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HAENDEL MOTTA

CONCEITOS DA
´
PSICANALISE
PARA O MUNDO
CORPORATIVO
Um olhar renovado sobre o mundo
do trabalho para você inovar no seu

“Uma leitura enriquecedora conectada


aos desafios atuais das pessoas”
Prefácio de ANDRÉ SOUZA - CEO da FUTURO S/A
1
HAENDEL MOTTA

CONCEITOS DA
´
PSICANALISE
PARA O MUNDO
CORPORATIVO
Um olhar renovado sobre o mundo
do trabalho para você inovar no seu

“Uma leitura enriquecedora conectada


aos desafios atuais das pessoas”
Prefácio de ANDRÉ SOUZA - CEO da FUTURO S/A
para

Juliana
Índice
Prefácio................................................................. 6
Introdução............................................................. 8
Quatro conceitos fundamentais.. ............................................................. 10

Capítulo 1 . REPETIÇÃO................................... 12
NARRATIVA EM ABISMO . Sobre a tendência imprevistade repetir nos-
sas condutas............................................................................................. 13
O CAMPO DA LINGUAGEM....................................................................... 16
NOSSO MINDSET EM LOOP. . .................................................................... 18
VIA DE PÔR, VIA DE RETIRAR.. ................................................................20
GROUNDHOG DAY.................................................................................... 23

Capítulo 2 . INSCONSCIENTE ........................25


ONDE ESTÁ O INCONSCIENTE?...............................................................26
Primeira parte . O inconsciente lógico................................................... 27
Segunda parte . O inconsciente ilógico..................................................29
Terceira parte . O inconsciente sintoma.. ............................................... 31
Parte final . O inconsciente extimidade.. ................................................ 34
CONTROLE EMOCIONAL . Existe mesmo isso?.. ..................................... 37
Capítulo 3 . TRANSFERÊNCIA........................45
O LAÇO DE LIDERANÇA . Chefiar, manipular ou liderar?.. ....................46
A LIDERANÇA EM ESPECTRO. . .................................................................48
CHEFIAR, MANIPULAR OU LIDERAR?. . ................................................... 52
CHEFIA E RECOMPENSA, LIDERANÇA E MOTIVAÇÃO. . .......................... 55
RELACIONAMENTO E ESCUTA. . ................................................................ 58
MODERNIDADE LÍQUIDA . Desafio aos millennials. . ..............................60

Capítulo 4 . PULSÃO........................................66
MOTIVAÇÃO - Eros e Tanatos.................................................................. 67
Pulsão de vida........................................................................................... 76
Maslow, Herzberg, Lacan: indicações para a Satisfação 4.0................77

Referências bibliográficas..............................84
Sobre o autor.....................................................88

www.haendelmotta.com.br

/haendelmotta
6

Prefácio

Dá para combinar Lacan com Drucker?


Freud com Taleb?
Bauman com Simon Sinek?
E Psicologia com Administração?

Ao conectar o seu conhecimento e experiência na área de


Psicologia com pensadores da área de Gestão, Haendel Motta
mostra que uma disciplina não pode (e nem deve) ficar isolada
das demais. E o quanto é rico para qualquer profissional desen-
volver novas formas de ver as coisas através de diferentes ideias
e linhas de pensamento.

Nesse ebook, Haendel nos conduz, pelo olhar da psicanálise,


a uma imersão profunda em temas como liderança, motivação
e modelo mental.

Ele garimpa teorias clássicas de autores consagrados e trans-


forma tudo isso em uma leitura enriquecedora conectada aos
desafios atuais das pessoas e da sociedade.
7

Isso permite que a gente possa desenvolver novos olhares e


ideias sobre temas que fazem parte de nosso dia a dia.

Aproveite a leitura!

Não é todo dia que conseguimos ver o mundo corporativo


pelo olhar da psicanálise!

André Souza
CEO da FUTURO S/A
8

Introdução

E
m um mundo hiperconectado como o nosso, causa surpresa
que o nome de Jacques Lacan circule tanto pelo meio aca-
dêmico e tão pouco pelo corporativo.

Esse livro é uma tentativa de conectar esses pontos.

Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) atuava em Paris


como médico psiquiatra até se envolver e exponencializar a psi-
canálise sabe-se lá a que potência.

Seu ensino combina originalidade e um rigoroso exame do


texto de Sigmund Freud, ao mesmo tempo em que dá atualida-
de a pontos que permaneceriam datados ou burocratizados nas
escolas freudianas tradicionais.
9

Destaque-se aqui o caráter de algoritmo conferido por Lacan


a nosso aparelho de linguagem: sua assim chamada “cadeia de
significantes” pode ser entendida hoje como uma espécie de
‘wordware’ a rodar em nosso ‘neuroware’, determinando padrões
de conduta e visão de mundo de um indivíduo (tema crucial a
ser examinado ao longo desse livro).

Os famosos Seminários de Lacan - classes semanais minis-


tradas ao longo de um ano - têm início em 1953. A partir daí, se-
rão realizados, sem interrupção, por vinte e sete anos.

Em 1964, seu 11º Seminário


recebe o título “Os quarto concei-
tos fundamentais da psicanálise”,
sendo até hoje considerado com
destaque entre os demais.
10

QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Então vejamos: quatro conceitos fundamentais. Após uma


década às voltas com a teoria psicanalítica, Lacan resolve sus-
tentá-la em quatro conceitos-pilares:

INCONSCIENTE REPETIÇÃO

TRANSFERÊNCIA PULSÃO

Você pode não entender nada de psicanálise, mas já deve ter


ouvido falar de pelo menos um desses conceitos.

E eis o ponto de partida para apresentar um pouco de Lacan


a quem se interessa pelos temas humanos no ambiente do tra-
balho.

Sinta-se convidado, então, a percorrer aqui quatro capítulos


que, embora conectados um ao outro, apresentam em separado
cada um dos quatro conceitos psicanalíticos listados acima.

E será ao longo desse percurso que temas corporativos clás-


sicos como motivação e liderança serão revisitados - além de
11

outros, mais atuais, como mindset, inteligência emocional e ou-


tras surpresas.

E por que a psicanálise? Por possuir um modelo complexo de


indivíduo - e você, que almeja empreender ou coordenar pessoas
no contexto atual, vai precisar de dispositivos de ação mais so-
fisticados - para além de fórmulas lineares ou listas de hábitos
ou passos a seguir - diante do desafio real de obter resultados.

De fato, o propósito desse livro não consiste exatamente em


acrescentar ferramentas novas ao repertório organizacional.
Tem mais a ver com extrair de você, leitor, um viés autoral - e cer-
tamente criativo - que lhe permita utilizar melhor as ferramentas
de que já dispõe.

Minha aposta: profissionais de agora irão precisar de imer-


sões mais profundas para aprimoramento de suas habilidades
- e algo de útil pode se abrir ao clicarem em #followJacquesLa-
can :)

Boa leitura!

H.M.
12

Capítulo 1

REPETIÇÃO
Keywords do capítulo:

- Narrativa em abismo
- Aparelho linguístico
- Algoritmo
- Mindset fixed/mindset grownth
- Via de pôr/via de retirar

1
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NARRATIVA EM ABISMO
SOBRE A TENDÊNCIA IMPREVISTA
DE REPETIR NOSSAS CONDUTAS

A
ntenor, 47 anos, vinte de experiência em sua área, foi recém
contratado por uma empresa e informado de que receberá,
a cada seis meses, turmas de jovens-aprendizes na faixa
dos 18 anos de idade. Ao longo do semestre, Antenor consta-
ta que um problema x ocorre em sua primeira turma. “Bem, que
venham novos aprendizes”, pensa ele. Acontece que em sua se-
gunda turma o mesmo x se apresenta. E também em sua ter-
ceira turma. Então ele conclui, num desabafo a outro colega da
empresa: “Essa juventude é toda igual”.

Do ponto de vista de Antenor não ocorre qualquer suspeita de


responsabilidade sua quanto ao reaparecimento de x. Tal repeti-
ção é depositada reiteradamente na conta do outro: da juventu-
de, das condições de trabalho, da política da empresa, etc.

Como visto na introdução do livro, Lacan elege a repetição


como um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Trata-se
14

aqui de uma repetição imprevista, que nos acompanha a des-


peito de nossos planos, como alguém que, de setor em setor
dentro da empresa, padece dos mesmos males vividos desde
o primeiro chefe, como se a mesma relação se instaurasse a
cada vez. E isso não se restringe à esfera do trabalho, há tam-
bém quem abandone um casamento, cansado de repetir na in-
timidade conjugal um mesmo circuito de dificuldades, para se
reencontrar, anos depois, com o mesmo circuito refeito em torno
de uma nova relação. Freud foi muito sensível ao fenômeno da
repetição e cuidou dele em escritos preciosos como Recordar,
repetir e elaborar (1914).

A imagem que abre esse capítulo, bem como na pagina se-


guinte, são conhecidas como mise en abyme (ou narrativa em
abismo), e nos ajudam a ilustrar esse efeito que tratamos aqui:
em cada nova fotografia reincide a anterior, e, assim, de empre-
go em emprego, ou casamento em casamento, podemos cair no
abismo infernal da repetição. Note-se a tentativa de escapató-
ria: o sujeito efetivamente troca de relacionamento, de emprego
ou setor dentro da empresa, mas se reencontra, apesar de sua
vontade, com o mesmo.

O que a psicanálise pode nos ensinar sobre isso?


15
16

O CAMPO DA LINGUAGEM

U
m dos maiores avanços oferecidos por Lacan, em contri-
buição à clínica de Freud, consiste na observação do cam-
po da linguagem nesse contexto em que não paramos de
nos repetir.

A linguagem será tratada por Lacan como um aparelho, estru-


tura articulada e autônoma, na medida em que se estabelecem
redes de associação entre as palavras, em suas combinações
lógicas e formais. Algo que assemelhamos aqui ao comporta-
mento estrutural dos algoritmos. Um algoritmo pode ser enten-
dido como séries entrelaçadas de instruções através das quais
se constrói, por exemplo, um aplicativo como o Word (se clico
aqui acontece isso; se ali, aquilo). E caso nos dispuséssemos a
desenhar o enlace de cada uma das possibilidades oferecidas
pelo Word, em seus muitos menus, obteríamos algo semelhan-
te à figura abaixo.
17

Seria então a linguagem um algoritmo? Não. Algoritmos ser-


vem aqui apenas de boa ilustração para que consigamos entrever
o que é uma estrutura. E muito interessou a Lacan esse aspecto
de estrutura da linguagem – essa que tão logo salta da boca das
crianças, a partir de quando começam a imergir em sua língua
natal. Ou seja, por detrás das diferentes línguas espalhadas pelo
globo (português, sueco, italiano, russo...) existe uma estrutura,
um aparelho linguístico, responsável por intermediar toda nossa
relação com o mundo e com toda uma densidade multifacetada
de afetos. E será a partir dessa concepção de aparelho que La-
can buscará descrever esse efeito de repetir, narrativa em abis-
mo, tão comum aos seres falantes que somos nós.
18

NOSSO MINDSET EM LOOP

S
e programamos um vídeo para que recomece toda vez que
termine, nos termos da informática diz-se que esse algo-
ritmo entrou em loop, ou dead-lock. Grandes e complexos
algoritmos podem também entrar em loop e ficar girando em
torno deles mesmos, reproduzindo uma longa rotina de procedi-
mentos numa infinita narrativa em abismo.

De modo semelhante, no plano individual, nossa linguagem


se amplia e articula segundo nosso repertório pessoal de conhe-
cimentos e valores adquiridos, estrutura que nos inclina a repe-
tir padrões de conduta, em loop, regidos pela moldura de nosso
mindset (em tempo: a psicanálise não fala ‘mindset’, fala ‘posi-
ção subjetiva’ ou ‘enquadre’, mas podemos perceber semelhan-
ças).

E como driblar esse efeito de loop, enfim?

Sabemos que a natureza opera por repetição: estações do


ano se repetem, bem como o sol todos os dias há de nascer e
se pôr. A estabilidade de nosso organismo depende de um ciclo
repetitivo, a alternar atividade, alimentação e repouso durante a
totalidade de nossa existência. Em grande parte, todos giramos
num carrossel narrado em abismo, e isso não deve ser problema
ou motivo de queixa. Contudo, retomando o caso de Antenor, ao
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mesmo tempo em que sua nova função lhe indica que irá, se-
mestralmente, atuar como preceptor de novos jovens-aprendi-
zes, isso não significa que terá de repetir os mesmos equívocos
(e padecer do mesmo x) ao longo de toda sua permanência na
empresa - e, aqui o mais grave, ou clinicamente dramático: caso
Antenor não venha a se submeter a qualquer tipo de dispositivo
capaz de estremecer seu mindset/enquadre, até que algo de sua
própria responsabilidade apareça, estará fadado, por estrutura,
a repetir sempre a mesma conduta, e padecer do mesmo x, por
anos a fio.

É quanto a esse tipo singular de repetição que poderemos en-


contrar espaço para uma brecha, meio pelo qual será possível,
sim, elaborarmos nossa estrutura narrativa.
20

VIA DE PÔR, VIA DE RETIRAR

F
reud, citando Leonardo da Vinci, toma como exemplo a pin-
tura, que opera pela via de pôr (tinta sobre a tela), em com-
paração à escultura, que opera pela via de retirar (lascas da
pedra bruta). Nesse sentido, os meios de produzir alguma bre-
cha na estrutura narrativa de Antenor estariam referidos

1) pela via de pôr: à ampliação de seu grau de instrução, conhe-


cimento, capacitação ou adestramento;

2) pela via de retirar: à prática de uma supervisão, mentoring ou


propriamente um processo psicoterápico/de análise capaz de
estremecer seu mindset, desfazendo condutas de repetido in-
sucesso por meio da tomada de responsabilidade sobre elas.
21

Freud pôs ênfase na via de retirar, afirmando-a via de sua psi-


canálise. Em referência específica à repetição, Lacan escreve:
“O que não pode ser rememorado, se repete na conduta”, consta-
tação clínica a nos ensinar, em suma, que quanto mais o sujeito
se digne a recordar seus atos, extraindo deles a responsabilida-
de por suas consequências, menos estará fadado a reincidir em
condutas sobre as quais sequer se atenta.

Quanto à via de pôr, não cabe subestimar os dispositivos edu-


cacionais e os efeitos benéficos que a aquisição de saber po-
dem suscitar. Contudo, se não produzir implicações quanto à
responsabilidade, os meios de educação e adestramento tende-
rão a formar apenas especialistas em se repetir.

Fica clara, com a psicanálise (tema pouco explorado pela In-


teligência Emocional), a dimensão de esvaziamento - via de reti-
rar - da farta quantidade de conhecimento ocioso, excessivo ou
ineficaz, atrelado a sentimentos de orgulho, mágoa ou envaide-
cimento, capazes de estabelecer mindsets fixados em torno de
si mesmos.
22

Via de retirar, essa, a suscitar


condutas inovadoras, autorais,
próprias ao contexto de
LIDERANÇA
que hoje nos é exigido, capazes
de gerar ânimo, respeito
e influência, balizadas pelo
exemplo inspirador e responsável -
menos previsível, inflexível,
fadado ao abismo.
23

Bônus do capítulo:

GROUNDHOG DAY

N
ão passe incólume pelo filme Feitiço do Tempo (1993). Se
já o assistiu, dê uma olhada nessa resenha. Caso não o co-
nheça e não goste de spoilers, assista-o e depois volte aqui.

Phil Connors, “homem do tempo” de um jornal de tv, está de


humor péssimo por ter de cobrir, numa cidade do interior, um
ritual meteorológico supersticioso, o “dia da marmota”, realiza-
do todo ano em 2/fev. Ele cobre o evento, sempre imbuído de
seu sarcasmo e má vontade, e, ao acordar no dia seguinte, se
vê condenado e estar sempre de volta ao dia 2/fev.
24

Nessa repetição infinita, atravessa algumas fases:

Hedonismo - se todo dia é 2/fev, come e bebe o que quer,


transa, rouba, viva a inconsequência!

Manipulação - tenta seduzir a mulher que sempre desejou,


Rita, colega de trabalho que o acompanha na cobertura do even-
to: na base do experimento, vai ajeitando o que lhe diz - se erra,
faz diferente no 2/fev seguinte -, mas truques artificiais não ge-
ram atração real...

Niilismo - tudo é igual e sem novidade, até as respostas do


Jeopardy na tv já decorou... nem pode se matar, pois acorda de
novo em 2/fev.

Me ajude! - tenta sensibilizar Rita sobre seu problema, mas


solidariedade tem limite, ela dorme e o abandona a cada vez...

Devir marmota - resolve estudar piano, escultura, e entra na


brincadeira do prefeito (ser leiloado para mulheres) da mesma
forma com que a marmota Phil (ambos têm o mesmo nome) é
apenas um fetiche turístico da cidade.

A mulher que ele deseja o compra no leilão.

Acorda com ela em 3/fev: ultrapassa a repetição quando ul-


trapassa a si mesmo.
25

Capítulo 2

INCONSCIENTE
Keywords do capítulo:

- Resumo inconsciente
- Saber-lidar emocional
- Lógica do sintoma
- Sujeito moebiano

2
26

ONDE ESTÁ O INCONSCIENTE?

U
m século depois de Freud - e agora com a neurociência
-, onde está o inconsciente? Sistema límbico! Reptiliano!
Não e não. O presente artigo procura esclarecer um pouco
a questão com base na psicanálise de Jacques Lacan.
27

PRIMEIRA PARTE
O INCONSCIENTE LÓGICO

A
informática nos ajuda aqui: imagine detectar o funciona-
mento de um software observando apenas o que acende
e apaga no hardware - eis o empenho neurocientífico; con-
tudo, para a psicanálise, uma das localizações do inconsciente
só se revela quando examinamos a lógica de funcionamento do
software em si.

E o que seria esse “software”? Entenda-o como nosso reper-


tório de conhecimento, valores e experiências acumuladas, um
arranjo narrativo - feito de palavras - que gera nossa visão de
mundo, nosso mindset (ou posição subjetiva, como se diz na
psicanálise), conforme visto no capítulo anterior.

Então reflita: em que página se encontra a sinopse de um li-


vro? Em nenhuma. Você terá de ler o livro todo - talvez várias
vezes - até construir um bom resumo. Digamos então que o re-
sumo está inconsciente no livro. Esqueça, portanto, o incons-
ciente como trancado numa página oculta - não, o inconsciente
é uma espécie de mainstream (corrente dominante) do mindset,
matriz de pressupostos que perpassam a montagem inteira de
nossa cadeia repertorial. Algo capaz de gerar as tais “repetições
de destino” observadas no capítulo anterior: troquei de chefe e
voltou o problema com o atual; troquei de casamento e tudo pa-
rece igual nesse.
28

É, se o mindset não sofre qualquer elaboração... E, de acordo


com a psicanálise, quanto mais distante você estiver da síntese
que ordena a montagem de seu repertório, mais estará fadado
a repetir velhos erros (tal como Antenor no capítulo passado).

Einstein dizia: “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma


coisa e esperar resultados diferentes”- algo um tanto lógico, não?
29

SEGUNDA PARTE
O INCONSCIENTE ILÓGICO

G
ozamos da sensação de ocupar nosso centro de controle,
e outro modo de localizar o inconsciente é perceber onde
isso nos escapa. Além dos conhecidos atos-falhos e da for-
ma com que nossos sonhos (eventualmente pesadelos) esta-
belecem um roteiro próprio, destaca-se aqui a incapacidade de
nos apaixonarmos por autoconvencimento racional (bem como
nos desapaixonarmos pelo mesmo método).

Freud equivale a constatação íntima desse “isso que eu não


controlo” a quando Copérnico nos retira a impressão de ocupar
o centro do sistema solar - e daí os nomes em latim id e ego: “id
(isso) que ego (eu) não controla”. [Para saber mais sobre esse
ponto, leia o bônus incluído no final desse capítulo.]

Enfim, nosso software repertorial não roda num hardware


seco, mas embebido num “wetware” vivo, que tem lá suas exi-
gências, vicissitudes e autonomia.

De modo que a síntese inconsciente abordada na primeira


parte não resulta apenas de uma extração lógico-linguística -
não, ela se monta aliada a impulsos cujas causas desafiam nos-
sa racionalidade.
30

Nos versos de Fernando Pessoa:

“Nem sempre consigo sentir aquilo que sei que devo sentir”.

Aqui o inconsciente se localiza como constatação de que não


comandamos o que atiça nossas paixões. E isso vale tanto para
o campo amoroso quanto para o profissional. Nos estudos so-
bre a motivação, uma celebrada separação a distingue entre ex-
trínseca e intrínseca. Na motivação extrínseca, motivos de tro-
ca são bem conhecidos para o sujeito: “faço isso pelo dinheiro”;
já na intrínseca, verifica-se certo desconhecimento (localização
do inconsciente): o que determina a escolha por tal pessoa ou
atividade? Sabemos apenas que nos atraem e fazem vibrar. [No
capítulo 4 – Motivação, você poderá melhor mais fundo nesse
ponto].

Mas, atenção: o texto de Freud foi por muito tempo entendi-


do como mera teoria da repressão, algo do tipo “entendi, a cura
é libertar o id e desprezar o ego”. Não, nada simples assim. Nos-
sa dinâmica em relação ao inconsciente é complexa, o que nos
leva à observação de seu mais inquietante fenômeno: a forma-
ção de sintomas.
31

TERCEIRA PARTE
O INCONSCIENTE SINTOMA

L
ocalizar o inconsciente enquanto causa de afetos e predi-
leções que não escolhemos não significa abdicar de nosso
edifício moral/racional.

Transtornos da época de Freud já foram atribuídos unicamen-


te ao contexto social repressor que tolhia os “desejos incons-
cientes”. Pois então vejamos, o Séc. XX avança, é palco de im-
portantes conquistas de liberdade, e um novo milênio alvorece
em clima de referências líquidas e convite ao prazer sem limites
- tamanha liberdade moral e de acesso à satisfação extinguiu o
mal-estar psíquico e emocional humano? Não.

Hoje, ansiedade, depressão e vícios (comida, remédios, ál-


cool, drogas, web, sexo etc.) representam os principais sintomas
de nossa atualidade, denunciando sua acelerada fluidez.

Então chegamos a um terceiro modo de localizar o incons-


ciente: como aquilo que fura nosso arranjo narrativo, seja ele or-
denado por “é proibido” ou “é proibido proibir”.

Inconsciente como algo que nos devolve o que restou igno-


rado na história que contamos a nós mesmos. Retornos impre-
vistos - como no exemplo do sujeito que corta radicalmente o
32

hábito de fumar e, meses depois, repara que engordou alguns


quilos.

De modo esquemático, poderíamos dizer que, por debaixo da


linearidade narrativa do propósito “parar de fumar” (ir de A até B)
restam ignoradas as causas que levam o sujeito ao cigarro, cau-
sas que o inconsciente atualiza através do sintoma da obesida-
de. Disso depreendemos a inútil tentativa de combater apenas
o sintoma (no caso, o cigarro), sem atentar para a dimensão da
causa ali em jogo.

E, em 1930, ao escrever “O mal-estar na civilização”, Freud su-


gere que a lógica de formação dos sintomas pode ser observa-
da não apenas nos indivíduos, mas na esfera coletiva em geral:

“...se as viagens marítimas transoceânicas não tivessem


sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua
viagem por mar e eu não precisaria de um telegrama
para aliviar minha ansiedade a seu respeito”,
exemplifica Freud.
33

Um exemplo mais próximo de nossa realidade é o ocorrido no


Facebook, que, de um propósito inicial voltado a “conectar pes-
soas”, passa a ambiente de vinganças digitais e manipulação
ilícita de dados pessoais; ou, ainda, como o ocorrido na Coreia
do Sul, que de uma arrancada para “possuir a banda larga mais
rápida do planeta” obtém em retorno uma alarmante epidemia
de viciados em games online.

Na esfera individual, retomando a localização do inconscien-


te como vista na primeira parte, uma vez que ela não resulta de
um exercício meramente lógico (tal como seria extrair a sinop-
se de um livro), a admissão e trabalho sobre os ‘recados’ advin-
dos de nossos sintomas encaminharia, então, de acordo com a
psicanálise, uma via possível para que o sujeito se torne menos
suscetível ao giro em falso das repetições de destino (tendên-
cia a repetir velhos erros), e um convite à elaboração/ complexi-
ficação de sua narrativa repertorial, em contraste à linearidade
de alguns de seus anseios.
34

PARTE FINAL
O INCONSCIENTE EXTIMIDADE

L
acan complexifica nossa linearidade a ponto de dizer que
nosso software repertorial se organiza nos moldes de uma
fita de Moebius - já ouviu falar dessa fita?

Num cinto corretamente fechado, seus dois lados não se co-


municam - dentro e fora estão bem definidos. Já na fita de Moe-
bius (figura abaixo), dentro e fora estão em continuidade. Muitos
pares de opostos podem ser colocados aí: noite adentro e já é
dia; humildade ostentada, vaidade; muito ódio, paixão; no limite
da complexidade, um viés simples.
35

Lacan se interessa por essa fita e cria a palavra “extimidade”,


intimidade conectada ao exterior. Se me ocorre um pensamento
ou sentimento imprevisto, pode não ser fruto de um porão escu-
ro, mas de uma brecha autoral, criativa.

Dessa perspectiva, uma prática que promova a emergência


do inconsciente introduz uma ética. Lacan diz que o estatuto do
inconsciente não seria ôntico [localizável, por exemplo, numa
ressonância magnética], mas, sim, ético. Ética de aposta na mo-
vimentação e manifestação de nossas disposições singulares -
aquelas que, como visto na segunda parte, são as que legitima-
mente nos fazem vibrar e ir além da mera sobrevivência animal.

Além disso, uma prática cuja direção será “saber lidar com os
sintomas”, conforme o caráter inextinguível do inconsciente na
formação dos mesmos.

Como também visto no Capítulo 1, Freud, citando Leonardo


da Vinci, toma como exemplo a pintura, que opera pela via de pôr
(tinta sobre a tela), em comparação à escultura, que opera pela
via de retirar (lascas da pedra bruta).

Nesse sentido, a educação tradicional operaria pela via de


pôr: o sujeito ouve, lê, recebe. Na psicanálise, a via é de retirar: o
sujeito fala, permite com isso que o inconsciente se manifeste,
e algo de valor ocorre nessa travessia.
36

E assim ficamos em relação à localização do inconsciente: te-


mos mesmo um lado de fora e outro de dentro? Talvez seja pre-
ferível não demarcar com precisão, habitar uma surpreendente
- até para nós mesmos - dimensão moebiana.
37

Bônus do capítulo:

CONTROLE EMOCIONAL
EXISTE MESMO ISSO?

C
omecemos com um artigo publicado na Harvard Business
Review em 2013, Emotional Agility, que trata de como líde-
res eficazes lidam com pensamentos e sentimentos nega-
tivos. O artigo menciona um experimento, realizado por um pro-
fessor de Harvard, em que indivíduos são convidados a evitar
pensar em um urso branco, concluindo que tentativas de mini-
mizar ou ignorar pensamentos ou sentimentos tendem apenas
a amplificá-los.
38

“Qualquer pessoa que já sonhou com bolo de chocolate ou


batatas fritas enquanto fazia um regime rigoroso entende esse
fenômeno”, aponta o artigo. Ora, quem primeiro se interessa e
vai fundo na investigação dessa dinâmica é o então neurologista
Sigmund Freud, que abandona a medicina para inaugurar – nos
termos de hoje – sua ‘startup disruptiva’ chamada psicanálise.

Em 1917 (lá se vão cem anos), Freud, já reconhecido pelo aba-


lo que causara em sua época, publica um artigo em que destaca
três duros golpes que abateram o orgulho humano: o primeiro,
conferido por Copérnico, que retira da Terra o título de centro do
sistema solar; o segundo, vindo de Darwin, que elimina do ho-
mem qualquer presunção quanto à origem de sua espécie; e o
terceiro, o que a própria psicanálise estabelece com o postula-
do: “O eu não é o senhor de sua própria casa”.

Copérnico faz a humanidade cair do cavalo, o orgulho de al-


guns ainda insiste em recusar Darwin, e quanto a Freud, em que
o essencial de seu legado pode tanto nos abater? Bem, voltemos
ao experimento de Harvard. Experimente se prometer não pen-
sar em um urso branco por cinco minutos. Não precisa nem co-
meçar... Somos dotados de um algoritmo linguístico incapaz de
se autoprogramar de modo infalível: esse simples experimento
revela em nós um ponto fora de controle, ainda que gozemos da
sensação de ocupar nosso centro de comando.

Enfim, não nos comportamos de modo estritamente lógico


e deliberado. Nossa cadeia de pensamento se move atrelada à
39

fluidez de impulsos e sentimentos, capazes também de nos co-


mandar. Uma das evidências disso, para além das variações co-
tidianas do humor, está no fato de não escolhermos a pessoa
por quem nos apaixonamos. E isso vale para o campo amoroso
tão bem quanto para o campo do trabalho. Escolher uma profis-
são com base apenas em argumentos racionais? Equivalerá a se
casar por conveniência, um caminho para a infelicidade. Freud
propõe aos médicos de sua época escutar o que há de infelicida-
de no surgimento de certas doenças, advertindo-os de que não
basta estabilizar a biologia do paciente – ele retornará daqui a
algum tempo, com sua mesma infelicidade.

Um século depois e devemos bendizer cada uma das conquis-


tas e descobertas da medicina. Contudo, quando o terreno é o
das emoções, a promessa de atalho é tentadora: dispomos de
medicamentos para a insônia, cirurgias para a obesidade... e a
infelicidade que causa a perda do sono ou a ânsia pelo alimento
pode ser ‘bypassada’, ludibriada, adormecida. Apenas aparente-
mente. O que a experiência clínica nos mostra é que, em geral,
essa tentativa de ludibrio faz apenas com que o ignorado retor-
ne e assombre, feito um urso branco. É justamente a observa-
ção desse ‘efeito de retorno’ uma das maiores contribuições de
Freud. E a questão aqui não é ir contra a medicina, mas cuidar de
sua acertada ou equivocada aplicação. O crescente e excessivo
uso de substâncias psicoativas (psiquiátricas) no estilo de vida
contemporâneo tem estatísticas alarmantes. Para quem deseja
ir mais fundo nesse tópico, recomendo o excelente artigo publi-
cado em 2011 na revista Piauí, A epidemia da doença mental.
40

Sim, existem transtornos que requerem uso contínuo de medi-


camentos, mas mesmo aí um trabalho em conjunto com a escuta
analítica pode trazer benefícios. Em outros casos, tratamentos
que possibilitam uma alternativa a longos anos de medicação
chegam a ser inspiradores. O que está em jogo geralmente, para
início de conversa, é que sentimentos, por mais penosos ou es-
tranhos a nós mesmos que pareçam, não poderão ser ignorados
ou repelidos – uma distorção comum quanto à expectativa de
‘controle’ sobre as emoções. Sentimentos estão aí para serem
admitidos e atravessados. O que não significa necessariamente
ceder a eles. A lógica aqui é inversa: por exemplo, admitir para
si o ódio por alguém, não implica em partir para cima desse al-
guém; a pressão interna para calar esse ódio é que pode, por-
ventura, gerar uma explosão violenta para cima desse alguém.
É mesmo contraintuitivo: no que sentimentos são acessados,
podemos trabalhá-los, dar destino a eles; se teimamos em anu-
lá-los, só se fortalecem.

Numa consulta rápida ao Google, uma constelação de ocor-


rências oferece textos e vídeos com técnicas, passos e dicas de
controle emocional. Mas nada é homogêneo e consensual nes-
sa seara, a começar pelo fato de que pessoas das mais diversas
áreas se aventuram a falar sobre isso. E aqui chegamos ao am-
biente organizacional, que demanda constantemente conteúdos
sobre esse tema. Nem percamos tempo maldizendo a autoajuda,
cujas limitações são evidentes, mas o fato é que profissionais de
agora se veem premidos por inúmeras exigências, do domínio
de idiomas a diversas soft skills, como capacidade de trabalho
41

em equipe e tato nas relações. A velocidade-ansiedade atual e o


clima de incertezas e inovações nos desafiam a todo momento
a não nos afogar nesse fluxo ininterrupto de estímulos. Isso faz
do controle emocional um objeto de desejo para muitos. Mas,
afinal, no que investir para aprimorar isso? As opções são varia-
das e a sugestão natural é que cada um procure o caminho que
mais lhe causar curiosidade e atração.

No meio disso, ainda assistimos ao avanço da neurociência.


Muito do que atualmente se produz sobre nossa dinâmica emo-
cional se apoia nela – para o bem e para o mal. Curioso como
hoje o prefixo neuro doura de credibilidade qualquer termo que
o siga. Sempre que encontro discursos associados à neurociên-
cia, costumo distingui-los em três blocos: 1) descobertas e apli-
cações interessantes; 2) novas promessas de controle do urso
branco incontrolável; 3) atrativo para vendas e simplificações
enganosas. A explicação mais celebrada hoje em palestras é a
que divide nosso cérebro entre neocórtex (periferia racional, ló-
gico-linguística) e sistema límbico (miolo emocional, primitivo-
-reativo), e a partir daí os três blocos discursivos se desdobram,
nos animam... ou enrolam.
42
43

Confesso, eu que desde cedo na graduação me vi tomado


pela psicanálise, que nunca fui muito fã do termo ‘controle’ atre-
lado às emoções. Lacan falava em “saber lidar ali” (savoir-y-fai-
re). E depois de muito ler e matutar, encontrei no surfe (embora
eu não saiba surfar) a metáfora que melhor me ajuda a distinguir
‘controle’ de ‘saber lidar ali’. Vejamos, o surfista não controla as
ondas, aqui equivalentes às suas emoções; seu saber lidar com
elas apenas lhe permite, com humildade, atravessá-las e até tirar
proveito delas, nunca livre de eventualmente ser arrastado pela
intensidade de algumas. Do contrário, se acredita que está tudo
sob seu controle, fica ainda mais vulnerável a tomar “caixotes”
ou ser arrastado por ondas violentas, passando a se sentir divi-
dido. Tomando como exemplo um grupo de controle da obesida-
de que coordeno há dois anos, com grande satisfação, em par-
ceria com uma nutricionista, se caso algum dos participantes,
após algum tempo de luta contra a balança, não obtém resulta-
dos, insistir no papel de motivador do cumprimento da dieta, da
atividade física e da disciplina consciente, em geral, apenas faz
com que a pessoa se sinta ainda mais impotente e culpada por
não conseguir emagrecer. É hora de dar ouvidos à infelicidade
ali envolvida; com seu consentimento, cavar em outras regiões,
todas elas articuladas entre si. Chega a ser instigante como algo
se desenlaça a partir disso. Não se trata de um treinamento cog-
nitivo, de ensinar aos participantes a controlar suas ‘ondas de
fome’, mas propiciar que as atravessem um pouco melhor, en-
trando em contato com efeitos indiretos que as animam. Essa é
uma grande diferença que distingue a psicanálise das terapias
44

cognitivo-comportamentais, embora esteja na mão dos sujeitos


a escolha sobre qual delas seguir.

De fato, muito do que lemos hoje sobre controle emocional


orbita em torno de técnicas para se situar no meio de um mare-
moto emocional: controle da respiração, autoindução sugestiva,
exercícios mentais para ativação do córtex racional etc. Sendo
que, para a psicanálise, o que está em jogo não é o que fazer no
meio de um maremoto, mas reconhecer as repetições de con-
duta que nos levam seguidamente a eles. Conforme visto no ca-
pítulo inicial desse livro, o tema da repetição foi observado com
muita perspicácia por Freud.

Dessa maneira, uma vez que não nos será possível contro-
lar diretamente as emoções, cabe, pela via psicanalítica, atentar
para nossas condutas a fim de que possamos nos responsabi-
lizar pela repetição de episódios que, em grande medida, tem a
ver com nossa teimosia resiliente.

Esse ponto crucial, pouco explorado pelos estudos da Inteli-


gência Emocional, desloca a questão do domínio das emoções
para o exame e aprimoramento de nossa visão de mundo (mind-
set), ou seja, nosso repertório de crenças e valores, esses mes-
mos que nos levam a agir da maneira como agimos, com nós
mesmos, e no convívio diário com nossos semelhantes.
45

Capítulo 3

TRANSFERÊNCIA
Keywords do capítulo:

- Liderança
- Poder de influência
- Chefiar
- Manipular
- Motivação intrínseca
- Relacionamento e escuta

3
- Modernidade líquida
46

O LAÇO DE LIDERANÇA
CHEFIAR, MANIPULAR OU LIDERAR?

P
ublicado na Harvard Business Review em 2004, o artigo “Why
People Follow the Leader: The Power of Transference”, de
Michael Maccoby, aponta a correspondência entre um dos
conceitos fundamentais da psicanálise, a transferência, e o fe-
nômeno da liderança.

Imagem: coleção “Hipstory”, de Amit Shimoni.

E o que vem a ser isso, transferência? Nada a ver com transa-


ções bancárias ou quando sua empresa determina que você vá
morar em outra cidade. Digamos que, inesperada, a necessidade
de uma cirurgia se revele. Podendo escolher, por que você opta
por este e não por aquele cirurgião? Trata-se de uma relação de
47

confiança, seja no profissional, seja naquele seu conhecido que


o indicou. No campo psicanalítico, Freud deu esse nome, trans-
ferência, para esse tipo de endereçamento: ou seja, se decido fa-
zer análise com determinado psicanalista, é por conta de minha
transferência para com ele (ou para com aquele que o indicou).

Lacan acrescenta a isso o que chamou de transferência de


trabalho, nesse caso, o endereçamento de uma confiança não
propriamente clínica, mas de cunho profissional: uma espécie
de disposição favorável, alicerçada no sentimento de boa con-
ta, para o trabalho junto a determinado sujeito (na cultura militar
naval, isso parece vir expresso no jargão ‘com esse vou para a
guerra’).

No campo organizacional, um tipo peculiar de relação se ob-


serva no dia a dia de empresas e instituições, a saber, o poder
de influência de determinados sujeitos sobre outros: claro que
falo aqui do fenômeno da liderança - fenômeno que, conforme
aponta o artigo de Maccoby, pode ser lido através do conceito
de transferência.
48

A LIDERANÇA EM ESPECTRO

V
amos deixar de lado a transferência em termos clínicos, e
nos concentrar no que Lacan definiu como transferência de
trabalho. Dispostos em espectro, os sentimentos associa-
dos a esse tipo de transferência podem variar de um pequeno a
um elevado grau de intensidade.

Para efeito de ilustração, elegi alguns afetos que ordenei em


graus ascendentes, sem a pretensão, contudo, de esgotar a ma-
neira particular com que cada um os vivencia. Situei em um pri-
meiro patamar o sentimento de respeito pela pessoa do líder,
“sua presença não me é indiferente e considero com atenção
aquilo que diz”. Indo além dessa condição, o sentimento de con-
fiança, “sou capaz de lhe confiar assuntos delicados, bem como
sua palavra é capaz de gerar influência sobre minha conduta”.
Em um terceiro patamar, realizo de boa vontade suas exigências,
“considero-o capaz e acredito que suas diretrizes irão favorecer
tanto a mim quanto ao empreendimento, motivo pelo qual em-
prego voluntariamente minha energia de trabalho em favor dos
objetivos que ele me propõe”.
49

Em um quarto grau de intensidade, aquele que me dirige, que,


segundo Cecília Bergamini, administra o sentido do que execu-
to, ganha minha admiração: “seu exemplo profissional aponta-
-me um modelo a seguir”. Alguém em semelhante posição de
liderança não deve almejar, entretanto, um tipo de vínculo me-
ramente baseado no culto e favorecimento de sua pessoa. Será
preciso resistir a isso em favor do propósito de formar novos lí-
deres – do contrário, restará ao cabeça um corpo de bajuladores
e subalternos, carentes de suficiente independência pelo medo
constante em desagradá-lo (ponto em que a liderança manifes-
ta seu caráter tóxico, tal como o vemos na personagem de Meryl
Streep em O diabo veste Prada).

O líder deve estimular certa competitividade contra ele mes-


mo, a fim de liberar a autenticidade e o talento contido nos mem-
bros de sua equipe. Se não renuncia ao culto de sua pessoa,
abre campo para que a intensidade da transferência eleve-se ao
patamar da adoração - por onde se diz que mexer com os po-
deres da liderança equivale a mexer com os poderes do átomo.
Afinal, não provém senão da liderança o advento capaz de fazer
com que sujeitos atirem-se do interior de aviões contra edifícios;
50

também a barbárie imposta pelo advento nazista não encontra


outro centro de referência senão o culto a um único e miserável
homem. De fato, toda a história da humanidade poderia ser con-
tada a partir do poder de influência de apenas algumas centenas
de líderes.

Para além da adoração, situo o amor e o ódio. Mas alto lá, os


sentimentos de transferência não seriam apenas uma disposi-
ção positiva para com o líder? Não. Freud pôde nos ensinar mui-
to bem que o oposto de transferência diz respeito à indiferença:
“trabalhei com aquele sujeito?, não me lembro...”, caso contrário,
se a presença de alguém não lhe é indiferente, isso poderá ser
apenas distinguível, de acordo com Freud, entre transferência
positiva ou negativa – ou seja, querer bem ou querer mal, não
importa, é laço de transferência.

Aqui, vale a pena voltar ao artigo da Harvard Business Review


citado no início. Maccoby traz histórias que ilustram a fragilida-
de de uma transferência muito intensa. Cito uma: determinado
executivo era querido como um pai por determinada funcioná-
ria, e não recusava alimentar esse sentimento, uma vez que lhe
era garantida grande energia de cooperação por parte dela; con-
tudo, numa oportunidade de promoção dentro da empresa, ele
indica uma outra pessoa, e não ela, para o cargo. Resultado: da
noite para o dia, todo aquele amor dirigido a ele se transforma
em todo tipo de má vontade, sabotagem e ressentimento.
51

Por essa via, vale lembrar as sucessivas tentativas de assas-


sinato que Hitler sofre, tramadas por seguidores próximos a ele,
uma vez iniciada a guerra; ou seja, toda a intensidade afetiva
que cunhou seu emblema de ‘Guia’ no período de reconstrução
do moral alemão após a Primeira Guerra, sucumbe de uma hora
para outra entre alguns de seus homens de confiança, que pas-
sam a vê-lo com a mesma intensidade afetiva, porém em senti-
do contrário.

Na experiência clínica da psicanálise, Freud constata que o


amor de transferência é, ao mesmo tempo, a condição e o impe-
dimento para o progresso de uma análise. De modo que, no per-
curso de um tratamento, espera-se que a figura do analista seja
pouco a pouco deslocada de patamares muito elevados para
aquilo que reste como meros respeito e confiança. Nos dizeres
de Lacan: a transferência de trabalho é suscetível de vir substi-
tuir o amor de transferência - e será no nível da transferência de
trabalho que um líder deverá ser hábil em se manter, recusando
o culto personalista à sua pessoa, dada a fragilidade com que
isso pode, da noite para o dia, se inverter.
52

CHEFIAR, MANIPULAR OU LIDERAR?

C
oloquemos agora sobre os pratos de uma balança, de um
lado o conceito de transferência, e, do outro, o cumprimento
das regras que devem reger o funcionamento de qualquer
organização.

Na extensa literatura de liderança, é comum o contraste en-


tre os papéis de chefe e líder. Em relação ao chefiar, irei situá-lo
aqui como o pendor da balança ao cumprimento exclusivo das
regras, num apelo ao grau hierárquico, aos protocolos e à obe-
diência funcional - face à carência, ou mesmo ausência, de um
vínculo de transferência de trabalho. O papel do chefe iguala-se,
nesse caso, ao de guardião das regras em um ambiente com fi-
nalidade produtiva, cabendo apenas determinar metas e cobrar
resultados, valendo-se para isso do poder de sua posição.
53

Invertendo a disposição da pedra, situo a manipulação. Nesse


caso, o endereçamento transferencial recai de modo tão maci-
ço sobre a figura do líder, que este passa a se considerar acima
das regras, conduzindo seu grupo em detrimento do que é ético
e valendo-se da boa vontade alheia para alcançar objetivos pes-
soais ou escusos.

Cabe salientar que a condição do chefiar, como aqui definida,


desenha um cotidiano mais típico ao meio corporativo e institu-
cional, seja ele civil ou militar, em que o benefício formal do cargo
de chefia impera diante da pouca atenção conferida ao estabe-
lecimento de um vínculo de transferência. Já o manipular pode-
rá ser mais frequentemente visto em certas pastorais religiosas
ou agremiações político-partidárias, onde o peso transferencial,
depositado na figura do líder, por vezes o encaminha a práticas
questionáveis do ponto de vista ético, valendo-se de seu caris-
ma para ludibriar corações e mentes. Em referência específica a
isso, não são poucos os hoje interessados em ‘técnicas de lide-
54

rança’ que se encontram à procura, na verdade, de técnicas de


manipulação de rebanhos.

Por fim, o caminho do liderar. Caminho, pois, como é sabido,


a chefia de um grupo se obtém por meio de uma nomeação; já a
liderança, apenas ao longo de um bom tempo. Nesse caminhar,
o zelo pelas regras e valores éticos avança igualmente apoiado,
para equilíbrio da balança, na tentativa de estabelecimento de
um vínculo de transferência de trabalho, conquistada por aquele
que lidera através de seu exemplo pessoal, bem como pelo nor-
te que aponta a seu grupo: norte que não convida simplesmente
a calar e obedecer, tampouco ao culto de sua pessoa, mas que
estimula as muitas e variadas contribuições que cada membro
da equipe possa vir a dar.

Nessa medida, observo que tanto o chefiar quanto o manipular


são, apesar de distintos, posições igualmente centralizadoras.
Ou seja, na ausência do cabeça, seu corpo de subordinados/se-
guidores sabe pouco o que fazer, posto que dependem do ‘pei-
xe’ que só aquele que os comanda se afirma capaz de ‘pescar’.
O liderar, nesse sentido, diria também respeito, de acordo com o
dito popular, aos cuidados em se transmitir o ‘ensino da pesca’.
Em suma, tanto o chefe quanto o líder carismático trabalham
para que dependam dele, o líder legítimo trabalha para que não
dependam.
55

CHEFIA E RECOMPENSA,
LIDERANÇA E MOTIVAÇÃO

M
as, enfim, qual a necessidade do vínculo de transferência
para fazer girar a engrenagem de uma instituição, desde
que ela esteja bem regrada? Para avançar nesse questio-
namento, relembro aqui a distinção, celebrada por Herzberg, en-
tre motivadores extrínsecos e intrínsecos.

Um estudo sobre a motivação realizado pelo economista Da-


niel Pink, compilado na forma de uma prazerosa animação dis-
ponível no YouTube pelo nome “Drive: A surpreendente verdade
sobre o que nos motiva”, irá nos interessar aqui. O argumento de
Pink, sustentado por experimentos de campo realizados por ins-
tituições de renome (MIT, Carnegie Mellon, entre outras), aponta
que o modelo de recompensa - faça isso e ganhe aquilo - funcio-
na muito bem para trabalhos simples ou que envolvam apenas
habilidades mecânicas. Nesses casos, a lógica da recompensa
funciona como se espera: quanto mais se oferece melhor o re-
sultado fica. Contudo, quando entra em jogo a execução de ta-
refas que envolvam o universo subjetivo/conceitual dos sujei-
tos, sua motivação diverge da lógica tradicional da recompensa
e envereda por caminhos bem mais complexos e intangíveis.

Um programador pode, por exemplo, passar madrugadas in-


teiras debruçado em alguma contribuição sua para a web, sem
obter em troca nenhum retorno senão a realização do feito em
56

si. Nesse caso, o sujeito não trabalha em troca de alguma re-


compensa previamente oferecida (motivação extrínseca); o re-
sultado excelente de seu trabalho, fruto do desafio de dominar
aquela matéria, é de fato sua maior recompensa (motivação in-
trínseca). É mesmo espantoso o que se pode obter dos sujeitos,
em termos de sua energia de trabalho, quando o efeito motor de
sua motivação versa sobre o aprofundamento e a realização de
suas aptidões.

Pink elenca três grandes motivadores que operariam no su-


jeito para além da lógica tradicional da recompensa extrínseca:
autonomia, domínio e propósito. Quanto ao primeiro, conceder
autonomia a um funcionário maduro, que trabalhe em algo que
envolva seu universo conceitual e aptidões, gera mais engaja-
mento do que a tentativa de controlar (apoiando ou corrigindo)
cada um de seus passos – o que não se aplica a funcionários
menos maduros, que deverão ser supervisionados, lhes sendo
oferecida maior autonomia na medida em que demonstrem tra-
balhar não apenas em troca de algo, mas pela expressão e rea-
lização de suas habilidades. Na extensão disso, vem o conceito
de domínio (mastery), isto é, o desejo de se aperfeiçoar na ativi-
dade que move o interesse íntimo do sujeito - a partir de onde,
como visto antes no exemplo do programador, brota uma fonte
grandiosa de energia de trabalho. Por último, o propósito, sinôni-
mo de motivo – de cuja raiz latina movere também deriva a pa-
lavra motivação. Pink constata que empresas movidas apenas
pelo propósito ‘maximizar os lucros’ tropeçam em um vazio de
continuidade em relação a outras, capazes de gerar orgulho nos
57

funcionários pelo sentido de contribuição que trazem à socieda-


de. Como é sabido, Steve Jobs se dizia movido pelo desejo de
“fazer um barulhinho no universo” (rsrs), e foi capaz de atrair e
se cercar de indivíduos dedicados a dar o melhor de si.

Por esse entendimento, como pode um chefe produzir efei-


tos de elevado empenho e engajamento valendo-se apenas dos
modeladores tradicionais do comportamento, recompensa e pu-
nição, sem incluir aí a sua paixão? Será, portanto, através de sua
paixão e exemplo que um vínculo de transferência de trabalho
poderá advir entre ele e seus colaboradores.

Avançando um pouco mais, cito outro artigo de Cecília Ber-


gamini, que nos aponta: “O líder não pode motivar seus lidera-
dos. Sua eficácia depende de sua competência em liberar a moti-
vação que os liderados já trazem dentro de si”. Por conseguinte,
a transferência de trabalho deverá ser lida como manifestação
da motivação intrínseca do sujeito, capaz de se afeiçoar a um lí-
der por perceber nele, entre outras coisas, condições favoráveis
para a liberação e realização de suas aptidões/ habilidades.
58

RELACIONAMENTO E ESCUTA

S
e, por uma via, o fenômeno da liderança abrange um poder
de influência do líder sobre um grupo, pela via inversa, diz-
-se que um líder só possui o poder que lhe é concedido por
seus liderados. Esse consentimento, como vimos, é transferen-
cial.

“A aceitação de um líder será tanto maior quanto mais


ele for considerado como facilitador de consecução dos
objetivos almejados pelos seus subordinados”
, observa Bergamini.

Com base nisso, entendemos que tal aceitação só poderá ser


endereçada a alguém que seja percebido como capaz de escutar
as questões que circulam no discurso em que está imerso. Re-
lacionar-se com seu pessoal se torna, então, crucial para quem
almeja liderar. Como conhecer as necessidades do momento,
não propriamente para atendê-las, mas para interpretá-las e or-
ganizá-las em um sentido que possa produzir efeitos de influên-
cia, sem oferecer ouvidos a elas?

E, ainda, como conhecer com quem se trabalha sem promo-


ver um canal de comunicação onde possam ser veiculadas as
queixas, anseios, sugestões, enfim, variantes daquilo que dese-
nha o perfil de aptidões e motivações pessoais de cada um? Só
59

assim um gestor poderá melhor alocar e realocar seus colabo-


radores em funções que lhes digam respeito, bem como melhor
organizar e sustentar o sentido através do qual ele, autor de suas
palavras, conduz e norteia aqueles que as aceitam como pala-
vras de um líder.
60

Bônus do capítulo:

MODERNIDADE LÍQUIDA
DESAFIO AOS MILLENNIALS

M
arço de 2000. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman pu-
blica seu livro-conceito: vivemos agora, nos diz ele, em
uma modernidade líquida.

Desde então, o conceito de Bauman repercute e se estabele-


ce com força no ambiente acadêmico, tornando-se fio condutor
de todas as suas demais publicações. Seu título mais conheci-
do aqui no Brasil é Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos (2004) – ali observado, em minúcias, o desprendimen-
to com que hoje laços afetivos se conectam e desconectam.

Dentre diversos enfoques, Bauman se dedica a contrastar


uma modernidade sólida anterior – linear, encadeada e previsí-
vel – face a essa que paulatinamente toma seu lugar, cada vez
61

mais fluida, veloz, simultânea e imprevisível, tal como a vivemos


hoje. O quadro abaixo resume algumas dessas mudanças.

MODERNIDADE MODERNIDADE
SÓLIDA LÍQUIDA

FAMILIA TRADICIONAL FAMILIA MOSAICO

TRANSIÇÃO ENTRE
PLANO DE CARREIRA
ÁREAS E EMPREGOS
SOCIEDADE VERTICAL/ SOCIEDADE HORIZONTAL/
PATRIARCAL PATRIARCAL

CULTURA DE MASSAS MASSA DE NICHOS

No campo da estrutura familiar, sua organização tradicional,


pai, mãe e filhos, passa a dividir espaço com novos tipos de ar-
ranjo: produções independentes, uniões abertas, cônjuges do
mesmo gênero, sendo o fenômeno de maior ocorrência a famí-
lia mosaico, nome dado a famílias que agregam meios-irmãos
ou enteados, inúmeras hoje, fruto de casamentos subsequentes
que desenham mosaicos parentais (meus filhos/ seus filhos/
nossos filhos).

Se a estrutura familiar fica líquida, algo muito semelhante


ocorre na esfera do trabalho. A expectativa de busca por um
emprego duradouro, cujo plano de carreira projete uma escala-
62

da estável até a aposentadoria, se vê contraposta por um tipo


de desenvolvimento profissional em que a transição entre dife-
rentes áreas e empregos não desmerece, mas valoriza um cur-
rículo em constante reinvenção, movido pelo desejo individual
e também por um contexto de acelerada instabilidade dos tipos
de profissão existentes.

Outro ponto crucial: no passado sólido vigora uma sociedade


vertical, patriarcal. Há certo consenso quanto a se submeter às
autoridades formais, professor, pai, chefe etc. Já em um contex-
to líquido, a sociedade fica horizontal, o que acarreta uma crise
generalizada de autoridade: professores com grande dificulda-
de para educar seus alunos, pais para educar seus filhos, bem
como chefes para exercer seu papel no ambiente de trabalho.
Mesmo as instituições militares, ainda que amparadas pela so-
lidez de suas tradições e pilares da hierarquia e da disciplina,
encontram-se hoje atravessadas por esse contexto líquido.

Nessa medida, o crescente interesse pelo fenômeno da lide-


rança, não somente no ambiente militar, mas em todo o meio
corporativo – formar líderes, não apenas chefes –, parece enca-
minhar uma tentativa de resposta a esse declínio da autoridade
formal/vertical.

Não se trata, definitivamente, de conceder elogios ou con-


clames de retorno à modernidade sólida. A primeira metade do
Século XX precisa ser lembrada pela celebração enganosa de
regimes totalitários, pela violência de duas grandes guerras, e
63

também pela rigidez de padrões morais que confinaram quantas


almas infelizes em empregos ou casamentos torturantes. Não
se pode diminuir o valor das conquistas de liberdade individual
obtidas com o derretimento do modelo sólido de sociedade – a
questão agora seria o que fazer com tanta liberdade.

Bauman observa que em nome da estabilidade (da família,


do emprego ou de instituições) um certo grau de autoritarismo
era tolerado, mas que na modernidade líquida a vontade de liber-
dade individual recusa pagar esse preço, denunciando qualquer
tipo de verticalidade ou submissão. A supremacia do direito à
liberdade produz então um clima de pouca aderência, de indi-
vidualismo e relativização dos discursos, posto que todos eles
agora se encontram em um mesmo patamar horizontal.

Consequentemente, a antiga cultura de massa, que orienta-


va sobre o bem e o mal, fragmenta-se agora em uma massa de
nichos, que se policiam mutuamente para que seus discursos
não firam suscetibilidades um do outro (quando isso ocorre, o
clima é de opiniões polarizadas e intolerância bruta: todos se
sentem ‘livres’ para se expressar como bem entendem).

O fato é que não existem diretrizes simples para responder


a essa nossa atualidade – também denominada de contexto
VUCA (sigla em inglês para volatilidade, incerteza, complexida-
de e ambiguidade).
64

Fica para os millennials – assim chamada geração de jovens


nascidos não apenas entre dois séculos, mas milênios – o de-
safio de avançar nesse cenário líquido, que lhes exigirá certa-
mente um mindset mais elaborado e growth para lidar com a
complexidade (diferentemente do de seus pais, apegado e fixed
em sínteses lineares: senão demasiado sólidas, demasiado lí-
quidas – como a cultura hippie dos anos 1960/70).

Millennials que crescem em um ambiente de esvaziamento


das ideologias, onde o aspecto financeiro é quem comanda o
discurso. Ideologias, afinal, lhes soam à rigidez, eles preferem
a fluidez. Já não apresentam qualquer espanto diante de uma
sexualidade líquida: aboliram, na linguagem, o ‘a’ e ‘o’ que dife-
rencia os gêneros, aplicando o ‘x’ ou ‘e’; são agora ‘amigxs’ ou
‘amigues’ – apaixonam-se por pessoas, não por gêneros – e so-
mente o tempo dirá se se trata aqui de modismo passageiro ou
de um novo giro na história da sexualidade humana.
65

Com o declínio da autoridade formal/vertical, importa-lhes a


autoridade moral, conquistável apenas por efeito de condutas
autênticas, transparentes, éticas. Almejam liderar pelo exem-
plo, não pela imposição de poder. Aspiram um trabalho que lhes
confira relevância e lhes aponte um propósito – não parecem
interessados em maximizar lucros apenas (como a geração dos
yuppies 1980/90 que os precedeu). Acreditam na sustentabili-
dade, na reciclagem e no impacto ecológico de pequenas ati-
tudes. Suas redes velozes lhes conferem possibilidades nunca
vistas, muitos de seus feitos nascerão a partir delas. Prezam a
liberdade, mas comungam do desejo ancestral de experimentar
o amor.

São ágeis e imediatistas, a todo tempo conectados, mas seus


sentimentos de mal-estar e angústia devem ser encarados – e
acolhidos – como reflexos de uma face dilacerante desse con-
texto: depressão, vícios, baixa autoestima e suicídio também
estão presentes entre eles. Cabe lembrar que Bauman tece uma
crítica, e não um elogio, ao desdobrar em seus livros os vários
aspectos desse panorama atual que vem chamar de moderni-
dade líquida.

Mas enfim, hoje estou na casa dos quarenta, e serei apenas


triste e nostálgico caso não imagine a geração de agora capaz
de navegar por esse contexto desafiador (o que não significa
enxergá-los com otimismo benevolente, mas arcar com a res-
ponsabilidade de ajudá-los nessa tarefa). Admiro-os, sim, com
olhos cheios de esperança e fé.
66

Capítulo 4

PULSÃO
Keywords do capítulo:

- Motivação intrínseca e extrínseca


- Instinto
- Pulsão (de vida/ de morte)
- Legado
- Teoria dos dois fatores de Herzberg
- Satisfação

4
- Estado de fluxo (flow)
- Ética a serviço dos bens /ética do desejo
67

MOTIVAÇÃO - EROS E TANATOS

P
ara tratar da motivação pelo olhar da psicanálise, podemos
partir de uma metáfora que descreva nosso dinamismo: ima-
gine sermos um tipo inusitado de máquina, cujo motor vital
girasse em frequências variadas. Dispondo isso como em um
painel automotivo, poderíamos então, com a psicanálise, apon-
tar três aspectos distintos de uma mesma energia: inibição, pul-
são de vida e pulsão de morte.

Comecemos pela inibição. Ela equivaleria a um baixo dinamis-


mo de nosso aparelho vital, “resultado de um empobrecimento
de energia”, escreve Freud em 1926. Acanhamento excessivo, vi-
são melancólica de mundo, insatisfação com as escolhas amo-
rosa ou profissional, um episódio terrível, mágoas e outros tan-
tos motivos podem suscitar no sujeito sua escapada para uma
zona de sombra, numa espécie de empobrecimento de seu de-
sejo de vida.
68

Algo nos diferencia dos demais seres vivos: somos os únicos


capazes de desperdiçar a própria existência. Na natureza, uma
onça selvagem jamais desiste de caçar porque sua pouca au-
toestima a desmotiva. Diante disso, Freud separa instinto (ins-
tinkt, em alemão), impulso de vida reservado aos animais e do
qual não podem escapar, de pulsão (trieb), impulso que poderá
permanecer girando em falso, numa espécie de adormecimento
das potencialidades do sujeito.

Mas vamos imaginar agora um sujeito abandonado entre o


celular e o computador, girando em falso entre seus passatem-
pos, resolvendo aceitar o convite de um colega para escalarem
juntos um pequeno rochedo, num exercício de alpinismo leve.

Nos estudos sobre a motivação, uma separação importante a


distingue entre extrínseca e intrínseca. No caso em questão, se
os motivos para aceitar o convite forem apenas uma troca (fa-
vores oferecidos pelo colega, argumento dos benefícios à saú-
de...), mesmo que o sujeito se arrisque algumas vezes, estará
ali sempre na qualidade de um acompanhante inexpressivo – e
que na primeira dificuldade pode voltar ao aconchego de seus
69

passatempos. Aqui temos a motivação extrínseca: uma troca


incapaz de agitar verdadeiramente o sujeito.

No campo organizacional, a teoria dos dois fatores de Her-


zberg diferencia com clareza o empregado simplesmente condi-
cionado por motivadores extrínsecos (trocas), de um outro cujas
ações demonstrem um comportamento realmente motivado. O
fato é que o ‘start’ motivacional se origina no sujeito, cabendo
aos gestores não apenas motivar com objetos de troca, mas,
sobretudo, fomentar o potencial motivacional contido em cada
um de seus colaboradores. “O líder não pode motivar seus lide-
rados. Sua eficácia depende de sua competência em liberar a
motivação que os liderados já trazem dentro de si”, atesta em
um de seus artigos a psicóloga organizacional Cecília Bergami-
ni. Os famosos TED talks de Simon Sinek e Daniel Pink também
apontam precisamente esse norte.

Prosseguindo com nosso exemplo, digamos que, aceito o con-


vite, o sujeito tenha não só apreciado a experiência do alpinismo,
como também, para sua surpresa, perceba-se instigado por ela.
Em seu entorno, após um curto espaço de tempo, transitam ago-
ra equipamentos, acessórios, pôsteres, e nenhum outro tema o
toma tão em cheio quanto o planejamento de sua próxima esca-
lada. Adeus passatempos, aqui temos a motivação intrínseca.

Conforme destacam diversos livros sobre o tema, as palavras


‘motivação’ e ‘motivo’ associam-se (declinam ambas do latim
movere, que significa deslocar, fazer mudar de lugar), ou seja,
70

a motivação pressupõe motivos que a animam. Aqui, porém, a


clínica psicanalítica acrescenta uma pequena diferenciação: en-
quanto, na motivação extrínseca, os motivos de troca são bem
conhecidos para o sujeito: “faço isso apenas pelo dinheiro...”, na
motivação intrínseca verifica-se certo desconhecimento, isto é,
ainda que motivos plausíveis sejam avistados, o que realmente
determinou a escolha do sujeito por esta ou aquela atividade, ele
provavelmente jamais saberá dizer – lhe basta saber que adora
o que faz.

Ora, convenhamos, não foi preciso esperar por Freud para sa-
bermos que não comandamos aquilo que atiça nossas paixões.
A literatura, repleta de personagens que se apaixonam pelo não
escolhido, revela essa verdade desde muito cedo na história hu-
mana. Nesse sentido, coube a Freud apenas formalizar uma prá-
tica voltada a movimentar nossas disposições intrínsecas – se
valendo para tanto de conceitos como a pulsão, que ele difere
do instinto animal.

Vamos então um pouco mais fundo nesse conceito. A pulsão,


constructo hipotético de Freud, seria aquilo que exerce em nós
uma pressão contínua por algum tipo de satisfação. Ela nos atira
em direção aos objetos do mundo: instiga a uns uma montanha
a escalar, a outros um projeto a realizar, uma pessoa a seduzir,
uma carreira a galgar, ou mesmo um Linkedin em que muito se
queira interagir – pequenos e grandes objetos/objetivos através
dos quais ela gira, acelera o que poderíamos chamar de spin pul-
sional/motivacional.
71

E voltemos à jornada de nosso novo alpinista. Após algumas


repetições bem legais de escaladas de nível 2, o sujeito percebe
não encontrar a mesma satisfação, ou ‘carga de adrenalina’, an-
tes obtida, passando a almejar níveis mais extremos. Nas ten-
tativas de alcançar o nível 5, se acidenta, volta para casa ralado,
e em seguida com um dos membros contundido. Enfim, aquilo
que o inspirava à vida, ao suor e ao sol, revela-se agora um peri-
goso flerte com a morte.

Pois bem, a motivação intrínseca pode se exceder em seu di-


namismo (e talvez por isso mesmo a inibição prefira se precaver
dela dormindo). Tanto é assim, que as manifestações clínicas
de uma inusitada atração pelo perigo, ou repetição de situações
sofridas, desagradáveis, produzem em Freud uma reviravolta,
ponto que culmina com o surgimento de seu novo e controver-
so par: de um lado, Eros, a pulsão de vida; do outro, Tanatos, a
pulsão de morte.

São grandes as dificuldades de Freud para fundamentar es-


sas duas pulsões, sempre menos ou mais misturadas, “fusiona-
das” uma à outra. Já Lacan, vejam só, sugere que não se trata
72

de um par, mas de dois aspectos da mesma energia. Ou seja,


aquilo que em Freud pode ser lido como dualidade, anjo num
ombro, diabo no outro, desliza para Lacan num plano contínuo,
onde uma motivação antes carregada de vitalidade passa, sem
perceber, a manifestar um aspecto autodestrutivo – cujo preço,
no caso dos alpinistas, faz com que infelizmente alguns deles
não regressem vivos a seus lares.

A partir desse entendimento, a tênue passagem de Eros a Ta-


natos pode ser ilustrada de quantas maneiras? Da conquista do
volante à direção imprudente; da sexualidade à promiscuidade;
da admiração de um líder à sua idolatria; da capacidade de ar-
gumentar e debater à violência física ou moral; do apreço pelo
trabalho à inquietação exaustiva em busca de maiores e ainda
maiores resultados... Os desmesurados desvios praticados por
alguns de nossos governantes, hoje estampados nos jornais,
também cabem aqui como exemplo.

E para entendermos ainda melhor essa estranha tendência


ao excesso, vale a pena investigar um outro conceito valioso de
Freud, que ele chamou princípio do prazer (calma, leitor, prome-
to não complicar demais, siga comigo). Sempre que encontrar
por aí essa expressão, princípio do prazer, entenda-a como a ver-
tente insaciável da pulsão. Com esse conceito, Freud elucida o
mecanismo de todo tipo de vício, propenso à repetição em bus-
ca de uma dose a mais: entorpecentes, alimentos, jogos, com-
pras, sexo, esportes radicais, ganhos financeiros... Cito Freud:
“O princípio do prazer parece, na realidade, servir às pulsões de
73

morte”, trecho do parágrafo final de um de seus mais conheci-


dos textos, Além do princípio do prazer, de 1920.

Percebam com atenção: o texto se chama “Além do princípio


do prazer”, e o que quer dizer esse ‘além’? Trata-se da diferença
que separa o homem (pulsão) dos demais seres vivos (instinto).
Reparem, na natureza selvagem não existe obesidade mórbida,
sequer existe sobrepeso (salvo os pets, que convivem com nos-
sa dinâmica pulsional). Um leão na savana nunca se alimenta
em excesso, tampouco definha porque enjoou de comer zebras;
somos os únicos capazes de morrer por overdose (dose ‘além’).
No reino animal, o instinto funciona como um princípio de ho-
meostase, isto é, impele os bichos a comer quando têm fome,
dormir quando têm sono... baixando a tensão de seu organismo
em função do que o metabolismo exige – como também é o caso
do instinto sexual. O que Freud constata, em nós, é uma espécie
de ultrapassamento desse princípio de homeostase, um além,
capaz de manifestações impensáveis na natureza, ‘antinaturais’
até, como nos exemplos da obesidade mórbida ou da morte por
todo tipo de excesso.

Retomando nossa metáfora do painel automotivo: o princípio


do prazer seria aquele que acelera, para além de qualquer limite,
o dinamismo de nossas motivações.

Mas não estamos todos fadados e vulneráveis a essa espiral


destrutiva do princípio do prazer. Contra sua aceleração, Freud
opõe o que chama princípio da realidade, entendível enquanto
74

nossa capacidade de suportar períodos de desprazer para, mais


ali na frente, colher satisfações de outra ordem. Por exemplo,
um estudante capaz de abdicar de algumas diversões em favor
dos estudos, obterá, mais tarde, o prazer de graduar-se em me-
lhores condições de emprego do que o colega que cedeu ao giro
em falso das baladas.

Portanto, motivações não poderão ser consideradas positivas


simplesmente por manifestarem um grande dinamismo: se atre-
ladas ao apelo de recompensas de curto prazo, sua tendência
é a auto-ruína (Breaking Bad e O lobo de Wall Street me ajudam
aqui). Por outro lado, motivações que operem pela via de uma
renúncia (preceito valioso à inúmeras religiões), podem susten-
tar, sim, um dinamismo ativo, mas resiliente a prazeres de fácil
75

alcance, colhendo frutos de outro modo inalcançáveis pela ca-


pacidade de suportar a aridez do plantio.

Simon Sinek, em uma palestra de 2013, trata do efeito da do-


pamina, neurotransmissor associado à motivação por recom-
pensa (propensa ao vício), em oposição à serotonina, associa-
da a sensações de bem-estar que só construções mais lentas e
duradouras, como ir trabalhar todos os dias com o que se gosta,
ainda que em meio a muitos percalços, podem nos oferecer. A
apresentação de Sinek não poderia ser lida como uma tradução
neuroquímica dos dois princípios de Freud? Creio que sim.

Enfim, a dinâmica de conflito entre esses dois princípios, do


prazer e da realidade (ou, por outra, o mindset do sujeito em re-
lação às necessárias renúncias) permanecerá em jogo por toda
nossa vida, bem como o desafio por sua possível estabilização.
De fato, nada se estabiliza pela simples vontade de nosso pen-
samento, será preciso saber lidar com nossas ondas pulsionais
– assunto abordado em maior detalhe no Capítulo 2 – Onde está
o inconsciente? Nesse sentido, a clínica psicanalítica se oferece
como um dispositivo capaz de movimentar nossas ondas intrín-
secas, mas também um local de trabalho sobre nossos propósi-
tos, escolhas e renúncias – sem que, para tanto, abramos mão
de nossas paixões.
76

PULSÃO DE VIDA

M
as nos concentremos agora, para encerrar, no melhor de
tudo isso, afirmando o vetor de construtividade e inventivi-
dade das motivações humanas. Se os animais selvagens
não se excedem, por outro lado estão condenados a permane-
cer sempre os mesmos durante seu curto tempo de vida; seus
instintos estão atrelados apenas ao biológico. No nosso caso,
fomos dotados de um algoritmo linguístico que um dia nos fez
sapiens e, por conta disso, nos abriu a um campo inteiramente
outro de possibilidades. Freud chama a pulsão de vida de Eros,
em ressonância, sim, ao erótico e ao sexual. Mas, reparem, o ins-
tinto sexual dos bichos visa tão somente a procriação; já nossa
dinâmica pulsional, entremeada à linguagem, nos permite gerar
também filhos simbólicos, isto é, um legado: “notem a energia
de trabalho daquele sujeito; sua passagem por aqui contribuiu
com mudanças que ficarão para os que o sucederem”.

Por essa perspectiva, se, por um lado, somos os únicos ca-


pazes de adormecer nossas potencialidades, nessa espécie de
‘morte em vida’ que é a inibição, por outro, somos também os
únicos capazes de transcender a morte através da transmissão
simbólica de nossos legados. E isso significa, de alguma ma-
neira, parar de girar em falso em torno de nós mesmos e passar
a beneficiar a coletividade com nossos frutos – não são esses,
afinal, os legados que sobrevivem ao tempo?
77

Bônus do capítulo:

MASLOW, HERZBERG, LACAN:


INDICAÇÕES PARA A SATISFAÇÃO 4.0

P
ouca gente sabe, mas o próprio Maslow relativiza sua pirâmi-
de anos mais tarde.

Sua cultuada hierarquia das necessidades é proposta, repare


como faz tempo, em 1943, no artigo “A Theory of Human Moti-
vation”. Hoje, a pirâmide de Maslow também circula numa bem
78

humorada versão 2.0, com wifi e bateria anteriores a qualquer


necessidade fisiológica:

Curioso como esse modelo ‘original’ proposto em 1943 orien-


ta de modo tão onipresente o tema da motivação, a despeito
das considerações posteriores de Maslow, feitas em 1954. Mais
adiante, em 1968, Herzberg publica na Harvard Business Review
seu “One more time: how do you motivate employees?”, reim-
presso em 1987, por conta do 65o. aniversário da revista, como
o artigo de maior repercussão da HBR até então.
79

A sacada de Herzberg é mesmo inquietante. Pesquisando


motivação por duas décadas em diversos setores, o psicólogo
americano apresenta uma dicotomia - fatores higiênicos vs. mo-
tivacionais, conhecida como Teoria dos dois fatores - que pode
muito bem ser lida como a chave que divide a pirâmide de Mas-
low em duas.

Fosse mesmo uma escalada única e hierarquizada, seria im-


possível obter a sensação de realização pessoal antes de esta-
rem resolvidas as muitas necessidades materiais. Mas cenas
como as vistas, por exemplo, em hospitais ou escolas, onde a
precariedade de recursos contrasta, por vezes, com um alto grau
de comprometimento e energia despendido por seus profissio-
nais, atestam a necessidade de uma relativização (quem tiver
interesse nas considerações posteriores de Maslow, o artigo de
Jáder dos Reis Sampaio vai a fundo nelas).

Herzberg, por sua vez, separa a motivação em dois vieses,


deixando muito claro o seguinte (e brilhante) raciocínio: fatores
que nos tornam insatisfeitos no trabalho podem ser melhorados
apenas a ponto de nos deixar sem insatisfações; já uma relação
sem satisfação com o trabalho só poderá encontrar satisfação
quando a natureza do trabalho em si disser respeito ao sujeito.
Fatores extrínsecos e intrínsecos.

Não restam dúvidas de que fatores extrínsecos insatisfató-


rios - tais como salário baixo, recursos precários, regras estúpi-
das ou pouco ágeis, chefias tóxicas ou despreparadas - poderão,
80

em algum momento, acabar minando a motivação intrínseca de


qualquer profissional; o que não se pode perder de vista, com
Herzberg, é que a tentativa de produzir motivação intrínseca
com base na melhoria exclusiva de fatores extrínsecos resulta-
rá, frequentemente, em efeitos aquém dos desejados.

Experimente oferecer um bônus polpudo a quem já goza de


um bom salário, acreditando gerar com isso mais engajamen-
to em relação a determinado projeto - em geral, você irá conse-
guir gerar apenas um belo constrangimento. Citando o próprio
Herzberg: “Se procuro seduzir alguém para que se mova, quem
está motivado sou eu”.

Nessa medida, o papel das lideranças não consiste em mo-


tivar, mas permitir que a motivação intrínseca dos sujeitos se
manifeste; o líder abre passagem para que os talentos e habi-
lidades do sujeito – e para isso irá precisar conhecer bem sua
equipe – possam ser aproveitados e incentivados a se desen-
volver. Isso produz ganho de sentido ao trabalho e faz dele um
meio de satisfação em si – não apenas um ambiente estéril à
procura de trocas ou transações de ordem extrínseca.

Em relação específica a salário e satisfação pessoal, é sem-


pre bom ter em vista o artigo excelente de David Myers, The
Funds, Friends, and Faith of Happy People, publicado em 2000.
Você já deve ter tido notícias dele, através desse gráfico, em al-
gum TED Talk:
81

O estudo demonstrado por Myers constata que, sim, baixos


níveis de renda geram variados tipos de infelicidade; contudo,
a partir de determinado patamar financeiro, o aumento do nível
de renda não produz qualquer ganho de satisfação pessoal. Al-
guma semelhança com a teoria dos dois fatores de Herzberg?

Além de citado no TED de Daniel Kahneman, psicólogo No-


bel de Economia, esse estudo de Myers também é exposto no
saboroso TED de Mihaly Csikszentmihalyi, que versa sobre a
experiência do Flow, sensação de ‘fluidez’ por meio da qual o
sujeito se sente inteiramente envolvido em sua atividade labo-
ral (uma vez em flow, a hora voa e você fica irritado por ter que
interromper o que está fazendo).

Não há dígito salarial que possa conduzir alguém a esse tipo


de estado. A ‘moeda de valor’ aqui é o flow em si, ou o caminho
de desenvolvimento que leva até ele. E claro que não há como
permanecer unicamente em modo flow, pelo contrário: quem qui-
ser provar desse filé, só o fará abraçando também o seu osso;
há uma fantasia em nós que constantemente anseia separar o
82

agradável do desagradável, numa espécie de ofício mítico - mas


só aqueles capazes de suportar as adversidades de suas esco-
lhas gozarão do prazer desse fluir.

Além do que, não há meios de escolher por ato consciente o


ofício no qual ‘gostaríamos’ de fluir. É preciso se lançar no cam-
po das experiências para checar em que tipo de atividade - sem
às vezes nos darmos conta - embarcamos nesse tipo de fruição.

No contexto de mudanças aceleradas da Revolução 4.0, fica


a pergunta sobre o real propósito de grande parte daqueles que
buscam em suas startups de transformação massiva o tal efei-
to unicórnio. Quantos não operam ali movidos pela fantasia de
enriquecimento exponencial, sem estar advertidos de que mes-
mo o máximo conforto não é resposta para a satisfação pes-
soal. Aqueles não movidos por uma causa que realmente lhes
diga respeito, e sim por ganhos externos, tenderão a abandonar
o barco na primeira ou segunda dificuldade.

Mas esses são velhos recados que precisam ser constante-


mente reeditados:

1) quem acredita que pode motivar pessoas parte do pres-


suposto de que elas devem ser chefiadas, e não lideradas (Ber-
gamini, 1994);

2) mitigar insatisfações ou tentar gratificar, por si só, não faz


ninguém trabalhar em ‘modo flow’;
83

3) realização pessoal e conforto material avançam em pirâ-


mides distintas.

Quanto a esse último ponto, Jacques Lacan, psicanalista fran-


cês, fala da ética da psicanálise enquanto ética voltada para o
desejo, isto é, para aquilo que comumente entendemos como
busca pela realização de nossas disposições intrínsecas. A isso
Lacan opõe uma ética a serviço dos bens, tipo de busca que pro-
cura encontrar nos objetos um tipo de satisfação que nunca se
alcança, nunca se completa, e desliza em miragens ideais de
conforto e estética, num tédio angustiante que ignora o que seja
fluir.

Ficam, para esse contexto de incertezas, as indicações dos


autores aqui citados para um modelo de Satisfação 4.0.
84

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• https://www.agoramt.com.br/2014/02/entendendo-direito-fami-
lia-mosaico-ou--reconstituida-um-novo-modelo-de-familia/

• https://www.ted.com/talks/daniel_kahneman_the_riddle_of_ ex-
perience_vs_memory

• https://www.ted.com/talks/mihaly_csikszentmihalyi_on_fl
ow?language=pt-br
88

Sobre o autor
No currículo formal, psicólogo e especialista em clínica psi-
canalítica pela UFF, mestre em psicologia clínica pela PUC-RJ.

Na prática, uma carreira acadêmica envolvendo a psicanáli-


se seria o destino provável, mas a admissão para psicólogo da
Marinha em 2007 muda as peças de lugar - no meio do curso de
formação da Marinha, o módulo Liderança chama sua atenção
e o interesse pelo assunto vai às alturas.

Então, ao mesmo tem-


po em que ganha experiên-
cia clínica no sistema de
saúde da Marinha (que já
lhe permitiu cruzar as tais
dez mil horas de atendi-
mento), em paralelo, pas-
sa a chefiar equipes e a se
interessar cada vez mais
pelo mundo corporativo.

Daí nasce o interesse


em revisitar temas como
motivação e liderança pelo
olhar da psicanálise. Escri-
tor compulsivo, aprende na
89

faculdade a encarar ‘pedreiras’ - procurar os textos clássicos de


um tema, em geral mais densos e difíceis -, para então quebrá-
-los em blocos menores e, a partir disso, produzir seus próprias
publicações, privilegiando uma linguagem clara, livre de acade-
micismos, e que traga sobretudo algo próximo das mãos.

Em relação a isso, viveu um dilema: achava congressos de


psicologia, embora instrutivos, tediosos e muito fechados em si
mesmos; passa a frequentar summits, e se vê num lago de di-
versão, braçadas livres e pouquíssima profundidade. E aí?

Seu desafio hoje é habitar a fronteira entre pedreira e lago.


Ajudar quem procura aprimoramento pessoal e profissional a
obter resultados, com material que possa encurtar a distância
entre a prática real e as intermináveis listas de 10 hábitos, 5 pas-
sos... dentre outros modismos e buzzwords corporativos.

Um segundo desafio é deixar claro que o propósito da psica-


nálise não consiste em acrescentar novas ferramentas ao re-
pertório organizacional (mais ferramentas?!), seu propósito tem
mais a ver com extrair do sujeito um estilo, um viés autoral - e
certamente criativo - que lhe permita utilizar melhor as ferramen-
tas de que já dispõe.

Por fim, curte muito a adrenalina de uma palestra, aprecia o


modelo TEDTalk e se inspira muito com alguns deles. Já pales-
trou profissionalmente no Ibmec-RJ, empresas do setor de trans-
90

porte, UNOESC-SC, Prefeitura de Luzerna, além de, claro, em di-


versas unidades da Marinha do Brasil.

Atualmente, seus autores de referência extrapolam o nicho da


psicanálise e vão de Taleb a Bauman, imprescindíveis Drucker
e Herzberg, de olho também em tudo que diz respeito à Revo-
lução 4.0 - contexto de acelerada transformação digital em que
vivemos.

Amante da literatura, às vezes também arrisca escrever con-


tos (acredita que a ficção nos leva onde a dissertação não al-
cança), e já teve até conto literário publicado no jornal O Globo,
através do concurso Contos do Rio, em 2003.

Flamenguista que só assiste Copa do Mundo, degustador de


bons blends de café expresso, mora com a família no Rio de Ja-
neiro.
***
Rio de Janeiro, novembro de 2019
93

“ Entender a condição humana é essencial para


limpar o ruído causado pelo motivacional barato.
Haendel transformou teorias pouco acessíveis em
algo prático e enriquecedor, algo raro hoje em dia.”
Ricardo Costa
Dell Datacenter Partner Manager, Global MBA
at The University of Manchester

“ Aplicar a psicanálise lacaniana no ambiente


corporativo é de um pioneirismo ímpar. ”
Matheus Minella Sgarioni
Psicanalista, Supervisor Clínico do SAPP

“ Haendel tem essa habilidade de transitar


perfeitamente a fronteira entre o leigo
e o erudito com muita perspicácia.”
Marisa Graça
Diretora Executiva da Big One Pro Eventos

“ Caro Haendel, cada texto seu é um valioso


presente à nossa reflexão!”
Anderson Adami
Gestor da Informação, Desenvolvedor VBA

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