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O Realismo Animista e a Literatura Africana

Elisângela da Silva Tarouco


Mestranda
Centro Universitário Ritter dos Reis
elitarouco@yahoo.com.br

“O Animismo é uma tentativa de se viver respeitosamente como


membros de uma comunidade diversa (…) a qual chamamos de
mundo ou cosmos.” Graham Harvey.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o termo Realismo Animista
vinculado à literatura africana, conforme artigo de Harry Garuba, Explorations in
Animist Materialism: Notes on Reading/Writing African Literature, Culture, and Society.
Cunhado por Harry Garuba, o termo permite-nos uma nova compreensão e uma
oportunidade de ampliar estreitos conceitos baseados nos modelos críticos vigentes,
voltando nosso olhar para os relatos da literatura africana contemporânea. Por uma
concepção animista de realidade e de mundo, as estórias buscam ressignificar os
modos de vida dos antepassados e ampliar as possibilidades de significação do
encontro entre a tradição e a modernidade. Esse tipo de escrita subverte as
convenções do realismo, e a substituição pelo termo Realismo Animista sugerida por
Garuba parece ser a maneira mais apropriada para classificar essa narrativa em que
os elementos da cultura tradicional africana coexistem com os elementos modernos.
Assim, o artigo que aqui apresentamos viabiliza atividades de pesquisa e de pós-
graduação, oportunizando discussões ao referenciar uma fonte ainda inédita em língua
portuguesa.

Palavras-chave: Realismo Animista, Harry Garuba, literatura africana, tradição,


modernidade

A inspiração que nos leva a escrever será exatamente a tentativa de


retratar um processo de busca e redescoberta de uma identidade, de refletir
acerca da relação do eu africano e do outro colonizador com a realidade de um
país como a África em um período de pós-colonização. O papel do indivíduo
africano em meio a essa confluência de ideias e dessa necessidade de
reafirmação e posicionamento nos evidencia uma oportunidade de ampliar
estreitos conceitos baseados nos modelos críticos vigentes, voltando nosso
olhar para os relatos da literatura africana contemporânea e debruçarmo-nos
sobre o conceito de realismo animista.

Através de uma concepção animista de realidade e de mundo as


estórias africanas buscam ressignificar os modos de vida dos antepassados e
ampliar as possibilidades de significação da relação entre a tradição e a
modernidade. Esse tipo de escrita subverte as convenções do realismo e a
substituição pelo termo realismo animista sugerida por Harry Garuba 1 parece

1
Harry Garuba é o coordenador do departamento de estudos africanos e professor associado no centro de estudos
africanos da Universidade de Cape Town. Seus interesses de ensino incluem a Literatura africana, a teoria e a crítica
ser a maneira mais apropriada de classificar essa narrativa, onde os elementos
da cultura tradicional africana coexistem com os elementos modernos.

Garuba acredita que a realidade africana possa ser mais bem


compreendida através do viés animista, pois nada mais é do que a convivência
harmoniosa do mundo dos vivos com o mundo dos mortos e dos tempos
passado, presente e futuro. Segundo ele, esse conceito abre uma nova visão
de tempo diferente daquele sempre linear e positivista codificado nas noções
de progresso e de secularidade.

A cada momento, a humanidade tenta estabelecer um diálogo com o


mundo, diálogo com o passado e com o futuro, num olhar ambivalente como o
da face de Jano. Quanto mais tentamos descobrir o que o futuro nos reserva,
mais nos deparamos com os enigmas de nossa existência e com os limites
daquilo que não conhecemos ainda. Tradicionalmente, os africanos
reverenciam boas estórias bem como o ato de contar estórias. As tradições
antigas de escrita existem no continente africano, mas a maioria hoje, como no
passado, são primordialmente pessoas orais e suas formas de arte são muito
mais orais do que literárias. As formas de arte na África são ricas e variadas, se
desenvolvem desde os primórdios da cultura africana e permanecem como
uma tradição viva que continua a evoluir e desabrochar até hoje.

Todas as culturas humanas parecem criar narrativas como uma forma


de fazer diferença no mundo. Os provérbios, as estórias, os contos e narrativas
africanas evidenciam o conhecimento e a sabedoria coletiva dos povos,
expressam suas estruturas de significado, sentimento, pensamento e
expressão, servem a um importante propósito cultural e étnico:

A estória propriamente dita é uma forma primária de tradição oral,


primária por ser um modelo que representa cultura, experiência e
valor bem como um meio de transmitir conhecimento, sabedoria,
sentimentos e atitudes em sociedades orais; uma posição central é,
portanto, dada à estória na tradição oral por escritores africanos na
formação de seus trabalhos e de seu mundo literário.
(OBIECHINA,1993).
Não podemos estudar as literaturas africanas sem observarmos culturas
e oralidades particulares nas quais os escritores africanos se inspiram para
extrair seus temas e valores, suas estruturas narrativas e suas tramas, seus

colonial, a modernidade africana e as tradições da escrita nacionalista africana. Suas publicações recentes exploram
questões de mapeamento, espaço e subjetividade no contexto colonial e problemas da modernidade,
especialmente com relação à natureza e a forma de inflexões dos africanos sobre o moderno.
ritmos e estilos, suas imagens e metáforas seus princípios éticos e artísticos. É
através da literatura que podemos perceber como o autor africano explora a
subjetividade e as identidades que evoluíram de suas experiências,
particularmente na medida em que elas foram se inscrevendo na sua ideologia.

São suas palavras que nos levarão a compreender mais além do que
conta a história. Não é o homem que conduz a palavra, mas é ela que
o mantém no ser. Para Buber a palavra proferida é uma atitude
efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem. Ela é um ato do
homem através do qual ele se faz homem e se situa no mundo com
os outros. A intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da
palavra que, pela intencionalidade que a anima, é o princípio
ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal. (Zuben, 2001,
p. XLI ).
Ao povo africano foram impostos hábitos, religiões e modos de agir.
Essa nova tradição, marcada principalmente por seu caráter impositivo, é
percebida como algo genuinamente bom. Contudo, um povo sem raiz não
chega a desenvolver-se, da mesma forma que uma planta sem raízes não
chega a se tornar coisa alguma. Os processos de transformação do mundo,
intensificados na época atual com o avanço dos recursos tecnológicos postos
em prática, parecem ameaçar, com a velocidade com que propiciam mudanças
e alterações, grande parte da reserva de memória. A cultura africana, e,
portanto a sua literatura também, tão ricas, porém tão enfraquecidas pelas
influências dos colonizadores, que tentam retirar dela tudo que lhes é
tradicional, se veem tateando em busca de uma cultura nacional. Para que
possamos realmente ler e entender a literatura africana devemos vê-la como
uma mediação que se sustenta entre a questão de uma modernidade colonial e
a de uma subjetividade tradicional africana e como isso será registrado na
literatura, no imaginário e nos modos de vida da África.

Faz-se necessário nesse momento resumir o credo básico da crença


animista. Segundo Garuba, esse credo é composto de duas filosofias básicas.
A primeira diz que coisas possuem uma vida própria e a segunda que, quando
suas almas são despertadas sua respiração é liberada e podem migrar para
outros objetos. De acordo com Brenda Cooper, "escritores africanos
frequentemente aderem a este animismo, incorporam espíritos, ancestrais e
animais que falam à histórias, lendas folclóricas e a contos recentemente
2
inventados, a fim de expressar suas paixões, sua estética e sua política." A
grande estratégia adotada por esses escritores é dar um aspecto material ou
uma existência material, ao que talvez sejam somente ideias ou estados de
espírito através do qual o animismo impõe uma dimensão espiritual à objetos
materiais. Essa materialização de ideias, esse hábito de dar uma dimensão
concreta a ideias abstratas é uma prática normal dentro da cultura Africana.

O ponto que tentamos destacar é que as práticas linguísticas e


representacionais implícitas em uma concepção animista de mundo são muito
maiores em dimensão e em âmbito do que o conceito de realismo mágico
poderia possivelmente descrever; elas podem aparecer como instâncias
individuais dentro de alguns textos e outras vezes podem tornar-se o princípio
organizador da narrativa inteira. É nessa última instância que o termo realismo
mágico vem sendo empregado. No entanto, o realismo mágico como
desenvolvido pelos escritores latino-americanos e teorizado por seus críticos
mais importantes possui um aspecto urbano e cosmopolita (do ponto de vista
dos escritores) e uma atitude irônica, que não são necessariamente elementos
da narrativa animista ou de seus escritores. É em reconhecimento a essa
limitação que o autor Harry Garuba empregou o termo realismo animista para
descrever essa prática predominantemente cultural de harmonizar um aspecto
material físico, frequentemente animado, com o que outros podem considerar
um conceito abstrato. O Realismo animista, para Garuba, é um conceito muito
mais abrangente, do qual o realismo mágico pode ser calssificado como um
subgênero, com suas próprias características de conexão e sua diferença
formal.

Esse conceito abre uma nova visão de tempo diferente daquele sempre
linear e positivista codificado nas noções de progresso e de secularidade.
Deve-se essa tendência à necessidade de reconhecer e respeitar as diferenças
de crenças, de conhecimentos locais e da linguagem, emoldurando uma
imagem de continuidade em oposição a do choque e da colisão. O animismo
suavizaria o movimento em direção à modernidade fornecendo certezas
culturais que criam essa ideia de contínuo em oposição ao caos.

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COOPER, Brenda. Magical Realism in the West African Novel: Seeing with a Third Eye. London:
Routledge, 1998. Veja também: ROONEY Caroline. African Literature, Animism and Politics. London:
Routledge, 2000.
Os autores africanos tendem a substituir o termo realismo mágico pelo
termo realismo animista para uma representação dos mitos e dos fatos insólitos
presentes no imaginário popular africano. Deve-se essa tendência à
necessidade de reconhecer e respeitar as diferenças de crenças, de
conhecimentos locais e da linguagem.

Harry Garuba utiliza o termo realismo animista para significativamente


nomear uma tendência na ficção africana que é muito mais ampla que o
realismo mágico. Se o realismo mágico caracteriza-se por uma tentativa de
capturar a realidade através de uma visão multidimensional do mundo, visível e
invisível, a lógica animista subverte e desestabiliza a hierarquia da ciência
sobre o mágico e a narrativa secular da modernidade, reabsorvendo o tempo
histórico nas matrizes do mito e da mágica. Para ele a realidade africana pode
ser mais bem compreendida através do viés animista, pois nada mais é do que
a convivência harmoniosa do mundo dos vivos com o mundo dos mortos e dos
tempos passado, presente e futuro. Segundo ele, este conceito abre uma nova
visão de tempo diferente daquele sempre linear e positivista codificado nas
noções de progresso e de secularidade.

No imaginário africano, existem representações culturais por meio de


elementos insólitos que estão próximos aos acontecimentos de Cem anos de
solidão, obra que exemplifica o realismo mágico latino-americano. Contudo, a
natureza africana, os elementos que compõem os mitos, os chamados pontos
cegos3 da cultura (BELINSKY, 2007), extrapolam a realidade latino-americana
na cultura, no tempo e na geografia.

Um tema recorrente em relatos sobre o encontro entre modos de vida


tradicionais e a modernidade é o choque de culturas e a agonia do homem ou
da mulher presos na angústia de concepções antagônicas de mundo e de vida
social. Nessas narrativas, uma estrutura binária é geralmente erigida, e dentro
desse mundo a luta agonizante do protagonista é desenhada. A trajetória
animista de acomodação esboçada aqui parece desmentir os binarismos
rígidos dessa narrativa e atenuar as relações agonizantes frequentemente
concebidas por uma elite em busca de lugares de estabelecimento e
identidade.

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O ponto cego, segundo Belinsky, seria os valores próprios e inquestionáveis dentro de uma
determinada cultura. Por exemplo: a poligamia, o mito da virgindade, etc.
O que pode estar muito mais próximo da realidade é que a lógica
animista subverte esse binarismo, desestabilizando a hierarquia da ciência
sobre a magia e desestruturando a narrativa secularista da modernidade pela
reabsorção do tempo histórico nas matrizes do mito e do mágico. Para a massa
de pessoas comuns, o animismo suaviza o movimento em direção à
modernidade, fornecendo certezas culturais, que criam a "ilusão" de um
contínuo, ao invés da de um abismo, dando assim uma ordem subjetiva
imposta para o caos da história.

Se isso é visto como uma prova da própria modernidade africana, ou


seja, de uma modernidade conflituosa, em crise, ou de uma diferença dentro da
modernidade, o que está claro é que o animismo subverte a autoridade da
ciência Ocidental reinscrevendo a autoridade da magia nos interstícios do
racional/secular/moderno. A cultura animista abre, portanto, um mundo
completamente novo de grandes possibilidades, influenciando o futuro, por
assim dizer, pela reivindicação daquilo que no presente ainda está para ser
inventado.

No presente ensaio, tive a intenção de apresentar a visão de Harry


Garuba (2003) de que os relatos convencionais fornecidos por uma
“reemergência" de crenças e práticas culturais tradicionais na África. O autor
defende que a colonização, por assim dizer, da tecnologia e dos instrumentos e
ideologias do mundo moderno pela cultura tradicional não é inteiramente o
resultado de uma apropriação nacionalista consciente (como a história de
Xangô sugere), nem é inteiramente uma consequência da dialética da
"residualidade" e "emergência".

É, a um nível muito mais profundo, uma manifestação de um


inconsciente animista, que opera através de um processo que envolve o que
descrevo como um reencantamento contínuo do mundo. Para Garuba, é muito
importante, nesse momento da história da África, fornecer um aporte teórico
analítico para compreender os papéis que a sociedade africana e seus artistas
desempenham, para localizar esses textos dentro da arena sociocultural na
qual eles são gerados. De acordo com essa noção de leitura de papéis
diferentes das distintas arenas literária e cultural, social e política, este ensaio
pretende abrir novas possibilidades e debates.
Referências

BELINSKY, Jorge. Lo imaginario um estudio. Buenos Aires, Ediciones Nueva


Visión, 2007.

COOPER, Brenda. Magical Realism in West African Fiction: Seeing with a Third
Eye. New York: Routledge, 1998.

GARUBA, Harry. Explorations in Animist Materialism: Notes on Reading/Writing


African Literature, Culture, and Society.” Public Culture, 2003.

OBIECHINA, Emmanuel. Narrative Proverbs in the African Novel. Research in


African Literatures 24.4. 1993.

ZUBEN, Newton Aquiles von. Introdução in: BUBER, Martin. Eu e Tu. São
Paulo: Centauro, 2001.

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