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AQUISIÇÃO DA ESCRITA E O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E

LETRAMENTO NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS E EDUCACIONAIS


ACQUISITION OF WRITING SKILLS AND THE PROCESS OF LITERACY AND WRITING IN
LANGUAGE AND EDUCATIONAL STUDIES

Tatiane Henrique Sousa Machado1

MACHADO, T. H. S. Aquisição da escrita e o processo de alfa-


betização e letramento nos estudos linguísticos e educacionais.
Akrópolis, Umuarama, v. 23, n. 1, p. 3-14, jan./jun. 2015.

Resumo: Este trabalho objetiva compreender como os conceitos de


aquisição da escrita, alfabetização e letramento têm sido analisados
nos estudos vinculados à educação e à linguística. Para tanto recor-
remos a uma pesquisa bibliográfica ancorada nos principais autores
que se dedicaram a elucidar esses processos, seja pelo viés educacio-
nal ou linguístico. Pode-se perceber que o processo de aquisição da
escrita não é concebido de modo uniforme dentre os pesquisadores,
sendo fundamental aos docentes saberem qual a perspectiva teórica a
qual se filiam, o que produzirá consequências no processo de alfabe-
tização, no Brasil, vinculado ao ensino institucionalizado, mas também
poderá levar em consideração as diferentes práticas de letradas com a
qual o sujeito convive.
Palavras-chave: Aquisição da escrita; Alfabetização; Letramento.

Abstract: This study aims to understand how the concepts of wri-


ting acquisition, initial writing and reading skills have been analyzed
1
Mestre em Letras pela Universidade Esta- in studies related to education and language. Therefore, the authors
dual de Maringá. Docente da Universidade reviewed the literature with emphasis on the main authors who have
Paranaense – UNIPAR. Contato. tatiane@ dedicated themselves to elucidating these processes, either by educa-
unipar.br
tional or linguistic approach. It was observed that the writing acquisition
process is not uniformly designed among the researchers, and it is fun-
damental to the teachers to know what theoretical perspective they are
following, which will produce consequences in the reading process, in
Brazil, connected to an institutionalized education, but may also consi-
der the different literacy practices with which the subject lives.
Keywords: Writing Acquisition; Initial Reading Skills; Literacy.

Recebido em Fevereiro de 2015


Aceite em Abril de 2015

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MACHADO, T. H. S.

INTRODUÇÃO interpretada como uma trajetória determinada,


por meio de processos cognitivos universais.
Existem diferentes perspectivas teóricas A partir dessa concepção, Ferreiro e
para tratar os conceitos de aquisição da escrita, Teberosky (1999) analisaram, de modo longi-
alfabetização e letramento. Percepções essas tudinal, o processo de aquisição da escrita de
nem sempre convergentes e, às vezes, confli- crianças pertencentes à classe baixa de uma pri-
tuosas. Sendo assim, o presente estudo visa a meira série e, de modo transversal, crianças de
destacar os principais estudos sobre a aquisição quatro a seis anos de diferentes classes sociais,
da escrita, analisando a convergência existente partindo do pressuposto de que a aquisição da
entre aquisição da escrita e os conceitos de alfa- escrita “baseia-se na atividade do sujeito que,
betização e letramento, uma vez que no Brasil, em interação com a escrita, procede aplicando
por um lado, vincula-se a aquisição da escrita à a esse objeto esquemas de assimilação suces-
escolarização, interpretada como alfabetização. sivamente mais complexos, decorrentes de seu
Por outro lado, são inúmeros os estudos nos desenvolvimento cognitivo” (AZENHA, 1996, p.
quais se reconhece que a aquisição da escrita 17). A criança atuaria de modo ativo, construindo
ocorre, inicialmente, nas diferentes práticas so- diferentes hipóteses sobre o sistema de escrita
ciais letradas com as quais a criança interage, até chegar ao sistema alfabético (FERREIRO,
cabendo à escola a sistematização do processo TEBEROSKY, 1999). Nesse processo, haveria
de escrita e leitura, consoante às necessidades uma gradação entre hipóteses icônicas e não-
da sociedade. -icônicas, já que:

1. AQUISIÇÃO DA ESCRITA a distinção desenho/escrita é fundamental na


gênese na escrita, por aproximar a criança
1.1 A AQUISIÇÃO DA ESCRITA: FERREIRO E da lógica do sistema convencional da escrita,
TEBEROSKY (1999) E LÚRIA (2001) onde as formas dos grafismos não reprodu-
zem nem a forma dos objetos, nem seus con-
tornos ou colocação no espaço. Essa atua-
A aquisição da escrita, em alguma medi- ção ocorreria em níveis lineares rumo a uma
da, pode ser interpretada como o processo que progressão linear (AZENHA, 1996, p. 29).
leva o sujeito ao domínio de um sistema simbó-
lico: a escrita. Diferentes pesquisadores dedi- Nessa perspectiva, a aquisição da escri-
caram-se a pesquisar esse processo, em dife- ta se organizaria em cinco níveis2: (a) Nível 1:
rentes situações, escolares e não escolares. Os escrever é reproduzir traços típicos da escrita,
principais teóricos que se dedicaram a estudar haveria, neste momento, dificuldade de distinção
esse processo são Ferreiro e Teberosky (1999), entre escrita e desenho. Nesse nível convivem
Luria (2001), Abaurre et al. (1997) e Capristano grafismos separados, linhas curvas (abertas ou
(2007b). fechadas) e desenhos, ou mesmo a combinação
Os estudos de Ferreiro e Teberosky desses. A interpretação vincula-se a intenção
(1999) são considerados trabalhos precurso- subjetiva do escritor, já que cada um interpreta
res, que buscaram entender os processos pelos sua própria escrita, porém não a dos outros;
quais as crianças aprendem a ler e a escrever. (b) Nível 2: percebe-se, nesse nível, que
Em seus estudos, as autoras criticam o trata- para ler coisas diferentes (atribuir significados
mento metodológico do ensino de leitura e es- distintos) deve haver diferença objetiva nas es-
crita que, até a época de publicação de suas critas, seja pela quantidade ou variedade de ca-
primeiras pesquisas, organizava-se partindo da racteres utilizados pela criança para representar
premissa de que a criança nada sabia sobre a um dado objeto. Neste nível, os grafismos são
língua até ingressar na escola. Na perspectiva mais próximos às representações de letras, e
assumida pelas autoras, a criança atua de ma- percebe-se uma preocupação na quantidade e
neira ativa no processo de aquisição da escrita, variedade mínima de grafismos para escrever.
uma vez que “constrói sistemas interpretativos, Em um dos exemplos apresentados por Ferreiro
pensa, raciocina e inventa, buscando compreen- e Teberosky (1999), o mesmo escrevente regis-
der esse objeto social complexo que é a escrita”
(FERREIRO, TEBEROSKY, 1999, p. 7). A aqui- 2
Os níveis de aprendizagem da escrita foram explicitados em di-
sição da escrita neste escopo teórico pode ser ferentes obras da autora, contudo em FERREIRO, TEBEROSKY
(1999), os níveis são rigorosamente explicitados.

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Aquisição da escrita...

tra “Aron” que equivaleria a “sapo” e “Aorn” para lacionadas.


representar “sapo”, portanto, percebe-se uma Para Luria (2001), a escrita infantil tam-
combinação de letras para expressar diferenças bém sofre transformações ao longo da aquisição
de significados, mantendo constante a quanti- da escrita, com momentos de evolução e esta-
dade e a variabilidade de letras, mas não uma bilidade não lineares, nos quais, cada fase deve
sequência convencionada; ser interpretada à luz da lógica ou função psi-
(c) Nível 3: primeiro momento em que a cológica subjacente ao gesto gráfico (AZENHA,
criança começa trabalhar com a chamada hipó- 1996). Essa observação vincula-se aos pressu-
tese silábica, momento no qual a criança pas- postos teóricos de Vygostky (1984), assumidos
sa a fazer correspondência entre signos/sinais pelo pesquisador. As fases propostas nos estu-
gráficos e sonoros, utilizando um signo gráfico dos de Luria (2001), para a pré-história da es-
para representar uma sílaba. Para exemplificar, crita, compõem-se em: escrita imitativa, escrita
as autoras destacam um escrevente que para topográfica e a escrita pictográfica.
grafar “sapo”, registra “AO” (sa.po) e “PA”(ur.so) Na primeira fase, imitativa, a criança re-
equivaleria a “urso”, ou seja, para cada grafia produz rabiscos (linhas, riscos, círculos abertos
uma sílaba; ou fechados). O ato de escrever associa-se à ta-
(d) Nível 4: passagem da hipótese silábi- refa de anotar uma palavra específica de modo
ca para a alfabética, momento de transição em intuitivo e imitativo (escrever como os adultos),
que o escrevente reconheceria a exigência mí- já que escrever não é para recordar ou para
nima de caracteres, ou mesmo o valor fonético representar algo, mas “um ato suficiente em si
para diferentes letras, tal como ao grafar “Susa- mesmo, um brinquedo” (LURIA, 2001, p. 149).
na” registra “SUANA”, portanto, uma oscilação Na segunda fase, denominada pelo autor de
entre o valor fonético “SU” e “NA” e o silábico topográfica, a criança rabisca, e mesmo que
“A” para registrar “SA” (exemplo das autoras); os traços sejam iguais, os locais em que eram
(e) Nível 5: escrita alfabética, no qual a crian- anotados no papel, funcionam como recurso útil
ça compreende que cada um dos caracteres da para memorização, desde que o período seja
escrita corresponde a valores sonoros menores curto, já que com o passar das horas ou dias, a
que a sílaba. Por exemplo, ao grafar “mesa”, ins- mesma estabilidade não aconteceria, funcionan-
taura-se a dúvida quanto ao emprego de “s” ou do novamente como escrita imitativa. Na terceira
“z”, (exemplo dado pelas autoras). Para Ferreiro fase (pictográfica), a escrita baseia-se na expe-
e Teberosky (1999), esse seria o momento final riência com os desenhos infantis que funcionam
da evolução da escrita, permanecendo ainda di- como signos mediadores. O que distingue o
ficuldades próprias da ortografia. Os cinco níveis desenho da escrita (pictográfica) é o uso instru-
seriam percorridos pelas crianças de modo su- mental desta, como símbolo, como mecanismo
cessivo e progressivo. de expressão. A esse respeito, Luria destaca a
dificuldade de se distinguir desenho de escrita
1.2 A AQUISIÇÃO DA ESCRITA: LÚRIA (2001) pictográfica, cabendo para a resolução deste
problema a análise do comportamento não es-
De modo semelhante, Luria (2001) dedi- crito, tais como gestos, falas.
ca-se a estudar a aquisição da escrita, reconhe- Segundo Luria (2001), na transição para
cendo também que esse processo organiza-se a escrita convencional, as crianças registram
em diferentes fases: pré-instrumental e instru- letras isoladas para registro de conteúdos, ou
mental, em que, na primeira não haveria uso seja, compreendem que podem usar signos
dos símbolos como recurso mnemônico e na para escrever, contudo, não entendem como
segunda, haveria o uso funcional desses símbo- fazê-lo. Assim, “algumas crianças neste está-
los. Em um de seus estudos, o autor dedica-se gio empregavam letras isoladas para registro de
a análise de textos de um grupo de crianças de conteúdos, da mesma forma como eram empre-
quatro a seis anos, alheias à influência escolar, gados os rabiscos imitativos do estágio inicial”
uma criança escolarizada de nove anos e outra (AZENHA, 1996, p. 59). Portanto, a habilidade
com deficiência cognitiva. Para tanto, a escrita de escrever letras, para esse autor, não implica
foi apresentada às crianças como uma forma de na sua compreensão.
resolver um problema: a tarefa de relembrar um Em síntese, para Luria, a pré-história da
determinado número de sentenças curtas e re- escrita da criança pode ser compreendida, num

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MACHADO, T. H. S.

primeiro momento, no qual a criança relaciona- perspectiva linguística, compreende-se a aquisi-


-se com a coisa escrita (rabiscos) sem compre- ção da escrita como uma relação entre sujeito e
ender seu significado e repetindo gestos por linguagem. Nesses estudos, Abaurre e seu gru-
imitação (escrita imitativa). Mais tarde, começa po3 analisam a escrita de crianças, observando
a fazer distinções, já que o signo adquire signifi- os critérios de segmentação (ABAURRE, 1991;
cado funcional em virtude do local em que foi in- ABAURRE, SILVA, 1993), bem como operações
serido ou mesmo da forma (escrita topográfica e de reelaboração (ABAURRE, 1994) e a singula-
pictográfica). O domínio da escrita convencional ridade dos sujeitos no processo de aquisição da
sucede à utilização das letras, pois, inicialmente, escrita (ABAURRE, et al., 1997, 2000; ABAUR-
a criança é capaz de reconhecer letras isoladas, RE, 1996), destacando indícios considerados re-
sem, contudo, compreender o mecanismo inte- veladores de uma “capacidade de reflexão sobre
gral do uso da escrita. Desse modo, ao longo do a própria linguagem, ou seja, no desenvolvimen-
tempo, a criança efetua diferentes tentativas de to de habilidades metalinguísticas” (ABAURRE,
elaboração da escrita, a partir das quais, pos- SILVA, 1993, p. 01).
teriormente ao domínio exterior da escrita, ela Nessa perspectiva, a aquisição da es-
chegaria à compreensão do seu sentido. crita é um processo não linear, não cumulativo,
Em síntese, os estudos de Ferreiro e Te- caracterizado por uma constante reelaboração,
berosky (1999) e Luria (2001) foram um impor- em que ganha relevo o papel do outro. Assume-
tante avanço na maneira de analisar a aquisição -se, nas pesquisas desse grupo, que “a relação
da escrita, dado seu reconhecimento do conhe- do sujeito com a linguagem é mediada, desde
cimento, antes negligenciado, de que a criança sempre, pela relação com o OUTRO, interlocu-
participa de diferentes experiências com a es- tor fisicamente presente ou representado e ne-
crita muito antes de ingressar na vida escolar. A cessário ponto de referência para esse sujeito
partir das contribuições desses autores, passou- em constituição” (ABAURRE, et al., 1997, p. 41).
-se a observar as diferentes hipóteses de escrita Para desenvolver suas pesquisas, Abaur-
empregadas pelos alunos ao longo do processo re et al. (1997) partem de um modelo metodo-
de aquisição da escrita, reconhecendo-os como lógico indiciário, proposto por Ginzburg (1989),
sujeitos ativos da aprendizagem. As pesquisas a partir do qual analisam, na escrita infantil, in-
de Ferreiro, no Brasil, tiveram um impacto muito dícios de que a criança estaria construindo co-
grande sobre as práticas de alfabetização e so- nhecimento sobre a escrita. Interessa-se por
bre o discurso a respeito de como se deve alfa- “flagrar o instante em que o sujeito demonstra,
betizar. O abandono dos exercícios de prontidão oralmente ou por escrito, sua preocupação com
e os silabários das cartilhas e a busca por novas determinado aspecto formal ou semântico da
formas de apresentação e tratamento do texto linguagem” (ABAURRE, et al.,1997 p. 21). Para
durante a alfabetização foram algumas dessas tanto, as autoras analisam dados considerados
mudanças. singulares, apagamentos, refacções, reelabora-
Todavia, alguns pesquisadores, como ções e reescritas que adquirem saliência para
Abaurre et al. (1997) apontam fragilidades na o sujeito, gerando um problema que ele busca
perspectiva assumida por Ferreiro e Teberosky resolver, mesmo que, muitas vezes, de forma
(1999), em especial, com relação à linearidade episódica ou circunstancial.
das etapas e a universalização do escrevente, Na perspectiva assumida por Abaurre et
uma vez que a psicologia genética preconiza um al. (1984), o processo de aquisição da escrita
sujeito idealizado e universal, não havendo lugar implica habilidades específicas, tais como ma-
para o episódico. nusear o lápis e o papel, desenhar as letras e re-
fletir sobre as formas linguísticas e os elementos
1.3 AQUISIÇÃO DA ESCRITA EM ALGUNS numa interação menos dinâmica que a realizada
ESTUDOS DE ABAURRE
3
Maria Bernadete Marques Abaurre, no período de 1992 a 1997
participou de um projeto integrado de pesquisa “A relevância te-
Uma concepção de aquisição da escri- órica dos dados singulares na aquisição da linguagem escrita”,
ta diferente das apresentadas até aqui pode financiado pelo CNPq e desenvolvido no Instituto de Estudos da
Linguagem/UNICAMP, contando com a participação das pesqui-
ser percebida nos estudos de Abaurre (1989; sadoras Raquel Salek Fiad e Maria Laura T. Mayrink-Sabinson.
1991; 1994), Abaurre et al. (1984; 1997; 2000) Alguns dos estudos realizados foram publicados no livro: Cenas de
e Abaurre e Silva (1993), nos quais, a partir da Aquisição da escrita. O sujeito e o trabalho com o texto. São Paulo:
Mercado das Letras, 1997.

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Aquisição da escrita...

com a linguagem oral. Dentre essas habilida- de sujeito da (sua) escrita, sendo capturado por
des, encontra-se a necessidade de saber o que ela” (Id. Ibid.. p. 79, grifos da autora).
é uma palavra. Em analogia ao proposto por Lemos
Abaurre (1991) destaca que os princípios (1999, 2002), de que as mudanças na fala da
que regulam a interrupção da cadeia fônica são criança não se tratam de acúmulo ou índice de
distintos dos critérios de segmentação da escri- conhecimento, Capristano (2007b) propõe que,
ta, em que é importante levar em consideração no processo de aquisição da escrita, podem ser
critérios prosódicos, sintáticos e semânticos, observadas flutuações que não apontam para
fato que pode conferir dificuldade às crianças no desenvolvimento, mas sim mudanças de posi-
início da aquisição da escrita. E, para resolver ção da criança na língua.
essa dificuldade, as crianças “começam muito Investigando, em especial, a segmenta-
cedo a elaborar, embora inconscientemente, al- ção gráfica, a autora encontra três tipos de flu-
gum conceito de palavra da língua” (Id. Ibid., p. tuação que sinalizariam três posições da criança
204). Acrescenta ainda que o grau de percepção na língua em seu modo de enunciação escrito.
variará, dependendo de fatores como a idade, a O primeiro tipo refere-se à convivência de re-
condição socioeconômica e a organização inter- gistros de espaços em branco, aparentemente,
na do texto. convencionais e registros que ocorrem em tex-
O principal mérito dos estudos de Abaur- tos refratários a uma interpretação. Esses mo-
re (1989, 1991, 1994), Abaurre et al. (1984, 1997, mentos representariam a escrita submetida à
2000) e Abaurre e Silva (1993) pode ser obser- escrita do outro, já que não parecem ser os pa-
vado no fato desses autores abrirem espaço, na râmetros convencionais os seus motivadores. O
linguística e no Brasil, para estudos que objeti- segundo tipo relaciona-se a momentos em que,
vem analisar a escrita de crianças, em momento na escrita da criança, aparecem “acertos” e “er-
de aquisição, não considerando aquilo que lhe ros” que deslizam por possibilidades da escrita.
“falta”, mas, buscando encontrar, no interior des- Esse segundo tipo de flutuação é interpretado
sa escrita em constituição, critérios esquecidos como sinal da segunda posição, em que a escri-
pelos adultos letrados. Abaurre e seu grupo, ao ta da criança está submetida ao funcionamento
olharem para os detalhes e discutirem uma me- da língua. O terceiro tipo relaciona-se- com a ter-
todologia para esse tipo de estudo, mostraram ceira posição, temos as rasuras (apagamentos,
que comportamentos linguísticos episódicos não escritas sobrepostas, inserções, dentre outros)
são resíduos, mas indícios da complexa relação em que a escrita da criança parece submetida à
sujeito-linguagem (ABAURRE, et al., 1995a). observação da própria criança. A rasura é com-
preendida como marca de um momento em que
1.4 AQUISIÇÃO DA ESCRITA: CAPRISTANO a criança reconhece diferença entre sua escrita
e a escrita do outro.
Por último, uma concepção de aquisição A partir das contribuições teóricas de
da escrita também relativamente diferente das Capristano (2007a, 2007b), a aquisição da es-
apresentadas até aqui pode ser encontrada em crita não pode ser considerada, um percurso de
Capristano (2007b). Ancorada em estudos de desenvolvimento, mas sim uma mudança da re-
Lemos (1999, 2002) acerca da aquisição da fala, lação sujeito/linguagem “a qual envolve o outro
a autora compreende o “processo de aquisição como uma instância representativa da lingua-
da escrita como, um processo marcado por di- gem, a escrita na complexidade de seu funcio-
ferentes movimentos e/ou posições da criança namento (heterogêneo) e a criança enquanto su-
na linguagem em sua modalidade escrita” (CA- jeito escrevente” (CAPRISTANO, 2007b, p. 80,
PRISTANO, 2007b, p. 78). Assim, as mudanças grifos da autora). Essa composição trina pode
ocorridas na escrita infantil, ao longo do proces- ser interpretada como: (a) sujeito, como posição
so de aquisição da escrita, não são observadas de sujeito, historicamente constituído pelo outro;
como evidências de desenvolvimento ao longo (b) o outro se vincula a instância representativa
de estágios, nem como evidências de constru- da linguagem, que pode ser outro registro dis-
ção individual de conhecimento da criança, mas cursivo, outra modalidade ou outro enunciado
sim como “movimentos de subjetivação, ou mais (AUTHIER-REVUZ, 2004), logo, “outro lugar de
propriamente, movimentos pelos quais a crian- escrita” diferente da escrita “própria”; e, por fim,
ça, enquanto ser empírico assumiria a posição (c) a escrita em seu funcionamento constitutiva-

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MACHADO, T. H. S.

mente heterogêneo (CORRÊA, 2004). a partir da proclamação da República, a educa-


Nessa forma de conceber a aquisição da ção no Brasil ganhou destaque como uma das
escrita, essa prática é reconhecida como prática “utopias da modernidade” (MORTATTI, 2006),
social, em que sua forma constitutiva entrelaça período em que a escola consolidou-se como
o oral e o escrito, por isso heterogeneidade da lugar institucionalizado para a organização das
escrita e não na escrita (CORRÊA, 2004). Ca- novas gerações, a fim de garantir a moderniza-
pristano (2007b), seguindo os passos de Cor- ção e o progresso do novo Estado (MORTATTI,
rêa (1997b, 2004, dentre outros), distancia-se, 2006). Nesse contexto, o conhecimento acer-
portanto, do ideário de que haveria escrita e fala ca da leitura e da escrita, até então restritos a
puras e de que representações escritas, que poucos, tornou-se obrigatório, por meio de uma
parecem calcadas na oralidade, seriam fruto da escola obrigatória, laica e gratuita, responsável
interferência da fala na escrita. Essas filiações pelo ensino sistematizado da leitura e da escrita.
(LEMOS, 1999, CORRÊA, 2004) permitem a A partir da década de 80, o discurso so-
Capristano (2007a, 2007b) analisar a escrita, bre a alfabetização voltou-se para as aborda-
em momento de aquisição, como um proces- gens cognitivas, fundadas, sobretudo, na psi-
so descontínuo, no qual a criança, ao longo do cologia genética de Piaget e nas contribuições
tempo, vai sendo capturada pela representação dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky
da escrita convencional, sem, contudo, delimitar (1999). Nessa perspectiva, destacavam-se os
começo ou fim, já que, a todo o momento, dei- estágios de compreensão da natureza simbólica
xando marcas ou não, o escrevente lida com o da escrita, enquanto outras perspectivas eram
hibridismo constitutivo da escrita e busca carac- desconsideradas. Uma das perspectivas que é,
terísticas orais e letradas para resolver os confli- segundo Soares (2011), pouco desenvolvida no
tos com os quais se depara. Brasil é a chamada “perspectiva sociolinguísti-
Em nossa pesquisa, não nos dedicamos ca”. Nela, a alfabetização é considerada “um
ao estudo da aquisição da escrita como um todo, processo relacionado com os usos sociais da
mas, sim, a uma parte desse processo, que se língua”, portanto, vinculada aos diferentes usos
refere ao modo como as crianças vão, ao lon- da língua e nas diferenças dialetais, levando-se
go do tempo, construindo a noção de palavra. em consideração, por exemplo, o diferente pro-
Distanciamo-nos dos estudos cognitivistas, que cesso de alfabetização de crianças que convi-
compreendem a aquisição da escrita como pro- vem com falantes de um dialeto próximo da lín-
cessos cognitivos universais, bem como dos gua escrita e daquelas de classes populares que
estudos que se ancoram na relação sujeito/lin- dominam em geral um dialeto distante da língua
guagem, mas reconhecem a aquisição da escri- escrita (SOARES, 2011).
ta como domínio ativo do sujeito sobre um sa- Para Mortatti (2010, p. 329), alfabetiza-
ber. Apropriamo-nos dos estudos de Capristano ção pode ser compreendida como “processo de
(2007a, 2007b) que entendem a relação sujeito/ ensino e aprendizagem da leitura e escrita em
linguagem como mudanças de posição do su- língua materna, na fase inicial de escolarização
jeito na linguagem, uma captura pelo funciona- de crianças”. Já para Soares (2011, p. 16), a al-
mento da língua (LEMOS, 1999), que aponta fabetização pode ser compreendida como “um
possibilidades “abertas”, inerentes à língua, fru- processo de representação de fonemas em gra-
tos do trânsito pelas práticas orais e letradas. femas, e vice-versa, mas é também um proces-
Desse modo, a partir do delineamento so de compreensão/expressão de significados
da concepção de aquisição da escrita assumida por meio do código escrito”. Ou seja, o concei-
neste estudo, discutiremos na próxima seção a to definido por Soares (2011) pressupõe tanto
aquisição da escrita sob a perspectiva da alfabe- o processo de representação grafema/fonema,
tização, dada a relação íntima, no Brasil, entre como o de compreensão de significados.
esses dois processos. Essa mesma autora assevera, citando
Silva (1981), que, do ponto de vista linguístico,
2. ALFABETIZAÇÃO: A AQUISIÇÃO DA ES- o processo de alfabetização tem sido considera-
CRITA VISTA DA PERSPECTIVA DO ENSINO/ do um processo de transferência da sequência
APRENDIZAGEM temporal da fala, para a sequência espaço-dire-
cional da escrita (sonora para gráfica), rumo ao
Desde o final do século XIX, em especial domínio progressivo de regularidades e irregula-

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Aquisição da escrita...

ridades ortográficas (SOARES, 2011). de mudança, o escrevente, para atender as es-


De modo geral, ser alfabetizado tem sido sas demandas, lança mão não só de suas expe-
sintetizado como “estado ou condição de quem riências oriundas das práticas sociais (letradas
sabe ler e escrever” (SOARES, 2012, p. 20), e orais) instituídas pela escola, mas também de
atendendo às diferentes demandas sociais de outras experiências, oriundas das práticas so-
uso da leitura e da escrita. Contudo, essa con- ciais (letradas e orais) das quais participa em
cepção de alfabetização como processo indivi- outras instituições (igreja, família etc.). Ao consi-
dual de aprendizagem de habilidades, na opi- derarmos para o estudo da aquisição da escrita
nião de Tfouni (2010a), é um mal entendido, pois as práticas sociais emerge o conceito de letra-
parece conceber que alfabetização vincula-se a mento, a ser abordado na próxima seção.
objetivos instrumentais e seria algo que chegaria
a um fim. 3 LETRAMENTO: A AQUISIÇÃO DA ESCRITA
De modo diferente, Tfouni (2010a) assu- VISTA DA PERSPECTIVA DAS PRÁTICAS SO-
me que o processo de alfabetização não tem um CIAIS
fim, já que a sociedade está em constante mu-
dança, imprimindo aos falantes e escreventes No Brasil, o conceito de letrado era tra-
diferentes demandas. Haveria então, nessa con- dicionalmente vinculado à erudição e a conhe-
cepção, graus ou níveis de alfabetização. Para cimentos literários do indivíduo. No entanto, na
Tfouni (2010a), haveria duas formas de enten- segunda metade da década de 1980, estudos de
der a alfabetização: uma ligada ao processo de autores como Kato (1989), deram um novo sen-
aquisição individual de habilidades necessárias tido a letrado, ao vinculá-lo aos efeitos da escrita
para a escrita e a leitura; outra ligada aos pro- na sociedade, bem como ao conceito de alfabe-
cessos representativos de objetos diversos. Na tização. Na educação, passou-se a discutir que,
primeira concepção, Tfouni (Id. Ibid.) afirma que embora alguns indivíduos tivessem capacidade
alfabetizar existe como prática escolar centrada de ler e escrever (logo, eram alfabetizados),
na aprendizagem de habilidades e domínio de nem todos viviam em estado ou condição de
regras de um determinado código sonoro trans- quem sabe ler e escrever, pois nem todos ha-
crito para unidades gráficas, em que se ignoram viam incorporado os usos da escrita e da leitura,
as práticas sociais de leitura e escrita. Na segun- usos esses reconhecidos como letramento por
da, a alfabetização é observada como processo Soares (2012). Assim, o “novo” conceito visou
de representação que evolui, privilegiando-se a estabelecer um estatuto teórico diferente aos
o seu processo de simbolização, portanto, vin- modos de conceber alfabetização no Brasil.
culado fatores sociais e culturais presentes na Para Soares (2012), a existência de uma
sociedade. Nessa concepção, a escrita, não é palavra específica para o conceito de letramento
tomada como independente da oralidade, mas “significa que já compreendemos que nosso pro-
sim “interdependente, isto é, ambos os siste- blema não é apenas ensinar a ler e a escrever,
mas [escrito e oral] influenciam-se igualmente” mas é, também, e, sobretudo, levar os indivíduos
(TFOUNI, 2010a, p. 21), já que ambos são ine- – crianças e adultos – a fazer uso da leitura e da
rentes à língua. escrita, envolver-se em práticas sociais de lei-
Em consonância com as considerações tura e escrita” (Id. Ibid., p. 58). Contudo, a mera
apresentadas sobre alfabetização, neste estudo existência de um vocabulário próprio para o fe-
a alfabetização é concebida como processo de nômeno não garante, na prática, sua compreen-
aprendizagem da escrita, vinculado às práticas são, uma vez que o processo de letramento é
sociais (orais e letradas) com as quais o es- estudado por diversos autores, com diferentes
crevente convive. Essa percepção permite-nos objetivos metodológicos, o que faz esse concei-
compreender que as produções textuais de alu- to admitir distintas conotações, que guardam, no
nos, em momento de alfabetização, emergem entanto, certas regularidades.
de um momento institucionalizado de sistema- Street (1989) sistematiza o conceito de
tização da escrita, denominado no Brasil de pe- letramento em duas perspectivas, denominadas
ríodo de alfabetização. Contudo, o processo de modelo autônomo e modelo ideológico. Enquan-
alfabetização é contínuo, já que as demandas to Soares (2011, 2012) reconhece duas dimen-
sociais de usos da escrita e da leitura, constan- sões (a individual e a social) e Tfouni (2010a)
temente, sofrem mudança. E, nesse processo duas perspectivas (a-histórica e histórica). Es-

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MACHADO, T. H. S.

sas sistematizações podem ser consideradas à escrita o estatuto de tecnologia essencial para
relacionadas, mas não são coincidentes (o mo- o potencial humano, pois seria a partir dela que
delo autônomo equivaleria à dimensão individual o homem se tornaria ciente e capaz de solucio-
e à perspectiva a-histórica, enquanto o modelo nar problemas. Portanto, característica bastante
ideológico, à dimensão social e à perspectiva vinculada à primeira, que preconizava distinção
histórica), já que os objetivos teóricos e metodo- entre sociedades orais e escritas, atribuindo a
lógicos dos autores são distintos4. Neste traba- esta uma hierarquia cognitiva superior em fun-
lho, as entenderemos como equivalentes. ção daquela.
O modelo autônomo pressupõe o letra- Além dessas características, já bastante
mento como atributo pessoal, ou seja, a capaci- criticadas pelos estudiosos mais modernos do
dade de o indivíduo ler e escrever um determina- letramento, devem-se considerar os efeitos do
do tipo de material escrito. É coerente dizer que modelo autônomo de letramento para a escola
esse modelo está muito próximo ao conceito de e/ou para o processo de ensino aprendizagem.
alfabetização, por considerar a leitura e a escrita A aceitação dessa forma de compreender o le-
desconectadas do contexto cultural e social nas tramento pode levar o professor a desconside-
quais elas ocorrem. Entre as características do rar a bagagem sociocultural de seu aluno, bem
modelo autônomo, destacam-se: (a) a correla- como seu conhecimento anterior, sua origem
ção entre desenvolvimento cognitivo e aquisição sócio-histórica, ou seja, seu grau de letramento,
da escrita; (b) a dicotomização oralidade e es- o que configuraria uma “violência simbólica” por
crita; (c) a atribuição de poderes intrínsecos à não permitir a “passagem necessária dentro do
escrita e ao grupo que a possui. processo de subjetivação e representação de si
Com relação à primeira característica, ao aluno”, conduzindo a um massacre de iden-
a partir de uma visão etnocêntrica, aquisição tidades (TFOUNI, 2011, p. 21). Muitas vezes,
da escrita seria condição sine qua non para as ainda, conduz a realização de práticas textuais
pessoas desenvolverem determinadas capa- escolares descontextualizados e mecânicas,
cidades cognitivas. Com isso, os alfabetizados embasadas na concepção de que escrever e
seriam classificados como “racionais” e os não falar são duas atividades dissociadas (GNER-
alfabetizados como “emocionais”. Essa tendên- RE, CAGLIARI, 1985). Para Tfouni (2011, p. 16),
cia vincula-se ao “mito da alfabetização”, já que esse tratamento levanta uma barreira entre as
confere “poderes” à ela, ao invés de observar práticas escritas e as orais, criando, por sua vez,
as diferentes formas de resolução de problemas um indivíduo dividido, que não consegue ocupar
utilizados pelos indivíduos não alfabetizados e a posição de escritor.
alfabetizados. Para opor-se a essa concepção, o mo-
A segunda característica conferida ao delo de letramento ideológico vincula a concep-
modelo autônomo (a dicotomização da oralida- ção de alfabetização às práticas de letramento
de e da escrita) pressupõe ser a modalidade de plurais, oriundas de aspectos sociais e culturais
enunciação escrita, um produto completo em si (STREET, 1989). Assume-se que todos os sujei-
mesmo (ROJO, 1995), cujo funcionamento in- tos são letrados (TFOUNI, 2010b), pois o letra-
terno é independente, em oposição à oralidade, mento não se restringe às técnicas e habilidades
sempre dependente do interlocutor e do contex- de uso da leitura e da escrita, mas sim emerge
to situacional. Entende-se, pois, que “a escrita no interior de “práticas sociais que se interpe-
representaria uma ordem diferente de comuni- netram e se influenciam, sejam essas práticas
cação, distinta da oral, pois a interpretação des- orais ou escritas, circulem elas dentro ou fora da
ta última estaria ligada à função interpessoal da escola” (TFOUNI, 2010b, p. 220).
linguagem” (ROJO, 1995, p. 22). Além disso, a Nessa perspectiva, consideram-se as
capacidade de ler e escrever ganha vantagem formas que as diferentes práticas de leitura e es-
sobre a “pobreza da oralidade” (GNERRE, 1998, crita assumem em diferentes contextos sociais,
p. 45). mostrando que essas práticas dependem das
Por fim, a terceira característica (a atri- instituições sociais que as propõe e anulando,
buição de poderes intrínsecos à escrita), confere por consequência, a teoria da grande divisa.
Conforme destacam Tfouni e Assolini (2008),
4
Em virtude dos objetivos do presente estudo, não nos dedicare- conceber o letramento em sua dimensão histó-
mos à explicitação teórica sobre essas distinções, mas sim a impli- rica e social leva a considerar as diversas práti-
cação do conceito de letramento para a aquisição da escrita.

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Aquisição da escrita...

cas escritas e orais e, também, em que medida como caracterizar grupos não alfabetizados que
o sujeito pode ocupar a posição de autor nessas vivem em sociedades letradas (TFOUNI, 2010a).
práticas, função que independe da alfabetiza- Portanto, os estudos sobre letramento que par-
ção. Todavia, muitas vezes, na escola, a mani- tem de uma perspectiva ideológica não se res-
festação da autoria por sujeitos não alfabetiza- tringem aos grupos alfabetizados, bem como
dos não é reconhecida, tais como no exemplo não pressupõem a existência de um letramento
apresentado pelas autoras, em que o docente “grau zero” ou “iletramento”, mas sim “graus de
diz: “não adianta ficar contando história, tem que letramento” (TFOUNI, 2010a). Sobre isso, Cor-
escrever no caderninho podem dar uma olhadi- rêa (2001, p.139) destaca: “considerar letrado o
nha nos exemplos que a tia vai colocar na lousa, indivíduo que teve contato indireto com a escrita
quem não está conseguindo pode ver como o tem a vantagem de permitir pensar numa dimen-
P.A. fez a redação dele, que ficou muito linda” são em que se podem imprimir diferentes graus
(TFOUNI, ASSOLINI, 2008, grifos nossos). Atitu- de acesso de letramento”.
des como essa não permitem que o escrevente Corrêa (2001) propõe a anterioridade do
assuma a posição de autor, mas sim, decalque letramento à alfabetização, a partir de uma no-
produções textuais sem manifestar o seu dizer. ção ampla de letramento que valoriza as habili-
Na perspectiva ideológica de letramento, dades dos indivíduos que, mesmo sem acesso à
o significado da escrita depende do grupo social alfabetização ou às práticas de leitura e escrita
em que ela é praticada. Portanto, nessa visão, canônicas, também “fazem a história da língua e
não se parte da perspectiva de um determinado da sociedade por meio do modo oral de registro
grupo (que utiliza a escrita), analisando os de- da memória cultural” (CORRÊA, 2001, p. 141). A
mais em relação à ausência de características partir dessa concepção, infere-se que “é sempre
presentes no grupo considerado “modelo”. Em o produto do trânsito entre práticas sociais orais/
consequência, as modalidades de escrita e ora- faladas e letradas/escritas que nos chega como
lidade não são consideradas puras e homogê- material de análise do modo de enunciação fa-
neas, uma vez que “tanto pode haver caracterís- lado e do modo de enunciação escrito, ambos
ticas orais no discurso escrito, quanto traços de como se sabe, manifestação de uma única e
escrita no discurso oral” (TFOUNI, 2010a, p. 42). mesma língua” (CORRÊA, 2001, p. 142). Por-
Ao discutir quais as diferenças entre al- tanto, os enunciados produzidos por crianças e
fabetização e letramento, Tfouni (2010a, p. 11- adultos privados de práticas canônicas de leitura
12) entende existir entre esses conceitos uma e escrita não podem ser tratados, por exemplo,
relação de produto e processo. Para a autora, o como tentativas inadequadas à situação de uso,
primeiro reside na “aquisição da escrita enquan- mas devem ser considerados frutos das diferen-
to aprendizagem de habilidades para leitura, tes práticas sociais orais e/ou letradas da comu-
escrita e as chamadas práticas de linguagem” e nidade em que o escrevente vive.
o segundo conceito focaliza os aspectos socio- A partir dessas contribuições, nesta pes-
lógico-históricos da aquisição da escrita. Enfim, quisa, reconhecemos o letramento a partir do
estudos sobre letramento, na verdade, procuram modelo ideológico, que nos permitirá conceber
“estudar e descrever o que ocorre nas socieda- as diferentes relações que as crianças mantêm
des quando adotam um sistema de escritura de com a escrita. Além de olhar para suas produ-
maneira restrita ou generalizada; procura[m] ain- ções textuais não como representações incau-
da saber quais práticas psicossociais substituem tas de um escrevente em constituição, mas, sim,
as práticas “letradas” em sociedades ágrafas” como marcas de um sistema em construção,
(TFOUNI, 2010a, p. 12). que indiciaria o trânsito do sujeito aprendiz pe-
Como vimos na seção anterior, a alfabe- los diferentes modos de enunciação da língua
tização focaliza a aquisição da escrita por um (ABAURRE, et al., 1997; CAPRISTANO, 2007b),
indivíduo ou grupo de indivíduos. O letramento ou seja, um material que, em seu cerne, é híbri-
– entendido a partir do modelo ideológico –, de do, cujas características orais e escritas convi-
modo diferente, preocupa-se com os aspectos vem e motivam, em alguns momentos, conflitos
sócio-históricos da aquisição de um sistema de inerentes às características do nosso sistema
escrita por uma sociedade, como quais mudan- linguístico.
ças sociais e discursivas ocorrem em uma so-
ciedade quando ela se torna letrada ou mesmo

Akrópolis, Umuarama, v. 23, n. 1, p. 3-14, jan./jun. 2015 11


MACHADO, T. H. S.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS fala. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL,


4., Anais... 1989.
Neste estudo de caráter bibliográfico
visamos a reunir os conceitos de aquisição da ______. A relevância dos critérios prosódicos e
escrita, alfabetização e, letramento explicitando semânticos na elaboração de hipóteses sobre
como os autores tem se dedicado a concebê- segmentação na escrita inicial. Boletim da
-los e qual a importância desses para o ensino Abralin, v. 11, 1991, p. 203-217.
de língua materna. No decurso das discussões,
esperamos ter deixado claro que diferentes au- ______. Indícios das primeiras operações de
tores, com diferentes perspectivas teóricas con- reelaboração nos textos infantis. Estudos
ceberam diferentes características à aquisição Linguísticos, São Paulo, v. 1, p. 367-372,
da escrita. Cada uma delas pressupõe um tipo 1994.
de olhar sob o processo de aquisição da es-
______.Os estudos lingüísticos e a aquisição
crita. Embora todas sejam válidas assumimos
da escrita. In: CASTRO, M. F. P. (Org.). O
que, uma concepção de aquisição da escrita, tal
método e o dado no estudo da linguagem.
como de Capristano (2007b) pressupõe o reco-
Campinas: Unicamp, 1996. p. 111-78.
nhecimento da complexidade da relação sujeito/
linguagem, e, sobretudo a vinculação dessa re- ABAURRE, M. B. M.; SILVA, A. O
lação com as diferentes práticas sociais de uso desenvolvimento de critérios de segmentação
da fala e da escrita, com as quais o escrevente na escrita. Temas em psicologia, São Paulo,
convive. v.1, p. 89-102, 1993.
Sob esse viés a alfabetização na sua
dimensão social, é compreendida como um fe- ABAURRE, M. B. M. et al. Leitura e escrita na
nômeno cultural, que congrega um “conjunto de vida e na escola. Leitura: Teoria e Prática,
atividades sociais que envolvem a língua escri- Porto Alegre: Mercado Aberto, n. 6, a. 4, 1984.
ta” (SOARES, 2011, p. 30), portanto, uma práti-
ca sócio-histórica, que ganha diferentes relevos ABAURRE, M. B. M. et al. Cenas de aquisição
para diferentes sociedades (TFOUNI, 2010a). da escrita: o trabalho do sujeito com o texto.
Vê-se, assim, que essa noção de alfabetiza- Campinas: Mercado de letras, 1997.
ção está ligada a uma forma de conceber letra-
mento: aquela que o entende, ideologicamente, ABAURRE, M. B. M.; et al. Investigando a
como toda experiência com a linguagem escri- singularidade dos sujeitos no processo de
ta, logo, anterior ao processo de alfabetização, aquisição da escrita. Educação em Revista, n.
que influencia indivíduos alfabetizados ou não 31, p. 135-151, 2000.
alfabetizados. Ao concebermos letramento em
sua dimensão ideológica, consideramos escrita AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade
e fala como práticas que se entrecruzam e que mostrada e heterogeneidade constitutiva:
ganham relevo de acordo com as instituições elementos para uma abordagem do outro
sociais que as propõem (TFOUNI, ASSOLINI, no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, J.
2008). Com base nessa concepção, acredita- Entre a transparência e a opacidade: um
mos poder olhar para a escrita infantil, a partir estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre:
das diferentes relações estabelecidas entre a EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.
criança e a (sua) escrita e ver, nos enunciados
AZENHA, M. G. Imagens e letras: Ferreiro e
escritos infantis, a circulação das crianças por
Luria duas teorias psicogenéticas. 2. ed. São
práticas orais e letradas social e historicamente
Paulo: Ática, 1996.
construídas.
CAPRISTANO, C. C. Segmentação na escrita
REFERÊNCIAS infantil. São Paulo: M. Fontes, 2007a.
ABAURRE, M. B. M. Hipóteses iniciais de ______. Mudanças na trajetória da criança
escrita: evidências da percepção por pré- em direção à palavra escrita. 2007. ... f.
escolares de unidades rítmico/entonacionais na Tese (Doutorado Linguística Aplicada, Instituto

12 Akrópolis, Umuarama, v. 23, n. 1, p. 3-14, jan./jun. 2015


Aquisição da escrita...

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DE ALFABETIZACIÓN Y LETRADO EN LOS
______. Das vicissitudes da fala da criança e ESTUDIOS LINGÜÍSTICOS Y EDUCACIONALES
de sua investigação. Cadernos de Estudos
Lingüísticos, Campinas: UNICAMP-IEL, v. 42, Resumen: Este estudio ha objetivado comprender
p. 41-70, 2002. como los conceptos de adquisición de la escrita, alfa-
betización y letrado han sido analizados en los estu-
LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, dios vinculados a la educación y a la lingüística. Para
desenvolvimento e aprendizagem. 7. ed. São ello, se ha recurrido a una investigación bibliográfica
anclada en los principales autores que se dedicaron
Paulo: Ícone, 2001.
a elucidar esos procesos, sea por el bies educacio-
nal o lingüístico. Se puede percibir que el proceso de
MORTATTI, M. R. L. História dos métodos de adquisición de la escrita no es concebido de forma
alfabetização no Brasil. Brasília: Conferência uniforme entre los investigadores, siendo fundamen-
proferida durante o Seminário “Alfabetização tal que los docentes sepan cual perspectiva teórica
e letramento em debate”, promovido pelo están filiados, lo que producirá consecuencias en el
Departamento de Políticas de Educação proceso de alfabetización en Brasil, vinculado a la en-
Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de señanza institucionalizada, sino podrá llevar en con-
Educação Básica do Ministério da Educação, sideración las diferentes prácticas de alfabetización
con la cual el sujeto convive.

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MACHADO, T. H. S.

Palabras clave: Adquisición de la Escrita; Alfabeti-


zación; Letrado.

14 Akrópolis, Umuarama, v. 23, n. 1, p. 3-14, jan./jun. 2015

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