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Vinícius Reccanello de Almeida

REFLEXÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO


Emilia Ferreiro
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A REPRESENTAÇÃO DA LINGUAGEM E O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO


Inicialmente parte-se dos pressupostos, para alfabetização, que ela se resume ao método usado e a sujeito
que se está alfabetizando. Ferreiro acrescenta um terceiro elemento que é “a natureza do objeto envolvendo esta
aprendizagem” (p. 13), objeto este que é a linguagem escrita.

1. A escrita como sistema de representação

A autora propõe duas formas de se entender a linguagem (1) como representação da linguagem e (2) como
um código de transcrição gráfica das unidades sonoras.
A representação não é igual a realidade, ele sempre remete a uma realidade conhecida, mas não faz parte
dessa realidade. Ferreiro usa o exemplo do mapa para mostrar isso. O mapa representa a realidade, mas não é a
realidade, apenas afiguração desta.
O código é uma representação alternativa das relações existentes entre a realidade e forma de afiguração
desta.
Nessa perspectiva a invenção da linguagem foi um processo histórico de representação da realidade e não
uma forma alternativa de representação. No processo de alfabetização das crianças, elas precisam reinventar o
processo de escrita, não criando novos símbolos (letras), mas compreendendo a estrutura epistemológica interna
do processo de representação da realidade pela linguagem escrita. As consequências de se compreender a escrita
como um código de transcrição da linguagem oral implica a dissociação do sujeito significante com o significado e,
consequentemente, na destruição do símbolo. Não há questionamento sobre a vinculação do símbolo com o som
produzido, isso porque se torna arbitrário e, portanto o símbolo perde sua característica de símbolo e passa a ser
confundido com o próprio significado. Quando o significante não consegue distinguir o signo do significado não há
razão para utilização do símbolo, pois não há categorização. O sujeito não consegue mais fazer a distinção entre
eles e passa a não assimilá-los e, assim sendo, não aprende a vincular o símbolo ao valor sonoro nele contido.
*…+ se a escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é concebida com a aquisição de
uma técnica; se a escrita é concebida com um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apro-
priação de um novo objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual. (p. 19).

2. As concepções das crianças a respeito do sistema de escrita

As primeiras escritas infantis não correspondem a letras ou a qualquer outro sinal gráfico, são apenas rabis-
cos, linhas e traços, bolinhas e qualquer outra coisa. Numa abordagem tradicional, se presta mais atenção nos
aspectos gráficos do que nos aspectos construtivos.
Os aspectos gráficos têm a ver com a qualidade do traço, a distribuição espacial das formas, a orientação
predominante (da esquerda para a direita, de cima para baixo), a orientação dos caracteres individuais (inversões,
rotações, etc.). Os aspectos construtivos têm a ver com o que se quis representar e os meios utilizados para criar
diferenciações entre as representações (grifo do autor). (p. 21).
No processo de aprendizagem, segundo a perspectiva construtivistas, podemos distinguir as fases de evo-
lução da criança durante o processo de desenvolvimento da aprendizagem da escrita. Para Ferreiro (p. 22) esses
períodos são distinguidos em três:

* Distinção entre o modo de representação icônico e o não icônico;


* A construção de formas de diferenciação (controle progressivo das variações sobre os eixos qualitativo e quanti-
tativo);
* A fonetização da escrita (que se inicia com o período silábico e culmina com no período alfabético).

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No primeiro momento a evolução se dá quando a criança compreende que o desenho não é escrita, quan-
do ela percebe que a ato de escrever é diferente do de desenhar e que se escreve com letras.
No segundo momento, a evolução se apresenta quando a criança percebe que as palavras são escritas com
mais de uma letra (eixo quantitativo) e que as letras devem ser diferentes para poder expressar algo (eixo qualita-
tivo).
Por fim, no terceiro momento a criança compreende e faz variações dentro dos eixos qualitativos e quanti-
tativos produzindo novas escritas que lhe permitem transmitir mais conteúdos por meio da escrita.
Os dois primeiros períodos são superados com a construção da hipótese silábica.
Sobre o eixo quantitativo, isto se exprime na descoberta de que a quantidade de letras com que se vai es-
crever uma palavra pode ter correspondência com a quantidade de partes que se reconhece na emissão oral.
Essas “partes” da palavra são inicialmente as suas sílabas. Inicia-se assim o período silábico, que evolui até chegar
a uma exigência rigorosa: uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras. (p. 27).
A hipótese silábica traz consigo contradições que forçam a criança e progredir para outra hipótese. Essas
contradições estão relacionadas com a interpretação do que foi escrito. Com o passar do tempo a criança nota
que palavra monossílabas teriam que ter apenas uma letra, mas que com uma letra só não é possível interpretar
o que foi escrito; além dessa, ao comparar sua escrita com a de adultos ela perceberá que a hipótese silábica não
é capaz de prever o número de sílabas que aparecem na escrita adulta. Também faz parte da construção de des-
construção da hipótese silábica a percepção de que as partes da palavra com mesmo valor sonoro são escritos
com letras iguais, o que, até então, é inadmissível para a hipótese silábica.
Assim sendo, mediante todas essas construções a criança vai buscar um novo processo construção da escri-
ta. Ela adentra no período silábico-alfabético.
A partir daí, descobre novos problemas: pelo lado quantitativo, que se por um lado não basta uma letra pa-
ra cada sílaba, também não se pode estabelecer nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por
sílabas (já que há sílabas que se escrevem com uma, duas, três ou mais letras); pelo lado qualitativo, enfrentará
os problemas ortográficos (a identidade de som não garante identidade de letras, nem a identidade de sons).
(p.29).

3. Concepções sobre a língua subjacentes à prática docente

Os professores encontram algumas dificuldades com relação a não aprendizagem da leitura e da escrita.
Segundo Ferreiro existem três dificuldades principais: “*…] em primeiro lugar, a visão que um adulto, já alfabeti-
zado, tem do sistema de escrita; em segundo lugar, a confusão entre escrever e desenhar letras; finalmente, a
redução do conhecimento ao conhecimento das letras e seu valor sonoro convencional” (p. 33-34).
De todas essas dificuldades a maior é a última, pois no que se refere a primeira dificuldade, a visão do adul-
to já alfabetizado do sistema de escrita é diferente da visão da criança que desconhece totalmente esse sistema.
Desenhar ou escrever as letras é algo muito confuso para a criança, pois o adulto que ensina, quando não possui
uma perspectiva construtivista, acredita que a técnica de bem grafar as letras é fundamental para a aquisição da
habilidade escritora.
Porém, a última dificuldade referente a identificação da letra com o valor sonoro correspondente parte do
pressuposto que as letras já são conhecidas e que só se precisa, para aprender a ler, a adequação entre som e a
representação do som pela letra.
Pode-se, portanto, ensinar a leitura dissociada da escrita? Pode a criança saber ler sem saber escrever por
si só? Não é possível dissociar o ensino da leitura e da escrita, pois “*…+ esta diferenciação carece totalmente de
sentido quando sabemos que, para a criança, trata-se de compreender a estrutura do sistema de escrita, e que,
para conseguir compreender o nosso sistema, realiza tanto atividade de interpretação como de produção.” (p.
37). Para compreender nosso sistema de escrita a criança precisa ler e escrever, escrever e ler e não ler para de-
pois escrever.
Definir o que é fácil ou difícil para a escolha do método é algo problemático, pois o que parece fácil agora
pode ser difícil depois. Essa escolha não é válida, pois a escrita é algo social, compartilhado, ela não se encontra
somente na escola, aliás as crianças tem mais acesso a letras, palavras e textos fora da escola do que dentro dela.
Desse modo, buscar algo que seja fácil ou difícil para a criança é dissociar a realidade em que ela vive com as prá-
ticas pedagógicas da escola.
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COMPREENSÃO DO SISTEMA DE ESCRITA: construções originais da criança e informação específica dos adultos.

A atividade de interpretação e produção da escrita começam antes da idade escolar. Isso ocorre pelo con-
tato que a criança tem com a escrita mesmo antes da pré-escola e também porque a escrita é um produto cultu-
ral, resultado de um compartilhamento intersubjetivo de significados que possuem validade em um meio social.
“o escrito aparece, para a criança, como objeto com propriedades específicas e como suporte de ações e inter-
câmbios sociais.” (p. 44).
Sendo assim, a interpretação e a produção da escrita não são um técnica que deva se ensinada, mas um
processo de construção de entendimento das propriedades simbólicas do sistema escrito.
A autora se serve da teoria psicogenética de Piaget fundamentar o processo de construção do entendimen-
to da linguagem escrita. Porém, não se pode estabelecer limites estanques para as fases de desenvolvimento, elas
são apenas uma estimativa aproximada.

1. Construções Originais das Crianças

Para as autoras, “*…+ as crianças elaboram ideais próprias a respeito dos sinais escritos, ideias estas que não
podem ser atribuídas à influência do meio ambiente.” (p. 46).
A criança passa a distinguir, aproximadamente pelos quatro anos, o que pode ou não ser lido, passa a dis-
tinguir o que figura e o que não é. Assim ela passa a produzir o entendimento sobre a quantidade mínima de le-
tras que precisa possuir algo para ser lido, geralmente três. Porém, essa construção necessita de um auxílio para
que tenha êxito: é necessário que as letras não se repitam é necessária uma variedade de caracteres.
Pelos cinco anos a criança pensa que se pode escrever qualquer coisa com substantivos. Para a criança informa-
ções em demasia, como os verbos e artigos dentro da frase são desnecessários para dar-lhe sentido. Para ela a
ordem das palavras não está relacionada a ordem enunciada.
As palavras devem corresponder aos objetos, por isso que ao pedir para uma criança escrever elefante e
borboleta a palavra elefante terá mais letras do que borboleta porque elefante é maior. Após isso é que a criança
desenvolverá a hipótese silábica.

2. Informações Específicas

A aprendizagem das convenções do código não afeta a compreensão do sistema, saber que as letras têm
um nome, que se escrevem os nomes próprios com letra maiúscula, etc. são convenções que se aprenderá poste-
riormente a compreensão do sistema escrito.
Em crianças de 4 ou 5 anos “*…+ a orientação convencional (da esquerda para direita e de cima para baixo)
raramente está presente; ou melhor, quando aparece, combinada com outras, com uma acentuada tendência
para alternância.” (p. 56).
Outro traço marcante nas pesquisas das autoras é que as crianças de classe alta têm mais facilidade em re-
conhecer as orientações de leitura do que as crianças de classe baixa. Para essas últimas, ler não é tão importante
porque não transforma o papel. Escrever muda a qualidade do papel. Elas não percebem que ler seja um ato soci-
al tal como o escrever.
A criança que cresce em um meio “letrado” está exposta à influência de uma série de ações. E quando di-
zemos ações, neste contexto, queremos dizer interações. Através das interações adulto-adulto, adulto-criança e
crianças entre si, criam-se as condições para a inteligibilidade dos símbolos. A experiência com leitores de textos
informa sobre a possibilidade de interpretação dos mesmos, sobre as exigências desta interpretação e sobre as
ações pertinentes, convencionalmente estabelecidas. Aqueles que conhecem a função social da escrit a dão-lhe
forma explícita e existência objetiva através de ações interindividuais. A criança se vê continuamente envolvida,
como agente e observador, no mundo “letrado”. (p. 58).

3. Algumas implicações pedagógicas

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Como o desenvolvimento da escrita começa antes do período escolar, a escola deve propiciar as condições
para que a criança descubra por si só as regras do sistema alfabético de escrita. Para isso o professor deve adotar
o ponto de vista da criança e não o de um adulto alfabetizado.

PROCESSOS DE AQUISIÇÃO DA LÍNGUA NO CONTEXTO ESCOLAR


A aquisição a língua não é um processo escolar, mas se dá no cotidiano das vivências. Da mesma forma a
língua escrita também. É muito comum crianças que chegam a escola e já sabem escrever alguma coisa. Desde
que nascem as crianças deparam-se com problemas que precisam responder, adentrar no mundo da língua escri-
ta é um deles.
Em um ambiente urbano as crianças estão sempre expostas a letras e a textos e as relações sociais que eles
fazem referência. Sendo assim, a criança constrói seu objeto de conhecimento (língua escrita) não como uma
coleção de informações, mas

*…+ um esquema conceitual que permita interpretar dados prévios e novos dados (isto é, que possa receber
nova informação e transformá-la em conhecimento); um esquema conceitual que permita processo de inferência
acerca de propriedades não observáveis de um determinado objeto e a construção de novos observáveis, na base
do que se antecipou e do que foi verificado. (p. 65).

Manter a afirmação de que só se aprende na escola é dizer que o método de ensino é que determina o
progresso da criança e não a aprendizagem. Não é a visão do professor que deve ser levada em conta quando se
pensa o progresso da aprendizagem do indivíduo, mas o processo de aprendizagem que a criança desenvolveu.
Respostas certas ou erradas são classificações de um observador, mas quanto à criança as respostas são manifes-
tações do desenvolvimento cognitivo da aquisição da língua escrita.
Nessa perspectiva, os avanços da criança passam a ser percebidos e não o final do processo que se realiza
com o domínio da escrita. As tentativas de compreender o mundo da língua escritas são levados em conta agora
como um esforço muito grande de compreensão. O que antes eram consideradas apenas garatujas, rabiscos, ago-
ra passam a ser manifestação de um esforço cognitivo de compreender o mundo da língua escrita. “Sabemos
agora que há uma série de passos ordenados antes que a criança compreenda a natureza de nosso sistema alfa-
bético de escrita e que cada passo caracteriza-se por esquemas conceituais específicos *…+” (p. 67).
Durante os passos do processo a criança transforma a informação recebida acrescentando algo dela para
que possa compreendê-lo; outras vezes a criança se modifica, muda seus próprios esquemas de compreensão
para compreender a língua ou qualquer outro objeto que esteja a sua disposição.
Ao construir hipóteses para a escrita como a que a palavra elefante é maior do que borboleta, pois o ele-
fante é maior, a criança tenta inventar um sistema de escrita que se assemelhe aquele que percebe no mundo
fora da escola. A hipótese silábica é uma adequação dessa tentativa. Com o avanço de compreensão da criança
ela se dá conta de todo o fundamento do sistema escrito e passa a escrever corretamente. O que as autoras de-
fendem é que todo esse processo é muito trabalhoso e difícil para a criança e que não pode ser desconsiderado
na hora de mensurar sua aprendizagem.
Com uma pesquisa de campo as autoras comprovam que os processos de desenvolvimento da aquisição da
escrita não estão relacionadas ao modo adulto compreender a escrita, porém o que salta aos olhos é que todas as
crianças evoluíram dentro do esperado, isto é, passando pelos níveis: pré-silábico; silábico; silábico-alfabético e
alfabético.
O problema, portanto, das crianças não é a correspondência sonora ou a forma de escrita, mas sim a “*…+
natureza do sistema de escrita que a sociedade lhe oferece”. (p. 92).

O ESPAÇO DA LEITURA E DA ESCRITA NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR


Afirmar se se deve ou não ensinar a ler e escrever na pré-escola é uma afirmação que surge do ponto de
vista do adulto e não do ponto de vista da criança.

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A suposição de quando deve começar a se ensinar a língua escrita é uma suposição que traz em si a con-
cepção de que é o adulto que tem o poder de determinar quando, como e onde a criança aprenderá a ler e escre-
ver. E além desse há o pressuposto de que as crianças só aprendem quando lhes é ensinado. Tais pressupostos
são falsos.
As crianças “*…+ iniciam o seu aprendizado do sistema de escrita nos mais variados contextos, porque a es-
crita faz parte da paisagem urbana, e a vida urbana requer continuamente o uso da leitura” (p. 95). As informa-
ções que a criança recebe, tanto na área urbana como na área rural, graças as novas tecnologias da informação,
são inúmeras. Desse modo, mesmo que não haja a intencionalidade do adulto, a criança recebe informações so-
bre o universo do mundo escrito, quer seja por ouvir o pai comentar que leu no jornal o horário e o preço do es-
petáculo teatral ou a classificação do campeonato de futebol nacional, quer seja quando alguém lhes lê uma his-
torio, quer quando via a um culto religioso onde se lêem textos sagrados. Desse modo a criança descobre o valor
social da escrita participando de atos sociais. “A tão comentada ‘prontidão para a lecto-escritura’ depende muito
mais das ocasiões sociais de estar em contato com a língua escrita do que qualquer outro fator que seja invoca-
do” (p. 98).
Desse modo, a pré-escola deve ser o local onde as crianças que não tiveram oportunidade de contato social
com a leitura e com a escrita possam ter, por meio de uma diversidade de textos. É mais importante buscar uma
forma de representar o mundo pela escrita do que aprender sem pensar.
Numa sala de pré-escola deve haver coisas para ler. Um ato de leitura é um ato mágico. Alguém pode rir ou
chorar enquanto lê em silêncio, e não está louco. Alguém vê formas esquisitas na página, e de sua boca “sai lin-
guagem”: uma linguagem que não é a de todos os dias, uma linguagem que tem outras palavras e que se organiza
de outra foram (p. 99).
Assim sendo, se devemos ou não ensinar a ler e a escrever na pré-escola não é importante; o importante é
proporcionar ocasiões de aprendizagem para que a criança construa seu conhecimento e dele faça uso social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRO, Emilia. Reflexões Sobre Alfabetização. 26. ed. Coleção Questões de Nossa Época; v. 6. São Paulo: Cor-
tez, 2011.

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