Você está na página 1de 3

HISTÓRIA DA QUÍMICA

O Alquimista eo
Paulo Alves Porto

A tendência atual entre os historiadores da ciência é tentar trabalho se baseia na tradução inglesa
compreender as idéias dos personagens do passado dentro do de 1674, A New light of alchymy. Nos
contexto em que foram elaboradas. A procura de ‘homens adiante de doze tratados que constituem a primei-
seu tempo’, que teriam vislumbrado conceitos somente possíveis ra parte desse livro, Sendivogius discu-
anos mais tarde, pode levar a interpretações distorcidas dos fatos te o que chamaríamos de uma ‘teoria
históricos. Este artigo procura mostrar, por meio de um exemplo da matéria’. Seu objetivo seria ajudar
tomado à alquimia do século XVII, como a história da química já foi filósofos ou alquimistas a entender o
palco para esse tipo de interpretação equivocada. segredo da pedra filosofal — cuja pre-
paração e virtudes também são expli-
alquimia, Michael Sendivogius, pedra filosofal, salitre cadas, ainda que obscuramente.
Sendivogius afirmava que todos os
corpos proviriam de ‘sementes’. Assim,
caso a ‘semente’ contida em um

28 Das Lições do Quarto Anno 1 pedaço de ouro pudesse germinar


adequadamente, teríamos a multiplica-
Tendo no Anno precedente aprendido os Estudantes Filosofos as verdades ção do ouro. Para ele, “o ouro vulgar é
de facto, que o Magisterio da Experiencia tem mostrado nos Corpos, como uma erva sem semente; quando
considerados como massas homogeneas; e aplicados mecanicamente a obrar ele amadurece, produz a semente”.
huns sobre os outros: passarão no quarto Anno a estudar as verdades, que Contudo, o ouro normalmente não
a mesma Experiencia tem mostrado sobre as partes, de que se compõem os consegue amadurecer devido à ‘crue-
mesmos Corpos; e sobre os Fenomenos, que resultam da applicação íntima, za’ do ar, que não tem o ‘calor’ sufici-
e contacto das mesmas partes; Fenomenos, que se não podem explicar pelas ente para levar adiante o processo. Ele
Leis ordinarias da Mecanica; e que constituem huma Sciencia á parte. [...] fez uma analogia: existem laranjeiras
Essa Sciencia tem o nome de Chymica, e he a Terceira Parte da Filosofia na Polônia que florescem e dão frutos
Natural. [...] Porém antes de nas Lições desta Sciencia, dará o Lente hum porque nesse país há calor suficiente;
Resumo abbreviado da Historia della: Mostrando a origem que teve; os mas se forem plantadas em lugares
progressos que fez; as revoluções; os sucessos: a decadencia; e o descredito, mais frios nunca darão frutos. Assim,
em que esteve pelos mysterios obscuros dos Alchymistas, e pelas pertensões para que o ouro também dê frutos e
frivolas da Pedra filosofal, e outros segredos, cuja invenção se propunham sementes é preciso que o ‘artífice’ —
homens de maior temeridade, que prudencia. por meio do fogo — ajude a natureza
naquilo que ela não é capaz de fazer
sozinha (Sendivogius, 1674, p. 90).

S
e olharmos estes excertos dos mostra como maneiras diferentes de O primeiro passo para permitir o
estatutos da Universidade de enxergar as substâncias e transforma- amadurecimento do ouro seria ‘abrir
Coimbra, editados em 1772, ções químicas podem ser facilitadoras seus poros’, dissolvendo-o com uma
por ocasião de sua reforma, transcritos para que entendamos a história da ‘água’ muito especial: ‘a água que não
acima na linguagem de então, e que ciência. molha as mãos’. Dez partes dela
também muito influíram no ensino no Michael Sendziwoj (1566-1636) — deveriam ser misturadas a uma parte
Brasil, veremos o que se recomendava cujo nome foi latinizado para Sendivo- de ‘ouro vivo’, e a mistura aquecida até
aos professores, quando iniciavam o gius — descendia de família nobre a ‘resolução’ do corpo do ouro,
ensino de química. polonesa. Trabalhou como diplomata obtendo-se a ‘umidade radical’ dos
Aqui, ao contrário do que se pro- para Rodolfo II da Boêmia — que tinha metais. A este produto se deveria adi-
punha em Coimbra então, ao analisar grande interesse por alquimia — e em cionar ‘água de salitre’ e aquecer por
um aspecto da obra do alquimista outras cortes européias2. um longo período — quando se obser-
polonês Michael Sendivogius, neste Sua obra mais famosa foi Novum variam mudanças de cor. Então —
número de Química Nova na Escola se lumen chymicum (1604); o presente quando a parte líquida da mistura fos-

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Alquimia e o Salitre N° 8, NOVEMBRO 1998


se já capaz de ‘tingir’ um pedaço de vogius descreveu com detalhes a de Sendivogius era sua crença numa
ferro — se deveria adicionar o ‘leite da obtenção de ácido nítrico a partir de analogia entre o macrocosmo (o Uni-
terra’, um líquido capaz de ‘calcinar salitre (Szydlo, 1993, p. 131-133). Após verso como um todo) e o microcosmo
ouro’. Sendivogius concluiu: “Até aqui um período prolongado de aqueci- (o ser humano) — um tema então mui-
chegou minha experiência; nada mais mento nas condições que descreve- to comum, cuja origem remonta à Anti-
posso fazer, nada mais encontrei” — mos, é possível que o ouro se solubi- guidade, e que foi de extrema impor-
estando finalizada a preparação da lize, ao menos em parte. É claro que a tância na obra de Paracelso (Pagel,
pedra filosofal3. solução assim obtida seria capaz de 1982, p. 214-215), um dos autores
É tentador, para um químico moder- ‘tingir’ o ferro e outros metais — pela mais influentes sobre Sendivogius. As
no, investigar se Sendivogius está se deposição de ouro metálico em sua su- partes do Universo seriam interligadas,
referindo a operações perfície. O último passo e as analogias e simetrias poderiam ser
reais de laboratório, O salitre de menciona a adição de observadas em todo lugar. Existiria, por
com substâncias quí- Sendivogius corres- uma ‘água’ capaz de exemplo, uma simetria entre o Sol e o
micas concretas, ou ponde ao que hoje ‘calcinar o ouro’ — que ‘fogo central’ residente no interior da
se está fazendo um chamamos de poderia ser a ‘água- Terra:
relato meramente ale- oxigênio régia’, cuja preparação,
“... o Sol é o centro entre as
górico. Embora sua segundo Bugaj, Sendi-
esferas dos planetas, e a partir
linguagem muitas vezes seja cifrada, vogius também conhecia.
deste centro dos céus, [o Sol]
os indícios são suficientes para afirmar Mesmo que nossas especulações
irradia seu calor para baixo, por
que há um componente concreto de acerca das substâncias e processos
meio de seu movimento. Assim
operações de laboratório em seus rela- descritos por Sendivogius estejam cor-
também no centro da Terra há o
tos. Não podemos nos esquecer, retas, não podemos permitir que elas
sol da Terra, que devido a seu
entretanto, que Sendivogius via as nos levem além do que realmente
movimento perpétuo envia seu
substâncias e suas transformações podem. Ele atribuía importância funda-
calor, ou raios, para cima, rumo
com olhos bem diferentes dos de um mental ao salitre – o qual aparece sob
à superfície da Terra.” (Sendivo-
químico moderno. É preciso, pois, mui- várias denominações no texto: chalybs, 29
gius, 1674, p. 33)
to cuidado para não atribuir a Sendi- aço, ímã, água que não molha as mãos
vogius conclusões a que ele nunca e ar, entre outras. Ao analisar as idéias Essa simetria seria fundamental
poderia ter chegado. de Sendivogius sobre o salitre, o histo- para a geração dos seres. O calor e
O historiador polonês Roman Bugaj riador polonês Zbigniew Szydlo escre- as emanações provenientes de cada
afirma que Sendivogius escreveu, além veu: um desses sóis, ao se encontrarem,
do livro já mencionado, um tratado gerariam a vida. Haveria também uma
“A implicação aqui é que há
intitulado Processus super sal centrale, simetria entre o mar ligado ao sol cen-
um componente do ar que é ne-
de 1598 (Szydlo, 1993, p. 145). Essa tral (isto é, as águas comuns da terra)
cessário à vida. O fato de que
obra revela que a misteriosa ‘água que e o mar ligado ao Sol celestial — que
esse componente do ar pode
não molha as mãos’ seria o salitre, que seria a atmosfera:
ser obtido no estado sólido (isto
os químicos atuais preferem chamar
é, fixo) está de acordo com o “Assim como o sol central tem
nitrato de potássio. Assim, podemos
que sabemos hoje: o compo- o seu mar, e águas cruas, que
especular que o primeiro passo para
nente do ar que mantém a vida, são perceptíveis, também o Sol
a obtenção da pedra filosofal, no
que é o oxigênio, está combina- celestial tem o seu mar, e águas
processo descrito, seria atacar o ‘ouro
4 do quimicamente no salitre, ou sutis, que não são perceptíveis.
vivo’ com salitre em fusão . Lembre-
nitrato de potássio.” (Szydlo, Na superfície [da Terra] os raios
mos que o fogo seria o meio privilegia-
1993, p. 138) de um se unem aos raios do
do para fazer o que a natureza não
outro e produzem flores e todas
consegue sozinha; daí a necessidade Outro historiador, Wlodzimierz
as outras coisas. Portanto,
de altas temperaturas. Outra passa- Hubicki, foi ainda mais enfático:
quando se formam as chuvas,
gem de Novum lumen chymicum leva
“O salitre de Sendivogius cor- estas recebem do ar aquele po-
a crer que a expressão ‘ouro vivo’ se
responde ao que hoje chama- der da vida e o juntam com o
refere ao ouro antes de ser fundido e
mos de oxigênio.” (Hubicki, salitre da terra...” (Sendivogius,
trabalhado pelo metalurgista (Sendivo-
1964, p. 830) 1674, p. 44)
gius, 1674, p. 10).
O passo seguinte da receita de Seria mesmo possível dizer que há Sendivogius revela a existência de
Sendivogius fala na adição de ‘água correspondência entre a idéia de salitre outra analogia fundamental: entre o
de salitre’. Trata-se, provavelmente, do para Sendivogius e o conceito moder- ‘poder da vida’ residente no ar e
ácido obtido do salitre, atualmente no de oxigênio? Analisemos mais deti- governado pelo Sol celestial e o ‘salitre
chamado ácido nítrico. Essa interpre- damente o significado de ‘salitre’ para da terra’. Esse salitre seria capaz de
tação novamente é apoiada por um o alquimista polonês. atrair o ‘poder da vida’, assim como o
trecho do Processus..., no qual Sendi- Um ponto fundamental na filosofia ímã é capaz de atrair o ferro; por isso

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Alquimia e o Salitre N° 8, NOVEMBRO 1998


Sendivogius chamou o salitre, cifrada- penetrando, alterando, trazendo o ‘salitre da terra’ e o ‘salitre aéreo’ de
mente, de ‘ímã’ ou ‘chalybs’ (aço). Sen- consigo o alimento que multipli- Sendivogius é a mesma que existe en-
divogius deu ainda outro exemplo: o ca.” (Sendivogius, 1674, p. 98) tre nossos nitrato de potássio e oxigê-
‘poder atrativo’ do salitre da terra se nio, diante de tudo o que foi exposto,
A partir daí, podemos entender me-
parece com o do ‘tártaro calcinado’, não nos parece adequado.
lhor o ‘mecanismo’ proposto para se
que atrai o ar para si mas o transforma
fazer a pedra filosofal. Segundo Sendi- Paulo Alves Porto, bacharel e licenciado em
em água. Ele provavelmente estava se
vogius, o ar é volátil, mas poderia ser química pela USP, mestre e doutor em comunicação e
referindo ao carbonato de potássio ani- semiótica pela PUC-SP na área de história da ciência,
fixado; e quando fixo, seria capaz de
dro, que é deliqüescente5. Portanto, ao Integra o Centro Simão Mathias de Estudos em História
penetrar qualquer corpo. Além disso, da Ciência (Cesima), da PUC - São Paulo, e o Grupo
se encontrarem os raios do Sol celes-
o ar seria a matriz das sementes de de Pesquisa em Educação Química (GEPEQ), do IQ -
tial com o calor da terra, haveria a multi-
todas as coisas. Assim, conforme vi- USP. e-mail: palporto@quim.iq.usp.br
plicação do salitre da terra, devido à
mos, pelos raios do sol o ar seria fixado
assimilação do ‘poder da vida’ existen-
na forma de salitre, que seria capaz de
te no ar: Notas
‘penetrar’ o corpo do ouro. Ao fazer
“...quanto mais abundante- isso, encontrar-se-ia com o ‘ar conge- 1. O texto transcrito está na parte
mente os raios do Sol incidem lado’ dentro do ouro, isto é, com a referente à química dos mencionados
sobre ele, maior é a quantidade matriz natural da semente do ouro. Por- estatutos da Universidade de Coimbra.
de salitre formada. Assim, maior tanto, o salitre serviria como uma Foi feita uma transliteração para o
é a quantidade de grãos que extensão dessa matriz, permitindo a alfabeto atual, sem fazer as atualiza-
crescem e se multiplicam [sobre multiplicação da semente do ouro — ções na ortografia e na pontuação,
a terra] — e isto se faz diaria- ou seja, a transmutação. Para Sendi- bastante diferente da atual. Este esta-
mente.” (Sendivogius, 1674, p. vogius, a ‘umidade’ (ou salitre) que dis- tuto foi publicado fac-similarmente
45) solve o ouro seria também a origem [Estatutos da Universidade de Coimbra
de todas as coisas. (1772). Livro III. Coimbra: Grafica de
Em seguida, Sendivogius evocou
30 Eis porque vemos com reservas Coimbra, 1992, p. 250-254.] quando
vários nomes para o objeto que ele
afirmações do tipo: “o salitre de Sendi- das comemorações do bicentenário da
estava discutindo, entre os quais: “sali-
vogius corresponde ao nosso oxigê- reforma da Universidade.
tre residente no mar do mundo” e
nio”. A análise de um conceito e de 2. Para dados biográficos, vide:
“nossa água que não molha as mãos,
outro, quando feita dentro de seus res- Hubicki, 1968 e 1978; Szydlo, 1993.
sem a qual nenhum mortal pode viver,
pectivos contextos, revela mais diferen- 3. Essa ‘receita’ foi compilada de
e sem a qual nada cresce ou é gerado
ças fundamentais que semelhanças — três passagens em que Sendivogius
no mundo inteiro”. Sendivogius reafir-
visto que os referenciais teóricos e a descreve a preparação da pedra filo-
mava, dessa forma, a onipresença de
cosmovisão de Sendivogius são sofal (Sendivogius, 1674, p. 28-31, 42-
seu ‘salitre’ — fosse na forma de ‘po-
completamente distintos dos nossos. 43).
der da vida’ existente no ar, fosse fixo
Mesmo supondo que as especulações 4. Sendivogius diz que a mistura,
na terra ou em qualquer outro corpo:
que fizemos a respeito dos reagentes levada ao fogo, se transformaria em um
“Em resumo, toda a estrutura utilizados por Sendivogius estejam ‘licor seco’ (Sendivogius, 1674, p. 30-
do mundo é preservada pelo ar. certas — isto é, que o que ele chama 31). Ele poderia estar se referindo a um
Assim como os animais, o ho- de salitre em suas receitas seja a líquido sem água, como o salitre
mem morre se você lhe retira o mesma substância concreta que fundido.
ar. Nada cresceria no mundo, se chamamos de nitrato de potássio —, 5. Conforme a interpretação de
não houvesse um poder do ar afirmar que a relação que existe entre Szydlo, 1993, p. 136.

Referências bibliográficas theory, its origin and significance in the theory. Ambix, v. 40, p. 129-146, 1993.
history of chemistry. In: Actes du X.
HUBICKI, Wlodzimierz. Michael Para saber mais
Congrès International d’Histoire des
Sendivogius. In: C.C. Gillispie (Ed.) ALFONSO-GOLDFARB, A.M. O
Sciences, v. 2. Paris: Hermann, 1964.
Dictionary of Scientific Biography, v. PAGEL, Walter. Paracelsus. 2. ed. que é história da ciência. São Paulo:
12. Nova York: Charles Scribner’s Basiléia: Karger, 1982. Brasiliense, 1994.
Sons, 1978. p. 306-308. SENDIVOGIUS, Michael. A new light _____. Da alquimia à química. São
_____. The True Life of Michael of alchymy, Tradução por: John French. Paulo: Nova Stella–Edusp, 1987.
Sendivogius. In Actes du XIe. Congrès Londres: A. Clark, for Tho. Williams, PORTO, P. A. Van Helmont e o con-
International d’Histoire des Sciences, 1674. ceito de gás — química e medicina
vol. 4, Varsóvia: 1968, pp. 31-35. SZYDLO, Zbigniew. The alchemy of no século XVII. São Paulo: Educ–
_____. Michael Sendivogius’s Michael Sendivogius: his central nitre Edusp, 1995.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Alquimia e o Salitre N° 8, NOVEMBRO 1998

Você também pode gostar