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À SOMBRA DESTA MANGUEIRA

Freire,Paulo
Edit. Olho Dágua, julho 2001,S.P.

Este livro se estrutura de forma a expressar a visão de mundo de Paulo Freire, a política
em geral e os valores por ele, claramente, professados durante a sua vida de educador.
A sua mensagem vai brotando de valores e conceitos que, ora se antepõem - como
solidão e comunhão, suporte e mundo, esquerdas e direita, neoliberais e progressistas,
seriedade e alegria – ora se conjugam – como esperança, dialogicidade e solidariedade.
Com base no conceito de solidariedade humana, Paulo Freire vai discorrer sobre a
substantividade do estar com. Estar no mundo implica, necessariamente, estar com o
mundo e com os outros. É dentro do contexto histórico social, cultural que se faz a
comunicação e a intercomunicação, sendo que estas asseguram a compreensão do
mundo.
Conforme Freire, o animal se adapta a seu suporte, enquanto o homem, com a invenção
de técnicas e instrumentos, integra-se a seu contexto, compreendendo o mundo,
intervindo nele e conseqüentemente aperfeiçoando-o.
A relação que se estabelece entre homem e mundo é dialética, e não mecanicista – em
que a consciência não passa de mero reflexo da materialidade objetiva; e não é também
idealista – em que a consciência é “a fazedora arbitrária do mundo” (p. 21). As relações
entre consciência e mundo são mútuas, naturalmente dialéticas.
O fato do ser humano estar no e com o mundo implica em domínio de processos de
refletir, avaliar, programar, investigar, transformar, mas sempre à luz de fins, valores
propostos. Nesse sentido, ele não é somente razão, é um ser humano completo, “um ser
que faz coisas, sabe e ignora, fala, teme e se aventura, sonha e ama, tem raiva e se
encanta. Um ser que se recusa a aceitar a condição de mero objeto, que não baixa a
cabeça diante do indiscutível poder acumulado pela tecnologia porque, sabendo-a
produção humana, não aceita que ela seja, em si, má”(p. 22).
A História não é uma entidade superior que nos possui(visão idealista) e nem pode ser
reduzida a objeto de nossa manipulação (visão mecanicista).Ela é posssibilidade e não
determinismo. O futuro se constitui como uma necessidade histórica, implica em
continuidade. A esperança é uma exigência ontológica dos seres humanos, é
possibilidade que precisamos criar, dentro das condições históricas existentes.
Freire, autodenominando-se “otimista crítico” e não “ingênuo”, critica afirmações de
intelectuais considerados por ele fatalistas, de que nada se consegue fazer frente às
conseqüências nefastas da globalização da economia atual no mundo, de que não podem
ser transpostos os obstáculos que esse novo tempo coloca à libertação.
A esperança de libertação implica em lutar para consegui-la, dentro de condições
historicamente favoráveis. Nesse contexto, a educação toma importância se se
caracteriza pela decisão, pela ruptura, pela opção, pela ética. Falamos em ética à medida
que somos ser da decisão, ruptura.
Freire critica a posição neoliberal pragmática que reforça a pseudo-neutralidade da prática
educativa, a despolitização da educação ( “... que sempre interessou às classes
dominantes”, p. 29) : esta teria que ver com a formação técnica, científica e profissional do
educando, formação entendida como treinamento. Para ele, a prática educativa deve
basear-se na leitura do contexto e do mundo, não só na leitura estrita da palavra e do
texto.

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Por outro lado, ele considera conservadora a prática educativa que nega o preparo
técnico do educando e trabalha apenas o aspecto político da educação. Para ele, não é
possível separar o domínio técnico da compreensão política, um é tão importante para o
profissional quanto o outro o é para o cidadão. A formação técnica tem sentido se se
completar nas perguntas: “A favor de quê? A favor de quem? Contra quê se trabalha?”
O autor combate também as políticas públicas do país por serem assistencialistas: elas
naturalizam as deficiências, reforçam a visão fatalista do mundo; teriam que expressar a
importância do social, do econômico, do político.
O sonho de Freire é que as classes populares tenham voz, participem do cenário
histórico, político e social brasileiro. Para a superação dos horrores a que estão sujeitas
(fome, miséria, autoritarismo, violência), há necessidade de “decisão política, mobilização
popular, organização, intervenção política e liderança lúcida, democrática esperançosa,
coerente, tolerante” (p. 36).
Ao falar sobre tolerância, considera que esta comporta um aprendizado, que envolve
outras pessoas: os diferentes e os antagônicos. A tolerância é a maneira aberta de se
conviver com o diferente, aprendendo com ele a lutar melhor contra o antagônico. A
coerência entre o que se diz e o que se faz determina os limites da tolerância e impede
que ela se perca na conivência.
Concretizando isso no campo político, não se pode adotar quaisquer meios em função
dos fins que se quer atingir, ou seja, fazer acordos estranhos com forças antagônicas.” Se
sou progressista, não posso juntar às minhas as forças de quem nega o direito de voz às
classes populares. Impõe-se a coligação entre forças que, mesmo diferentes, não se
antagonizam e com as quais se pode partilhar a responsabilidade de governar” (p. 48).
Na compreensão da História como possibilidade, é preciso que nós construamos o
amanhã a partir da transformação do hoje; é preciso reinventar o mundo. Nessa tarefa a
educação é indispensável para formar homens e mulheres que respondam rapidamente
às exigências do mundo atual, desenvolvendo capacidades de constatar, comparar, optar
e agir. Mas Freire aponta um equívoco de estudiosos que ele diz pós-modernos: como
essa educação dará conta de produzir uma criticidade tão especializada e que não decida
só em favor da verdade dos opressores, mas também contemple a verdade dos fracos? A
crua realidade nos mostra que apesar do avanço tecnológico, não desapareceu a
dominação da maioria por poucos. Freire ressalta que há necessidade de muito trabalho
sério, pesquisa cuidadosa e a reflexão crítica sobre o poder dominante, cuja dimensão
cresce a olhos vistos neste mundo globalizante. E que a atividade dos intelectuais
progressistas consiste em considerar esses obstáculos como desafios, buscando
respostas adequadas.
Freire ilustra a gestão Erundina (1989-92), na Secretaria Municipal de Educação, como
uma amostra do esforço “politicamente sério, democrático e cientificamente fundado” (p.
45), em prol de uma educação de mais qualidade para as crianças e jovens do município,
mostrando que várias áreas trabalhadas obtiveram bons resultados, como a formação
permanente dos educadores, a reorientação curricular, a maneira democrática de gerir a
secretaria através de colegiados, o incremento da atuação das instâncias colegiadas
dentro das escolas (conselhos escolares, grêmios estudantis), além de outros aspectos.
Nesta experiência de gestão democrática, ele ressalta a importância do aprendizado de
virtudes como a humildade, a perseverança quando se está determinado a lutar por um
sonho político, e também em cultivar uma paciência impaciente, à medida que insistimos
na possibilidade de mudar, apesar das dificuldades encontradas.
Para Paulo Freire, a tarefa de refazer o mundo cabe à juventude, tal como ele a entende
nesta obra analisada. Ele considera que somos velhos ou moços em função da forma
como pensamos o mundo, da nossa disponibilidade e procura constante pelo saber, do

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cultivo da esperança de um mundo melhor, que faz com que estejamos prontos para
recomeçar sempre que for preciso, à luz dos nossos propósitos eticamente válidos e
politicamente necessários.
É essa contínua necessidade de compreender as coisas e os homens para explicá-los, de
buscar a razão dos fatos que Freire denomina curiosidade, sem a qual não haveria
atividade gnosiológica, que é a expressão concreta da possibilidade que temos de
conhecer o mundo.
Ressalta-se aí a importância do espaço escolar enquanto aberto para o exercício da
curiosidade, seja ela epistemológica (ao considerarmos o estudo da ciência e seus
métodos), seja estética.
Ele considera que a prática educativa progressista pode deteriorar-se, se não for facilitado
o exercício da curiosidade epistemológica, pois este é que nos leva a aproximarmos
gradativa e metodicamente, com maior exatidão, do objeto dessa curiosidade.
Na educação democrática, é fundamental que professores e alunos tenham uma postura
dialógica, isto é, aberta, curiosa, investigativa. Não cabem nem o autoritarismo, nem a
licenciosidade.
As manifestações autoritárias do professor – uso repressivo de sua autoridade, controle
exagerado sobre os educandos, falta de respeito a sua criatividade, a sua identidade
cultural, seus modos de advertir, censurar, sua metodologia que faz com que os alunos
memorizem mecanicamente os conteúdos (“professor bancário”) – tudo isso vai
aniquilando a alegria do educando de descobrir o mundo; vai impedindo que ele apreenda
criticamente esse mundo, que ele aperfeiçoe sua reflexão.
É muito criticada a posição dos pós-modernos, para quem a educação não deve
ultrapassar os domínios técnico e administrativo considerados como neutros:
padronização de conteúdo, transmissão de “sabedoria de resultados”. Dentro dessa visão
política, a formação dos professores obedecerá à prática educativa bancária; cabe
treiná-los e não formá-los, para que se adaptem à realidade sem questioná-la. A relação
dialógica não é considerada como vital para desenvolver o saber teórico-prático da
realidade concreta em que os professores trabalham. À pedagogia das perguntas se
contrapõe a pedagogia das respostas.
Após esse comentário sintético sobre os valores e conceitos básicos tratados por Freire
nesta sua obra, cabe-nos abordar, ainda que de modo não aprofundado, alguns conceitos
que ele expressa ao tratar da nossa conjuntura política.
É muito contundente sua crítica às posições neoliberais, dentre as quais, a relacionada à
responsabilidade mínima ou até ausência do Estado em tocar como prioridade as políticas
públicas de educação, saúde, moradia. Mas isso não quer dizer que ele não defenda que
é preciso haver uma nova compreensão das tarefas e limites do Estado. “O Estado não
pode ser tão liberal quanto os liberais gostariam que ele fosse. Cabe a partidos
progressistas lutar a favor do desenvolvimento econômico, da limitação do tamanho do
Estado. Este nem pode ser um senhor todo-poderoso, nem um lacaio cumpridor das
ordens dos que vivem bem. Os projetos de desenvolvimento econômico não podem
excluir mulheres e homens da História, em nome de nenhum fatalismo” (p. 22).
Freire ressalta que as esquerdas têm que lutar pela unidade na diversidade para vencer
a direita, e assim democratizar a sociedade. Considera que a unidade das esquerdas é
sempre difícil e trabalhosa. Enquanto a direita só se sectariza contra o pensamento e a
prática progressista, as esquerdas se sectarizam entre si mesmas. Ele afirma que as
“doenças” da esquerda - o sectarismo raivoso, o messianismo autoritário e a arrogância
transbordante - são limitantes, pois se caracterizam pela imposição de suas verdades. O
sectarismo é cego, antidemocrático. O radicalismo, ao contrário, implica em se estar

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aberto para o diálogo, para a revisão de posições, mas preservando a ética, sem
transgredi-la.
Para o autor, há necessidade dos partidos de esquerda aprenderem a reler a realidade, a
praticarem a tolerância, tanto dentro dos seus partidos quanto nas relações dos partidos
com a sociedade civil. Considerando-se que fazer política é tarefa de mulheres e homens
concretos, com qualidades e limitações, um partido progressista precisa cultivar a ética da
humildade, tolerância, perseverança. Precisa perseguir a coerência e o rigor ético nos
seus pronunciamentos, anúncios e denúncias. Precisa lutar pela solidariedade diante da
negação dos direitos mínimos da maioria de seu povo.

Obs.: Nesta obra de Paulo Freire consta o prefácio de Ladislau Dowbor, doutor em
Ciências Econômicas, que expressa a preocupação com o humano frente a tantas
inovações tecnológicas da modernidade.
O livro também possui no fim, notas complementares, elaboradas por Ana Maria Araújo
Freire, que esclarecem várias referências feitas pelo autor, quanto ao aspecto histórico e
cultural brasileiro.

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