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UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


CENTRO UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA
CURSO DE LETRAS

ITAMARA PEREIRA DA SILVA

A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NA PERPECTIVA DO SILÊNCIO EM MADONA


DOS PÁRAMOS DE RICARDO GUIHERME DICKE.

Barra do Garças-MT

2014
UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CENTRO UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA
CURSO DE LETRAS

ITAMARA PEREIRA DA SILVA

A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NA PERPECTIVA DO SILÊNCIO EM MADONA


DOS PÁRAMOS DE RICARDO GUIHERME DICKE.

Monografia apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Licenciatura em Letras, pela
Universidade Federal de Mato Grosso, sob a orientação
da professora Drª Gilvone Furtado Miguel.

Barra do Garças-MT

2014
FICHA DE APROVAÇÃO

ITAMARA PEREIRA DA SILVA

A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NA PERPECTIVA DO SILÊNCIO EM MADONA


DOS PÁRAMOS DE RICARDO GUIHERME DICKE.

Monografia apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Licenciatura em Letras, pela
Universidade Federal de Mato Grosso, sob a orientação
da professora Drª Gilvone Furtado Miguel.

Aprovada em _______ de Março de 2014

BANCA EXAMINADORA

Professora Drª Gilvone Furtado Miguel

Universidade Federal de Mato Grosso

Professora Drª Águeda Borges da Cruz

Universidade Federal de Mato Grosso

Professor Me.Adenil da Costa Claro

Universidade Federal de Mato Grosso


AGRADEDIMENTOS

À minha querida professora Gilvone Furtado Miguel, pela competência e delicadeza com
que me conduziu nesta pesquisa. Me sinto honrada pela grande contribuição na
constituição deste trabalho.

À professora Águeda Borges da Cruz pelas indicações de leituras e ideias norteadoras


que encaminharam nessa pesquisa

A todos que acreditaram e me incentivaram neste trabalho


“Quem não sabe o valor do silêncio, não sabe o valor da
palavra. Tem valor a palavra, mas o valor do silêncio é
maior. Palavra é boa, mas o silêncio é melhor. Palavra é
de prata, silêncio e de ouro.”

(Melânio Cajabi).
RESUMO

A obra Madona do Páramos de Ricardo Guilherme Dicke expande a capacidade de


interpretação de seus leitores ao proporcionar uma viagem em seu campo literário
regionalista com ótica para outras áreas do conhecimento. A perspectiva principal
adotada por essa pesquisa foi o intercâmbio entre Literatura e Análise do Discurso, com
visões concisas para outros campos metodológicos. A partir da Teoria do Silêncio de Eni
Orlandi, na tentativa de explicar a constituição de significados em dois personagens
relevantes do romance: Moça Sem Nome e Melânio Cajabi. Impelidos no desejo de
desenredar a estrutura formadora e constitutiva desses personagens, tanto na formação
discursiva da personagem feminina e seus papéis históricos sociais em contrapartida ao
movimento modernista literário, como também nos sentidos polissêmicos concedidos a
esses personagens através do silêncio . Desenvolvemos uma pesquisa na qual
embasados em princípios teórico relacionados com a temática ,entrecruzando desta
forma a literatura histórica e suas imbricações com temáticas universalistas unidas pela
capacidade criadora original de Ricardo Guilherme Dicke.

Palavras-Chave: Madona dos Páramos, Silêncio, Moça Sem Nome, Melãnio Cajabi
Literatura, Análise do Discurso.
ABSTRACT

The Madonna of the work of Ricardo Guilherme Dicke Bad lands expands the play
ability of your readers by providing a trip in his regionalist literary field optics to other areas
of knowledge. The main perspective adopted for this research was the exchange between
literature and discourse analysis, with concise visions for other methodological fields.
From the theory of Eni Orlandi Silence, in an attempt to explain the formation of meanings
in two important characters of the novel: Girl Without Name and Melanio Cajabi, and
pressed the desire to unravel the formative and constitutive structure of these
characters,both in the discursive formation the female character and its social historical
roles in contrast to the literary modernista movement, but also in polysemic meanings
given to these characters through silence. Developed a survey in which grounded in
theoretical principles related to the theme crisscrossing this way the histórica lliterature
and its overlaps with universal themes united by the original creative capacity of Ricardo
Guilherme Dicke.

Keywords: Madonna of the Bad lands,Silence, Girl Without Name, Melanio Cajabi
Literature,Discourse Analysis.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................

1 A MULHER NO ROMANCE TRADICIONAL.........................................................

1.1 Mudanças no papel feminino................................................................................

1.2 O silêncio feminino como instrumento de poder .................................................

1.3 O silêncio como fronteira.......................................................................................

1.4 A estrutura do nome (Moça Sem Nome)..............................................................

2 O SILÊNCIO NO PERSONAGEM MELÂNIO CAJABI..............................................

2.1.A Construção do personagem Melânio Cajabi como Alter Ego do autor............

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................
INTRODUÇÃO

A obra Madona dos Páramos de Ricardo Guilherme Dicke, permite aos seus
leitores adentrar as mais diversas possibilidades interpretativas nos entremeios da
literatura, história, psicanálise, cultura, sociedade e outros. Essas possibilidades
peculiares do universo literário de Dicke torna a obra um desafio instigante.

Em suma a obra traz a história de doze personagens ,que são eles :José
Gomes,Garci,Babalão Nazareno, Bebiano Flor, Canguçu, Chico Inglaterra, Caveira,
Pedro Peba, Urutu, Lopes Mango, Melânio Cajabi ,delinquentes foragidos da cadeia de
Cuiabá e que estão à procura da terra prometida ,a Figueira Mãe, no decorrer de sua
trajetória sequestram uma moça ,intitulada na obra como Moça Sem Nome.Dentro deste
contexto a obra enreda a jornada errante destes personagens sertão adentro movidos
pela necessidade de uma vida melhor ,ou seja , podemos notar a presença do mito da
terra prometida ,uma terra onde a esperança se renova e significa para os foragidos
uma possibilidade de redenção.Porém ,não é realmente o que acontece os caminhos
percorridos tornam-se árduos e a terra transforma-se numa espécie de calvário 1 para
os doze.
Agora outro mito é instalado o mito do sertão mato-grossense como terra longínqua
de fronteiras instransponíveis, podemos notar como se constrói o imaginário ficcional de
representação do espaço construído nas peculiaridades históricas de Mato Grosso, uma
concepção histórica estigmatizada pela noção de lugar deteriorado e atrasado, sendo
assim, a obra perpassa os dois conceitos relativos a história regional, mantendo
sincronia perspicaz entre os dois polos.
Os personagens ao longo da narrativa contam suas histórias de vidas os motivos do
cárcere, suas concepções e indagações individuais como também questões universais,
esse ponto é um dos quesitos que elevam a obra de Guilherme Dicke ao nível de obra
regionalista que extrapola o universal.

1
Lugar de sofrimento de martírio. Alusão ao sofrimento de Jesus Cristo ao ser crucificado.
Para discorrer acerca dessas temáticas a pesquisa foi amparada nas concepções
de Gilvone Furtado Miguel 2que apresenta um campo vasto de pesquisas acerca do
universo literário de Guilherme Dicke.
No tocante a este universo literário, é interessante conhecermos um pouco do autor
para assim entendermos a dimensão desse universo e as intenções do escritor relativas
ao romance.Nascido em 16 de outubro de 1936 na cidade de Chapada dos Guimarães,
licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou como
professor, poeta, tradutor e jornalista para diversos jornais e editoras de grande
circulação no Rio de Janeiro e em Cuiabá.
Desta forma Ricardo Guilherme Dicke mostra sua estreita relação com a linguagem
e partindo de sua formação podemos ponderar sobre a intrínseca relação de suas obras
com áreas como a psicanálise e como seus personagens são centrados em
pensamentos e questões universais.
Partindo dessas perspectivas gerais, alicerçamos a pesquisa justamente nesse
intercâmbio entre campos do conhecimento e mais estreitamente na relação entre a
literatura e a análise do discurso.A motivação partiu da curiosidade particular a respeito
da originalidade da obra ao trazer o enfoque sobre a percepção do silêncio ,uma ótica
sobre esse tema em relação a obra como um todo e como isso resplandece em seus
personagens.Como o silêncio configura-se como uma linguagem capaz de dar “voz” aos
personagens aos seus sentimentos e suas ações,em particular referente a dois
personagens em questão a Moça Sem Nome e a Melânio Cajabi ,e como esse silêncio
atua como elemento constitutivo desses personagens .
Para atender a esses questionamentos nos filiamos a Análise do Discurso Francesa
particularmente ao trabalho de Eni Orlandi 3.Em linhas gerais a análise do discurso
francesa tem como um de seus fundadores Michel Pêcheux (1938-1983) que
desenvolveu princípios sobre a relação língua/sujeito/historia ou ,mais propriamente
,sobre a relação língua /ideologia , tendo o discurso como lugar de observação dessa

2 Gilvone Furtado Miguel: Doutora em Estudos Literários, professora na Universidade Federal de Mato
Grosso, autora de vários ensaios sobre Ricardo Guilherme Dicke e suas obras.
3 Enni de Lourdes Puccinelli Orlandi: Pesquisadora e doutora em Linguística, com ênfase em Teoria e

Análise Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: análise de discurso, linguística,
epistemologia da linguagem e jornalismo científico. Autora do livro Teoria do Silencio: No movimento dos
sentidos onde trabalha a teoria do silêncio de autoria própria.
relação (ORLANDI.2007.p,02) .Nessa perspectiva Eni Orlandi pioneira em análise do
discurso no Brasil,analisa os sentidos do silêncio não como o vazio ou o nada, para Eni
Orlandi o silêncio não fala ele significa.
O homem está “condenado” a significar diante do mundo, portanto, tudo, ações,
gestos e inclusive o silêncio tem que fazer sentido (ORLANDI.2007). O silêncio portanto,
tem significação própria e garante o movimento dos sentidos.
E interessante salientar dentro desta pesquisa as distinções que Eni Orlandi traz
acerca das formas de silêncio: o silêncio fundante que é aquele que existe nas palavras;
a política do silêncio, que se subdivide entre silêncio constitutivo onde implica que para
dizer é preciso não dizer e o silêncio local que se refere a censura (ORLANDI 2007).
Todas essas distinções são extremamente necessárias para o entendimento das formas
de significar no silêncio.
Nessa pesquisa ao analisar essa forma de significar no silêncio da personagem
feminina na obra, percorremos historicamente a trajetória da figura feminina na
sociedade e sua representação na literatura romanesca tradicional, como a mulher foi ao
longo da história silenciada, e como se dava esse silenciamento em forma censura sobre
a mulher e de que modo isso refletiu desde a literatura bíblica até o romance
contemporâneo tradicional.
Outro tópico discutido é a relação entre a mudança do papel feminino dentro da
literatura fazendo uma passagem do tradicional ao moderno da literatura dickeriana, e a
nova postura que a mulher assume, onde o silêncio é objeto não mais de repressão, mas
de auto representação, em que a Moça Sem Nome utiliza-se do silêncio como forma de
manifestação e vingança contra seus sequestradores.
Em sequência analisaremos o poder que esse silêncio assume na personagem
Moça Sem Nome, convertendo a mulher em um ser místico, simbólico, intocável Essa
transformação ocorre pelo e através do silêncio constitutivo, um silêncio onde é preciso
não dizer para poder dizer, ou seja, a mulher a partir do seu silêncio confirma sua
vingança e assume diversas faces, pois o silêncio possibilita essa polissemia de
sentidos. Outra perspectiva que se dá ao silêncio feminino é a fronteira que ele
estabelece. Como é possível uma mulher sequestrada que teve seus familiares mortos
de forma brutal assumir um lugar inatingível, sacro? O silêncio é portanto, um abismo
que se estabelece entre os fugitivos e a moça, tornando-a inalcançável, assim como a
fronteira estigmatizada do sertão mato-grossense, a moça torna-se através do seu
silêncio um ser enigmático assim como a própria terra.
Não só o silêncio feminino é foco deste trabalho, o silêncio no personagem de
Melânio Cajabi também chama a atenção pelo mistério que causa, o silêncio que a priori
parece ser fisiológico, assume diversas posições, pois ao instalar esse enigma o silêncio
ocupa diversos sentidos Um enigma movido pelo silêncio de Melânio Cajabi e que ao
final da obra pode ser aos poucos desvendado.
No último tópico é analisando esse enigma, e a similitude que ele tem na relação
autor/personagem. Para embasar esta análise nos serviu de aparato teórico o livro A
Personagem de Beth Brait4 e suas concepções acerca da construção dos personagens,
Beth faz inclusive referência a Poética5 de Aristóteles a respeito de conceitos como a
Mímese e a Verossimilhança Aristotélica, conceitos que nos servem de princípio para a
análise da relação autor/personagem.
Partindo dessas inferências são brevemente analisadas as concepções acerca do
imaginário, o real e o simbólico, concepções observadas principalmente pela Teoria
Psicanalítica, porém daremos enfoque neste estudo para arte da narratividade e para
isso recorremos a teoria do crítico literário Wayne Booth6 e seu livro A Retórica da
Ficção, para explicar a relação intima entre o silêncio do personagem Melânio Cajabi
com o Alter Ego do autor.
Assim é evidente as possibilidades multidisciplinares que esta obra proporciona, e
como nós leitores somos instigados a adentrar os caminhos dessa trajetória, a partir da
complexidade oferecida pela obra e pela interpelação teórica utilizada, possibilitando ao
leitor o desenvolvimento de uma competência literária com visão ampla de outros
campos científicos e metodológicos, e como a Teoria do Silêncio e os demais princípios
analisados expandem os horizontes epistemológicos da obra.

4 Elisabeth Brait: Doutora em Linguística, crítica, ensaísta e professora da Universidade Católica de São
Paulo, autora do livro” A personagem”, onde discute conceitos acerca da estrutura e formação do
personagem dentro das especificidades da narrativa.
5 Reuni o conjunto das anotações das aulas de Aristóteles sobre o tema poesia e arte.
6 Wayne Claysson Booth(1921-2005) :Crítico literário e professor da Universidade de Chicago Illinois-EUA.

Autor da obra “A Retórica da Ficção” onde trata da relação do escritor, narrador e o texto.
1 A mulher no romance tradicional

Ao fazermos uma retrospectiva histórica vemos que o papel da mulher na


sociedade adquiriu um caráter de submissão, falando especificamente de literatura não
foi diferente, a mulher sempre foi denegada a segundo plano ou figurou padrões sociais
que lhes foram impostos como virgindade, casamento entre outros. Assim a literatura
como meio refletor dos ideais de uma contemporaneidade social constituiu-se também
como uma das exteriorizações de um pensamento dominante e social da imagem da
feminilidade da mulher.

A literatura em especial o romance traz em seu âmago a característica de


transpor para a ficção as experiências vividas pelo homem, sendo assim o amor e a
presença da mulher são aspectos notáveis ,o romance historicamente tradicional
expressa em seus enredos e personagens os acontecimentos dramas e anseios sociais
.A mulher figura no romance assim como significa na sociedade,exercendo e
representado os padrões a ela impostos.Como personagem a “boa mulher” é sempre
ilustrada como uma moça habilidosa nos tratos domésticos, bonita ,jovem e
impregnada de feminilidade ,um misto de doçura e sensualidade A expressão
feminilidade aqui adquiri um caráter dúbio tanto ao exaltar as qualidades do ser
feminino,como também no conceito padronizado de uma sociedade patriarcal e
machista. Em relação a esse caráter negativo da expressão feminilidade Sandra
Guardini Vasconcelos7 em seu artigo Construção do Feminino no Romance Inglês do
século XVIII, trata desta questão:

Seu intelecto podia ser admirado, mas não recebia aprovação inequívoca. Muito
pelo contrário, havia preconceito contra qualquer pretensão intelectual numa
mulher e a ignorancia era vista por muitos como parte da imagem de
feminilidade” (VASCONCELOS,1995, p,90)

Nessa concepção a mulher figura discursos marcados pela ideologia dominante,


nos quais ocupa um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, pela
submissão e pela resignação. A própria literatura bíblica traz provas dessa submissão:

7
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos :Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo.Pesquisadora e Professora da Universidade de São Paulo.
As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas
estejam submissas como também ordena a lei.E, se querem aprender alguma
coisa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é indecoroso para a
mulher o falar na igreja. (CORINTIOS, 14:34)

No quadro da análise do discurso esse emudecimento da mulher é estatuído por


uma sociedade machista e preconceituosa. Em As formas do silêncio (2007) de Eni
Orlandi discuti acerca do silêncio e seus processo de significação,nessa perspectiva
todo processo de significação traz uma relação necessária com o silêncio, sendo assim
,para entender os processos que perfazem a construção dos personagens selecionados
para análise,é importante destacar a categorização das formas de silêncio que Eni
Orlandi trabalha em sua teoria .Além do silêncio fundador que é aquele que significa por
si mesmo , “aquele que existe nas palavras, que significa o não dito e que dá espaço de
recuo significante, produzindo as condições para significar(ORLANDI, 2007, p. 24),
temos a política do silêncio que ressalta que o dizer do sujeito implica em outros dizeres
,outros sentidos ,que se diferencia do silêncio fundador por produzir um recorte entre o
que se diz, e o que não se diz.A política do silêncio divide-se ainda em duas categorias :o
silêncio constitutivo e o silêncio local ,o primeiro “funciona como o mecanismo que põe
em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para poder
dizer”(ORLANDI,2007.p,74) e o último que se refere a interdição do dizer.

Sendo assim partindo dessa análise discursiva sobre o silêncio, ponderamos


acerca do silêncio da mulher na obra Madona dos Páramos(2008) em relação a
categorização observada. Nesta relação histórica da mulher com o silêncio ele é tido
como silêncio local especificamente censura, para Eni Orlandi:

É preciso observar que, quando falamos em censura (silencio local), não se trata
do dizível sócio-historicamente determinado (o interdiscurso, a memória do
dizer), mas do dizível produzido pela intervenção de relações de força nas
circunstancias de enunciação: não se pode dizer aquilo que (se poderia dizer)
mas foi proibido (ORLANDI,2007, p.105)

Nessas circunstâncias a censura funciona como a interdição da inserção do sujeito


em formações discursivas determinadas, ou seja ,a mulher é impedida de ocupar certas
posições certos lugares , é assim destituída de sua identidade e “Como a identidade é
um movimento ,afeta-se assim o movimento do sujeito”(ORLANDI ,2007.p,104).A
censura interfere diretamente na relação do indivíduo com a sua identidade social
.Sendo assim o pensamento dominante machista exercido sobre a mulher exerce o
papel de agente silenciador ,ou seja ,a força dominadora que silencia o sujeito(mulher).

Mudanças no papel feminino.

Aos poucos e juntamente com as mudanças no contexto histórico-social a mulher


foi galgando seu espaço.O século XX é marcado por grandes mudanças sociais,
culturais e ideológicas, no palco da literatura, o modernismo ilustra bem esses
deslocamentos, surge em oposição aos modelos tradicionais caracterizando-se por sua
inovação e arrojo.

A literatura de Ricardo Guilherme Dicke expressa bem às características do


modernismo dentro de uma literatura regionalista que abarca o processo histórico de
Mato Grosso e todo o imaginário que permeia esse decurso. As obras de Ricardo
Guilherme Dicke são exemplares no tocante a esse imaginário, para Gilvone Furtado:

O imaginário presente no discurso da história permanece na ficção dickeana,


cujo imaginário ficcional, por sua vez, renova as imagens míticas que subjazem
no discurso histórico. O foco recai na permanente presença dos arquétipos do
imaginário que, no âmbito da história regional, são particularizados em Mato
Grosso e estão reconfigurados nos discursos da história e da literatura.
(MIGUEL, 2007.p.66)

Em Madona do Páramos(2008) essa representação do “imaginário ficcional”


abrange também a personagem feminina intitulada como Moça Sem Nome ,o papel da
mulher na obra adquiri não mais um caráter de submissão e dominação, como no
contexto tradicional,a mulher assume uma dualidade mítica de mulher santa em mulher
fatal(MIGUEL,2007) em ambas as características a mulher é detentora do poder ,pois
enquanto mulher fatal ela usa da sedução como arma para dominar os homens, e
enquanto mulher santa se torna inatingível acima do homem e de qualquer “ser
mortal”,ou seja, existi um deslocamento dos papéis femininos em relação aos romances
tradicionais passando de dominada a dominadora .

A Moça Sem Nome ocupa desta forma duas posições a de mulher fatal ligado ao
poder da sensualidade feminina como podemos notar nesta passagem: “Meus lábios
foram feitos para o que existe de mais doce, para os beijos, frutos do amor sei.Sei
também que ,com pecado ou sem pecado ,com virgindade ou sem ela ,a mulher nasceu
para o amor (M.P p,139).E o de mulher santa,vemos essa situação no seguinte trecho
“José Gomes imaginava no ouro estranho que parecia envolver a moça em certas horas
,como se fosse uma santa ,o dourado lembrava um nicho onde rezara em outros
tempos [...] (M.P.p,16) .Tanto nesses trechos mencionados como na totalidade da obra
podemos notar essa relação dualística que a mulher ocupa.

A mulher no romance de Ricardo Guilherme Dicke significa dentro da obra assim


como significou no contexto histórico do modernismo pois foi um momento de libertação
das amarras do tradicional de mudanças ideológicas e também no que se trata do
regionalismo mato grossense mostrando a mulher como modelo de força e resistência.

O Silêncio Feminino

No tocante a esse poder feminino analisaremos também acerca de um outro


poder exercido pela Moça Sem Nome na obra: O Silêncio.

O silêncio aqui é analisado de uma perspectiva desvinculada do trajeto


antropológico do silêncio feminino, que é marcado pelo silenciamento. A análise do
discurso abre outra perspectiva para se pensar sobre o silêncio. Com já foi dito, partimos
do princípio estabelecido por Eni Orlandi de que o silêncio não é o vazio a ausência de
sons ou palavras, ou o sem-sentido; ao contrário ele é indício de uma instância
significativa, o princípio de toda significação, temos então um silêncio fundador ou
fundante, um silêncio que funciona como condição de significação (ORLANDI,
2007.p.38).

Sendo assim há uma outra perspectiva teórica que aqui daremos destaque que é a
política do silêncio, para Eni Orlandi:

A diferença entre silêncio fundador e a política do silêncio é que a política do


silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o
silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si
mesmo (ORLANDI, 2007.p, 73).

Destarte, ao analisar o silêncio feminino na obra Madona dos Páramos levamos


em consideração a política do silêncio enquanto silêncio constitutivo, que pertence à
própria ordem de produção do sentido e preside qualquer produção de linguagem, ou
seja, é preciso não dizer para poder dizer (ORLANDI. 2007, p, 73,74). O silêncio
constitutivo é a própria significação, sendo que se formos colocá-lo em palavras ele toma
contornos visíveis e torna-se interpretável, pois o silêncio não é transparente, ele
significa de múltiplas maneiras. “Falar é desencantar o mistério, vadear a morte, violar o
segredo, consumir a própria consumição” (MP. p, 94)

Segundo Eni Orlandi o homem exerce seu controle e sua disciplina fazendo o
silêncio falar (ORLANDI, 2007.p.34). Na obra Madona dos Páramos(2008) a
personagem Moça sem Nome exerce esse poder de se manter em silêncio como uma
forma de se vingar dos malfeitores que a raptaram

Jurei Vingança e só sei Silêncio Mas aquele nome que Salústrio chamava
quando necessitava de um amor de mulher, eles não o saberão jamais [...] Sei
me vingar com este silêncio A linguagem dos sonhos e da tortura, este cio de
mula açoitada, desejo que vem do conhecimento da carne. Por tudo e nada.
Para sempre. (M.P p.138)

A Moça Sem Nome se reveste de silêncio para poder expressar sua vingança,
este silêncio está em contraponto ao silêncio local /censura pois, o silêncio não é imposto
por uma força dominadora, é um silêncio de resistência onde o próprio sujeito opta por
silenciar para expressar sentidos.

O silêncio como fronteira

E o silêncio ergue-se e se desdobra sob essas camadas, sob a música do


chapadão, um delírio que uiva e se apruma das bibocas infinitas. (M.P p,65)

A literatura regionalista de Ricardo Guilherme Dicke em Madonas dos


Páramos(2008) capta toda uma realidade sócio histórica e geográfica do estado de Mato
Grosso, segundo MIGUEL(2007) “a literatura regional de Mato Grosso sofre [...]
consequências históricas do isolamento geográfico e cultural do estado”. Mato Grosso é
definido por uma trajetória histórica particular marcada por uma condição geográfica de
sertão distante e remoto que permeia concepções, estereótipos e preconcepções.
Norteada nessa perspectiva a literatura transmuda o real para o verossímil. Ricardo
Guilherme Dicke tem na produção romanesca de Madona dos Paramos (2008) a
construção imagética e identitária da região MIGUEL (2007), aspectos como o sertão
longínquo, a noção de terra prometida, são alguns enfoques.

Serão três ou quatro horas da tarde, hora em que o sol enjoa nestas funduras e
demora uma eternidade nos seus últimos fogos, os mais ardentes. Sim ele sabe
que está longe, muito longe [...]. Ou já haverá transposto as divisas sem que nem
ao menos se saiba e pisa soalheiras da Bolívia ou do Peru ou da Colômbia?
Talvez Venezuela, as Guianas, haverá desguiado de rota, perdido sob tudo.
(M.P.p.77)

Outro enfoque dado ao termo fronteira é a fronteira psicológica ou no caso de


Madona dos Páramos (2008) uma fronteira linguística. Segundo Eni Orlandi(2009.p,16)
a Análise do Discurso trabalha “refletindo sobre a maneira como a linguagem está
materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua “, é isso que ocorre
com o silêncio na personagem Moça Sem Nome ela se apropria do silêncio como forma
de expressar seu desforço contra aquela situação e seus agentes causadores.

A Moça Sem Nome ocuparia devido às circunstâncias um lugar de vítima, uma


mulher sequestrada que teve seu pai e marido mortos de forma cruel por facínoras, e que
certamente também sofreria cruéis abusos, porém a arma utilizada por ela é o próprio
silêncio como forma de armadura de proteção contra seus malfeitores, desta forma essa
armadura funciona como um impedimento para a aproximação de seus carrascos,
mudando assim a posição dos sujeitos, eles passam a serem “vitimas” do mistério e
encantamento da Moça Sem Nome, e ela ocupa uma posição de entidade mística,
intocável. Tudo isso se dá através do posicionamento da Moça Sem Nome, do silêncio
que ela estabelece com fronteira.

Estátua era que se mexeu na sela. Sobre o cavalo, ajeitando mais o rosto,
sempre silenciosa, com belos lábios e formosos olhos, mas por tudo calma e
calada, sem ouvir, parecia, como surda e muda fosse, na sua beleza frondosa,
como sombras toda a sua formosura se espalhando no chão dos olhos, ante a
feiura flagrante daqueles peregrinos [..] (MP. p. 151)

Nessas circunstâncias é prova de que o “silêncio não fala, o silêncio é, ele


significa” (ORLANDI,2007, p.46) Essa vingança em forma de silêncio repercute dentro
desses delinquentes errantes ,eles necessitam da fala/manifestação da Moça Sem
Nome para aproximarem-se dela :” Chamou-a se senhora moça ,mas tinha vontade de
chamá-la dona queria mais confiança “(M.P p.151). Segundo Eni Orlandi (2007. P, 74)
“ao dizer apagamos outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação
discursiva dada”, ou seja, o silêncio abre espaço para diversas interpretações deixando
que o sujeito no caso a Moça Sem Nome ocupe mais de um lugar através do silêncio.

O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que se faz na


contradição entre o “um” e o “múltiplo”, o mesmo e o diferente entre a paráfrase e
a polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditório
tanto do sujeito quando do sentido[...] (ORLANDI.2007p.17)

No tocante a essa questão cabe destacar que esse silêncio como forma de
vingança, que em consequência resulta numa fronteira entre a moça e os homens do
bando, não está implícito para eles, ou seja, eles não sabem do motivo do silêncio da
moça, embora haja suposições é claro, pela dada situação, porém de fato nada está
subentendido no silêncio da moça, pois há uma estreita relação entre o silêncio e o
implícito ambos os conceitos estão próximos, porém tem naturezas diferentes
(ORLANDI, 2007p. 65). Para analisar essa questão de uma forma simplificada tratamos
da relação entre o dito e o não-dito, ou seja, o implícito remete ao dito enquanto o silêncio
permanece como tal ele permanece silêncio e significa (ORLANDI.2007p 66).

A concepção de silêncio como vazio e sem sentido nasce desse comparativo em


relação ao dito ao dizer, atribuindo assim um valor negativo ao silêncio em relação as
palavras. Desta forma destaca Eni que o silêncio não tem uma relação de dependência
com o dizer para significar :o sentido do silêncio não deriva do sentidos da palavra
(ORLANDI.2007.p, 66) ,ou seja ,o silêncio significa por si só , abrindo assim uma
dimensão maior para o significado ,ele expande as possibilidades ,é o que acontece com
a Moça Sem Nome ,ela ocupa vários significados para os homens ,dessas variações de
significados nasce a fronteira entre ela e os foragidos ,e essas variações só são
possíveis pelo silêncio ,ou seja ,há um impedimento de aproximação entre eles e a moça
,ela é o desconhecido ,não palpável ,distante .Essas várias formas permitidas são
entendidas como polissemia ,ou seja ,os diferentes movimentos do sentido no mesmo
objeto simbólico.(ORLANDI.2007)

A estrutura do nome Moça Sem Nome

Há silêncio nas palavras. [..] as próprias palavras transpiram


silêncio.
Eni Orlandi
As palavras são atravessadas pelo silêncio, sendo assim também possuem uma
capacidade polissêmica, porém de forma diferente do silêncio, elas possuem formas
visíveis, ou seja, uma significação calculável, enquanto o silêncio não é visível, não dura
“Ele escorre por entre as tramas das falas” (ORLANDI.2007.p,32).

Para Eni Orlandi (2007 p. 32) a fala divide o silêncio, já que o silêncio é fugaz e não
permite delimitações, a palavra vem justamente para delinear o sentido. Para Pêcheux
(1997, p. 161), os sentidos se constituem de acordo com as posições ocupadas pelo
sujeito do discurso, determinadas pelas condições.Sendo assim essas condições
norteadas pelas relações entre os sujeitos, dentro da perspectiva de fala como
delineadora de sentido, os sujeitos muitas vezes sentem a necessidade de exteriorizar o
sentido, concretizar, materializar e para isso utilizam a fala.

Em Madona dos Páramos essa necessidade de concretização do sentido acontece


quando notamos a necessidade dos homens do bando em nomear a Moça Sem Nome,
ou seja, o silêncio da mulher instaura nos homens o fugaz do silêncio, e como forma de
torná-la palpável, concreta eles têm a necessidade de nomeá-la.

[...] e perguntaram meu nome, esses cães matadores dos meus queridos, que
lhes direi? -pois não o saberão nunca, saberão os nomes de todos, menos o
meu, agora que se terminaram todos os meus e ninguém mais tenho, eles
ficarão para sempre sem saber como me chamo, até a hora da morte se
lembrarão de mim e não saberão meu nome[...] (M.P p.138)

Nesse sentido podemos pressupor que se existe um nome torna-se conhecido, ou


seja, se é possível a delimitação desse sentido, apagam-se outros sentidos possíveis, a
Moça Sem Nome continua desta forma uma incógnita.

Thami Straiotto8 em seu artigo O ato de nomear –Da construção de categorias de


gênero até a abjeção, trata do ato de nomear e suas implicações” Um nome não é uma
palavra aleatória qualquer. Ele sempre quer dizer alguma coisa e sua relação com a
significação é complexa” (STRAIOTTO.2010). Ela apresenta em seu artigo um estudo
pertinente acerca de Platão e o ato de nomear:

Nomear era considerado como pressupor a existência de algo. Essa noção


surgiu com Platão (2001). Ao analisar a relação dos nomes com o estado de
coisas no mundo, ele formula o problema ontológico dos nomes: se há um nome
é porque há o que é nomeado. (STRAIOTTO.2010.p,2914)

8
Thami Straiotto :Mestra em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás.
Nesse sentido podemos ver a relação que se faz entre o nome e a existência
concreta do ser. Há no ser-humano uma necessidade em nomear as coisas para
aproximá-las desta forma ao real ao concreto. Sendo assim o nome tem a função de
delimitar algo, distinguir uma coisa entre outras conforme suas constituições
(STRAIOTTO.2010.p, 2.916). Porém é interessante destacar que o nome Moça Sem
Nome tem o intuito a prior justamente de generalizar e não o de delimitar. Entretanto
percebe-se que o ato de nomear todavia acontece.

Do ponto de vista semântico mesmo havendo a omissão do nome da moça o


processo de nomeação acontece,pois a estrutura Moça Sem Nome exerce a função
sintática de nomeação.Segundo Gilvone Furtado (2001.p,59) “a negatividade positiva do
nome afirma –se na desconstrução do significado/signifcante “,ou seja,ao mesmo tempo
que a expressão Moça Sem Nome traz a ideia de desconhecido de ausência do nome
,no sentido estrutural a palavra “Moça” remete a mulher ,ou seja, restringi o significado
a um ser feminino,a partícula “Sem” indica a falta ,a ausência de algo que é o “Nome”
a designação particular ,própria de uma pessoa .Nesse sentido toda a estrutura remete a
uma determinada mulher ,essa expressão não abrange uma totalidade ,é uma
expressão que delimita uma determinada Moça Sem Nome ,sendo assim exerce a
função de nomear

A essência do homem é dar nome as coisas e transformá-las de inomeadas a


nomeadas, de coisas ignoradas em coisas conhecidas, de desconhecido em
coisas, mas eu não tenho nome. Eu sou uma mulher me vingando da gratuidade
do mundo, a mulher que exige vingança ou uma explicação de Deus[...] (M.P.p.
138)

Nomear infere a existência de algo a ser nomeado, restringindo um significado a


algo ou a alguém, desta forma é tentando omitir o nome que se nomeia a personagem,
levando em conta também outros adjetivos e nomes que lhe são atribuídos inclusive a
suposta nomeação de Madona dos Páramos.

Ricardo Guilherme Dicke munido de um discurso metalinguístico e da liberdade


da criação literária, constrói a linguagem amparado na desconstrução (MIGUEL,2001),
utiliza-se das palavras para explicar as próprias palavras em um jogo de analogias entre
as oposições palavra e silêncio, produzindo uma labiríntica narrativa em que ao mesmo
tempo o visível é intocável, entre o delimitado e o imensurável.
2.1 O Silêncio no personagem Melânio Cajabi

Para Antônio Cândido (1987) a obra literária só pode ser entendida fundindo o
texto ao contexto numa interperetação dialética, sendo assim, não devemos exluir a
dimensão social presente na literatura, os personagens da Obra Madona dos
Páramos(2008) apesar de fazerem parte da ficção literária, assumem e recriam
caracteristicas ,anseios e comportamentos humanos, para Antônio Cândido(1987) a
literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte,a partir da
liberdade de criação literária o autor percorre os caminhos da realidade histórica através
do pano de fundo literário, para Gilvone Furtado(2007) o texto literário se torna revelador
do universo antropológico-cultural que dá forma ao pensamento e ao sentimento do
homem,desta forma o texto busca reconstruir a historia meslcando ficcção e realidade.

De maneira particular Ricardo Guilherme Dicke traz em sua obra peculiaridades que
transcedem o regionalismo ,os personagens superam as caracteristicas do pitoresco do
caipira e passam desta forma a figurar papéis que fogem as caracteristicas
tradicionais,ou seja,são personagem que extrapolam o regional que saem da
superficialidade, pensando questões acerca do mundo e da realidade que os cercam, o
local e o universal desta foram se fundem, podemos classificar a obra Madona dos
Páramos(1987) norteados pela perspectiva de Antonio Cândido que ao analisar a obra
vanguardista de Guimarães Rosa Grande Sertão Veredas chama atenção para sua
característica super-regionalista“Deste super-regionalismo é tributária, no Brasil, a obra
revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que se poderia chamar de a
universalidade da região” (CANDIDO, 1987, p. 162).

Sendo assim a mesma categorização pode ser data a obra de Ricardo Guilherme
Dicke, por apresentar caracteristicas universais em uma obra essencialmente
regionalista, neste sentido seus personagens se constroem na fortaleza e valentia do
homem sertanejo, evidenciando a intimidade do homem com a natureza que os cerca,
porém circundados por grandes questionamentos como o da própria existência e a
grande indagação sobre a vida e da morte ,segundo Gilvone Furtado :
A literatura vai, portanto, ao âmago da alma coletiva para desvendá-la na
representação simbólica das imagens; ora revela, ora encobre os conteúdos de
suas profundezas, pois cada indivíduo carrega, para além da consciência
individual, uma consciência coletiva (MIGUEL. 2007 p.17)

Essa consciência coletiva repousa não somente em relação aos personagens


como também na relação autor/leitor,ou seja,o autor antecipa a movimentação dos
sentidos do texto que depois será assimilado pelo leitor permitindo assim outros
movimentos na perpectiva da Pragmática a linguagem é justamente essa relação de
sentidos, onde ela deixa de ser vista apenas como instrumento externo de
coomunicação e passa a ser vista como atividade entre os protagonistas do
discurso(MELLO,2005)9.Porém ao falar em discurso nos deteremos neste trabalho em
analisar estes cenários da ótica da Análise do Dircurso percebendo inclusive a sua
relação com a literatura.

Nesse universo da construção discursiva percebemos um leitor capaz de


interagir com o texto literário de atender a dispositivos comunicacionais
acionados pelo texto. Esse texto evidentemente não fala sozinho, mas podemos
imaginar que ele responde as prososições do leitor que constroi seu sistema de
hipóteses(MELLO.2005.p,41)

Essas hipóteses levantadas pelo leitor configuram a imaginação literária,


característica que rodeia a obra de Madona dos Páramos(2008). Quando falamos em
hipóteses no tocante a construção de seus personagens e recorrendo novamente a
teoria do silêncio de Eni Orlandi(2007), iremos aqui discorrer a respeito da construção do
personagem Melânio Cajabi e as suposições que esse personagem permite aos leitores.

Melânio Cajabi é tão silencioso que parece mudo, parece haver engolido a
lingua.Caboclo grande, branco rosado tirante para o sarara cabelos que saem
para fora do chapéu de feltro em tufos grenhosos e vermelhos[...]os pelos
avermelhados, e cabeludo [...]um ar de doido pacífico e de avoado no seu
silencio pesado, altissonante, um silencio particular, com ar de poeta e de
filosofo ao mesmo tempo, homem que, se vê, fico só pensado o tempo todo.
(M.P.p 91)

O que sabemos de Melânio Cajabi durante maior parte da obra são basicamente
suas características físicas e as hipóteses acerca do seu silêncio.Melânio Cajabi se

9
Renato de Mello: Doutor em Estudos Linguísticos e professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Organizador do livro Análise do Discurso e Literatura, onde é tratada minuciosamente a relação entre a Análise do
Discurso e a Literatura
caracteriza como um enigma, um homem misterioso do qual nem seus próprios
companheiros sabem a origem e a causa de seu silêncio.

Como já foi discutido acerca das concepções inerentes a política do silêncio e suas
formas de existência, temos então as veredas metodológicas para analisar Melânio
Cajabi e seu silêncio. A princípio o que podemos ver em Melânio Cajabi é um silêncio
fisiológico

-Ei patricio,pena de que essa tal promessa? - indaga Chico Inglaterra


procurando puxar conversar com Melanio Cajabi

Este apenas se volta e o olha com olhar fixo,depois vira o rosto indecifravel ,os
labios atarraxados ,o silencio cavando-ocomo uma verruma [...]

- Erre corno, você ate parece mudo, homem, não tivera boca para dizer as
coisas? Voce parece que nem necessidade tem de falar nada ...Que espécie de
gente você é? (M.P p.106)

Sendo assim desdobram-se diversas hipóteses acerca do seu silêncio, de que ele é
realmente mudo ,ou que sua mudez é devido a uma promessa ,pois o silêncio não é
transparente (ORLANDI ,2007) o silêncio é sempre sucessivo e sempre há ainda
sentidos a dizer, isso explica desta forma a polissemia do silêncio.Podemos assim fazer
um comparativo entre dois personagens da obra ,a Moça Sem Nome e Melânio Cajabi ,a
moça assim como já foi analisado fundamenta seu silêncio em um silêncio constitutivo
movido pela vingança e que alcança diversos status de diferentes óticas. Em Melânio
Cajabi seu silêncio também é constitutivo, pois é movido pela tentativa do autor de
instaurar a expectativa e o suspense na obra, não se trata pois de um silenciamento ou
censura, por parte do autor.

É evidente que as relações de forças no contexto da enunciação no campo da


produção literária existem, pois a relação à qual nos fixamos é a relação autor(criador) e
personagem(criação) porém, a relação existente na obra entre autor /personagem e
outra, a qual analisaremos adiante.

2.2 A construção do Personagem Melânio Cajabi como Alter Ego do autor

Já reparou que o livro conta algum segredo ? Silêncio, silêncio que o livro está
contando um longo segredo [...] (M.P p. 72)
Analisaremos a relação autor/personagem e como essa relação mediada pelo
silêncio se constrói.Ao iniciar a discussão acerca dessa temática é essencial que
façamos uma análise a respeito do termo personagem, Beth Brait em seu livro A
Personagem trata dessa questão:

[...] a personagem é um habitante da realidade ficcional, a matéria de que é feita


e o espaço que habita são diferentes da matéria e do espaço dos seres
humanos, mas reconhecendo também que essas duas realidades mantêm um
íntimo relacionamento. (BRAIT.1985 p.12)

Os personagens são na verdade a representação das pessoas e tem no autor a


força produtora de uma realidade ficcional que se utiliza da linguagem para mediar a
realidade com a mundo ficcional Nesse sentido Beth(1985) faz uma colocação
interessante “como seria possível criar um processo capaz de reproduzir e inventar seres
que se confundem, em nível de recepção, com a complexidade e a força dos seres
humanos?” A resposta da questão está na força e no poder de criação da realidade
ficcional, e este poder criacionista esta na linguagem, que assume desta forma o poder
aglutinante na relação texto/leitor, sendo assim utilizando dessa verossimilhança o
personagem percorre aos poucos os caminhos da representação humana, por esse
motivo essa representação ficcional muitas vezes se aproxima tanto da própria
realidade.

Nessa perspectiva não poderíamos deixar de referenciar um grande pensador


pioneiro no tocante a essa temática. Aristóteles em seu livro Poética trata de conceitos
relevantes como a semelhança existente entre pessoa e personagem a Mímese
Aristotélica e a verossimilhança que estão ligadas a capacidade da obra e suas
possibilidades de representação simbólicas (BRAIT.1985).Essa verossimilhança não
esta somente ligada a capacidade de imitação e sim da competência que o personagem
tem de representar o possível ,ou seja ,as possibilidades do real ,o autor desta forma une
o imaginário que é a imagem e interpretações que fazemos do real e o simbólico que faz
referencia a representação fantástica do mundo 10.

Nessa perspectiva para Gilvone Furtado a obra Madona dos Páramos(2008)


percorre esses dois conceitos, imaginário e simbólico, de maneira genial, aliando ainda
esses conceitos a concepção regionalista.

Entender a complexidade da construção narrativa ficcional dickeana exige


buscar as implicações e a permanência do mito no discurso da história de Mato
Grosso. Por outro lado, a recorrência dos arquétipos humanos se faz perceptível
enquanto elemento estratégico do processo da mitologização romanesca de R.
G. Dicke. Os seus personagens, para além da representação típica regional,
esbanjam a pregnância simbólica das figuras míticas ancestrais. E, com esses
procedimentos criativos, a produção dickeana extrapola as fronteiras regionais.
(MIGUEL 2007 P.15)

Dessa grandiosa ardileza com que Dicke constrói seus personagens,podemos


abstrair que além dessa representação arquetipal, podemos notar ainda a presença
direta do próprio autor dentro da obra.Nesse sentido cabe destacar como se dá a voz do
narrador em Madona dos Páramos(2008), do ponto de vista estruturalista existem
categorias de classificação de narradores ,Everton Almeida Barbosa11 no posfácio do
livro Madona dos Páramos (2008) intitulado O problema do narrador em Ricardo
Guilherme Dicke trata desse assunto:

Em relação a essas categorias ,Dicke manifesta uma contradição.Não sustente


,através do narrador ,a relação da obra como expressão individual de um escritor
,mas sua escrita pressupõe a aproximação do escritor das
palavras,contrariando,portanto,tanto a perpectiva psicológica que pressupõe a
presença individual do escritor no texto ,quando da linguística que a descarta[..]
A sua escrita ,em diversos níveis ,não repercute categorias de produção do
modelo tradicional da produção literária (BARBOSA.2008 ,p. 443)

A princípio esse processo particular de Dicke gera uma certa complexidade de


leitura, porém, no decorrer da narrativa o leitor familiariza-se com o processo e a leitura
acontece normalmente (BARBOSA.2008). Sendo assim, a complexidade e peculiaridade

10
Nesse sentido não podemos deixar de notar a contribuição que a psicanálise traz para a análise ficcional
dos personagens
11 Everton Almeida Barbosa: Doutor em Estudos Literário, professor da Universidade Federal de Mato

Grosso.
da obra sustenta o seu caráter supra regionalista, pois, extrapola o modelo tradicional.

É interessante destacar a relação direta entre o autor e o narrador ,Guilherme Dicke


reforça uma aproximação de si com seus romances através da indeterminação do próprio
narrador (BARBOSA.2008).No que se refere a essa relação entre escrever delegado ao
escritor e o ato de narrar ao narrador ,recorremos a teórico Wayne Booth em seu livro a
Retórica da Ficção que trata dessa temática ,para Booth o narrador faz do realismo um
meio e um modo para construir suas próprias máscaras de contador de histórias
análogas às da vida real.(BOOTH.1983)
Desta forma Wayne Booth trata do conceito de autor implícito que funciona como o
elo ficcional entre o autor e o narrador.
Quer adotemos para este autor implícito a referência “escriba oficial”, ou o termo
recentemente redescoberto dor Kathleen Tillotson o “alter ego” do autor [...]Por
impessoal que ele tente ser, o leitor construirá, inevitavelmente, uma imagem do
escriba oficial que escreve desta maneira e claro ,esse escriba oficial nunca será
neutral em relação a todos os valores[...]Enquanto escreve, o autor não cria,
simplesmente, um “homem em geral”,impessoal, ideal, mas sim uma versão
implícita de “si próprio”, que é diferente dos autores implícitos que encontramos
nas obras de outros homens (BOOTH.1983.p.88)

Ao recorrermos ao sentido da palavra Alter Ego, o dicionário Aurélio nos dá a seguinte


definição:

Alter-Ego, s.m. Outro eu :pessoa em quem alguém deposita inteira confiança. (Do lat.)

Os sentidos de Alter Ego também podem ser amplamente investigados no campo da


psicanálise, abrindo espaço para uma vasta discussão com relação ao sujeito e seu
sistema psíquico, porém, nessa pesquisa valerá o sentido comum ao campo da literatura
e a relação e comportamento do sujeito com a narrativa.
Sendo assim há uma proximidade intima entre o autor e o texto elaborada
esteticamente, onde o escritor coloca-se como parte de um sistema social literário, com
sua função social, que não consegue distanciar das palavras do texto porque as suas
próprias palavras são como meio de refletir na narrativa suas reflexões(BARBOSA.2008)
Embasados nesses princípios podemos presumir que a presença do escritor na obra
Madona dos Páramos(2008) está presente no personagem Melânio Cajabi, para
Everton(2008) é possível destacar, em todos os seus romances de Ricardo Guilherme
Dicke a referência a passagens e dados da própria vida do escritor, nessa perspectiva,
podemos notar isso em trechos da fala de Melânio Cajabi:

Sei porque estudei, estou aqui no meio dos jagunços de querer apenas, é minha
escolha[...] eu Melânio Cajabi, estudei, não julguem pelas aparências que os
sentidos enganam e só o intelecto está por cima dos sentidos falhos e
incompletos[..] Bem, que não queria dizer, mas agora já disse está dito, estou
bem com meu segredo, ficamos entre nós secretamente (M.P p.416)

Melânio Cajabi se comporta durante toda a narrativa como um personagem


enigmático, pouco relevante, porém, tem importância crucial na obra, pois é o único que
sabe o rumo da Figueira Mãe, ou seja, detém nas mãos o destino de todos os foragidos.
,vela sob seu silêncio todos seus segredos inclusive a soltura da Moça Sem Nome a qual
ele foi o responsável , desta forma ele mantém o poder em relação ao destino de todos
na obra inclusive o dele mesmo ,pois assume que estava ali por vontade própria.Sendo
assim pelas características assumidas por esse personagem Melânio Cajabi funciona
como Alter Ego do autor ,que utiliza do silêncio do personagem para guardar todo o
segredo ,e causar a incerteza e suspense da obra ,que ao final é desvendado .
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra Madona dos Páramos permite aos seus leitores se embrenhar em suas
veredas e percorrer o imaginário concedido pelo autor.A narrativa que possui
peculiaridades notáveis nos presenteia com uma aventura que nos possibilita vislumbrar
horizontes epistemológicos que somente uma obra de tamanha relevância pode
proporcionar. Ricardo Guilherme Dicke em seu romance regionalista transcende os
limites regionais e permite ao leitor adentrar em um universo literário onde a literatura
torne-se a mediação entre outras áreas do conhecimento.

Embasar o trabalho em um referencial teórico tão substancial quanto a Teoria do


Silêncio de Eni Orlandi tornou a pesquisa ainda mais instigante e enriquecedora.Com o
intuito de esclarecer como o silêncio pode ser matéria constitutiva na composição dos
personagens da obra,estabelecemos uma pesquisa centrada na formação de dois
personagens a Moça Sem Nome e Melânio Cajabi ,e a partir de todos os princípios
analisados pudemos afirmar que o “silêncio é “ele significa e tem a competência de dar
movimento aos sentidos .Em consequência poder reconhecer a estrutura desses
personagens e como uma obra como essa supera os limites literários e possibilita um
estudo integrado entre campos disciplinares ,sem duvidas é engrandecedor.
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