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CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES DA COMPANHIA DE JESUS

FACULDADE DE FILOSOFIA
CURSO DE METAFÍSICA
PROF. XAVIER HERRERO
*Apostila corrigida por Sérgio Mendes,sj em 2000. Os [colchetes ] indicam partes omitidas pelo professor durante a exposição no
curso de 2000 e as {chaves} indicam partes novas incluídas por ele.

METAFÍSICA
Notas Preliminares:
O termo Metafísica é atribuído ao lugar que coube aos escritos de Aristóteles na coletânea de Andronico
de Rodes, onde ficara “depois da Física.”- Meta (gr) = depois.
A metafísica estuda o SER (Onto). O nome correto então deveria ser ONTOLOGIA (estudo do Ser). Para
Aristóteles é a ciência primeira ou ciência dos princípios primeiros.
Apesar de ser rejeitada pela Filosofia Analítica, a Metafísica não deixou de ser comentada e criticada.
Isto porque ainda há algo não solucionado, um problema que sempre volta. A Filosofia sempre teve uma relação
com a totalidade, uma dimensão importantíssima sua. Com a modernidade a realidade foi setorizada. A
sociedade antiga era holística, onde o todo se relacionava com as partes. Na modernidade este todo se
desfacelou Da religião derivou a Ética, que derivou a Política, e depois a Economia, etc... Cada âmbito cria sua
racionalidade específica. Daí a separação Igreja/Estado por exemplo.
Com a filosofia também ocorreu a separação das áreas, e perdeu-se a relação com o todo. Se a filosofia
perder sua relação com a totalidade ocorre uma situação paradoxal onde a filosofia perde seu sentido (que é de
pensar na totalidade) onde não é ciência e nem filosofia. Pensar o Onto, o Ser, o todo é função da Metafísica e
criticar a metafísica é deixar de pensar no todo.
Tudo é = tudo é ser = ontologia
Se penso, penso sobre uma realidade determinada que “é”, portanto pode ser inteligível. O ser é
inteligível = pressuposto metafísico por excelência.
A razão é sempre “razão” de alguma realidade, e a realidade “é”. Tudo que é, é ser. Ser racional = ser
inteligível por uma racionalidade , uma razão. Nunca posso separar totalmente SER e RAZÃO.
Filosofia: tem a preocupação de pensar o todo e não pode perder esta dimensão. Não pode se reduzir a
pequenas áreas.
Pensar o todo significa pensar o SER.
O SER é o todo.
Criticar a metafísica significa deixar de pensar o todo.

SER (onto)  RAZÃO (lógos)

A cultura ocidental é uma cultura metafísica.


Pergunta radical da razão: “o que é ..?”

Fundamento

SER RAZÃO

essência predicação

1
PROGRAMA
I. Atualidade da Metafísica
1.1 Leitura metafísica da cultura ocidental como cultura da razão
1.2 A experiência metafísica.

II. O problema Ontológico.


2.1 A questão da essência.
2.2 A questão da predicação.
2.3 A questão do fundamento.

III. A formação da Metafísica clássica como ciência do Ser.


3.1 A fundamentação Platônica da Ontologia.
3.2 A fundamentação Aristotélica da Ontologia.
3.3 A fundamentação Tomista da ciência do Ser.

IV. A retomada da Metafísica na Filosofia Moderna.


4.1 Kant e o problema da Metafísica.
4.2 Hegel e a dialetização da Metafísica.
4.3 Heidegger e o esquecimento do Ser.

BIBLIOGRAFIA:

I. F. Alquié, Metaphysique, in Enc. Universalis, vol.10; 984-989.


II. G. Reale, História da Filosofia Antiga, vol.II, Loyola,1994.
III. H.C. Lima Vaz, Itinerário da Ontologia Clássica; in Ontologia e História, São Paulo: Duas
Cidades, pgs.67-91
IV. ________, Metafísica: História e Problema, in Síntese 66(1994) 395-406
V. ________, Ética e Razão Moderna, in Síntese 68(1995) 53-84
VI. ________, Tómas de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século, in Síntese
73(1996) 159-207
VII. ________, Transcendência: experiência histórica e interpretação filosófico-teológica, in Síntese
59(1992) 443-460
VIII. J. Ladrierè, Os desafios da racionalidade, Petrópolis: Ed. Vozes, 1979.
IX. J. Conil, Metafísica hoy, Acerca de una concepción transformada de Metafísica; Pensamiento,
152 (1982) pg. 455-464
X. ________, Orientaciones de la Metafísica actual, Diálogo Filosófico, 5 (1986) 70-204

XI ________, El crepúsculo de la metafisica, Barcelona: Antrhropos, 1988.

2
CAPÍTULO I
ATUALIDADE DA METAFÍSICA
A Metafísica deve ser vista como uma dimensão que está presente na reflexão sobre o homem, sobre a
natureza e a história1. A reflexão filosófica só alcançará o nível profundo se chegar a metafísica; i.é., a uma
reflexão sobre o ser. Estamos de alguma maneira na mesma situação de Platão e Aristóteles, a filosofia ou é
metafísica ou não é autenticamente filosofia.

1.1 Leitura Metafísica da Cultura Ocidental como cultura da razão.


Toda cultura tem (ou repousa) seus pressupostos implícitos que a razão explicita.
A nossa cultura esta baseada num pressuposto básico fundamental. Ela põe tudo (todas as obras culturais)
em referência a uma justificação racional. A civilização ocidental é uma civilização da razão, porque nela se
acentuou de modo irreversível a justificação racional da cultura ou das obras culturais. A justificação ou
explicação racional é a referência ao logos demonstrativo2 ou científico. E desse logos ou saber demonstrativo
que surgiu a filosofia como a sua expressão mais ambiciosa. A partir deste momento em que a cultura descobre a
razão e coloca tudo em relação a ela, surge a cultura ocidental. A única, entre todas, que fez da razão o seu
emblema, a coloca no centro.
A descoberta grega do logos demonstrativo e a legitimação social de seu uso foram a causa próxima do
aparecimento do saber filosófico e da vida a ele consagrada. Este saber filosófico é um dos elos que nos unem à
cultura grega clássica e que assegura a continuidade do que chamamos cultura ocidental. Portanto, é
inconcebível pensar a cultura ocidental sem a filosofia. Essa cultura que optou pela referência ao julgamento da
razão é uma civilização metafísica.
A cultura ocidental que deu origem à filosofia vê surgir diante de si um paradoxo 3. A filosofia é por uma
lado uma obra produzida por essa cultura, mas por outro lado ela surge com a intenção de compreender e
explicar o todo da realidade e por conseguinte a própria cultura da qual procede. Trata-se pois de uma intenção
de universalidade. A interrogação que surge com a compreensão, explicação e questionamento do todo dirige-se
a essência, ao ser das coisas. Nada escapa a sua interrogação. Essa universalidade determina o caráter paradoxal
da relação entre cultura e filosofia. Ora, essa cultura é uma cultura metafísica. E ela é metafísica porque parte de
um pressuposto metafísico, que só a metafísica explica ou que se situa em nível metafísico.
O pressuposto da metafísica ocidental foi formulado por Hegel na sua Filosofia do Direito como: “O real
é racional e o racional é real.” Esta formulação não pode ser aceita no sentido de esgotar esta racionalidade.
Uma formulação para este pressuposto é: “O real é radicalmente inteligível”, ou seja, não podemos separar o
ser4 do logos.5 “O ser é radicalmente inteligível”. A razão é incorporada na realidade. Caso contrário a própria
natureza não teria leis.
Quatro elementos teóricos e culturais (dos dois últimos séculos) que mostram a radicalização da ambição
da metafísica na cultura ocidental:
1.O evento Hegeliano (Fenomenologia do Espírito) do “Saber absoluto” como revelação da essência
metafísica da cultura ocidental.
O conceito Hegeliano de “Saber absoluto” revela (desvela e expõe) a essência metafísica da civilização
ocidental.6
Para Hegel só na nossa civilização a consciência do homem ocidental podia se transformar em ciência7.
O primeiro título da Fenomenologia do Espírito era “Ciência da experiência da consciência” 8.Ciência
não dos fatos da história ocidental (o que seria historiografia), mas da estrutura significativa destes fatos9. O
homem pode fazer um tipo de experiência da consciência que mostra a história do ocidente como história

1
Falar de Homem, Natureza e História é falar da totalidade.
2
Platão compara o logos ao sol – sua maior experiência foi o encontro com o logos demonstrativo.
3
Paradoxo: A filosofia é uma das obras da cultura, logo a cultura é maior do que a obra que produz, i.é., a filosofia. Na medida que a
cultura produz a filosofia, a filosofia surge com uma intenção de universalidade. Assim, a filosofia tenta pensar a cultura que a
produziu e acaba sendo mais ampla que a própria cultura.
4
O ser é diferente de Deus. O ser engloba o absoluto e o contigente.
5
No ser, Deus aparece identificado como fundamento supremo de todos os seres. – Não posso pensar o racional independentemente do
real. A razão não é uma entidade pairando no ar. A razão fora do real não existe, não há uma razão subsistente.
6
Pergunta Fundamental: A dimensão ontológica é uma dimensão necessária da reflexão filosófica ?
7
É o logos demonstrativo. Tudo o que o homem ocidental produz faz teoria. A realidade toda chegou a uma expressão científica do
real. O saber absoluto não é divino, é um saber onde a totalidade das ciências dá o total do saber. A partir da descoberta do logos a
physis passou a ser refererida a ela, criando-se uma ciência da physis (Física), igualmente com o ethos foi criada a ciência do ethos
(Ética).
8
A consciência é o sujeito.
9
Ciência que mostra a racionalidade desses fatos, a realidade que liga os fatos. A racionalidade no fim seria o Saber Absoluto. A
essência do real á a racionalidade, a idéia. Esta mostra a racionalidade do todo. Ciência = logos demonstrativo. No caso de diversos
fatos: A, B, C,..., quando colocamos em relação uns com os outros, fazêmo-lo numa racionalidade, num horizonte comum. Daí o
problema da metafísica, relacionar o Uno e o Múltiplo.
3
pensada ou como história do conceito, cujo termo é a certeza que se tornou verdade de que toda a realidade é
assumida no saber10. Este é o “Saber absoluto”. Não o saber infalível e total de um indivíduo, mas consciência
da tentativa de compreender ou pensar a história como totalidade das “obras do espírito” que se referem a razão,
ou seja, num certo momento o filósofo pode demonstrar a essência da história 11 (i.é, da fenomenologia do
espírito). Nada da história escapa da razão. A história comparece diante do tribunal da razão. Hegel com a
dialética conseguiu esta demonstração na Fenomenologia do Espírito12.
2. O Evento Marxiano13 do “Fim da Filosofia” como realização da essência metafísica na cultura
ocidental.
O evento marxiano significa o “fim da filosofia” como realização efetiva da essência metafísica da
cultura ocidental. Trata-se de mundanizar a filosofia, i.é, o torná-la mundo, torná-la realidade e, com isso,
chegará o advento do reino da liberdade 14 [ ou reino da razão (Liberdade = realização da razão). O tema será
abordado por Marx e retomado por Engels em “Feuerbach e o fim da filosofia alemã (1886)”. ]
Realizar a filosofia significa realizar a racionalidade suprimindo o irracional, i.é, a alienação. Quando
isso acontecer a filosofia acabará, não porque se tenha tornado inútil, mas porque se tornou realidade. Toda
cultura será então racional e teremos o reino da liberdade.
[ Liberdade em sentido Espinosita15, i.é, o homem realizará suas obras em sentido da razão. A liberdade
consistirá em trabalhar e relacionar-se com os outros seguindo a razão e não em opções irracionais. A filosofia
“mundanizar-se-a”, i.é, não será mais uma super estrutura ideológica como no estado atual, que é irracional. ]
3. Evento Pós-Hegeliano da “Crítica das Ideologias” 16 como permanência da questão metafísica no
centro da consciência teórico-histórica da civilização ocidental.
O evento teórico da “crítica das ideologias” é um evento pós-hegeliano que supõe o saber absoluto 17. A
possibilidade da consciência teórica de uma cultura de criticar a expressão teórica dos interesses que atuam na
sociedade só é possível pela razão histórica, ou seja, após Hegel. Esta possibilidade consiste em explicitar o
implícito ideológico e seus códigos, i.é., em reconhecer que numa cultura existem interesses discernindo e
opondo os interesses que atuam nas ideologias. Isto só é possível depois do “saber absoluto”, i.é, depois de tudo
ter sido submetido ao julgamento da razão. Podemos salientar três correntes:
a. A crítica ideológica dos marxismos. Marx apesar de ter um conceito de ideologia foi o primeiro a
assumir a perspectiva de uma crítica ideológica após meditar a Fenomenologia do Espírito (no escrito
de 1845 “A Ideologia Alemã”). A crítica ideológica marxista continuou mais nos marxismos
ocidentais do que no marxismo soviético que era menos crítico e que não existem mais. Temos os
marxistas franceses, italianos ... (Korchs, Lúcaks, Althusser, Gramsci, Kolakowski...)
b. “A Teoria Crítica da Sociedade”: de Adorno e Horkheimer18. Utilizam para a crítica social, além do
marxismo elementos de sociologia do conhecimento (e outros muitos).
c. “O Racionalismo crítico (K. Popper)19 e o Neopositivismo”: Apesar de se opor ao marxismo e às
teorias críticas dele derivadas, o racionalismo crítico é fortemente crítico e radical na análise
científica das teorias sociais em nome da razão. Nada é universalmente válido e tudo é submetido a
uma crítica. E o mesmo no neopositivismo 20. De novo as teorias atuais da sociedade só tem sentido a
partir do pressuposto metafísico de que “o real é racional”.

4. Os desafios da Racionalidade Científico-Técnica inscritos no Itinerário Histórico da Metafísica


como forma de nossa civilização.21
É um fato que a ciência reina soberana atualmente, nesse sentido podemos falar de uma época de
cientifização. A racionalidade científica nos legou uma herança, ela é um produto da cultura ocidental, cultura
10
A verdade está no todo. Não posso ter a verdade de A somente. A verdade de A está em relação com B, C, D... A verdade está na
totalidade. Para Hegel, se olho somente A, tenho um “A abstrato”, i.. é, separado da realidade. Abstrato é o que é separado do todo.
11
O logos é a essência do homem, da história e da liberdade.
12
Ver texto de Lima Vaz: Dialética do Senhor e Escravo, in Síntese.
13
Manuscrito (1844-1845) da Juventude onde Marx faz a crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Trata-se de realizar a filosofia -
TeoriaPráxis. ( Marxiano = de Marx; Marxista = dos seguidores de Marx)
14
Para marx é o reino da razão realizada. A primeira alienação é econômica, esta provoca e leva consigo as outras alienações:
burguesa, religiosa ...
15
para Spinoza, Liberdade = intelecção da necessidade
16
É um fenômeno moderno. Com capa de universalidade, defender interesses particulares. Ideologia = tentativa de justificar
racionalmente o que é interesse particular. Aqui, então, ideologia é dita no sentido marxiano.
17
Hegel = busca da essência da Filosofia; Marx = realização dessa essência.
18
“O todo é inverdadeiro”. São os fundadores da Escola de Frankfurt. Habermas faz uma crítica a eles e propõe um novo paradigma, o
da Linguagem (intersubjetividade)ꗬ Á
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questiona tudo e chega a perguntar pelo ser. Vivemos numa sociedade onde tudo é julgado pela ciência, numa época de cientifização.
4
que produziu a filosofia. Isto significa, a mesma cultura se pergunta pelo significado da ciência atual e percebe
que a racionalidade científico-técnica coloca, pela sua própria natureza, desafios, problemas para a nossa
cultura.22
Nota: A cultura ocidental colocou a razão no centro e este fez um questionamento total das coisas. O
fundamental é o questionamento. Se a cultura ocidental é uma cultura metafísica, porque ela se tornou
metafísica ? Resposta, porque ela fez a experiência metafísica.

1.2 Experiência Metafísica


Do ponto de vista teórico, este é o aspecto mais importante. Trata-se de refletir sobre como e porque a
nossa cultura se tornou metafísica. Brevemente podemos responder que ela se tornou metafísica por que fez e
refez uma e outra vez a experiência metafísica. Vejamos os aspectos mais globais desta experiência.
O termo experiência não é tomado aqui em sentido individual, psicológico; mas num sentido histórico
cultural, i.é, trata-se da experiência que se exprime em obras significativas de reflexão filosófica. Toda cultura
faz uma passagem para uma experiência reflexiva de seus valores 23. Então perguntamos como se deu a
experiência metafísica na civilização ocidental?

1.2.1Experiência Metafísica como experiência do caminho (“méthodos”)


A experiência metafísica se configurou em primeiro lugar como experiência do “méthodos”, i.é, do
caminho que deve levar a uma fundamentação absoluta. Os sofistas ameaçaram introduzir o ceticismo na cultura
grega. Para responder a este risco de ceticismo ou de irracionalismo, começa a experiência metafísica como
método, i.é, como busca de um caminho que leve até o fundamento.
A busca de um caminho, antes de ser uma experiência filosófica e receber propriamente uma
conceitualização rigorosa foi possibilitada por uma experiência específica e profundamente humana. O que
possibilitou esse caminho foi a experiência de transcendência24.

[ O homem é um ser aberto que se transcende, que vai sempre além de seus limites. O significado
semântico do termo transcendência aponta na direção de um movimento de subida ou de ascensão. Transcender
significa ir além, subir, ascender. É característico do homem ter um horizonte, não ficar preso nas malhas do
instinto. Desde que o homem transgrediu os limites impostos pelo instinto a sua característica é sempre ir além,
transgredir as fronteiras do mundo entendido como horizonte englobante das experiências imediatas do homem.
Nesse sentido o homem é um ser cuja natureza é ultrapassar a natureza.
A experiência da transgressão dos limites surgiu como traço inconfundível de uma civilização que desde
800 a 200 a.C. se estendeu do mediterrâneo até o extremo oriente. As peculiaridades deste tempo, que foi
chamado de “tempo-eixo”, estão na origem do problema filosófico em torno da direção axial da história. Esse é
o tema de Hegel em “Lições sobre a Filosofia da História” e retomado por K. Jaspers em “Origem e Meta da
História”. Mas foi sobretudo Heric Voegelin que reconstruiu em “Order and History” (5 vols.) o alcance desta
extraordinária experiência espiritual que operou uma verdadeira revolução no universo simbólico das grandes
civilizações.
O problema da transcendência tem sua origem numa experiência histórica que está na base das duas
grandes expressões conhecidas: no Deutero-Isaías e em Platão. Ela assumirá a forma de dois paradigmas
fundamentais que determinaram o desenvolvimento da idéia de transcendência na civilização ocidental. O
paradigma da transcendência como “palavra da revelação” em Israel, e o paradigma como “idéia” na Grécia. A
estrutura destas duas formas de experiência se constitui através de uma tensão fundamental entre dois pólos que
podemos designar como o Cosmos e o Ser.25
Em torno do Cosmos articulou-se a representação da “ordem” nas sociedades tradicionais, e ele
desempenhou a função de centro unificador.
O pólo do Ser representou o caminho de um êxodo que se dirigia a romper o simbolismo cósmico. Foi o
caminho da transcendência. E o caminho para a transcendência provocou uma diferenciação que na Grécia
assumiu uma feição “noética” ( = leis fundamentais do pensamento ou Lógica) e em Israel uma feição
“profética”.
Em ambos os casos se faz uma crítica radical das tradições mitológicas. Na transcendência da “palavra
da revelação” em Israel a relativização e finalmente a rejeição de todo o simbolismo do divino intra- cósmico se
faz sob o signo da história e assume como forma intrínseca “o existir na presença de Deus”. Na transcendência
da “idéia” na Grécia, a crítica se faz sob o signo da verdade (alethéia), da verdade do ser, cujo desvelamento de
Parmênides a Platão assinala a outra direção que a experiência da transcendência seguira e que podemos
designar como “existir na presença do Ser” (theoria). ]

22
Livro fundamental: “Os desafios da racionalidade” de J. Ladrière, vozes,1979. (Há uma recensão do P. Vaz sobre esse livro em
Síntese, n.13, 1978, pp. 151-155.
23
A cultura ocidental força as outras culturas a fazerem uma reflexão sobre si mesmas.
24
Ver artigo do Pe. Vaz sobre Transcendência (=ir além) (cf. Bibliografia no início desta apostila)
25
Ambos possuem esta tensão.
5
É nessa forma de experiência da transcendência, caracterizada como teoria do ser, que se faz presente o
discurso demonstrativo da razão consagrado com o nome de Filosofia. Neste contexto histórico-cultural a busca
do caminho surgiu como uma experiência histórica e como uma experiência teórica.
a) Histórica:
Porque do sucesso desta busca dependerá o “futuro” dessa civilização (a sua racionalidade ou a sua
irracionalidade). Surge portanto uma exigência histórica, a exigência da busca de um caminho. Na sua origem
histórica a filosofia foi uma resposta entre outras à crise profunda da sociedade 26. É importante falar da crise da
sociedade grega (do século VI a.C.) porque as criações intelectuais que essa crise provocou tornaram-se
paradigmas de uma tradição que se prolonga até nós, entre essas criações estão , por exemplo, a Ética e a
Política. As duas se caracterizam pelo fato de terem procurado buscar na razão ou num “sistema de razões” a
“therapéia” ou cura para as enfermidades sociais. Platão e Aristóteles foram os primeiros grandes artífices
destes corpos de razões que receberam na tradição grega a denominação de “Ethike epistheme” e “Politike
epistheme”, i.é, “ciência dos costumes” e “ciência da comunidade regida por leis”; que resultaram nas nossas
atuais Ética e Política. A estes termos os latinos acrescentaram o Direito, “Corpus iuris” ou “corpo das leis” que
obedece ao mesmo critério de um corpo de razões organizado demonstrativamente. Portanto, desde então Ética,
Política e Direito são as fontes da auto-legitimação da sociedade, e sobretudo nos momentos em que deve
enfrentar a mais profunda das crises, a saber, a crise de suas razões de ser e de agir na qual se joga sua própria
sobrevivência.
A busca de um caminho se impõe igualmente como uma necessidade cultural em face da leitura sofística
dessa crise e do remédio proposto pelos sofistas, a saber, o de uma nova paidéia (educação) fundada na retórica
e na opinião (doxa). A resposta de Sócrates e Platão foi fundada na razão
b) Teórica:
Porque esta experiência da busca de um caminho foi a formulação em forma de teoria. A filosofia surge
como uma intenção de conhecimento racional ou demonstrativo – “logos apodeiktikos”- voltada para a
totalidade do ser na forma de um saber desinteressado (theoria), mas que declara expressão de um anelo
enraizado no âmago da natureza humana e que é uma indagação em torno do ser e portanto, em torno da
verdade. E como teoria do ser e da verdade, a filosofia se propõe como fonte da mais elevada felicidade –
“eudaimonia”. Nesse sentido se parássemos de discutir o problema da verdade voltaríamos ao irracionalismo.
Hoje surgem muitas teoria da verdade mas a filosofia não pode abandonar nem deixar de discutir o problema da
verdade. A filosofia surge nos primórdios da cultura ocidental com uma face enigmática que estabelece entre ela
e o mundo no qual faz a sua aparição uma relação dialética na medida em que a intenção filosófica se propõe
levar a cabo uma crítica e uma negação das pretensas evidências da doxa , e a recuperação do sentido da
realidade natural e da vida humana a luz da alethéia. Essa estrutura dialética já esta presente na concepção grega
de filosofia.
Retomada da Experiência do Caminho (método que leva ao Ser):
Esta exigência histórica e teórica da civilização grega aparece retomada na história.
a) A dialética ascendente e a ontologia da idéia em Platão27
Os livros VI e VII da “República” e “O Sofista”. A imagem do caminho para o alto ocupa o lugar ilustre
desde que Platão a celebrizou no “Banquete”(210a-211c) e na “República” (VII, 514a-517d) . A Alegoria da
caverna é uma alegoria fundadora da civilização ocidental; como levar os homens da ilusão dos sentidos para a
idéia28.
b) Os graus de universalidade em Aristóteles
Trata-se do problema que vem de Platão29, mas elaborado logicamente por Aristóteles na classificação
das ciências30. Trata-se da relação das ciências entre si que culmina na Metafísica como “Filosofia Primeira”.
Nesse problema, trata-se das categorias universais e da causa primeira (o primeiro motor).
c) O itinerário do “Cogito” em Descartes31
Trata-se do “Discurso do Método” como expressão da busca metafísica de Descartes (busca do ser). A
finalidade de Descartes é procurar a verdade.
d) O método como “Crítica” e a Idealização transcendental em Kant
O método como crítica32 leva ao resultado de que o ser não é mais cognoscível. A metafísica não pode
pois ser ciência da razão pura (ver as antinomias da razão pura). Mas a metafísica é uma necessidade absoluta
que deverá ser respondida pela crítica da razão prática.33
e) A “Ciência da Experiência da Consciência” e a Fenomenologia do Espírito de Hegel
26
Crise social grega: desta crise surgiram paradigmas de instituições que legitimam todas as sociedades: a Ética e a Política.
27
Platão não é um idealista. Ele é um realista porque em sua teoria a verdadeira realidade é a idéia.
28
A realidade não é o que aparece aos sentidos, mas à realidade das idéias. Para Platão o Bem (Uno) é o princípio de tudo.
29
Se para Platão o ser é idéia subsistente, separada da realidade; Aristóteles vai descobrir o ser na realidade tal como ela é.
30
Que foi chamado depois de graus de abstração ou universalidade.
31
Diante da nova realidade criada pela ciência moderna, Descartes cria um novo método.
32
Kant coloca novamente o problema do método. O método agora como crítica. Uma crítica que coloca a razão voltada não para o ser,
mas para a razão, até onde a razão pode ir. A razão não pode conhecer, pode apenas pensar sobre a totalidade O conhecer se dá em
cima de categorias. A razão não é mais ontológica, é apenas formal. A idéia não é mais ontológica, é idealização. A metafísica significa
a busca por princípios “a priori” da razão.
6
Trata-se da experiência do caminho34 que passa pela angústia e o desespero, porque todas as certezas
históricas são abaladas, até chegar ao “éter puro” do saber absoluto, i.é., até encontrar o último apoio. Aqui já
não há mais um caminho entre outros, mas o caminho se tornou metafísico. O ser da história é metafísico.
f) A Redução e a Idealidade Fenomenológica de Husserl35
Ver o primeiro capítulo da “Idéias para uma Fenomenologia Pura”. (Livro importante de Husserl: “Crise
da Ciência Ocidental”.

A experiência metafísica se deu pois como experiência do método que deve chegar a um fundamento.
Ora, para poder andar é preciso ter os instrumentos adequados, i.é, as regras incluídas no método. Nessa
caminhada o homem diz o ser. A metafísica que surge do questionamento científico começa a ser histórica como
problema do caminho que o problema da metafísica coloca ao homem para poder andar, i.é, o problema das
regras.
A partir daí surgem fundamentalmente três caminhos ou direções:
a) A direção axiomática (Platão e Aristóteles) : através do método busca-se um princípio que permite
subir até o Primeiro princípio36 (análise) e voltar a realidade (síntese). O espaço metafísico está aí,
trata-se de descobri-lo e andar por ele.
b) A direção transcendental (emergência do sujeito) : descoberta da aprioridade. O sujeito é capaz de
legislar, por isso os princípios a priori. Agora já se pode falar de metafísica dos costumes. O espaço
metafísico aparece como algo a ser construído pelo homem e por isso deve ser idealizado
transcendentalmente.
c) A direção dialética (Hegel)37 : o espaço metafísico se estende a toda experiência humana, da
consciência natural ao espírito; do sujeito ao saber absoluto, que é já uma experiência metafísica. Por
isso, o caminho não é mais um caminho entre outros, mas é a totalidade da experiência que o homem
faz que é metafísica. O método se absolutiza como círculo dos círculos. O método é a própria
metafísica. O real é todo metafísico.
Conclusão:
A partir daí o homem se vê forçado a responder pelo todo. Temos que dar um sentido ao todo.

1.2.2.Experiência Metafísica como experiência do “Fundamento” (arché)38


A busca do caminho termina no encontro com o “fundamento”. Vejamos alguns exemplos das
experiências do fundamento na cultura ocidental:
1. O “ananke stenai” de Aristóteles
“É necessário parar.” A busca do racional não é indefinida. A racionalidade do real exige como postulado
que a busca se detenha (que tenha um fim). Ir ao infinito seria recair no relativismo sofista. É preciso parar nos
primeiros princípios. O primeiro princípio é indemonstrável, mas renunciar ao primeiro princípio, que é o de
não-contradição, implicaria em calar, i.é, em renunciar ao discurso, em renunciar a razão.
2. O “Fundamento” na ordem Lógica.
A experiência metafísica se estrutura como experiência da “arquitetônica da razão”39. Desde Platão até
hoje, passando especialmente por Hegel, a razão metafísica se torna “ordenadora” na busca do fundamento na
ordem lógica. A noção de sistema é um postulado implícito da racionalidade do real ou da ordenação do real
conforme a razão. Se o real é racional pode ser ordenado (a razão é ordenadora).
3. O “Fundamento” na ordem Ontológica
A experiência metafísica se estrutura como experiência da “unidade do ser”. Se buscamos um
fundamento na ordem lógica, postula-se também que o real é uno; deve-se pois buscar o princípio uno do real 40.
Este se deu em duas versões:
a) A Metafísica como “Teologia”41

33
Para Kant a metafísica como atitude natural (abertura ao todo) do homem continua sendo válida. Mas a metafísica deixa de ser a
“Ciência do Ser” para tornar-se “ciência dos princípios a priori da razão.” Outra observação em Kante é a distinção do conceito de
transcendental, a saber, na filosofia clássica os transcendentais do Ser são o Unum, Verum e o Bonum; em Kant o transcendental está
no Sujeito (idéias transcendentais, por exemplo) e não no Ser.
34
Toda a Fenomenologia do Espírito é, portanto, um caminho.
35
Fazer uma redução para descobrir onde o ser se mostra, sua manifestação no Eu.
36
Em Platão o Bem e em Aristóteles o Primeiro motor imóvel.
37
Hegel critica em Kant a separação entre Forma e Conteúdo. Para Hegel, essas realidades não podem ser separadas, por isso ele usa o
conceito de Universal concreto.
38
An-arché = anarquia = sem fundamento.
39
As razões aparecem articuladas logicamente num todo.
40
É impossível falar de unidade sem pluralidade e também não posso falar de pluralidade (diferenças) sem falar de unidade. Sempre
colocamos em relação entre si. Diferenças só podem ser captadas num horizonte de unidade. Não se trata de uma unidade parmediana
(absoluta, imóvel, em si) mas de unidade (cf. Platão) na pluralidade (móvel). A relacionalidade é a unidade. Um exemplo: O homem só
pode falar de sua particularidade porque reconhece os outros (multiplicidade).
41
Em grego: Teologia = discurso racional sobre o último princípio da realidade.
7
Teologia entendida aqui no sentido grego da palavra como investigação racional sobre a explicação
última da realidade. É a questão da diferença ontológica entre ser e ente.42
b) A Metafísica como “Sistema”
Se o real é um , a razão é uma; o sistema do real deve ser perfeitamente isomorfo ou adequado ao sistema
da razão. Mas, como o empírico é contingente e não tem unidade lógica, então temos que buscar a
unidade lógica necessária do lado “a priori”. Surge portanto a diferença transcendental entre o “a priori”
e o “a posteriori”. E a metafísica se situa no “a priori” lógico, necessário.
A metafísica tem que buscar sempre um sistema cada vez mais adequado. O mesmo acontece com
Wittgeinstein, “o que não se pode falar deve-se calar”; i.é, só se pode falar (discutir racionalmente) daquilo que
é lógico e que se postula correspondente a realidade do que pretendemos falar. Temos pois o postulado
metafísico, a unidade do ser e do real.
A experiência metafísica do caminho, que acaba na descoberta do fundamento, se exprime numa
ontologia. E de acordo com os três caminhos que vimos anteriormente, podemos constatar três tipos de
ontologia:
1. A Ontologia da essência caminho axiomático (Platão, Aristóteles, S. Tomás...)
Ontologia grega e sua superação pelo cristianismo. O ser é dito como “ordem”. Trata-se de ordenar o
mundo das essências. O mundo aparece aqui como uma grandeza teológica 43, i.é, como “scala
criaturaruam”, até chegar a Deus infinitamente transcendente, infinitamente presente. Aqui o problema
metafísico tematiza sobretudo a natureza.
2. A Ontologia como lei caminho transcendental
A “physis” não é mais o que se contempla, mas o que se pressupõe a partir de Galileu, Descartes, etc...
Agora trata-se da hipótese, depois do modelo a ser verificado. A partir daí, o ser é dito em termos de
organização do mundo que procede do mesmo discurso, i.é, o mundo é organizado a partir das hipóteses,
que é igual ao sistema do mundo. Neste segundo tipo, o pensamento metafísico entra na sociedade, ele
destrói a sua ordem natural, espontânea, para que a sociedade organize da melhor maneira possível. O
problema do direito natural moderno será a transposição da metafísica da lei para a sociedade, que nos dá
regras para organizar a sociedade. A sociedade torna-se pois problema metafísico.
3. A Ontologia do espírito44 caminho dialético (Hegel)
A “physis” desaparece porque a técnica, resultado da ciência Galileiana, por sua vez resultado da
metafísica, ocupa o seu lugar. O “espírito” é o agir histórico do homem. O ser agora é dito como
processo. A história torna-se problema metafísico. E o único modelo de discussão é o dialético.
Vemos assim que a nossa civilização é metafísica ou está penetrada de metafísica. A cultura ocidental “é”
(não depende de nós) uma cultura metafísica, na qual todos os seus problemas, conhecimentos, valores,
crenças ..., se tornam objeto de um tipo de questionamento radical que consiste em ter que justificar-se diante da
razão e das exigências da razão. Exigência radical da razão de não contentar-se com as aparências, mas de
responder a pergunta: “o que é ...?”
Essa experiência da metafísica que começou a tratar da realidade em termos de demonstração nos deixou
um legado: “o homem tem que dar-se uma razão para tudo o que ele faz”. Por isso, surgem teorias para cada
âmbito da realidade. É preciso ter uma teoria que justifique a sociedade. Uma idade pós-moderna é aquela em
que tudo se tornou metafísica. Onde o homem tem que assumir uma razão para viver, tem que buscar uma razão
para justificar tudo, tem que dar razão de sua história, tem que elaborar uma teoria até de seu inconsciente.

42
Heidegger: diferença ontológica entre ser e ente.
43
Posso encontrar uma racionalidade que intrinsecamente me conduz a Deus
44
Sujeito consciente e livre.
8
CAPÍTULO II
O PROBLEMA ONTOLÓGICO

2.1 A questão da essência


2.2 A questão da predicação
2.3 A questão do fundamento

Fundamento

SER RAZÃO

“O que é ?”

essência predicação
(categorias)

2.1 A questão da essência (Eidos)


Colocamos a pergunta: “o que é o real ?” Esta é a pergunta radical da razão. Trata-se do real assumido ou
traduzido na razão. A razão busca o que é real e responde pela definição45. Trata-se das essências (no plano
lógico das definições) que nos juízos dão o conhecimento certo46 e necessário47 do real. O problema da essência
implica portanto a definição lógica do objeto e a oposição; pois definir implica opor a outros. É portanto o
problema da lógica e da dialética, i.é, da lógica desenvolvida numa dialética. Este problema implica um outro: o
problema da identidade e da problema diferença. Pois, na hora de definir o ser nos encontramos com uma
pluralidade de seres e cada ser é diferente dos outros, mas de todos os seres se pode dizer que são. Portanto, não
são radicalmente diferentes. Mas o ser é, i.é, ele é idêntico a si mesmo , não se dilui no nada, ele tem uma
consistência. Como definir então o ser, se ele deve incluir a identidade consigo mesmo e a diferença entre os
seres. Este problema foi tratado por Platão no diálogo “O Sofista”. Como este problema foi decisivo para todo o
problema da metafísica nós o trataremos depois. Aqui, trata-se apenas de perceber em que consiste o problema
ontológico. E o primeiro aspecto deste problema é a questão da essência.
Platão: A pergunta pela “coisa mesma” como pergunta pelo ente originário48
Platão coloca a pergunta pelo logos das coisas, i.é, pelo saber das coisas mesmas que primeiro se
mostram mascaradas e disfarçadas. Essa pergunta inclui uma crítica ao modo cotidiano de conceber as coisas.
Este se contenta com a aparência que as coisas desperta. O pensamento filosófico concebe a “coisa mesma”.
Portanto, nós temos duas perspectivas que as coisas apresentam: (1) elas se mostram à sensibilidade como
aparência que finalmente é ilusão e (2) elas se mostram ao pensar próprio tal como elas são em si. O papel do
que aparece é duplo, a ) trata-se só do aparecimento, i.é, não da coisa mesma e b ) nele se reflete a coisa mesma.
Por exemplo: imagem do rosto no espelho. A coisa mesma é o “eidos”, i.é, a essência original da coisa que
revela o olhar filosófico. Portanto, nós temos dois aspectos do ser: (1) enquanto se apresenta ao olho corporal
nós temos o âmbito das cópias das figuras originárias e (2) enquanto visível ao pensamento: dá a conhecer a
coisa una, consistente, que se revela a si mesma (Rep. 510). Um triângulo desenhado é uma cópia do triângulo
mesmo original que nada tem a ver com a natureza material. O triângulo mesmo é a idéia de triângulo: (1) que
está presente em cada triângulo realizado materialmente, (2) mas que existe totalmente independente desta
ligação com o corporal. Mas, (3) o fato de que numa figura corporal possa acontecer uma referência à idéia
presente nela, deve-se a circunstância de que participa desta idéia, por isso pode ser dado o nome de triângulo. A
geometria deve pois mediatizar: (1) a experiência da distinção entre o original uno e as múltiplas cópias do
fenômeno, e (2) a experiência da pertença da cópia ao original. Mas a intenção própria do pensamento
matemático dirige-se não à cópia, mas a “O triângulo”, a “O círculo”, etc. O signo conduz ao original.
Portanto, a “coisa mesma”, o eidos, não é mediado pela cópia, ela é imperecível, imutável, não produzida
no tempo , não desaparece. A “coisa mesma” é idêntica a si mesma, apreensível só pelo pensamento.
Por isso, as asserções que expressam a coisa mesma são seguras, firmes, resistentes, verdadeiras. A alma
é de igual natureza que o objeto eidético. Temos então a seguinte equação: verdadeiro conhecimento é igual ao
ser das coisas. O princípio de não-contradição é fundamentado no ser da coisa mesma.

45
Definir = separar uma coisa da outra, delimitar.
46
A razão que faz com que algo seja, e não seja outra coisa.
47
Alguma determinação que faz com que algo seja (eidos).
48
É a idéia. Ao se afirmar um sujeito o Ser é afirmado como Mesmo nesse sujeito singular. Mas ao afirmar que algo É também se
afirma que Não É outra coisa (Outro). Como posso chegar à generalização do Ser? Essa pergunta supõe que o Ser esteja objetivado,
mas esse pressuposto é falso porque o Ser não poder ser objetivado, o Ser é horizonte.
9
[ Assim, a coisa mesma em virtude de seu caráter originário se mostra como imperecível, imutável, idêntica
consigo mesma e autônoma em oposição as suas imagens que são dependentes delas. ]

Uma última caracterização da idéia é que ela é “aitia” (causa). Enquanto coisas mesmas, as idéias são
coisas originárias. As idéias são as causas para que haja um mundo fenomenal. Cada idéia é responsável pela
existência das coisas corporais que são chamadas como ela em virtude de sua participação. Se um fenômeno é
belo, a causa originária dele é a beleza mesma presente nele. O fenômeno é belo porque participa da beleza
(Fédon 100 c-e). A verdadeira causa não pode ser algo do mundo corporal, pois este é sempre causado.
Aristóteles: Metafísica como Ciência dos Primeiros Princípios49
Aristóteles retoma a pergunta: “o que é ?”Essa pergunta eqüivale a perguntar pelos primeiros princípios
(archai) do ente. Desde Platão a interpretação dos “archai” oferece-se como as primeiras causas, i.é, como
aquelas instâncias responsáveis pelo fato de que o ente seja ente (Met. 1080 a 50). A metafísica pergunta, pois,
pelo ente e seus primeiros princípios. Aristóteles usa o nome filosofia como sinônimo de ciência, e como a
metafísica pergunta pelos primeiros princípios ela é ciência (ou filosofia) primeira, como exigência intrínseca
das ciências, pois estas não podem permanecer como a representação de uma série de causas que vai até o
infinito. Um progresso até o infinito não é possível, pois todo ente como tal, é
[ “determinado”, portanto ] limitado. A metafísica visa conhecer as primeiras causas de todo ente.
Características dos Primeiros Princípios:
Os primeiros princípios concernem a todo ente. Não existe pois nenhum ente que não esteja submetido a
eles. Eles são, portanto, universais. A ciência primeira dirige-se ao todo, pois o universal é o primeiro (Met.
1026a.24,32). Mas dizer que ela trata de fundamentar todo ente não significa que ela reúna em si todas as coisas
existentes. Mas, assim como a matemática considera as coisas com respeito a sua calculabilidade, assim, a
filosofia primeira considera os entes na sua universalidade com respeito a seu caráter de ser. Então, “há uma
ciência que estuda o ser enquanto ser e os atributos que lhe pertencem essencialmente (...) e como nós buscamos
os primeiros princípios e as causas mais elevadas é evidente que existe necessariamente aquela realidade à qual
estes princípios e estas causas pertencem em virtude de sua própria natureza”(Met. 1003a.20-28). Trata-se pois
dos primeiros princípios desta realidade. Desses princípios todo ente recebe seu caráter de ser, de forma que eles
podem ser caracterizados como o ser dos entes.
[ Essa ciência primeira, que depois foi chamada metafísica, pergunta pois pelos primeiros princípios de todo
ente. E o ente, enquanto ente, i.é, no seu caráter de ser, tem que ser concebido como uma essência. Esta essência
contém de modo universal princípios que podem ser encontrados em cada objeto particular ( causa formal,
material, final e eficiente). ]

Ao ente enquanto ente, pertence quatro causas. A primeira é a causa material ou o substrato 51; a segunda
é a causa formal. A forma é responsável pela unificação das partes num todo. A forma unifica (informa), a
matéria é informada. A forma determina, a matéria é determinável. Portanto, as duas causas pertencem a
essência. O papel da essência é caracterizado pelo fato de que ela é princípio de afirmação das outras categorias
(predicados)52. Enquanto as outras categorias são os modos pelos quais se afirma algo sobre a essência, a
essência mesma não é afirmada de uma outra. Ela é um conceito último que exprime o caráter causal da coisa da
qual se fazem afirmações. A essência é o primeiro princípio que dá a resposta a pergunta: porque predicados
pertencem a seu sujeito ? Ela é de forma especial causa e princípio pois, a razão de ser de uma coisa se reduz
em definitivo ao logos dessa coisa. E a razão primeira de ser é causa e princípio (Met. 983a.25ss).
A terceira causa é o princípio de onde partem o movimento das essência ou causa eficiente. E a quarta
causa é em oposição a terceira a causa final, i.é., a razão visada pelo movimento da essência. A essência é ao
mesmo tempo sua história, do primeiro começo do seu devir (causa eficiente) até a sua consumação (causa
final), e como tal, a essência exprime o “bem da coisa” enquanto ela inclui sua consumação. A essência designa
também o “telos” (fim) da coisa. Se para Platão o bem tinha o significado do permanente, eterno, imutável; em
Aristóteles a seu conceito pertence o devir. O “bem da coisa” é o processo coerente desde seu começo até seu
momento final.

Ato (energeia) – Causa Formal Causa Eficiente


Essência
Potência (dynamis) – Causa Material (movimento) Causa Final (Telos)

Essência: um ser determinado por suas causas – o Bem da coisa - unidade

49
Para Aristóteles: Substância = 1) Sensíveis + 2) Supra-sensíveis. Sensíveis = 1.a) Perecíveis (F+M) : coisas em geral que perecem e
se transformam; + 1.b) Imperecíveis (F+(M=éter)): sol, estrelas, etc. 2) Supra-sensível = Forma Pura + Ato Puro : Motores imóveis.
50
Aqui Aristóteles cita o texto Fédon.
51
O substrato não é a matéria mas aquilo que é informado. No caso de uma mesa o substrato é a madeira, no caso do homem é o corpo.
52
S é P. Eu predico (P) algo de um sujeito determinado que aqui é a essência (Forma + Matéria). Logo, é a essência que possibilita as
várias predicações. Em Kant, no lugar da essência está o Sujeito Transcendental.
10
Ser: Unum, Verum et Bonum

A delimitação da essência é pois de natureza temporal. Falar de uma essência é sempre falar de uma
essência unificada. Portanto, o problema da unidade é intrínseco da essência. Como conceber esta unidade ?
A essência reúne forma e matéria. Falar da independência da forma não significa isolar a forma da
matéria, do contrário não poderíamos conceber a ligação entre elas. Como pensar a unidade então ?
A unidade da essência, diz Aristóteles, não tem um caráter de amontoado, mas de um todo, do tipo por
exemplo, da sílaba. A sílaba não é o mesmo que uma série de letras porque ela é algo autônomo por si. Esta
independência e totalidade é a “causa” de que se chame sílaba a união de letras (Met. 1041b, 11ss). A ligação
operada pela forma é um movimento unificado pelo qual os elementos materiais são compostos num todo . A
produção do todo não é feita por um mero “é” , mas pelo movimento de entrada dos elementos reunidos no
todo essencial da sílaba. “O homem é um animal e bípede, mas deve haver alguma coisa fora do animal e do
bípede; se são elementos puramente materiais, alguma coisa que não seja nem elemento nem composto de
elementos, mas a essência” (Met.1043b,10ss).
Falar que a essência é una não é acrescentar um novo predicado. Intrinsecamente ela é una, ou seja, a
unidade pertence a mesma essência. O ser uno é pois uma determinação particular do ser ente na medida em que
determina o ser fazendo dele um ser essencial determinado.
Essa determinação formadora acontece pela “energeia” na qual a pluralidade de predicado é conservada
pelo laço unificante da essência.
A pergunta pela essência de uma coisa que é ao mesmo tempo o laço unificante das muitas
determinações que lhe pertencem é respondida pela dupla “energeia” e “dynamis”.
O princípio da matéria produz a pluralidade enquanto que a unidade é operada pela forma. Temos que
ver as causas da matéria com “possibilidades” que se tornam realidades efetivas pela formação da matéria (pelo
ato formador da matéria). Mas como a matéria se encontra em permanente mudança temos que ver como se
produz a unidade. Contra Platão a essência é entendida no sentido de coisas particulares, como um todo que é
produzido pelo movimento operado pela forma. Surge assim um movimento de ambos os lados, da matéria e da
forma que nos levam a falar de um todo. Visto do aspecto do todo, podemos dizer que a matéria e forma são
propriamente o todo, só que um em potência de um lado, enquanto em ato do outro (Met. 1045b,17ss). Na
matéria como “dynamis” há uma tendência para a realização pela forma, se ela não entrasse no todo
permaneceria indeterminada53; e o sentido da forma como “energeia” é atualizar a matéria, dar uma
determinação à indeterminação que se mostra na pluralidade das possibilidades que faz com que a coisa tenha
uma essência determinada.

2.2 A Questão da Predicação54


O segundo grande aspecto do problema ontológico é a questão da predicação. Se a pergunta radical da
razão é: “o que é o real ?”, e se responde pela definição dando a essência, surge imediatamente a questão da
predicação no domínio da ontologia. O real tem uma razão de ser que se exprime em conceitos universais e
irredutíveis entre si. É o sistema das categorias que exprime e articula o ser. Esse problema implica a superação
lógico-dialética do monismo parmenediano55. Se o real (Ser) é racional, inicia-se o discurso da razão que mostra
a inteligibilidade do real na sua totalidade.
Platão: Metafísica como Doutrina da Ciência
A metafísica ao perguntar pela “coisa mesma”, concebe a si como saber que determina seu próprio
caráter de ciência. Trata-se de conhecer os critérios que determina a cientificidade em geral e de medir-se a si
mesma por esses critérios.
Ao estabelecer um critério, a Metafísica surge também como crítica. Ela introduz uma espécie de tribunal
que distingue entre o verdadeiro e o não verdadeiro, entre o saber e o não saber 56. Orientado pelo conceito de
“coisa mesma”, i. é, do ser próprio da idéia, Platão estabelece um critério para todo o saber. O saber distingue-se
do não-saber pelo fato de que ele consegue metodicamente o olhar correto que conduz à coisa mesma 57. Assim
como a “coisa mesma” está aí na sua identidade imutável, assim também o saber dela encontrará a expressão em
enunciados firmes e convincentes. O saber pode conseguir seu fundamento por uma referência à coisa mesma
vista diretamente por ele. O programa científico da metafísica inclui, pois, o conhecimento do método filosófico
que conduz àquele estado do pensamento que permite ver e pensar corretamente. “Orthologos” é o nome para
esse método. Assim, à doutrina metafísica da ciência pertence:
- o ser da coisa mesma;
- o método como conquista da perspectiva correta que leva à coisa mesma;

53
A forma determina.
54
Pergunta base: Que categorias expressam o Ser em sua totalidade? Ou Como expressar o Ser sabendo que ele é uno e múltiplo?.
Predicação = atribuir um predicado (P) a um sujeito (S). ex.: A parede (S) é amarela (P).
55
A=A; o Ser é, o Não Ser não é.
56
Para Platão o primeiro critério é a coisa mesma, o ser da coisa. Para ele o saber verdadeiro é o saber do ser das coisas, i. é, da idéia.
57
O segundo critério de Platão: o método que conduz à coisa mesma, um orthologos (ortho = correto).
11
- inclui também a descrição do caminho do pensamento através dos diferentes graus de certeza pelos quais
passa, até a verdade.
Platão faz esta descrição na República 509d e ss, servindo-se de uma linha como fio condutor. Ele divide a
linha em duas partes desiguais. A primeira é o mundo do sensível e a segunda o mundo do inteligível e volta a
dividir cada uma das partes em outras duas partes desiguais. Das duas partes desiguais, uma representa o visível,
a outra o inteligível.
O visível divide-se novamente em duas partes desiguais. A primeira representa o valor da cópia. A segunda o
original. Assim o primeiro degrau indica o lugar onde se encontram as imagens ou cópias fracas como as
sombras ou figuras refletidas na água. O segundo degrau representa a pluralidade de figuras das quais as
sombras e os reflexos anteriores são cópias. Platão se refere aqui a tudo aquilo que é produzido pela natureza
como os seres vivos que nos rodeiam, etc...
58
_________VISÍVEL__________________________INTELIGÍVEL_________________ cópia
original59 matemáticas60 episteme61
imagens figuras hipótese anypotheton
sombras natureza reflexão pensante intelectus (nous)

Na seção do inteligível, onde se encontra aquele que faz a distinção entre a verdade e o que não chega à
ela, entre o cognoscível e a opinião. Surge um âmbito que está entre o visível e o inteligível puro, entre a
opinião e o pensamento da ciência pura. Trata-se do terceiro degrau onde se encontram os matemáticos, os
geômetras, os aritméticos. A sua situação ( dos matemáticos) faz com que seu pensamento seja forçado a entrar
no âmbito do visível e tomar-lhe emprestado figuras que usa conscientemente como imitações simbólicas. Essa
situação força cada ciência (p. ex. a matemática) a partir da imagem como de algo subjacente, i. é, as hipóteses e
a partir delas caminha, não até o princípio, ou seja, a hipótese absoluta, mas até ao fim que o pensamento se
propôs62. O geômetra e todos aqueles que se encontram nessa situação científica, põem como base [ de acordo
com sua meta de conhecimento, e seu método, ] triângulos, círculos desenhados e descreve neles sinais
63
visíveis . Eles procedem como se soubessem o que verdadeiramente está na base do seu procedimento ( no
caso, o triângulo mesmo, ideal), e dão às proposições conseguidas, o papel de hipóteses. Assim eles perguntam
pelas proposições sobre um triângulo mas não em que consiste o ser e a essência do triângulo. Nesse sentido eles
partem de fundamentos misturados de “coisa mesma” e de sua “aparência” e derivam daí o restante que se
propuseram como meta.
Do ponto de vista filosófico mostra-se que eles se servem das figuras visíveis, falam e pensam sobre eles,
mas na verdade eles têm no pensamento, não as figuras, mas as coisas mesmas, o triângulo mesmo e não a
figura material. Os matemáticos buscam “ver” o que não poderia ser visto de outro modo se não por reflexão
pensante – é a dianóia64.
Finalmente o quarto lugar concerne ao puro saber – episteme – o conhecimento das coisas mesmas, do
ser mesmo. Ele representa o ponto de vista do pensar a partir do qual podem ser feitas todas as afirmações
anteriores, sobre a opinião e o saber, incluindo o proceder dos matemáticos. Consequentemente trata-se do
conhecimento do critério pelo qual o pensamento filosófico e todas as outras ciências tem que medir-se. Este
último degrau coordenado ao puro saber corresponde à perspectiva que entrega diretamente a coisa mesma sem
a mediação de qualquer imagem65. O caminho deste pensar conduz não a uma meta escolhida pelo cognoscente
(uma hipótese) mas ao primeiro princípio (anypotheton) que precede todo pensar como fundamento do ente
mesmo. O princípio não é fruto de uma escolha do cognoscente, mas é princípio entitativo por si mesmo 66. O
pensamento consegue assim um caminho que partindo de hipóteses conduz ao primeiro princípio do todo. Este
não é posto hipoteticamente como princípio, nem como meta do conhecimento, mas subjaz a todo conhecer, é
princípio anypotheton67 e é conhecido pela filosofia como tal.
O saber não se serve mais de imagens mas capta as puras coisas mesmas de modo que ele avança de
idéia em idéia e acaba nas idéias. A razão com seu poder dialético chega até o fim do seu percurso – é o saber
da pura razão (nous) que deve ser distinguido do saber das ciências (dianóia)68.

58
Ex.: uma sombra, um reflexo na água. Nessas duas primeiras colunas estamos no plano sensível.
59
Aqui está-se no âmbito da opinião. Ex.: o homem (não é ainda a idéia)
60
Nessa 3a. coluna há uma dependência parcial do sensível. Reflexão pensante = dianóia.
61
Aqui nessa 4a. coluna já se está no plano da ciência pura. Não há mais dependência do sensível.
62
Fim esse que é demonstrar a hipótese.
63
Ex. No desenho de um triângulo a indicação dos ângulos internos.
64
Faculdade da razão que distingue.
65
Ou seja, sem mescla com a sensibilidade. A “coisa mesma” se apresenta então como sem necessidade das coisas sensíveis, ou seja, a
“coisa mesma” é o que é por ela mesma.
66
Entitativo: de ente, i. é, real.
67
Não hipotético.
68
Este nous é o puro saber, onde chegou a razão que indagou pelo ser: “o que é?”
Nous = intelectus = ver até o mais profundo.
12
Do ponto de vista da metafísica as ciências aparecem como submetidas à coação e à necessidade 69
porque elas não refletem sobre os próprios pressupostos, sobre os primeiros princípios. Na metafísica o
princípio é tomado e conhecido como tal, isto é, como princípio, e a hipótese é conhecida como relativa, é
tomada e conhecida como tal. Assim os degraus conseguidos pela divisão não são concebidos como um ao lado
do outro, mas o supremo degrau, o do conhecimento dialético, abrange e reúne todos eles na unidade de uma
única atividade racional.
[
O caminho da razão aparece na questão da essência e da predicação. Há na Alegoria da Caverna um
terceiro aspecto, que é o caminho da Formação ( Paidéia) – Caminho de formação que passa pelas exigências
internas, até chegar a verdade.
1. Fala-se de um caminho que a parir do qual chega-se ao verdadeiro. Por este caminho forma-se um
“saber” que não só se move num plano de pensamento de premissas e conclusões como é o caso da
matemática, mas este pensamento reivindica uma dimensão mais profunda. Ele exige para ser
reconhecido que cada um realize esse movimento conceptual para abrir o olhar para a verdade
2. Consequentemente esse saber realiza-se no âmbito de uma formação científica. A alma que se encontra
no caminho não consegue apenas novas posições, ela se transforma. Com isso o pensante satisfaz um
interesse pelo bem, ao qual chega por esse caminho.
3. Pela conquista deste novo estado e pela descoberta da verdade, acontece ao mesmo tempo um
desmascaramento dos erros que resultariam da visão anterior. Aquele que consegue o estado superior do
pensamento possui os critérios da verdade e pode olhar para as condições às quais estava submetido o
seu pensamento quando se encontrava no caminho. Assim o sábio conhece a coação sob o qual tinham
que se formar erro e saber aparentes nos degraus nos quais ainda não tenha sido conseguido a verdadeira
perspectiva.
Significativo para Platão é que na último fase deste caminho exprime um princípio que por sua vez
constitui o ponto central unificado de todas as idéias. Ele é o bem mesmo, representado pela luz solar. Na
medida em que uma idéia como tal é incondicionalmente consistente e imutável ela participa do bem. O bem é
diretamente presente em todas as idéias e através das idéias também nos fenômenos que são cópias das idéias.
]
Aristóteles: A Questão da Substância: (Ousia)70
Se o ser é inteligível, pode (deve) ser organizado em termos categoriais71.
“Há uma ciência que estuda o ser enquanto ser e os atributos que lhe pertence essencialmente”.(Met.
1003 a 20) Essa ciência tem que elaborar as categorias que exprimem e articulam o ser. Na questão da essência
vimos os princípios constitutivos do ente enquanto ente e dissemos também que a essência é o princípio das
afirmações das outras categorias72. Trata-se pois de mostrar as modalidades de predicação; pois “o ser se diz de
muitas maneiras”73. (Met. 1003 a 33) Ora, o ser que se diz de muitas maneiras implica uma unidade primeira que
dá inteligibilidade aos diversos modos de ser, e para Aristóteles, a unidade primeira que dá inteligibilidade aos
diversos modos de ser é a categoria da substância (Ousia). “Algumas coisas são pelo fato de serem substâncias.
Outras por serem modificações da substância. Outras por representarem um trânsito para a substância”. (Met.
1003 b5) Mas entre todas as acepções do ser está claro que o ser em sentido primeiro é “o que a coisa é, i. é, a
substância da coisa”74 (Met. 1028 a 14), pois , tudo o que nós podemos dizer ou afirmar se refere sempre a um
sujeito real e determinado, este sujeito é a substância. É, pois, evidente que é por meio desta categoria que
existem todas as outras, por conseguinte o ser fundamental e primeiro, o ser absolutamente falando é a
substância.
A substância é absolutamente primeira tanto no ponto de vista lógico como do ponto de vista temporal:
Do ponto de vista temporal porque a substância é cronologicamente anterior às propriedades, que possam
afetá-lo e que pode possuir sucessivamente. Neste sentido nenhuma categoria existe separada. Só há a
substância.
Do ponto de vista lógico ela é primeira porque na definição de cada ser é essencialmente contida a
definição da sua substância, e nós acreditamos conhecer verdadeiramente uma coisa quando conhecemos o que
ela é, e não por exemplo a sua quantidade.
É inerente à substância uma necessidade interna àquilo pelo qual a coisa é, i.é, a substância, pertence a
coisa necessariamente. Do contrário nunca saberíamos o que a coisa é, nem poderíamos atribuir-lhe qualquer
predicado, e já sabemos que o que dá determinação e necessidade é a forma.. [ Com esta teoria da

A pergunta pelo saber inclui a reflexividade, o saber é reflexivo. Distinguimos imagem, reflexo (sombras), figuras,... O saber científico
é reflexivo também. Sabe que sabe, é auto- reflexivo.
69
Toda ciência repousa em pressupostos.
70
Conferir nota 74
71
Termos categoriais ou predicados
72
S é P. É o S um ente (essência) determinada e ele é condição de possibilidade de afirmação de infinitos predicados.
73
Antes para Platão o ser se manifestava na idéia subsistente.
74
A Substância dá a essência da coisa. Porém essência e substância são a mesma coisa, a substância é pelo aspecto da razão
(predicação), a essência pelo aspecto do ser.
13
determinação essencial pela forma, Aristóteles pretende fundamentar uma unificação das muitas determinações
que advém a uma essência. “Sócrates formado”. A ligação “Sócrates” e “formado” aponta primeiro para uma
essência75. A essência Sócrates penetra e unifica esse e outros predicados. Com isso Aristóteles critica a ligação
platônica das idéias como “atomismo das idéias”76. A idéia platônica é incapaz de fundamentar a realização de
uma unidade essencial e individual e da penetração da matéria pela forma. ]
Categorias de segundo grau (ou de segunda ordem): Aristóteles distingue entre a substância e as
categorias de segundo grau, que são: Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Situação, Atividade e
Passividade77. Todas essas categorias são predicáveis da substância como categoria principal.
[ Decisivo para ele é a pergunta: “que tipo de unidade surge da composição dos muitos predicados
categoriais?” Por um lado categorias são conteúdos elementares (elementos primeiros) i. é, um tipo de “quid”,
um tipo de “quididade” (um algo). Por outro, o “quid” próprio é só aquele que como unidade essencial concentra
e penetra, unificando-os, todos os predicados categoriais. Assim o “ser-algo” compete em primeira linha e
absolutamente à substância, e de um modo secundário as outras categorias (Met. 1030 a 29). O primeiro “ser-
algo” pertence à substância que liga e une os outros predicados numa coisa única. ]
Categorias acidentais: Nem tudo existe com necessidade. Existe o contigente e os predicados acidentais.
O acidente encontra-se numa substância e pode ser dito dela sem que essa afirmação seja necessária. Por ex.: a
propriedade de ser branca pertence às propriedades que descrevem um ser humano, mas ela com respeito ao ser
essencial é contigente. Como é possível a predicação acidental? A predicação acidental é possível porque a
matéria tem a propriedade de ser ilimitada. Por causa dessa ilimitação, a matéria é ao mesmo tempo causa de
singularidade. O individual não pode ser definido. Se considerarmos a forma da matéria, ela reúne um círculo de
determinações que constituem a essência necessária da coisa. A forma faz da matéria uma essência determinada.
Porém, na matéria existem ainda outras possibilidades que não foram determinadas necessariamente pela forma,
na delimitação de uma essência. Precisamente, esse excesso 78 indeterminado sobre a determinação formal
necessária constitui o caráter único individual de uma coisa. À esta singularidade pertence que, o que ela é, não
é necessariamente, ou seja, é acidental, e poderia ter sido diferente, portanto contigente 79. São propriedades que
se acrescentam à sua determinação essencial e são assumidas a partir da indeterminação da matéria. A causa
material que entra em jogo em cada realização leva consigo propriedades “indeterminadas” que fundamentam a
entrada do casual e do fortuito80. Se a forma conseguisse configurar sem resíduo todas as possibilidades
indeterminadas da matéria, na efetividade de uma determinação, e penetrá-las com necessidade, então teria sido
superada toda contingência no mundo81.
Kant: Categorias do Entendimento82:
O problema do sistema categorial chega a Kant que opera uma síntese entre a “idéia platônica” e as
“categorias aristotélicas”. A idéia platônica do ser é pensada como: Mundo, Sujeito e Deus. A categoria de
substância e de causa e efeito permitem a constituição da ciência. A ciência “físico- matemática” é possível
porque é categorial. A metafísica que é “ideal” e não categorial. Não é possível como ciência, mas a ciência é
possível porque o nosso entendimento possui categorias. Metafísica para Kant é ciência dos princípios a priori
da razão. (Isso significa que a Ciência é possível por causa da Metafísica, isto é, introduz a lógica da razão do
sujeito no real).

75
O ser humano Sócrates.
76
Cada idéia é um ser independente.
77
Aristóteles chega a chamar essas categorias de segundo grau como “acidente”. Entretanto isso não significa que elas sejam
“contingentes” elas são necessárias.
78
Esse excesso de possibilidades faz com que, embora tenhamos a mesma essência, sejamos diferentes.
79
Se não fosse contingente tudo no mundo seria absolutamente necessário (determinado)
80
O casual é dado por possibilidades que foram informadas à uma essência.
81
O primeiro modo de Ser que dá inteligibilidade a todas as coisas é a substância que me dá a essência. Após vem as categorias
secundárias e em seguida as acidentais.
82
A razão clássica é metafísica, i. é, expressa e articula o ser. Daí o nome Ontologia, razão da realidade, que articula o ser. Kant chega
a conclusão que a razão não conhece o ser ( não pode pensá-lo), ou seja, a metafísica não é possível como ciência (conhecer). O ser é a
coisa em si que é impossível para a razão. Para Kant só é possível conhecer o fenômeno. A física (a ciência moderna) descobriu um
caminho novo para uma ciência...A metafísica, ao contrário, não o fez. Temos que encontrar um caminho novo para a reflexão
metafísica. Como isso é possível? Que a ciência tenha encontrado um caminho seguro é um fato. Olhando para este caminho Kant
observa que é o cientista que determina o objeto, é ele que faz as hipóteses e obriga a natureza a responder à ela. Por isso a ciência é
experimental, ela mostra as condições para a experiência. Kant tenta fazer o mesmo na filosofia. Até agora era o ser que determinava a
razão – Kant faz a “revolução copernicana” da filosofia. O homem passa a determinar o objeto. Kant diz que tudo que existe ocorre
dentro das formas a priori de espaço e tempo, contudo isso não nos dá ainda o conhecimento. É com o entendimento que são aplicadas
as categorias que vão determinar as intuições e que nos dá o objeto. E é o sujeito, o “eu penso”, que vai unificar, que vai constituir o
conhecimento do fenômeno. É o homem que produz o fenômeno, o objeto. Daí as categorias são constitutivas a priori e necessárias. A
razão, que não conhece a coisa em si, tem a faculdade de pensar as idéias Homem, Mundo e Deus. A razão pensa nestas idéias, que
regulam toda a realidade. É o âmbito do pensar.
14
Hegel83: “Ciência da Lógica”84:
A formulação mais radical do problema “a questão da predicação, está na “Ciência da Lógica” de Hegel,
como ontologia dialética absoluta85. Não depende mais do problema da adequação das categorias à experiência 86,
mas é o problema da exposição da racionalidade do real, que não depende de nossa razão contigente, mas da
razão em si mesma. Hegel pretende construir a inteligibilidade radical do real – um discurso que certamente
acontece em nossa razão, mas que pretende ser discurso da razão em si. A “Ciência da Lógica” é a ontologia de
Hegel, que retoma e transforma Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant, etc. O movimento da razão passa da noção
de Ser como essência para o conceito. Esse movimento da razão é a Idéia Absoluta87 o que eqüivale afirmar o
método absoluto, ou caminho interior da razão que sai da razão e acaba na razão88.

2.3 A Questão do Fundamento (Princípio / Arché).


O terceiro e último grande aspecto do problema ontológico é a questão do princípio. A pergunta radical
da razão (“O que é ”) e o discurso da razão (questão da predicação) sobre o real implicam em movimento de vai
e vem. A razão procura (vai) um fundamento, um princípio absoluto, um princípio último, e volta para explicar a
realidade a partir dele.

Princípio Fund.

Vai e Ser ---------------- Razão Vai e


Volta Volta
Essência Predicação

Platão:
Em Platão, esta busca assume a expressão de uma dialética ascendente, que vai do sensível até chegar a
idéia do Bem como princípio absoluto de compreensão a qual permite uma dialética descendente na qual o
princípio sem pressupostos (idéia do Bem) possibilita uma explicação da totalidade do real como participação
maior ou menor nessa idéia.

Aristóteles:
Em Aristóteles encontramos “o caminho da descoberta” (via inventionis) ou do que é inteligível para nós
(Arché lógico) e o “caminho da demonstração” (via demonstrationis) ou do que é inteligível em si. Na busca da
verdade descobrimos primeiro a verdade para nós, até atingirmos os princípios lógicos e ontológicos a partir dos
quais podemos elaborar o silogismo que produz ciência . Neste sentido a ciência é um círculo: vamos ao
princípio e dele voltamos. Hegel dirá mais tarde que a lógica é o círculo dos círculos. Essa estrutura passa a ser a
estrutura de todo pensamento científico. O método científico, de modo global, inclui sempre dois momentos: a
pesquisa [ busca do princípio ] e a explicação do real a partir dela.
O problema do princípio assumiu duas direções complementares ou correlatas que deram origem a dois
tipos de ontologia:
a) Metafísica da Ordem:
O princípio é considerado na ordem da essência e deu origem à Metafísica da Ordem. Busca-se a
essência primeira a partir da qual se organiza o mundo das essências 89. Temos dois exemplos: 1. A 4ª via
de São Tomás que trata do problema dos graus de perfeição. Nela se trata de demonstrar a existência de
Deus através dos graus de perfeição [ a começar pelos existentes no mundo ]. 2. Em Espinosa90 a ordem
aparece também na concepção de substância, atributos e modos.
b) Metafísica da Criação:
Na metafísica da criação o princípio é considerado na ordem da existência. Esta metafísica surge no
encontro da filosofia grega com a filosofia cristã. Nela trata-se do problema do “começo absoluto”. Para
83
Hegel é kantiano, mas acha Kant insuficiente. É kantiano no sentido de que é o homem que constitui o conhecimento. Não concorda
com Kant a medida que este coloca limite ao conhecimento. “O conhecimento do homem é limitado” – Kant é o filósofo dos limites.
Para Hegel colocar limites significa já tê-los ultrapassado. Não podemos nos deter nos limites, temos que voltar ao Ser. Não podemos
dizer que o ser seja incognoscível. Devo pressupor um sujeito que conhece o ser, um sujeito absoluto, um espírito absoluto onde a
razão predomina. Faz uma logicização do ser. A essência do real é racional ( a lógica), daí o predomínio da razão. Uma razão
entitativa, não vazia como em Kant. Um logos que determina o ser: “o real é racional”.
84
Se Metafísica para Hegel é “Ciência da Lógica” já está neste título de seu livro a idéia de que, para ele, Metafísica é possível como
ciência. A “coisa em si” é cognoscível mas não “de fato” (toda, inteiramente).
85
O ser para Hegel é a História. A razão é dialética, onde articula todas as razões da história. Não há para hegel idéias como em Platão,
mas a Idéia Absoluta do Todo. Dialética = articulação de cada parte no todo (círculo dos círculos); absoluta = idéia única absoluta. Para
Hegel não há Forma sem Matéria por isso ele critica o formalismo kantiano.
86
Para Kant as categorias constituíam o objeto e as experiências, e são válidas quando são aplicadas às intuições, constituindo a
experiência.
87
A idéia do Todo.
88
É o auto- desdobramento do sujeito absoluto.
89
Em Platão, por exemplo, a idéia do Bem organiza toda a realidade.
90
O panteísmo de Espinosa explica esta concepção.
15
os gregos o mundo é eterno, necessário, não contigente. Para eles não tem sentido a pergunta de Leibniz:
“Por que existe algo em lugar de nada?”. É aqui que São Tomás 91 se separa de Aristóteles. Para S. Tomás
o mundo é contigente e é criado por Deus. Se fosse necessário Deus não poderia tê-lo criado. Para
Aristóteles o Ser se diz de muitas maneiras e uma das primeiras formas de dizê-lo é a Substância.

91
Para São Tomás é em Deus que Razão e Ser se coincidem. O ser tem uma necessidade imanente. A quadratura do círculo é tirar
poder de Deus. Seria tirar a ordem e a razão. Deus segue uma necessidade intrínseca: é Onto e Logos (ser e razão) Ir contra a razão é ir
contra si mesmo.
16
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO DA METAFÍSICA CLÁSSICA COMO CIÊNCIA DO SER92
3.1 Fundamentação Platônica da Ontologia:
O que possibilita o primeiro estatuto científico é a superação da identidade parmenidiana. A identidade
parmenidiana93 sofrerá uma ruptura pela introdução do “não-ser”.

3.1.1 A aporia do “não-ser”.


A ciência procede por atribuição e negação (S é P; S não é P), i. é, avança através de um movimento
lógico que responde ao estatuto ontológico do seu objeto. A discussão dialética deverá tratar pois, do ser e do
não-ser. Mas Parmênides afirma que o ser é uno e absoluto. O ser “é”, e o “não-ser” não é. Aceitar isso significa
que toda opinião é verdadeira, que não se pode distinguir o verdadeiro do falso, porque se há identidade tudo é
verdadeiro, não há dizer falso, pois, isso seria obrigar o não-ser a ser. Com efeito, o não-ser absoluto não pode
ser atribuído, nem verbalmente, ao ser pois haveria contradição nos termos, nem à alguma coisa, pois esta
implica também o ser. Pronunciar, portanto, o não ser é nada pronunciar, porque à nada se atribui. O “não-ser” é
pois impensável e se ninguém pode pensar ou exprimir o não-ser, então também ninguém pode exprimir o erro,
e excluir a falsidade do discurso: toda opinião é verdadeira. Paradoxalmente, temos assim o relativismo
universal do sofista. O sofista para negar que o não- ser possa ser expresso de algum modo apóia-se na
correspondência de ser e dizer, e a lógica dessa negação repousa no pressuposto de Parmênides, da unidade
absoluta do ser. Portanto tudo depende desse pressuposto: a aporia do não- ser, que diz: “o não- ser não pode ser
objeto de atribuição pois se opõe à unidade do ser, e se não é objeto de atribuição, não pode haver ciência”.
Platão responde com a seguinte tese: “O não- ser também é sob um certo aspecto, e o ser por sua vez não é”
(Sofista 241e).
Prova da tese: (de que o não-ser é)
1 passo: Redução ao absurdo. Para Parmênides o ser é extendido à totalidade absoluta e como uno exclui toda a
pluralidade. O ser de Parmênides apresenta-se como uno absoluto. “Se o Ser se apresenta como Uno Absoluto,
como podemos atribuir-lhe a dupla denominação de Ser é Uno?”94 O ser Uno apresenta-se como Todo, mas se o
Ser é um todo, esse todo ou é um todo composto ou é um todo simples. Se for o primeiro, (todo composto) é
constituído de partes e então a unidade não é absoluta. Se é um todo simples nos encontramos novamente diante
de uma alternativa: ou o Todo existe e o Ser como uno absoluto é afetado pela dualidade de Ser e de Todo, ou o
Todo não existe e então não possui unidade, que é própria do Todo, e teremos então uma infinita pluralidade que
nega qualquer gênero de ser e o Ser mesmo (Sofista 244 – 245).
Conclusão95: Negar absolutamente o não-ser (a pluralidade) é destruir a unidade no plano do funcionamento de
nossa razão, i. é, é preciso quebrar a rígida imobilidade do ser parmenidiano, e conformá-lo a natureza do
discurso do logos.
2 Passo: Mostrando que o “ser inclui o movimento”
O ser inclui o movimento como possibilidade de relação no seio do ser inteligível 96. Isso será feito através da
noção de dynamis (potência de ação e paixão) que será o meio termo dialético para passar a teoria platônica do
ser. A dynamis significa poder ou ser capaz de agir ou sofrer o efeito de uma ação. Ela é pois, princípio ativo ou
passivo de relação. Os imobilistas distinguem rigorosamente entre a genesis (puro fluxo = pantha rei) e a ousia
(existência real) em todos os aspectos imutável (Sof. 248 a). Ora é evidente que pela sensação no corpo nos
comunicamos com a genesis e pelo raciocínio na alma, nos comunicamos com a ousia97 (248 e). Esta relação
(raciocínio/ousía) deve implicar uma dynamis ativa na faculdade, passiva no objeto, pois é pela dynamis que se
manifesta o ser real. Mas mesmo admitindo que a alma conheça e que a existência seja conhecida, os imobilistas
se recusam a ver neste fato uma relação de um termo ativo e de um termo passivo. Se o conhecimento é de
algum modo uma ação, a conseqüência é que o ser conhecido sofra esta ação e enquanto é conhecido, é movido
logicamente. Ora, negar que o conhecimento seja uma ação, é cair no seguinte dilema: ou “recusar ao ser na sua
totalidade o movimento e portanto, a vida, a alma e a inteligência”, ou “conceder que a vida, a alma e a
inteligência pertencem ao ser total e não obstante persistir em recusar ao ser total o movimento” (Sof. 249). A

92
Formação: processo que passa por etapas: 3 momentos: Platônico, Aristotélico, Tomista. Há uma continuidade entre eles, porém em
cada um encontramos uma unidade singular que forma diferentes aspectos da ciência do Ser.
Metafísica Clássica: Platão, Aristóteles e São Tomás não são os únicos. Encontramos também Plotino, Santo Agostinho, etc. Mas em
suas metafísicas aparecem traços fundamentais que os distinguem e norteiam todo o pensamento metafísico.
Ciência do Ser: A filosofia grega é metafísica. Não há filosofia grega sem metafísica. Por isso ou a filosofia acaba na dimensão do ser
ou deixa de ser filosofia. Neste sentido surge a ciência do Ser. Depois Kant dirá que ela é impossível como ciência. Ela continua
válida, mas não como ciência.
93
Para Parmênides a identidade Ser e Pensar é plena.
94
Dupla: 1: Ser; 2: Uno
95
O Ser é inteligível para uma Razão mas é uma Razão diferente do Ser que pode inteligi-lo. Negar o não-ser é negar a própria Razão.
96
Algo passivo de um lado e ativo de outro. O conhecer já é um tipo de movimento (lógico) da inteligência.
97
As verdades matemáticas por exemplo: 2+2=4. Isto sempre será como sempre foi. É imóvel, é idéia. A substância, aquilo que
subsiste enquanto existe, é imutável.
17
primeira hipótese é assustadora pois eqüivale a negar a realidade da inteligência, da vida e da alma. A 2ª
hipótese é absurda. Portanto, a alma, e com ela o movimento da inteligência, entra no âmbito do ser total, sob
pena de se tornar impossível todo o conhecimento98. Mas este movimento não afeta a realidade intrínseca das
idéias. Se a alma é dynamis ativa, a relação do lado das idéias é puramente lógica, i. é, não implica alteração
real. O estado ontológico das idéias é o repouso, mas sem excluir a relação lógica com a inteligência. Relação
que permite afirmar que o movimento da inteligência é algo real, pois atinge o ser das idéias.
Conclusão:
O ser total inclui o movimento99 e o repouso, mas não se identifica com nenhum deles 100. O filósofo abraça a
totalidade do ser, tanto no seu aspecto estático, quanto no seu aspecto dinâmico, e com isso Parmênides e
Heráclito são superados, i. é, salva a unidade do objeto da ciência. A definição do ser que compreende o
movimento e o repouso, está pois implicada na possibilidade mesma do conhecimento e do seu objeto. Se o ser
não incluir o movimento, a inteligência não é. Se o ser não inclui a estabilidade, o inteligível dissolve-se numa
multiplicidade infinita. Platão busca o ser não no termo estático da elaboração conceitual, mas no movimento
com que a alma conhece, i. é, no ato de julgar (juízo). Está pois quebrada a imobilidade do ser parmenidiano.
Porém com este 2 passo ainda não temos a fundamentação da ciência do ser, pois apenas foi refutado o
pressuposto dos sofistas, a identidade do ser e pensar, o Uno Absoluto. Sem essa refutação não haverá dizer
algo, porque o erro teria por objeto o não- ser, e o não- ser não é. A refutação mostrou que o não ser também é
pela inclusão do movimento no ser. Com isso aparecerá o ponto de inserção do não ser e do erro no discurso.
Temos agora que mostrar a possibilidade de atribuição lógica de dois objetos reais, de forma que exprima a sua
verdade, e assim a ciência do ser se mostrará distinta da arte da ilusão dos sofistas.

3.1.2 A aporia do Ser: (no plano lógico da afirmação, como é possível afirmar o ser?)
A pergunta agora é: “como é possível a atribuição lógica de dois objetos reais101 que exprimam o ser?” O
ser uno de Parmênides foi quebrado, ele incluiu o não-ser e tem que conformar-se à natureza do discurso, que
inclui a pluralidade de dois objetos na atribuição (no juízo). Ora, para Platão o ser é idéia. Se a idéia se exprime
no logos da razão, como é possível uma ciência do Ser, se por um lado o ser se fecha no uno absoluto do
inteligível (é), e por outro o logos aparece como múltiplo (nos dois elementos do juízo). Como legitimar o
relativo da proposição sem renunciar ao absoluto do inteligível?
Surge agora a respeito do ser uma aporia análoga à aporia do “não-ser” 102 – [ o não-ser não pode ser
objeto de predicação pois se opunha a unidade absoluta do ser. A sua refutação constitui em mostrar no ser a
dualidade de repouso e movimento. Em compensação a aporia do não ser se volta agora contra o ser. ] Se
o movimento e o repouso são contrários é evidente que a proposição “o ser é movimento e repouso” não pode
significar a identidade do ser com nenhum dos dois predicados, e não se identificando com eles o ser tem que
ser um terceiro termo (Sofista 250c), que envolve os dois predicados do exterior. Mas se o ser é exterior como
formar então um juízo que atribua ao ser o movimento e o repouso 103 [ , i. é, a pluralidade ]. Não afirma o juízo
algo absoluto (algo é assim)? Como pode o ser que é múltiplo entrar numa proposição qualquer que afirma
absolutamente? O problema (no plano lógico da afirmação) é pois, o problema geral da expressão lógica ou
predicativa do Uno e do Múltiplo.
A necessidade da identidade absoluta volta agora no plano lógico da afirmação. Em toda afirmação
afirmamos que o sujeito é uno e ao mesmo tempo o consideramos como múltiplo, p. ex., como atribuir a um
sujeito único, como “Homem”, denominações múltiplas como cor, grandeza, vícios, virtudes, etc... temos pois a
aporia do ser. A resposta imediata: é impossível que o múltiplo seja uno e que uno seja múltiplo. Portanto não se
deveria dizer: “o homem é bom”, mas somente “homem é homem” e “bom é bom” (Sofista 251b). A proposição
seria pois, pura tautologia.

Tese de Platão:
[ O ser total que compreende em si o movimento e o repouso é o ser universal, i. é, a totalidade de
tudo que participa do ser. Mas, quando o ser se exprime numa proposição trata-se da idéia do ser como tal que
aparece como termo em relação ao movimento e repouso. ] Então a tese de Platão é: “A unidade do ser [ ,
que é idéia, ] não é uma unidade indistinta, mas uma pluralidade ordenada104, ou uma unidade participada.
Assim a proposição afirmada não será uma tautologia, mas uma proposição sintética que exprime através do
dinamismo do logos, a unidade e a diversidade do ser. Portanto o Ser será afirmado pela inteligência num
“entrelaçamento” (Sofista 259e) de relações fundamentais, e o problema será como determinar estas relações.

98
Incluo no ser o não- ser - uma relação com o ser, é um tipo de ser. o ser total inclui o ser e o não- ser. A inteligência também inclui o
ser e o não- ser. O não- ser da inteligência se constitui em conhecer o ser.
99
inteligência – não ser.
100
Movimento = a inteligência. O que conhece está em movimento, mudança. O que não conhece não está em movimento, está em
repouso. Daí temos que o inteligível está em repouso porque é imutável como 2+2=4, por exemplo.
101
Dois objetos = S e P
102
A proposição que afirma o Ser já supõe a pluralidade presente em um Sujeito (S) e um Predicado (P).
103
Se o Ser se identifica com o repouso, nega-se o movimento e volta-se à Parmênides. O inverso nega o absoluto do Ser.
104
Ser, Mesmo e Outro
18
A posição de cada idéia como ser implica sua identidade consigo mesma (o mesmo), pois do contrário
não se poderia definir o objeto da inteligência (Sofista 249c). E a posição de cada idéia como determinada
perfeição inteligível [ (um ser determinado) ] implica uma relação de alteridade, que a faz ser entre os seres
(Sofista 258b), i. é, que a faz ser diferente dos outros (portanto implica o outro). Temos, pois, duas relações: de
identidade (o mesmo) e de alteridade (o outro). Ora, essas duas idéias são subsistentes, pois são determinações
ideais distintas do ser. O “mesmo” e o “outro” distinguem-se do Ser. Se o ser se identificasse com “o mesmo”
toda distinção seria abolida e cessaria a oposição de unidade e pluralidade. Se o ser se identificasse com “o
outro”, ele não compreenderia em si o absoluto (identificação consigo mesmo) e o relativo. Não haveria
relações. Assim toda idéia participa da idéia do “mesmo” (idêntica a si mesma) e da idéia do “outro” (distinta de
todas as coisas) e portanto a afirmação de qualquer idéia como Ser, implica o entrelaçamento das idéias: ser,
mesmo e outro, i. é, a lei dessa mútua participação nos revela a estrutura da afirmação do ser 105, por exemplo, na
idéia do movimento da inteligência: 1) há participação na idéia do ser, pois o movimento é algo real,
compreendido no ser total; 2) e o ser do movimento desdobra-se em duas relações, a identidade consigo mesma,
mas como o movimento não se identifica com o ser total ele implica também a alteridade, i. é, ele se distingue
dos outros seres, e enquanto distinto, o movimento é um outro. Esta relação de alteridade é real mas negativa, i.
é, o movimento “é” mas não é outro ser. Este não-ser não é, pois, o “nada” impensável de Parmênides, mas é um
“outro” no ser. Assim, por esta relação de alteridade surge em torno do núcleo permanente do ser uma infinidade
de não-ser, de modo que o Ser total aparece como uma pluralidade ordenada e não como unidade indistinta.
Temos na mútua participação (esse entrelaçamento) dessas 3 idéias ( ser, mesmo e outro), as leis que
determinam a estrutura da determinação, da afirmação do ser. A afirmação do Ser (juízo de existência) implica
necessariamente 3 princípios que exprimem ao mesmo tempo relações reais nas idéias (ordem ontológica) e leis
necessárias da afirmação objetiva (ordem lógica)106.
1. Princípio de Realização: É a relação de toda idéia à idéia do Ser107. Por esta relação toda idéia se realiza
como ser, embora não seja o ser. Não esgota a totalidade do ser.
2. Princípio da Distinção: É a relação de toda Idéia à Idéia do “outro”. Ele exprime a alteridade no ser108. É
uma relação real embora negativa. O “não ser” da alteridade é também um ser, e é afirmado pela
inteligência.
3. Princípio de Permanência: É a relação real de toda a idéia à idéia do “mesmo”, segundo a qual, cada idéia
mantém a sua identidade na comunhão e distinção com todos as outras.

3.1.3 Estrutura do Logos Verdadeiro e do Erro:109


A estrutura do mundo das idéias (ser, mesmo e outro) é que determina as ciências das idéias110, portanto a
conexão real ou comunhão das idéias deverá exprimir-se no discurso da razão e na sua expressão oral no logos,
e então se o logos é a transcrição racional das idéias, a unidade do logos será uma unidade sintética, já que o
logos é a relação mesma dos termos da proposição, e o dialético será aquele que, no desdobramento do logos,
for capaz de exprimir as conexões reais que façam parte do mundo das idéias num mundo ordenado. Qual é a
estrutura do logos verdadeiro111?
Enquanto o logos exprime um vínculo inteligível entre termos reais, ele pode ser enumerado no âmbito
do ser (também é um modo de ser) e afirmado como “gênero de ser” (Sofista 260 a). Ora, o logos entrando no
âmbito do ser, participa também do não ser (relação de alteridade). Como? [ O logos é a expressão oral do
discurso, “diálogo interior da alma consigo mesmo” (Sofista 263e) ]. O discurso que exprime uma relação
entre idéias, procede por afirmação e negação que constitui a qualidade própria do ato judicativo (S é P). Assim
o logos refere-se à realidade das idéias e exprime uma “significação acerca do ser” (Sofista 262 a). Mas o logos,
participando do ser obedece à lei geral de que o ser participa do não-ser. Ora, se o ser do logos é exprimir o ser
real, ele será um ser de significação e terá a mesma amplitude que o ser real, e então o não-ser do logos
exprimirá uma “outra” significação e portanto outro logos (verdadeiro e falso). Assim, verdadeiro e falso são
propriedades do logos e qualificam um determinado Ser e que exprime um entrelaçamento de idéias. Qual é o
logos verdadeiro?

105
das proposições afirmativas e negativas.
106
Ser/Não-Ser : leis reais; Razão : leis necessárias
107
Toda vez que afirmo algo, afirmo que algo é, digo “É”.
108
Dentro do ser, no seu horizonte é expresso também aquilo que ele não é, a alteridade.
109
O não-Ser só tem sentido no Ser. A mentira só pode ser afirmada pela verdade. Se digo “tudo é mentira” caio numa aporia (tudo
acaba sendo verdade pela negação da própria afirmativa). Ex.: “A parede é amarela”: expressão do Ser diante de uma parede amarela.
Essa afirmação do Ser implica, consequentemente na presença do não-Ser (a parede não é preta, não é verde, etc.), donde Logos
Verdadeiro./ “A parede é preta.”: expressão do não-Ser se diante daquela mesma parede amarela do exemplo anterior, donde Logos
Falso.
110
O Ser é que determina o Logos.
111
A razão é metafísica, referencial, expressa o ser. Ao expressar o ser também é um modo de ser que consiste em expressar o ser. O ser
da razão não é igual ao ser expressado mas é um ser de significação que ao afirmar um determinado logos, estará significando o
mesmo e dizendo aquilo que ele não é, Significa a si mesmo e implicitamente tudo o que eles não são.
19
O logos verdadeiro é sinal da expressão intelectual do ser, i. é, “idéia que aparece inserida num
entrelaçamento de relações reais”. O que possibilita a proposição é a idéia do ser, da qual participam todas as
idéias, mas esta participação implica uma relação de alteridade pela qual cada idéia sendo tal [ (o mesmo) ] não
é as outras. Assim a proposição afirmando o ser, afirma também o não-ser. Afirmar o que uma idéia é eqüivale a
afirmar também o que ela não é. A proposição pode, pois, assumir tanto a forma afirmativa, quanto a forma
negativa, mas é sempre a idéia do ser que lhe dá consistência e alcance ontológico. Tal é o logos verdadeiro112,
ele exprime os seres tal como eles são (Sofista 263b), i. é, traduz no discurso a densidade do ser e do não-ser, da
identidade e da alteridade, que define a estrutura real de cada idéia.
Natureza do Erro:
A proposição falsa só poderá ser entendida por relação à proposição verdadeira 113, pois ela implicará uma
relação que pretende inverter as relações implicadas na proposição verdadeira. Vejamos as relações implicadas
na proposição verdadeira.
[ Cada logos determinado (cada proposição) exprime um determinado ser, num determinado
entrelaçamento. A posição do ser implica as relações de identidade e de alteridade, e o juízo que a exprime
poderá assumir tanto a forma afirmativa enquanto exprime a identidade do ser da coisa, quanto a forma negativa
enquanto exprime a alteridade do não ser da coisa. Assim um logos determinado participa do não ser enquanto
exprime um ser de significação. Portanto o logos verdadeiro (ser de significação) exprime afirmativamente o ser
real que implica a idéia do mesmo, e implica a afirmação negativa (não ser de significação) que exprime a idéia
do outro.
O erro: Ora, o que constitui a natureza do erro é que este não ser de significação vem afirmado como ser
com relação ao mesmo sujeito do logos verdadeiro (Sofista 260c). Portanto o logos falso pretende dar ao
“outro” o significado do “idêntico”, e ao “não ser” o significado de “ser”. Daí, só o juízo pode ser falso, e o
juízo falso (não ser de significação) não é aquele nada de significação que os Sofistas demonstraram ser
absurdo, mas exprime uma conjunção arbitrária de dois termos. Pretende exprimir como ser, i. é, uma outra
significação com respeito a um determinado logos verdadeiro. ]

3.1.4. A insuficiência da Ciência Platônica do Ser:


A dialética platônica como ciência das idéias é uma ontologia. Mas a ontologia platônica justifica-se
Platão busca o ser (e sua expressão inteligível no logos) no movimento com que a alma conhece, i. é, no ato de
julgar em que ela se pronuncia114. A unidade do ser não é uma unidade de identidade (como em Parmênides),
mas uma unidade sintética de participação. Se há juízo há síntese, e se há síntese há diversidade, e se há
diversidade e síntese há participação. Assim o ser se revela como participação no ato judicativo (S é P). O juízo
revela o ser e sua estrutura relacional opera a síntese do uno e do múltiplo.
( Crítica a Platão:) Mas o juízo não é a última justificação crítica do ser. Com efeito, o ser platônico é
idéia e enquanto idéia transcende o mundo da experiência e o ato de conhecer. Assim o mesmo ato de conhecer
que nos revela no juízo uma expressão racional do ser não se justifica como tal, i. é, não é mostrado na sua
inteligibilidade como ser que descobre o ser, senão através de uma passagem ao limite na qual o movimento da
razão pensante é referida à inteligibilidade da idéia do ser.
[ O que se revela no juízo é a idéia do ser, do qual participam todas as idéias, mas a idéia do ser é
transcendente ao ato mesmo de conhecer e como tal absorve a originalidade da inteligência. ]
Assim em Platão o ser se exaure em total objetividade. O ser platônico é unívoco.
[ É o ser das idéias. O ser exprime só a posição de cada idéia, i. é, sua realização inteligível no seio
de uma multiplicidade, dentro do qual ela se define por um entrelaçamento de participação e de exclusão115. ]
O ser platônico é existencial, porém sua existência é ideal. 116
[ Para que a ciência do ser possa encontrar um estatuto adequado, 1) a reflexão teria que fazer surgir
a inteligibilidade do ser no seio mesmo da inteligência, de modo que a transcendência do ser se justifique pela
natureza do ato mesmo da inteligência117, 2) e a dialética do ser teria que mostrar-se primeiro como uma dialética
da participação do ato de conhecer118 antes de ser uma dialética da participação da idéia. ]

3.2 Fundamentação Aristotélica da Ontologia:


Aristóteles tentará superar essa insuficiência da ontologia platônica e nos dará o segundo momento
importante na elaboração científica da ontologia. Ele renunciará a idéia separada, mas não ao Ser, e se o Ser se
revela no juízo [ mas não se extrapõe numa idéia separada ]. Ele se exprimirá primeiro119 numa dialética de
participação do ato de conhecer. Temos assim uma justificação reflexiva do Ser em Aristóteles.

112
Aquele que ao afirmar uma idéia, afirma o que ela não é.
113
A mentira só existe em relação à verdade.
114
No juízo, S é P. O Ser em Platão se encontra no movimento da inteligência expresso nos juízos.
115
as relações do mesmo e do outro.
116
O que é que se afirma? Platão: existencial (ideal); Aristóteles: Essência; S.Tomás: Síntese entre Essência e Existência.
117
Ser que descobre o ser. A inteligência participa do ser.
118
O ato de conhecer participa do ser.
119
Não cronologicamente mas inteligivelmente.
20
3.2.1. O Primeiro Princípio da Ciência do Ser120:
No livro Terceiro da Metafísica, Aristóteles começa dizendo que existe uma ciência do ser que se
distingue de todas as outras ciências particulares. Com efeito, toda ciência parte de princípios, mas o princípio
primeiro é a causa da ciência e dá a razão de seu objeto. O princípio é suposto, i. é, uma hipótese e como tal
indemonstrável, do contrário cairia num círculo vicioso.
Mas se os princípios das ciências são indemonstráveis, eles poderão e deverão ser justificados pelos
princípios de uma ciência superior. Esta ciência superior é a Ciência do Ser, e seus princípios deverão dar a
razão de seu objeto. Sendo a Ciência do Ser a ciência suprema, os seus princípios terão o caráter de absoluta
inteligibilidade e de absoluta necessidade (Met. 1005 b13). Como estabelecer esses primeiros princípios?
Aristóteles chega a eles por meio de uma demonstração que reduz o adversário ao absurdo. Por esta via
Aristóteles determina o primeiro princípio da Ciência do Ser. Esse princípio é a lei de não-contradição, que
Aristóteles a formula da seguinte maneira: “O mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e sob o mesmo
respeito pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito” (Met. 1005 b19-20) 121. Esse princípio é enunciado como a
lei do Ser e do Pensar, é ontológico (é assim) e porque ontológico é lógico (há necessidade intrínseca).
A demonstração: Não há demonstração propriamente dita, porque toda demonstração já implica o
princípio. A demonstração será negativa, enquanto mostra o absurdo de sua negação. Para isso basta que o
adversário diga algo com significado. Ora, o cético quer disputar e se quer disputar quer exprimir algo com
sentido para ele e para os outros (Met. 1006 a21), do contrário teria que fechar-se no mutismo que seria negar-se
como ser pensante e tornar-se semelhante ao vegetal (Met. 1006 a14). Mas onde há significação há
determinação e unidade, e há portanto uma afirmação do ser: algo de determinado “é” (Met. 1006 a24-25).
Portanto o ceticismo universal é impossível [ obrigado a “Petitio Principii”, ] pois essa mínima determinação
ligada à primeira afirmação da inteligência impõe com rigor absoluto a lei da não-contradição. Assim o primeiro
princípio surge no ato judicativo com necessidade absoluta do mesmo movimento da inteligência.
Síntese do Uno e do Múltiplo: O juízo que revela o ser opera logicamente ao mesmo tempo a síntese do
uno e do múltiplo com um alcance ontológico. Com efeito, se no juízo há determinação, há unidade, e se há
movimento da inteligência, há multiplicidade, pluralidade de determinações. Aristóteles descobre o mesmo que
Platão, mas agora aparecerá a originalidade. Platão também descobriu no juízo a unidade sintética do uno e do
múltiplo. Mas ele projetou o Ser na objetividade total da idéia separada. Aristóteles descobre o Ser justamente
no ato do juízo, que participa do Ser, pois, se a determinação no/do objeto é uma necessidade absoluta para o ser
do ato judicativo, então o ato participa do Ser , e o Ser se torna inteligível precisamente no dinamismo intrínseco
do ato. “É impossível pensar se não se pensa algo determinado” (Met. 1006 b10). Aristóteles conserva a
determinação objetiva do ser sem hipostasiá-la na idéia separada, mas a encontra na originalidade mesma do ato
da inteligência.

(Nota explicativa:
Todo conhecimento implica numa intencionalidade do sujeito. A inteligência por abrir-se a todos os seres é de certo modo,
identificada com todos esses seres, porque no ato de conhecer – através da afirmação de um S através de um P – pode-se dizer que, de
certo modo, S torna-se P.
No fundamento último (O Bem para Platão; Primeiro Motor imóvel para Aristóteles) Ser e Razão se coincidem mas no plano
finito eles se distinguem. Através do ato da inteligência se descobre o Ser ( S é P), contudo, esse mesmo ato da inteligência já se
encontra dentro do Ser.

SER ( identidade real entre Ser e Razão = unidade)

participa participa

SERES DETERMINADOS INTELIGÊNCIA

Afirma tudo/ identidade intencional

O Ser em Platão tem existência Ideal. Em Aristóteles o Ser perde a sua existencialidade e se exaure na universalidade da Essência.
Em S.Tomás : Deus é transcendente (é condição transcendental de possibilidade) na imanência. Deus está presente no real
como condição transcendental de possibilidade. Em todo conhecimento está pressuposto o Absoluto como condição de possibilidade.
)

3.2.2 Analogia da noção de Ser:


O ser do ato da inteligência122 participa do ser mas não é o ser (não esgota o ser). Porém o ser do ato
judicativo (S é P) que pode operar a síntese do Uno e do Múltiplo, pode afirmar todos os seres. Ora, “o ser se diz
120
Primeiro passo na justificação reflexiva do Ser em Aristóteles. Esse primeiro princípio é lógico e ontológico. Aqui Aristóteles já está
superando a aporia platônica apresentada no final da exposição anterior.
121
Ex.: Não posso dizer simultaneamente “A parede é amarela” e “A parede não é amarela”.
122
A inteligência é um modo de ser que consiste em expressar o ser.
21
de muitas maneiras” (Met. 1003 a33) que não são sinônimas mas também não são radicalmente distintas (tudo
afirmamos que “é”). Isso significa o ser análogo123. O ser que se diz de muitas maneiras implica a referência a
uma unidade primeira que dá inteligibilidade aos diversos modos do ser. Por exemplo, chama-se salutar muitas
coisas: o que preserva a saúde, o que a produz, o que é sintoma da saúde, etc. A todas essas coisas se atribui o
predicado “salutar” por relação a uma unidade primeira que é a saúde, e que dá inteligibilidade as muitas coisas
salutares (Met. 1003 a33-35). Qual é a unidade primeira que dá inteligibilidade aos diversos modos de ser? Para
Aristóteles é a categoria de substância. E então se o ser é análogo, o analogado principal é a substância.
“algumas coisas são pelo fato de serem substâncias, outras por serem modificações da substância, outras por
representarem um trânsito para ela (Met. 1003 b5). Mas entre todas essas acepções do ser está claro que o ser em
sentido primeiro é “o que a coisa é”, i. é, a essência (do lado ontológico), a substância da coisa (do lado da
categoria da razão) (Met. 1028 a10). E entre todas as substâncias há uma que exerce uma verdadeira primazia,
aquela que sendo imperecível e imutável é a única substância em ato puro 124 (Met. 1071 b20). A categoria de
substância funda a unidade dos diversos aspectos do ser. Os seres se tornam inteligíveis na medida em que o ato
da inteligência afirma a unidade de seu ato e da substância. A unificação pela substância revela a identidade de
dois aspectos inteligíveis expressos pelo S e P (Sujeito/ substância ontológica e Predicado) de um juízo de
realidade, numa unidade ontológica denominada substância prima. A inteligibilidade dos seres se esgota no
conceito de substância e de suas relações. Recusando o inteligível platônico da idéia separada, Aristóteles busca
a inteligibilidade do real no quadro estático das categorias.

3.2.3 A Insuficiência da compreensão aristotélica do Ser:


A aporia da Metafísica aristotélica se reduz a aporia da substância 125. A categoria da substância é que
funda a unidade dos diversos aspectos do ser, mas se a substância é o termo de referência [ que dá unidade ao
ser ], ela só é inteligível enquanto universal. A inteligência abstrai do ser concreto, material a sua
inteligibilidade universal, a essência, e então não penetra os seres na sua existência, deixando assim escapar a
sua originalidade. Ora, se a inteligibilidade do ser é reduzida à inteligibilidade das essências esta permanece
inteligibilidade lógica incapaz de atingir a existência singular dos seres reais. Temos assim a grande
ambigüidade da metafísica de Aristóteles. Por um lado ela pretende alcançar o ser enquanto ser como objeto da
metafísica, por outro lado, ela reduz a inteligibilidade dos seres separados à inteligibilidade estática do conceito
universal de sua essência. Assim o ser aristotélico se situa nas determinações da essência. O ser se exaure na
universalidade do conceito com o qual Aristóteles não consegue fundar uma analogia dinâmica do ser que seja a
síntese de sua essência e existência. O ato judicativo participa do ser só enquanto a determinação objetiva é
exigida pelo movimento mesmo da inteligência.
Assim, se o ser platônico era existencial, mas de uma existência ideal, o ser aristotélico não supera os
limites das determinações da essência. Será portanto necessária uma atitude de síntese entre o realismo do
inteligível de Platão e a justificação reflexiva do ser de Aristóteles.

3.3. A Fundamentação Tomista da Ciência do Ser:


Santo Tomás nos dá a síntese de Platão e Aristóteles numa formulação adequada da ontologia clássica.

3.3.1 O Ser ,objeto da Inteligência:


De Platão e Aristóteles São Tomás recebe uma noção do movimento da inteligência126 em que o juízo
aparece no seu caráter sintético127 do uno e do múltiplo sem hipostasiar a idéia 128. De Aristóteles recebe a idéia
de que o objeto da inteligência é o ser, pois em toda afirmação da inteligência emerge a necessidade absoluta de
afirmar uma determinação objetiva129 introduzindo assim, o objeto afirmado na ordem do ser (Ser – mesmo –
outro). E se a inteligência afirma com necessidade uma determinação do objeto, então também ela instala-se
imediatamente no reino do ser (ela é). Portanto, no ato do juízo da inteligência revela-se o ser do objeto e o ser
da inteligência em unidade. Mas esta afirmação expontânea do ser recebe uma expressão extremamente
elaborada na doutrina da reflexão completa.130

3.3.2 A Afirmação do Ser na Reflexão Completa:


São Tomás funda a ontologia não numa operação da inteligência que se limita a abstrair do objeto uma
formalidade, ou captar a essência dos seres particulares, mas no ato judicativo cuja função própria será afirmar o
ser como existente o qual possibilitará a unidade do uno e do múltiplo.131 Ele encontra a unidade do ser não na
123
Implica a unidade dentro da diversidade do ser.
124
Primeiro motor imóvel.
125
Em torno da substância é que surgirá a insuficiência.
126
Modo como Platão descobriu o não-Ser.
127
S é P. O ato de conhecer é o ato de afirmar.
128
Platão hipostasiara a idéia, colocou-a separada.
129
Em todo ato de pensar necessariamente aparece o ser, i. é, algo de determinado é. Só posso pensar algo e esse algo é (Ser).
130
Há verdades objetivas, mas elas têm que passar pela inteligência afirmante, que reconhece a verdade em si.
131
Quando digo que algo é estou afirmando a existência, o existir da coisa. O ser em Platão afirma a idéia, em Aristóteles afirma a
substância, em S. Tomás afirma o existir.
22
unidade da substância como Aristóteles, mas na afirmação absoluta do ato puro de existir que acontece no juízo
e que torna inteligível a existência de cada ser enquanto limitado por sua essência132. E a afirmação da fonte do
todo o ser como ato puro de existir é que permite afirmar do existir como tal: “esse 133(existir) é a atualidade de
todos os atos e a perfeição das perfeições” (De Potencia q.7 a.2, ad 9m) e o ato de existir nos seres é a
intimidade mesma do ser finito que se mostra assim num supremo grau de inteligibilidade. Esta afirmação
absoluta do ato puro de existir supõe: a) uma reflexão completa da inteligência, e b) mostra a participação tanto
do ato da inteligência quanto dos seres objetivos no ser absoluto (no existir absoluto).
a) Reflexão Completa: Em todo conhecimento o sujeito cognoscente se identifica com o objeto conhecido
(intencionalmente) mas a inteligência é de certo modo tudo, pois ela está aberta a todo ser 134. A inteligência,
num primeiro momento, introduz um objeto nas condições da inteligibilidade necessária dela, mas, num
segundo momento, ela retorna ao “ser do objeto” libertando-o das condições subjetivas da assimilação 135.
Assim o juízo tem por termo a afirmação da existência do objeto. Este retorno só é possível através de uma
reflexão completa da inteligência sobre seu ato136. Esta reflexão implica por um lado, o conhecimento da
estrutura desse ato como orientada a conformar-se intencionalmente com o real, e por outro lado, o
conhecimento da mesma inteligência como princípio ativo dessa conformação. A inteligência conhece pois,
o ser do objeto na medida em que ela afirma o ser do objeto descobrindo, ao mesmo tempo, o ser da
inteligência. Esta reflexão completa é, assim, condição metafísica da afirmação do ser pela inteligência, e da
disjunção que opera entre o sujeito e o objeto.
b) Participação: Se a inteligência afirma o ser do objeto pela reflexão sobre si mesma que descobre o seu ser,
ela mostra ao mesmo tempo a sua participação na inteligência infinita137, pois afirmando o ser descobre seu
ser-relativo (se é relativo, participa). A inteligência infinita está presente na inteligência finita como princípio
de todo conhecimento intelectual, i. é, na medida em que ela possibilita na inteligência finita a afirmação do
ser. A inteligência afirma o ser do objeto na medida em que ela afirma o ato de existir limitado pela essência
desse objeto. A atribuição da existência por si infinita a um objeto finito só se justifica por essa limitação
intrínseca pela essência do objeto. Ora, isso significa o ser do objeto é afirmado enquanto participado, i. é, o
ser do objeto é inteligível na medida em que aparece com uma existência participada que exige a sua
dependência causal do Existir Subsistente.
Assim, Tomás faz convergir a dialética do ato e a dialética do objeto para o Ser em quem a intelecção e o
inteligível são o mesmo. Tomás vê formalmente constituído o objeto ontológico como ciência nesta
inteligibilidade do ser que se mostra no juízo como participação do ato e do objeto. Ora, esta inteligibilidade do
ser se mostra imediatamente transcategorial ou transcendental138 na medida em que a afirmação do ser implica a
participação tanto do ato como do objeto na Existência Infinita. Inteligível perfeito e intelecção criadora. A
ontologia é assim a ciência suprema como ciência do ser.

( Nota explicativa:
Para S.Tomás em todo juízo o que eu afirmo não é o Ser (Platão) mas o Existir.

ESSE (Ato Puro de Existir, existir sem limitações)

EXISTIR DETERMINADO OUTROS


(limitado por uma essência)
ESSÊNCIA (F+M)

Esse = condição transcendental de possibilidade de afirmação de todo existir determinado. Logo, toda afirmação depende desse Ato
Puro de Existir. Para Platão era o Ser a condição transcendental de possibilidade de todo juízo (pensar) porque só podia pensar algo e
algo que é.

Outros = há nesses outros um que é privilegiado, a saber, a Inteligência. E a Inteligência é especial porque é a única capaz de conhecer
os demais seres. Só ela pode conhecer o Ser. )

132
É no horizonte do existir que se dá a possibilidade da predicação. O existir não é predicado. Um existir determinado é um ser finito,
o existir limitado por uma essência. Sem esta determinação seria o ato puro de existir. Portanto um ser finito qualquer se torna
inteligível por uma essência determinada.
133
O ato dos atos é o esse.
134
Essa abertura significa que ela pode conhecer potencialmente tudo. Não significa que ela irá de fato conhecer tudo.
135
Só assim pode-se falar de um conhecimento científico (objetivo).
136
Refletindo sobre o ato de inteligir descubro que o ser do ato é conformar-se com o objeto.
137
Eu conheço o ser da inteligência que consiste em descobrir o ser. Se este ser não é o ser, então ele é participado.
138
Não pode ser objetivado, além de toda categoria.
23
CAPÍTULO IV
A RETOMADA DA METAFÍSICA NA FILOSOFIA MODERNA139

[ Na retomada da metafísica partimos de Kant porque ele marcou uma ruptura na “posse tranqüila da
Metafísica. Até então do ponto de vista teórico nunca fora questionada a metafísica. As críticas se desenvolviam
no interior da metafísica. Kant começa a questionar a metafísica enquanto tal. ]

4.1.1 Colocação crítica do problema:


Kant colocou de maneira crítica o problema da metafísica, e para ele o problema da metafísica que é o
problema do ser, é o problema do todo. Dirigir-se ao todo é a tarefa essencial da metafísica. Mas a pergunta de
Kant é se os objetos metafísicos da razão podem ser determinados pelo pensamento. O que ele questiona é o
modo tradicional de referir-se ao todo, i. é, a pretensão da metafísica de alcançar cientificamente,
metodicamente, seus 3 objetos: Mundo, Homem e Deus140.
A metafísica que Kant conheceu é a racionalista de Leibniz e Wolf (séc. XVIII) com sua divisão em
metafísica geral (ontologia) e metafísica especial (cosmologia, psicologia racional e teologia natural). Este
conteúdo da metafísica deixara de ser percebido na sua unidade. A pergunta que Kant coloca é já uma questão
tipicamente moderna: “Qual é a cientificidade141 possível dessa metafísica racionalista?” Ele reconhece sem
dificuldade que a metafísica foi e seguirá sendo uma disposição natural do Espírito Humano, mas o problema é
o da cientificidade possível do caminho metafísico142.
O ponto de vista que Kant adota para julgar as pretensões da razão de conhecer o todo é o da finitude
(razão finita) e o da subjetividade (sujeito). Este ponto de vista é inteiramente novo. A finitude torna-se o lugar
explícito a partir do qual o todo é visto e determinado (as determinações vão vir agora do sujeito). Este novo
ponto de vista é a conseqüência da metafísica racionalista que é resultado de uma “logicização” da metafísica
(ser- razão, há um predomínio da razão). A relação do lógico com o todo deixou de ser suficientemente
pensada143, daí o florescimento nos tempos modernos de um formalismo matemático que se apresenta como
saber que projeta a priori. Em conseqüência coloca-se a questão do conteúdo desse saber. Nesse contexto o
recurso necessário à experiência assume o sentido de uma experimentação na qual os fatos apresentados devem
permitir a verificação dos princípios nos seus conteúdos concretos. A mesma questão coloca-se então para a
metafísica: “como lhe é dado um objeto?” Essa questão é formulada por Kant com a pergunta: “Como são
possíveis os juízos sintéticos a priori?” A questão provém da compreensão do juízo na metafísica racionalista e
139
O artigo do Pe. Vaz “Ética e Razão Moderna ilustra muito bem as características da Razão Clássica e Moderna. Razão Clássica:
uma razão metafísica, i. é, o ser determina a razão que é transcendental, tem uma autoreflexividade que percebe ser determinada pelo
ser. Razão Moderna: razão independente do ser, mas não totalmente independente, e sim porque a razão deixa de ser metafísica, e
passa a ser autônoma. A partir de Kant a razão deixa de ser ontológica, uma ciência do ser, mas torna-se uma razão no horizonte da
totalidade. Temos a razão teórica e prática. Na razão teórica temos a diferenciação entre o conhecer e o pensar. Conhecer se dá através
do entendimento. O pensar é próprio da razão, onde encontramos as idéias de mundo, de homem e de Deus. São idéias formais porque
não temos acesso ao conhecimento de Deus, nem do homem e também do mundo (em si). Não podemos aplicar as categorias do
entendimento que me dão o objeto do entendimento. “Categorias sem conteúdo são vazias”. Formalmente as leis da natureza são leis
do entendimento (categorias). Não podemos neste sentido de conhecer, conhecer a Deus, pois ele teria que ser um objeto constituído
pelo sujeito.
Para Kant o ser não pode ser mais conhecido, é a coisa em si ( aquela coisa que não conhecemos) e a razão não conhece o ser.
A razão (sujeito) conhece os objetos (dados pelas categorias do entendimento). Daí não posso conhecer Deus, mas também não posso
dizer que ele não exista, pois não tenho onde confirmar isto.
Porém categorias sem intuições são vazias. Essas intuições são-nos dadas pela coisa em si, que é incognoscível, pois não
passa pelo processo do conhecer.
A razão prática (o agir / práxis) é a faculdade de agir racionalmente. Supõe uma causa que produz efeito. A causa do agir é a
vontade que produz ações (efeito) que são submetidas à lei da razão prática, a lei da liberdade (autonomia = auto nomos = lei própria),
uma lei intrínseca, liberdade para si mesmo. A razão prática está no âmbito do pensar, como também a lei da liberdade= autonomia.
Daí o imperativo categórico de Kant: Devo agir incondicionalmente com esta lei intrínseca = “age como se tua máxima possa ser
elevada a uma lei universal”. Agir autonomamente de acordo com a lei universal.
A coisa em si é incognoscível, mas tem que ser admitida. A finitude nossa é dada pela dependência dos “algo de fora” aquela
“fonte que me dá os algos de fora” mas não posso conhecê-la. Ex: Não possoconhecer o ser humano em si, posso apenas conhecer os
fenômenos. O homem em si não é conhecido mas é a fonte de onde vem o fenômeno Homem.
Kant é o filósofo dos limites, através de suas críticas apresenta os seguintes limites: Coisa em si /Fenômeno; Conhecer/Pensar e
Entendimento/Razão.
Nenhum bem é um bem humano se não for acolhido pela Boa Vontade. Esta é que é o verdadeiro bem.
140
Liberdade, Imortalidade e Deus. No fundo são a mesma coisa, porque Mundo é o mundo físico, da natureza, onde reina o
determinismo, a casualidade e portanto não há liberdade, que então não pode ser conhecida. Conhecer o sujeito em si significa dizer
que ele é imortal. Não podemos conhecer a imortalidade/ sujeito. Deus é o absoluto transcendente e portanto não podemos conhecê-lo.
141
A Física (= ciência da natureza) tanto para Kant quanto contemporaneamente continua sendo a referência, ou modelo, de ciência.
Por isso um exemplo: a tendência biologicista de algumas correntes da Psicologia.
142
A ciência moderna encontrou o caminho seguro para a cientificidade, daí chegaram a resultados relevantes, seguros e
inquestionáveis. Na metafísica ocorre o contrário. Se trata de ver qual o caminho seguro que leve a uma ciência do ser. Kant descobre
os juízos sintéticos a priori. Mas como eles são possíveis?
143
Como que a lógica (razão) se volta para o todo?
24
de seu caráter problemático. O juízo é essencialmente relação ao objeto (S é P) nexo entre a forma antecipadora
e o objeto. Daí uma série de perguntas: “como é possível a relação ao objeto quando não é meramente analítico,
a não ser por mediação de uma experiência?” Mas então como é possível a ciência universal e necessária? Como
são possíveis os juízos sintéticos a priori? Como é possível a metafísica? É aqui que se produz a revolução
copernicana. Kant apela explicitamente à finitude do conhecimento humano para responder a essa pergunta.
Kant responde: qualquer juízo sintético a priori, portanto qualquer junção a priori de um predicado a um sujeito
sinteticamente só é possível pela mediação da experiência 144. Porém a intuição genial de Kant está em ter
interpretado esta mediação pela experiência não só como um assumir um dado de fora, mas também como um
constituir o dado145. Portanto, a mediação através da experiência se dá: ou assimilando um dado ou mostrando
que certas ciências são constitutivas da experiência. O mundo das coisas não seria o que é para mim sem a
ligação que uma coisa tem com outra, e essa ligação não seria real se não existissem ciências que contivessem
juízos sintéticos a priori, os quais são condições de possibilidade para uma experiência dele (do mundo) ou
desses objetos (dados).
“As condições de possibilidade da experiência são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade dos
objetos da experiência.” (B 197). Isto é, a experiência supõe dado, mas estes sempre estão em relação com um
sujeito, isto significa, a experiência é constituída por um sujeito.
Dizer portanto, que a experiência é constituída por um sujeito transcendental significa que a experiência
é sempre relacionada a ele.

( Nota explicativa:
S é P  na metafísica clássica. O Ser se diz de muitas maneiras e a primeira é a Substância.
Sujeito ontológico: essência (substância)
Para Kant não podemos supor esse sujeito ontológico porque são pontos referenciais de seu pensamento: a finitude (limites) e
a subjetividade.
(Conhecimento
Coisa em Limite Esquema Finito) Limite
si Algo(s) SENSIBILIDADE Transcend. ENTENDI- EU RAZÃO
(imaginação MENTO PENSO
espaço tempo transcend.)
(Formas a priori)
Fonte Aplica as categorias
incognoscível (Quant.,Qualid., Rel.
e Mod.). As Catego- Sujeito que
1a. síntese( espaço- rias constituem o ob- realiza as 2
temporal). Aqui a
jeto . Aqui temos a 2 . sínteses ante-
ainda não há síntese. riores.
conhecimento

Através dessas duas primeiras sínteses aqueles algos são constituídos como objetos (fenômenos).
Razão: Idéias (regulativas, não constitutivas): Mundo, Sujeito e Deus.
A Razão quando se volta para o agir (Razão Prática) supõe a Liberdade.
A Razão não pode conhecer o Ser ( não pode constituir Deus, Sujeito e o Mundo).
O Sujeito é legislador (autonomia). Auto-legislação jurídica e moral.
Noumenon não é corretamente correspondente à coisa em si. Noumenon é do lado da Razão. Um exemplo de noumenon é a Liberdade.
fim da nota explicativa )

4.1.2 A transformação146 transcendental da Metafísica:


O que aconteceu em Kant? Lembremos o resultado anterior: todo conhecimento humano se desenvolve
no marco da subjetividade finita cuja função própria é determinar, e por isso requer para sua operação algo
determinável. A determinação como operação da subjetividade é a abertura do horizonte da objetividade em
geral147 dentro do qual o determinável como dado toma consistência, i. é, é determinado. O determinável como
“outro” da subjetividade chega a ser “objeto”. A experiência e o conhecimento, enquanto auto- realização da
subjetividade, se produzem como abertura do horizonte transcendental, que se concretiza como objetividade. O
que não entra neste horizonte não pode ser conhecido pois não chega a ser o objeto, e, portanto, permanece

144
A experiência explica o sintético. A exp. é que possibilita os juízos sintéticos.
145
Esses dados são assumidos pelas intuições espaço/ tempo, que são formas a priori da sensibilidade. É aí que acontece uma primeira
síntese (síntese temporal). Uma segunda síntese é feita pelo entendimento, pelas categorias do entendimento, que são em 4 tipos:
qualidade. quantidade, relação e modalidade (esquemas mentais do entendimento). A síntese são, então, categorias e intuições, mas
ainda não é conhecimento humano. Este se dá na organização das intuições com as categorias (não podemos separar pois intuição sem
categoria é desordem e categorias sem intuição são nulas). Feito isto tenho constituído o objeto, o dado. Isto é conhecer, que é um
fenômeno. Temos os “algos” que nos foram dados ou a coisa em si, as quais são incognoscíveis. Temos a partir daqui a distinção de
conhecer e pensar. A razão não conhece a coisa em si.
146
Na metafísica clásica o transcendental é o Ser – unum, verum et bonum
Ser --- Razão.
147
Suj.< obj. Se algo for constituído objeto o será no horizonte da objetividade em geral – o que conheço é o objeto no horizonte
aberto pela subjetividade. Só posso conhecer algo no horizonte da subjetividade, isto é, só posso conhecer algo constituído.
25
indeterminado. Portanto, se consideramos o transcendental num sentido mais ativo, temos a operação da
subjetividade. Se considerarmos o horizonte transcendental num sentido mais estático, temos o espaço mesmo
aberto, i. é, o âmbito da objetividade em geral. No seu conjunto, o acontecimento total do transcendental é a
atuação da subjetividade que inclui o outro dela (diferente da subjetividade) na circularidade de sua
automediação, de forma que a subjetividade que se produz se revela como a objetividade mesma dos objetos.
Para a subjetividade transcendental, o outro é o determinável do dado sensível, mas, designando assim o “outro”
como determinável para a subjetividade Kant remete ainda a um novo outro que não é para a subjetividade e
que podemos chamar o outro transcendental (a coisa em si). Este outro é um conceito limite do qual a
subjetividade transcendental precisa para poder se delimitar como subjetividade finita.
[ A coisa em si é primordialmente aquilo pelo qual reconhecemos e preservamos o caráter fenomenal do
nosso conhecimento (fenômeno só tem sentido se delimitado pela coisa em si). ]
Então, em que consiste a transformação transcendental da metafísica operada por Kant? A transformação
consiste em que o todo é pensado como objetividade, i. é, como autodeterminação da subjetividade e que a
objetividade assim compreendida corresponde a doutrina clássica da essência e do ser, mas reduzindo o ser ao
ponto de vista transcendental. O Ser passa a ser um predicado transcendental que determina o objeto na sua
plena objetividade, i. é, na objetividade plena do objeto constituído pelo sujeito 148. O Ser não é aquela presença
que sempre precede o nosso conhecimento e na qual está sempre arraigado mas, ao contrário, é o termo sempre
objetivo do movimento da objetividade transcendental. Ora, na medida em que transcendentaliza o Ser
reduzindo-o à objetividade, Kant encontra o limite da razão pura. A razão não pode ir além do limite da
objetividade ou da possível experiência que é constituída pelo entendimento. O máximo que a razão pode fazer é
orientar os conhecimentos assim adquiridos na direção da unidade última incondicionada, mas ela, enquanto
razão, é indeterminada porque às idéias formais da razão (Mundo, Sujeito e Deus) não corresponde nenhuma
experiência possível, pois experiência só é possível em relação à intuição de um dado sensível.
[ A razão Pura Prática:
O mesmo acontece com a razão prática. Pela lei prática a realidade objetiva das idéias é postulada. O que
é esta realidade objetiva teoricamente indeterminada mas praticamente postulada? Nós temos acesso a ela pela
liberdade que a lei moral determina mostrando-a como autodeterminada (autônoma). Pela realidade objetiva da
liberdade e pelos outros postulados podemos chegar a formar um conceito bem determinado de Deus como
aquele que possibilita a realização do supremo bem (composto de moralidade e de felicidade). Mas qual é essa
determinação de Deus? A resposta de Kant é coerente: o que dizemos de Deus pelo caminho dos postulados
práticos não alcança a sua natureza, não a determina em si 149 mas é a nós mesmos que determina e a nossa
vontade. O sentido da realidade objetiva é determinado pela subjetividade prática transcendental. Assim a
ampliação prática da razão pura não significa um acréscimo especulativo, nenhum conhecimento novo do que
Deus é realmente em si mesmo. O único que pode ser retido para o conceito determinado do ser supremo são os
predicados que correspondem à intenção prática da razão. Assim o conceito de Deus pertence à moral e toda a
teologia é simplesmente ético-teologia, predicados ontológicos são impossíveis. Assim o questão do ser
encontra-se colocada de maneira crítica em Kant. Não reduzida ao campo da subjetividade transcendental.
O dever é incondicional. Se é incondicional tem que ser possível. Logo temos que mostrar a sua
possibilidade – que são dadas pelos postulados da imortalidade e da existência da Deus. Esses postulados
iluminam o agir, não a natureza do Homem. ]

4.2 Hegel e a Dialetização da Metafísica:


Hegel é Kantiano, assume-o e o critica. Kant era o filósofo dos limites, Hegel diz que isso não se sustenta
porque se estabelecemos um limite já fomos além desse limite. Portanto podemos ao menos ter a certeza que é
cognoscível. Para Kant é o sujeito que abre o horizonte da inteligibilidade, mas esse sujeito é finito. Em Hegel
aparece o sujeito infinito, o Espírito Absoluto, e que será o horizonte da inteligibilidade. A história é
automediatividade do sujeito.
Para Hegel o horizonte de inteligibilidade continua sendo o homem ( como em Kant). Mas como a
subjetividade transcendental se delimita como finita? É através do confronto com a “coisa em si”. Hegel não
admite os limites kantianos porque a Subjetividade Transcendental passa a determinar o Ser (coisa em si), por
isso, é em Hegel é Sujeito Absoluto.
A objetividade é a automediação da subjetividade. O sujeito se auto-mediatiza. O Ser é história = auto-
desdobramento do Absoluto. O Ser para Hegel vira História. Só a racionalidade dialética pode dar conta dessa
História.
Antes o Ser determinava a Razão. Em Hegel há uma inversão. O Ser é logicizado. A Razão determina o
Ser.
4.2.1 Crítica à filosofia transcendental de Kant:
148
Ser – (coisa em si) – Objeto
Objeto ----------------- Razão.
Para Aristóteles o ser descoberto no juízo é ontológico. Agora o ser é transcendental, não ontológico, mas que possibilita o
conhecimento na forma de juízo. Este conhecimento é fenomenal.
149
Ela nos ilumina a nós mesmos, não a natureza de Deus.
26
1) Crítica à unidade sintético-originária da apercepção (do eu penso): Para Hegel, essa idéia da
unidade sintético-originária da apercepção é o princípio autêntico de toda e qualquer especulação150.
Hegel supera radicalmente o dualismo de Kant (coisa em si/fenômeno), isto é, o ponto de vista da
subjetividade e da finitude, mas supera englobando.
A filosofia de Hegel é, nesse sentido, a tentativa de conceber o real em sua totalidade 151 sempre mediada
pela subjetividade. O grande feito de Hegel consiste em integrar todo o ponto de vista de Kant, centrado no
homem como Sujeito, dentro de uma visão do real em sua totalidade. Hegel chama a atenção de que Kant não
foi até o fim de sua descoberta por deter-se no reino das “coisas-em-si” completamente incognoscível. O que se
deve compreender é a totalidade. Ela é o espaço em que nós estamos, refletimos e falamos (estamos sempre
dentro da totalidade).

Três razões dessa crítica:


a) A verdade, de modo geral, é concordância do conhecimento com o seu objeto. Mas falando da “coisa-
em-si”, Kant introduz uma inadequação de conceito e de realidade pois para que o real possa ter algum sentido
não pode pressupor atrás de si uma “coisa-em-si”. O objeto (ou o real) é aquilo que é compreendido, que chega à
sua auto-compreensão.152
Se para além do objeto tivéssemos que pressupor a “coisa-em-si”, tudo o que nós disséssemos a
respeito da verdade, seria fazer representações vazias de conteúdo. Sem uma auto-mediação, um dizer-se a si
mesmo em oposição e em separação do real.

b) Kant absolutiza a finitude do conhecimento. No momento em que a filosofia quer dar um conteúdo,
quer dizer o que é a finitude, já está implicando o conceito de infinitude, uma concepção do real em sua
totalidade que ele não explicita.153 Não é, pois, possível fugir do todo (ao todo).154
O Homem é essa totalidade, move-se dentro dela e é inútil fugir dela porque ao querer fugir dessa
totalidade nem por isso o homem foge de estar relacionado a ela dizendo-a, implicando-a.
c) A liberdade incompreendida. Hegel diz “a concepção do idealismo subjetivo (Kant) encontra sua
contradição imediata na consciência da Liberdade. Liberdade que procura dirigir-se às coisas e integrá-las em si.
Com isso se mostra que entre as coisas e o homem como Sujeito existe sempre a relação. E, por
isso, as coisas não podem estar além dele. Não pode haver uma “coisa-em-si” desconhecida.

2) Crítica aos juízos sintéticos à priori: [ louva e critica. ] Hegel vê na idéia dos juízos sintéticos à
priori a idéia verdadeira da Razão, mas acrescenta que Kant não desenvolveu essa idéia até o fim. Em Kant os
juízos sintéticos à priori era um problema do conhecimento, isto é, tratava-se de fundamentar as ciências que
incluem esses juízos. Hegel desloca este problema do plano da Crítica do Conhecimento para o plano
especulativo da compreensão da realidade, pois para ele não é possível representar-se um Sujeito pensante que
enuncia juízos sintéticos à priori sem permanecer numa consideração unilateral e que a respeito deles se coloque
o problema de sua comprovação (dos juízos sintéticos à priori). Pois a totalidade do real existe sempre de
antemão. Conhecer/Pensar é já sempre estar dentro do real 155, é a automanifestação do real”. O real é uma
totalidade que contém essencialmente a auto-mediação e o problema dos juízos sintéticos à priori é entender o
real ou o absoluto como Ur-teie (juízo. Ur = parte originária), isto é, como algo que não é abstrato, mas como
Sujeito que se divide, se exterioriza, se auto-diferencia e, nesse processo, se encontra em sua totalidade plena. O
problema dos juízos sintéticos à priori foi elevado ao plano de uma compreensão do real como síntese e auto-
divisão de todas as diferenças a partir de uma identidade originária (Ur-teie). Assim à pergunta, à questão formal
e abstrata de como fundamentar o juízo sintético à priori, não pode obter resposta antes de se reconduzir o
problema ao plano em que ele surge, no seu sentido verdadeiro. Não se trata, portanto, da possibilidade de haver
juízo sintético a priori, mas trata-se de perguntar como compreendemos o real, como o real em sua totalidade
“chega à sua racionalidade”.

3) Crítica às antinomias da Razão 156: Hegel diz que Kant tem uma intuição muito profunda porque o
real não é algo indiferente mas uma totalidade que é síntese de opostos. E ele chama a atenção para o aspecto
dialético de Kant. Louva-o por ter descoberto as antinomias da Razão. Essa descoberta significa um progresso
profundo na compreensão do real porque o real é um processo dialético. Mas ele critica Kant por ter colocado as
antinomias na Razão separada do real. A Razão para Kant é a suprema unificação do conhecimento mas apenas
150
plano filosófico por excelência em Hegel. É essa a atividade da Razão.
151
Sem os limites kantianos.
152
Movimento do real = mov. do conceito ( o real é racional).
153
O finito é uma determinação do infinito.
154
Em qualquer necessidade há uma manifestação do absoluto. Ex.: até mesmo a operação 2+2 = 4 tem uma necessidade que já supõe
o absoluto.
155
Para perguntar pelo todo já tenho que estar dentro dele.
156
Para Hegel, Kant consideraria a realidade como antinômica já que a Razão não pode cair em contradição.
27
do ponto de vista regulativo. Kant encontra as antinomias só na Razão em vez de encontrá-las na própria
realidade. O que Hegel tenta fazer é compreender o próprio real em sua totalidade numa perspectiva dialética.

4.2.2 A proposição especulativa:


Qual é pois o ponto de vista do qual Hegel se coloca? O ponto de vista da ciência é o especulativo. O
ponto de vista de Hegel é o da absolutidade ( não é concebida como separada, mas como transcendente) porém a
palavra absoluto não pode ser entendida de modo abstrato ( fora do real, do contingente), isto é, que excluísse o
movimento, relatividade, história, etc. A característica de Hegel é de ter levantado, por um lado, a pretensão de
uma compreensão total do real, e por outro lado, de ter apresentado esta concepção como infinitamente
detalhada, infinitamente mediada. O absoluto não é algo consistente em si mesmo com a exclusão da realidade
concreta (histórica) mas o absoluto é o processo da realidade total que inclui todos esses aspectos particulares.
Hegel compreendeu o Absoluto como uma mediação do conceito. O conceito não significa algo como uma
identidade subjetiva, mas significa a totalidade de um fenômeno, a auto-expressão de uma totalidade. Neste
sentido, o conceito nunca será algo estático, mas sempre um movimento, passando de uma compreensão para
outra. A expressão lingüística que caracteriza tudo isso é a proposição especulativa157.
( Mas para entender o que é a Proposição Especulativa:)

- Proposição empírica:
Uma proposição é sempre uma predicação de algo sobre algo ( S (algo) é P (algo)). O primeiro algo (S) é
sempre um substrato (aquilo que está na base) e do qual vai ser predicado um segundo algo. Na perspectiva
empírica a proposição é sempre atribuir predicados a um substrato, predicados esses que provém da experiência
casual, isto é, do encontro casual que o Sujeito falante tem com esse substrato.
Predicados são atribuídos a Sujeito de maneira extrínseca. Não se diz o que seja o Sujeito como tal. Tudo
isso se reduziria a um amontoado de Predicados sem conexão interna porque provindos de uma experiência
casual cujo nexo interno (S e P) não é compreendido. (Sujeito-coisa)

- Proposição metafísica:
Esta consiste em considerar o Sujeito-coisa num plano filosófico, metafísico, isto é, no plano que faz do
Sujeito-coisa algo consistente: O Sujeito de uma enunciação que tem a pretensão de ser verdadeira para todos.
Na perspectivia metafísica aquilo a que se dirigem as proposições é sempre um Sujeito ontológico. E a
metafísica consiste na atribuição de predicados metafísicos a este sujeito. Predicados que em parte são casuais e
em parte já são vistos com uma certa conexão interna. Na “Enciclopédia das ciências filosóficas” Hegel trata do
conceito de lógica ( “As diferentes posições do pensamento em relação à objetividade”). Nesse texto o ponto de
vista da Metafísica é o plano do entendimento e não o plano da Razão, isto é, aquele plano do qual a filosofia
pensa poder atingir a verdade das coisas através da atribuição de Predicados a elas. Hegel diz “esta ciência
considera as determinações do pensamento como determinações fundamentais das coisas mesmas.”
Quanto a isso, Hegel louva muito essa Metafísica e diz que ela está acima do filosofar da crítica
posterior. ( Sujeito-ontológico)
A crítica que Hegel faz à metafísica é que através das atribuições de Predicados à coisa, ela crê ser a
coisa conhecida no que ela mesma é realmente. Certamente essa metafísica fazia uma suposição inicial de que as
categorias do pensamento são também categorias das coisas. Porém a relação entre o Sujeito e as Categorias,
segundo Hegel, ainda é entendida de uma maneira exterior.
A proposição metafísica atribui Predicados a um Sujeito ontológico. A coisa aqui não é mais a coisa do
plano empírico-casual mas é um Sujeito situado já no plano da compreensão inteligível. Porém, a relação entre o
Sujeito e Predicado ainda é exterior.

- Proposição transcendental:
A perspectiva transcendental sempre se centra em torno do Sujeito humano. É a perspectiva que procura
descobrir a implicação que tem o Sujeito humano no pensar filosófico. Essa implicação é absolutamente
determinante para o conhecimento filosófico em Kant.
Também no plano transcendental o conhecimento se processa através do juízo (S,P e cópula). Mas a
ligação entre o Sujeito e Predicado passa pela automediação do Sujeito mesmo. O Sujeito ao qual se atribui uma
determinada coisa é o Sujeito que se situa num plano superficial porque está tendo como seu pressuposto o
Sujeito Transcendental que se automediatiza através do juízo no qual acontece a atribuição de um Predicado a
um Sujeito.
Em Kant a desc (?) do Sujeito humano é pensada em toda a sua amplidão, em todo o seu significado, na
constituição do conhecimento das coisas. O Sujeito é um ponto que atua através de funções chamadas categorias

157
Não é uma proposição S é P, mas é uma proposição de proposições, a expressão do todo. Uma proposição empírica, por exemplo,
liga o predicado ao sujeito de modo puramente acidental, como em “a árvore é composta de ramos...” O sujeito é um sujeito coisa –
algo extrínseco.
28
e com isso constitui o conhecimento objetivo. Com Kant a Subjetividade entrou no plano do conhecimento. E
desde então, não podemos refletir sem levar em conta o papel do homem como Sujeito cognoscente.
Porém, para Hegel, o homem é totalidade. Não existe um Sujeito isolado que depois entrasse em relação
com um mundo de coisas, mas o que há é o mundo da linguagem. Esse mundo é uma totalidade, isto é, já é o
homem em relação com as coisas.
A realidade não é determinada só pelo Sujeito nem só pelas coisas mas realidade, enfim, tudo que é
categoria, e o que emerge no encontro (homem com as coisas) na totalidade dada e não uma totalidade que o
homem chegaria se quisesse ou não.
O homem está sempre mediado pelas coisas e as coisas sempre mediadas pelo homem. (Sujeito-
transcendental)

- Proposição Especulativa:
Temos de novo o Sujeito e o Predicado e a cópula. Mas o essencial da proposição especulativa consiste
em ver que o Predicado é realmente a mediação do Sujeito.
Se perguntássemos que é o Sujeito teríamos que responder: é o Predicado. Porém, não ligados de modo
exterior, mas de modo que o Predicado é automediação mesma do Sujeito. No início o Sujeito é sempre uma
abstração. A proposição não consiste em atribuir nem empiricamente, nem metafisicamente, nem
transcendentalmente Predicados a um Sujeito, mas é o movimento imanente da própria coisa.
Podemos caracterizar todo o sistema de Hegel como uma única grande proposição especulativa, que
seria a Idéia , a Natureza, o Espírito. A Idéia se mediatiza através da Natureza chegando ao Espírito. Aqui a
cópula158 não seria uma proposição mas um silogismo como Hegel diz no fim da “Enciclopédia”. Mas o
silogismo não é outra coisa senão a continuação, concretização maior de uma proposição. Nesse sentido, a
proposição especulativa seria a grande proposição que é constituída de inumeráveis proposições particulares.

4.2.3 As três partes da Lógica:


O método dialético: Na enciclopédia Hegel distingue 3 aspectos de logicidade:
a) o aspecto do abstrato ou do entendimento,
b) o aspecto da dialética ou da razão negativa,
c) o aspecto especulativo ou da razão positiva.
Não são três partes da Lógica, mas três momentos de toda e qualquer realidade lógica. O ser é
inteligível, o real é racional.
a)O Abstrato: são os conceitos tomados em si mesmos (na sua fixidez), em sua “determinidade” sem
mostrar a necessidade de serem relacionados com outro.159
b)O Dialético: é o momento da negação dessa determinidade dos conceitos ou das categorias, por ex., se
digo “finito” e paro, estou no primeiro plano do entendimento, mas se me elevo ao plano da razão o conceito de
“finito” me leva ao seu contrário, o “infinito”.
c)O Especulativo: é o momento da afirmação. Momento que capta a unidade dos dois anteriores. Temos
uma negação (dialético), a negação da negação ( = afirmação. Especulativo) e neste terceiro momento atingimos
a coisa de que se trata, a unidade dos dois.
Não existe um método formalmente estabelecido que fosse aplicável ao real. O método é a alma
imanente do real. Na Fenomenologia do Espírito, por ex., o método é a alma imanente da experiência que a
consciência faz, na Filosofia Política o método dialético é a alma imanente da auto-realização da liberdade, na
Lógica (Ciência da Lógica) o método é a alma imanente da categorialidade, da discursividade que se auto-
sistematiza enquanto se auto-compreende.
Determinidade das coisas = entendimento
Relacionalidade das coisas = razão.
A compreensão do real inclui determinidades e relacionalidades.
[ A relacionalidade é a determinidade das coisas completamente correspondida. Ex.: Qual o verdadeiro em
si da criatura? É tanto mais em si quanto mais relacionado estiver com o todo. ]
No parágrafo 18 da Lógica encontramos: “A idéia se revela como sendo o pensar puro e simplesmente
idêntico consigo”.
1. A idéia é primeiro um universal do qual de outro modo nunca se sai. É o pensamento que seja o que
for, e pense o que pensar, se afirma e se confirma sempre como pensamento e permanece idêntico a si
mesmo. A Idéia tomada nesta pureza e nesta abstração pelas quais é pura inteligibilidade que se capta
como inteligibilidade pura é o objeto da “Ciência da Lógica”. Esta é pois a ciência da Idéia como
Logos Universal ou da Idéia “em-si e para-si” como duplo matiz de abstração ou pureza mas também
de totalidade e de ausência de unilateralidade implicado na expressão “em e para-si”.
2. Mas de fato nessa definição da Idéia como pensar idêntico consigo há algo mais do que a simples
universalidade lógica do pensamento, pois em Hegel só há afirmação verdadeira pelo caminho da

158
O é do juízo S é P.
159
ex.: Se digo “Ser”, é o mais abstrato de tudo, porque é o todo. O Ser em sua fixidez é abstrato.
29
negação. Assim a identidade consigo do pensamento não é outra coisa senão a negação de sua
diferença consigo. Na expressão “idêntico consigo” (e especialmente na preposição “com”) encontra-
se já conotado um “processo” de identificação consigo, pois, se o pensamento é idêntico a si, isso
implica que difere de si e nega essa diferença. A diferença de si a si implicada por essa identificação
consigo, constitui a Idéia como Natureza e funda a Filosofia da Natureza, que é a ciência da Idéia em
“seu ser outro”, i. é, da Idéia na sua alteridade, em sua diferença consigo, em seu distanciamento de
si, em sua particularidade.
3. E de novo na expressão “idêntico consigo” que implica um processo de diferenciação (Idéia e
Natureza) está contida a identificação consigo do pensamento, ato implicado no si da expressão
“idêntico consigo” que supõe o processo de retorno a si fora da diferença, e de coincidência ativa
consigo. Este processo de retorno e de coincidência ativa é constitutivo da Idéia como Espírito e por
isso funda a Filosofia do Espírito, que é a ciência da Idéia, não mais na sua universalidade lógica,
nem na sua particularidade natural, mas na sua singularidade espiritual160 do ato que dispõe
soberanamente de si. Então lógica (U), natureza (P), e espírito (S) são três momentos de uma única idéia
absoluta.161

160
em Hegel o singular é o universal concreto.
161
A Idéia absoluta em Hegel não existe separada (como em Kant com o conceito (idéia) correspondente de Deus).
Idéia: Ciência da Lógica; Natureza: Ciência da Natureza; Espírito: Filosofia do Espírito
Paralelo: Kant = Mundo, Sujeito e Deus // Hegel = Natureza, Espírito e Idéia.
A Natureza tem uma racionalidade mas ela não tem consciência de ter tal racionalidade. A Natureza não é consciente mas é logos.
Essa racionalidade da Natureza só pode ser explicitada por uma consciência, ou seja, pelo homem. A Natureza é o outro do pensar
(Aristóteles: não posso pensar sem pensar algo). O pensar para Hegel sabe que pensa e por isso é consciente, por isso dispõe
soberanamente de si.
Platão = Ser ; Hegel = Natureza, Espírito e Idéia = logicização do Ser
30

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