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ARTIGO - CEMARX - As Vozes Da Violência Na Cultura Brasileira Contemporânea PDF
ARTIGO - CEMARX - As Vozes Da Violência Na Cultura Brasileira Contemporânea PDF
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)RTIGOS As vozes da violência
na cultura brasileira
contemporânea
*
TÂNIA PELEGRINI
Cultura e violência
Refletir sobre a cultura brasileira hoje exige enfrentar um aparentemente
novo desafio: de que maneira analisar a tradução da matéria bruta presente em
alguns de seus produtos, como a ficção literária e a cinematográfica? Na literatura,
proliferam textos já genericamente rotulados como marginais, que ancoram seu
viés de revolta e denúncia num desfile de atrocidades, sevícias e escatologia. Exis-
tiria alguma ligação entre a narrativa literária e a narrativa audiovisual que elabora
matéria desse mesmo tipo? E, por fim, qual o sentido e a função social dessa pro-
dução?
Há quem afirme que a caracterização da cultura brasileira contemporânea
como um todo, em vista disso, exige novos modelos de análise capazes de estimu-
lar novas leituras e interpretações. Nessa linha, este ensaio pretende apresentar
uma possibilidade de leitura de alguns desses textos, vistos em conjunto, compa-
rando versões literárias e cinematográficas, no intuito de neles acompanhar deter-
*
Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos.
1
Deixo de lado a já chamada “literatura prisional” ou “relatos do cárcere”, conjunto de
textos produzidos por prisioneiros, que tem conseguido edição e crítica favorável ou, pelo
menos, interessada. Veja-se, por exemplo, o no. 59 da revista Cult, a eles dedicada.
Representação e violência
É inegável que a violência, por qualquer ângulo que se olhe, surge como
constitutiva da cultura brasileira, como um elemento fundador a partir do qual se
organiza a própria ordem social e, como conseqüência, a experiência criativa e a
expressão simbólica, aliás, como acontece com a maior parte das culturas de extra-
ção colonial. Nesse sentido, a história brasileira, transposta em temas literários,
comporta uma violência de múltiplos matizes, tons e semitons, que pode ser en-
contrada assim desde as origens, tanto em prosa quanto em poesia: a conquista, a
ocupação, a colonização, o aniquilamento dos índios, a escravidão, as lutas pela
independência, a formação das cidades e dos latifúndios, os processos de industri-
alização, o imperialismo, as ditaduras... Todos esses temas estão divididos, grosso
modo, na já clássica nomenclatura literatura urbana e literatura regional (que, hoje,
generalizando, também pode ser aplicada às narrativas audiovisuais). Segundo
Scholhamer2, ao longo da lenta e gradativa transformação da estrutura socio-
econômica e demográfica do país, testemunha-se o surgimento de uma literatura
sempre em busca de uma expressão adequada à complexidade de uma experiência
que cresce tendo como pano de fundo a violência.
Tomando-se esse processo em linhas gerais, pode-se tomar, em princípio, a
literatura regionalista, que, desde o seu desejo inicial de traçar um mapa do país e
conquistar seu território, até o presente, vem representando a violência ainda arti-
culada a uma realidade social no qual, na verdade, vigora um sistema simbólico de
honra e vingança individuais, uma vez que a lei ainda não pode garantir a igualda-
de entre os sujeitos. Sobretudo no século XX, “o tema principal do regionalismo
pode ser visto, dessa forma, como o confronto entre um sistema global de justiça
moderno e sistemas locais de normatização social regulados pelos códigos de hon-
ra, vingança e retaliação”.
2
Scholhamer, Karl Eric. “Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira”. In:
Pereira, Carlos Alberto M. (org.) Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000,
p.236-259. Uma versão modificada do mesmo artigo foi publicada em Rocha, J. C. de
Castro (org.). Nenhum Brasil existe. Rio de Janeiro: UniverCidade Ed., Topbooks e Ed. da
UERJ, 2004, com o título “O caso Fonseca: a procura do real”.
3
Publicado em 1992.
7
Azevedo, Aluísio de. O cortiço. São Paulo: Ática, 1979, p. 29.
8
Não incluo aqui a literatura desses tempos, que brota das lutas contra a repressão, pois se
trata de tópico específico que extrapola o tema deste ensaio e a respeito do qual já existe
ampla bibliografia.
9
Tomo de empréstimo o difundido conceito de Zuenir Ventura, “cidade partida”.
10
Ver: Durigan, Jesus A . “João Antônio e a ciranda da malandragem”. In: Schwarz, Roberto
(org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 214-219.
As “cidades de Deus”
Parece que a questão primeira a ser tratada, com relação aos textos escolhi-
dos, mantendo a perspectiva do que até aqui se expôs, é a da possibilidade e legiti-
midade de sua representação hoje, ou seja, até que ponto e de que maneira a situ-
ação concreta e imediata da exclusão e da violência, com todas as suas implicações
e nuanças, pode ser representada sem resvalar para o artificial, para o convencional
ou para o ambíguo, tornando-se mais um elemento de folclore ou de exotismo,
presa fácil de manipulação da mídia e do mercado. O que está em jogo nesse novo
realismo feroz – neo-realismo, hiper-realismo ou ultra-realismo, como já foi cha-
mado – não é apenas o modo como as coisas são construídas enquanto linguagem,
mas também o que elas são; sendo um estilo, esse realismo está funcionalmente
ligado a um objetivo cuja referência é concreta; assim, o objetivo da mimesis aqui
tanto pode ser a indignação, a denúncia, o protesto, a contestação, quanto a
constatação desinteressada ou interesseira e, na pior das hipóteses, cínica.
14
Op. cit., p. 245.
15
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 2a Edição revista pelo autor. Todas as citações
farão referência esta edição, menor que a anterior, contendo algumas modificações: “Uma
das mudanças mais perceptíveis da nova versão é o nome dos protagonistas. Zé Pequeno
virou Zé Miúdo, Bené virou Pardalzinho e Cabeleira , Inferninho. ‘Quis manter a distân-
cia entre a literatura e o cinema’, conta Lins”. “Romance de Paulo Lins ganha versão mais
enxuta”. In: O Estado de S. Paulo, 30/08/02.
16
O termo tem uma definição própria, que convém assinalar, pois não parece corresponder
ao universo representado: “Como observa Paulo Lins, no lugar das favelas (antigos simila-
res das senzalas) surgem as neofavelas (atuais similares dos quilombos) com voz própria,
beleza própria, inserção no mercado cultural e alto poder agregador.” Hollanda, Heloísa
Buarque de. “O declínio do efeito ‘cidade partida’”. In: Carioquice, no 1. Rio de Janeiro,
Instituto Cravo Alvim, jun. 2004, pp. 68-71.
17
Não por acaso, a denominação dos espaços cria “não-lugares”: “Cidade de Deus (...)
renomeou o charco: Lá em Cima, Lá na Frente, Lá Embaixo, Lá do Outro Lado do Rio e
Os Apês” (p. 16).
18
Um exemplo: “Os bandidos seguiram a ordem de Belzebu. Novamente o policial e o
sargento entreolharam-se. Combinaram tudo ali sem fazer uso da palavra. O primeiro tiro
da pistola calibre 45 do sargento atravessou a mão esquerda de Pelé e alojou-se em sua
nuca. A rajada de metralhadora de Belzebu rasgou o corpo de Pará. Um pequeno grupo de
pessoas tentou socorrê-los, porém Belzebu proibiu com outra rajada de metralhadora, desta
vez para o alto. Aproximou-se dos corpos e desfechou os tiros de misericórdia” (p. 94).
19
Schwarz, Roberto. “Cidade de Deus”. In: Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, pp.163-171.
20
Um estudo minucioso da linguagem – que não é nosso objetivo aqui - vai revelar, inclu-
sive, “oscilações” de registro (do “culto” ao “popular”) e de tipos de discurso, evidenciando
essas questões, apontadas já por vários críticos.
21
“Na corda bamba de sólidas verdades científicas com suas bússolas objetivas e no doce
embalo das licenças poéticas do ficcional e do subjetivo, os etnógrafos sempre se dividiram
entre o rigor da objetividade e a pura poesia da narrativa literária”. Zaluar, Alba. “’Cidade
de Deus’ revela talento de escritor”. In: O Estado de S. Paulo, 23/08/97.
22
Candido, Antonio. Op.cit., p. 213.
23
“Era bicho-solto necessitado de dinheiro rápido; naquela situação assaltaria qualquer
um, em qualquer lugar e hora, porque tinha disponibilidade para encarar quem se metesse
a besta, para trocar tiro com a polícia e para o caralho a quatro. Tudo o que desejava na vida
um dia conseguiria com as próprias mãos e com muita atitude de sujeito homem, macho
até dizer chega. Cidade de Deus, cit., p. 42. “Realmente, tinha medo de amanhecer com a
boca cheia de formiga, mas virar otário na construção civil, jamais. Essa onda de comer de
marmita, pegar ônibus lotado pra ser tratado que nem cachorro pelo patrão, não, isso
não.” .Idem, p. 117.
24
“Os playbas têm mais oportunidade, mas na minha opinião, acho que temos que vencê-
los com nossa criatividade, tá ligado? Temos que destruir os filhos da puta com o que a
gente tem de melhor, o nosso dom, mano (...) Mostra aqui, quem tem o dom de ler um
livro, quem aqui você viu dizendo que tá tentando melhorar, que tá estudando em casa,
que tá se aplicando? Ninguém, mano, pois pra sair no final de semana e beber todo mundo
sai; mas pra estudar aí é embaçado, e o futuro fica mais pra frente, bem mais pra frente
daqui”. Ferréz, Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000, p.118. Todas as cita-
ções referem-se a essa edição.
25
Sob outro ponto de vista, João Cezar de Castro Rocha também analisa essa mudança de
foco em “Dialética da marginalidade”. In: Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 29/04/2004.
26
Utilizo livremente, como empréstimo, uma categoria que pertence ao universo literário,
aqui bem enquadrada, a meu ver, pois existe um narrador de fato.
27
“Cinema: revelação e engano”. In: Novaes, Adauto (org.) O olhar. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1997, p. 369.
28
“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens”. Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997, p. 14.
29
Utilizo os conceitos de Walter Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Os “carandirus”
Com Estação Carandiru, o livro, e Carandiru, o filme, estabelecem-se rela-
ções diferentes, pois o primeiro não se pretende ficcional. Efetivamente, não se
30
Ver: Bentes, Ivana. “’Cidade de Deus promove turismo no inferno”. In: O Estado de
S.Paulo, 31/08/02; Orichio, Luiz Zanin. “’Cidade de Deus’ faz espetáculo da violência”.
In: O Estado de S.Paulo, 30/08/02; Sousa, Ana Paula. “A cosmética da fome”.In: Carta
Capital, 28/08/02.
31
“Cidade de Deus: dilemas da narrativa fílmica sobre o povo brasileiro numa perspectiva
historiográfica”. In: Malatian, Teresa (org.). As múltiplas dimensões da política e da narrati-
va. São Paulo, Olho d’água/Capes, 2004. pp. 219-232.
32
Op. cit., p.11.
33
“Em cativeiro, os homens, como os demais grandes primatas (orangotangos,
gorilas,chimpanzés e bonobos), criam novas regras de comportamento com o objetivo de
preservar a integridade do grupo. Esse processo adaptativo é regido por um código penal
não escrito, como na tradição anglo-saxônica, cujas leis são aplicadas com extremo rigor:
Entre nós, um crime jamais prescreve, doutor.” Idem, p. 10.
34
Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J.Zahar Editor, 1993. Vol 2: “For-
mação do Estado e Civilização”, p. 198.
35
“Passamos vários anos neste lugar; tem que zelar como se fosse sua casa. Eu limpo hoje e
só serei encarregado daqui a 26 dias. Não teria desculpa para não fazer no maior capricho.
Outra, também, é que não ia dar certo. Querer bancar o espertinho entre nós, tudo malan-
dro, ó, nunca tem final feliz.” Estação Carandiru. Cit., p. 42.
36
“Dessa forma, os ladrões tornam explícito que seu código penal é implacável quando as
vítimas são eles próprios. – Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, só que
quando a gente pega é problema”. Idem, p. 43.
37
“Essa aura de respeito sincero em torno da figura do médico que lhes trazia uma peque-
na ajuda exaltou em mim o senso de responsabilidade em relação a eles. Com mais de vinte
anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi
com mais clareza o impacto da presença do médico no imaginário humano, um dos mis-
térios da minha profissão”. Idem, p. 75.
38
“Ouvi apenas os presos. Segundo eles, tudo aconteceu como está relatado a seguir”.
Idem, p. 285.
A derrota da transgressão
No mesmo ensaio anteriormente citado, Antonio Candido pondera, a res-
peito da “nova narrativa brasileira”, que “nos vemos lançados numa ficção sem
parâmetros críticos de julgamento. Não se cogita mais de produzir (nem de usar
como categorias) a Beleza, a Graça, a Emoção, a Simetria, a Harmonia. O que vale
39
Xavier, Ismail. Op. cit., p. 372.
40
Candido, A . Op. cit., p. 214.
41
Adorno, Theodor W. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: Os Pensa-
dores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 269 - 273.