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Aquisição Da Linguagem
Aquisição Da Linguagem
com a linguagem oral. Dentre essas habilida- de sujeito da (sua) escrita, sendo capturado por
des, encontra-se a necessidade de saber o que ela” (Id. Ibid.. p. 79, grifos da autora).
é uma palavra. Em analogia ao proposto por Lemos
Abaurre (1991) destaca que os princípios (1999, 2002), de que as mudanças na fala da
que regulam a interrupção da cadeia fônica são criança não se tratam de acúmulo ou índice de
distintos dos critérios de segmentação da escri- conhecimento, Capristano (2007b) propõe que,
ta, em que é importante levar em consideração no processo de aquisição da escrita, podem ser
critérios prosódicos, sintáticos e semânticos, observadas flutuações que não apontam para
fato que pode conferir dificuldade às crianças no desenvolvimento, mas sim mudanças de posi-
início da aquisição da escrita. E, para resolver ção da criança na língua.
essa dificuldade, as crianças “começam muito Investigando, em especial, a segmenta-
cedo a elaborar, embora inconscientemente, al- ção gráfica, a autora encontra três tipos de flu-
gum conceito de palavra da língua” (Id. Ibid., p. tuação que sinalizariam três posições da criança
204). Acrescenta ainda que o grau de percepção na língua em seu modo de enunciação escrito.
variará, dependendo de fatores como a idade, a O primeiro tipo refere-se à convivência de re-
condição socioeconômica e a organização inter- gistros de espaços em branco, aparentemente,
na do texto. convencionais e registros que ocorrem em tex-
O principal mérito dos estudos de Abaur- tos refratários a uma interpretação. Esses mo-
re (1989, 1991, 1994), Abaurre et al. (1984, 1997, mentos representariam a escrita submetida à
2000) e Abaurre e Silva (1993) pode ser obser- escrita do outro, já que não parecem ser os pa-
vado no fato desses autores abrirem espaço, na râmetros convencionais os seus motivadores. O
linguística e no Brasil, para estudos que objeti- segundo tipo relaciona-se a momentos em que,
vem analisar a escrita de crianças, em momento na escrita da criança, aparecem “acertos” e “er-
de aquisição, não considerando aquilo que lhe ros” que deslizam por possibilidades da escrita.
“falta”, mas, buscando encontrar, no interior des- Esse segundo tipo de flutuação é interpretado
sa escrita em constituição, critérios esquecidos como sinal da segunda posição, em que a escri-
pelos adultos letrados. Abaurre e seu grupo, ao ta da criança está submetida ao funcionamento
olharem para os detalhes e discutirem uma me- da língua. O terceiro tipo relaciona-se- com a ter-
todologia para esse tipo de estudo, mostraram ceira posição, temos as rasuras (apagamentos,
que comportamentos linguísticos episódicos não escritas sobrepostas, inserções, dentre outros)
são resíduos, mas indícios da complexa relação em que a escrita da criança parece submetida à
sujeito-linguagem (ABAURRE, et al., 1995a). observação da própria criança. A rasura é com-
preendida como marca de um momento em que
1.4 AQUISIÇÃO DA ESCRITA: CAPRISTANO a criança reconhece diferença entre sua escrita
e a escrita do outro.
Por último, uma concepção de aquisição A partir das contribuições teóricas de
da escrita também relativamente diferente das Capristano (2007a, 2007b), a aquisição da es-
apresentadas até aqui pode ser encontrada em crita não pode ser considerada, um percurso de
Capristano (2007b). Ancorada em estudos de desenvolvimento, mas sim uma mudança da re-
Lemos (1999, 2002) acerca da aquisição da fala, lação sujeito/linguagem “a qual envolve o outro
a autora compreende o “processo de aquisição como uma instância representativa da lingua-
da escrita como, um processo marcado por di- gem, a escrita na complexidade de seu funcio-
ferentes movimentos e/ou posições da criança namento (heterogêneo) e a criança enquanto su-
na linguagem em sua modalidade escrita” (CA- jeito escrevente” (CAPRISTANO, 2007b, p. 80,
PRISTANO, 2007b, p. 78). Assim, as mudanças grifos da autora). Essa composição trina pode
ocorridas na escrita infantil, ao longo do proces- ser interpretada como: (a) sujeito, como posição
so de aquisição da escrita, não são observadas de sujeito, historicamente constituído pelo outro;
como evidências de desenvolvimento ao longo (b) o outro se vincula a instância representativa
de estágios, nem como evidências de constru- da linguagem, que pode ser outro registro dis-
ção individual de conhecimento da criança, mas cursivo, outra modalidade ou outro enunciado
sim como “movimentos de subjetivação, ou mais (AUTHIER-REVUZ, 2004), logo, “outro lugar de
propriamente, movimentos pelos quais a crian- escrita” diferente da escrita “própria”; e, por fim,
ça, enquanto ser empírico assumiria a posição (c) a escrita em seu funcionamento constitutiva-
sas sistematizações podem ser consideradas à escrita o estatuto de tecnologia essencial para
relacionadas, mas não são coincidentes (o mo- o potencial humano, pois seria a partir dela que
delo autônomo equivaleria à dimensão individual o homem se tornaria ciente e capaz de solucio-
e à perspectiva a-histórica, enquanto o modelo nar problemas. Portanto, característica bastante
ideológico, à dimensão social e à perspectiva vinculada à primeira, que preconizava distinção
histórica), já que os objetivos teóricos e metodo- entre sociedades orais e escritas, atribuindo a
lógicos dos autores são distintos4. Neste traba- esta uma hierarquia cognitiva superior em fun-
lho, as entenderemos como equivalentes. ção daquela.
O modelo autônomo pressupõe o letra- Além dessas características, já bastante
mento como atributo pessoal, ou seja, a capaci- criticadas pelos estudiosos mais modernos do
dade de o indivíduo ler e escrever um determina- letramento, devem-se considerar os efeitos do
do tipo de material escrito. É coerente dizer que modelo autônomo de letramento para a escola
esse modelo está muito próximo ao conceito de e/ou para o processo de ensino aprendizagem.
alfabetização, por considerar a leitura e a escrita A aceitação dessa forma de compreender o le-
desconectadas do contexto cultural e social nas tramento pode levar o professor a desconside-
quais elas ocorrem. Entre as características do rar a bagagem sociocultural de seu aluno, bem
modelo autônomo, destacam-se: (a) a correla- como seu conhecimento anterior, sua origem
ção entre desenvolvimento cognitivo e aquisição sócio-histórica, ou seja, seu grau de letramento,
da escrita; (b) a dicotomização oralidade e es- o que configuraria uma “violência simbólica” por
crita; (c) a atribuição de poderes intrínsecos à não permitir a “passagem necessária dentro do
escrita e ao grupo que a possui. processo de subjetivação e representação de si
Com relação à primeira característica, ao aluno”, conduzindo a um massacre de iden-
a partir de uma visão etnocêntrica, aquisição tidades (TFOUNI, 2011, p. 21). Muitas vezes,
da escrita seria condição sine qua non para as ainda, conduz a realização de práticas textuais
pessoas desenvolverem determinadas capa- escolares descontextualizados e mecânicas,
cidades cognitivas. Com isso, os alfabetizados embasadas na concepção de que escrever e
seriam classificados como “racionais” e os não falar são duas atividades dissociadas (GNER-
alfabetizados como “emocionais”. Essa tendên- RE, CAGLIARI, 1985). Para Tfouni (2011, p. 16),
cia vincula-se ao “mito da alfabetização”, já que esse tratamento levanta uma barreira entre as
confere “poderes” à ela, ao invés de observar práticas escritas e as orais, criando, por sua vez,
as diferentes formas de resolução de problemas um indivíduo dividido, que não consegue ocupar
utilizados pelos indivíduos não alfabetizados e a posição de escritor.
alfabetizados. Para opor-se a essa concepção, o mo-
A segunda característica conferida ao delo de letramento ideológico vincula a concep-
modelo autônomo (a dicotomização da oralida- ção de alfabetização às práticas de letramento
de e da escrita) pressupõe ser a modalidade de plurais, oriundas de aspectos sociais e culturais
enunciação escrita, um produto completo em si (STREET, 1989). Assume-se que todos os sujei-
mesmo (ROJO, 1995), cujo funcionamento in- tos são letrados (TFOUNI, 2010b), pois o letra-
terno é independente, em oposição à oralidade, mento não se restringe às técnicas e habilidades
sempre dependente do interlocutor e do contex- de uso da leitura e da escrita, mas sim emerge
to situacional. Entende-se, pois, que “a escrita no interior de “práticas sociais que se interpe-
representaria uma ordem diferente de comuni- netram e se influenciam, sejam essas práticas
cação, distinta da oral, pois a interpretação des- orais ou escritas, circulem elas dentro ou fora da
ta última estaria ligada à função interpessoal da escola” (TFOUNI, 2010b, p. 220).
linguagem” (ROJO, 1995, p. 22). Além disso, a Nessa perspectiva, consideram-se as
capacidade de ler e escrever ganha vantagem formas que as diferentes práticas de leitura e es-
sobre a “pobreza da oralidade” (GNERRE, 1998, crita assumem em diferentes contextos sociais,
p. 45). mostrando que essas práticas dependem das
Por fim, a terceira característica (a atri- instituições sociais que as propõe e anulando,
buição de poderes intrínsecos à escrita), confere por consequência, a teoria da grande divisa.
Conforme destacam Tfouni e Assolini (2008),
4
Em virtude dos objetivos do presente estudo, não nos dedicare- conceber o letramento em sua dimensão histó-
mos à explicitação teórica sobre essas distinções, mas sim a impli- rica e social leva a considerar as diversas práti-
cação do conceito de letramento para a aquisição da escrita.
cas escritas e orais e, também, em que medida como caracterizar grupos não alfabetizados que
o sujeito pode ocupar a posição de autor nessas vivem em sociedades letradas (TFOUNI, 2010a).
práticas, função que independe da alfabetiza- Portanto, os estudos sobre letramento que par-
ção. Todavia, muitas vezes, na escola, a mani- tem de uma perspectiva ideológica não se res-
festação da autoria por sujeitos não alfabetiza- tringem aos grupos alfabetizados, bem como
dos não é reconhecida, tais como no exemplo não pressupõem a existência de um letramento
apresentado pelas autoras, em que o docente “grau zero” ou “iletramento”, mas sim “graus de
diz: “não adianta ficar contando história, tem que letramento” (TFOUNI, 2010a). Sobre isso, Cor-
escrever no caderninho podem dar uma olhadi- rêa (2001, p.139) destaca: “considerar letrado o
nha nos exemplos que a tia vai colocar na lousa, indivíduo que teve contato indireto com a escrita
quem não está conseguindo pode ver como o tem a vantagem de permitir pensar numa dimen-
P.A. fez a redação dele, que ficou muito linda” são em que se podem imprimir diferentes graus
(TFOUNI, ASSOLINI, 2008, grifos nossos). Atitu- de acesso de letramento”.
des como essa não permitem que o escrevente Corrêa (2001) propõe a anterioridade do
assuma a posição de autor, mas sim, decalque letramento à alfabetização, a partir de uma no-
produções textuais sem manifestar o seu dizer. ção ampla de letramento que valoriza as habili-
Na perspectiva ideológica de letramento, dades dos indivíduos que, mesmo sem acesso à
o significado da escrita depende do grupo social alfabetização ou às práticas de leitura e escrita
em que ela é praticada. Portanto, nessa visão, canônicas, também “fazem a história da língua e
não se parte da perspectiva de um determinado da sociedade por meio do modo oral de registro
grupo (que utiliza a escrita), analisando os de- da memória cultural” (CORRÊA, 2001, p. 141). A
mais em relação à ausência de características partir dessa concepção, infere-se que “é sempre
presentes no grupo considerado “modelo”. Em o produto do trânsito entre práticas sociais orais/
consequência, as modalidades de escrita e ora- faladas e letradas/escritas que nos chega como
lidade não são consideradas puras e homogê- material de análise do modo de enunciação fa-
neas, uma vez que “tanto pode haver caracterís- lado e do modo de enunciação escrito, ambos
ticas orais no discurso escrito, quanto traços de como se sabe, manifestação de uma única e
escrita no discurso oral” (TFOUNI, 2010a, p. 42). mesma língua” (CORRÊA, 2001, p. 142). Por-
Ao discutir quais as diferenças entre al- tanto, os enunciados produzidos por crianças e
fabetização e letramento, Tfouni (2010a, p. 11- adultos privados de práticas canônicas de leitura
12) entende existir entre esses conceitos uma e escrita não podem ser tratados, por exemplo,
relação de produto e processo. Para a autora, o como tentativas inadequadas à situação de uso,
primeiro reside na “aquisição da escrita enquan- mas devem ser considerados frutos das diferen-
to aprendizagem de habilidades para leitura, tes práticas sociais orais e/ou letradas da comu-
escrita e as chamadas práticas de linguagem” e nidade em que o escrevente vive.
o segundo conceito focaliza os aspectos socio- A partir dessas contribuições, nesta pes-
lógico-históricos da aquisição da escrita. Enfim, quisa, reconhecemos o letramento a partir do
estudos sobre letramento, na verdade, procuram modelo ideológico, que nos permitirá conceber
“estudar e descrever o que ocorre nas socieda- as diferentes relações que as crianças mantêm
des quando adotam um sistema de escritura de com a escrita. Além de olhar para suas produ-
maneira restrita ou generalizada; procura[m] ain- ções textuais não como representações incau-
da saber quais práticas psicossociais substituem tas de um escrevente em constituição, mas, sim,
as práticas “letradas” em sociedades ágrafas” como marcas de um sistema em construção,
(TFOUNI, 2010a, p. 12). que indiciaria o trânsito do sujeito aprendiz pe-
Como vimos na seção anterior, a alfabe- los diferentes modos de enunciação da língua
tização focaliza a aquisição da escrita por um (ABAURRE, et al., 1997; CAPRISTANO, 2007b),
indivíduo ou grupo de indivíduos. O letramento ou seja, um material que, em seu cerne, é híbri-
– entendido a partir do modelo ideológico –, de do, cujas características orais e escritas convi-
modo diferente, preocupa-se com os aspectos vem e motivam, em alguns momentos, conflitos
sócio-históricos da aquisição de um sistema de inerentes às características do nosso sistema
escrita por uma sociedade, como quais mudan- linguístico.
ças sociais e discursivas ocorrem em uma so-
ciedade quando ela se torna letrada ou mesmo