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ESCOLA ESTADUAL ADALBERTO VALLE

FILOSOFIA

Alunos: Acemilson, Jovanilson,


Heliton, Eder, João, Janaina

MANAUS, ABRIL 2008


ESCOLA ESTADUAL ADALBERTO VALLE

FILOSOFIA

EPICURU & DESCARTES

Trabalho de Aproveitamento de Filosofia


para Conclusão do Curso de Ensino Médio
Série: 3 Turma:2 Turno: Noturno
Manaus-AM, 26 de maio de 2008

MANAUS, ABRIL 2008

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 4
2. DESENVOLVIMENTO 5
3. I – EPICURO 6
4. II – DESCARTES 12
5. CONCLUSÃO 19
6. BIBLIOGRAFIA 20

INTRODUÇÃO

O epicurismo, fundado por Epicuro de Samos (falecido por volta de 260 a.C.), é uma filosofia que,
em muitos aspectos, se contrapõe ao estoicismo. Como filosofia, ela é essencialmente materialista
(identifica os princípios primeiros das coisas com os átomos e com o vazio), mecanicista (todos os
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fenômenos se reduzem ac movimento e às suas leis), semita (o único conhecimento verdadeiro é o dos
sentidos) e hedonista (a felicidade consiste no prazer).
Com Descartes a filosofia registra uma reviravolta decisiva, recebendo uma colocação nova,
substancialmente diferente da que tivera na Antiguidade e na Idade Média. A sua orientação era então
essencialmente ontológica, tendo como objetivo constante e primário a investigação da razão última das
coisas (do homem, do mundo, de Deus). Só acidental e ocasionalmente se tomava em consideração o
problema do conhecimento, cujo valor, em todo caso, quase sempre era dado como fora de dúvida. Com
Descartes a filosofia recebe uma colocação crítica e gnosiológica: o que se quer verificar em primeiro lugar
é o valor do conhecimento humano.
Por que esta mudança radical?
A razão deve ser procurada na falta de resultado de dois mil anos de investigação ontológica:
constatada a impossibilidade de se conseguir, pelo processo especulativo, um acordo definitivo sobre a
natureza das coisas, percebe-se a urgência de deslocar a pesquisa para o instrumento do qual ela se
servira, de verificar o seu valor e de se excogitar um método válido para a pesquisa filosófica.
A colocação crítica da pesquisa filosófica justifica-se por motivos não só históricos, como também
teóricos. De fato, nenhuma construção científica ou filosófica pode ter firmeza sem antes deixar
estabelecido que o homem tem a capacidade de atingir a verdade mediante suas faculdades cognitivas.
Somente depois que se tiver demonstrado que o homem pode atingir com certeza a verdade das coisas é
que a pesquisa ontológica pode proceder com segurança.
Como dissemos, esta grande importância dispensada ao método e ao valor do conhecimento, que
será a característica constante de toda a filosofia moderna (especialmente em Spinoza, Leibniz, Locke,
Berkeley, Come, Kant e Hegel), tem seu início em Descartes, que é considerado, por isso, o "pai da filosofia
moderna".

DESENVOLVIMENTO

EPICURO OU EPICUREU

A fundação do "Jardim" (Képos)


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O "Jardim" de Epicuro e suas nove finalidades
A primeira das grandes escolas helenísticas, em ordem cronológica, foi a de Epicuro, que surge
em Atenas por volta do fim do século IV a.C. (provavelmente em 307/306 a.C.). Epicuro nas cera em Samos
em 341 a.C. e já havia ensinado em Cólofon, Miti-lene e Lâmpsaco. A transferência da escola para Atenas
constituiu um verdadeiro e preciso ato de desafio de Epicuro em relação à Academia e ao Perípatos, o início
de uma revolução espiritual. Epicuro compreendera que tinha algo de novo a dizer, algo que em si mesmo
tinha futuro, ao passo que as escolas de Platão e Aristó-teles, agora, possuíam apenas quase que só o
passado: um passado que, embora próximo cronologicamente, tornara-se de repente espiritualmente
remoto dos novos eventos. Ademais, os próprios sucessores de Platão e Arístóteles, como já vimos,
deturpavam, no interior de suas escolas, a mensagem dos fundadores.
O próprio lugar escolhido por Epicuro para sua escola é a expressão da novidade revolucionária
do seu pensamento: não uma palestra, símbolo da Grécia clássica, mas um prédio com um jardim (que era
mais um horto), nos subúrbios de Atenas. O Jardim estava longe do tumulto da vida pública citadina e
próximo do silêncio do campo, aquele silêncio e aquele campo que não diziam nada para as filosofias
clássicas, mas que se revestiam de grande importância para a nova sensibilidade helenística. Por isso, o
nome "Jardim" e os "filósofos do jardim" (que, em grego, diz-se Képos) passou a indicar a escola e as
expressões "os do Jardim" tornaram-se sinónimos dos seguidores de Epicuro, os epicuristas. Da riquíssima
produção de Epicuro foram reunidas integralmente as Cartas endereçadas a Heródoto, a Pítocles, a
Meneceu (que são tratados resumidos), duas coleções de Máximas e vários fragmentos.
A palavra que vinha do Jardim pode ser resumida em poucas proposições gerais: a) a realidade é
perfeitamente penetrável e cognoscível pela inteligência do homem; b) nas dimensões do real existe espaço
para a felicidade do homem; c) a felicidade é falta de dor e perturbação; d) para atingir essa felicidade e
essa paz, o homem só precisa de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente a única sensação se
revelasse mentirosa, mais nenhuma pudesse ser dita verdadeira. E chamava os sentidos de: 'mensageiros
do verdadeiro' ". Os argumentos que Epicuro apresentava para provar a veracidade absoluta de todas as
sensações são os seguintes: 1) Em primeiro lugar, a sensação é uma "alteração" e, em consequência,
passiva; como tal, é produzida por alguma coisa da qual é o efeito correspondente e adequado. 2) Em
segundo lugar, a sensação é ob-jetiva e verdadeira, porque é produzida e garantida pela própria estrutura
atómica da realidade (da qual falaremos adiante). De todas as coisas emanam complexos de átomos, que
constituem "imagens ou simulacros", e as sensações são exatamente produzidas pela penetração, em nós,
de tais simulacros. As sensações são registros objetivos dos simulacros tais como eles são, mesmo aqueles
que erroneamente são considerados ilusões dos sentidos, como as diferentes formas segundo as quais um
objeto aparece, segundo o lugar ou a distância em que nos encontramos dele. De fato, o si mulacro do
objeto próximo é efetivamente diverso daquele que está distante; assim, em vez de estabelecer a prova,
segundo alguns, de que os sentidos se enganam, é prova de sua objetividade. 3) Finalmente, a sensação é
a-racional e, em consequência, incapaz de retirar ou acrescentar a si mesma alguma coisa, sendo, pois,
objetiva.
Como segundo "critério" de verdade, Epicuro propunha as "prolepses", "antecipações" ou "pré-
noções", que são as representações mentais das coisas, as quais não são senão "memória daquilo que
frequentemente mostrou-se do exterior". A experiência deixa, pois, na mente a "impressão" das sensações
passadas e essa "impressão" permite-nos conhecer antecipadamente as características das coisas
correspondentes, ainda sem tê-las atualmente presentes ou, para dizê-lo em outros termos, "antecipamos"
quais características as coisas terão quando a sensação colocá-las novamente diante de nós. Logo, a
prolepse antecipa a experiência somente porque e enquanto ela foi produzida pela experiência. Os "nomes"
são expressões "naturais" dessas prolepses e, conseqüen-temente, constituem também a manifestação
natural da ação originária das coisas sobre nós.
Como terceiro critério de verdade, Epicuro propõe os sentimentos de "prazer" e "dor". As
sensações do prazer e da dor são objetivas pelas mesmas razões que o são todas as sensações. Têm,
todavia, importância inteiramente particular porque, além de critério para distinguir o verdadeiro do falso, o
ser do não-ser, como todas as outras sensações, constituem o critério axiológico para distinguir o "bem" do
"mal", constituindo assim o critério de escolha ou da não escolha, ou seja, a regra do nosso agir.
As sensações e prolepses e os sentimentos de prazer e dor têm a característica comum que
garante seu valor de verdade, a qual consiste na evidência imediata. Portanto, desde que firmemos a
evidência e acolhamos como verdadeiro o que é evidente, não podemos errar, porque a evidência é sempre
dada a partir da ação direta que as coisas exercem sobre nosso espírito. "Evidente" no sentido estrito é,
então, só aquilo que é imediato, como as sensações, as antecipações e os sentimentos. Mas, uma vez que
o raciocínio não pode apoiar-se no imediato, sendo operação de mediação, assim nasce a opinião e, com
ela, a possibilidade do erro. Portanto, enquanto as sensações, as prolepses e os sentimentos são sempre
verdadeiros, as opiniões poderão ser ora verdadeiras, ora falsas. Por isso, Epicuro procurou determinar os
critérios com base nos quais pode-se distinguir as opiniões verdadeiras das falsas.
São verdadeiras as opiniões que: a) "recebem testemunho comprobatório", isto é, confirmação da
experiência e da evidência e b) "não recebem testemunho contrário", ou seja, não recebem desmentido da
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experiência e da evidência; por sua vez, são falsas as opiniões que a) "recebem testemunho contrário", ou
seja, são desmentidas pelas experiências e pela evidência e b) "não recebem testemunho probante", ou
seja, não recebem confirmação da experiência e da evidência.
Cumpre que a evidência permanece sempre o parâmetro com base no qual se mede e reconhece
a verdade, mas é somente evidência empírica: é a evidência tal como aparece aos sentidos e não tal como
aparece à razão. Mais do que nunca são aqui relevantes as pesadas hipotecas sensísticas do cânone
epicureu que o tornam inadequado e insuficiente quanto às exigências para a construção da própria física
epicuréia. De fato, os conceitos-base da física epicuréia, como os "átomos", o "vazio" e a "queda dos
átomos", não são coisas evidentes por si, pelo motivo de que não são sensorialmente aceitáveis. Mas, diz
Epicuro, são coisas não evidentes, supostas e opinadas para explicar os fenómenos e de acordo com os
fenómenos. Mas, evidentemente, Epicuro está bem longe de poder demonstrar que os átomos, o vazio e a
queda sejam as únicas coisas que podemos supor para explicar os fenómenos, porque outros princípios,
inteiramente diversos destes, poderiam igualmente se vangloriar da "falta de testemunho contrário" por
parte da experiência.
Recordemos, enfim, que há tempos os estudiosos revelaram que, a partir da afirmação de que
todas as sensações são verdadeiras, pode-se deduzir tanto o objetivismo absoluto, como faz Epicuro, como
o subjetivismo absoluto, como fazia Protágoras. A verdade é que tanto a física como a ética epicuréia, em
todo caso, vão muito além daquilo que o cânone que vimos permitiria sozinho. 3.3. A física epicuréia
Por que é necessário elaborar uma física ou ciência da natureza, da realidade em seu conjunto?
Epicuro responde: "Se não nos perturbasse o pavor dos fenómenos celestes e da morte, algo que nos toca
de perto, e se não nos perturbasse o desconhecimento dos limites dos prazeres e das dores, não teríamos
necessidade da ciência da natureza." O que significa que a física deve ser feita para dar fundamento à
ética.
A "física" de Epicuro é uma ontologia, uma visão geral da realidade em sua totalidade e em seus
princípios últimos. Epicuro, na verdade, não sabe criar unia nova ontologia: para expressar a própria visão
materialista da realidade de modo positivo (ou seja, não negando simplesmente a tese platônico-
aristotélica), remete a conceitos e figuras teoréticas já elaboradas no âmbito da filosofia pré-socrática. E,
entre todas as perspectivas pré-socráticas, era quase inevitável que Epicuro escolhesse a dos atomistas,
exata-mente porque, essa depois da "segunda navegação" platónica, revelava-se a mais materialista de
todas. Mas o atomismo, como vimos, é uma resposta precisa às aporias levantadas pelo eleatis-mo, uma
tentativa de mediar as instâncias opostas do logos eleático, por um lado, e da experiência, por outro.
Grande parte da lógica eleática passa pela lógica do atomismo (Lêucipo, o primeiro atomista, foi discípulo
de Melissos e, em geral, o atomismo, entre as propostas pluralistas, foi a mais rigorosamente eleática). Em
conseqüentemente, era inevitável que também estivesse presente em Epicuro.
Os fundamentos da física epicuréia podem ser enucleados e formulados como segue:
a) "Nada nasce no não-ser", porque, de outro modo, tudo poderia absurdamente gerar-se de
qualquer coisa, sem necessidade de nenhum elemento gerador; e nenhuma coisa "dissolve-se no nada",
porque, de outro modo, neste momento, tudo pereceria e nada mais existiria. E, dado que nada nasce e
nada perece, assim o todo, isto é, a realidade em sua totalidade, sempre foi como é agora e sempre será
assim; com efeito, além do todo, não existe nada em que ele possa mudar-se, nem existe nada do qual
possa provir.
b) Esse "todo", ou seja, a totalidade da realidade, é determinado por dois componentes essenciais:
os corpos e o vazio. A existência dos corpos é provada pêlos próprios sentidos, enquanto a existência do
espaço e do vazio é inferida pelo fato de que existe movimento. Com efeito, para que exista movimento, é
necessário que exista um espaço vazio no qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é absoluto não-
ser, mas exatamente "espaço" ou, como diz Epicuro, "natureza intangível". Além dos corpos e do vazio
tertium non datur, porque não seria pensável nada que exista por si mesmo e não seja alteração dos
corpos.
c) Tal como é concebida por Epicuro, a realidade é infinita. Em primeiro lugar, é infinita como
totalidade. Mas é evidente que, para que tudo possa ser infinito, cada um dos seus princípios constitutivos
também deve ser infinito: infinita deverá ser a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio (se a
multidão dos corpos fosse finita, eles se perderiam no vazio infinito e, se o vazio fosse finito, não poderia
acolher corpos infinitos. O conceito de infinito torna, assim, a se impor, contra as concepções platónicas e
aristotélicas.
d) Alguns "corpos" são compostos; outros, ao contrário, são simples e absolutamente indivisíveis
(átomos). A admissão do átomo torna-se necessária porque, caso contrário, seria preciso admitir uma
divisibilidade dos corpos ao infinito, a qual, no limite, conduziria a dissolução das coisas no não-ser, o que,
como sabemos, é absurdo.
A concepção do átomo de Epicuro difere da visão dos antigos atomistas (Lêucipo e Demócrito) em
três pontos fundamentais.
1) Os antigos atomistas indicavam como características essenciais do átomo a "figura", a "ordem"
e a "posição". Epicuro, por sua vez, indica como características essenciais a "figura", o "peso" e a
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"grandeza". As formas diferentes dos átomos (que não são somente formas regulares de caráter
geométrico, mas formas de toda espécie e tipo, sendo em todo caso, sempre e só formas quantitativas
diferentes e não qualitativamente diversas, como as formas platónicas e aristotélicas, dado que os átomos
são todos de idêntica natureza) são necessárias para explicar as diversas qualidades fenomênicas das
coisas que nos aparecem. O mesmo vale também para a grandeza dos átomos (o peso, porém, como
veremos melhor adiante, é necessário para explicar o movimento dos átomos). As formas atómicas devem
ser diversas e numerosíssimas, mas não infinitas (para ser infinitas, deveriam poder variar sua grandeza ao
infinito; mas, então, tornar-se-iam visíveis, o que não acontece), ao passo que o número dos átomos em
geral é infinito.
2) A segunda diferença consiste na introdução da teoria dos "mínimos". Segundo Epicuro, todos
os átomos, dos maiores aos menores, são física e ontologicamente indivisíveis; todavia, o fato mesmo de
serem "corpos" dotados de figura e, conseqüentemente, de extensão e grandezas diversas (embora no
âmbito dos dois limites que assinalamos) implica que eles teriam partes. (Se assim não fosse, não existiria
sentido algum em falar de átomos pequenos e átomos grandes.) Obviamente, trata-se de "partes" não sepa-
ráveis ontologicamente, mas apenas lógica e idealmente distin-guíveis, porque o átomo é estruturalmente
indivisível. E mesmo a grandeza dessas "partes" do átomo, pela mesma razão eleática em virtude da qual é
impossível que os átomos diminuam de grandeza ao infinito, deve-se deter em um limite que Epicuro chama
exa-tamente de "mínimo" e que, como tal constitui a unidade da medida. Epicuro — note-se — fala dos
"mínimos" não só referindo-se aos átomos, mas também ao espaço (ao vazio), ao tempo, ao movimento e à
"queda" dos átomos (de que falaremos adiante). Em todos os casos, os "mínimos" constituem a unidade de
medida analógica.
3) A terceira diferença diz respeito à concepção do movimento originário dos átomos. Epicuro
entende este movimento não como aquele voltejar em todas as direções do qual falavam os antigos
atomistas, mas como movimento de queda para baixo no espaço infinito, devido ao peso dos átomos, com
movimento tão veloz quanto o pensamento e igual para todos os átomos, quer sejam pesados, quer leves.
Tal correção da concepção do antigo atomismo resulta num híbrido bastante infeliz, porque demonstra de
modo claríssimo quanto o pensamento sobre o infinito está irremediavelmente comprometido pelo
"sensismo", que não sabe livrar-se da representação empírica do alto e do baixo (que são conceitos
relativos ao finito). Mas como então os átomos não caem segundo linhas paralelas, no infinito, sem nunca
se tocar? Para resolver a dificuldade, Epicuro introduz a teoria da "declinação" dos átomos (clinámen),
segundo a qual os átomos podem desviar-se a qualquer momento do tempo e em qualquer ponto do espaço
num intervalo mínimo da linha reta e, assim, encontrar outros átomos.
A teoria do clinámen não foi introduzida só por razões físicas, mas também e sobretudo por razões
éticas. Com efeito, no sistema do antigo atomismo tudo ocorre por necessidade: o fado e o destino são
soberanos absolutos; mas, num mundo no qual predomina o destino, não há lugar para a liberdade humana
e, em consequência, não há lugar para uma vida moral tal como Epicuro a concebe e, portanto, também
não há lugar para uma vida de sábio. Eis pois o que Epicuro escreve, opondo-se à necessidade dominante
no sistema dos antigos atomistas: "Na verdade, seria melhor acreditar nos mitos sobre os deuses do que
tornar-se escravo do fado que os físicos pregavam: aquele mito, com efeito, oferece uma esperança, com a
possibilidade de aplacar os deuses com honras, enquanto no fado existe apenas uma necessidade
implacável."
Como os antigos já observavam, a "queda" dos átomos contradiz as premissas do sistema, porque
é gerada sem causa no "não-ser"; o que é tanto mais grave quando se sabe que Epicuro repisa
energicamente que "do nada, nada procede".
Assim Epicuro, para introduzir o "clinámen", contradiz o princípio eleático que, como vimos, está
na base da sua física; e, para abrigar-se da necessidade, do fado e do destino, lança o cosmos à mercê do
fortuito. Com efeito, o "clinámen", que não está vinculado às leis nem às normas da sorte, não é certamente
"liberdade", porque lhes são estranhas qualquer finalidade e qualquer inteligência: logo, ele é apenas mera
casualidade, A liberdade não pode ser buscada e encontrada na esfera do físico e do material, mas
somente na esfera superior, do espiritual. Por outro lado, como dizíamos, exatamente estas aporias estão
entre as coisas que melhor nos ajudam a compreender a complexidade do pensamento de Epicuro e sua
verdadeira estatura. Dos infinitos princípios atómicos derivam infinitos mundos. Alguns são iguais ou
análogos ao nosso, outros muito diversos. É pois de se notar que todos esses infinitos mundos nascem e se
dissolvem, alguns mais rapidamente, outros mais lentamente, na duração do tempo. Se bem que os
mundos não sejam apenas infinitos na infinitude do espaço num dado momento do tempo, mas também são
infinitos na infinita sucessão temporal. E, embora em cada instante existam mundos que nascem e mundos
que morrem, Epicuro bem pode afirmar que "o todo não muda". Com efeito, não só os elementos
constitutivos do universo permanecem perenemente como são, mas também todas as suas possíveis
combinações permanecem sempre atuan-tes, exatamente por causa da infinitude do universo, que dá
sempre lugar à concretização de todas as possibilidades.

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Na raiz dessa constituição de infinitos universos não estão, pois, nenhuma Inteligência, nenhum
projeto e nenhuma finalidade — e sequer está a necessidade —, mas. como vimos, está o clinámen e, logo,
o casual e o fortuito. E Epicuro e não Demócrito o filósofo que verdadeiramente "coloca o mundo ao caso".
A alma, como todas as outras coisas, é agregado de átomos. Agregado formado em parte por
átomos ígneos, aeriformes e ventosos, que constituem a parte irracional e a lógica da alma, e em parte por
átomos que são "diversos" dos outros e que não têm nome específico, constituindo a parte racional.
Portanto, como todos os outros agregados, a alma não é eterna, e sim mortal. Essa é uma consequência
que decorre necessariamente das premissas materialistas do sistema.
Epicuro não nutre nenhuma dúvida sobre a existência dos deuses. Entretanto, nega que eles se
ocupem com os homens ou com o mundo. Vivem em bem-aventurança nos "intermundos", ou seja, nos
espaços existentes entre mundo e mundo; são numerosíssimos, falam uma língua semelhante à grega (a
língua dos sábios) e transcorrem a vida na alegria, alimentada por sua sabedoria e por sua própria
companhia. Epicuro chegava a apresentar argumentos para demonstrar a existência dos deuses: 1) temos
deles conhecimento evidente e, conseqüentemente, incontestável; 2) tal conhecimento possuem-no não só
alguns, mas todos os homens de todos os tempos e lugares; 3) o conhecimento que temos deles, assim
como nossos outros conhecimentos, não pode ser produzido senão por "simulacros" ou "eflúvios" que
provêm deles, sendo, conseqüentemente, conhecimento objetivo.
É muito importante destacar o fato de que, da mesma forma que sublinha a "diversidade" dos
átomos que constituem a alma racional em relação a todos os outros átomos. Epicuro também admite que a
conformação dos deuses "não é corpo, mas 'quase corpo', não é alma, mas 'quase alma' ".
Seria o caso de destacar que esse "quase" arruina todo o raciocínio filosófico e põe
irreparavelmente a nu a insuficiência do materialismo atomístico. Como todas as outras coisas, os deuses
devem ser constituídos por átomos, mas todo composto atómico é suscetível de dissolução, enquanto os
deuses são imortais. Pois bem, a afirmação de que o composto atómico que constitui os deu ses,
diversamente daquele que constitui todas as outras coisas, não se dissolve porque as suas perdas (sofridas
com o contínuo fluxo dos átomos que formam os simulacros) são continuamente preenchidas, nada mais
faz do que acentuar o problema. Com efeito, não há modo de explicar a razão do estatuto privilegiado
desses compostos. E, então, a Epicuro só resta a aporética afirmação do "quase-corpo", que, na realidade,
revela inexoravelmente a incapacidade estrutural do atomismo de explicar os deuses, bem como de explicar
a unidade da consciência que existe em nós, da mesma fornia que o clinámen se revela estruturalmente
insuficiente para explicar a liberdade.
A ética epicuréia
Se a essência do homem é material, também necessariamente será material o seu bem
específico, aquele bem que, concretizado e realizado, torna o homem feliz. E que bem seja este é a
natureza, considerada na sua imediaticidade, que nos diz sem meias palavras, como já vimos: o bem é o
prazer.
Essa conclusão fora extraída pêlos cirenaicos. Mas Epicuro reforma radicalmente o seu
hedonismo. Com efeito, os cirenaicos sustentavam que o prazer é um "movimento suave", enquanto a dor é
"movimento violento"; negavam o estado de quietude intermediário, ou seja, a ausência de dor ou prazer.
Epicuro não só admite esse tipo de prazer na quietude (catastemático), mas dá-lhe a máxima importância,
considerando-o o limite supremo, o cume do prazer. Ademais, enquanto os cirenaicos consideravam os
prazeres e dores físicos superiores aos psíquicos, Epicuro sustenta exatamente o oposto. Como fino
indagador da realidade do homem que era Epicuro compreendera perfeitamente que mais do que os gozos
ou sofrimentos do corpo, que são circunscritos no tempo, contam as ressonâncias interiores e, os
movimentos da psique, que os acompanham e duram bem mais.
Para Epicuro, portanto, o verdadeiro prazer vem a ser a "ausência de dor no corpo" (aponta) e a
"falta de perturbação da alma" (ataraxia). Eis as afirmações do filósofo: "Assim, quando dizemos que o
prazer é bem, não aludimos, de modo algum aos prazeres dos dissipados, que consistem em torpezas,
como crêem alguns que ignoram nosso ensinamento ou o interpretam mal; aludimos isso sim, à ausência de
dor no corpo e à ausência de perturbação na alma. Nem libações e festas ininterruptas, nem gozar com
crianças e mulheres, nem comer peixes e tudo o mais que uma mesa rica pode oferecer são fonte de vida
feliz, mas sim o sóbrio raciocinar, que escruta a fundo as causas de todo ato de escolha e de recusa e que
expulsa as falsas opiniões por via das quais grande perturbação se apossa da alma."
Sendo assim, a regra da vida moral não é o prazer como tal, mas a razão que julga e discrimina,
ou seja, a sabedoria que, entre os prazeres, escolhe os que não comportam em si dor e perturbação,
descartando os que dão gozo momentâneo, mas trazem consigo dores e perturbações.
Para garantir o atingimento da "aponia" e da "ataraxia", Epicuro distinguiu: 1) prazeres naturais e
necessários; 2) prazeres naturais, mas não necessários, 3) prazeres não naturais e não necessários.
Estabeleceu depois que atingimos o objetivo desejado satisfazendo sempre o primeiro tipo de prazeres,
limitando-nos em relação ao segundo tipo e fugindo do terceiro. Nesse terreno, Epicuro manifesta uma
posição que não seria exagero chamar de "ascética", pelas razões que seguem:

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1) Entre os prazeres do primeiro grupo, isto é, aqueles naturais e necessários, ele coloca
unicamente os prazeres que estão estreitamente ligados à conservação da vida do indivíduo: estes seriam
os únicos verdadeiramente válidos, porque subtraem a dor do corpo, como, por exemplo, comer quando se
tem fome, beber quando se tem sede, repousar quando se está cansado e assim por diante. Ao mesmo
tempo, exclui do grupo o desejo e o prazer do amor, porque são fonte de perturbação. 2) Entre os prazeres
do segundo grupo, ao contrário, coloca todos os desejos e prazeres que constituem as variações supérfluas
dos prazeres naturais: comer bem, beber bebidas refinadas, vestir-se com apuro e assim por diante. 3) Por
fim, entre os prazeres do terceiro grupo, não naturais e não necessários Epicuro coloca os prazeres "vãos",
isto é, nascidos das "vãs opiniões dos homens", que são todos os prazeres ligados ao desejo de riqueza,
poder, honras e semelhantes.
1) Os desejos e prazeres do primeiro grupo são os únicos que são sempre e habitualmente
satisfeitos, porque têm por natureza "limite" preciso, que consiste na eliminação da dor: obtida a eliminação
da dor, o prazer não cresce ulteriormente. 2) Os desejos e prazeres do segundo grupo não têm mais aquele
"limite", porque não subtraem a dor do corpo, mas variam somente no grau do prazer e podem provocar
notável dano. 3) Os prazeres do terceiro grupo não tolhem a dor corpórea e, por acréscimo, produzem
sempre perturbação na alma. Por isso, são compreensíveis estas conclusões: "A riqueza segundo a
natureza está inteira no pão, na água e num abrigo qualquer para o corpo; a riqueza supérflua traz para a
alma também uma ilimitada aspiração dos desejos." Refreemos, pois nossos desejos reduzamo-los ao
primeiro núcleo essencial e teremos copiosa riqueza e felicidade, porque para nos propiciar aqueles
prazeres bastamo-nos a nós mesmos, e neste bastar-se-a-si-mesmo (autarquia) é que estão a maior
riqueza e felicidade.
Mas o que devemos fazer quando somos atingidos pêlos males físicos não desejados? Epicuro
responde: se é leve, o mal físico é suportável, nunca sendo tal que ofusque a alegria da alma; se é agudo,
passa logo; se é agudíssimo, conduz logo à morte, a qual, em todo caso, como veremos, é um estado de
absoluta insensibilidade.
E os males da alma? A respeito destes não é o caso de nos alongarmos, porque são apenas
produtos de opiniões falazes e dos erros da mente. E toda a filosofia de Epicuro se apresenta como o mais
eficaz remédio e o mais seguro antídoto contra eles.
E a morte? A morte é um mal só para quem nutre falsas opiniões sobre ela. Como o homem é um
"composto alma" num "composto corpo", a morte não é senão a dissolução desses compostos, na qual os
átomos se espraiam por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente e, assim, só restam
do homem ruínas que se dispersam, isto é, nada. Assim, a morte não é pavorosa em si mesma porque, com
sua vinda, não sentimos mais nada; nem pelo seu "depois", exatamente porque não resta nada de nós,
dissolvendo-se totalmente nossa alma, assim como nosso corpo; nem, enfim, a morte tolhe nada da vida
que tenhamos vivido, porque a eternidade não é necessária para a absoluta perfeição do prazer.
A vida política, para o fundador do "Jardim", é substancialmente não-natural. Conseqüentemente,
ela comporta continuamente dores e perturbações, compromete a aponia e a ataraxia e, portanto,
compromete a felicidade. Com efeito, os prazeres da vida política, a que muitos se propõem, são puras
ilusões: da vida política os homens esperam poder, fama e riqueza, que são, como sabemos, desejos e
prazeres nem naturais nem necessários, sendo portanto vazias e enganosas miragens. Assim, é
compreensível o convite de Epicuro: "Livremo-nos amplamente do cárcere das ocupações cotidianas e da
política." A vida pública não enriquece o homem, mas o dispersa e dissipa. Por isso é que Epicuro se
apartava e vivia separado da multidão: "Retira-te para dentro de ti mesmo, sobretudo quando és
constrangido a estar entre a multidão." "Vive oculto", soa o célebre mandamento Epicuro. Somente nesse
entrar em si e permanecer em si é que podem ser encontradas a tranqüilidade, a paz da alma e a ataraxia.
Para Epicuro, o bem supremo não está nas coroas dos reis e dos poderosos da terra, mas na ataraxia: "A
coroa da ataraxia é incomparavelmente superior à coroa dos grandes impérios."
Com base nessas premissas, é claro que Epicuro devia dar do direito, da lei e da justiça uma
interpretação em nítida antítese tanto em relação à opinião clássica dos gregos como em relação às teses
filosóficas de Platão e Aristóteles, Direito, lei e justiça só têm sentido e valor quando e à medida que são
ligados ao "útil"; o seu fundamento objetivo não é senão a utilidade. Assim o Estado, de realidade moral
dotada de valor absoluto que fora no passado torna-se instituição relativa, nascida de um simples contrato
tendo em vista o útil; do mesmo modo, de fonte e coroamento dos supremos valores morais torna-se
simples meio de tutela dos valores vitais; por fim, torna-se condição necessária para a vida moral, mas não
uma condição suficiente. A justiça torna-se um valor relativo subordinado ao útil.
O desmoronamento do mundo ideal platónico não poderia ser mais radical e a ruptura com o
sentimento de vida classicamente grego não poderia ser mais decisiva: o homem deixou de ser homem-
cidadão para tornar-se puro homem-indivíduo. O único liame admitido como verdadeiramente factível entre
estes indivíduos é a "amizade", que é laço livre, que reúne os que sentem, pensam e vivem de modo
idêntico. Na amizade, nada é imposto de fora e de modo não-natural; sendo assim, nada viola a intimidade
do indivíduo. No amigo, Epicuro vê um como outro eu. A amizade não é senão o útil, mas é o útil sublimado.
Com efeito, primeiro se busca a amizade para conseguir determinadas "vantagens" estranhas a ela; depois,
9
uma vez nascida, a amizade torna-se, ela mesma, fonte de prazer e, conseqüentemente, um fim. Assim,
Epicuro bem pode afirmar o que segue: "De todas as coisas que a sabedoria busca, em vista de uma vida
feliz, o maior bem é a conquista da amizade"; "A amizade anda pela terra anunciando a todos que devemos
acordar para dar alegria uns aos outros".
3.5. Os quatro remédios e o ideal do sábio
Epicuro forneceu pois aos homens um quádruplo remédio da seguinte forma: mostrou 1) que são
vãos os temores em relação aos deuses e ao além, 2) que o pavor em relação à morte é absurdo, pois ela
não é nada, 3) que o prazer, quando o entendemos corretamente, está à disposição de todos e, 4)
finalmente, que o mal dura pouco ou é facilmente suportável.
O homem que souber aplicar esse quádruplo remédio em si mesmo poderá adquirir a paz de
espírito e a felicidade, que nada e ninguém poderão atingir. Tornado, assim, totalmente senhor de si, o
sábio não pode temer mais nada, nem mesmo os mais atrozes males e sequer as torturas: "O sábio será
feliz até entre os tormentos." Diz Sêneca: "Epicuro diz inclusive que o sábio, se for queimado dentro do
touro de Falárides, gritará: isto é doce e não me atinge de modo algum"; "Epicuro diz inclusive que é doce
arder entre as chamas".
É evidente que dizer que o sábio pode ser feliz até sob as mais atrozes torturas (das quais o touro
de Falárides é o exemplo extremo) é uma maneira paradoxal de dizer que o sábio é absolutamente
"imperturbável" — e o próprio Epicuro deu uma demonstração disso quando, por entre os espasmos do mal
que o levava à morte, escrevendo a um amigo o último adeus, proclamava que a vida é doce e feliz.
E assim, fortalecido por sua "ataraxia", Epicuro capacita-se para poder dizer que o sábio pode
competir, em felicidade, até com os deuses: exceto a eternidade, Zeus não possui nada mais além do sábio.
Para os homens de seu tempo, agora privados de tudo o que tornava a vida segura para os
antigos gregos e atormentados pelo pavor e pela angústia do viver, Epicuro indicava um novo caminho para
o reencontro da felicidade e pregava uma palavra que era como que um desafio à sorte e à fatalidade.
Mostrava que a felicidade pode vir de dentro de nós, embora as coisas estejam fora de nós, porque o
verdadeiro bem, à medida que vivemos e enquanto vivemos, está sempre e somente em nós: o verdadeiro
bem é a vida, para mante-la basta pouquíssimo e esse pouquíssimo está à disposição de todos, de cada
homem — e todo o resto é vaidade.
Sócrates e Epicuro são os paradigmas de duas grandes fés e, portanto, de duas religiões leigas: a
fé e a religião da "justiça", a fé e a religião da "vida".
3.6. Desenvolvimento do epicurismo na época helenística
Epicuro não só propôs, mas impôs essa doutrina aos seus seguidores com férrea disciplina, a
ponto de no "Jardim" não haver lugar para conflitos de ideias e desenvolvimentos doutrinários de relevo,
pelo menos sobre questões de fundo. Os estudiosos se sucederam em Atenas, da morte de Epicuro (270
a.C.) até a primeira metade do século l a.C. Sabe-se que na segunda metade desse século, o terreno no
qual surgira a escola de Epicuro havia sido vendido e que o "Jardim" já estava morto em Atenas. Mas a
palavra de Epicuro encontraria uma segunda pátria na Itália. No século I a.C., por obra de Filodemo de
Gádara (nascido por volta de fins do século II a.C. e morto entre 40 e 30 a.C.), constituiu-se um círculo de
epicuristas, de caráter aristocrático, que teve sua sede numa vila de Herculano, de propriedade de
Calpdrnio Pisão, notável e influente político (foi cônsul em 58 a.C.) e grande mecenas. As escavações
realizadas em Herculano levaram à redes-coberta dos restos da vila e da biblioteca, constituída por escritos
de epicuristas e do próprio Filodemo.
Mas a contribuição de longe mais significativa para o epicurismo deveria vir de Tito Lucrécio Caro,
que constitui um unicum na história da filosofia de todos os tempos. Nascendo no início do século I a.C.,
morreu por volta de meados desse século. O seu De rerum natura que canta em versos admiráveis o
pensamento de Epicuro, constitui o maior poema filosófico de todos os tempos.
Quanto à doutrina, Lucrécio repete fielmente Epicuro. A sua inovação consiste na poesia, ou seja,
no modo como soube expor a mensagem que vinha do "Jardim": "Para libertar os homens, Lucrécio
compreendeu que não se tratava de obter, nos momentos de fria reflexão, sua adesão a alguma verdade de
ordem intelectual, mas que era preciso tornar essas verdades, como poderia dizer Pascal, compreensíveis
ao coração" (P. Boyancé). Com efeito, confrontando as passagens do poema lucreciano com as correspon-
dentes passagens de Epicuro, pode-se concluir que a diferença é quase sempre esta: o filósofo fala com a
linguagem do logos, ao passo que o poeta acrescenta os tons persuasivos do sentimento e da intuição
fantástica — em suma, é a magia da arte. Uma só diferença subsiste, no restante, entre Epicuro e Lucrécio:
o primeiro soube aplacar suas angústias, até existencialmente; Lucrécio, ao contrário, foi a vítima delas,
tendo-se suicidado aos quarenta e quatro anos.
a) Em relação ao conhecimento, têm importância as doutrinas sobre a sensação e o conceito.
Para Epicuro, como para os soíistas, o conhecimento sensitivo é o fundamento de qualquer outro conhe-
cimento; também a razão depende dos sentidos e, se os sentidos se enganam, a razão está condenada a
errar. Logo, o critério (cânon) último da verdade é a sensação.
Epicuro rejeita, por isso, tanto a doutrina de Platão (para c qual o conceito era uma imagem
das ideias) como a de Aristóteles (que considerava o conceito como uma representação da essência das
10
coisas) sobre a natureza e o valor dos conceitos. Ele não podia aderir a nenhuma das duas soluções porque
negava tanto a existência de um mundo diferente do mundo da experiência (contra Platão) como a
possibilidade de se conhecer a essência das coisas (contra Aristóteles).
Ele oferece, portanto^ uma nova explicação .do conceito. O conceito é prolepse (prolépsis), "
antecipação". Retendo só os elementos comuns de determinada categoria de seres (por exemplo, de Pedro,
Paulo1, João, Vicente, Francisco e outros), ele torna possível a antecipação de experiências futuras, isto é,
permite prever as características de uma coisa pertencente a uma categoria que encontraremos no futuro.

b) Para Epicuro, os dois elementos primordiais do mundo são os átomos e o vazio.


Os átomos variam em peso, forma e tamanho1; movem-se no vazio e podem desviar-se da
direção vertical. É este desvio espontâneo que dá origem às coisas. Sem o desvio ({clinamen}, nenhum
átomo poderia encontrar-se com outro e dar origem a um primeiro conglomerado1: cada átomo cairia
eternamente ao lado do vizinho).
A doutrina do clinamen serve a Epicuro não só para explicar a origem das coisas, mas também
para superar o determinismo de Demócrito, o qual, sustentando que os átomos caem sempre em linha reta.
Chegara à conclusão de que tudo acontece segundo uma lei férrea e de que não pode acontecer nada de
novo nem de imprevisto, nem mesmo na esfera humana (determinismo absoluto)..
Com a doutrina do clinamen, Epicuro julga poder salvar a liberdade na natureza e no homem.
De fato, podendo desviar-se da linha reta, quando caem, os átomos podem tomar várias direções, e assim
não é possível calcular com exatidão e antecedência qual a direção que tomarão.
Entre os seres mais importantes produzidos pelo movimento dos átomos estão os homens e os
deuses. Os deuses são constituídos de átomos sutis e redondos; habitam nos Intermundial, espaços vazios
entre os corpos celestes; passam a vida felizes, sem se interessarem pêlos homens, comendo e bebendo.
O homem é feito de. átomos pesados (o corpo) e de átomos leves (a alma). Ele morre quando os átomos
leves se separam dos pesados.

c) A felicidade ou o bem supremo do homem, segundo Epicuro, consiste no prazer (idôneo).


"Nós dizemos que o prazer é o princípio e o fim da vida feliz, porque reconhecemos que, entre to dos os
bens, o prazer é o primeiro e o mais conatural a nós".
É sempre pelo prazer que escolhemos fazer ou evitar alguma coisa. "Todos os prazeres são
bons justamente em virtude de sua natureza. Mas nem por isso merecem ser escolhidos. (...) Por isso,
quando dizemos que o prazer é o bem supremo, não queremos referir-nos aos prazeres do homem
corrompido, que pensa só em comer, em beber e nas mulheres".
O prazer no qual, para Epicuro, consiste a felicidade é a vida pacífica, a paz da alma
(tranquiüitas animi, tranquilidade da alma), a ausência de qualquer preocupação: a "ataraxia" (ataraksía). O
prazer é entendido, portanto, como ausência de dor e não como satisfação das paixões.
A virtude é o meio para se conseguir o verdadeiro prazer. Virtuoso é aquele que aproveita todo
deleite com moderação e medida e que limita o seu desejo àqueles prazeres que não perturbam a alma.
Para a plena consecução da paz da alma, da ataraxia, da felicidade, Epicuro recomenda
libertar-se de três preocupações: dos deuses, da morte e da atividade política.
Não há razão para se temer a ira dos deuses: eles não se preocupam com as coisas deste
mundo.
Não há razão para se temer a morte: quando ela vem, não existimos mais.
Não vale a pena dedicar-se à atividade política porque ela é cheia de preocupações.
Apesar disso, - o epicurismo contou sempre com numerosos seguidores. A sua moderação
atraía os espíritos mais cultos, enquanto o atrativo do prazer sensível e da felicidade conquistava as multi-
dões. Ele será severamente criticado pelos pensadores cristãos do período patrístico e escolástico, mas
conhecerá um segundo florescimento na Renascença.

DESCARTES

1. A vida e as obras
René Descartes nasceu em 31 de março de 1596, em La Haye, na província da Turena
(França), de família bem-estabelecida: seu pai era presidente do parlamento da Bretanha. Fez os
primeiros estudos num dos mais famosos colégios para nobres, o La Flèche, dirigido pêlos jesuítas. Em
breve se deu conta da vacuidade das doutrinas científicas correntes e não tardou em apontar o método
aristotélico e a física de Aristóteles como responsáveis pela falta de progresso das ciências. Aborrecido com
esta situação, deixou o colégio, em 1612, para abraçar a carreira das armas. Alistou-se nas tropas de vários
generais e participou de numerosas campanhas, segundo suas próprias palavras, "mais para conhecer o
mundo do que para combater".
11
No inverno de 1619, forçado a permanecer em casa, começou a refíetir seriamente sobre a
finalidade de sua vida. Sonhou três vezes que a sua vocação consistia em reformar a ciência e em procurar
a verdade, apoiando-se apenas na razão: "Procurar o verdadeiro método para se chegar ao conhecimento
de todas as coisas" que a mente humana pode conhecer1. Mas continuou na carreira militar até 1624.
Em 1625 foi a Roma para o ano santo e fez uma peregrinação a Loreto. Voltando a Paris, foi
encorajado pelo cardeal De Bérulle a dedicar-se ao estudo da ciência. Adquiriu uma casa na Holanda para a
qual se retirou a fim de viver longe das distrações da vida mundana de Paris. Lá dedicou-se principalmente
ao trabalho da redação definitiva de sua primeira obra filosófica, as Regulae ad directionem in-genii. Mais
tarde concluiu o Traité du monde, no qual sustentava teorias científicas novas, mas, tendo tido
conhecimento da condenação de Galileu, julgou prudente não publicá-lo. Em 1636 publicou alguns ensaios,
antepondo-lhes, como prefácio, o Discurso sobre o método. No ensaio principal, sobre a geometria,
Descartes coloca as bases da geometria analítica. Uma originalidade dos ensaios é terem sido publicados
em francês, quando até então a língua usada nas obras filosóficas, científicas e teológicas era a latina.
Em 1641 publicou as Meditações, sua principal obra filosófica. O padre Mersenne, amigo do autor,
para difundir as ideias deste, enviou exemplares da obra às maiores personalidades do mundo filosófico e
científico do tempo, pedindo apreciações. As objeções dos filósofos e dos teólogos, especialmente de
Hobbes, Arnauld e Gassendi, acompanhadas da resposta de Descartes, foram publicadas, em apêndice,
com as Meditações. Boécio, reitor da Universidade de Utrecht, moveu contra Descartes violenta campanha,
acusando-o de ateísmo. Tendo o filósofo respondido aos ataques no mesmo tom, foi denunciado à
autoridade civil e por pouco não acabou na prisão.
Em 1644 publicou os Princípios de filosofia, nos quais faz uma síntese de todo o seu saber
filosófico.
Sua fama difundira-se, entretanto, por toda a Europa; para conservá-la e aumentá-la contribuía a
vastíssima correspondência por ele mantida com as personalidades mais ilustres do seu tempo (a metade
da sua Opera omnia, Obras completas, é constituída pelo Epistolaria).
Solicitado pela rainha Cristina, da Suécia, a compor uma dissertação sobre o sumo bem, escreveu
o Tratado sobre as paixões da alma. A rainha o convidou depois a radicar-se na Suécia e aí fundar a "Aca -
demia de Ciências". O filósofo atendeu o convite em 1649, mas encontrou na Suécia um clima desfavorável
à sua já precária saúde. Em 1650, tomado pela febre, expirou ao cabo de duas semanas. Na ocasião um
discípulo escreveu desconsolado a Paris: "No dia 11 de fevereiro perdemos Descartes. Entristeço-me ainda,
ao escrever-vos, porque a sua doutrina e a sua mente superavam até mesmo a candura e a simplicidade, a
bondade e a inocência de sua vida".
As obras mais célebres de Descartes são o Discurso sobre o método e as Meditações. A segunda
aprofunda as questões tratadas na primeira.
O Discurso é uma obra de proporções modestas, mas rica em conteúdo. Nela são tratados todos
os problemas filosóficos de importância: do lógico ao ético, do metafísico ao teológico, do cosmológico ao
antropológico. É uma obra célebre pela sua insuperável clareza, pela simplicidade do estilo e pela beleza
das imagens. Por isso, na exposição do pensamento de Descartes, referir-nos-emos a ela cons-taiitemente.
2. Colocação gnosiológica da investigação científica
Descartes sempre teve consciência da importância da colocação gnosiológica da investigação
filosófica, a qual deve iniciar-se não pelo estudo das coisas, mas pelo da mente humana. Em sua primeira
obra, Rebolai a direcionem empenei, escrita ainda na juventude, declara " Parece-me digno de admiração
que grande número de pessoas indague diligentissimamente sobre os costumes dos homens, as virtudes
das plantas, os movimentos dos astros, as transformações dos metais e sobre os objetos de outras
disciplinas semelhantes, e que ninguém se lembre de dirigir o pensamento para a mente reta, isto é, para
esta sabedoria universal, uma vez que todas as outras coisas são dignas de apreço não tanto por si quanto
porque pagam tributo a ela. Nós, por certo não incorretamente, propomos, antes de todas, esta regra, uma
vez que nada nos afasta mais da reta via da procura da verdade do que dirigir os estudos não para este fim
geral, mas para algum fim particular. (...) Se, pois, alguém deseja investigar seriamente a verdade das
coisas, não deve escolher uma ciência particular, já que todas são ligadas entre si e dependentes umas das
outras; mas pense só- mente em aumentar a luz natural da razão, não para resolver este ou aquele
problema de escola, mas para que em cada acontecimento da vida o intelecto aponte à vontade o que ela
deve escolher; e em pouco tempo verá, maravilhado, que fez progressos muito maiores do que aqueles que
se ocupam de casos particulares, e que conseguiu não só aqueles resultados pêlos quais os outros
anseiam, mas também resultados superiores aos que eles podem esperar" 2.
Mais adiante, na mesma obra, Descartes volta a referir-se a esta convicção nos seguintes termos:
"Na verdade não se pode procurar nada mais útil do que o que seja o conhecimento humano e até onde ele
se estenda. Por isso, tratamos agora desse problema em uma única questão, a qual pensamos deva ser
examinada antes de qualquer outra; e julgamos que isso deva ser feito pelo menos uma vez na vida por
aqueles que pouco se preocupam com a verdade, já que nesta procura estão compreendidos os
verdadeiros instrumentos do saber e todo o método. Além disso, nada me parece mais insensato do que
discutir acaloradamente sobre os arcanos da natureza, os influxos dos astros sobre este nosso mundo, a
12
predição dos acontecimentos futuros e sobre outras coisas semelhantes, como fazem muitos, e nunca
perguntar--se se a razão humana tem capacidade para desvendar essas coisas"3.
Mas, absolutamente falando, o estudo do conhecimento, embora fundamental, não é o primeiro:
antes dele há outro, o do método adequado e fecundo para o desenvolvimento deste estudo. Para que
serve, de fato, tomar consciência da importância de um problema se não se sabe como resolvê-lo?
3. O método
Desde as primeiras páginas do Discurso Descartes sublinha a importância capital do método para
a aquisição da ciência. De fato, argumenta ele, do ponto de vista da inteligência, os homens são todos
iguais: "A faculdade de julgar retamente e de distinguir o verdadeiro do falso, que é o que propriamente se
chama bom-senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens. Assim, a diversidade de nos sas
opiniões não procede de serem uns mais inteligentes do que outros, mas somente de conduzirmos nossos
pensamentos por caminhos diferentes e de não considerarmos as mesmas coisas: o que é mais importante
é aplicá-las bem" 4.
No começo da segunda parte Descartes insiste de novo na importância do método, observando
que as obras em muitos tomos e escritas por muitos mestres são muitas vezes mais imperfeitas do que as
que foram escritas por um só. Assim se vê que os edifícios construídos por um só arquiteto costumam ser
mais belos do que aqueles que muitos procuraram adaptar usando pedras, colunas, estátuas já usadas em
outros edifícios. O mesmo se pode dizer das ciências e da política: a razão pela qual existe tanta
imperfeição nas ciências e nas constituições é que elas são produto de muitas mãos e de muitos métodos
diferentes.
Na opinião de Descartes, a falta de progresso e a grande confusão que reina no campo filosófico
se devem principalmente ao emprego de métodos que não são bons, ou que são muito complicados (como
o geométrico), ou que são estéreis (como o método silogístico de Aristóteles).
A respeito do método de Aristóteles, Descartes já havia escrito nas Regulae que ele pode servir
quando muito para exercitar a mente dos meninos para a discussão e para estimulá-los à emulação, não
sendo, porém, de nenhuma valia para a descoberta da verdade.
É necessário, por isso, encontrar um método novo, menos complicado do que o geométrico e mais
fecundo do que o silogístico. Mas, como encontrá-lo?
Sabemos que, em última análise, os métodos possíveis são dois: o indutivo e o dedutivo. A
primeira parte da experiência, o segundo de princípios universais. Na opinião de Descartes, somente o
segundo pode levar-nos ao progresso do saber e à descoberta da verdade. O motivo é o seguinte: "Ã
experiência das coisas é falaz, ao passo que a dedução, isto é, a simples ilação de uma coisa de outra,
pode certamente ser omitida, se não for percebida, mas não pode ser malfeita por um intelecto que tenha
alguma capacidade de raciocínio. E parece-me que, neste particular, pouco adiantam as argumentações
dos dialéticos, com as quais eles pensam governar a razão humana, embora não queira negar que elas
possam ser bastante aptas para outros usos. Na verdade, os enganos que podem acontecer aos homens,
não aos animais, não procedem nunca de ilação má, mas unicamente de serem supostas certas
experiências pouco compreendidas ou de serem emitidos juízos irrefletidos e sem fundamento" 5.
Justificada assim a escolha do método dedutivo, Descartes passa a fixar suas regras
fundamentais, ' as quais ele reduz a quatro:
— Primeira regra: "Não incluir nos meus juízos nada além daquilo que se apresenta à minha
inteligência tão clara e distintamente que exclua qualquer possibilidade de dúvida".
— Segunda regra: "Dividir todo problema que se tem de estudar em tantas partes menores
quantas forem possível e necessária para melhor resolvê-los". — Terceira regra: "Conduzir meus
pensamentos com ordem, começando pêlos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos
poucos, como por degraus, ao conhecimento dos mais complexos, e supondo uma ordem também entre
aqueles dos quais uns não procedem naturalmente dos outros".
— Quarta regra: "Fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tenha a
segurança de não ter omitido nada" 6.
Estas regras, às quais Descartes não dá nenhuma denominação específica, costumam ser
designadas pêlos estudiosos como intuição, análise, síntese e enumeração.
É na regra da intuição que Descartes enuncia seu célebre critério da verdade: o da clareza e da
distinção. A intuição, que, segundo ele, é uma das duas únicas formas de conhecimento isentas de erro 7,
verifica-se de fato somente quando a ideia tem estas duas notas: clareza e distinção. Mas que entende ele
exatamente por clareza e distinção? Explica-o ele nos Princípios de Filosofia8: "Chamo clara uma percep -
ção (perceptio] que está presente e é aberta à mente atenta; do mesmo modo dizemos que vemos com
clareza quando as coisas, presentes ao nosso olho, nos movem forte e abertamente. Chamo distinta aquela
percepção que, sendo clara, é tão disjunta e separada de todas as outras que não contém em si nada além
do que é claro".
Que dizer da clareza e distinção como critério supremo da verdade? São elas conotações tais que
garantem uma distinção exata entre os nossos conhecimentos de modo que aqueles conhecimentos que as
tiverem sejam verdadeiros e os que não as tiverem sejam duvidosos ou inapelaveímente falsos?
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Dois grandes filósofos, Pascal e Viço, cronologicamente próximos de Descartes, opuseram-se a
ele, principalmente nesse ponto, observando que conhecimentos que podem parecer claros e distintos
(como o de que o Sol gira em redor da Terra) são falsos, enquanto outros são obscuros e confusos apesar
de serem profundamente verdadeiros (como os conhecimentos de ordem moral, metafísica e religiosa). Viço
observou também que a clareza e a distinção são propriedades mais do sujeito do que do objeto, não
constituindo por isso nenhuma garantia de conhecimento verdadeiro. Pascal e muitos outros depois deíe
notaram que a clareza e a distinção são propriedades da matemática e da geometria e censuraram
Descartes por tê-las transferido para os outros campos do saber. Na verdade, tanto na escolha da clareza e
da distinção como critério quanto na do método dedutivo, Descartes foi vítima das duas disciplinas nas
quais mais se comprazia, a matemática e a geometria, e se enganou pensando que poderia obter
resultados semelhantes na filosofia, aplicando-lhe o mesmo critério e o mesmo método.
A segunda regra, a da análise, torna possível a intuição de ideias simples. Esta regra se aplica
fazendo-se simultaneamente uma crítica laboriosa de todas as opiniões incertas, aceitas pela tradição e
pelo meio ambiente e mostrando-se como se chegou aos primeiros princípios e às definições. A
originalidade de Descartes consiste em ter atribuído grande importância à análise com a finalidade de
preparar o terreno para a síntese e a dedução. A dúvida metódica, que é um dos pontos mais originais do
pensamento cartesiano, é também um momento essencial da análise.
As duas últimas regras dizem respeito aos momentos mais importantes da dedução: a síntese
toma possível a enumeração completa de ideias complexas.
Uma comparação entre o método de Descartes e os de Bacon e Galileu mostra que eles são
antitétícos: os de Bacon e Galileu, essencialmente indutivos, são indicados sobretudo para as ciências
experimentais; o de Descartes, totalmente dedutivo, presta-se perfeitamente para a matemática e a
geometria, disciplinas das quais ele o tirou.
4. O fundamento da filosofia cartesiana: o "cogito"
De posse de um método seguro, Descartes prepara-se para construir seu edifício filosófico. Mas,
de onde partir? Existirá algum fundamento sólido, algum princípio certo que possa servir de base para a
construção?
Antes de tudo é instrutivo observar o procedimento de Descartes. Fazendo obra de filósofo, não
examina nenhuma realidade particular, nem o mundo, nem o homem, nem Deus. A sua primeira
preocupação não é perscrutar as coisas com a finalidade de adquiriï delas um conhecimento completo,
exaustivo, absoluto. Era desse modo que se estudava filosofia até a Idade Moderna: era ela essencialmente
objetiva e metafísica. Para Descartes, o problema inicial é outro e diz respeito ao conhecimento, porque é
somente depois de se ter segurança em relação ao valor do conhecimento que se pode passar ao estudo
das realidades particulares. Ora, para ele o melhor caminho para se estabelecer o valor do conhecimento é
o da dúvida: submetamos ao crivo da dúvida todos os nossos conhecimentos até aparecer um que seja
absolutamente certo. Logo, a dúvida é o método adequado para a descoberta da verdade. Aplicando a
dúvida metódica, Descartes põe de lado como não certos os conhecimentos obtidos por meio dos sentidos,
porque os sentidos, muitas vezes, nos enganam. Renuncia por isso a todos os conhecimentos adquiridos na
escola ou mediante o raciocínio-, aos primeiros porque para cada teoria há uma teoria contrária; aos
segundos porque, muitas vezes, erramos no raciocínio. Em conclusão: não existe conhe cimento particular
que possa resistir à prova da dúvida. Mesmo quando se trata das coisas mais evidentes, das verdades mais
simples, é possível que nos enganemos. De fato, tudo o que experimentamos acordados, podemos
experimentar dormindo, em sonho, e não temos nenhum critério para estabelecer quando estamos
acordados e quando dormindo. E mesmo que se admita que pudéssemos fazê-lo, poderia muito bem
acontecer que algum espírito maligno, algum demónio, nos confundisse, fazendo-nos, por exemplo,
acreditar que duas vezes dois são seis e não quatro.
É evidente, a esta altura, que a dúvida já se impôs a todos os nossos conhecimentos. Agora é
preciso duvidar de tudo. De tudo? Não, isto é impossível. Exprime-o bem Descartes: "Refleti então que,
enquanto queria pensar que tudo era falso, era necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E,
notando que esta verdade 'eu penso, logo existo' era tão firme e certa que que não seriam capazes de
abalá-la nem as mais extravagantes suposições dos cépticos, julguei que poderia aceitá-la sem receio como
o princípio de filosofia que eu procurava" 9.
Que valor tem o fundamento da filosofia cartesiana, o famoso cogito (penso) ?
A propósito do cogito, ergo sum (penso, logo existo), convém notar, antes de tudo, que não se
trata de uma demonstração, mas de uma intuição; o logo não tem valor de consequência, é simplesmente
pleonástico. Se o cogito fosse a conclusão de uma demonstração — de um entimema —, seria necessário
subentender uma premissa universal (p. ex., todo aquele que conhece, existe), e então não se poderia mais
considerar o cogito como a primeira verdade metafísica.
Quanto à existência provada pelo cogito, só pode ser a existência do pensamento, da realidade
pensante (rés cogitans], não da realidade distinta do pensamento.
Assim, no tocante à substância intuída no cogito, deve-se repetir que ela também só pode ser o
próprio pensamento, e não alguma coisa distinta dele e colocada sob ele. Dizendo que o pensamento é
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substância, Descartes afirma que o pensamento é algo que existe por si, independentemente da realidade
corpórea. De fato, este "existir por si" é a substancialidade.
É esse o motivo pelo qual as expressões cogito (penso) e cogitado (pensamento) são substituídas
por substantia cogitam (substância pensante) ou rés cogitans (coisa pensante) (rés cogitans que é con-
traposta à rés extensa [coisa extensa] ou substância corpórea}.
Além disso, a existência que Descartes prova com o cogito é somente a que ele tem hic et nunc
(aqui e agora); nada é provado em relação à sua existência no passado e o futuro,
Por isso, o cogito é critério da verdade só em sentido muito restrito; melhor, não é bem critério da
verdade, mas uma ilustração do critério da verdade. Com efeito, para Descartes, o critério da verdade são a
clareza- e a distinção. Ele tem valor como exemplificação e, mesmo assim, não um valor tão exclusivo como
pensava Descartes. Há muitos outros princípios (como o de não-contradição, no qual a verdade brilha
imediatamente) que podem ser tomados como ilustração do critério da verdade.
Muitas vezes se compara o cogito de Descartes com o si fattor de Agostinho de Hipona. Tanto
Descartes como Agostinho fizeram uso da dúvida metódica, mas de modo diferente e, por isso, o cogito tem
sentido diferente do si fattor.
O si fallor visa antes de tudo à superação do cepticismo e não constitui para Agostinho a primeira
e única certeza. O cogito não visa tanto à superação do cepticismo quanto ao fundamento da verdade e
constitui a primeira certeza.
5. A metafísica:
a alma, o mundo, Deus
Estabelecido o princípio fundamental, Descartes reconstrói com admirável clareza e simplicidade
todo o universo da metafísica clássica, seguindo de perto Platão e Agostinho. Começa provando que a
essência do homem é a alma; depois, com a experiência da imperfeição e com a ideia de perfeição,
demonstra a existência de Deus; finalmente mostra que o mundo é essencialmente extensão.
a) A essência do homem consiste no pensamento. Descartes chega a esta conclusão mediante o
princípio infalível do cogito. Vê-se do exame do cogito que o seu ser é pensante, é ser de algo que pensa: o
seu ser revela-se como pensamento. Só o pensamento lhe é essencial paia ser. De fato. diz Descartes:
"Posso muito bem fingir que não corpo, mas não posso fingir que não existo, porque, do fato de da verdade
das outras coisas segue-se evidentíssima e cerdssimamente que existo; mas, se eu deixasse de pensar,
mesmo que tudo o que imaginei fosse verdadeiro, não teria nenhuma razão para acreditar que existo.
Segue-se que sou uma substância cuja essência ou natureza é pensar e que, para existir, não depende de
nenhum lugar e de nenhuma coisa material. De modo que este eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é
inteiramente distinta do corpo e pode ser conhecida mais facilmente do que ele; e mesmo que o corpo não
existisse, não deixaria de existir o que existe" 10.
Mas, se a essência do homem é a alma, qual é a relação dela com o corpo? Descartes considera
o corpo uma substância completa, existente jpor si, diversa da alma e oposta a ela: o corpo é constituído
pela rés extensa, (coisa extensa), ao passo que a alma é constituída pela rés cogitans (coisa pensante). No
homem essas duas substâncias, se bem que radicalmente diversas, encontram-se unidas. Esta união não é
tão profunda como pensava Aristóteles, para o qual a alma e o corpo seriam partes de uma única
substância, mas também não tão superficial como pensava Platão, que comparava a alma ao cavaleiro e o
corpo ao cavalo. Para Descartes a alma e o corpo estão unidos, mas apenas num ponto: na glândula pineal.
Quanto ao corpo, afirma ele que não há nenhuma diferença entre o homem e os animais: uns e
outros não passam de autómatos ou máquinas semoventes.
O movimento é causado pêlos espíritos animais, "que são como um vento sutilíssimo ou, melhor,
como uma chama puríssima e vivíssima, que, subindo continuamente em grande abundância do cotação
para o cérebro, passa dali, através dos nervos, para os músculos e comunica o movimento a todos os
membros" u.
O que distingue o homem dos animais é a alma. Os animais não têm alma, nenhuma alma; o
homem tem uma alma criada por Deus.
Na prática, sendo a alma invisível, o homem distingue-se dos animais por duas características: os
animais jamais poderiam servir-se da palavra ou de outros sinais, compondo-os como nós o fazemos para
comunicar aos outros os nossos pensamentos; e, mesmo que fizessem bem ou melhor do que alguns de
nós muitas coisas, "errariam infalivelmente em outras, pelas quais se descobriria que não agem ra-
cionalmente, mas só por disposições dos órgãos" u.
b) Natureza da alma e das ideias. No fim da quinta parte do Discurso, Descartes examina
brevemente a natureza da alma e as suas propriedades. Ela é espiritual e, como tal, não pode ser tirada da
potência da matéria, como as outras coisas deste mundo, mas é criada díretamente por Deus. Nas
Meditações é afirmada explicitamente a imortalidade da alma. "Não temos nenhum argumento e nenhum
exemplo que nos persuada de que a morte ou o aniquilamento de uma substância como o espírito deva
seguir de uma causa tão superficial como a mudança de figura, que é um modo do corpo, não do espírito
(...). Não temos mesmo argumentos ou exemplos que possam sequer convencer-nos de que existam
substâncias espirituais sujeitas a ser aniquiladas".
15
Ainda nas Meditações, nas quais a alma é tratada de modo muito mais extenso do que no Método,
Descartes atribui a ela três faculdades: sensação, imaginação ou fantasia e razão; e divide as ideias em três
grandes grupos: adventícias (as que dependem dos sentidos), fictícias (as que dependem da fantasia) e
inatas (as que dependem exclusivamente da razão e que, não podendo ser produzidas pela experiência,
necessariamente são inatas). Eis o célebre texto no qual ele elabora e justifica esta classificação: "Das
ideias, algumas parecem-me nascidas em mim, outras parecem-me estranhas e vindas de fora, outras
parecem-me formadas e encontradas por mim mesmo. De fato, a faculdade de conceber aquilo que em
geral se chama coisa ou verdade ou pensamento parece-me que eu a tenho não de outro, mas de minha
própria natureza; mas, ao ouvir um rumor, ao ver o Sol, ao notar a cor, julguei até agora estas sensações
procedentes de alguma coisa fora de mim; parece-me finalmente que as sereias, os hipogrifos e todas as
quimeras semelhantes são ficções e invenções do meu espírito. Mas posso talvez persuadir-me de que
todas essas ideias são do género daquelas que chamo estranhas e que me vêm de fora ou que nasceram
comigo, ou que todas elas são produzidas por mim, já que ainda não encontrei a sua origem". Esta redução
de todas as ideias a uma só classe não é admissível porque várias razões me indu zem a aceitar que pelo
menos algumas ideias não são criações da minha fantasia ou do meu raciocínio. Antes de tudo, "sinto que
algumas ideias não dependem da minha vontade porque se apresentam muitas vezes contra ela, como
agora que, querendo ou não, sinto calor". Em segundo lugar, há certas ideias que têm certas qualidades
das quais não posso privá-las, e outras, outras qualidades. "Com efeito, as que me representam
substâncias certamente são mais e contêm, por assim dizer, mais realidade objetiva, isto é, participam, por
representação, de mais graus de ser e de perfeição do que as que me representam somente modos ou
acidentes". Para se explicar a sua origem não bastaria pensar que são produzidas por outras ideias, e não
por alguma realidade estranha ao mundo das ideias? A esta dificuldade Descartes responde: "Embora
possa acontecer que uma ideia produza outra, isto não pode continuar indefinidamente, mas é necessário
chegar a ama ideia primeira, cuja causa seja como que um modelo ou um original, no qual esteja contida
formal e virtualmente toda a realidade ou perfeição que só objetivamente ou por representação se encontra
nas outras ideias. Assim a luz natural faz-me conhecer com evidência que as ideias estão em mim como
quadros ou imagens que, na verdade, podem facilmente não alcançar a perfeição das coisas das quais pro -
cedem, mas que não podem conter nada maior ou mais perfeito".
Nem todas as ideias se originam das coisas ou da fantasia; ideias como "perfeito", "infinito",
"eterno" e semelhantes não podem ser explicadas segundo estes modos e, por isso, devem ser tidas, em
última análise, como ideias inatas.
Com esta teoria do inatismo Descartes procurou dar solução ao problema que levara Platão a
postular a reminiscência, Aristóteles, o intelecto agente e Agostinho, a iluminação.
c) A existência de Deus. Até aqui Descartes estabeleceu que há uma verdade que não pode, de
forma alguma, ser posta em dúvida, o cogito, e que o homem é essencialmente pensamento. A reflexão
sobre estes primeiros resultados mostra que é fácil chegar à prova da existência de um ser perfeitíssimo,
Deus. Realmente, "refletindo sobre o fato de que eu duvidava e de que, por isso, o meu ser não era todo
perfeito, porque via claramente que conhecer era maior perfeição do que duvidar, propus-me procurar como
teria aprendido a pensar alguma coisa mais perfeita do que eu, e conheci com evidência que devia tê-la
aprendido de alguma natureza que, na realidade, fosse mais perfeita. (...) Porque nada repugna menos que
o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito e que do nada proceda
alguma coisa (...). De modo que ela só podia ter sido colocada em mim por uma natureza verdadeiramente
mais perfeita do que a minha, e não só isso, mas também que tivesse em si todas as perfeições das quais
eu pudesse ter alguma ideia, isto é, para explicar--me numa palavra, que Deus existe"13.
A existência de Deus pode ser provada, além do processo indutivo, também pelo dedutivo,
mediante um raciocínio ontológico. Basta examinar a ideia de perfeito, que, como dissemos, está presente
em nossa mente pelo próprio fato de nos reconhecermos imperfeitos. Ora, "voltando a examinar a ideia que
eu tinha de um ser perfeito, via que a existência estava compreendida nele do mesmo modo, e até com
maior evidência, de que na ideia de triângulo está compreendido que os seus três ângulos são iguais a dois
retos ou, na esfera, que todas as suas partes são equidistantes do centro, e que, por conseguinte, é
igualmente certo, o quanto pode sê-lo qualquer demonstração da geometria, que Deus, que é este ser
perfeito, é ou existe" M.
Existe, pois, o ser divino e é perfeitíssimo. A sua perfeição máxima é a liberdade, uma liberdade
absoluta, não sujeita a nenhuma limitação ou coação. Também as verdades eternas, apesar de sua apa -
rente necessidade, são tais somente porque Deus assim o quis. As verdades eternas não antecedem nem
seguem, ontologicamente, a vontade de Deus; uma vez que Deus as tenha querido, ele as quer para
sempre. Embora sejam fruto da liberdade divina, elas têm valor absoluto: não há perigo de erro em aceitá-
las.
Deus é pois, perfeitíssimo, livre e criador das verdades eternas.
Ele é também criador do mundo; tira-o do nada e o governa. E cuida principalmente do homem: é
Deus quem põe as ideias na sua mente, e é precisamente pelo fato de as ideias provirem de Deus que é
veraz, que o homem pode ter plena confiança no seu conhecimento.
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d) O munâo físico. Em suas obras mais importantes (Discurso, Meditações, Princípios], Descartes
apresenta ensaios de sua filosofia do mundo. Também nesta parte da filosofia segue o método analítico que
empregara na psicologia para determinar a natureza do homem e na teologia natural para provar a
existência de Deus. O ponto de partida é a ideia clara e distinta da essência do mundo. De acordo com esta
ideia, segundo Descartes, os elementos constitutivos do mundo são somente dois: extensão e movimento.
Ele mostra, contra a metafísica clássica, que, para se explicar a natureza das coisas materiais, das plantas
e dos animais, inclusive do corpo humano, não se exigem qualidades secundárias, nem formas, nem almas;
bastam simplesmente a extensão e o movimento, o qual confere diferentes formas à extensão e, desse
modo, dá origem às várias coisas. Das qualidades que atribuímos às coisas só as primárias (espaço, figura
e número) são objeti-vas; as secundárias (cor, odor, sabor etc.) são subjetivas. Assim é fácil constatar, por
exemplo, em um pedaço de cera colocada no fogo, que a cor se modifica, que o odor desaparece etc., e
que permanece somente uma coisa que ocupa espaço, que tem figura e que pode ser dividida.
6. A herança de Descartes
Descartes deixou para a posteridade uma preciosa herança no tocante à colocação da pesquisa
filosófica (colocação antes prática do que metafísica) e ao método (que é o sintético-analítico e não o de -
dutivo dos escolásticos). Pouco invejável, porém, é a sua herança no que se refere à metafísica, na qual ele
agitou muitos problemas, mas não os resolveu.
Entre os que provocaram debates mais inflamados entre seus discípulos estão os seguintes: a
substancialidade dos seres finitos, as relações entre a alma e o corpo e o conhecimento do mundo físico. a)
Problema da substancialidade dos seres finitos. Descartes definira a substância corno "rés quae ita existit ut
nulla alia ré indigeat ad existendum" (coisa que existe de tal modo que não necessita de nenhuma outra
coisa para existir). Esta definição se aplica só a Deus; mas Descartes sustentou também que os seres
finitos são substâncias, embora de modo imperfeito. Partindo da definição cartesiana de substância,
Spinoza concluirá que só Deus é substância € que conseqüente-mente existe só uma substância. O
desenvolvimento da ideia cartesiana levou ao panteísmo.
b) O problema das relações entre alma e corpo. Descartes dividira o real em dois géneros de
substâncias: rés cogitans e rés extensa (coisa pensante e coisa extensa), totalmente diferentes uma da
outra e, por isso, sem nenhuma relação mútua, mas sustentara também que as duas substâncias se
encontram no homem, no qual se influenciam mutuamente.
Desenvolvendo logicamente a doutrina cartesiana do dualismo psi-cofísico, Malebranche concluirá
que a substância corpórea e a substância pensante não podem agir uma sobre a outra; o que para nós é
ação recíproca, não passa de coincidência.
O desenvolvimento da doutrina cartesiana do dualismo psicofísico levou ao ocasionalismo.
c) O problema do conhecimento do mundo físico. Nos Princípios de filosofia, Descartes concluíra
que todas as ideias são inatas, mas sustentara também que algumas ideias nos representam o mundo físico
e que5 assim, podemos conhecê-lo, visto que Deus não nos engana.
Ó desenvolvimento da doutrina das ideias inatas levou à desvalorização do conhecimento
sensitivo, à supervalorização do poder da razão (racionaüsmo) e à negação do mundo físico (idealismo}.
A conclusão da doutrina cartesiana sobre o conhecimento levou, pois, ao racionalismo e ao
idealismo.
7. Os seguidores de Descartes: Nicolau de Malebranche
A influência de Descartes sobre seus seguidores e sobre os pósteros foi enorme, especialmente
na França, onde durante cerca de dois séculos a sua filosofia foi moda. Ela encontrou acolhida
especialmente nos ambientes eclesiásticos. Muitos membros das novas congregações religiosas, surgidas
no clima da Reforma e da Contra-Reíorma e, por isso, mais abertas às exigências do tempo, apreciavam na
síntese cartesiana o aspecto crítico e a colocação rigorosa, que constituíam de fato a sua novidade e a sua
modernidade e que melhor se prestavam para o escopo apologético para o qual se voltavam seus esforços
comuns. Esses seguidores de Descartes defenderam suas doutrinas contra aqueles que, corno Gassendi e
Pascal, mostravam a fragilidade do sistema cartesiano e que o acusavam, senão de ateísmo, peio menos
de indi-ferentismo religioso.
O mais célebre desses defensores de Descartes, foi Nicolau de Malebranche (1638-1715), padre
do Oratório. Discípulo de Descartes, Malebranche aceita as teses fundamentais do mestre em metafísica
(também para ele o real se divide em pensamento e extensão) e em epistemologia (admite também como
critério supremo da verdade a ideia clara e distinta). Mas o discípulo vai além do pensamento do mestre em
dois pontos: no problema do conhecimento e no da causalidade.
Com referência ao conhecimento humano, Descartes chegara à conclusão de que ele é inato, mas
não esclarecera em que consiste este inatismo. E no tocante à causalidade, na questão das relações entre
alma e corpo, a teoria cartesiana era ainda menos satisfatória porque, de um lado, parecia excluí-la,
afirmando que alma e corpo são duas substâncias completas totalmente diferentes, enquanto de outro, a
admitia explicitamente, dizendo que entre ambos existe um nexo causal.
A propósito do ïnatismo, Malebranche precisa que ele não pode ser de inspiração platónica nem
agostiniana. Se fosse de inspiração platónica, seria necessário admitir a reminiscência e, com esta, a pre -
17
existência da alma. Se fosse de inspiração agostiniana, seria necessário postular a iluminação divina,
privando-se assim o homem de sua ati-vidade mais própria. O único inatismo admissível, segundo
Malebran-che, é o ontológico, isto é, o que afirma que vemos as ideias no próprio intelecto de Deus: nós
temos a intuição da mente divina, verdadeiro lugar das ideias. Mas, se é assim, qual é a função da experiên-
cia? Segundo Malebranche, ela tem a função de ocasião: quando nos encontramos diante de certas coisas,
intuímos com Deus certas ideias. A visão das ideias em Deus é possível porque ele é imediatamente
presente ao nosso espírito. Malebranche nota, contudo, que, malgrado esta íntima presença de Deus ao
nosso espírito, nós não o vemos di-retamente. Fiel a este testemunho da consciência, mas alarmado com o
perigo do panteísmo, ao qual o expõe o ontologismo, afirma que a natureza divina como tal é absolutamente
incognoscível. Contrariamente ao que sustentara seu mestre, diz não ser possível formar uma ideia clara e
distinta do infinito. Malebranche procura assim evitar o panteísmo, mas depois se expõe novamente a ele
com a teoria do ocasionalismo, segundo a qual Deus age diretamente em todas coisas.
Malebranche usa o princípio do ocasionalismo principalmente para resolver o problema das
relações entre alma e corpo. Para ele, essas relações não podem ser enquadradas no esquema da
causalidade eficiente. Em primeiro lugar porque entre os seres finitos não podem verificar-se relações
causais. Para ele, como para santo Agostinho, a causalidade é propriedade exclusiva de Deus, Em segundo
lugar por ;_i ;:rr.o ensinou Descartes, a alma e o corpo pertencem a duas or-^cnf :cralmente diferentes e não
pode haver açao recíproca entre rea-üâdices que diferem totó genere (totalmente quanto ao género). É ne-
cess-irio reconhecer, por isso, não só que a alma não exerce nenhuma r::.':ència sobre o corpo e que o
corpo não exerce nenhuma influência sobre a alma, mas também que os seres criados jamais são causa de
ïrjLis ações. Eles são apenas ocasiões para a ação de Deus, que age di-rs^zmente em todas as coisas
como agente único.
A filosofia de Malebranche representa, portanto, o desenvolvi-zienzo lógico do pensamento de
Descartes. Os princípios estabelecidos ror este para explicar o mundo do pensamento, aquele os estende à
ssrera do ser. Assim, no sistema de Malebranche, Deus torna-se a causa saprema e exclusiva não só do
conhecimento racional, mas também de roda forma de agir que se encontra no mundo das criaturas. As
cau-süs naturais são somente ocasiões para as intervenções divinas, como, Dará Descartes, as sensações
não passam de ocasiões para a manifestação das ideias inatas.
Mas, se Malebranche é o fiel continuador de Descartes, é também o precursor ideal de Spinoza,
antecipando sua visão panteísta do universo. Com efeito, se se priva a natureza de toda iniciativa, de toda
aiividade, de toda autonomia, como o faz Malebranche, não existe mais razão para uma distinção real entre
o mundo da natureza e Deus. Logicamente Spinoza a fará desaparecer, identificando a natureza com Deus.
8. Exame crítico do pensamento cartesiano
Descartes é chamado pai da filosofia moderna. A razão deste título está no fato de que a
tendência característica da filosofia moderna, isto é, a sua orientação epistemológica (a da filosofia antiga
era ontológica), tem precisamente nele o seu iniciador. Ele foi o primeiro a emprestar prioridade ao
problema epistemológico (isto é, ao problema do valor do conhecimento) sobre todos os outros e a iniciar a
pesquisa filosófica pelo estudo do conhecimento.
Esta afirmação poderia ser contestada porque também Arístóteles começa sua pesquisa
metafísica com um problema episíemológíco (o do valor do princípio de não-contradição). Mas mesmo o
mais tenaz seguidor de Aristóteles reconhecerá que não se encontra nele uma discussão sistemática do
problema epistemológico e muito menos a subordinação de qualquer outra parte da filosofia à
epistemologia.

3. CONCLUSÃO

Pode-se ver pelo que acabamos de expor, que o epicurismo denota, mais claramente do que o
estoicismo, a decadência da sociedade de Alexandria, facilmente disposta a sacrificar qualquer ideal à vida
galante, às comodidades, à procura do prazer. Malgrado um sério esforço para elevar-se a uma concepção
filosófica da vida humana, tudo vem viciado desde a origem pelo hedonismo egoísta. Se falar em amizade e
justiça, é com fins interesseiros; se recomenda a virtude, é porque ela é considerada a fonte mais segura de
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prazeres; se prega o ascetismo, é um ascetismo de voluptuosidade, não apoiado em sentimentos
generosos, porque está ausente a noção da espiritualidade da alma e mesmo de Deus. O indivíduo
permanece sempre fechado em si mesmo, movido por um egoísmo calculista que o faz procurar só o
interesse pessoal. O epicurismo é, pois uma filosofia estéril, tanto para a sociedade, da qual ensina a
desinteressar-se, quanto para o indivíduo, ao qual priva do estímulo interior sem o qual a vida se arrasta na
áurea mediocritas (mediocridade dourada), cantada por Horácio
A inovação de Descartes não é pequena e basta por si só para justificar a concessão a ele do
título de pai da filosofia moderna. Convém observar, contudo, que não é só pêlos méritos, mas tam bém
pêlos deméritos (especialmente pelo subjetivismo e pelo raciona-lismo) que ele é pai da filosofia moderna.
Esta, na verdade, assumiu cem ele todos os seus traços característicos: as marcas profundas do
racionalismo e do subjetivismo, o fato de ocupar-se principalmente de problemas epistemológicos (cf.
Locke, Hume, Kant, Hegel).
Entre os méritos de Descartes inclua-se a tentativa de salvar a filosofia clássica mediante seu
novo método científico. Mas também esta tentativa terá consequências funestas: exporá continuamente a fi -
losofia ao perigo de ser confundida com as ciências ou de ser olhada com comiseração por não ter um
método fecundo como elas.
O erro fundamental de Descartes, erro que Pascal e Viço não tardaram a mostrar, consiste na
supervalorização do racional, na idolatria da razão, elevada à categoria de medida de todas as coisas.
As consequências deste erro serão catastróficas. Já em Descartes tudo o que não é racional,
mesmo que não seja negado, é relegado para segundo plano (a poesia, a história, a Revelação). No século
XVIII, com a aplicação rigorosa do princípio da soberania da razão, a negação da tradição, da Revelação,
do sobrenatural será considerada não só legítima, mas também necessária. O Iluminismo será a conse -
quência natural do racionalismo cartesiano.
Outro erro que teve mais tarde consequências funestas (porque abriu as portas ao mecanicismo,
que tentou explicar também a vida pelas leis da matéria) é a doutrina cartesiana sobre a natureza dos
corpos animal e humano, entendidos como um mecanismo automático.

4. BIBLIOGRAFIA

BLAKCBURN, S. Dicionário de Oxford de Filosofia. Trad. Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Temas de Filosofia. 2ª. ed. rev. São Paulo. Editora Moderna. 1998.
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MONDIM, Battista. Elementos de antropologia Filosófica. São Paulo. Edições Paulinas. 1980.
ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. 3ª. Edição. São Paulo. Paullus. 1991.
MONDIM. Batista. Curso de Filosofia. Volumes I,II e III. São Paulo. Edições Paulinas. 1981-
1983

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