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Ricardo Carvalho de Figueiredo Urdimento, Florianópolis, v.3, n.36, p. 249-259, nov/dez 2019 249
O teatro na escola e a construção de uma cultura de paz
Resumo Abstract
E-ISSN: 2358.6958
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Prof. Dr. Atuando na Graduação em Teatro e na Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). ricaredo@yahoo.com.br
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Uma educação pública que tem firmado seu compromisso com a justiça social,
através de uma transformação da sociedade brasileira, precisa ser popular e, nesse
sentido, precisa abraçar a questão da cidadania. O relatório da comissão internacio-
nal sobre a educação para o século XXI produzido para a Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) apontou, em 1997, importantes
questões referentes à participação democrática na escola, corroborando com práti-
cas de cidadania e respeito ao próximo. Logo, ao invés de práticas doutrinadoras, a
escola deve se constituir em:
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políticas públicas pode gerar outro comportamento relacional com a política, possi-
bilitando ao cidadão escolar (gestor, professor, estudante, familiares) a compreender
que a escola é parte da sociedade e não está absorta de problemas e inovações que
podem vir dela.
O mesmo relatório aponta, ainda, algumas saídas para a escola promover o de-
senvolvimento do aprendizado democrático entre os estudantes, tais como a: “ela-
boração de regulamentos da comunidade escolar, criação de parlamentos de alunos,
jogos de simulação do funcionamento de instituições democráticas, jornais de escola,
exercícios de resolução não-violenta de conflitos” (UNESCO, 1997, p.61). Essas indi-
cações são interessantes por trazerem a participação do estudante como protago-
nista da construção de uma aprendizagem democrática. Necessita, para tanto, que a
gestão escolar compreenda que uma instituição é composta por sujeitos e que uma
responsabilidade compartilhada com o reconhecimento de direitos e deveres de cada
um dos envolvidos, pode ser a solução para uma postura dialógica, participativa e fa-
vorável ao pertencimento do estudante e professor frente ao exercício da cidadania.
Retomo aqui as discussões sobre a condição humana e a construção social tra-
zidas por Bernard Charlot (2000). O autor nos auxilia a definir a condição antropoló-
gica do ser humano que, apesar de ser igual a todos como espécie, é igual a alguns a
partir de seu grupo social, ao mesmo tempo que é diferente de todos pela sua singu-
laridade. Por esse viés, ser humano não é um dado e sim uma construção social. Ou
seja, o ser se constitui como sujeito singular ao mesmo tempo que se constitui como
humano. Ainda, segundo Charlot (2000), é no mundo das relações humanas que está
a essência originária do ser humano e não, necessariamente, dentro do próprio in-
divíduo. É na relação com o outro que o ser humano se constitui enquanto sujeito.
Nessa perspectiva, percebo que há a necessidade de pensarmos em uma forma-
ção escolar que atue tanto no desenvolvimento pessoal do educando quanto em seu
desenvolvimento social, já que é no convívio com o outro que nos tornamos sujeitos.
Para tanto, é preciso uma participação física, psicológica e emocional e o teatro, a
partir de toda a sua gama de conhecimentos, pode proporcionar uma rica contribui-
ção nesse sentido.
Grande parte de relatos de nossos estudantes ao adentrarem a escola pública
brasileira vêm recheados de contextos de desumanização, de tolhimento em poder
“ser eu mesmo”, de relações sociais desgastadas e uma linguagem empobrecida.
Um dos objetivos do teatro na escola deve ser, portanto, enriquecer o sujeito
em seu desenvolvimento enquanto pessoa. E a melhor forma de fazê-lo é ampliar
sua capacidade de relação com o mundo sociocultural, possibilitando que o estu-
dante se descubra e aprenda o maior número possível de registros comunicativos,
ampliando seu vocabulário para que, através da linguagem, aprenda a reivindicar,
pedir, discordar, dialogar com o outro ao invés de agir de forma violenta, agressiva ou
preconceituosa. Lembro também que esse exercício é necessário a todo e qualquer
docente da educação básica e superior, inclusive a nós formadores, já que novas de-
mandas têm se apresentado para a universidade pública e gratuita, graças às políticas
de democratização, acesso e permanência de estudantes, através da Lei de Cotas (Lei
12.711/2012), que prevê a reserva de vagas no vestibular das Instituições Federais de
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Ensino Superior (IFES) a partir de três critérios: origem de escola pública, renda fami-
liar, cor/raça.
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y riesgo (Torres, 2015, p.52). Ao lançar mão de um trabalho sobre o próprio corpo
e sobre o corpo do outro, a professora desenvolveu premissas do saber atitudinal
(saber ser com o outro – UNESCO, 1997). Além de uma descoberta do prazer na ex-
perimentação cênica dentro da escola, a proposta auxiliou os jovens a construírem
saberes sobre si próprios e sobre o outro, o que modificou o comportamento entre
os mesmos e os modos de se verem, gerando posturas menos combativas e mais
harmônicas, portanto.
Essas conquistas no trato com o outro são sempre “provisórias e imperfeitas”,
(Brecht, 2005, p.165), mas precisam ser trabalhadas dia a dia nas relações do conví-
vio escolar. Também a noção de erro ou excessiva cobrança vem incorporada pelos
estudantes quando chegam na aula de teatro. Viola Spolin (2003) nos lembra que
um dos aspectos que inibem a espontaneidade para o desenvolvimento de uma im-
provisação é a aprovação/desaprovação. “Qualificados como ‘bons’ ou ‘maus’ desde
o nascimento (um bebê ‘bom’ não chora) nos tornamos tão dependentes da tênue
base de julgamento de aprovação/desaprovação que ficamos criativamente parali-
sados” (Spolin, 2003, p.06). Com as aulas de teatro e com o ambiente favorável para
o desenvolvimento da espontaneidade, o jogador-estudante, descontrói a ideia de
fracasso e migra progressivamente, aceitando suas respostas aos estímulos dados e
incorporando a ideia do outro. Uma resposta a determinado problema cênico dife-
rente da sua, passa a ser vista como condição do humano, da singularidade e do prin-
cípio de alteridade. Logo, a função provisória e imperfeita do ser humano é matéria
de trabalho e desenvolvimento.
Nesse sentido, aprender a viver juntos e aprender a ser, dois dos quatro pila-
res elencados pela UNESCO (1997), dizem respeito ao que conhecemos como con-
teúdos atitudinais, que nada mais é do que a habilidade de aprender a viver com o
outro, o que em nossa sociedade atual tem se mostrado cada vez mais complexo. A
descoberta progressiva do outro enquanto ser dotado de opinião, crença, saberes,
sexualidade, valores que, mesmo sendo distintos dos meus, devem ser respeitados, já
que há uma interdependência de todos nós junto ao espaço que habitamos.
Segundo o relatório UNESCO, a escola, enquanto instituição, precisa desenvol-
ver as competências junto ao estudante para que este passe a elaborar pensamentos
autônomos e críticos para “formular seus próprios juízos de valor, de modo a poder
decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da vida” (UNESCO,
1997, p.99). Ou seja, ter autonomia para decidir, agir e dialogar com o outro, seja em
qualquer circunstância da vida, tendo o discernimento e o respeito à opinião diferen-
te acima de qualquer desavença.
O uso do jogo no ensino de teatro permite que o estudante experimente as ideias
de forma diferente e inventiva (Ryngaert, 2009), o que poderá auxiliá-lo a encontrar
novas respostas à reações impregnadas de atitudes agressivas. Quando a criança ou
o jovem reconstrói uma ação teatral, por exemplo, o faz reelaborando-a a partir de
sua própria compreensão e desse modo, “sem a vontade de inventar diferentes possi-
bilidades de investigação da linguagem teatral e de sua atuação enquanto instrumen-
to de reflexão da vida social, o jogo dramático perde a sua vitalidade” (Desgranges,
2006, p.94). O professor está presente nessa relação para auxiliar o estudante a olhar
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para suas ações e para avaliar seu comportamento em um estado de jogo. O “pulo do
gato” seria, a partir de então, auxiliar o estudante a levar essa descoberta para atitu-
des do seu cotidiano, no trato com o outro, tanto na escola como fora dela.
O jogo na sala de aula permite uma aprendizagem cooperativa dentro do grupo
de trabalho, já que necessita um esforço em aprender a trabalhar com o outro, res-
peitando suas ideias e sua forma própria de expressão. É possível apostarmos que a
elaboração cênica na escola gera um sentimento de grupo, já que cria uma interação
dos jogadores e uma compreensão de que o trabalho criativo do grupo é sempre
mais importante do que o trabalho individual.
Alfredo Mantovani (2002) destacou cinco princípios pelos quais o teatro, a partir
da perspectiva da pedagogia teatral, precisa construir na escola. (1) O primeiro deles
é a “educação para a convivência”. Parte do pressuposto que o caráter coletivo do fa-
zer teatral é uma das amalgamas do ensino em que a criação pessoal e a colaboração
entre os estudantes rechaça a competitividade excludente. (2) “Uma educação não
sexista”. Cada vez mais temos acompanhado a necessidade de desnaturalizar práti-
cas e costumes da nossa sociedade nas distinções entre os gêneros. As aulas de tea-
tro devem colocar em questão lugares determinados e discriminatórios que vêm dos
alunos, auxiliando-os a evitar condutas preconceituosas, ampliando seu modo de
ver o mundo pelo viés das discussões de gênero. (3) “Educação para a solidariedade”.
Jogos teatrais que buscam a escuta do entorno, dialogam com realidades sociais dos
estudantes e auxiliam estes a perceberem problemáticas sociais que os afetam dire-
tamente e a sociedade na qual estão inseridos, logo, há um modo outro de educar
para a solidariedade em que há uma preocupação e uma implicação com aspectos da
vida em sociedade. Um problema social não é apenas de um determinado grupo de
pessoas. É possível auxiliar os jovens a implicarem-se em questões sociais que os afe-
tam direta e indiretamente. (4) “Educação para a paz”. A dramatização auxilia, através
de seu aprendizado em sala de aula, a construção do “diálogo, a tolerância, a recon-
ciliação, a compreensão e a cooperação” (Mantovani, 2002, p.9), valores que auxiliam
a construção de uma cultura de paz na escola e em seu entorno. (5) “Educação para
o cultivo da dimensão filosófica e religiosa”. Ainda dentro do âmbito da dramatização
é possível construir junto dos estudantes experiências que aprofundem “sentimentos
como a dor, a enfermidade, a morte, o sentido de vida e a compreensão da história
pessoal e coletiva” (Mantovani, 2002, p.9).
De nada adianta o professor entender e falar sobre os princípios destacados por
Mantovani, se não for capaz de corporeificar as palavras com suas próprias atitudes
e exemplos (Freire, 2000). Aqui não cabe a velha máxima “faça o que eu falo e não o
que eu faço”.
Diante do apresentado até aqui, colocamos em questão que o teatro na escola
pode se servir de princípios de criação já conhecidos e experimentados por nós em
outros âmbitos criativos, como na sala de ensaio.
Durante a pesquisa de mestrado A dimensão coletiva na criação: o processo
colaborativo no Galpão Cine Horto, estudei o processo colaborativo em grupos de
teatro mineiros buscando compreender a verticalização da experiência coletiva no
campo da criação. A maturidade nas relações grupais, a confiança no outro, o enten-
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elabora-se não só a obra, que terá como consequência o produto, mas a si mesmo:
a obra enquanto resultado de uma autoconstrução. Há, portanto, um aprendizado
da vivência em grupo, um exercício de discussão, a busca de autonomia do sujei-
to (Figueiredo, 2007, p. 117-118).
Mais do que nunca a educação parece ter, como papel essencial, conferir a todos
os seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e ima-
ginação de que necessitam para desenvolver os seus talentos e permanecerem,
tanto quanto possível, donos do seu próprio destino (UNESCO, 1997, p.100).
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Considerações finais
Referências
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tituições federais de ensino técnico de nível médio. Disponível em: http://www.pla-
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gre: Artemed, 2000.
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MANTOVANI, Alfredo. ¿Es posible construir una pedagogía futurista? Homo Sapiens.
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SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. 1ª ed. São Paulo: Companhia das
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