, pois conferem a essência do nosso ser, que é singu-
lar. Quando se perde a memória, perde-se a própria identidade.
Médicos e psicólogos se preocupam com a história de seus pacientes, a-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 337


lém das queixas que os levam às consultas. Apesar das anamneses se tornarem
cada vez mais aperfeiçoadas para a obtenção dessas informações, pouca ou ne-
nhuma importância se dá para o maravilhoso mundo sonoro que rodeia o ser
humano e que, segundo Benenzon3, traz implicações sobre o psiquismo.
A anamnese musicoterapêutica consiste na coleta de informações sobre a
história sonoro-musical do paciente, do ambiente em que está inserido, enfim, de
suas experiências sonoras particulares, que o identificam e o individualizam. Os
estímulos sonoros e/ou musicais que pertencem a essa história são extremamente
importantes no processo terapêutico, por facilitarem o desencadeamento de rea-
ções, as mais diversas, que possibilitam melhor compreensão de sua dinâmica
psíquica, além de auxiliarem no diagnóstico. Essa história sonoro-musical vai
configurar o que chamamos de “memória musical”.
Muitas vezes, o estímulo auditivo pode tornar-se uma ferramenta mais
importante que o visual ou tátil, numa determinada situação terapêutica e, sobre-
tudo, numa avaliação neuropsicológica.
Temos observado, na prática clínica musicoterapêutica, que pacientes com
alterações da linguagem verbal e déficit de memória apresentam preservação da
memória musical, o que lhes permite cantar – e com a letra – as músicas de suas
histórias sonoro-musicais. Isso faz com que sintam alegria e prazer por realizar
algo enquanto cantam. Por isso damos importância a esse tipo de memória. É
bem verdade que, nas doenças degenerativas, por exemplo, essa preservação
permanece por certo período de tempo, variando de pessoa para pessoa; dessa
forma essa habilidade poderá ficar comprometida, impedindo que o paciente se
recorde da letra, ou de parte dela, assim como da melodia. À medida que avança
o declínio cognitivo, as habilidades musicais também podem ficar comprometi-
das. As habilidades em questão não envolvem apenas melodia e letra, mas tam-
bém a percepção do timbre, duração, altura, harmonia, ritmo, bem como as ca-
pacidades de reconhecimento e discriminação.
Entre os pesquisadores podemos citar David Aldridge2, que tem sido in-
cansável estudioso dessas questões e tem publicado diversos trabalhos e livros a
esse respeito.
Antes de falarmos sobre memória musical, convém fazer uma abordagem
sobre memória. Esta consiste no “processo pelo qual aquilo que aprendemos
perdura no tempo”. Assim sendo, a aprendizagem e a memória estão intimamen-
te relacionadas2. A memória “consiste na aquisição, formação, conservação e
evocação de informações”12. Esse conceito, por si só, traduz os passos necessá-
rios para a retenção da informação recebida.

338 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Tendo em vista o avanço do conhecimento e a convergência entre a psico-
logia e a biologia, verificou-se que existem vários tipos de memória, envolvendo
as experiências sensoriais, motoras, musculares e, consequentemente, a existên-
cia de diferentes áreas cerebrais envolvidas, razão pela qual se fala em memó-
rias. Essas memórias são moduladas pelas emoções, pelo nível de consciência e
pelo estado de ânimo12. A literatura classifica os tipos de memória, referindo que
essas classificações são feitas de acordo com a sua função, com o tempo de du-
ração e com o seu conteúdo.
Consideremos, em primeiro lugar, a memória de trabalho. Classifica-se
segundo a sua função, que consiste em manter, durante alguns segundos, ou no
máximo, alguns minutos, a informação que está sendo processada. É conhecida
também como memória imediata, e diferencia-se das demais por não produzir
arquivos. Possui um papel “gerenciador”, o que significa determinar se qualquer
informação recebida é nova ou não, e, no último caso, se é necessária ou não,
devendo acessar rapidamente as memórias preexistentes do indivíduo12. Esse
tipo de memória é processado principalmente pelo córtex pré-frontal10,12. Alan
Badley enfatizou que vários componentes da memória verbal e não-verbal são
controlados por uma função executiva central, e os lobos frontais têm um papel
decisivo nesse processo32.
Segundo o conteúdo, as memórias podem ser declarativas e procedurais
ou de procedimentos12. As declarativas são aquelas que registram fatos, eventos
ou conhecimento, pois podemos relatá-los. Podem ser episódicas e semânticas.
As memórias episódicas se referem a eventos que assistimos e do qual partici-
pamos. As episódicas são autobiográficas. As semânticas se relacionam ao co-
nhecimento adquirido. As memórias procedurais são aquelas envolvidas com as
memórias de capacidades ou habilidades motoras ou sensoriais, geralmente co-
nhecidas como “hábitos”. Tanto as memórias declarativas como as procedurais
podem ser divididas em memórias implícitas e explícitas. As explícitas são as
adquiridas com a intervenção da consciência, enquanto as implícitas são geral-
mente adquiridas de forma automática, sem que o indivíduo perceba. Trata-se de
uma memória que é recordada inconscientemente. Envolve o treinamento de
atividades reflexas motoras ou perceptuais14.
Para que as memórias episódicas e semânticas funcionem adequadamente,
em qualquer uma das fases, é necessária boa memória de trabalho e, consequen-
temente, bom funcionamento do córtex pré-frontal12.
Atualmente se sabe, então, que existem vários tipos de memória, que dife-
rentes estruturas cerebrais realizam diversas funções, e que a memória é codifi-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 339


cada em células nervosas individuais e depende de alterações na intensidade das
suas ligações31.
As estruturas do lobo temporal (LT), como o hipocampo, o córtex entorri-
nal, o córtex perirrinal, o córtex para-hipocampal e a amígdala, são estruturas
importantes nos mecanismos de memória, segundo a análise comparativa dos
diferentes casos de amnésia e os experimentos realizados em macacos. Atual-
mente se sabe também que o hipocampo coordena o processo de consolidação
dos engramas da memória explícita, que provavelmente se realiza em outras
áreas do córtex. Esta hipótese é reforçada pelas várias conexões que o hipocam-
po mantém com as demais regiões do lobo temporal medial (LTM) e, através
delas, com várias regiões corticais, principalmente, o córtex pré-frontal, o córtex
parietal e as regiões anteriores e laterais do LT18.
A memória de longa duração, ou memória remota, se forma por meio de
vários processos metabólicos no hipocampo e de outras estruturas cerebrais que
envolvem diversas fases e requerem de três a oito horas13. Enquanto esses pro-
cessos não estiverem concluídos, as memórias de longa duração permanecem
instáveis. A memória de curta duração requer as mesmas estruturas nervosas que
a de longa duração, mas envolve mecanismos próprios e distintos12.
Os estudos têm revelado que uma lesão do LTM não prejudica a percep-
ção, mas a memória declarativa. A memória é uma consequência normal da per-
cepção, e o LTM possibilita os efeitos duradouros da experiência de percepção3.
Os autores acrescentam, ainda, que uma lesão bilateral nos LTMs produz deteri-
oração seletiva e grave na memória declarativa, uma síndrome clássica conheci-
da como amnésia.
As informações mais relevantes sobre processos musicais surgiram na úl-
tima década e têm emergido de estudos com neuroimagem; porém, a maioria
está voltada para os aspectos perceptuais23,29,33. Poucos estudos com neuroima-
gem, psicofísicos e neuropsicológicos têm tratado os aspectos mnemônicos da
música, e também é pouco considerado o conceito de uma memória musical
“modular” nas literaturas neuropsicológica e psicológica22.
Inicialmente cremos ser interessante ressaltar uma discussão sobre memó-
ria musical, ocorrida entre dois autores argentinos.
Kremer e Caeiro15 elaboraram um editorial para a Revista Medicina (Bue-
nos Aires), relatando que um médico, em uma clínica da cidade, estava distraído,
assobiando, quando foi interceptado por um paciente portador da Doença de
Alzheimer, cuja memória episódica estava comprometida. Este lhe disse gostar
muito de ouvi-lo assobiar e acrescentou que sabia o que assobiava: “era Addio

340 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Del Passato, uma das mais lindas árias da Traviata”. Dias depois do ocorrido
esse médico contou o fato para o especialista que acompanhava o paciente, o
qual lhe respondeu “que se tratava de um caso típico de preservação da memória
semântica” porque, segundo ele, utiliza uma linguagem simbólico-matemática
que serve para interpretá-la, e, por sua vez, quem a escuta experimenta a emoção
dos sons, aprende códigos e, às vezes, chega a conhecê-los de memória, evocá-
los e reproduzi-los. Por outro lado, o paciente não se recordaria quando e onde
escutou pela primeira vez a Traviata porque sua memória episódica estava pre-
judicada. No entanto, conservava a memória dos símbolos para os quais, neste
caso, sua amígdala havia dado, em algum momento do passado, importante valor
emocional, que os tornavam dignos de ser lembrados.
Finkielman9, pouco tempo depois, fez uma reflexão sobre memória musi-
cal à luz do artigo publicado por Kremer e Caeiro. Esclareceu que “semântica”
se refere ao uso de signos que representam coisas; os signos requerem que al-
guém os emita e que o outro os receba, como as palavras, sinais de trânsito, entre
outros, o que é muito claro para ele. O que não lhe parece claro, no entanto, é
que a ária Addio Del Passato, da Traviata, ou qualquer outra composição musi-
cal seja signo de algo por si mesma. Na verdade, ainda segundo o autor, há mú-
sicas às quais são atribuídos significados, como o hino nacional, que é símbolo
de um país, ou o canto de salmos, que é símbolo religioso. Ele acredita que a
percepção e a evocação musicais não se localizam na mesma região cerebral que
a compreensão, emissão e evocação da palavra, ou que a música e a palavra
tenham um mecanismo similar de memória. Para o autor, a música não é signo,
mas algo diferente, e o signo desse algo é a notação musical, que se percebe pela
visão, como a linguagem escrita, mas não provoca a evocação das palavras, e
sim a evocação de melodias, que não são signo de nada, senão algo significado
pela notação (pelo menos para os músicos).
Luria19 refere que a investigação da capacidade de ouvir um trecho meló-
dico, memorizar e reproduzi-lo é importante para o estudo da memória não-
verbal, intimamente relacionada à integridade das regiões temporais, habitual-
mente do hemisfério não dominante e das regiões pré-motoras do córtex cere-
bral. Dificuldades na memorização de melodias podem constituir a única mani-
festação neuropsicológica associada à lesão temporal direita.
Reagir a uma peça musical requer mais do que habilidades perceptuais do
córtex auditivo, uma estrutura situada em cada um dos lobos temporais, mais preci-
samente no sulco lateral. Requer memória de trabalho, em que fragmentos de músi-
ca podem ser armazenados enquanto o cérebro dá sentido à música como um todo1.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 341


Muitos dos conhecimentos das relações complexas entre o cérebro e a
mente foram adquiridos em estudos envolvendo pacientes com epilepsia do lobo
temporal. As pesquisas envolvendo epilepsia e música têm merecido especial
atenção, como as que se referem às chamadas crises parciais psíquicas simples,
durante as quais o paciente epiléptico pode relatar o que Penfield denomina de
resposta experiencial. O paciente pode recordar canções ouvidas na infância,
ouvir vozes familiares, padrões sonoros complexos (ruídos) e, até mesmo, músi-
ca orquestral20,26.
Plenger et al.24 elaboraram uma pesquisa que se refere mais especifica-
mente ao envolvimento de áreas cerebrais com a memória musical. Estudaram
31 pacientes com crises parciais complexas intratáveis, associadas tanto à epi-
lepsia do lobo temporal esquerdo (ELTE) quanto à do lobo temporal direito
(LTD), os quais se submeteram ao Teste de Wada para determinar se a memória
específica para padrões sonoros não familiares poderia ser demonstrada pelo
LTM direito. Os achados mostraram que não houve diferença entre os pacientes
com ELTE e com ELTD durante a injeção no hemisfério cerebral direito, suge-
rindo nenhum envolvimento específico das estruturas do LTM esquerdo. Contu-
do, efeito significativo foi observado durante a injeção de anestesia temporária
na carótida esquerda, quando o grupo de pacientes com ELTE mostrou melhor
desempenho do que o grupo de pacientes com ELTD, sugerindo que as estrutu-
ras do LTM direito desempenham papel específico na mediação da memória
para música.
As pesquisas em pacientes com lesão cerebral têm sugerido que a memó-
ria musical tem uma organização cerebral diferente da de outros tipos de memó-
ria, como a visual e a verbal. Os relatos clínicos mostram que, embora a identifi-
cação e o reconhecimento de uma peça musical pareçam envolver ambos os
hemisférios, a integridade do hemisfério esquerdo parece ser crucial, como foi
ilustrado por um paciente que apresentava lesão desse hemisfério. Ele apresenta-
va dificuldade para a identificação melódica, apesar de a discriminação melódica
se manter preservada8. Os autores descobriram que distúrbios na identificação
melódica estavam dissociados dos distúrbios de linguagem, o que foi observado
após as lesões cerebrais que envolveram especificamente processos semânticos
verbais.
Com o surgimento das técnicas de neuroimagem, vários estudos passaram
a mostrar que distintas redes neurais são responsáveis pela recuperação de me-
mórias episódica e semântica, mas apenas para material verbal e visual. Reco-
nhecendo a escassez de estudos a esse respeito, Platel et al.22 realizaram pesquisa

342 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


utilizando a tomografia por emissão de pósitrons (TEP) para identificar os subs-
tratos neurais subjacentes aos componentes episódico e semântico da música,
fazendo uso de melodias tonais familiares e não familiares. A casuística foi
composta de nove estudantes universitários jovens e não músicos (sem estudos
técnicos e conhecimentos musicais). Os autores apresentaram definições de me-
mória semântica musical e memória episódica musical, de extrema importância
para os musicoterapeutas. Definiram memória semântica musical como aquela
que se refere ao extrato musical bem conhecido, armazenado na memória sem,
contudo, ser possível recuperar as circunstâncias temporal e espacial que o en-
volvem. Já a memória episódica musical se refere à capacidade para reconhecer
um trecho musical (se familiar ou não), no qual esteja envolvido um contexto
espaço-temporal (quando, onde e como) que possa ser lembrado. Os resultados
mostraram distintos padrões de ativação. Na avaliação da memória episódica
foram observadas ativações bilaterais do giro frontal superior e médio e precú-
neo (mais proeminente no lado direito), enquanto que, para a memória semânti-
ca, extensas ativações foram observadas no córtex frontal orbital e médio bilate-
ralmente, no giro angular esquerdo e, predominantemente, na parte anterior es-
querda do giro temporal médio. Os autores concluíram, então, a existência de
uma especificidade para a memória musical.
Praticamente nada se conhece sobre a anatomia funcional da memória
musical; porém, os poucos trabalhos aos quais tivemos acesso indicam a media-
ção do LTD para a memória musical.
Com esses dados, o musicoterapeuta pode ter alguns subsídios para as in-
tervenções terapêuticas com pacientes que apresentem distúrbios neurológicos,
devendo se preocupar com a realização prévia de uma avaliação das “funções
musicais” que compreendem o conjunto de atividades cognitivas e motoras en-
volvidas no processamento da música, e que exigem operações mentais multi-
modais, uma vez que sua realização implica na modalidade auditiva para apreci-
ar melodias, ritmos, harmonias e timbres (combinação que define uma peça mu-
sical), e na modalidade motora para a execução musical, a qual requer a coorde-
nação de diversos músculos e os processos cognitivos e emocionais envolvidos
na interpretação da música30.
Quantificar os efeitos emocional e psicológico do som e da música consti-
tui tarefa difícil, por envolver, muitas vezes, aspectos qualitativos e subjetivos,
que nem por isso devem ser negligenciados.
Os efeitos da música podem ser sentidos em diferentes ambientes e situa-
ções (social, profissional, em publicidade, nos esportes, na televisão, para citar

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 343


apenas alguns). Atingir as emoções é um dos principais objetivos da música. Por
essa razão, cineastas, anunciantes (publicitários), instituições religiosas, por
exemplo, creem no fato de que o tipo certo de música pode proporcionar, com
sua imagem, mudanças emocionais no ouvinte, provocando-lhe reações que
poderão levá-lo à tomada de decisões.
A música pode também afetar as emoções para melhorar o desempenho
em corridas de longa distância, na ginástica aeróbica e em modalidades esporti-
vas de competição, aumentando a resistência física e contribuindo para o contro-
le da dor28.
Essa propriedade de evocar fortes emoções é particularmente curiosa por-
que, diferentemente de outros estímulos que evocam emoção, tais como o olfato e
o paladar, a música obviamente não tem valor biológico, ou de sobrevivência4.
Embora tenham sido observadas mudanças em certos processos fisiológicos em
resposta à música7,16, correlatos neurais de respostas emocionais, sua relação com
a percepção musical e com outras formas de emoção não têm sido estudados4.
Convém salientar, inicialmente, alguns aspectos relacionados à emoção.
Goleman11 refere a importância da etmologia da palavra. A palavra emoção vem
do latim movere (mover), acrescida do prefixo “e”, que significa “afastar-se”,
indicando que em qualquer emoção está implícita uma propensão para um agir
imediato.
LeDoux17 comenta que as emoções são o “os fios que interligam a vida
mental. São elas que definem quem somos nós, para nós mesmos e para as ou-
tras pessoas”.
Na verdade existem diferentes explicações para as emoções, mas muitos
cientistas apontam os estudos de LeDoux17 como dos mais abrangentes. Para
este pesquisador, a ciência cognitiva busca a compreensão da forma como adqui-
rimos o conhecimento do mundo que nos cerca e da forma como fazemos uso
dele para viver. Porém, a emoção não está incluída. O autor refere que a mente
não existe sem a emoção. “As criaturas tornam-se almas de gelo – frias, sem
vida, desprovidas de desejos, temores, tristezas, sofrimentos e prazeres” (p. 24).
Para Damásio6, as estruturas neocorticais, responsáveis pela racionalidade,
não parecem funcionar sem as estruturas subcorticais, responsáveis pela regula-
ção biológica. As emoções e os sentimentos que constituem a essência da regu-
lação biológica parecem estabelecer uma ponte entre os processos racionais e os
não racionais, entre as estruturas corticais e subcorticais.
A pesquisa de LeDoux17 revela a existência de uma estrutura cerebral,
com o papel de “sentinela emocional”, que é a amígdala. O autor mostra que

344 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


sinais sensoriais do olho ou do ouvido, percorrem um trajeto, no cérebro, que
atinge inicialmente o tálamo e, depois, por uma única sinapse, a amígdala; um
segundo sinal do tálamo é encaminhado ao neocórtex, que é o cérebro pensante.
Essa ramificação permite que a amígdala comece a dar uma resposta antes do
neocórtex, uma vez que ele elabora a informação, em diferentes níveis dos cir-
cuitos cerebrais, antes de percebê-la integralmente, para depois dar início a uma
resposta mais elaborada.
Essa informação é relevante principalmente para os musicoterapeutas, por
oferecer subsídios para o emprego adequado de estímulos sonoros e/ou musicais
especialmente com indivíduos que apresentem dificuldades de expressão verbal,
seja por depressão ou por comportamento esquizofrênico, na ocorrência de um
embotamento afetivo, caracterizado pelo grande envolvimento com as próprias
angústias e pela indiferença à realidade. É quando esses estímulos alcançam os
indivíduos através da emoção, sem que haja a necessidade de sua compreensão
ou análise.
Embora as mudanças neurais, estimuladas musicalmente, pareçam afetar
uma ampla rede de estruturas neurológicas, comportamentos específicos, respos-
tas autonômicas e secreções hormonais que fazem parte do processo emocional,
podem também ser controladas por sistemas neurológicos distintos. A amígdala
é uma estrutura que integra o mecanismo de controle dessas respostas. É uma
estrutura límbica localizada no LT e responsável pelas reações comportamentais
a objetos ou estímulos que são percebidos, por serem de significância biológica
especial. Serve como um ponto focal entre sistemas sensoriais, tais como o sis-
tema de recepção auditiva para a música e sistemas efetores que são responsá-
veis pelos componentes da emoção, acima descritos25.
O suporte neuropsicológico para o sistema de memória baseado na per-
cepção da música deriva especialmente de estudos em pacientes com lesão cere-
bral. A perda persistente da habilidade para o reconhecimento musical pode
ocorrer apesar da existência de um processo perceptual normal ou próximo do
normal. Além disso, tal perda de memória pode ser restrita à música21.
Quando se fala em emoção e memória, é natural que se ressalte o fato de
que as memórias são fortemente moduladas pelos estados de ânimo e emocional,
o nível de alerta e o estresse.
Izquierdo1 explica de uma forma bem didática as questões relacionadas à
memória. Ele cita o fato de que a modulação da aquisição e a das fases iniciais
da consolidação ocorrem praticamente ao mesmo tempo, tornando-se difícil
distinguir uma da outra. Ela envolve dois aspectos:

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 345


1) distingue as memórias com maior carga emocional das demais e faz
com que as primeiras sejam gravadas mais intensamente;
2) em determinadas circunstâncias, acrescenta informação neuro-humoral
ou hormonal no conteúdo das memórias.
Poucos são os trabalhos que se referem à música, emoção e memória. Na
última década se intensificaram os estudos com a utilização de técnicas de neu-
roimagem, mas com pessoas sem história de doenças neurológicas ou psiquiátri-
cas, com a finalidade de identificar as áreas cerebrais ativadas pela música, de
preferência individual. Esses estudos são importantes por mostrar como o cére-
bro responde à música, o que embasa o seu emprego no contexto terapêutico.
Outros sugerem que as habilidades musicais podem se mostrar preservadas,
mesmo quando outras funções cognitivas falham2,5,27. Assim sendo, fatos mar-
cantes podem ser lembrados através da música, que faz parte de nossa história
sonoro-musical e que nos remete a momentos de alegria ou de dor. Momentos
como esses podem ser vivenciados até por pessoas com distúrbios de memória,
pois a música funciona como um disparador de lembranças, e as respostas, ou
reações, não ocorrem necessariamente com o uso da palavra, mas com todo o
seu ser, ou seja, com o olhar, a expressão facial, a emissão de um som qualquer,
movimentos, choro, risos, canto ou outras formas de manifestação. Estudos co-
mo o de Sánchez27 apontam também que os sistemas de memória musical podem
ser diferentes de outros sistemas de memória declarativa. Esse fato é extrema-
mente importante porque os musicoterapeutas clínicos, especializados em aten-
dimento a pacientes neurológicos, podem elaborar programas de reabilitação que
possibilitem estimular as memórias de trabalho e episódica, além de promover a
construção de suas histórias de vida.

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Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 347


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348 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


13.
AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA
EM MUSICOTERAPIA

Maristela Smith

Avaliar, em Musicoterapia, significa apreciar musicalmente. O objetivo,


durante uma avaliação, é o de colher dados sonoro-musicais através de entrevis-
tas, observações diretas e aplicação de verificações. Portanto, o procedimento do
musicoterapeuta deve ser o mais neutro possível, isto é, permitir o mínimo de
interferências que possam “mascarar” o resultado dos dados, que são analisados
como pontos de partida para se entrar em discussão e obter o máximo de conhe-
cimento do perfil sonoro-musical dos sujeitos.
A palavra “diagnóstico” se origina do grego e significa “discernimento,
faculdade de conhecer, de ver atrás de”1.
Ora, em Musicoterapia Clínica, é inevitável diagnosticar, uma vez que
sempre vamos à busca da compreensão de um fenômeno.
E o que seria compreender o fenômeno?
Seria discernir aspectos, características e relações existentes.
Para se chegar a isso utilizamos meios, processos de observações, de ava-
liações e de interpretações que se baseiam em nossas percepções, experiências,
informações adquiridas e formas de pensamento.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 349


A compreensão do fenômeno se confunde com o diagnóstico, se analisar-
mos em sentido mais amplo; mas, se analisarmos em sentido restrito, utiliza-se o
termo “diagnóstico” para referir-se à possibilidade de conhecimento, que vai
além daquela que o senso comum pode dar, ou seja, à possibilidade de “signifi-
car a realidade que faz uso de conceitos, noções e teorias científicas”1.
Em Musicoterapia procuramos ler as expressões sonoro-musicais de pes-
soas em curso de processo terapêutico, a partir de conhecimentos musicais; rea-
lizamos um diagnóstico nos campos da ciência, da filosofia e das artes, especifi-
camente da arte musical.
A Musicoterapia envolve três etapas de procedimentos ou “formas básicas
que podem ocorrer simultânea ou separadamente. São elas: avaliação diagnósti-
ca, tratamento e avaliação”. O objetivo da primeira forma, que é a que nos inte-
ressa neste momento, é observar o cliente para conhecê-lo melhor e identificar
problemas, necessidades, preocupações e recursos que traz para a terapia. Quan-
do a avaliação tem objetivos “diagnósticos”, a base está nos critérios diagnósti-
cos feitos pela equipe de saúde e, dessa forma, o musicoterapeuta explica e clas-
sifica a condição do cliente de acordo com os sintomas. É o caso, por exemplo,
quando propomos que o cliente imite padrões rítmicos para determinarmos se há
evidências de deficiências da memória recente ou da percepção4.
Sabemos que a música é objeto de estudo de várias áreas de conhecimen-
to, porém analisada sob ângulos diferentes. No nosso caso, o objeto de estudo é a
“música interna”, aquela que compõe o indivíduo, aquela que se estende ao lon-
go da vida, a partir da sua formação genética e mesmo antes dela. Portanto, apli-
camos a esse objeto os conhecimentos de muitos saberes.
A Musicoterapia se insere não só no conjunto das Ciências Humanas, mas
também no das Ciências Biológicas, dependendo do núcleo de interesse da pes-
quisa. Por exemplo, pertence ao campo das Ciências Biológicas quando o foco é
voltado à maturação sonoro-musical, com atenção ao aspecto neurológico, refle-
tido no exercício das funções motoras; crianças com distúrbios da aprendizagem
se beneficiariam de “musicodiagnósticos” por estarem diretamente ligados ao
pragmatismo e ao sucesso escolar. Entram aí os aspectos orgânicos associados
ou como causadores da queixa apresentada no ato da entrevista. Utilizamos seus
conhecimentos para a compreensão do fenômeno musical interno humano. Nes-
sa construção da identidade musicoterapêutica, surgem musicoterapeutas de todo
o mundo apresentando criações teóricas e metodológicas próprias. Sabemos que
os métodos que estudam a música e suas relações com o comportamento do ho-
mem, dentro de um contexto interpessoal, têm sugerido esse tipo de preocupa-

350 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


ção. O que caracteriza o nosso trabalho são o objeto de estudo, os conhecimentos
e os métodos utilizados. A partir daí nosso campo se delimita e, como conse-
quência, nossa identidade profissional se desenvolve.
Para construir o estudo de um diagnóstico musicoterapêutico, há necessi-
dade de esclarecer funções exclusivas do musicoterapeuta, bem como dominar
procedimentos e técnicas musicais e musicoterapêuticas propriamente ditos. Há
que, de início, se definir comportamentos e, para tanto, construir uma linguagem
científico-artística, com o uso de termos técnicos referentes aos dois saberes,
considerados interdisciplinares em Musicoterapia: música e ciência.
Há concepções e estruturações diferentes para conceituar diagnóstico em
Musicoterapia. Encontram-se, muitas vezes, termos como: musicodiagnóstico,
psicomusicodiagnóstico, estudo de caso em Musicoterapia, avaliação musicote-
rapêutica ou musicoterápica, diagnóstico musical e outros. São as diversas posi-
ções profissionais de grupos de musicoterapeutas formados em diferentes esco-
las, voltados a interesses específicos e pertencentes a culturas diversificadas que
determinam o caminho a ser adotado. Ao se propor atuar profissionalmente, é
interessante explicitar sobre quais fenômenos se pretende atuar e quais os refe-
renciais teóricos, métodos e procedimentos a utilizar.

“Musicodiagnóstico”

Entendamos “musicodiagnóstico” referido a um determinado momento de


vida do indivíduo, constituindo sempre uma hipótese diagnóstica, por mais com-
pleto que seja. A prática do “musicodiagnóstico” é anterior à prática clínica. Seu
objetivo é organizar elementos musicais presentes no ser humano, decorrentes da
somatória de fatores genéticos, ambientais e culturais, de forma a obter uma
compreensão do cliente, a fim de ajudá-lo. Além disso, subsídios úteis são for-
necidos ao clínico, que confirmarão ou não as hipóteses levantadas a revisões e
reformulações teóricas. Ao realizarmos o “musicodiagnóstico” temos que consi-
derar o contexto no qual nossa atuação está inserida. O que se prevê é o conhe-
cimento das necessidades ou problemas sonoros, rítmicos e melódicos com todos
os seus matizes no ser humano.
O “musicodiagnóstico” é o resultado da aplicação de um conjunto de ava-
liações que envolvem os fatores determinantes do perfil sonoro-musical da pes-
soa. Esse, no entanto, abrange aspectos da voz, do corpo e da forma de relação
estabelecida entre os instrumentos musicais e não-musicais e ele. Ao se avaliar,
objetiva e subjetivamente, está-se “congelando” uma situação, isto é, está-se

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 351


“retratando” momentos em que as diversas partes de um todo “responderam”
diante de estímulos e de reações obtidas. Para que o “musicodiagnóstico” não se
torne uma demonstração estática, ou seja, sem movimento, é necessário que
esses encontros iniciais sejam relatados de forma dissertativa, concomitantemen-
te com as sinalizações feitas nas fichas.
O relatório objetivo, ou descritivo, servirá para narrar o evento, naquele
momento, incluindo o “setting musicoterapêutico” e a conduta do paciente, em
ordem cronológica; estamos nos referindo a um modo de registro contínuo, tam-
bém chamado de registro cursivo em Musicoterapia.
O relatório subjetivo, ou dissertativo, servirá para interpretar as ações so-
noro-musicais demonstradas, no sentido de interligá-las entre si.
Estamos numa fase de busca de um conhecimento objetivo que, histori-
camente, se baseia nos modelos apontados por Ruud6. O trabalho em diagnóstico
feito por musicoterapeutas, junto a médicos, psicólogos, sociólogos, etnomusicó-
logos, filósofos, arte-terapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais ou músi-
cos, vem marcando o início de uma atuação profissional mais específica, com
ênfase a aspectos “musicopatológicos”, mas com grandes dificuldades classificató-
rias. A utilização de critérios se justifica na busca de uma linguagem comum.
No sentido de podermos estabelecer diferenças sonoro-musicais para ori-
entarmos pais, professores, ou simplesmente complementarmos a própria capa-
cidade de autoconhecer-se do cliente, tentamos desenvolver testes musicais que
determinem aptidões e dificuldades no âmbito do componente musical existente
em todo ser vivente.
É nessa visão de homem que o musicoterapeuta busca identificar, classifi-
car e medir características “genético-musicais” do comportamento humano, con-
sideradas transformadoras “do” e transformadas “pelo” ambiente sonoro que o
rodeia.
Nessa pesquisa a preocupação em estudarmos o comportamento sonoro-
musical está em se alcançarem leis que o regem, bem como variáveis que nele
influem, para que possamos montar planos de ação musicoterapêuticos que subs-
tituam, modelem, modifiquem ou mesmo mantenham certas condutas.
Com base numa análise mais filosófica, entendemos que, em todo conhe-
cimento humano, não há como negar a participação de sua subjetividade. Portan-
to, não se admite uma musicoterapia positivista, objetiva, experimental pura.
O homem não pode ser estudado como mero objeto que expressa objeti-
vamente todo o seu potencial sonoro-musical, pelo menos no que diz respeito à
atuação da musicoterapia interativa.

352 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Há que se introduzir à musicoterapia processual um modelo palpável, vis-
to como um suporte inicial para o desenrolar das sessões clínicas que, aí sim,
alcançarão o indivíduo em sua totalidade.
Acreditamos que podemos, então, situar o estudo do modelo de musicodi-
agnóstico aqui proposto na abordagem fenomenológico-existencial, uma vez que
os dados obtidos nas entrevistas e avaliações, ou seja, na montagem da história
sonoro-musical, ajudam no autoconhecimento ou delimitam os limites entre o
musicodiagnóstico e a intervenção musicoterapêutica.
Em nossa área recebemos influência também da Psicanálise e, nas entre-
vistas utilizamos observações e técnicas projetivo-sonoras adaptadas3, desenvol-
vendo o estudo da relação musicoterapeuta-paciente e do último com as transfe-
rências e contratransferências2. Por aí, alguns instrumentos diagnósticos sutis
apresentados pela Musicoterapia permitem verificar o que se passa com o indi-
víduo por detrás do comportamento sonoro-musical expresso ou aparente. En-
tendemos que, se a Musicoterapia propõe uma junção tríplice da ciência, filoso-
fia e arte musical, no bojo de uma intersecção, é porque propõe o olhar por trás,
aquilo que ultrapassa a aparência.
As variações de atuações em Musicoterapia clínica são inúmeras, decorrentes
das diversas abordagens da prática “musicodiagnóstica”. Percebemos que muitos
desses conhecimentos são empíricos e com desenvolvimento bastante incipiente. As
teorias que estão se apresentando em Musicoterapia estão exatamente querendo
provar sua eficácia, persistem cada vez com maior intensidade em nossa história.
Entretanto, cremos que nenhuma delas será suficiente para responder a todas as
questões colocadas pela Musicoterapia, o que nos leva obrigatoriamente a uma inte-
gração. Em outras palavras, parece claro o pensamento de que, para se compreender
o homem, é necessário organizar conhecimentos biopsicossociais.
As influências institucionais e das próprias necessidades e desejos dos
musicoterapeutas que, infelizmente, nem sempre são trabalhados em terapia, são
questões éticas importantes a serem levadas em consideração, pois caem muitas
vezes na limitação da autonomia do trabalho do musicoterapeuta que é obrigado
a atuar contra seus princípios formadores, devido a pressões do mercado e a
questões trabalhistas, condições organizacionais presentes.
O profissional musicoterapeuta deve elaborar “musicodiagnósticos” que
sejam voltados à nossa realidade sócio-econômica e cultural. Como afirma An-
cona-Lopez1, devemos lembrar que “... o conhecimento é contingente, as técni-
cas não são regras imutáveis, e toda sistematização é provisória e passível de
reestruturação” (p. 13).

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 353


Concepção teórica e procedimentos

A validação deste instrumento foi executada a partir de amplo espectro de


clientes atendidos em consultório particular e de pacientes do Hospital-Dia do
Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de
São Paulo – Escola Paulista de Medicina, no ano de 2000.
Em primeiro lugar temos que definir comportamentos e, para tanto, deve-
mos:
- Usar uma linguagem científico-artística, ou seja, termos técnicos perten-
centes a dois saberes, em princípio contraditórios: ciência e arte;
- Definir e conceituar esses termos, explícita e completamente;
- Empregar elementos pertinentes, incluindo tudo o que é indispensável;
- Dar denominação apropriada, que lembre o que se deseja designar.
Fagundes5 refere que “o estabelecimento prévio de definições comporta-
mentais é útil porque facilita o trabalho do observador e, por eliminar as contra-
dições existentes nas noções que cada um tem a respeito dos mesmos compor-
tamentos, permite haver uma maior concordância entre os observadores quanto à
ocorrência dos comportamentos sob observação” (p. 43).
A consequente necessidade de sistematizar a prática musicoterapêutica le-
vou-nos à elaboração deste modelo de avaliação, baseado no registro do compor-
tamento sonoro-musical de clientes submetidos ao processo de musicoterapia
interativa – subárea da profilaxia – e de pacientes – subárea do tratamento.
A contribuição maior na utilização desse modelo é, antes de tudo, possibi-
litar um enriquecimento quanto ao conhecimento da prática existente até então,
no sentido de registrar a observação e grafá-la e da reflexão posterior que surgir,
para que se faça a “ponte” entre a leitura da expressão sonoro-musical e da sua
relação com a vida biopsicossocial. Dessa “ponte” esperamos chegar ao “musi-
codiagnóstico”, que servirá como importante subsídio inicial ao musicoterapeuta
– que não precisa ser necessariamente o mesmo – que processará o tratamento
com maior e melhor conhecimento do cliente / paciente.
O ponto de partida é a análise do encaminhamento, pois, quem nos envia
alguém para estar sob nossos cuidados, pressupomos que espera que possamos
resolver problemas que expliquem o seu comportamento. Cabe ao musicotera-
peuta, portanto, esclarecer e organizar as questões pressupostas, pois o encami-
nhador, seja leigo ou da área da saúde ou da educação, tem em mente uma série
de dúvidas específicas, fundamentadas em observações ou informações prévias,
às vezes errôneas ou até preconceituosas.

354 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


O passo seguinte é a triagem, realizada por qualquer outro profissional da
área. Eventualmente, conforme a especificidade, completamos a equipe de musi-
coterapeutas com outro profissional – por exemplo, da área médica – que possa
contribuir para o esclarecimento do diagnóstico médico.
O contrato será firmado juntamente com análise e assinatura de um ins-
trumento metodológico de “autorização”.
Após preenchimento de ficha de identificação, encontramo-nos num mo-
mento especial de estarem presentes, frente a frente, musicoterapeuta e cliente /
paciente.
Por meio das entrevistas (abertas, semi-abertas ou fechadas) e de observa-
ções diretas e informações colhidas do encaminhador, montamos uma primeira
história pessoal, clínica e sonoro-musical.
As avaliações e reavaliações acontecem em vários momentos:
- após as entrevistas;
- no final de cada etapa;
- na conclusão.
No primeiro momento, detectamos o melhor procedimento a ser adotado.
Se o cliente possui em seu cérebro um registro de aprendizado musical, aplica-
mos “avaliações objetivas”, também intituladas “descritivas”, para medir o quan-
to ele conhece de música. A área musical propriamente dita possui inúmeros
testes, dos quais exemplificaremos um deles no decorrer deste capítulo. Medi-
mos, portanto, o nível de conhecimento musical, no que se refere ao repertório,
elementos estruturais e estéticos, intervalos etc. Nesses, aos quais chamamos de
“musicais”, aplicamos também o teste de nível de percepção auditiva, que detec-
ta discriminação auditiva e capacidade de “escuta”; num terceiro momento, apli-
camos o “enquadramento momentâneo de reações comportamentais a sons”. No
caso de estarmos lidando com não-musicais, apenas os dois últimos serão apli-
cados.
As “avaliações subjetivas” ou “interpretativas” têm o objetivo de relacio-
nar condutas corporais, instrumentais, vocais e ambientais, ou melhor, da comu-
nicação não-verbal, entre si. À parte das avaliações com interesse diagnóstico,
realizadas por musicoterapeutas, sugerimos uma complementação de mais duas
avaliações que dão suporte à Musicoterapia:
- Avaliação audiológica;
- Avaliação neuropsicológica.
Terminada esta etapa de coleta de dados, podemos fazer uso de um recur-
so de apoio, que é a montagem do primeiro CD em laboratório de Musicoterapia.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 355


Ele refletirá o momento de vida em que o indivíduo se encontra e quais as suas
perspectivas, de forma sonora.
Elabora-se, a seguir, o Plano de Ação Musicoterapêutica Inicial, com:
1. O estudo do padrão do comportamento sonoro-musical;
2. O estudo da patologia (caso esteja presente).
Inicia-se, então, a etapa do processo musicoterapêutico propriamente dita,
com:
1. Divisão das subetapas do processo e de cada sessão;
2. Descrição ou planta baixa do “setting musicoterapêutico”;
3. Observação e registro das primeiras 10 sessões;
4. Plano de Ação Musicoterapêutica parcial;
5. Plano de Ação Musicoterapêutica final.
Evidentemente, há meios instrumentalizados de metodologia que auxiliam
na discussão de resultados como, por exemplo:
- Gravações de sons e músicas prontas, ouvidas nas sessões;
- Gravações de sons e músicas executadas e/ou criadas e/ou recriadas rea-
lizadas nas sessões (produções sonoras);
- Documentação por filmagens;
- Preenchimento de protocolos;
- Montagem de gráficos de acompanhamento e outros.
Na última etapa, determinam-se os parâmetros utilizados a fim de genera-
lizar, comparar, analisar e concluir.
O modelo de registro do comportamento sonoro-musical humano pode ser
situado numa perspectiva de investigação qualitativa, embora, em alguns instru-
mentos metodológicos de aplicação, sejam utilizados recursos numéricos ou
feitas mensurações para quantificar respostas. Na verdade, cada estratégia dá
respostas a questões bastante diferentes, como menciona o Dr. Henk Smeijsters7,
diretor da Carreira de Formação em Terapias Criativas da Faculdade de Educa-
ção Profissional da Universidade de Limburg, Holanda. Seguindo seus estudos,
constatamos que “propor uma teoria de musicoterapia não significa rechaçar os
conhecimentos provenientes de outras fontes, mas enfatizar que a musicoterapia
pode proporcionar dados para a avaliação e estratégias terapêuticas, do ponto de
vista sonoro-musical”.
Enfocando-se o método qualitativo de investigação, ao ser descoberta uma
classificação, descrevem-se os resultados comparando-se conceitos e definindo-
os como categorias. Todos os conceitos pertencem ao mesmo fenômeno. Entre-
tanto, há categorias consideradas essenciais em nossa área, e a categoria

356 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


“ANALOGIA” é uma delas; foi a escolhida para classificar os conceitos a partir
da comparação de dados oriundos das respostas apresentadas por indivíduos
quando submetidos à avaliação inicial diagnóstica. O fenômeno é claro: a “mú-
sica interna”, aquela que compõe o homem.
A categoria de “analogia”, citada pelo Dr. Smeijsters7, refere-se à “quanti-
dade de processos musicais que são analogias de processos psicológicos”. Po-
rém, a leitura desses processos é feita por meio da linguagem musical. A experi-
ência clínica mostrou que devem ser acrescentados, aos processos psicológicos,
os processos biológicos, sociais, mentais e espirituais do indivíduo, a partir do
momento em que a leitura de suas expressões sonoro-musicais deve ser feita
holisticamente, de forma integral.
Esse modelo não tem a pretensão ainda de apresentar-se como uma teoria,
mas poderá servir como uma proposta teórico-prática passível de uso por musi-
coterapeutas e estudantes de Musicoterapia em trabalhos clínicos.
O Dr. Smeijsters comenta o conceito de “teoria” como um conceito sus-
peito, por causa de sua característica de proclamar leis universais. Sabe-se da
grande dificuldade, na área da Musicoterapia, para descrever respostas humanas
num contexto musical, uma vez que a troca existente entre ambos – homem e
música – é altamente complexa e origina múltiplas respostas subjetivas.
Nesse modelo, a questão principal é ter-se em conta a valorização do con-
texto e da análise e a comparação de respostas semelhantes, para que se inicie
uma investigação diagnóstica. Portanto, dados isolados não são considerados
significativos.
A união dos dois métodos investigativos – quantitativo e qualitativo, ape-
sar de parecer paradoxal, é possível na aplicação de avaliações diagnósticas, ou
em musicodiagnósticos, uma vez que nem um nem outro, isoladamente, dá conta
da leitura global da música do indivíduo, expressada num contexto musicotera-
pêutico. O Dr. Smeijsters7 diz que “é possível, em um momento escutar a ‘figu-
ra’ e, em outro, escutar o ‘fundo’ da existência humana” (p. 4).
A Musicoterapia deve escrever os processos musicais que possam desen-
volver potenciais criativos, que são inerentes a todos os seres humanos, sem
distinção, ocorridos tanto na área profilática, para manter a saúde mental, como
na melhora de conteúdos patológicos, ou área reabilitadora.
Pode-se ressaltar a importância de se sistematizar o trabalho do musicote-
rapeuta que investiga qualitativamente da seguinte maneira:
1. não há teorias preexistentes;
2. não há hipóteses;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 357


3. não há instrumentos de medição.
Nele se apontam as seguintes vantagens:
- não se altera o contexto natural;
- não se reduzem as descrições de experiências subjetivas;
- há interesse nas perspectivas subjetivas;
- objetiva-se encontrar um significado construído.
No contraponto a esse método de investigação dá-se a importância, cujo
grau depende do tipo de paciente ou cliente submetido ao musicodiagnóstico,
das questões objetivas, numéricas e mensuráveis. O pensamento, então, estaria
voltado ao aparente paradoxo do pesquisador quantitativo.
O ideal, portanto, é mesclarem-se ambos os métodos e avaliar qual deles
deve ser mais evidenciado quando da análise da patologia ou não apresentada
pelo indivíduo antes de iniciar o processo musicoterapêutico em si.
Há que se conceituar, e conceituar significa mais do que observar o que
acontece. É uma noção mais abstrata, da qual o fenômeno em particular pode ser
uma parte. Poder-se-ia citar que: os conceitos podem referir-se a processos; os
conceitos podem ser agrupados em categorias, depois de classificá-las;
O Dr. Smeijsters situa a “analogia” como uma categoria essencial. Para
ele, essa categoria “é um fenômeno central, ao redor do qual se podem integrar
várias outras categorias”7 (p. 7).
Vamos pensar: as ferramentas com as quais se constrói a música são inú-
meras, mas podemos citar: melodia, som, ritmo, dinâmica, forma etc. Concor-
damos com Isabelle Frohne e com Susanne Bauer (apud Smeijsters7) quando
dizem que essas são analogias de nossas formas de pensar, sentir e agir, e, em
nossas improvisações, se expressam como pensamos, sentimos e agimos.
Os conceitos que pertencem à categoria essencial “analogia”, citados por
Smeijsters7, são os seguintes:

- Correspondência - Modelo
- Protótipo - Expressão
- Metáfora - Transferência
- Representação - Empatia
- Congruência - Simbolização
- Contato - Estruturação
- Concordância - Criatividade
- Reflexão

358 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A categoria essencial de “analogia” contém duas subcategorias:
1. analogia no diagnóstico;
2. analogia no tratamento.
Na produção e na escolha musical de um paciente se podem escutar pen-
samentos, sentimentos e comportamentos patológicos. Em outras palavras, os
processos musicais são, na essência, processos psíquicos, sociais, biológicos,
emocionais e espirituais. Chegar a desenvolver uma forma musical significa,
para alguns autores, estar “curado”. Entende-se por “forma musical” o modo em
que a música se estrutura no tempo. De qualquer maneira, tem que haver uma
analogia entre improvisação musical e processos interacionais do paciente.
Há outros termos usados para as conexões feitas entre a forma musical e
outras formas, que não são analógicas, como, por exemplo, a de Aldridge, intitu-
lada “isomorfismo”, ou a de Pavlicervic, que se refere a processos musicais co-
mo “algo diferente da forma artística ou emocional, mas que contém ambas” (...)
“é uma forma cujas características não são exclusivamente musicais nem exclu-
sivamente emocionais” (...) “uma forma musical/emocional é uma afirmação do
self no mundo” (apud Smeijsters7).
Segundo Smeijsters, “descrever as formas dinâmicas como formas musi-
cais / emocionais significa que nem a análise musical pura, nem a interpretação
emocional pura são suficientes”7.
Para se fazer uma leitura da escuta musical, ao avaliar-se sonoramente,
deve ser feita dentro de uma perspectiva diferente. Smeijsters comenta que não
há interpretação, mas um “significado”, que vai além da música. Seguindo seu
relato, isso não quer dizer que se devem conectar as estruturas musicais a “afetos
categoriais” como, por exemplo, estar triste ou enojado, mas descrever os pro-
cessos musicais como “afetos vitais”, por meio de termos “dinâmico-cinéticos”
como, por exemplo, explosivo, crescendo, decrescendo, intensificando etc.
(Stern, 1985, apud Smeijsters7).
O musicoterapeuta interessado em musicodiagnóstico precisa detectar, por
meio de observação direta e de informações obtidas por entrevistas e avaliações
objetivas e/ou subjetivas, qual o processo musical que deverá utilizar, e estar
atento ao fato de que este esteja de acordo com as necessidades biopsicossociais
e espirituais do cliente / paciente, além das psicológicas tão evidenciadas por
Smeijsters7.
Como resultado da métrica, do ritmo, da linha melódica e da sequência de
acordes, percebe-se o processo musicoterapêutico como um processo em desen-
volvimento no tempo, evocando-se uma antecipação de boa continuação.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 359


“Espaços abertos” eram deixados durante uma execução musical conheci-
da pela paciente, para que respondesse à sua maneira, e não apenas imitando a
musicoterapeuta, configurada em segundos de silêncio. As respostas começaram
a ser imediatas e, nesses espaços, a musicoterapeuta pôde entrar com novos tim-
bres e ritmos, experimentando o que Carolyne Kenny chama de “campo de jogo
analógico” (apud Smeijsters7). A paciente em questão não consegue verbalizar
seus sentimentos por meio de palavras, devido aos sintomas característicos da
patologia que carrega (Mucolipidose IV), mas o faz por meio de expressões faci-
ais, corporais, gestuais e vocais, como gritos ou movimentos de apontar o que
quer e negar com a cabeça o que não quer.
O processo mental possibilitou vivência e desenvolvimento análogos.
Conectar processos mentais, emocionais, físicos, sociais, biológicos e es-
pirituais aos processos musicais é a nossa meta, pois todos têm processos em
comum, ou seja, estão compostos pelos mesmos processos básicos. Não há dú-
vida de que todos refletem aspectos do vínculo. Uma interação musical pode ser
dominante e, portanto, funcionar como uma “analogia de domínio” vivenciada
pelo paciente. Não podemos dizer que a interação é idêntica, mas sim que é aná-
loga. Não é surpresa para nós, musicoterapeutas, que a música pode penetrar na
identidade musical de uma pessoa e transformá-la (processo aplicado a pessoas
com necessidades especiais) ou mantê-la (processo profilático).
Em Musicoterapia interativa, portanto, uma improvisação musical é possí-
vel ressoar em forma análoga à comunicação verbal de um diálogo interacional, no
qual um dos interlocutores se sobrepõe ao outro, por meio de crescendos ou sfor-
zatos, fazendo o tempo, o ritmo e o fraseado musicais ficarem irregulares. Consta-
ta-se, pois, no trabalho diário do musicoterapeuta interativo, que as características
do processo musical correspondem às características dos sintomas patológicos.

Considerações finais
É necessário que a avaliação diagnóstica, ou “musicodiagnóstico”, em
Musicoterapia, seja vista como uma área complexa. As asserções que fazemos
sobre a expressão sonoro-musical do cliente (área profilática) ou do paciente
(portador de necessidades especiais) nos fornecem “mapas sonoros” que delimi-
tam nosso território. Para alguns indivíduos os “mapas” são mais claros; para
outros, não tão claros. São as diferenças individuais que, vistas com “olhos mu-
sicais”, são capazes de serem explicitadas ou avaliadas acuradamente, quanto
aos elementos sonoros que compõem a “orquestra” de cada um.

360 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Um “musicodiagnóstico” pretende perfilar o sujeito, dar-lhe uma roupa-
gem musical do momento, para facilitar o trabalho de atuação no processo musi-
coterapêutico, enriquecendo informações.
A avaliação objetiva ou descritiva conta o que vê; entretanto, quem vê, vê
sob sua experiência de vida; buscando o “quanto”, permite ser mensurada, medi-
da, quantificada. A avaliação subjetiva ou interpretativa dá o suporte do “como”,
da busca de relacionar associações, formas de comunicação, imagens e fantasias,
recordações ou sensações experimentadas; tudo isso é determinado por fatores
genéticos musicais herdados, ambientais e culturais.
A possibilidade de autoconhecimento é facilitada por esse processo diag-
nóstico, em que existe a participação do sujeito na construção de sua identidade
musical8.
Entretanto, o “mapa sonoro” do indivíduo não representa o território todo,
pois jamais chegamos a nos conhecer completamente. Podemos fazer mapas de
mapas de mapas, descrever musicalmente a nós mesmos, e, devido à transmuta-
ção sonora, haverá qualquer número de inferências e generalizações sobre nosso
mundo sonoro, em altos níveis de abstração.
Pesquisar musicalmente é trabalhar as reais possibilidades sonoras do in-
divíduo e unir pontos que, inicialmente, são soltos e, muitas vezes, inexplicáveis
pela razão. Porém, quando textualizados, falam, tocam e refletem muito desse
indivíduo. É preciso sempre ter em mente que é à ideia de conjunto e de integra-
ção que estamos nos ligando, ou seja, da mesma forma que sabemos a respeito
da música, respostas soltas e jogadas em nossos protocolos nada significam se
não forem analisadas num contexto, no qual significam algo para alguém.
Como cita Verdeau-Pailès (1981):

Se a música tornou-se terapêutica, foi à medida que seu ritmo


encontrou nossos ritmos pessoais, sua melodia encontrou um eco em
nosso interior, e quando entramos em ressonância e em comunicação
com ela.

Para terminar, citarei uma frase de Smeijster, que define a minha posição
neste trabalho:

Os musicoterapeutas não são músicos que escutam e seguem


as regras da música; são terapeutas que escutam e seguem os pro-
cessos psíquicos que ressoam na música.7

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 361


Referências
1. Ancona-Lopez M. Contexto geral do diagnóstico psicológico. São Paulo: EPU; 1984.
p. 1-13.
2. Barcellos LRM [org. e trad.]. Transferência, contratransferência e resistência. Rio de
Janeiro: Enelivros; 1999.
3. Benenzon RO. Teoria da musicoterapia: Contribuição ao conhecimento do contexto
não-verbal. São Paulo: Summus; 1988.
4. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2. ed. [Tradução Marisa Fernandez Conde]. Rio
de Janeiro: Enelivros; 2000. p. 27-33.
5. Fagundes AJFM. Descrição, definição e registro de comportamento. 12. ed. São Pau-
lo: Edicon; 1999.
6. Ruud E. Caminhos da musicoterapia. São Paulo: Enelivros; 1990.
7. Smeijsters H. Analogia: Una categorial esencial de musicoterapia. Revista Internacio-
nal Latinoamericana de Musicoterapia 1997; 3(2):3-26.
8. Smith MPC. Modelo de avaliação em musicoterapia: Uma proposta diagnóstico-
terapêutica [dissertação]. São Paulo: Unimarco; 1999.

362 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


14.
INTEGRAÇÃO SENSORIAL
E MUSICOTERAPIA

Heloiza Z. Goodrich
Maria Cristina de Oliveira

A música é uma fonte enorme de prazer para a maioria das pessoas. Tem
efeito quase mágico sobre pessoas que têm algum tipo de distúrbio, tal como o
autismo.
A música há muito é conhecida por seu valor terapêutico6,14. Nos últimos
anos a música tem sido mais e mais usada como um recurso terapêutico. Pode,
na verdade, servir como uma porta de entrada para uma comunicação mais efeti-
va com as pessoas com esse diagnóstico. Apesar disso, existem pessoas que não
conseguem apreciar a música em todas as suas formas. Por quê?
A música chega até nós pelos sentidos; obviamente a audição é o sentido
que desempenha papel mais importante nessa recepção. Os demais sentidos par-
ticipam de forma secundária na apreciação da música.
Para que possamos apreciar a música, nossos sentidos precisam ter a habi-
lidade de isolar o som de sons de fundo, lidar com uma gama muito ampla de
sons, que vão desde os mais graves até os mais agudos. Precisamos ser capazes
de perceber sons em conjunto ou isoladamente, conforme o tipo de música. Ne-
cessitamos da habilidade de discriminar sons, de localizar de onde vêm etc. Es-
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 363
sas habilidades são inerentes ao desenvolvimento, e presumimos que todos as
possuam, ainda que com graus diferentes de percepção.
Entretanto, essa habilidade nem sempre se desenvolve como o esperado e
a música pode ser percebida pela pessoa de uma forma um pouco diferente. Para
que se possa entender como e por que isso acontece, precisamos nos remeter um
pouco ao desenvolvimento sensorial.
No início da vida, toda a nossa aprendizagem se faz através dos sentidos.
Jean Ayres2 descreveu esse fenômeno, que chamou de integração sensorial, co-
mo a “organização dos sentidos para o uso”. Os sentidos nos dão informações
sobre nosso corpo e sobre o ambiente. Quando mencionamos sentidos aqui, es-
tamos falando dos cinco sentidos tradicionalmente conhecidos: tato, audição,
visão, olfação e gustação; e também de outros dois, menos familiares, mas não
menos importantes: o sistema vestibular e a propriocepção.
O sistema vestibular se encontra no ouvido interno e nos traz informações
sobre movimento, deslocamentos no espaço. Determina o nosso tono muscular,
modula o sono e nos orienta no espaço de uma forma geral. É oportuno salientar
que os sistemas vestibular e auditivo compartilham semelhanças e estruturas
neuroanatômicas. O VIII par craniano, nervo vestibulococlear, conduz informa-
ções auditivas e dos movimentos. A porção vestibular orienta o corpo no espaço,
enquanto a porção auditiva localiza os sons e auxilia na movimentação pelo
espaço. Outro aspecto detectado pelos dois sistemas diz respeito ao tempo. A
porção vestibular percebe e coordena os aspectos temporais do movimento, en-
quanto a porção auditiva percebe os aspectos temporais do som2. As sensações
auditivas e vestibulares estão intimamente vinculadas em favor de uma percep-
ção aguçada do ambiente. Na ausência de orientação precisa do corpo no espaço,
não somos capazes de perceber adequadamente os sons circundantes7.
A propriocepção é o sentido que nos traz informações sobre nosso próprio
corpo: a que distância estamos de um objeto, quanta força precisamos para segurá-
lo, que consistência ele tem. Essa informação é dada por receptores que se encon-
tram nas articulações, nos tendões, e nos permite saber, sem o auxílio da visão, se
estamos tocando alguma coisa, que forma tem, se a força está adequada.
A aprendizagem pelos sentidos começa mesmo antes do nascimento, en-
quanto, no útero, o cérebro fetal já percebe os movimentos do corpo da mãe2.
Algumas teorias postulam que a percepção de sons também começa a se desen-
volver durante esse período7. A partir dessa sensação e de todas as outras que
são oferecidas após o nascimento, a criança começa a desenvolver a noção do
mundo. Assim, aprende a antecipar a sensação agradável de se sentir saciada

364 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


após a mamada. Aprende que, quando está sendo embalada, essa sensação de
movimento a acalma. O aconchego com as pessoas, especialmente com a mãe a
ajuda a perceber o limite de seu próprio corpo. Consegue distinguir a fisionomia
dos familiares daquela de desconhecidos. Reconhece seu bercinho e, quando
baixada para ser colocada nele, tem uma sensação de bem-estar. Distingue o som
da voz dos familiares e dos barulhos de fundo que fazem parte de sua rotina.
Durante esse período do desenvolvimento, a música já começa a ter papel impor-
tante na vida da criança. Os pais a usam como fundo para a criança adormecer
ou como fonte de interação com a criança.
A integração sensorial é um mecanismo inconsciente, dirigido pelo siste-
ma nervoso central, que nos permite entender o mundo a partir de nossas sensa-
ções. Permite-nos focalizar uma coisa por vez, distinguir o que é importante e
dar uma resposta adaptativa.
Dessa forma, gradativamente a criança consegue construir uma imagem
do mundo e aprende a dar respostas adequadas aos estímulos que são apresenta-
dos (respostas adaptativas). Assim, ao ver a mamadeira, sorri porque já antecipa
a sensação de bem-estar. Ao ver a mãe, fica feliz porque sabe que vai ser emba-
lada ou consolada. A partir de todas essas informações sensoriais vai construin-
do respostas que se tornam cada vez mais sofisticadas.
Existem casos, entretanto, em que esse processo não se dá como esperado,
e o processamento sensorial é deficitário. Assim, algumas sensações que deveri-
am ser percebidas pela criança e auxiliar na construção da aprendizagem não
chegam ao cérebro com a intensidade desejada, fazendo com que a aprendiza-
gem seja prejudicada. O cérebro pode perceber as sensações com intensidade
exagerada (limiar baixo) ou com intensidade diminuida (limiar alto). De qual-
quer forma, isso prejudica as percepções sobre o ambiente e sobre o próprio
corpo. Essa dificuldade do cérebro para processar informação sensorial de forma
adequada é chamada de déficit de integração sensorial (DIS) ou déficit no pro-
cessamento sensorial (DPS). A teoria de integração sensorial foi desenvolvida
para explicar dificuldades leves na criança, na ausência de um diagnóstico.
Para a criança com esse tipo de dificuldade, a música pode ser percebida
como algo maravilhoso, prazeroso, ou como algo muito desagradável. Para al-
gumas dessas crianças, em que a informação sensorial chega com intensidade
muito grande, ouvir música que não tenha uma afinação perfeita pode ser tortu-
ra. Ou instrumentos com som muito agudo podem dar a sensação de dor.
Jean Ayres, terapeuta ocupacional norte-americana, desenvolveu uma teo-
ria com base na neurociência e em teorias de desenvolvimento em voga na déca-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 365


da de 1960, teoria essa que explica por que, em alguns casos, a aprendizagem
através dos sentidos não se faz de acordo com o esperado, causando problemas
de desenvolvimento. Esses problemas podem ir de leves a graves. Durante as
últimas décadas, as pesquisas sobre esse tipo de déficit progrediram muito e
hoje, nos EUA, é bem entendida e aceita1. No Brasil, apenas recentemente essa
teoria passou a ser divulgada de forma mais ampla.
A etiologia dos distúrbios de processamento sensorial pode ser:
- Baixo peso ao nacimento;
- Nascimentos múltiplos;
- Gravidez de alto risco;
- Icterícia neonatal;
- Tendência familiar;
- Combinação de fatores genéticos e ambientais;
- Privação severa de estimulação sensorial;
- Comorbidade em outros diagnósticos, tal como autismo, paralisia cere-
bral, transtorno do déficit de atenção (TDA), transtorno do déficit de atenção
com hiperatividade (TDAH) etc.
A incidência de DPS é maior em meninos que em meninas (proporção de
4:1). Existe como um quadro independente, causando o que parecem ser distúr-
bios de aprendizagem e de comportamentos, que se assemelham a problemas de
origem emocional. Alguns dos indicadores de DPS são:
- Falta de força e tono muscular baixo, podendo resultar em fadiga ou
pouca resistência.
- Dificuldades sociais; a criança se isola, preferindo brincar com crianças
menores ou mais velhas que ela.
- Mau uso da força, não sabendo dosá-la para manusear objetos ou intera-
gir com pessoas.
- Medo exagerado de movimentos que não oferecem perigo, tal como des-
cer escadas.
- Atenção de curta duração. A criança geralmente tem dificuldade em se
concentrar na tarefa, é desorganizada e não para nunca.
- Dificuldade em tarefas motoras não familiares. A criança é desajeitada,
bate-se nos móveis, e cai com frequência.
- Sentido do tato hiper ou hipodesenvolvido, causando dificuldades do ti-
po não tolerar ser tocada ou precisar tocar tudo e todos.
- Hiperssensibilidade auditiva, não tolerando certos tipos de som. Proces-
samento auditivo inconsistente, às vezes apercebendo-se de sons que ninguém

366 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


mais notou, e outras vezes parecendo não ouvir. Tampa os ouvidos com alguns
tipos de som.
- Dificuldade no traçado da escrita.
- Insegurança emocional; parece mais imatura que outras crianças da
mesma idade.
- Pequenas dificuldades como dificuldade em controlar o ciclo do sono, ar-
ticulação na fala, atraso na aquisição do controle urinário, especialmente noturno.
- Dominância lateral estabelecida tardiamente.
Em crianças pequenas, os sintomas podem ser:
- Tem muita cólica nos primeiros meses de vida.
- Dificuldade em se autoacalmar.
- Não aceita aconchego.
- Transição muito difícil do leite para alimentos pastosos ou sólidos.
- Criança boazinha demais: quase não chora, não estranha, vai com todos.
- Muito difícil para tarefas de higiene tal como o banho, cortar unhas ou
cabelo, limpar o nariz.
- Regurgita com frequência muito grande.
Os déficits no processamento sensorial, segundo a classificação de Lucy
Miller11, uma das terapeutas ocupacionais que mais tem se dedicado a pesquisas
nessa área, podem ser classificados de três formas, conforme diagrama na página
seguinte.

Distúrbios de modulação

Miller e Lane12 definem modulação sensorial como a capacidade de regu-


lar e organizar o grau, intensidade, e natureza das respostas aos estímulos senso-
riais de maneira graduada e adaptativa. Segundo Wilbarger15 modulação sensori-
al se refere aos mecanismos de processamento sensorial através dos quais o grau,
intensidade e qualidade das respostas são graduadas de acordo com as demandas
ambientais de forma a manter ótimo nível de adaptação e desempenho. Embora
estas definições enfatizem os aspectos comportamentais o termo modulação
sensorial se refere também aos diferentes mecanismos celulares que resultam em
mudanças sinápticas subjacentes ao processo de habituação e sensibilização10.
Distúrbio de Modulação Sensorial é definido, portanto como um problema
em regular e organizar o grau, intensidade e natureza das respostas aos estimulos
sensoriais de forma graduada. Refere-se especificamente à questão do limiar para
sensações, sua variabilidade e os tipos de resposta que propiciam. Assim, há as

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 367


DISTÚRBIOS DE PROCESSAMENTO SENSORIAL

Distúrbios de Disturbios com base Distúrbios de


modulação Sensório-motora Discriminação sensorial

visão

Tato audição

Hiperresposta Dispraxia Distúrbio olfato/gustação


Hiporresposta postural
Procura sensorial posição/movimento

pessoas que têm limiar muito baixo para sensação e que se incomodam com
tipos de estímulo sensorial que outras pessoas normalmente não interpretam
como desagradáveis. Por exemplo, algumas crianças não suportam ruídos como
o do liquidificador ou o do aspirador de pó, ou têm dificuldade para completar
tarefas quando o rádio está ligado, ou não conseguem trabalhar com barulho de
fundo como, por exemplo, ventilador ou geladeira; outras ficam muito incomo-
dadas com roupas novas ou que tenham rendas a babados, devido à textura dos
tecidos; outras ainda rejeitam abraços e beijos, a forma pela qual são tocadas e a
textura ou o cheiro da comida. No outro extremo desse transtorno, temos as pes-
soas que têm tolerância muito alta para as sensações, procurando movimentos
radicais, comida com sabor forte, toque forte, ou que têm alta tolerância para a
sensação de dor.
Os transtornos da modulação podem estar relacionados com as diversas
modalidades sensoriais, e alguns quadros frequentes são definidos como: defen-
sividade tátil ou reação aversiva ao contato físico com pessoas e objetos, e a
insegurança gravitacional, ou medo de movimento desproporcional ao perigo
que oferecem. É comum que a defensividade tátil apareça associada a outros

368 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


sinais de hiperssensibilidade sensorial, como a resposta aumentada a odores ou
sons.
Na nossa prática clínica não é incomum identificarmos comportamentos
compatíveis com defensividade auditiva, ou “sensibilidade exacerbada” a certos
sons, o que pode envolver respostas de irritação ou medo a barulhos como aspi-
rador de pó, motor, buzina de carro etc.
Frick e Hacker7 advertem que, dada a variabilidade de sintomas na pre-
sença deste tipo de defensividade, é importante se obterem informações detalha-
das sobre a qualidade dos sons aos quais a criança reage de forma atípica. Essas
informações são importantes para o planejamento e implantação das estratégias
terapêuticas. As autoras descrevem que algumas crianças apresentam hiperres-
postas exclusivamente a sons de baixa frequência como, por exemplo, do aspira-
dor de pó, e nesses casos provavelmente se trata da inabilidade para diferenciar
pistas espaciais a partir do som nessa faixa de frequência. Uma vez que o som na
faixa de frequência abaixo de 300-500 Hz é multidirecional e não contém muitas
informações espacias, a criança pode sentir insegurança e ficar temerosa por não
conseguir identificar a fonte sonora.
Outro quadro se refere à dificuldade em filtrar sons irrelevantes, o que po-
de resultar em comportamentos de distratibilidade e desatenção. Nesses casos,
são frequentes as queixas de professores quanto ao comportamento da criança de
olhar pela janela da classe se passa um carro ou se um cachorro late, ou de olhar
e se direcionar para cada estímulo sonoro que ocorre na classe, como o amigo
que conversa, o lápis que cai, o colega que procura algo no estojo ou desembru-
lha uma bala.
É importante observar que os sinais de transtorno de modulação são com-
portamentais; a criança age de maneira atípica, seja com irritabilidade, agitação
(reações de luta ou fuga) ou, no extremo oposto, com indiferença e apatia. Entre-
tanto, refletem um desconforto real.
Bundy et al.3 propuseram um esquema no qual a linha pontilhada repre-
senta uma variabilidade de respostas dentro de amplitude adequada, e os extre-
mos superior e inferior representam respostas exacerbadas ou diminuídas em
relação ao input sensorial.
No quadro a seguir são relacionados alguns dos sinais sugestivos de pro-
blemas de integração sensorial.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 369


Sentidos
Audição ⋅ Hiper: Tensiona o corpo quando falamos mais alto ou frente a ruídos
inesperados. Reação de susto ou aumento dos batimentos cardíacos
frente a barulhos ou sons que normalmente não desencadeariam ne-
nhuma reação específica.
⋅ Hipo: Parece não escutar, embora tenha exame auditivo normal. Não
responde quando chamado pelo nome, parece preferir ou só responde a
barulhos fortes e a música muito alta.
Gustação ⋅ Hiper: Reação de náusea ou vômito (GAG) a certos alimentos, hiper-
salivação, tenta impedir a entrada de alimentos (“trava a boca”) e não
deixa escovar os dentes por não suportar o gosto do creme dental.
Distais

⋅ Hipo: Não demonstra preferências alimentares, come qualquer coisa.


Gosta de comidas muito condimentadas (ex.: pimenta, cebola, alho).
Põe tudo na boa.
Olfato ⋅ Hiper: Rejeita pessoas, alimentos, objetos ou lugares por causa do
odor. Tem ânsia de vômito com alimentos e/ou o cheiro de brinquedos
ou objetos do uso cotidiano.
⋅ Hipo: Não percebe odores, não reconhece alimentos pelo cheiro, não
identifica sabonetes, colônia e/ou não percebe o cheiro quando evacua.
Visão ⋅ Hiper: Não tolera claridade; pisca muito ou fecha os olhos ao mudar
de ambiente.
⋅ Hipo: Procura cores muito vivas; não percebe imediatamente mudan-
ças na iluminação.
Propriocepção ⋅ Hiper: Reage excessivamente a movimentos de pequena amplitude
(pisca, trava articulações e/ou aumenta tono).
⋅ Hipo: Atira-se contra os objetos; procura impactos fortes; morde
brinquedos / objetos não comestíveis.
Tato ⋅ Hiper: Não toca certos materiais ou texturas; evita pegar brinquedos
de pelúcia e/ou que tenham superfícies rugosas (ex.: bichos de borracha
enrugados); não gosta de pisar em areia ou grama. Não suporta mani-
pular massinha, tintas ou cola. Parece ser muito sensível na área da
Proximais

boca (ex.: não come alimentos que têm diferentes texturas, como iogur-
te com pedaços de frutas, cospe pedacinhos de tomate da sopa, não
deixa escovar os dentes).
⋅ Hipo: Brinca com qualquer tipo de textura; passa a mão sobre a
parede ou objetos, parecendo tentar perceber a textura.
Vestibular ⋅ Hiper: Reação excessiva de medo nos deslocamentos, tal como sobre
a bola de terapia ou quando se muda sua postura.
⋅ Hipo: Pode ser mudada para qualquer postura sem demonstrar perce-
ber. Não parece perceber que está sendo movimentada no espaço, não
antecipa quando vai cair, ou tem confiança exagerada no cuidador.

370 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Distúrbios com base sensório-motora
Os distúrbios com base motora são classificados em dois grupos para fins
de estudo, mas, na realidade, geralmente são vistos concomitantemente.
Praxia é um conceito teórico que descreve um processo de aquisições no
desenvolvimento de habilidades motoras. Ayres1 descreveu a praxia como um
processo que envolve três fases: ideação, planejamento e execução de um ato
motor. Assim, a criança vê um objeto qualquer e imagina o que pode fazer com
ele. Em uma segunda fase, pensa sobre como pôr esse plano em ação. Em um
terceiro momento executa a ação. Ayres acreditava que esse conhecimento do
uso potencial dos objetos se desenvolvia a partir do conhecimento adquirido pelo
uso do corpo em interações adaptativas com os objetos. O conhecimento adqui-
rido no início da vida através das construções de respostas adaptativas na cons-
trução do ambiente é a fundação sobre a qual se constrói todo o aprendizado.
Greenspan8 descreve a integração sensorial como a raiz de uma árvore; o
tronco é representado como as interações saudáveis que fortificam a criança. Os
galhos são, em um lado, as habilidades acadêmicas e, do outro, as habilidades
que a transformam em uma grande criança (great kid, no original). Essas quali-
dades são a habilidade de comunicação, criatividade e visão, curiosidade, empa-
tia, envolvimento, amplitude emocional, disciplina interna, pensamento lógico,
integridade moral e autoconsciência. Para as crianças que têm dificuldade nas
praxias, as interações mais simples com o mundo representam um problema.
Elas têm dificuldade para saber o que fazer com os objetos, como se relacionar
com o outro, como aprender sobre o mundo.
A praxia, ou planejamento motor, pressupõe uma habilidade inconsciente
de executar ações sem ter de pensar sobre como fazê-lo. Por exemplo, no início
da vida, o simples ato de pegar um chocalho exige planejamento. Após alguma
prática, esses atos se tornam automáticos e não requerem mais pensamento. Para
a criança que tem uma dispraxia do desenvolvimento, os movimentos corporais
demoram mais para serem aprendidos e se tornarem automáticos. Existe uma
dificuldade maior para generalizar as ações. Uma criança é capaz de se deitar em
várias posições em sua própria cama. Entretanto, se recebe o comando “deite-se
de barriga para baixo!”, parece não ter ideia de como fazê-lo.
Alguns dos sintomas da dispraxia são:
- Preferência pelo falar ao fazer;
- Dificuldade com sequenciamento e rítmo interno;
- Atraso em estabelecer a dominância lateral;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 371


- Desajeitamento, demora par aprender ações não familiares;
- Insucesso em esportes ou outras atividades dependentes de coordenação.
De forma geral, as crianças dispráxicas são mais desajeitadas, não conse-
guem participar de atividades próprias da idade, são mais imaturas que as outras.

Déficit no controle postural


Crianças com déficit no controle postural são crianças que tendem a ter
tono muscular mais baixo e têm mais dificuldade para manter a postura necessá-
ria para as diversas tarefas do dia-a-dia. São crianças que geralmente se debru-
çam sobre o trabalho, encostam-se nas pessoas ou nos móveis, têm dificuldade
no equilíbrio, dão a impressão de serem preguiçosas.
O déficit postural geralmente coexiste com um déficit na modulação ou
com a dispraxia do desenvolvimento.

Déficit na discriminação sensorial


As crianças com problemas nessa área não conseguem:
- saber o que está nas mãos sem o auxílio da visão;
- avaliar a força necessária para manusear objetos;
- perceber se está ou não em movimento;
- reconhecer objetos por sua forma;
- diferenciar texturas ou cheiros de alimentos;
- reconhecer de onde vem um som;
- distinguir som, se houver barulhos de fundo;
- distinguir entre sons semelhantes.
De qualquer forma, os déficits no processamento sensorial causam pro-
blemas que fazem com que seja difícil a participação da criança em atividades
que são próprias da idade. Fazem com que atividades do dia-a-dia passem a ser
muito sofridas.

A terapia de integração sensorial

Após criteriosa avaliação com ferramentas padronizadas, como as Obser-


vações Clinicas e Perfil Sensorial4,5, acrescida da observação do brincar livre e,
eventualmente, de outros testes conduzidos por terapeuta treinada na área, são
traçadas as hipóteses diagnósticas e, se necessário, os objetivos de tratamento.

372 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A Terapia de Integração Sensorial é conduzida por terapeutas familiariza-
das com a teoria e com a metodologia de tratamento, e é realizada em sala equi-
pada com colchões, almofadas, diversos balanços, rede, balanço de câmara de ar,
trapézio, materiais como a caixa com grãos e bolas de texturas variadas, carri-
nhos de rolimã e rampa, entre outros equipamentos que propiciam a vivência de
brincadeiras com informação sensorial muito intensa, sobretudo tátil, vestibular
e proprioceptiva.
Os elementos centrais da terapia incluem oferecer o desafio na medida
certa, e a escolha das atividades deve necessariamente ser feita em parceria com
a criança. A terapia deve guiar a auto-organização da criança; propiciar nível
ótimo de alerta, criar ambiente lúdico, maximizar o sucesso da criança e garantir
sua segurança fisica. Devem ser feitas modificações do ambiente terapêutico
para atrair e envolver a criança e alimentar a aliança terapêutica. A confiança na
terapeuta é essencial para o desenvolvimento do laço afetivo, que é a base para a
colaboração eficaz entre o terapeuta e a criança13.
Segundo Magalhães e Lambertucci9, a oportunidade para receber uma
quantidade extra de estímulos sensoriais, durante brincadeiras significativas para
a criança, aumenta sua habilidade para processar informações e responder apropri-
adamente aos estímulos. A ênfase, portanto, não é só na estimulação sensorial,
mas principalmente em como a criança se organiza para responder aos estímulos
e emitir respostas adaptativas.
Resposta adaptativa geralmente se refere à habilidade para manter o con-
trole postural, planejar os movimentos (praxias) e manter atenção apropriada, de
forma a obter sucesso na tarefa.
A partir da escolha ativa de brincadeiras, equipamentos e materiais, a cri-
ança expressa seu nível de desempenho e sua capacidade de processamento sen-
sorial, cabendo ao terapeuta graduar as atividades e promover o “desafio na me-
dida certa” para desencadear respostas adaptativas cada vez mais complexas que
demandem maior integração sensorial.
Frick e Hacker7 propõem o uso combinado da Terapia de Integração Sen-
sorial e programas de dessintização auditiva no tratamento de indivíduos com
déficits de integração sensorial. Esclarecem que esses programas combinam os
benefícios terapêuticos da música com sofisticada tecnologia sonora, e que são
direcionados ao tratamento das dificuldades no processamento auditivo, ou seja,
da habilidade de perceber, processar e responder adequadamente aos sons. Por
volta de 1950, o Dr. Alfred Tomatis desenvolveu a técnica chamada de reeduca-
ção auditiva (reeducate the ear); posteriormente outros programas foram desen-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 373


volvidos: o Listening Fitness, preconizado por Paul Madaule; o Auditory Inte-
gration Training (AIT), proposto por Guy Berard; o EASe Discs, proposto por
Bill Mueller; e o método SAMONAS (Spectrally Activated Music of Optimal
Natural Structure), desenvolvido por Ingo Steinbach. Alguns desses programas
são exclusivamente de aplicação no ambiente clínico, e outros, em casa ou esco-
la. Com duração diferenciada, envolvem música clássica, canto gregoriano, vo-
zes, sons da natureza etc., e todos pressupõem treinamento para certificação.
Embora em nosso meio o uso da música de uma forma mais espontânea
seja frequentemente inserido nas terapias, sobretudo pediátricas, e a Musicotera-
pia esteja em grande expansão, acreditamos que o uso dessa poderosa ferramenta
no tratamento de crianças com déficit de integração sensorial ainda está por ser
difundido em nosso país. É importante, no entanto, que o musicoterapeuta co-
nheça e entenda esse tipo de problema para que possa ajudar a criança de forma
mais efetiva. O trabalho em conjunto com a terapia ocupacional é fundamental
para que se ajude a criança a se desenvolver da forma mais harmoniosa possível,
atingindo o máximo de seu potencial.

Referências
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logical Services; 1972.
2. Ayres AJ. Sensory integration and the child. Los Angeles: Western Psychological
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tion; 1999. 146p.
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374 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


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15. Wilbarger J, Wilbarger P. The Wilbarger approach to treating sensory defensiveness.
In: Bundy AC, Lane SJ, Murray EA. Sensory integration: Theory and practice. 2. ed.
Philadelphia: F. A. Davis; 2001.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 375


15.
PENSANDO SOBRE A
VULNERABILIDADE

Simone Presotti Tibúrcio

É grande o número de patologias responsáveis pelo atraso do desenvolvi-


mento neuropsíquico e motor, que abrange um espectro muito variado de qua-
dros clínicos, dentro do que se entende como disfunção neurológica. Assim, as
variadas patologias que concorrem para o quadro, dependendo do tipo de com-
prometimento neuromuscular e da presença de outras enfermidades associadas,
poderão agravar os aspectos motor, cognitivo e emocional do indivíduo.
Dentre os vários casos que acompanhamos, observamos uma discrepância
que vai da presença de sequelas mínimas, pouco perceptíveis, até o comprome-
timento global severo. Podemos lidar, em nossa prática, tanto com pacientes
muito adaptados a uma rotina esperada para sua faixa etária, quanto com pacien-
tes que não fazem notar sua idade cronológica, diante do diminuto desenvolvi-
mento físico.
A dificuldade para lidar física e emocionalmente com as sequelas presen-
tes no ser amado leva, ainda hoje, familiares e cuidadores a improvisar formas
de atenuar tais dificuldades. Acreditamos que algumas das primeiras ideias sis-
tematizadas como métodos e técnicas, por terapeutas das diversas áreas, tenham
surgido a partir do desejo desses familiares e cuidadores de ampliar quantitativa

376 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


e qualitativamente as possibilidades de vida dos portadores de transtornos em
que ocorre o atraso global do desenvolvimento.
A bibliografia sobre a utilização sistematizada da música com pacientes
que apresentam disfunções neurológicas tem apresentado grande progresso, e
este livro é um exemplo de quanto o tema tem inquietado profissionais da área
da saúde. Já no Tratado de Musicoterapia, que reuniu trabalhos apresentados
em um dos primeiros eventos científicos da história dessa ciência, três capítulos
sobre paralisia cerebral foram apresentados. Nessa obra, Pomeroy afirma que “a
música é um meio valioso que permite à criança com paralisia cerebral exteriori-
zar-se de modo criativo, ainda que sua deficiência possa ser tal que a impeça de
tomar parte ativa na produção musical”3.
Essa postura de acreditar e investir no potencial do paciente é, a nosso ver,
o pilar das profissões da área da Saúde. Acreditamos que, quando se trabalha
com Saúde, junto a qualquer população, faz-se necessário buscar o que se encontra
nela preservado, saudável. Dessa forma, é de total relevância que o musicoterapeu-
ta busque estabelecer uma rede entre as possibilidades preservadas do paciente e a
indicação para o tratamento Musicoterapêutico. Este é o recurso maior, em termos
de possibilidades, a ser usado pelo musicoterapeuta para trazer à tona o estado
mais saudável de seu paciente.
No entanto, é comum percebermos espanto, tanto nos pacientes quanto em
seus responsáveis, quando iniciamos um retorno de avaliação musicoterapêutica
enumerando as potencialidades observadas no paciente. Tal postura se contrapõe
a algumas experiências anteriores dessa população, para a qual o relato se refere
primordialmente aos aspectos patológicos, deixando que as potencialidades do
paciente sejam ofuscadas por seus sintomas.
Esse aspecto da relação terapêutica vem despertando muito do nosso inte-
resse. Acreditamos que o produto deste equívoco se retrate no termo vulnerabili-
dade: conjunto de fatores que pode aumentar ou diminuir o risco a que estamos
expostos em todas as situações de nossa vida. A vulnerabilidade pode ser aplica-
da a todas as áreas e etapas do desenvolvimento humano, estendendo-se do nas-
cimento até a morte.
Chamaremos de individual a vulnerabilidade observada a partir do pacien-
te, que se refere à capacidade de cada pessoa em adotar comportamentos seguros
que a tornem menos susceptíveis a serem atingidas ou rotuladas a partir de prog-
nósticos desfavoráveis. Estando estritamente ligada à capacidade de tomar deci-
sões próprias, a vulnerabilidade individual estará, entre os portadores de dis-
funções neurológicas, fragilizada na proporção direta do acometimento de suas

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 377


funções cognitivas e motoras. Essa regra apresenta mágicas exceções, visto que
alguns indivíduos seriamente acometidos contagiam todos que deles se acercam,
com sua obstinada postura de disposição para se desenvolver.
Quando observada do ponto de vista da célula familiar, a vulnerabilidade
se amplia na proporção em que o filho idealizado não dá lugar para o filho real.
Assim, todos os prognósticos sombrios são apropriados pela família como vere-
ditos irrefutáveis, confirmando um luto para o que está vivo e reforçando a vida
do que não nasceu.
A vulnerabilidade familiar é lúgubre para o portador de qualquer pato-
logia, e deveria ser prevenida e tratada como prioridade nas células em que nas-
cem bebês com distúrbios neuromotores.
Designamos vulnerabilidade social aquela que se refere à qualidade de
vida das pessoas, como elas se relacionam com seus semelhantes, mesmo quan-
do são designadas como portadoras de necessidades especiais. Trata-se de saber
o quanto os direitos e as necessidades desses cidadãos são atendidos de forma
adequada, visando alcançar a melhor autonomia para todos os envolvidos. Es-
tando relacionada a fatores éticos e culturais, nem sempre atados ao nível de
conhecimento científico ou tecnológico da sociedade, essa vulnerabilidade, de
forma contraditória, pode ser potencializada nos meios em que a cognição é
extremamente valorizada.
Como vulnerabilidade programática consideramos as ações que o go-
verno ou as instituições desenvolvem para aumentar o acesso da população à
informação e aos serviços de saúde, com o objetivo de prevenir, tratar e acom-
panhar o desenvolvimento dos portadores de necessidades especiais.
Em todas as facetas da vulnerabilidade apresentadas encontramos o en-
volvimento dos profissionais da saúde. Desde a concepção até a confirmação
diagnóstica, do fallow up até a manutenção dos ganhos globais, a postura ética
do profissional é determinante para que a credibilidade no potencial humano
prevaleça. Diminuir essa vulnerabilidade depende de todos os segmentos dos
profissionais da saúde, atuando nos diversos níveis da sociedade como cidadãos.
Uma das formas de alcançar esse objetivo está no aprofundamento dos
temas dentro de uma visão globalizada. Atuando com esses pacientes, o musico-
terapeuta necessita fundir saberes, a fim de se constituir integralmente em sua
prática. O estudo de disciplinas de áreas afins possibilita uma discussão e uma
atuação interdisciplinar, que contribuem significativamente para o desenvolvi-
mento global do paciente. Assim, para o musicoterapeuta, no estudo das disfun-
ções neuromotoras, é de sumo interesse recorrer a informações das demais técni-

378 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


cas utilizadas: teoria de integração sensorial, método neuroevolutivo Bobath,
comunicação alternativa, visão subnormal, abordagem funcional, reintegração
neurológica, psicomotricidade relacional, entre outros. É importante também
acompanhar os avanços e atualizar os conhecimentos sobre Neurologia, Psiquia-
tria e Ortopedia.
É através desse intercâmbio de informações que o musicoterapeuta firma-
rá o reconhecimento de sua prática. A presença da Musicoterapia em instituições
de saúde, de ensino superior e em eventos científicos de caráter interdisciplinar
já é uma realidade. Cada dia mais, neurologistas, psiquiatras, fonoaudiólogos,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e pedagogos encaminham
pacientes para se submeterem ao processo musicoterapêutico, por perceberem o
quanto essa prática pode contribuir para o desenvolvimento do paciente.
Outro motivo frequente que faz o portador de disfunções neuromotoras
chegar até o consultório do musicoterapeuta é a percepção pela família do alto
grau de motivação e prazer que a música e seus elementos representam para o
paciente. Muitos pais acabam por descobri-la após grande pesquisa na busca de
uma atividade que focalize a expressão artístico-musical como um canal poten-
cializador da comunicação.
A música é intrínseca à sensibilidade humana, e sua utilização no contato
com a criança é um fato natural. A melodia da fala, carregada do afeto inerente à
interação entre mãe e filho, constitui verdadeira música para os bebês. Essa me-
lodia vocal é percebida muito anteriormente à compreensão dos significados da
fala e constitui o primeiro passo para a aquisição da linguagem.
Quando o bebê apresenta uma disfunção, a mãe e a família têm sentimen-
tos ambíguos. Conscientes do diagnóstico, lidam com uma criança especialmen-
te frágil às doenças comuns da infância e com as fantasias perante o desconheci-
do. Isso altera as relações familiares, e este é o momento crucial para o apareci-
mento da vulnerabilidade. Condutas de superproteção, simbiose, rejeição, medo
da perda e uma série de outros sentimentos ocorrem com frequência, interferindo
na relação familiar. Diante da patologia, a escolha da postura parental influencia
diretamente a musicalidade da comunicação e o manuseio da criança, e esses
aspectos devem receber atenção especial, a fim de prevenir a já citada vulnera-
bilidade familiar.
No relato dos pais, quase sempre ouvimos referências positivas ao poder
que a música exerce sobre a criança que apresenta disfunções neurológicas. Isso
leva o adulto a lançar mão, mais e mais, do recurso sonoro. Quando o recurso é
usado de forma espontânea e apropriada, atua estimulando e ampliando a intera-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 379


ção parental. Entretanto, o prolongado período de dependência física e emocio-
nal da criança torna o processo diferenciado, podendo levar a um uso iatrogênico
desses elementos. O musicoterapeuta, inclusive, pode colaborar muito de forma
preventiva, orientando a família quanto à correta utilização dos recursos sonoros
e musicais.
Nesse sentido, são pertinentes as orientações quanto às alterações do re-
pertório de acordo com a faixa etária do paciente, a diferenciação entre uma fala
musicalmente carinhosa e uma fala caricata ou infantilizada.
Pesquisando a utilização da música na população dos portadores de parali-
sia cerebral2, analisamos 40 questionários respondidos por pais ou cuidadores
(familiares ou funcionários) que acompanhavam a rotina dessas crianças ou ado-
lescentes. Os dados foram coletados graças à colaboração de instituições de en-
sino e de profissionais da área de saúde.
Como resultado, obtivemos uma parcela de 80% de pais e cuidadores que
afirmaram sempre utilizar a música, o som ou brincadeiras musicais para facili-
tar os cuidados com o portador de paralisia cerebral.
Solicitada uma justificativa para as respostas, prevaleceu a percepção, pe-
los responsáveis, de alterações positivas na atenção, motivação, relaxamento e
vocalização do filho com paralisia cerebral, na presença de recursos musicais.
Embora o citado estudo tenha sido realizado com população dos portado-
res de paralisia cerebral, nossa experiência prática tem demonstrado que esse
fato ocorre de maneira parecida em diversas patologias em que acontece o atraso
global do desenvolvimento infantil.

O processo musicoterapêutico
Segundo Albinati1, “o musicoterapeuta é antes de tudo um pesquisador em
repertório musical. Ao dedicar-se ao uso da música em terapia, dificilmente ou-
virá uma música sem pensar nela como possível objeto terapêutico. Sua escuta
estará sempre atenta a aspectos como: materiais, forma, contexto histórico e
prováveis associações extramusicais”.
Sua visão do recurso musical na terapia é abrangente e engloba a utiliza-
ção tanto do som, do silêncio, do ritmo, do movimento, do timbre, da melodia, e
de outros elementos constituintes do fazer musical, quanto da própria música
para alcançar propósitos terapêuticos.
O primeiro passo do atendimento musicoterapêutico é o processo de ava-
liação diagnóstica que, resguardadas as especificidades do contexto de consultó-

380 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


rio particular ou de uma instituição de saúde, consiste basicamente da entrevista
de anamnese, e do levantamento de dados sobre as experiências sonoro-musicais
do paciente. Esse material é de grande importância para o procedimento clínico,
pois demarca o background sonoro e musical no qual o musicoterapeuta se des-
locará durante as sessões.
Também fazem parte do processo de avaliação contatos com o paciente,
com a família e com os demais profissionais envolvidos. Isso é mais fácil quan-
do o musicoterapeuta está inserido em uma equipe, nas instituições de saúde.
Em nossa prática, o processo de avaliação termina com uma sessão com
os responsáveis, na qual o musicoterapeuta expõe suas observações. Neste mo-
mento são levadas em consideração as capacidades do usuário, observando-se de
forma criteriosa o fator vulnerabilidade individual e familiar para demarcar os
objetivos específicos da Musicoterapia, de acordo com as necessidades primor-
diais do paciente.
Também temos observado algumas necessidades comuns aos portadores
das disfunções neurológicas, mesmo considerando os variados diagnósticos, com
os quais realizamos o processo musicoterapêutico. Cada exemplo dessas neces-
sidades é seguido de uma breve descrição de atividades que o musicoterapeuta
pode proporcionar ao paciente.
- Estimular a propriocepção: através da vibração inerente ao fenômeno
sonoro, ao tocar os instrumentos musicais ou ao ouvi-los (ou senti-los); sendo
tocados bem próximos ao paciente pelo musicoterapeuta, ele percebe o contorno
corporal, formando um esquema e uma imagem corporal.
- Reduzir a defensibilidade tátil: através da vibração e da textura dos ins-
trumentos musicais que o paciente deseje fazer soar.
- Estimular as emissões sonoras: através da valorização e contextualização
dos sons produzidos pelo paciente, que utilizará fragmentos melódicos criados
pelo musicoterapeuta a partir dos conteúdos sonoros que o paciente é capaz de
emitir.
- Trabalhar a atenção dirigida: através de jogos musicais que surgem das pos-
sibilidades do paciente e que são estruturados com o auxílio do musicoterapeuta.
O objetivo primordial, em todos os casos, é criar condições ideais para
que se forme um vínculo positivo entre o paciente e o terapeuta. Nesse momen-
to, ambos estarão tocando, cantando, porém o musicoterapeuta estará atento à
comunicação do paciente. A expressão da face, o gesto, a postura e todas as ou-
tras manifestações não-verbais devem ser observadas pelo musicoterapeuta,
principalmente no caso de pacientes com comprometimento de linguagem.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 381


A percepção do musicoterapeuta quanto à comunicação dos pacientes com
acometimento severo é dificultada, o que prolonga o período de formação de
vínculo. Este é um período de reconhecimento, tanto para o paciente quanto para
o musicoterapeuta, que é superado à medida que o paciente adquire confiança e
segurança no musicoterapeuta. Quando este se torna apto a lidar com as particu-
laridades do quadro motor, cognitivo e emocional, a expressão do paciente se
torna verdadeira fonte de significados, cada vez mais consistentes, favorecendo a
interação e as decorrentes intervenções.
Em nossa prática, temos utilizado um procedimento que denominamos
“espelho-partitura”, o qual facilita a visualização do paciente durante a sessão.
Consiste na utilização de um espelho, colocado na prateleira do piano, substitu-
indo a partitura convencional. Este procedimento permite que o terapeuta veja o
seu paciente, independentemente da proximidade física, facilitando a interação e
a observação dos aspectos pré-verbais da comunicação.
O piano ou o teclado eletrônico é utilizado com frequência em nossa prá-
tica, pois são instrumentos que provocam impacto significativo nos pacientes.
Pensamos que esse fato pode estar relacionado também ao estímulo visual que o
teclado oferece. O padrão de grating (Fig. 1) – listras em contraste (branco e
preto), é um facilitador para as funções quantitativas e qualitativas da visão4,5.

Figura 1. Teclado com o padrão de grating.

382 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Entretanto, quando o teclado eletrônico é utilizado, isolamos o painel de controle
com uma placa de acrílico, deixando à mostra apenas os controles de função
principal, pois consideramos que o painel provoca excesso de estímulos visuais,
possivelmente prejudiciais a alguns pacientes. É importante reforçar que nos
casos em que há comprometimento da função visual, o musicoterapeuta deve
encaminhar o paciente para uma avaliação especializada em visão subnormal.
A utilização do equipamento para amplificar a voz do paciente, através do
uso do microfone, é um fator de potencialização da capacidade expressiva. Esse
aparato traz significativo impacto aos pacientes. Se o microfone é recebido com
timidez, o que é raro, na grande maioria dos casos é um atrativo ímpar.
Para sua utilização de forma segura, tanto em termos de higienização
quanto de uso adequado, recomendamos o uso da espuma, que em nossa prática
é utensílio pessoal de cada paciente (Fig. 2).
Essa conduta também é utilizada com os demais instrumentos de sopro,
prevenindo assim a contaminação.

Figura 2. Espuma protetora do microfone.

O processo musicoterapêutico requer que ambos, paciente e terapeuta,


possam tocar instrumentos. É necessário que o paciente esteja bem posicionado,
da forma mais autônoma possível às suas condições motoras. Para alcançar esse

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 383


objetivo, o profissional deverá usar da sua criatividade, seguindo sempre as re-
comendações do fisioterapeuta que acompanha o paciente.
É fundamental ressaltar que a qualidade do produto musical executado pe-
la criança está totalmente ligada à sua capacidade motora, cognitiva e emocional.
O belo e o estético do fazer musical, neste contexto, é evidentemente afetado
pela patologia. A perfeição de notas e ritmos e a estabilidade da pulsação ficam
em segundo plano, pois o musicoterapeuta tem como meta ampliar os canais de
comunicação e expressão do paciente.
Como nas disfunções neuromotoras a capacidade global do usuário de-
pende do grau de acometimento da patologia, o trabalho na Musicoterapia pro-
porcionará desde sequências basicamente rítmicas e melódicas até a percepção
dos parâmetros harmônicos mais complexos. Mesmo que durante o atendimento
o paciente chegue a adquirir conhecimentos sobre notação musical ou signos da
música, estes não são os objetivos principais do musicoterapeuta, e o paciente
pode buscar, posteriormente, um trabalho de musicalização específico. Podemos,
no entanto, afirmar que o desenvolvimento do paciente se reflete diretamente na
qualidade de sua performance musical, provocando um movimento de realimen-
tação motivacional.

Considerações finais

A Musicoterapia tem se mostrado bastante organizada, em sua teoria e


prática, para auxiliar os portadores de disfunções neuromotoras, presentes em
várias patologias.
A utilização sistematizada dos recursos musicais tem contribuído para que
muitas crianças, adolescentes e adultos conquistem nova qualidade de vida, con-
seguindo se deslocar de forma positiva nos aspectos motor, cognitivo, emocional
e interpessoal. A Musicoterapia tem um potencial singular para lidar com os
aspectos das vulnerabilidades que fatalmente vão surgir. Nesta abordagem, as
possibilidades do paciente, sejam elas quais forem, são tomadas como condição
real e inegável, na qual se articula e se dá o progresso, potencializando-se os
aspectos positivos.
A face artística da abordagem terapêutica, num dado momento, conduz o
paciente a romper as barreiras da patologia, revelando potenciais de expressão.
E, como na arte, quando há qualquer potencial de expressão, isto se torna uma
necessidade.

384 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Referências
1. Albinati MECB. O repertório musical em musicoterapia. In: V Encontro Mineiro de
Musicoterapia. Belo Horizonte, Brasil; 2000. [Anais, p. 3].
2. Chagas EP, Tibúrcio SP. A importância da música para o portador de paralisia cere-
bral. In: Congresso Mineiro de Neurologia e Psiquiatria Infantil. Belo Horizonte, Brasil;
2003. [p. 9].
3. Gaston T. Tratado de musicoterapia. Buenos Aires: Paidos; 1968.
5. Fonseca LF, Lima CLA. Paralisia cerebral: Neurologia, ortopedia e reabilitação. 2. ed.
Rio de Janeiro: MedBook; 2008.
4. Tibúrcio SP. Musicoterapia e visão subnormal. In: Encontro Nacional de Pesquisa em
Musicoterapia. Curitiba, Brasil; 2002. [p. 134].

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 385


16.
MUSICOTERAPIA E
RITMOS BIOLÓGICOS

Viviane Fowler

A Musicoterapia é uma área da ciência que estuda os mecanismos de inte-


ração entre o som, a música e o ser humano visando desenvolver abordagens
diagnósticas e procedimentos terapêuticos eficazes que contemplem o indivíduo
em seu aspecto global.
O interesse em ampliar a compreensão de como os fenômenos sonoros e
musicais incidem sobre os processos mentais e neurobiológicos dos seres se
estende por vários campos do conhecimento, como a neurociência, neurologia
do comportamento, neurobiologia, psicologia cognitiva, psicologia musical,
entre outros. Neste cenário, a Musicoterapia avança como uma área clínica pro-
missora que fundamenta seu corpo teórico apoiando-se nos resultados de pesqui-
sas multidisciplinares.
Estudos têm demonstrado que padrões rítmicos sonoros evocam respostas
fisiológicas e podem, efetivamente, sincronizar com os ritmos biológicos dos
indivíduos. A disciplina científica que investiga o funcionamento dos ritmos
biológicos dos seres vivos se intitula “cronobiologia”. O prefixo crono refere-se
a tempo; portanto, a cronobiologia pode ser definida como o ramo da ciência
dedicado ao estudo da biologia em função do tempo ou, mais especificamente, o

386 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


estudo dos eventos orgânicos que se manifestam de uma forma recorrente e pe-
riódica expressando o seu comportamento e controlando a sua fisiologia como,
por exemplo, nos humanos: os batimentos cardíacos, a frequência respiratória, as
frequências das ondas cerebrais, os ritmos de atividade motora, de secreção
hormonal, de temperatura corporal, de atividades endócrinas, de pressão arterial
e de atividades reprodutoras, só para citar alguns.

Ritmos biológicos
Sabe-se que os fenômenos rítmicos e temporais têm função relevante na
autorregulação do comportamento humano, bem como em suas inter-relações
com os ritmos ambientais. A palavra ritmo, de origem grega, significa aquilo que
flui, movimento ordenado no tempo. Todos os seres vivos, dos mais simples até
os mais complexos, apresentam ritmos nos diferentes níveis de organização das
suas funções biológicas – nas células, nos tecidos, nos órgãos, nos sistemas e no
organismo como um todo. Alterações no equilíbrio rítmico dessas redes expli-
cam fenômenos patológicos. Em pacientes deprimidos, por exemplo, demonstra-
se uma instabilidade entre três sistemas rítmicos: o noradrenérgico, o ciclo
REM-NREM e o sistema de termorregulação (Siever et al. apud Marques e
Menna Barreto11).
Além das variações rítmicas que ocorrem endogenamente como, por e-
xemplo, o ritmo do sono, de alimentação, de atenção, de atividade digestiva,
renal e intestinal, entre muitos outros, os indivíduos mantêm interações constan-
tes com o meio buscando se adaptar às oscilações rítmicas que ocorrem ciclica-
mente, como o ciclo claro/escuro (dia e noite), o ciclo das estações do ano, o
ciclo das fases da lua, os ciclos de temperatura, os ciclos de disponibilidade de
alimento, os ciclos de interações sociais etc. As oscilações rítmicas que ocorrem
no ambiente atuam como agentes arrastadores ou Zeitgebers dos ritmos biológi-
cos internos promovendo sincronizações. [Zeitgeber é neologismo alemão cunha-
do por Jurgen Aschoff em 1960, que significa “doador de tempo”]. Como exemplo
pode-se citar o Zeitgeber mais estudado pela cronobiologia: o ciclo claro/escuro. A
presença ou não de luz durante o ciclo dia/noite acarreta alterações significativas
nos ritmos biológicos endógenos modificando, nos humanos, o ritmo das ondas
cerebrais, da temperatura corporal, das funções metabólicas, preparando o orga-
nismo para a transição do estado de vigília para o sono e vice-versa.
O som, por sua vez, é um fenômeno físico que não incide de forma cíclica
no ambiente, repetindo-se com regularidade periódica e impactante como os

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 387


ciclos (Zeitgebers) citados anteriormente. Porém, dependendo do tipo de ocor-
rência bem como da variabilidade de suas características (tais como o volume, a
duração, a intensidade, a altura e o timbre), determinados estímulos sonoros e/ou
musicais podem provocar efeitos físicos e psíquicos e, consequentemente, modi-
ficações nos ritmos biológicos.
Cabe salientar que fatores subjetivos como a motivação e o interesse do
ouvinte são fundamentais para que o som exerça influência sobre a ritmicidade
biológica do indivíduo.
Alguns pesquisadores da área da Cronobiologia têm desenvolvido estudos
visando avaliar de que forma os estímulos sonoros e/ou musicais podem influen-
ciar os ritmos biológicos em humanos.
Um trabalho pioneiro foi realizado por Jurgen Aschoff, na década de
1970, com um indivíduo mantido em laboratório sob um estímulo luminoso
fraco (portanto, um Zeitgeber ineficiente). O sujeito devia urinar a cada quatro
horas, e o pesquisador utilizou o toque regular de um sino como estímulo auditi-
vo. Os resultados sugeriram que houve sincronização pelo som5.
Mais recentemente, Hans-Ullrich Balzer et al.2 conduziram diversos estu-
dos explorando a inter-relação entre os ritmos biológicos e as funções vegetati-
vas (respostas emocionais, neurológicas e motoras) de sujeitos saudáveis e paci-
entes com depressão submetidos à audição musical.
No trabalho intitulado “Aspectos Cronobiológicos do Impacto da Música”
os pesquisadores relataram que as respostas dos indivíduos ao impacto da músi-
ca podem ser analisadas utilizando-se informações relativas às mudanças de
estados biológicos corporais.
Além das pesquisas no campo da cronobiologia, estudos científicos que
investigam a percepção rítmica e o processamento da informação temporal suge-
rem a existência de um pulso periódico básico ou um marca-passo que regula as
mais variadas atividades do comportamento humano. As pessoas sincronizam
facilmente seus movimentos com uma sequência regular de sons. Isso sugere
que os indivíduos são capazes de antecipar um estímulo rítmico e enviar os co-
mandos motores de modo a coordenar os movimentos, de maneira precisa, com
os estímulos7.
Pode-se observar paralelos significativos entre as estruturas temporais
presentes nos ritmos biológicos e nos ritmos sonoros. Ambos organizam o mo-
vimento em um fluxo dinâmico de contração e dilatação (pulsação), antecipação,
excitação, descarga e relaxamento.

388 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Ritmos sonoros
Enquanto os ritmos biológicos se apresentam como eventos inerentes a
todos os seres vivos que se repetem regularmente, interagindo entre si e com o
meio ambiente, os ritmos sonoros, por sua vez, são elementos inerentes à música
que se repetem na forma de sucessão temporal organizando os valores de dura-
ção do som.
Para Wisnik18, “a onda sonora é um sinal oscilante e recorrente, que retor-
na por períodos repetindo certos padrões no tempo. Ela obedece a um pulso,
seguindo o princípio da pulsação”. O toque sucessivo de um tambor, por exem-
plo, é um pulso rítmico. Na música, frequentemete, encontra-se um pulso perió-
dico básico que atua como pano de fundo para a organização e memorização
temporal. Esse pulso fundamental se aproxima de uma taxa de dois eventos por
segundo, valor que corresponde à velocidade de certo número de outros compor-
tamentos não-musicais (Krumhansl, 2000 apud Ilari7).
Dentre os elementos que constituem a música – ritmo, melodia e harmonia,
o ritmo é o que mais se associa à percepção de duração no tempo, de periodici-
dade. Na opinião de Willems (apud Sekeff13) “o ritmo e seu elemento discipli-
nador, o pulso, são um recurso pelo qual o indivíduo aprende a viver o tempo
que passa, um tempo que é percebido, aceito, dominado e experienciado em cada
nova escuta musical”.
Segundo Jourdain8, “no período do Renascimento acreditava-se que as no-
tas mais curtas da música (muito mais longas que as de hoje) eram ditadas pelas
pulsações. Na verdade, o tempo normal (tempo giusto), para o qual grande parte
da música barroca foi escrita (75 a 80 batidas por minuto), corresponde perfei-
tamente à média de pulsações, mas as pesquisas sugerem que se trata de mera
coincidência”.
As opiniões sobre o tema divergem incitando a discussão. Conforme des-
crevem Koepchen et al. em artigo intitulado “Ritmicidade Fisiológica e Música
em Medicina” (apud Spintge e Droh14), “é certamente mais do que pura coinci-
dência a faixa de frequências instaladas em um metrônomo, utilizado no treina-
mento da prática musical, corresponder exatamente à faixa de frequências dos
batimentos cardíacos ente o repouso e a intensa atividade física”.
Citações correlacionando os ritmos sonoros e os ritmos corporais são en-
contradas desde o século passado nos trabalhos teóricos de alguns autores. Por
volta de 1903, o educador musical Emile Jaques-Dalcroze desenvolveu um mé-
todo de pedagogia musical, intitulado “Rítmica”, com o objetivo de desenvolver

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 389


e harmonizar as funções motoras e regular os movimentos corporais no tempo e
no espaço. Ele dizia que o organismo humano é suscetível de ser educado efi-
cazmente conforme a ordem e o impulso da música, pois ritmo musical e ritmo
corporal são o resultado de movimentos sucessivos, ordenados, modificados e
estilizados, formando uma verdadeira identidade (Benenzon apud Sekeff13)
Paralelamente, desenvolveram-se investigações científicas buscando elu-
cidar as possíveis influências do som e da música nas funções psicofisiológicas.
O fisiologista Charles Férè, com o recurso do ergógrafo de Mosso concluiu que
são os estímulos rítmicos, antes de quaisquer outros, que conseguem “aumentar”
o rendimento corporal13.
Com o advento de novas tecnologias de pesquisa, além dos estudos corre-
lacionando estimulos rítmicos e movimentos corporais, passou-se a investigar a
influência de estímulos auditivos nos ritmos cardíaco e respiratório.
Conforme relata Saperston16, Lovell e Morgan (1942) constataram que
padrões de respiração se aproximaram aos padrões de um tom regular e recor-
rente, enquanto em estudo mais recente realizado na Escola de Medicina da Uni-
versidade de Nova Iorque, Hass et al. (1986) demonstraram que padrões de res-
piração da maioria os sujeitos foram sincronizados através de ritmos musicais
gravados previamente. Bason e Celler (1972) afirmaram que batimentos cardía-
cos dos sujeitos estudados sincronizaram com a apresentação de pulsos audíveis
no preciso tempo do ciclo cardíaco medido no eletrocardiograma.
Mais recentemente, o Prof. Dr. Gunther Hildebrandt6, fundador da Socie-
dade Européia de Cronobiologia, escreveu o artigo intitulado “Ritmos Biológi-
cos em Humanos e suas Similaridades com a Música”, buscando demonstrar
como os processos rítmicos de um organismo humano saudável seguem as leis
harmônicas da natureza presentes, igualmente, na música. Em sua opinião, “os
resultados encontrados na cronobiologia e cronomedicina têm mostrado que o
organismo humano não só possui um design interior complicado em termos de
estrutura espacial, mas também tem um design temporal altamente sofisticado,
uma vez que é construído a partir de inúmeras estruturas rítmicas. Existe, portan-
to, razão suficiente para procurar estruturas biológicas temporais nos seres hu-
manos que possam ser consideradas equivalentes ou reagentes às experiências
musicais.
Os ritmos da respiração e do coração estão no centro da polarização da
organização rítmica nos humanos. Em vista desta posição central no espectro
total dos ritmos autonômicos não é de surpreender que essas áreas estejam espe-
cialmente próximas das experiências musicais e do movimento musical6.

390 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Interações entre os ritmos biológicos e os ritmos sonoros

Os ritmos biológicos são classificados, de acordo com a sua periodicidade,


em circadianos, ultradianos e infradianos. Os ritmos que se repetem a cada dia
são denominados circadianos, um termo derivado das palavras latinas circa (em
torno) e dias (dia). O ciclo vigília-sono é um ritmo circadiano comum a vários
seres que se repete a cada dia, em período que varia de 20 a 28 horas, de acordo
com a espécie.
Além dos ritmos circadianos, existem os ritmos infradianos (ritmos de
baixa frequência), que têm duração maior do que um dia com períodos de osci-
lação superiores a 28 horas, como os ciclos ligados à reprodução (ciclo menstru-
al humano), e os ritmos ultradianos (ritmos de alta frequência), que têm duração
menor do que um dia com períodos de oscilação menores que 20 horas, como os
ritmos de respiração, de batimentos cardíacos, de disparo de neurônios, de bati-
mento do flagelo de espermatozóides, entre outros.
Lent10 esclarece melhor a nomenclatura utilizada nesta classificação: “nos
ritmos ultradianos o período é de horas (menor que um dia), mas a frequência é
alta (vários ciclos por dia). Daí o prefixo ultra. Nos ritmos infradianos ocorre o
contrário: o período pode ser até de meses (maior que um dia), mas a frequência
é baixa (alguns ciclos por ano). Daí o prefixo infra”.
A ritmicidade biológica dos indivíduos é um sistema bastante complexo
que envolve inter-relações entre diferentes padrões de oscilação. Conforme ex-
plica Koepchen14, “nós temos percepção de somente uma parte muito limitada de
todos esses ritmos”.
Para compreender melhor os mecanismos de interação entre os ritmos bio-
lógicos e os ritmos sonoros, faz-se necessário discorrer sobre os conceitos ine-
rentes aos fenômenos denominados: arrastamento (em inglês, entrainment) e
sincronização.
O fenômeno intitulado entrainment pela ciência contemporânea foi obser-
vado, pela primeira vez, em 1665, pelo cientista alemão Christian Huygens
quando percebeu que dois ou mais osciladores no mesmo campo, pulsando qua-
se ao mesmo tempo, tendem a um deslocamento que faz com que passem a pul-
sar sincronizados. “A razão da ocorrência deste fenômeno atribui-se ao fato de
que na natureza a energia mais eficiente prevalece, e gasta-se menos energia
pulsando-se em conjunto do que em oposição” (Leonard, 1978 apud Wigram et
al.16). É importante salientar que para a sincronização ocorrer é essencial que os
dois osciladores estejam pulsando quase ao mesmo tempo.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 391


Atualmente, os mecanismos de entrainment são estudados por pesquisa-
dores de diferentes áreas como biológicas, exatas e humanas. Na área da saúde,
esse fenômeno tem sido alvo de investigações pela cronobiologia, musicoterapia,
psicologia, entre outras.
Para os cronobiologistas, entrainment ou arrastamento é definido como
ajuste temporal de um ritmo por um outro ritmo. Mais comumente, refere-se ao
processo de ajuste temporal de organismos a ciclos ambientais (como a sincroni-
zação do ritmo da temperatura central com o claro/escuro ambiental). Diz-se que
um ritmo está arrastado quando mantém relações de fase estáveis com o ciclo
arrastador11.
Para os musicoterapeutas, entrainment é definido como a utilização de vi-
brações, de sons e de música sob várias formas elementares e combinadas para
estabelecer sincronismo com as respostas corporais voluntárias ou autônomas:
entre o cliente e a música, entre partes do corpo do cliente e entre o cliente e
outra pessoa. Os estímulos utilizados podem ser gravados ou criados pelo tera-
peuta e/ou cliente, podendo ser instrumentais ou vocais4.
As investigações científicas conduzidas por musicoterapeutas buscam ve-
rificar a ocorrência do fenômeno do arrastamento, através de estímulos sonoro-
musicais, nos ritmos circadianos com periodicidade que se repete, nos humanos,
aproximadamente a cada 24 horas (um dia), e nos ritmos ultradianos com perío-
dos de oscilação menores que 20 horas, incluindo eventos rítmicos com periodi-
cidade de minutos e segundos como, por exemplo, o ritmo da respiração, o ritmo
dos movimentos motores e o ritmo cardiovascular (posteriormente citaremos
algumas das pesquisas correlacionadas ao tema em questão).

Os fenômenos rítmicos no enfoque musicoterapêutico

Desde quando a Musicoterapia foi instituída como profissão, nos anos


1950, a National Association for Music Therapy, Inc. buscou consolidar o traba-
lho desenvolvido pelos musicoterapeutas aliado às práticas médicas. Segundo
Leinig9, no início se estabeleceu uma forte ligação com a área da psiquiatria e,
posteriormente, com outras especialidades como a cardiologia, a ortopedia e a
neurologia.
Nessa época, profissionais que atuavam na área da saúde utilizando os re-
cursos musicais nos processos de reabilitação física e mental, como Altshuler
(1960), Alvin (1966), Cotton (1965) e Gilliland (1957), relataram que a música
tende a ativar os ritmos humanos inerentes a cada um14.

392 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Durante experiências clínicas no Eloise Hospital, EUA, o psiquiatra norte-
americano Ira Altshuler (1943) desenvolveu o princípio da ISO baseado na cons-
tatação da existência de uma identidade sonora peculiar a cada indivíduo. Con-
forme explica Leinig9, Altshuler verificou que o humor e o tempo mental do
paciente podem ser influenciados mais rapidamente pela música cujo caráter e
andamento coincidam com esse tempo mental. Com um paciente depressivo
empregava música de caráter triste, em tonalidade menor, conseguindo desse
modo um envolvimento mais rápido do que se usasse música alegre, viva. Ao
contrário, os pacientes maníacos, cujo tempo mental se apresenta acelerado,
disperso, podem ser estimulados ao entrar em contato com a música de tempo
mais rápido. Hoje, entretanto, essas considerações são bastante contestadas. Não
se pode afirmar que o caráter e o modo (maior ou menor) da obra musical este-
jam relacionados com estados de ânimo. Pode-se citar como exemplo a música
Tristesse, de Chopin, que, apesar de ter sido composta na tonalidade maior, pos-
sui um caráter melancólico.
É importante ressaltar que, na Musicoterapia, o princípio da ISO, ou da
Identidade Sonora do indivíduo, é um dos elementos mais importantes a ser con-
siderado no processo terapêutico, uma vez que ele reflete, entre outras particula-
ridades, as características referentes ao tempo interno, inerente a cada um.
Segundo Wigram17, o princípio da ISO trabalha no nível vegetativo em
que a sequência musical corresponde ao senso de tempo orgânico do paciente
(devagar/rápido; accelerando/ritardando), excitação e elevação, tensão e rela-
xamento.
Benenzon3 fundamentou o seu conceito de ISO baseando-se nos estudos
de Altshuler: “ISO quer dizer igual e resume a noção da existência de um som
ou conjunto de sons ou fenômenos sonoros internos que nos caracteriza e nos
individualiza. É um fenômeno de som e movimento interno que resume nossos
arquétipos sonoros, nossas vivências sonoras gestacionais intra-uterinas e nossas
vivências sonoras de nascimento e infantis até nossos dias”.
O autor preconiza que, para produzir um canal de comunicação entre tera-
peuta e paciente, o tempo mental do paciente deve coincidir com o tempo sono-
ro-musical executado pelo terapeuta.

Arrastamento e Musicoterapia
Com relação às investigações científicas desenvolvidas na área de Musi-
coterapia envolvendo os mecanismos de arrastamento (entrainment), foram en-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 393


contradas, na literatura especializada, citações aos trabalhos de Mark Rider, Bru-
ce Saperston e Michael Thaut.
Mark Rider12, professor de Musicoterapia na Universidade Metodista do
Sul, em Dallas, e pesquisador no Centro de Ciências Não-Lineares da Universi-
dade do Norte do Texas, realiza pesquisas desde a década de 1980, tendo publi-
cado diversos artigos abordando a técnica do entrainment. Em 1985, conduziu
pesquisa visando avaliar os efeitos da música, imagem guiada (GI) e relaxamen-
to progressivo muscular (PMR) sobre os corticosteróides adrenais (hormônios do
estresse). Foram concebidas hipóteses baseadas no teor médio da amplitude cir-
cadiana, do re-arrastamento da temperatura corporal e dos corticosteróides da
urina através da audição de fita musical e indução verbal. Foram recolhidas a-
mostras de urina e registrada a temperatura corporal de enfermeiras quando se
deslocavam para o trabalho durante três dias, com intervalos, no período de um
mês. As enfermeiras ouviam a fita em uma base diária, começando após o pri-
meiro período de registro. Os resultados indicaram que a amplitude circadiana
reduziu de forma acentuada, e o ritmo da temperatura foi significativamente
mais arrastado durante a audição. O teor médio dos níveis de corticosteróide na
urina também diminuiu. Os pesquisadores concluíram que, devido à estreita
relação entre os hormônios do estresse e o sistema imunológico, os resultados
sugerem a relação entre música, técnicas de relaxamento e saúde física12.
Bruce Saperston, musicoterapeuta clínico, pesquisador e educador atuan-
do na Universidade de Música do Estado de Utah, desenvolveu o modelo de
música interativa fisiológica, no qual um ou mais elementos da música (ou com-
binações do mesmo elemento) são continuamente apresentados em uma relação
sistemática com o ritmo do organismo, com os limites de periodicidade necessá-
rios para o seu arrastamento. Enquanto o ritmo do organismo muda, tanto na
direção desejada (em direção ao sincronizador musical) ou afastando-se dela, o
sincronizador musical é novamente apresentado dentro de novos limites de peri-
odicidade necessários para o arrastamento.
O mecanismo é repetido de maneira contínua. Saperston sugere que am-
bos, estímulos musicais e respostas fisiológicas, são constituídos de vibrações
que ocorrem de uma forma regular e periódica. Sendo assim, estímulos musicais
e respostas fisiológicas consistem em oscilações. Considerando-se que entrain-
ment é o ajustamento de fase de oscilações, é possível que estímulos musicais
possam sistematicamente funcionar como sincronizadores (Zeitgeber) para in-
fluenciar mudanças previsíveis nas respostas fisiológicas através do entrain-
ment16.

394 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Michael Thaut é diretor científico do Centro para Pesquisas Biomédicas
em Música, na Universidade do Estado do Colorado, EUA. Tem publicado ex-
tensivamente pesquisas nas áreas de neurociência dos sistemas auditivo e motor,
fisiologia musical, psicologia, reabilitação neurológica e musicoterapia. No arti-
go intitulado “A Conexão Entre Ritmicidade e Funções Cerebrais: Implicações
para Terapia nas Desordens do Movimento”15, os autores ressaltam a eficácia da
aplicação de técnicas musicoterapêuticas para a obtenção de respostas motoras
em pacientes com disfunções neurológicas. São discutidas questões referentes às
aplicações de estruturas rítmicas sonoras na reabilitação motora. O mecanismo
fisiológico para essa conexão é baseado em interações entre os sistemas auditivo
e motor frente a estímulos sonoros que podem provocar e aumentar a excitação
dos neurônios motores espinais (localizados na saída da medula) mediados pelo
circuito motor auditivo. Em outros artigos, já havia sido demonstrado que pa-
drões sonoros de estrutura rítmica, como uma simples melodia em um compasso
2/4, pode arrastar o tempo dos padrões de ativação muscular.
Foram realizados testes clínicos com pacientes hemiparéticos utilizando-
se a frequência de um metrônomo em uma composição instrumental do período
renascentista adequada ao padrão de marcha do paciente.
Os resultados demonstraram que os efeitos da estimulação rítmica acústi-
ca melhoram a simetria da marcha reduzindo a variabilidade nos padrões medi-
dos no eletromiograma (EMG). A presença de estímulos rítmicos acrescenta
estabilidade imediata no controle motor, mais do que através de um processo
gradual de aprendizagem. Essa estabilidade é provavelmente mediada por um
processo imediato de sincronização rítmica entre o metrônomo e a resposta mo-
tora. Os mecanismos de adaptação temporal subjacentes a esse processo sugerem
a existência de processos diretos de acoplamento sensório-motor, no qual a in-
formação sensorial dirige ações motoras diretamente, independentemente da
adaptação cognitiva ou processos de aprendizado.
Os autores concluíram o trabalho afirmando que o achado mais excitante
dessa pesquisa se refere à evidência de que as interações entre ritmos auditivos e
respostas corporais podem ser efetivamente aproveitadas para propostas terapêu-
ticas específicas na reabilitação de pessoas com desordens no movimento.
Ressaltaram, ainda, que as técnicas de Musicoterapia originalmente desig-
nadas para necessidades sócio-emocionais estimulam respostas motoras em pa-
cientes com doenças neurológicas que não são prontamente acessíveis por outras
terapias.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 395


Considerações finais
A ritmicidade biológica reflete estados de equilíbrio ou desequilíbrio en-
dógeno que, de acordo com os resultados de várias pesquisas, podem ser influ-
enciados por estímulos sonoros musicais.
Compreender os mecanismos envolvidos nessa dinâmica é relevante, uma
vez que pacientes com disfunção motora podem ser beneficiados, por meio de
técnicas musicoterapêuticas, na organização dos movimentos. Outro aspecto a
ser considerado é que existem patologias caracterizadas por distúrbios rítmicos,
como a depressão endógena, doenças afetivas sazonais, distúrbios do sono, entre
outras, cujos ritmos biológicos, subjacentes a esses quadros, poderiam estar su-
jeitos ao arrastamento e sincronização através dos ritmos sonoros musicais.
Na visão de Aldridge1 “quando a periodicidade normal dos ritmos ultradi-
anos, responsáveis pela regulação do sistema autonômico e dominância cerebral,
é interrompida pelo estresse, reações psicossomáticas podem ocorrer. A restau-
ração de uma resposta rítmica hipotalâmica integrada pode ser um fator impor-
tante no processo da cura. É provável que a Musicoterapia seja um meio ideal
para promover essa integração e regulação através do ritmo”.
É importante salientar que os indivíduos reagem ao som e à música espon-
taneamente, pressupondo-se haver registros na memória operacional ou de longa
duração que classificam esses estímulos como agradáveis ou desagradáveis. As
preferências tanto quanto a indiferença com relação à audição estão diretamente
relacionadas ao interesse e à atenção; portanto, para que o recurso sonoro musi-
cal possa exercer seu papel na reabilitação, é fundamental a atuação de um mu-
sicoterapeuta na identificação da identidade sonora do sujeito.

Referências
1. Aldridge D. From out of the silence: Music therapy and practice in medicine. London:
Jessika Kingsley Publishers; 1996. p. 52.
2. Balzer HU. Chronobiological aspects of the impact of music. [citado em 2007 agosto].
Disponível em: http://www.ostina.org/index2.
3. Benenzon RO. O autismo, a família, a instituição e a musicoterapia. Rio de Janeiro:
Enelivros; 1987. p. 183.
4. Bruscia KE. Definindo musicoterapia. 2. ed. Rio de Janeiro: Enelivros; 1998. p. 130.
5. Davidson AJ, Menaker M. Birds of a feather clock together – sometimes: Social syn-
chronization of circadian rhythms. Curr Opin Neurobiol 2003; 13:765-9.

396 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


6. Hildebrandt G. Biological fundamentals of digital stress management: Chronobiologi-
cal aspects of music physiology. [citado em 2006 março]. Disponível em: http://www.
micromusiclaboratories.com.
7. Ilari BS. Em busca da mente musical. Curitiba: Editora UFPR; 2006. p. 50, 91.
8. Jourdan R. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva; 1997. p. 196.
9. Leinig CE. Tratado de musicoterapia. São Paulo: Setta; 1977. p. 16, 71.
10. Lent R. Cem bilhões de neurônios. São Paulo: Atheneu; 2005. p. 521.
11. Marques N, Menna-Barreto L. Cronobiologia: Princípios e aplicações. 3. ed. São
Paulo: Edusp; 2003. p. 117, 362.
12. Rider MS, Floyd JE, Kirkpatrick J. The effect of music, imagery, and relaxation on
adrenal corticosteroids and the re-entrainment of circadian rhythms. J Music Ther 1985;
22(1):48-58.
13. Sekeff ML. Da música seus usos e recursos. São Paulo: Editora UNESP; 2007. p. 44-
5.
14. Spintge R, Droh R. Music medicine. Missouri: MMB Music; 1992. p. 40-1.
15. Thaut MH. The Connection between rhythmicity and brain function. IEEE Engineer-
ing in Medicine and Biology 1999.
16. Wigran T, Saperston B, West R [ed.]. The art and science of music therapy: A hand-
book. Australia: Harwood Academic Publishers; 1995. p. 64-5.
17. Wigran T, Pedersen IN, Bonde LO. A comprehensive guide to music therapy:
Theory, clinical practice, research and training. London: Jessika Kingsley Publisher;
2002. p. 110.
18. Wisnik JM. O som e o sentido: Uma outra história da música. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras; 1989. p. 19.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 397


17.
EDUCAÇÃO MUSICAL E
MUSICOTERAPIA

ADAPTAÇÕES DO FAZER MUSICAL EM PROL DA


APRENDIZAGEM OU DA REABILITAÇÃO DE
PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS

Viviane Louro

A música pode ao penetrar no homem, romper barreiras de todo


tipo, abrir canais de expressão e comunicação e induzir a modificações
significativas na mente e corpo5.

A minha experiência em relação às pessoas com deficiência frente à mú-


sica é de cunho pedagógico e não terapêutico. Além de lecionar música, em es-
pecial o piano, venho me dedicando a pesquisas sobre as questões relacionadas
às pessoas com deficiência no que tange à aprendizagem musical, visto que há
uma carência de profissionais nesta área que se disponham a estudar e ensinar
398 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
música para esta população. Por algum tempo me dediquei especificamente ao
ensino do piano para pessoas com deficiência física, mas atualmente minhas
pesquisas e atuação profissional se expandiram para a iniciação musical, através
de aulas coletivas, de pessoas com deficiências não somente físicas, mas também
mentais, visuais, auditivas e múltiplas.
Neste capítulo, portanto, serão abordadas algumas adaptações, num pri-
meiro momento, específicas do fazer instrumental, mas que poderão ser facil-
mente transpostas para o uso terapêutico ou mesmo para outras instâncias do
ensino da música.
Porém, antes de adentrar nas adaptações a que este capítulo de fato se
propõe, gostaria de pontuar algumas questões a respeito da educação musical e
musicoterapia, dado que as pessoas muitas vezes confundem esses dois proce-
dimentos, principalmente quando relacionados a pessoas com necessidades es-
peciais.

Breves considerações sobre educação musical e


musicoterapia

A inclusão da pessoa com deficiência dentro do processo educacional da


música no Brasil ainda é pouco discutida e difundida, pois as iniciativas inclusi-
vas em relação a essas pessoas, geralmente, são estruturadas para a educação
básica, levando ao ostracismo os cursos específicos, como os de música, por
exemplo. Esse tipo de atitude, ou melhor, falta de atitude sobre essa temática por
parte do universo acadêmico musical, faz com que pessoas, inclusive muitos
professores de música, acreditem que, quando mencionamos: “ensinar música
para uma pessoa com deficiência”, estamos querendo dizer: “ajudar essa pessoa
a se reabilitar ou se incluir na sociedade”.
Quando é colocado sobre a atividade que exerço como professora de mú-
sica para pessoas com necessidades especiais, geralmente o comentário é: “Ah,
você é musicoterapeuta?” ou “Nossa, a música ajuda a acalmar, ajuda na memó-
ria, no comportamento dessas pessoas, né? É uma ótima terapia para pessoas
doentes”. Depois que explico que não sou musicoterapeuta, mas sim professora
de música, as pessoas falam: “Mas eles conseguem aprender música? Eles con-
seguem tocar alguma coisa?”; “Mas como é ensinar música para pessoas ‘defici-
entes’?”.
De fato, a música ajuda a “acalmar”, ajuda “na memória”, “no comporta-
mento” e em muitas outras coisas. Os benefícios que a música traz para o indiví-
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 399
duo se encontram além do que podemos compreender ou provar e independem
de a pessoa ser “doente” ou “saudável”, “deficiente” ou “não”. A música pode
ser um meio de reabilitação e de inclusão sim, mas não somente para pessoas
com deficiências; tampouco significa que, quando relacionada a uma pessoa com
deficiência, ela se limite exclusivamente a essa proposta.
Gainza4 conceitua Musicoterapia como: "aplicação científica das possibi-
lidades da música para contribuir ou favorecer os processos de recuperação psi-
cofísica das pessoas". Por outro lado, refere-se à educação musical como: "modo
de sensibilizar e desenvolver integralmente o educando e capacitá-lo para tornar
possível seu sucesso ao conhecimento e prazer musical”.
Na educação musical a relação professor-estudante foca as questões musi-
cais, enquanto que na Musicoterapia a relação cliente-terapeuta aborda as ques-
tões de saúde, que podem ser trabalhadas através da música2. Na educação musi-
cal, apesar de muitas vezes a música apresentar resultados benéficos como os de
uma terapia – algo presenciado diariamente na prática como professora –, não
pode ser assim considerada, pois o foco central, em princípio, é adquirir conhe-
cimento e habilidades específicas, isto é, o processo de aprendizagem. Quando
em terapia, mesmo que se obtenha um aprendizado musical ou uma habilidade
instrumental, o objetivo principal é a saúde, a recuperação de algum déficit que o
indivíduo possua2.
Ducourneau3 confirma essa afirmação quando menciona que, para o musi-
coterapeuta, "o mais importante é conhecer os elementos fundamentais [da mú-
sica] e os efeitos produzidos por eles". Sendo assim, não é o gosto musical do
terapeuta que está em jogo ou que guia as sessões, mas sim o procedimento ne-
cessário para que o objetivo ao qual o terapeuta se propôs seja alcançado.
A educação musical, por sua vez, leva em maior consideração as questões
da aprendizagem específicas do fazer musical e os conceitos estéticos e teóricos
que permeiam essa aprendizagem, buscando proporcionar, em primeiro lugar, o
contato do indivíduo com a música, a sensibilização e conscientização do uni-
verso sonoro; mas, visa também um resultado de cunho musical, independente-
mente de os alunos possuírem ou não deficiência.
Então, respondendo à questão colocada anteriormente: “Mas eles conse-
guem aprender música? Conseguem tocar alguma coisa?”: SIM!!! Eles apren-
dem, eles tocam, eles criam.
“Mas como é ensinar música para pessoas ‘deficientes’?”. É igual a ensi-
nar música para pessoas sem deficiências. Por trás de todo processo de aprendi-
zagem bem sucedido há metodologias, materiais específicos e estratégias a se-

400 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


rem seguidas. No que se refere a pessoas com deficiências, os procedimentos
não são diferentes: também há metodologias, materiais específicos e estratégias
a serem seguidas, só que, em muitos casos, tudo isso precisa ser adaptado, pois
estamos lidando com uma população muito mais heterogênea e com dificuldades
mais acentuadas do que o considerado “comum”.
Por isso, é inegável a importância das adaptações para todo o “fazer” de
pessoas com deficiências, incluindo, neste caso, o fazer que se relaciona com a
música, indiferentemente de ser em um processo terapêutico ou pedagógico.

Adaptações do fazer musical


Cabe ressaltar que, neste capítulo, o termo “fazer musical” será utilizado
como sinônimo de “execução musical”, “desempenho musical”, seja individual
ou em grupo, pois a expressão “fazer musical” pode ter diversas conotações e
significados, dependendo do contexto em que se encontra inserida.
Falar sobre maneiras de adaptar o “fazer musical” não é algo tão simples,
pois não há exatamente uma regra para isso, mas sim experiências que demons-
tram essa possibilidade. Por esse motivo, a maneira como as adaptações estão
divididas e organizadas é uma forma didática para melhor clareza ao leitor, e não
algo pré-estipulado.
Serão tratados aqui dois tipos específicos de adaptações:
- “Adaptações do contexto musical”, dividida em: Alterações musicais e
Arranjos musicais.
- “Adaptação técnico-musical“, que estará dividida em: Adaptações técni-
cas e Movimentos compensatórios.

Adaptações do contexto musical


São alterações ou adaptações diretamente ligadas à música em questão, à
partitura. São mudanças feitas no contexto, no discurso musical da obra a ser
executada, nos aspectos teóricos (da escrita musical).
- Alterações musicais: quando há discretas alterações na obra original, de
modo a preservar o máximo possível sua originalidade. Essas alterações ocorrem
em aspectos teóricos da escrita musical, tais como: transposição de tessitura
(mudanças de oitavas); exclusão de algumas notas, desde que não sejam da me-
lodia principal; pequenas mudanças de valores de notas; acréscimo de algumas
notas etc.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 401


Como exemplo, cito meu próprio caso, pois possuo um problema na mus-
culatura e mãos muito pequenas, o que dificulta muito a execução do repertório
erudito de piano. No Intermezzo op. 118 nº 2 – uma obra musicalmente muito
difícil do compositor alemão Johannes Brahms (1833-1897) – há vários acordes
para a mão direita em que é necessária uma grande abertura de mão. Como mi-
nha mão é pequena, a solução em diversas partes dessa, e de outras obras, foi
transpor uma das notas do acorde em questão (a nota que eu não alcançava) para
a oitava acima ou abaixo do que estava escrita, ou então passar essa nota para o
acorde feito pela outra mão; assim, conseguia tocar o acorde sem excluir ne-
nhuma nota e sem que as pessoas percebessem tal mudança (Fig. 1 e 2).

Figura 1. Brahms. Intermezzo op 118 nº 2 - compasso


82 (original). A seta indica a nota (lá) que será trans-
posta uma oitava acima.

Figura 2. Brahms. Intermezzo op. 118 nº 2 - com-


passo 82 (modificado). A nota lá transposta uma oi-
tava acima.

402 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Para citar outro exemplo, relato algumas alterações em conjunto com um
colega, também professor de Música, idealizadas para um pequeno grupo ins-
trumental formado somente por pessoas com deficiências. A formação instru-
mental do grupo era: flautas doces, xilofones, metalofones e outros instrumentos
de percussão. O grupo era composto de pessoas com problemas psiquiátricos,
deficiência mental, deficiência física ou deficiência visual. A música executada
era um pequeno “jazz”, de um compositor norte-americano atual. A melodia
principal dessa peça era feita pela flauta doce e xilofone sopranino, e iniciava
com uma pausa de colcheia, vindo logo em seguida uma nota “si” em colcheia.
Como os alunos possuíam dificuldade rítmica, mudamos sutilmente a melodia:
substituímos a pausa inicial por outra nota “si” em colcheia, e assim eles toca-
vam duas notas “si” ao invés de uma pausa e uma nota. Isso fazia com que eles
não se perdessem na contagem do tempo, uma vez que é muito mais fácil tocar
uma nota na cabeça do tempo do que no contratempo. Essa pequena alteração
viabilizou o fazer musical para um grupo de pessoas comprometidas física e
cognitivamente sem mudar seu sentido original.
- Arranjos musicais: quando as alterações feitas na música são mais en-
fáticas, de modo a se diferenciar muito do original, tais como: mudança da for-
mação instrumental original; alterações harmônicas; simplificação da partitura
por exclusão de vozes inteiras ou de trechos muito difíceis etc.
Um exemplo desse tipo de adaptação é o caso de uma gaitista do Rio de
Janeiro que possui Distrofia Muscular tipo Becker e que, devido à deficiência,
mexe somente o pescoço e um pouco o dedo indicador da mão direita. O repertó-
rio para gaita não é muito vasto, e, por esse motivo, a gaitista constantemente
utiliza arranjos que ela mesma elabora. Um desses arranjos é o da Sonata para
piano op. 27 nº 2 do compositor alemão Ludwig Van Beethoven (1770-1827). O
tema (melodia) mais famoso dessa sonata, mais conhecida como “Ao Luar”,
escrita originalmente para piano, foi transposto para gaita e teclado (ou piano)
pela citada gaitista (Fig. 3 e 4).
Outro exemplo a ser citado é de um arranjo para uma turma composta por
pessoas com e sem deficiência. A obra original é uma opereta escrita para crian-
ças por uma compositora e professora de música de São Paulo. Essa opereta,
apesar de curta e simples, precisou ser simplificada ainda mais devido ao com-
prometimento dos alunos. A formação original da obra é: coro infantil; flauta
doce; clarinete e flauta transversal, com a participação especial de um barítono.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 403


Figura 3. Beethoven. Sonata op. 27 nº 2/ 1º mov. Compassos de 1–8. Ori-
ginal: Dó sustenido menor para piano solo.

Figura 4. Beethoven. Sonata op. 27 nº2/ 1º mov. Compassos 1-9. Ar-


ranjo proporcionado pela gaitista. A tonalidade foi transposta para lá
menor e os arpejos são executados por um tecladista ou pianista, en-
quanto a melodia principal é executa pela gaita. A gaitista em questão,
fez esse arranjo somente do 1º movimento da Sonata, alterando não
somente a instrumentação original, como também, simplificando a or-
ganização hamônica e melodia principal para facilitar sua execução na
gaita.

404 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


A música foi adaptada para: o canto, que podia ser uma voz feminina ou
masculina; flauta transversal; metalofone sopranino; xilofone soprano e baixo;
piano e percussão, sendo que a parte da voz poderia ser ou não executada, e a
flauta transversal poderia ser substituída por flauta doce ou violino.
Para facilitar a execução criamos uma espécie de baixo hostinato que era
feito pelos xilofones, enquanto o piano tocava a harmonia, e a flauta transversal
tocava a melodia mais difícil. Em alguns momentos, o xilofone sopranino fazia
pequenas intervenções melódicas que contraponteavam com a melodia principal
e, em vez de haver uma pessoa diferente cantando para cada personagem, a ope-
reta era cantada por somente uma pessoa que “narrava” a música. Em alguns
momentos, excluímos árias inteiras para facilitar, ou mesmo adaptamos a letra
para melhor compreensão dos alunos.
É importante mencionar que a adaptação da obra foi elaborada a partir dos
alunos que compunham o grupo, e, a partir da demanda de cada aluno, foi elabo-
rado o arranjo da obra, tendo como ponto de partida as dificuldades levantadas.
Os alunos sem deficiência faziam parte do canto ou uma percussão mais elabo-
rada.
Fazia parte do grupo um aluno com autismo com uma capacidade musical
extraordinária. Para esse aluno a melodia mais difícil no xilofone sopranino foi
de sua responsabilidade; os alunos com deficiência mental mais grave faziam o
baixo hostinato no xilofone ou marcavam a pulsação com instrumentos de per-
cussão. O piano foi executado por mim, e a flauta transversal, por outro profes-
sor. Portanto, este arranjo foi exclusivo desta turma; em outra turma, possivel-
mente serão outras as adaptações.

Adaptação técnico-musical

Nos dois tipos de adaptações citadas, percebemos que as alterações se re-


ferem ao texto musical, ou seja, à escrita teórica, à organização das informações
na partitura (notas, figuras, harmonia, melodia, tonalidade etc.). Já na Adaptação
técnico-musical, as alterações não se relacionam ao discurso musical em si, mas
sim à maneira de executá-lo, aos aspectos técnicos, mecânicos de cada instru-
mento. Dentro desse tipo de adaptação há dois subgrupos: Adaptações Técnicas
e Movimentos Compensatórios.
- Adaptações técnicas: são mudanças sutis na maneira de tocar a música,
tais como alterações de dedilhados, tocar com uma mão o que está escrito para
ser tocado pela outra (sem alterar em nada a escrita da obra original) etc.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 405


Para exemplificar posso citar:
- Na obra “Cenas Infantis” de Robert Shumann (1810-1856), mais exata-
mente na peça de número 8*, há quatro vozes distintas, sendo que uma delas é a
melodia principal, e as outras três vozes fazem parte do acompanhamento. As
vozes do acompanhamento são compostas de acordes que se “cruzam”, isto é,
algumas notas dos acordes da mão esquerda ultrapassam para a clave de sol (a-
cima do dó central) e vice-versa.
No meu caso como executante da obra seria impossível tocar do jeito que
estava escrito, pois não alcançaria os acordes (tamanho das minhas mãos). En-
tão, ao estudar essa bela obra, fiz uma pequena adaptação para conseguir tocá-la:
as notas que pertenciam à mão esquerda, mas que eu não alcançava, fazia com a
mão direita, e vice-versa. Isto é, eu “trocava” de mãos. Eu tocava parte do que
estava escrito para uma mão com a outra, mas sem alterar absolutamente ne-
nhuma nota. A alteração se referia somente à posição da mão no teclado e no uso
do dedilhado (Fig. 5 e 6).

Figura 5. Schumann. Cenas Infantis, op 15 nº 8 - "Junto à lareira" - compassos 1-8


(original). As setas indicam a alteração que será feita da distribuição das vozes.

*
As Cenas Infantis é uma suíte do período romântico composta por 13 pequenas peças.

406 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Figura 6. Schumann. Cenas Infantis op. 15nº8. compassos de 1-8 com a “troca”
das vozes. Cabe ressaltar que nenhuma nota fora alterada.

Como segundo exemplo, posso citar o caso de um ex-aluno de piano. O


estudante, que na época tinha 28 anos, estudou sob minha responsabilidade por
um ano, possuía sequelas de poliomielite: sua mão direita era hipotônica e a
coordenação motora fina era praticamente inexistente. Para tocar piano ele utili-
zava, com muita dificuldade, somente três dedos da mão direita. Por esse moti-
vo, sempre alterávamos o dedilhado, pois necessitava executar com três dedos o
que estava escrito originalmente para cinco. A peça “Minueto” de John Sebasti-
an Bach (1685-1750) demonstra tal adaptação (Fig. 7).
- Movimentos Compensatórios: quando são usados movimentos ou par-
tes do corpo não convencionais para viabilizar a utilização do instrumento musi-
cal por parte da pessoa com deficiência.
Para demonstrar esse tipo de adaptação, vamos voltar ao caso aluno que
sofreu poliomielite na infância. Em princípio, a postura “ideal” da mão sobre o
piano é em forma de abóboda, ou seja, com todos os dedos levemente fletidos
sobre o teclado. Por ser portador de uma mão extremamente hipotônica, o rapaz
não conseguia manter seus dedos fletidos, nem possuía força suficiente para
percutir as teclas. Dessa forma, para conseguir tocar o piano, além das “Altera-
ções musicais”, que colaboravam para execução das peças, ele apoiava o polegar
na madeira que se encontra abaixo das teclas, e utilizava-se do movimento do
pulso para frente e para trás, como se fosse uma alavanca, fazendo com que o
impacto do dedo na tecla a fizesse tocar (Fig. 8 e 9). Assim, ele pôde utilizar sua
mão direita, mesmo bastante comprometida, para tocar o instrumento escolhido.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 407


Figura 7. Bach. Minueto em sol menor. Compassos 1- 16. Os números em
cima das notas referem-se ao dedilhado da mão direita que o aluno em
questão fazia para conseguir executar a obra. Notem que só há dedos 1,2
e 3. Nenhuma nota fora alterada do original, somente o dedilhado.

Figura 8. Rapaz com sequelas de Poliomielite,


apoiando o polegar na madeira abaixo das teclas
do PIANO e puxando o braço para trás para
que o indicador se levante.

Figura 9. Braço sendo


impulsionado para frente, fazendo com que o
indicador toque a tecla desejada.

408 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


Considerações finais
As adaptações são essenciais para o fazer de pessoas com deficiências. Em
alguns casos, as adaptações somente facilitam a execução de tarefas. Já em outros,
elas viabilizam totalmente uma ação que, de outra forma, seria impossível.
Como pudemos colocar, há inúmeras possibilidades adaptativas no que
tange ao “fazer musical”, mas não podemos esquecer que cada caso é único e
exclusivo, o que tornará necessário um tipo de adaptação ou um conjunto de
adaptações diferentes para cada pessoa. Cabe, portanto, ao professor de música
ou musicoterapeuta, juntamente com uma equipe interdisciplinar, decidir o que é
melhor para seu aluno ou paciente, de acordo com suas necessidades e com os
objetivos a serem alcançados.
Não podemos esquecer que educação musical e musicoterapia são reali-
dades diferentes, mas que, por mais diferentes que sejam em seus procedimentos
e propósitos, possuem algo essencial em comum: a música. Por esta razão, em
muitos momentos esses caminhos podem e devem se cruzar em prol do indiví-
duo com quem se está trabalhando, pois a música é uma só, sempre.
É muito importante que profissionais da área pedagógica musical e musi-
coterapêutica se relacionem, discutam e se empenhem juntos, cada vez mais, em
busca de novos caminhos para que todas as pessoas, independentemente de suas
características físicas, cognitivas e psíquicas, possam de fato se beneficiar dos
privilégios desta arte que surgiu praticamente com o Homem. Como menciona
Claus Bang1, é somente uma questão de “adaptar a música ao aluno, e não o
aluno à música”.

Referências
1. Bang C. Um mundo de som e música. In: Ruud E [org.]. Música e saúde. [Tradução
de Vera Bloch Wrobel, Glória Paschoal de Camargo, Miriam Goldfeder]. São Paulo:
Summus; 1991.
2. Bruscia KE. Definindo a musicoterapia. 2. ed. [Tradução de Mariza Velloso Fernan-
dez Conde]. Rio de Janeiro: Enelivros; 2000. p. 309.
3. Ducourneau G. Introdução à musicoterapia: A comunicação musical: Seu papel e
métodos em terapia e reeducação. São Paulo: Manole; 1984. p. 104.
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La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen; 1998.
5. Gainza VH. Sobre la creatividad y el vínculo con la música. In: Benenzon RO, et al.

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 409


La nueva musicoterapia. Buenos Aires: Lumen; 1998.

Partituras
Bach Anna Magdalena. Notenbuchlein. Fruhjahr: G. Henle Verlag; 1983.
Beethoven Ludwig Van. Klavviersonaten. Band I. Germany: G. Henle Verlag; s/d.
Brahms Johannes. Klavierstucken. Köln: G. Henle Verlag; 1976.
Schumann Robert. Kinderszenen op 15. Munchen: G. Henle Verlag; 1977.

410 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


18.
EXPLORANDO AS POSSIBILIDADES
DOS AMBIENTES DE REALIDADE
VIRTUAL E AUMENTADA NO
PROCESSO TERAPÊUTICO*

Ana Grasiella Dionísio Corrêa


Roseli de Deus Lopes

A atividade humana é o elemento centralizador e orientador na constru-


ção do processo terapêutico. A atividade humana é constituída por um conjunto
de ações que apresentam qualidades, demandam capacidades e estabelecem me-
canismos internos para sua realização7. Terapia pode ser compreendida como
produção de vida, o que implica em uma multiplicidade de intervenções30.
Esta multiplicidade terapêutica demanda uma variedade de atividades
que requerem recursos e técnicas diversificadas. Neste sentido, os computadores
podem auxiliar e apoiar diversas tarefas terapêuticas, visto que proporcionam

*
Agradecimentos ao Núcleo de Trabalho, Aprendizado e Entretenimento do Laboratório de Sistemas Integrá-
veis (NATE-LSI) da Escola Politécnica da USP pelo suporte na concepção e implementação deste trabalho, e à
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro.
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 411
conhecimentos e experiências que vão ao encontro dos interesses e necessidades
de cada paciente, proporcionando novas possibilidades e finalidades na interven-
ção30. Os computadores oferecem inúmeros benefícios aos indivíduos desabilita-
dos, como, por exemplo, facilidade de comunicação, crescimento pessoal, auto-
nomia, interação social e inclusão cultural. Com a utilização dos computadores,
é possível criar aplicações para uso terapêutico adaptado ao paciente. O trata-
mento individualizado pode ser executado várias vezes sem colocar em risco a
segurança do paciente. Diversas variáveis podem ser modificadas visando au-
mentar ou diminuir a complexidade das tarefas29. Além disso, o terapeuta pode
monitorar o progresso do tratamento, quantificar as avaliações e adaptar seu
plano de tratamento.
A evolução tecnológica vem favorecendo para que sistemas computacio-
nais respondam a toques, gestos e voz. O ambiente externo ao computador pode
ser capturado pelo hardware por meio de softwares específicos auxiliados por
dispositivos como câmeras e sensores. A realidade virtual e aumentada são e-
xemplos de tecnologias que possibilitam criar ambientes virtuais diferenciados
para usuários incapacitados de utilizar periféricos convencionais como teclado e
mouse12. Por meio da realidade aumentada, por exemplo, é possível adicionar
elementos virtuais ao mundo real que podem ser manipulados de forma natural,
com as mãos, sem uso de dispositivos eletrônicos. Esta característica da realida-
de aumentada pode proporcionar o acesso de indivíduos com deficiência aos
ambientes virtuais facilitando os procedimentos educacionais e terapêuticos com
uso dos computadores.
Na literatura, são encontrados trabalhos que fazem uso dos ambientes de
realidade virtual e aumentada no processo terapêutico8,20. No entanto, nenhum
trabalho relacionando tais tecnologias em Musicoterapia foi apresentado até a
data da publicação deste livro. Por este motivo, para que um experimento sobre
o uso de um ambiente de realidade aumentada musical (desenvolvido para fins
musicoterapêuticos) possa ser apresentado, faz-se necessário discutir as princi-
pais diferenças entre ambientes virtuais e ambientes misturados. Em seguida é
apresentada uma discussão em torno das possibilidades de uso dos ambientes de
realidade virtual e aumentada nas diversas modalidades terapêuticas, ilustradas
por meio de exemplos e experiências práticas e apontando novas tendências
nesta área.
Na sequência, é apresentado um estudo de caso com o ambiente de reali-
dade aumentada musical GenVirtual. Este ambiente possibilita adicionar ao
mundo real elementos virtuais capazes de simular sons de diversos instrumentos

412 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


musicais de sopro, corda e percussão. Os sons são percutidos tocando os elemen-
tos virtuais com as mãos, sem uso de aparatos convencionais de interação (mou-
se, teclado, joystick) e adaptadores (para aqueles com deficiência física). Além
de recursos para composição musical, o GenVirtual oferece um jogo de siga-
sons-e-cores, que visa estimular a atenção, concentração e memorização de cores e
sons. Além de aspectos cognitivos, o GenVirtual pode proporcionar o aprendizado
motor por meio do planejamento da ação motora feito previamente pelo terapeuta.
O GenVirtual tem sido avaliado (por especialistas em reabilitação) e experimenta-
do (com indivíduos com deficiências motoras e cognitivas) no Setor de Musicote-
rapia da AACD. Os benefícios que esta ferramenta traz às crianças com paralisia
cerebral já foram devidamente documentados e são aqui apresentados.
Cabe ressaltar que a introdução tecnológica não implica em novas abor-
dagens teóricas das terapias médicas8. O objetivo é potencializar os tratamentos
já existentes e expandir a utilidade das técnicas já utilizadas. Dessa forma, pre-
serva-se a necessidade de considerar a relação terapêutica e o uso pertinente das
técnicas já estabelecidas. Assim, o uso da realidade virtual e aumentada, bem
como de outras estratégias disponíveis para o campo das terapias, não deve ser
discriminado, e sim coerente com as necessidades dos pacientes. Por este moti-
vo, faz-se notar a importância de estudos nesta área que apontem as indicações
de uso desta ferramenta.

Misturando ambientes reais com mundos virtuais:


perspectivas e implicações terapêuticas

Ambientes de realidade virtual possibilitam a imersão em um mundo tri-


dimensional totalmente artificial19. Desta forma, um usuário pode explorar e
manipular mundos virtuais imaginários como se estivesse fazendo parte dele. As
imagens geradas pelo computador parecem ser de tamanho natural, e o cenário
se modifica a partir da interação do usuário com o mundo virtual. Se o ambiente
incorpora sons tridimensionais, o usuário é convencido de que a orientação dos
sons muda naturalmente de acordo com sua orientação dentro do ambiente. A
imersão em um mundo virtual pode ser alcançada por meio de tecnologia especí-
fica4: capacete de visualização (head-mouted displays - HMD), dispositivos de
rastreamento óptico, luvas de force-feedback e joysticks que permitem ao usuário
navegar dentro de um mundo virtual e interagir com objetos virtuais.
Desde o surgimento da realidade virtual, sempre houve uma separação en-
tre o mundo real e o mundo virtual. No entanto, o avanço tecnológico tem possi-
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 413
bilitado misturar ambientes reais com mundos virtuais (em tempo real), origi-
nando um novo conceito denominado realidade misturada18. Ao contrário da
realidade virtual, que transporta o usuário para dentro do mundo virtual, a reali-
dade misturada propicia a incorporação de elementos virtuais ao ambiente real (o
usuário mantém o sentido de presença no mundo real) ou transporta elementos
reais para o ambiente virtual complementando os ambientes. Quando há predomi-
nância do real sobre o virtual, o ambiente é caracterizado como realidade aumen-
tada, pois o ambiente real é ampliado (“aumentado”) com adição de objetos tridi-
mensionais (Fig. 1). Quando há predominância do virtual sobre o real, o ambiente
é caracterizado como virtualidade aumentada, pois objetos físicos reais são captu-
rados em tempo real e inseridos em ambientes simulados pelo computador.

Figura 1. Ambiente de realidade misturada adaptada de Milgram e Kishino21.

A realidade aumentada apresenta uma grande vantagem sobre a virtuali-


dade aumentada: possibilita transportar objetos virtuais para o mundo real pro-

414 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


porcionando novas possibilidades de interação a indivíduos com graves proble-
mas de motricidade fina (habilidade) e motricidade global (agilidade). Neste
caso, o manuseio de objetos virtuais ocorre de forma natural, arrastando ou to-
cando um objeto com as mãos ou com os pés, sem necessariamente usar equi-
pamentos eletrônicos de interação ou adaptadores. No caso da virtualidade au-
mentada ou mesmo da realidade virtual, é necessário um treinamento para uso de
dispositivos como mouse, teclado, joystick ou outros dispositivos tecnológicos.
Essa necessidade culmina muitas vezes no desinteresse, receio ou mesmo na
incapacidade do indivíduo para interagir no ambiente virtual.
A realidade aumentada tende a utilizar dispositivos menos perceptíveis ao
usuário, visando proporcionar maior naturalidade de suas ações por meio de
interfaces tangíveis2. Uma interface tangível possibilita a manipulação de obje-
tos virtuais com as mãos ou por meio de dispositivos físicos semelhantes ao
objeto virtual16. Dessa forma, as interfaces tangíveis unem as vantagens da ma-
nipulação física às formas inovadoras de interação providas pela computação,
enriquecendo a experiência de aprendizagem de indivíduos com deficiência.
Muitas vezes, para atender as necessidades específicas de indivíduos com
deficiência, é comum serem desenvolvidas adaptações para uso de sistemas
computacionais. Porém, em função da especificidade do problema, alguns indi-
víduos podem necessitar recursos específicos, dificultando o processo terapêuti-
co, e promovendo, inclusive, um custo mais elevado para a concepção e utiliza-
ção. Por meio de interfaces tangíveis, por exemplo, é possível construir ambien-
tes de realidade aumentada economicamente viáveis, se comparados a outros
ambientes que utilizam dispositivos eletrônicos dispendiosos como capacetes de
visualização e luvas de force-feedback. Com uso de um computador (para pro-
cessar o software), uma webcam (para capturar o ambiente real) e um monitor de
vídeo (para visualizar o ambiente misturado), é possível criar um ambiente sim-
ples de realidade aumentada, mas com uma variedade de aplicações potenciais
para trabalho com indivíduos com diferentes deficiências e incapacidades12.
A presença de um registro (marcador de papel) no campo de visão de uma
webcam faz com que o objeto virtual, associado a esse registro, seja sobreposto a
ele. A manipulação do registro no ambiente real movimenta também o objeto
virtual: se o indivíduo arrastar o registro com as mãos, o objeto virtual associado
a ele se movimenta junto. Além de objetos virtuais, sons podem ser iniciados
quando o marcador entra no campo de visão da webcam. Alguns marcadores
podem ser criados para interferir em objetos associados a outros marcadores,
possibilitando realizar alterações geométricas, troca de objetos, captura ou dupli-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 415


cação, deleção etc. Assim, os objetos virtuais podem ser alterados ou reposicio-
nados de acordo com as necessidades, interesses e habilidades de cada indivíduo,
gerando experiências diferenciadas com a construção de diferentes cenários.
Esta característica da realidade aumentada facilita o processo de comuni-
cação de crianças com dificuldades de aprendizagem ou de pessoas com defici-
ências motoras nos mais diferentes níveis de dificuldades, possibilitando o de-
senvolvimento intelectual e motor do indivíduo. Para o deficiente físico com
grau de capacidade física moderado ou grave, fica restrito o uso de instrumentos
musicais convencionais. A interação com instrumentos musicais virtuais pode
facilitar a interação musicoterapêutica, principalmente quando a terapia acontece
em um centro especializado em reabilitação motora.
Segundo Piaget25, o desenvolvimento cognitivo pode ser explorado por
meio de símbolos e abstrações da realidade, favorecendo melhor compreensão
da situação-problema e de seus resultados. Em ambientes de realidade aumenta-
da, crianças podem explorar estas habilidades através da composição, alteração
ou criação de novas situações conduzidas através de suas ações autônomas im-
pulsionadas pelo desejo e imaginação.
A motricidade em ambientes de realidade aumentada pode ser trabalhada
através da manipulação de objetos tangíveis. Esta atividade pode contribuir de
maneira expressiva para formação e estruturação do controle sensório-motor,
caracterizando-se como uma educação que, através do movimento, faz com que
o indivíduo adquira funções cada vez mais elaboradas e complexas16. Através
desta dinâmica se intenta que o indivíduo perceba sua potencialidade e identifi-
que as possibilidades de interação em ambientes de realidade aumentada, visan-
do superar questões prejudiciais no desenvolvimento psicomotor e na expressão
de sua musicalidade.

Formas de uso dos ambientes de realidade virtual e


aumentada no processo terapêutico

A realidade virtual e aumentada vem sendo utilizada para apoiar terapias


médicas em uma variedade de propostas. O alto grau de realismo dos cenários
simulados pelo computador e a possibilidade de misturar ambientes reais com
virtuais oferecem novas possibilidades de tratamento aos indivíduos com dife-
rentes deficiências e incapacidades. Dentre as terapias mais comuns, realizadas
com uso da realidade virtual, considerando o contexto das comportamentais,
podem ser citadas as de exposição in vivo, que consiste na exposição do indiví-
416 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
duo à situação real de sua fobia, e a imaginativa, em que o indivíduo imagina o
alvo de seu medo no consultório do terapeuta8. Nesses casos, a condição do me-
do pode ser apresentada ao paciente de forma virtual, e não real como no trata-
mento convencional.
Tanto nas exposições in vivo como imaginária, é necessário construir com
o paciente uma lista com a hierarquia das situações e dos estímulos temidos. A
partir disso, podem-se criar cenários com situações e estímulos correspondentes
à realidade. Os estímulos temidos são vivenciados em ambientes virtuais que
permitem interação, possibilitando ao paciente que aja em tais cenários da mes-
ma maneira que agiria em um ambiente real8. O sentimento de presença que os
ambientes virtuais permitem experimentar e o envolvimento sensório-motor
(promovido por diferentes estímulos sensoriais) proporcionam maior sensação
de realidade do que o sujeito poderia sentir na construção de cenários por sua
própria imaginação8.
Na literatura são encontrados trabalhos constatando a eficácia dos ambien-
tes virtuais no tratamento de diversas fobias20. Hoffman et al.14 investigaram a
aplicabilidade da realidade virtual no tratamento de fobias de aranha. Juan et
al.15 testaram um ambiente de realidade aumentada em indivíduos com fobia de
baratas e fobia de aranhas. Os resultados das pesquisas mostraram que indiví-
duos que receberam o tratamento por meio de ambientes virtuais obtiveram me-
lhora significativa.
As principais vantagens do tratamento virtual de fobias são a facilidade e
variedade23. A variedade se explica pela enorme gama de fobias que podem ser
simuladas por meio da realidade virtual e aumentada. A facilidade aplica-se a
alguns transtornos fóbicos que são difíceis de serem apresentados de forma real,
como, por exemplo, medo de voar. Este ambiente pode ser facilmente simulado
por meio da realidade virtual.
Diversos trabalhos sobre o uso dos ambientes virtuais para reabilitação
cognitiva foram encontrados na literatura incluindo aplicações voltadas ao tra-
tamento de desordens de alimentação28, autismo24, lesões cerebrais traumáticas3,
paralisia cerebral26, e ainda na prevenção de acidentes com pacientes idosos1. Os
efeitos gerados pelos ambientes virtuais estimulam as mudanças plásticas do
cérebro, essenciais para o processo de reabilitação. Como exemplo, cita-se o
ARVIC: Ambiente Virtual Integrado para Reabilitação Cognitiva9.
O ARVIC é um ambiente de realidade virtual para treinar atenção, memó-
ria, planejamento e cálculo por meio do reconhecimento de símbolos monetários
(notas e moedas) associados aos preços dos produtos. O ambiente é constituído

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 417


de uma cidade contendo estacionamentos, lojas e um supermercado virtual de
forma a espelhar situações vivenciadas pelos usuários em seu dia-a-dia. O
ARVIC possibilita comprar mercadorias com uma quantia de dinheiro e uma
lista de produtos previamente estabelecidos. Os produtos das lojas virtuais apa-
recem situados em prateleiras com indicação de preço na moeda corrente do
Brasil. O indivíduo navega pelo mundo virtual utilizando um mouse para intera-
ção. Ao clicar com o mouse no produto escolhido, uma nova janela se abre mos-
trando ao usuário uma variedade de notas e moedas. O indivíduo deve escolher a
quantidade de dinheiro exata para realizar suas compras, considerando a quantia
em dinheiro de que dispõe e a lista de itens fornecidos para compra. O ARVIC
foi testado com vários indivíduos com diferentes patologias, dentre eles esquizo-
frênicos9 e pessoas com lesão cerebral6. Os resultados clínicos comprovaram a
eficácia da ferramenta em reabilitação das funções cognitivas (atenção, memó-
ria, planejamento e cálculo), constatando maior satisfação dos pacientes na utili-
zação de um ambiente virtual de aprendizagem.
Outro trabalho relevante para reabilitação cognitiva é o ARVe (Augmen-
ted Reality Applied to Vegetal Field)27. O ARVe é um ambiente de realidade
aumentada (aplicado à área da Biologia) para reabilitação cognitiva de crianças
com necessidades especiais. O ambiente virtual é constituído de um livro con-
tendo diversos registros (símbolos) grudados em suas páginas. Cada símbolo
representa um componente de um vegetal (folhas, flores, frutos e sementes). A
criança utiliza uma pazinha com um registro na ponta que possibilita selecionar,
mover e arrastar os objetos virtuais de lugar. O objetivo é organizar os compo-
nentes dos vegetais, de acordo com suas funções. Por exemplo, a criança deverá
agrupar todos os frutos em uma página do livro, todas as sementes em outra
página, e assim por diante.
Os jogos virtuais também apresentam um espaço de desenvolvimento
cognitivo explorando funções cognitivas básicas, tais como atenção, concentra-
ção, memória, planejamento e cálculo, habilidade espacial, dentre outras ativida-
des que guardam relação àquelas realizadas no dia-a-dia10. A partir dos desafios
por eles criados, o cérebro é estimulado a criar células nervosas que ajudam a
reestruturar áreas lesadas. Além disso, os jogos podem ser indicados para dife-
rentes gêneros, etnias e faixas etárias, e podem facilmente ser encontrados e
manuseados em diferentes contextos de atendimento escolar, hospitalar, ambula-
torial, domiciliar e outros.
Jogos em realidade aumentada, por exemplo, permitem que o usuário te-
nha uma visão enriquecida e ampliada do ambiente, estimulando no usuário a

418 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


capacidade de percepção e raciocínio espacial. Zorzal31 apresenta diversos mo-
delos de quebra-cabeças criados com realidade aumentada. Um exemplo é o
Jogo das Palavras. Neste jogo, os registros são cartões contendo várias letras. O
usuário deve agrupar as letras de forma a construir palavras que estão previa-
mente cadastradas no jogo. Quando o usuário forma uma sequência de letras
(palavra cadastrada), pode-se visualizar o objeto virtual referente àquela palavra.
Essas características fazem desse jogo uma fonte de aplicações práticas como
alfabetização, aprendizado de idiomas, além de possibilitar o desenvolvimento
de habilidades cognitivas.

Reabilitação motora facilitada pelos jogos em


realidade virtual

Grandes centros de reabilitação no mundo começaram a implantar suas


unidades de reabilitação virtual, cujo foco é o uso dos jogos computadorizados
para reabilitação intensiva5,11,13. Pacientes que sofreram um acidente vascular
cerebral ou que passaram por procedimentos cirúrgicos estão sendo beneficiados
com o uso dos jogos como meio alternativo para reabilitação motora. Geralmen-
te, este perfil de paciente precisa de uma fisioterapia intensiva, o que muitas
vezes pode tornar a terapia repetitiva e dolorosa para o paciente. Com a dissemi-
nação dos jogos em terapias, o cenário é outro5. Na brincadeira, os pacientes
esquecem que estão em uma intervenção terapêutica. Isso os ajuda a se livrar do
tédio causado pelos movimentos repetitivos que envolvem o processo de reabi-
litação motora.
Tecnologias de realidade virtual têm impulsionado a concepção de diver-
sos jogos computadorizados com novas formas de entretenimento. É o caso do
Wii, um videogame da Nintendo que faz uso de um controlador remoto “wiimo-
te” à base de sensores que capturam os movimentos e gestos dos jogadores du-
rante o jogo. Os jogadores não necessitam mais permanecer sentados em frente
aos computadores ou consoles de videogame limitado por um joystick. Estes
jogos possibilitam que jogadores se desloquem e interajam de diferentes formas
no ambiente real, por meio de diferentes dispositivos e tecnologias de comunica-
ção sem fio5.
Essa característica dos jogos Wii tem se mostrado eficiente no processo de
reabilitação motora, por se tratar de um mecanismo que requer movimentos sen-
síveis e precisos, semelhantes às atividades de vida diária. Esses movimentos são
feitos por meio de jogos que simulam partidas de beisebol, boliche, boxe, tênis,
Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 419
golf, dança etc. O esforço para executar bem as jogadas pode provocar impactos
positivos no organismo, como o fortalecimento da musculatura, facilidade para
recuperação dos movimentos, estímulo da atividade cerebral e aumento da capa-
cidade de concentração e equilíbrio5.

Um estudo de caso com um ambiente de realidade


aumentada musical em Musicoterapia

DESCRIÇÃO DO AMBIENTE VIRTUAL


O GenVirtual é um ambiente de realidade aumentada musical que possibi-
lita desenvolver atividades de criação, improvisação e reprodução musical, tais
como composição e reprodução de melodias, escuta sonora e musical e jogos de
memória musical.
O GenVirtual possibilita adicionar ao mundo real elementos virtuais tri-
dimensionais (cubos coloridos) capazes de simular sons de diversos instrumen-
tos musicais de sopro, corda e percussão. A interação com o GenVirtual ocorre
por meio de cartões contendo símbolos musicais. Os cartões substituem o tecla-
do para composição musical e podem ser impressos em papel comum, em diver-
sas cores e tamanhos, o que viabiliza sua aquisição, devido ao baixo custo. A
Fig. 2 mostra a interface do GenVirtual.

Figura 2. Interface do Ambiente de Realidade Aumentada Musical GenVirtual.

A identificação dos cartões sobre a mesa ocorre por meio do processa-


mento das imagens, capturadas por uma webcam, conectada ao computador,
posicionada estrategicamente na parte superior da mesa. Os símbolos dos cartões
420 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
são detectados e associados a um som. Para percutir um som, basta ocultar um
cartão com as mãos, sem necessariamente tocá-lo com os dedos. Ao detectar a
oclusão de um cartão, o sistema executa o som referente a esse cartão.
O timbre do piano é o som padrão associado aos cartões, mas há a possibi-
lidade de mudar o timbre das notas musicais emitidas pelos cartões. Para isso,
basta adicionar um novo cartão na mesa contendo o símbolo do instrumento
musical desejado. Dessa forma, os mesmos elementos virtuais emitem sons dife-
rentes, podendo assumir timbres de um instrumento de sopro (flauta, trombone,
trompete etc.) ou instrumentos de corda (viola, violino, violão etc). Outra possi-
bilidade é utilizar cartões com símbolos correspondentes aos instrumentos de
percussão, como tambores, pandeiros, triângulos, bem como símbolos que repre-
sentem sons de instrumentos eletrônicos.
O diferencial deste ambiente virtual é a flexibilidade dos cartões para inte-
ração. Diferentemente do teclado, composto de teclas fixas e de tamanhos imu-
táveis, neste sistema o terapeuta poderá imprimir os cartões em diferentes tama-
nhos e posicioná-los sobre a mesa de diversas formas, de acordo com as limita-
ções motoras de cada indivíduo. Os cartões podem ser organizados de diferentes
formas sobre a mesa, ou sobre o chão, onde ocorrerá a interação. É importante
ter a referência do movimento motor para que seja possível controlar a motrici-
dade do indivíduo, caso contrário, não ocorrerá o aprendizado motor22.

INDICAÇÕES PARA USO DO AMBIENTE VIRTUAL


Várias são as indicações para uso do GenVirtual: interação com a ferra-
menta com finalidade musicoterapêutica que poderá também ser utilizado no
próprio domicílio do paciente, reabilitação cognitiva por meio do estímulo e me-
morização visual (cores dos objetos virtuais) e sonora (sons dos objetos virtuais),
reabilitação motora por meio de uma sequência de movimentos motores necessá-
rios para percutir os sons, aprendizagem musical, dentre outros.
Especificamente em Musicoterapia, um indivíduo com uma mão extre-
mamente hipotônica, por exemplo, poderá ser beneficiado com o uso do GenVir-
tual. Normalmente, esses indivíduos não são capazes de manter seus dedos fleti-
dos sobre o teclado, ou não possuem força muscular suficiente para percutir as
teclas de um piano ou para dedilhar um violão17. Normalmente, nesses casos, o
paciente utiliza adaptações como ponteiras nas mãos para tocar o piano, fixado-
res de pandeiro para uso bimanual das mãos, bem como a ajuda de um musicote-
rapeuta para realizar intervenções de expressão da musicalidade, o “fazer musi-
cal”22. Por meio do GenVirtual, o executante poderá utilizar as mãos fechadas

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 421


em forma de punho para tocar uma nota musical, já que estes cartões podem ser
impressos em proporções maiores.
Não é necessário o uso de adaptações nas mãos para interação com o am-
biente virtual. Muitas vezes, quando um paciente apresenta alto nível de dificul-
dade motora, como, por exemplo, dificuldades em dissociar os dedos das mãos,
é comum o uso de adaptações como ponteiras nas mãos para percutir as teclas do
piano17. Neste caso, basta obstruir um cartão com as mãos, sem uso de tais adap-
tações.
O GenVirtual é um software livre e de baixo custo que pode ser utilizado
em clínicas ou em domicílio para que o indivíduo com deficiência possa dar
continuidade às atividades de exploração do universo sonoro e também a ativi-
dades pedagógicas. Muitos pacientes que se beneficiam em centros de reabilita-
ção são de famílias de baixa renda e, consequentemente, sem condições de ad-
quirir os instrumentos musicais para uso domiciliar. Porventura, a maioria das
famílias possui acesso aos computadores, uma vez que o custo desses equipa-
mentos vem se tornando cada vez mais acessível.

AVALIAÇÃO DO AMBIENTE VIRTUAL


Experimentos com o GenVirtual foram realizados no Setor de Musicote-
rapia da AACD. Foram utilizados cinco marcadores formados por símbolos e
cores respectivos a cada uma das notas musicais (Dó, Ré, Mi, Fá e Sol). A Fig. 3
mostra a musicoterapeuta interagindo com o GenVirtual.

Figura 3. Avaliação do GenVirtual por uma musicoterapeuta.

Foi utilizado um monitor para visualizar a animação dos cubos virtuais. A


webcam se encontra encaixada na parte superior ao monitor para captura das

422 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico


imagens dos marcadores sobre a mesa. Como pode ser observado, a interação
ocorreu de forma natural, obstruindo os marcadores com as mãos, sem uso de
adaptadores.
Após os testes, a musicoterapeuta observou que, além da possibilidade do
uso na área musicoterapêutica, o GenVirtual pode trazer benefícios aos portado-
res de deficiência, por se mostrar uma ferramenta facilitadora e motivadora no
processo de reabilitação. Como exemplo, podemos citar:
- Exercícios de extensão de braço: o objetivo é alcançar um objeto virtual.
Com a flexibilidade dos cartões, pode-se criar o desafio motor desejado para
cada paciente, de acordo com suas limitações motoras;
- Exercícios de flexão de punho: apoiar o antebraço na mesa e flexionar o
punho para cima e para baixo “tocando” os objetos virtuais para executar os sons;
- Treinamento motor repetitivo: sequência de movimentos motores facili-
tada pelo jogo da memória musical;
- Exercícios de percepção visual: identificar elementos musicais a partir
da representação desses elementos por objetos virtuais coloridos;
Para estimulação global podemos citar:
- Exercícios de percepção auditiva: identificar sons graves e agudos (escu-
ta sonora) e identificar melodias conhecidas (escuta musical);
- Reprodução e elaboração de peças musicais mais sofisticadas: experien-
ciar o “fazer musical” visando ampliar funções cognitivas como atenção, con-
centração e memória, entre outros.
O GenVirtual pode também ser utilizado para a iniciação musical. Possui
arquivos com melodias escritas no pentagrama em forma de cores. Cada nota
musical é representada por uma cor no pentagrama. Desta forma, é possível uti-
lizar os cubos virtuais coloridos como instrumentos para criação musical.

EXEMPLO DE USO COM UMA CRIANÇA


COM PARALISIA CEREBRAL
Esta experiência foi realizada no Setor de Musicoterapia da AACD / Ibi-
rapuera, São Paulo, SP, a fim de testar o impacto do GenVirtual no tratamento
de pacientes com paralisia cerebral. Os objetivos deste experimento foram:
a) Avaliar a motivação, satisfação e entusiasmo do paciente ao interagir
com o GenVirtual;
b) Observar o esforço motor motivado pelo uso dos objetos virtuais que
possibilitam expressão da musicalidade;
c) Observar a capacidade de concentração;

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 423


d) Observar a interação da família durante a intervenção.
O diagnóstico da criança é paralisia cerebral diparética espástica, confor-
me avaliação médica. Apresenta controle cervical bom, controle de tronco razo-
ável e sem apoio. Locomove-se com cadeira de rodas (iniciando treino para ficar
em pé). Membros superiores de coordenação e dissociação de dedos pobre. A-
presenta dificuldade da fala (disartria) devida a distúrbios motores dos órgãos de
fonação.
Durante o experimento com a criança, foi utilizado um monitor para a vi-
sualização das animações dos cubos virtuais e cinco marcadores representando
cinco notas musicais (Dó, Ré, Mi, Fá e Sol). A musicoterapeuta fez um planeja-
mento linear com os marcadores sobre a mesa. O objetivo do planejamento mo-
tor linear para este paciente era estimular o movimento ativo pendular para os
ombros: impulsionar o braço para frente e para trás de forma a tocar nos objetos
virtuais.
A Fig. 4 mostra o início dos experimentos. Inicialmente, a musicoterapeu-
ta mostrou ao paciente o modo de interação com o sistema, fazendo extensão de
ombro e braço para alcançar os cartões na mesa e, consequentemente, tocar os
objetos virtuais. A musicoterapeuta pediu para que o paciente intercalasse os
braços para, assim, exercitar o movimento ativo pendular para o ombro esquerdo
e direito. Em seguida, solicitou ao paciente que fizesse os movimentos por ela
apresentados.

Figura 4. Uso do GenVirtual por uma criança com paralisia cerebral.

O experimento durou 30 minutos. Durante os primeiros 10 minutos, a cri-


ança usou apenas o braço esquerdo para interação, pois esse braço era o menos
afetado e, consequentemente, o mais utilizado em suas atividades diárias. Após
424 Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico
10 minutos, o paciente sentiu o braço esquerdo cansado e começou a utilizar o
braço direito (Fig. 5), sendo essa a mão mais afetada e que é negligenciada na
maioria das outras atividades diárias realizadas pelo paciente.

Figura 5. O paciente utiliza a mão direita (mais negligenciada) para criar sons.

A tia do paciente é a cuidadora responsável e interagiu com o experimento


usando o software com a criança por alguns minutos durante a intervenção. Isso
foi importante para mostrar que o software pode estar a serviço dos pacientes em
domicílio, envolvendo a família, auxiliando em sua recuperação e, por conse-
quência, contribuindo para a melhoria de sua qualidade de vida.

Considerações finais: vantagens e desafios do uso de


ambientes virtuais no processo terapêutico

Nos últimos anos se verifica tendência ao desenvolvimento de softwares


para o tratamento de diversas desordens motoras e cognitivas em pessoas com
deficiência. Em especial, o uso da tecnologia de realidade virtual e aumentada
vem se destacando por apresentar interface atraente, gerando maior motivação e,
consequentemente, maior aceitação e participação no tratamento terapêutico.
Para que um ambiente virtual possa aderir às intervenções terapêuticas, é
importante o envolvimento de uma equipe multidisciplinar durante sua concep-
ção. Dessa forma, faz-se necessário analisar as características ou habilidades dos
pacientes, considerando suas limitações. Por esse motivo, esta pesquisa foi reali-

Musicoterapia e a reabilitação do paciente neurológico 425


zada por engenheiros juntamente com especialistas em terapia da AACD, consi-
derando principalmente os pacientes tratados no Setor de Musicoterapia, com o
objetivo de estimular as funções de musicalidade (por meio do potencial motor),
característica cognitiva, aspectos motivacional e características individuais.
Os resultados mostraram que o GenVirtual pode estar a serviço de inter-
venções terapêuticas por contemplar o aprendizado cognitivo, motor, psicológi-
co-social por meio da estimulação da musicalidade. Dado que se baseia em pla-
taforma computacional convencional, o protótipo já está em condições de ser
utilizado em ambiente domiciliar. Isso poderá promover o envolvimento da fa-
mília nas atividades complementares.
Cabe ressaltar que os ambientes virtuais aqui apresentados não substituem
as terapias médicas convencionais. Pretende-se com essas ferramentas potencia-
lizar os tratamentos existentes, com uso pertinente das técnicas já estabelecidas
no processo terapêutico e de reabilitação.

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