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Mestrado em Psicologia Educacional

4º Ano – 1º Semestre
Ano letivo 2020/2021

Psicologia do Ensino e da Aprendizagem - Leitura e Escrita

CONCEÇÕES PRECOCES ACERCA DA LINGUAGEM ESCRITA

Docente:

Prof. Dra. Margarida Alves Martins

Discentes:

25660 – Maria Isabel Duarte

25790 – Nadine Karmali

4T1E
ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Diversos investigadores têm conduzido estudos relativamente às origens da


representação gráfica e têm vindo a identificar ensaios precoces de produção de traços
com uma aparência gráfica heterogénea nomeados pelas crianças em idade pré-escolar,
de “letras” e “números”. Estudos estes, que nos levam a pensar sobre quais as conceções
precoces das crianças relativamente à linguagem escrita, antes de saberem escrever, e
qual a evolução dessas conceções. Aquilo que cada criança pensa sobre a natureza da
linguagem escrita vai ser relacionado com o que lhe é ensinado, desta forma, o
conhecimento nesta área torna-se muito relevante e pertinente (Martins & Niza, 1998).

Ferreiro (2006) realizou estudos longitudinais nesta área com crianças dos 3 aos 6
anos e estudos transversais com crianças dos 4 aos 9 anos. A partir destes, identificou 3
fases fundamentais na conceptualização da escrita:

• Uma primeira fase em que há uma identificação de padrões distintos entre marcas
gráficas figurativas e não figurativas, uma constituição de séries de letras
enquanto objetos substitutos e uma procura de condições de interpretação desses
objetos substitutos. A criança ainda não utiliza caracteres convencionais para
escrever, nem distingue completamente as letras dos números.
• Na 2ª fase, há a construção de modos de diferenciação entre cadeias de letras,
sendo esta diferenciação alternativamente qualitativa e quantitativa. As condições
formais de legibilidade essenciais que marcam esta fase são existir uma
quantidade mínima de letras e não apresentar a mesma letra repetida.
• Por fim, a 3ª fase corresponde à fonética da escrita, esta começa com um período
silábico e culmina com o período alfabético.

Isto verifica-se para línguas como a portuguesa, cujos limites silábicos são claramente
marcados e os nomes mais utilizados são bi ou trissilábicos.

Para tirar estas conclusões, foram observados os aspetos construtivos da produção da


escrita da criança. Estes aspetos são as características da escrita que se podem observar
quando é questionado o que a criança quis representar e como reproduziu essa
representação. São os aspetos construtivos que nos permitem perceber a psicogénese da
evolução da escrita (Ferreiro, 2006).
As conclusões da autora dizem ainda que a escrita alfabética não consiste num
processo de codificação de unidades de som em unidades gráficas, mas antes num
processo de construção/compreensão de um sistema de representação. A construção de
qualquer sistema de representação necessita, por parte dos sujeitos, de um processo de
diferenciação entre os elementos, as propriedades e as relações que são apreendidas do
objeto que se tornará objeto da representação, os elementos e algumas das propriedades
e relações serão retidas na representação. No caso da construção de um sistema de
codificação, os elementos, propriedades e relações são pré-determinados uma vez que o
código secundário apenas propõe outra representação dos elementos, propriedades e
relações já constituídas. A invenção da escrita não foi um simples processo de
codificação.

Martins e Niza (1998), por sua vez, fazem um paralelo entre os primeiros textos de
Ferreiro e as suas descobertas científicas, do qual surgem os três níveis seguintes:

• Nível 1 – Escrita pré-silábica;


• Nível 2 – Escrita silábica;
• Nível 3 – Escrita com fonetização, sendo que esta última fase ou nível se divide
em 3 sub-níveis:
o Escrita silábica com fonetização;
o Escrita silábico-alfabética;
o Escrita alfabética.

As diferenças entre os níveis elaborados por estas autoras e as fases de Ferreiro


(2006), é que Ferreiro (2006) não considera um nível de escrita silábica sem fonetização,
ou seja, passa logo de um nível que não divide as palavras silabicamente, para um nível
onde já existe fonetização (fase 3). Para além disto, ao nível pré-silábico de Martins et al.
(1998) corresponde as duas primeiras fases de Ferreiro (2006), que são consideradas em
conjunto num só nível.

Segundo as Martins et al. (1998), no primeiro nível (escrita pré-silábica), a escrita


não é ainda determinada por critérios linguísticos e a criança, ao ler as palavras, aponta
geralmente para as mesmas de uma forma vaga e global. A criança pode utilizar letras,
pseudo-letras ou algarismos para escrever, recorrem geralmente a um número fixo de
grafemas e variam-nos ou trocam as suas posições. Normalmente a escrita não inclui
espaços e a mesma palavra é escrita de diferentes formas. Frequentemente é recusada
nesta fase a identificação de diversas palavras numa frase e, quando assinalada, não é
respeitada a ordem das palavras. A criança pode também estabelecer relações entre a sua
escrita e o tamanho do conceito que pretende escrever, a esta conceção de que a escrita
representa características do referente, dá-se o nome de hipótese quantitativa do referente.

A escrita silábica (nível 2) é já regida por critérios linguísticos, sendo que o


elemento oral que é representado na escrita é a sílaba. No entanto, a escolha de letras para
representar estas sílabas é ainda arbitrária. Geralmente é utilizada uma letra para
representar cada sílaba e estas letras variam no interior de cada palavra e de palavra para
palavra. As palavras não costumam ser separadas umas das outras. Nesta fase, a leitura
da palavra é silabada, as crianças segmentam o enunciado oral e as oralizações que
acompanham a escrita ocorrem antes ou durante a mesma. Na identificação de palavras
numa frase, esta ou é coerente ou se os verbos e artigos não forem escritos, recusam-se a
identificar ou mostram os substantivos como se estivessem ligados às palavras em falta.

A escrita com fonetização (nível 3) é orientada por critérios linguísticos e as letras


escolhidas nas representações dos diversos sons já não são arbitrárias. Algumas crianças
continuam a representar sílabas mas com letras que já não são escolhidas ao acaso (escrita
silábica com fonetização), outras escrevem mais letras para além da sílaba, sendo estas
também não arbitrárias, embora não escrevam ainda todos os fonemas (escrita silábico-
alfabética) e por fim, existem crianças que já produzem uma escrita alfabética onde são
representados todos os sons (fonemas), utilizando letras específicas. Nesta fase, as
oralizações que acompanham a escrita são formuladas antes da mesma. O assinalamento
das diversas palavras da frase é coerente com o lugar que estas devem de facto ocupar na
frase, exceto relativamente aos artigos que às vezes são assinalados no mesmo local dos
substantivos.

Concluímos desta forma, que nem todas as crianças pensam da mesma forma
relativamente à natureza da linguagem escrita. Existem crianças que não relacionam a
linguagem escrita e oral, existem crianças que se guiam por critérios linguísticos,
analisando o oral e as sílabas, às quais fazem corresponder uma letra arbitrária e existem
ainda crianças que procuram representar os sons com letras convencionais (Martins et al.,
1998).

Para além disto, percebemos que o percurso de desenvolvimento das


conceptualizações é “de fora para dentro”, ou seja, primeiro a criança utiliza a linguagem
como algo exterior à escrita e depois, vai compreendendo que a escrita é em si e por si
própria linguagem. Inicialmente a criança pensa e fala sobre a escrita e mais tarde a
linguagem falada não é apenas um instrumento para pensar e falar, mas é também o
próprio objeto de análise (Martins et al., 1998).

Martins et al. (1998) afirmam também que existem diferentes conceções em


relação ao material de leitura a escrita, sendo que muitas crianças acreditam que uma
palavra deve ter mais do que duas letras e estas não se podem repetir para poder ser lida.
Este género de critérios dá-nos pistas sobre a forma como as crianças organizam o
universo gráfico e o seu modelo cognitivo abstrato do que é a palavra escrita.

Crianças da mesma idade podem assim apresentar diferenças grandes a nível de


conceções sobre a escrita à entrada na escola primária. Estas diferenças devem-se às
diferentes oportunidades de contacto e interação com práticas sociais de escrita e
atividades com adultos e pares que envolvam a linguagem escrita. Ora, crianças mais
estimuladas estão mais próximas da compreensão do sistema escrito e terão mais
facilidade na entrada no processo formal de alfabetização. Neste aspeto, o jardim de
infância e a escola primária desempenham um papel fundamental na eliminação destas
desigualdades, contribuindo para que todas as crianças possam aprender sobre o universo
cultural da linguagem escrita (Martins et al., 1998).

A descoberta, pelas crianças, das funções da linguagem escrita é essencial para o


processo de alfabetização. Nesta descoberta, a criança cria o seu projeto pessoal de
leitor/escritor que vai motivá-la a aprender. Este projeto diz respeito à forma como as
crianças atribuem sentido à sua aprendizagem da linguagem escrita (Rogovas-Chauveau
citado por Martins et al., 1998). Também o contacto com utilizações diversas da escrita
vai determinar a relação que as crianças estabelecem com a sua aprendizagem, porque o
interesse gerado pela escrita vai variar em função da qualidade, frequência e valor das
atividades de leitura e escrita realizadas por quem convive diretamente com as crianças.
Diversos tipos de suporte vão dar às crianças a noção de que suportes diferentes
correspondem a diferentes conteúdos de escrita (Martins et al. 1998).

Assim, observando estes fatores e evolução de conceções que vão influenciar a


aprendizagem da escrita à entrada da escola, compreendemos que estas informações são
importantes e devem ser tidas em conta na elaboração das estratégias de ensino,
introduzindo o aluno como sujeito ativo, inteligente e criativo, que constrói para
compreender (Ferreiro, 2006).

MÉTODO

Amostra

Neste trabalho participaram 2 pessoas do sexo masculino, ou seja, 2 meninos


(N=2), um pelo nome de Tomás, que tem 5 anos, frequenta o pré-escolar no ano de
2020\2021 e outro pelo nome de Francisco, que tem 7 anos, entrou este ano no 1ºano do
1º ciclo no ano de 2020\2021.

A amostra em questão foi escolhida de forma não aleatória, por conveniência. Os


meninos já conheciam as observadoras, pelo que se mostraram predispostos à realização
das entrevistas.

Material

O material utilizado para realizar a entrevista foi uma entrevista base


disponibilizada pela professora na plataforma E-campus do ISPA-IU. A essa mesma
entrevista foram feitas algumas alterações, como acrescentar perguntas que se revelaram
relevantes ou alterar algumas palavras solicitadas às crianças para escrever (Anexo 1 e
2).

Estas alterações consistiram em adaptações a cada caso específico, nomeadamente


perguntar o que as pessoas específicas referidas pela criança como leitoras costumavam
ler, de forma a compreender melhor a rede social de suporte da criança face à leitura e à
escrita. Foi também utilizado o nome de cada criança numa das perguntas, de forma a
compreender se esta já associava o nome à linguagem e não como sendo algo que pertence
exclusivamente à sua identidade e, por fim, foi adaptada uma palavra consoante as letras
que a criança referiu que conhecia, isto para podermos compreender se a criança,
conhecendo a letra, a utilizaria para escrever a palavra em questão. As restantes
modificações de palavras foram efetuadas por questões de curiosidade, sendo que não foi
alterado o propósito das mesmas, ou seja, foram mantidos diminutivos e plurais,
conservando-se as relações pretendidas entre as palavras, alterando-se apenas o referente
animal a que as mesmas se referiam.

Para a pergunta “Que letras é que conheces?”, foi ainda mostrada à criança uma
lista de letras, para que fosse mais fácil o menino identificar as letras conhecidas. Para a
pergunta nº20 da entrevista do Francisco, foram utilizados três cartões (um com apenas
uma letra, outro com quatro letras iguais e um terceiro com três letras diferentes) com a
finalidade de compreender quais as suas conceções acerca do tipo de palavras que são
possíveis de ler.

Foram disponibilizadas às crianças, folhas de papel branco e um lápis de carvão


para responderem às perguntadas que eram colocadas.

Por fim, foi utilizado também o telemóvel para gravar a entrevista (com a devida
autorização dos encarregados de educação da criança) de modo a que depois esta pudesse
ser transcrita. As gravações foram posteriormente apagadas.

Procedimento

Para procedermos à entrevista foi necessário procurar crianças com idades


compreendidas entre os 5 anos e os 7 anos que ainda não tivessem aprendido formalmente
a ler nem escrever. Sendo escolhidos os participantes, foi explicado aos pais como seria
a entrevista e para que esta serviria. Depois de nos ser dada permissão dos encarregados
de educação, procedemos então à referida entrevista.

As entrevistas foram realizadas separadamente a cada criança nas suas respetivas


casas e teve a duração de cerca de 15 minutos.

Inicialmente, houve uma conversa com as crianças explicando o que se iria passar
e para que iriam servir as respostas delas. De seguida, foram feitas algumas perguntas em
relação ao lugar que a leitura ocupava na vida de cada criança, como por exemplo,
“Conheces pessoas que sabem ler?”. Esta primeira parte da entrevista (as cinco primeiras
perguntas) teve a finalidade de captar qual a funcionalidade da leitura para a criança,
explorar a sua rede de suporte social face à leitura e à escrita e ainda, compreender o seu
projeto de leitor/escritor. Mais tarde (a partir da pergunta número 6, em ambas as
entrevistas), foi pedido à criança que escrevesse algumas coisas da forma que achasse
melhor, como por exemplo, “Já sabes escrever o teu nome? Então escreve lá” ou “Escreve
lá como tu souberes, como fores capaz “gato””. Nesta segunda parte foi analisada a escrita
propriamente dita e as conceções das crianças sobre a mesma.

Como é de esperar com crianças novas, quando necessário, a meio da entrevista


foram existindo pequenas pausas para responder a questões paralelas colocadas pelas
mesmas e para conversar com elas de forma a que estas estivessem sempre à vontade e
disponíveis para responder às questões solicitadas.

De uma forma geral, as entrevistas foram muito bem conseguidas. Ambas as


crianças responderam a todas as perguntas sem nenhum problema, e mantiveram-se com
bastante entusiasmo e vontade de participar.

No final, agradecemos às crianças por terem respondido à entrevista e aos pais por
terem dado permissão para que tal fosse possível.

RESULTADOS

Sendo o instrumento utilizado uma entrevista com questões de resposta aberta, de


forma a obter os resultados, procedeu-se a uma análise qualitativa das respostas. Seguem-
se os resultados dos dois participantes. As entrevistas e transcrição das respostas na
íntegra encontram-se em anexo (Anexo 1 e 2).

Relativamente à primeira parte da entrevista (5 primeiras questões) pudemos


observar que ambos os meninos têm uma boa rede de suporte social a nível da leitura e
da escrita. O Tomás faz referência às quatro irmãs mais velhas e aos pais, dizendo que
estes leem poemas, coisas de meninas, revistas e jornais. O Francisco faz referência a um
colega da escola e à professora, dizendo que a professora lê tudo e o colega diversas
palavras. No que diz respeito ao projeto de leitor/escritor e, portanto, a funcionalidade da
escrita e da leitura para os meninos, estes, ao ser perguntado para que queriam aprender
a ler, responderam o seguinte: O Tomás respondeu que queria poder ler sozinho e gostava
de ler poemas como as irmãs; O Francisco respondeu que queria ler para ficar “mais
esperto” e que queria ler tudo. Isto revela que ambos os meninos têm uma motivação para
aprender a ler e veem funcionalidade em tal atividade, criando um projeto de
leitor/escritor.

Na segunda parte da entrevista (a partir da questão número 6) foi então analisada


a escrita propriamente dita e as conceções dos meninos sobre as mesmas. No caso do
Tomás, este escreve o seu nome sem dificuldade. Ao ser pedido para escrever as palavras
“gato” e “gatinho”, este pediu inicialmente para desenhar, mas depois escreveu utilizando
as letras do seu nome, são revelando grandes diferenças entre as palavras. Quando pedido
para o Tomás ler as palavras, este apontou para as mesmas e leu de uma forma geral.
Posto isto, observamos que a criança distingue claramente o desenho da escrita e revela
características do nível pré-silábico, como utilizar as letras do seu nome de forma
arbitrária e ler as palavras escritas de uma forma vaga.

Quando foi pedido para escrever a frase “O gato é pai do gatinho”, o Tomás não
utilizou as palavras escritas anteriormente para “gato” e para “gatinho”, escreveu a frase
como se as palavras fossem juntas e ao ser questionado sobre o local de cada palavra,
apenas localizou a palavra “gato” e “gatinho”, não considerando os artigos e verbos. De
seguida, foi pedido que este escrevesse as palavras “formiga” e “formigas”, que ele
escreveu utilizando novamente as letras do seu nome e outras. Não se revelou grande
diferença entre a escrita destas duas palavras, mas utilizou uma configuração diferente de
letras para cada uma, formando palavras diferentes. Ambas estas respostas são
consideradas, novamente, características de um nível pré-silábico. Ao ser tapado a última
parte da palavra “formiga”, o menino primeiro leu a palavra inteira, mas depois respondeu
que esta se lia “for” corrigindo-se, esta correção do menino pode ser um indicador
relevante de que a criança já pensa sobre a linguagem.

De seguida, foi perguntado que letras o Tomás conhecia e, a partir destas, foi
pedido que este escreve-se a palavra “águia”, dado conhecer a letra “A”. O menino
utilizou a letra “A” para iniciar a palavra, embora depois tenha acrescentado novamente
letras do seu nome. Isto também pode ser considerado um indicador de que o menino
pensa na linguagem e começa a ligar o som da letra conhecida à palavra escrita, embora
o facto das restantes letras serem letras do seu nome revele ainda um nível pré-silábico.

Por último, foi dito ao menino que se conhecia outro rapaz chamado Tomás e
perguntou-se se a criança sabia escrever o nome desse rapaz. O Tomás apontou para o
local onde tinha escrito o seu próprio nome. Tal revela que o menino já compreende que
o seu nome se refere à linguagem oral e escrita e não é apenas parte da sua identidade.

No caso do Francisco, este escreve o seu nome também sem dificuldades. Ao ser
pedido para escrever a palavra “pato”, este analisa primeiro o som da mesma por sílabas
e depois escreve a letra “A” relativa ao som “pá” e a letra “O” relativa ao som “to”, mas
depois acrescenta outras letras de forma arbitrária. Quando lhe foi pedido para ler a
palavra que escreveu, ele expressou que a palavra escrita por ele não era a palavra “pato”.
Aqui observamos que a criança analisa o som e faz uma escrita silábica com fonetização
mas depois acrescenta outras letras.
Ao ser pedido que escrevesse a palavra “patinho”, o Francisco mostra
compreender que esta palavra tem mais letras que a palavra “pato”, mas de seguida
escreve a palavra utilizando letras aleatórias. Quando pedido para ler, ele leu
silabicamente, dividindo a palavra, embora não a tenha escrito dessa forma. De seguida,
foi perguntado porque é que “patinho” tinha mais letras que “pato”, ao que o Francisco
respondeu que “patinho” tinha três e “pato” tinha dois, referindo-se às silabas.
Característica esta, do nível silábico.

Quando lhe foi pedido para escrever a fase “O pato é pai do patinho”, este escreve
as palavras todas juntas e sem pensar no que está a escrever, quando perguntado o local
das palavras, ele já nem se lembra bem da ordem das mesmas. Não analisa o som, nem
põe as letras correspondentes ao mesmo. Também não respeita a ordem das palavras da
frase na escrita. Isto são características pré-silábicas.

Relativamente às palavras “foca” e “focas”, o menino teve o mesmo raciocínio


que anteriormente, analisando o som das mesmas e vocalizando as palavras divididas por
sílabas antes de as escrever. Escreve o “O” para o som “fo” e o “a” para o som “ca”, mas
depois acrescenta mais uma letra em “foca” e várias letras em “focas”. O menino justifica
que “focas” tem mais sílabas que “foca”. Isto revela uma escrita do nível 3, silábico com
fonetização. Ao tapar a parte final da palavra “focas”, o Francisco responde que se lê
“Fó”, o que revela um pensamento sobre a linguagem.

Foi dito ao menino que se conhecia outro rapaz chamado Francisco e perguntou-
se se a criança sabia escrever o nome desse rapaz. O Francisco, à semelhança do Tomás,
apontou para o local onde tinha escrito o seu próprio nome. Tal revela que este já
compreende também que o seu nome se refere à linguagem oral e escrita e não é apenas
parte da sua identidade.

De seguida, foram mostrados três cartões ao Francisco (Um com apenas uma letra,
um com 4 letras iguais e um com 3 letras diferentes) e foi perguntado qual destes servia
para ler. O menino respondeu que só dava para ler o último cartão referido porque “esta
tem palavras e as outras não”, ao explorar esta resposta percebemos que ele se referia ao
facto de haver várias letras e estas serem diferentes. Esta é uma conceção do nível pré-
silábico.

Por último, foi perguntado que letras o Francisco conhecia e, a partir destas, foi
pedido que este escreve-se a palavra “águia”, à semelhança do Tomás, dado este também
conhecer a letra “A”. O menino utilizou a letra “A” para iniciar a palavra, de seguida põe
a letra “I” para a sílaba “gui” e a letra “A” para a última sílaba da palavra. Aqui é
demonstrada uma escrita de nível silábico com fonetização.

CONCLUSÃO/REFLEXÃO

Como referido na parte introdutória deste trabalho, crianças mais estimuladas


estão mais próximas da compreensão do sistema escrito e terão mais facilidade na entrada
no processo formal de alfabetização, para tal são importantes diferentes oportunidades de
contacto e interação com práticas sociais de escrita e atividades com adultos e pares que
envolvam a linguagem escrita (Martins et al., 1998). Vimos também que as crianças criam
o seu projeto pessoal de leitor/escritor e este vai motivá-las a aprender (Martins et al.,
1998).

No caso do Tomás podemos observar esta teoria, no sentido de que com apenas 5
anos, este escreve o seu nome sem dificuldade e já apresenta alguns indicadores de pensar
na linguagem e na correspondência do som às letras. O Tomás tem quatro irmãs mais
velhas e deseja aprender a ler como elas, o que revela um bom suporte social neste sentido
e um projeto pessoal de leitor/escritor motivador. No caso do Francisco, estando este a
iniciar o 1º ano do 1º ciclo, embora já tenha 7 anos, consideramos que este está num nível
adequado. Isto vai também de encontro à teoria, pois o menino refere uma rede de suporte
também adequada, assim como um projeto de leitor/escritor igualmente positivo.

Ao analisar os resultados descritos anteriormente, concluímos assim que o Tomás,


no que diz respeito aos níveis descritos por Martins et al. (1998), encontra-se claramente
no nível pré-silábico, embora já apresente certos indicadores anteriormente referidos de
que pensa na linguagem e na correspondência entre o som e as letras. Ou seja, o facto de
o Tomás escrever utilizando as letras do nome de forma arbitrária, escrever a mesma
palavra de diferentes formas, apontar para as palavras de uma forma vaga e global ao ler,
e por fim, a escrita de frases não incluir espaços, são características típicas do nível pré-
silábico. Enquanto que o facto do Tomás dizer que se for tapado o final da palavra
“formiga” se lê “for” e utilizar a letra “A” para iniciar a escrita da palavra “águia”, são
indicadores de uma evolução próxima deste nível.
Já segundo a classificação de Ferreiro (2006), o Tomás localiza-se no segundo
período, porque para além de fazer uma clara distinção entre o desenho e a escrita, que é
uma característica da primeira fase referida, escreve também as diferentes palavras
trocando a ordem e a quantidade das letras (alterações qualitativas e quantitativas das
cadeias de letras), que é uma característica identificada pela autora como pertencente à
segunda fase.

Relativamente ao Francisco, concluímos que este está entre dois níveis referidos
pelas autoras Martins et al. (1998), o nível pré-silábico e o nível silábico com fonetização,
embora se encontre mais no nível silábico com fonetização. Ou seja, são características
pré-silábicas, o facto de o Francisco acrescentar letras arbitrárias às suas palavras escritas,
não analisar o som ao escrever a frase solicitada, nem respeitar a ordem das palavras da
frase na escrita. Também o facto de este demonstrar que acredita que as palavras só
podem ser lidas se tiverem várias letras e se estas forem diferentes, é uma característica
deste nível. Isto é verificado não só na questão nº20, quando o menino diz que apenas se
pode ler o cartão que tem três letras diferentes, como também quando ele faz uma escrita
silábica com fonetização mas acrescenta letras arbitrárias à palavra até esta ter 3 ou 4
letras, aqui verifica-se que a criança procura aquele número de letras que ele considera
que uma palavra deve ter.

Por outro lado, são características de uma escrita silábica com fonetização, o
Francisco fazer oralizações que acompanham a escrita e que são formuladas antes da
mesma, dividir a palavra silabicamente nessas oralizações, compreender quando as
palavras têm mais sílabas e por isso, mais letras, compreender que ao tapar uma parte de
uma palavra esta é lida de forma diferente e, por fim, escrever a palavra “águia” com cada
letra escolhida especificamente para o som de cada sílaba (“AIA”).

Observamos também que a criança melhora ao longo da entrevista, sendo que no


fim, quando ele escreve “AIA”, é a primeira vez que ele faz uma escrita totalmente
silábica com fonetização. Isto vai de encontro às ideias de Martins et al. (1998) sobre o
papel da estimulação da escrita na evolução da mesma.

Relativamente à classificação de Ferreiro (2006), o Francisco encontra-se na 3ª


fase, pois é observada uma fonetização da escrita. No entanto, na resposta do menino à
questão nº20 e no acrescento de letras quando as palavras escritas por ele têm apenas duas
letras, podemos observar a existência da conceção de uma quantidade mínima de letras
para escrever e não apresentar a mesma letra repetida, que são condições formais de
legibilidade essenciais que marcam a 2ª fase descrita pela autora.

Por fim, ambos os meninos consideraram que o nome deles não era uma
característica unicamente deles próprios, associando o mesmo à palavra em si, que pode
se referir a vários meninos. Isto revela uma consciência de que a escrita corresponde à
linguagem e não ao referente.

Assim, neste trabalho foi possível observar os aspetos construtivos da escrita, à


semelhança do trabalho realizado por Ferreiro (2006), isto é, as características da escrita
que se podem observar quando é questionado o que a criança quis representar e como
reproduziu essa representação. E a partir destas observações, foi possível chegar à mesma
conclusão de Martins et al. (1998), de que nem todas as crianças pensam da mesma forma
relativamente à natureza da linguagem escrita, dado que na nossa amostra obtivemos duas
crianças em níveis muito diferentes, ainda que as suas idades sejam diferentes. Estas
idades diferentes tornaram-se interessantes, dado permitirem-nos também observar a
evolução descrita por ambas as autoras e localizar cada uma das crianças em níveis
distintos.

REFERÊNCIAS

Ferreiro, E. (2006). La escritura antes de la letra. CPU-e, Revista de Investigación


Educativa, Recuperado de
http://www.uv.mx/cpue/num3/inves/Ferreiro_Escritura_antes_letra.htm

Niza & Martins. (1998). Em I. Niza, & M. Martins, Capítulo 2 - Conceções precoces
acerca da linguagem escrita. Em Psicologia da aprendizagem da linguagem escrita
(pp. 43 - 95). Lisboa: Universidade Aberta.
ANEXOS

Anexo 1 – Entrevista Tomás

Entrevista realizada dia: 18-10-2020

1. Conheces pessoas que sabem ler?

Conheço

Quem?

As minhas irmãs, a Nena, a Teresa, a Margarida, a Matilde e a minha mãe e o


meu pai.

2. O que é que as Manas costumam ler?


As manas costumam ler coisas de meninas e poemas.

E a mãe e o pai?

A mãe e o pai costumam ler revistas e jornais.

3. E tu queres aprender a ler?


Sim.
4. Para quê?
Para eu poder ler sozinho sem ajuda.
5. Mas quando aprenderes a ler o que é que queres ler?
Quero ler poemas como as manas.
6. Já sabes escrever o teu nome? Então escreve lá.
Sim sei. (Pediu a irmã para escrever o apelido, porque não sabia).

7. Escreve lá como tu souberes, como fores capaz “gato”.


Primeiro ele perguntou se podia desenhar em vez de escrever eu disse que agora
não, se primeiro podia escrever e ele disse que sim e escreveu. No entanto no
intervalo das perguntas que lhe ia fazendo, ele desenhou o gato e o gatinho
desenhou o gato maior e o gatinho mais pequeno (anexei no fim da entrevista o
desenho.
8. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo.
Gatooooooooooo
9. Escreve lá “Gatinho”.

10. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo.


Gatinho
11. Agora escreve lá: “O gato é o pai do gatinho”.

12. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo.


O gato é o pai do gatinho.
13. Mostra lá onde escreveste urso. E ursinho? E pai?

(O roxo é o urso e o azul é ursinho)


14. Agora escreve lá “formiga”.

15. Agora escreve lá “formigas”.


16. Se eu agora chegar aqui e tapar este bocadinho de “formiga” como é que tu
achas que se lê? (Tapei as últimas duas letras que ele escreveu)

Ele primeiro leu a palavra toda “formiga”, e depois eu perguntei só este bocadinho
e ele disse “for”.

17. Que letras e que conheces?


Conheço o O,T,A,M,S,E,L,J,G.
18. Então podes escrever a palavra águia?

19. Sabias que eu tenho um menino na minha escola que se chama Tomás? Sabes
escrever o nome dele?
Apontou para a folha onde escreveu no início o seu próprio nome.
Enquanto ia-lhe fazendo as perguntas ele desenhou isto (O gato e gatinho)
Desenho o gato maior e o gatinho mais pequeno.

Anexo 2 – Entrevista Francisco

Entrevista feita a 13/10/2020


1. Conheces pessoas que sabem ler?
Conheço
Quem?
Uma pessoa da minha escola que se chama Miguel
E mais?
E a minha professora, que se chama Margarida
2. O que é que o Miguel costuma ler?
Costuma ler “armário”, “televisão”, “prédios”…
E a professora?
A Professora lê tudo
3. E tu queres aprender a ler?
Sim, quero
4. Para quê?
Então, para eu ficar mais esperto
5. Mas quando aprenderes a ler o que é que queres ler?
Tudo
6. Já sabes escrever o teu nome?
Sim
Então escreve lá

7. Agora vou-te pedir para escreveres algumas palavras e tu escreves da forma


que souberes, mesmo que não saibas, inventa como poderia ser. Escreve lá a
palavra “pato”
Pá… Um “À”… Pá, pá, pá… Pato… “ú”… Assim?

8. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo


“ÀÓÉÓ”
Então não era “pato”?
Pois, mas está aqui “àòèò”
9. Então escreve lá agora, como tu souberes “patinho”
Patinho? Isso é mais difícil!
Ah é? Porquê?
Então “patinho” e “pato”, pato tem menos palavras e patinho tem mais
Mas escreve lá, não precisa de estar certo, se achas que tem mais letras,
escreve aqui com mais letras

10. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo


(Deslisou o dedo pela palavra e disse “pa-ti-nho”)
11. Porque é que puseste mais letras em “patinho” do que em “pato”?
Porque “pato” tem menos e “patinho” tem mais
Mas porque é que achas que tem mais?
Porque a palavra “patinho” tem “pa-ti-nho”, são 3 e a palavra “pato” é “pa-to”
(mostra o número de sílabas com os dedos à medida que diz a palavra)
Ah! Então é pelos bocadinhos das palavras?
Sim
12. Ok! Já percebi, então agora escreve lá: “O pato é o pai do patinho”

13. Lê lá o que escreveste, mostra-me com o teu dedo


“O pai do patinho…”
O pato… (dei a dica de como era o início da frase)
“O pato do patinho…”
O pato é pai do patinho (corrigi)
“O pato é pai do patinho” (repetiu o que eu disse)
14. Mostra lá onde escreveste pato. E patinho? E pai?
(1º “pato”, 2º “patinho”, 3º “pai”)
15. Agora escreve lá “foca”
“Foca”? Eu só sei que começa com um “ó”, não é?
Tu é que sabes
“Fó”… “ó”… “fo-ca” é um “ó” e “ca”… que, que, cá, cá… “focá”, “foque”,
“foca”… hum… ca, ca, ca… e um ponto final

16. E agora “focas”?


Começa sempre por um “Ó” porque é “fó”, “focas”… “focas”… hum, já está!

17. Se eu agora chegar aqui e tapar este bocadinho de “focas” como é que tu
achas que se lê? (Tapei as últimas duas letras que ele escreveu)
“Fó”
Só “Fó”?
Sim
18. Ok, então e porque é que “focas” tem mais letras do que “foca”?
Porque “foca” tem “foca” (diz rápido, como se fosse uma só silaba), tem só um,
depois “focas” tem “fo-cas”, é dois (mostra com os dedos à medida que diz a
palavra).
19. Agora se eu te disser que conheço outro menino que se chama Francisco, tu
sabes escrever o nome dele?
Sim, sei! (vai buscar a folha onde escreveu o próprio nome) Está aqui!
Ah! É igual ao teu?
Isto não (aponta para o apelido), só este (aponta para onde escreveu “Francisco”)
- Mostrar 3 cartões, um com apenas uma letra, um com 4 letras iguais e um com
3 letras diferentes –
20. Então e destas palavras que eu tenho aqui, qual é que tu achas que dá para
ler? Servem só algumas, servem todas, não serve nenhuma… ?
Esta (aponta para o cartão que tem 3 letras diferentes)
Porquê?
Porque esta tem palavras e as outras não
Palavras? Como assim?
Palavras para ler
Ah, as letras?
Sim, as letras
Porquê? São diferentes?
Sim! E assim podemos ler
Ah, está bem!
- Mostrar uma lista de letras –
21. Diz-me lá aqui que letras é que tu conheces bem
A, B, C, D, E, F, G. Estas todas
Então escreve lá, por exemplo, “águia”
“Á”, “á-gui-a”, (escreve o “A” e o “I”) e é um “ah”, “ah”… (fica em dúvida se
será a letra “A” no final, mas acaba por pôr)

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