Comunidades Ribeirinhas Na Amazônia Organização Sociocultural e Política PDF

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Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política

Riverside communities in the Amazônia: sociocultural and political organization


Communautés riveraines de l’Amazônia: organisation socioculturelle et politique
Comunidades ribereñas de la Amazônia: la organización socio-cultural y político

Talita de Melo Lira*


(talita.mlira@gmail.com)
Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves*
(socorro.chaves@ig.com.br)

Recebido em 01/07/2015; revisado e aprovado em 28/08/2015; aceito em 10/11/2015


DOI: http://dx.doi.org/10.20435/1518-70122016107

Resumo: O presente artigo tem como objetivo contribuir para o debate teórico sobre comunidades tradicionais
na Amazônia, destacando as comunidades ribeirinhas. No meio rural amazônico, as comunidades rurais
são formadas por povos/populações cujo modo de organização social é reconhecido como tradicional e
partilha-se da perspectiva que as comunidades tradicionais possuem um modo de vida ligado diretamente
a dinâmica da natureza.
Palavras-chave: Comunidades Tradicionais. Ribeirinhos. Organização Sociocultural.
Abstract: This article aims to contribute to the theoretical debate on traditional communities in the Amazônia,
highlighting the coastal communities. Amazon in rural areas, rural communities are formed by people /
populations whose mode of social organization is recognized as traditional and sharing from the perspective
that traditional communities have a way of life directly linked to the dynamics of nature.
Key words: Traditional Communities. Riparian. Sociocultural Organization.
Résumé: Cet article vise à contribuer au débat théorique sur les communautés traditionnelles en Amazônia,
en soulignant les communautés côtières. Amazon dans les zones rurales, les communautés rurales sont formés
par des personnes / populations dont le mode d’organisation sociale est reconnue comme traditionnelle et
le partage du point de vue que les communautés traditionnelles ont un mode de vie directement liée à la
dynamique de la nature.
Mots-clés: Communautés Traditionnelles. Riverain. Organisation Socioculturelle.
Resumen: Este artículo pretende contribuir al debate teórico sobre las comunidades tradicionales en la
Amazônia, destacando las comunidades costeras. Amazon en las zonas rurales, las comunidades rurales
están formadas por personas / poblaciones cuyo modo de organización social se reconoce como tradicional y
compartir desde la perspectiva de que las comunidades tradicionales tienen una forma de vida directamente
ligada a la dinámica de la naturaleza.
Palabras clave: Comunidades Tradicionales. Ribereño. Organización Sociocultural.

1 INTRODUÇÃO amplo e definido, geograficamente, no qual


a ­Amazônia designa uma bacia fluvial, de-
Neste artigo, parte-se do entendimento nominada de bacia amazônica que abrange
de que a Amazônia não é uma região muito uma área de, aproximadamente, 7.000.000
fácil de definir ou delimitar, a começar pela Km2, constituindo assim, o maior conjunto
plurivalência de sentido do termo que a no- potâmico, não só da América do Sul, como
meia, que tanto pode significar uma bacia do Globo e possui as seguintes característi-
hidrográfica, uma província botânica ou um cas: a) extensão e caudalosidade da sua bacia
espaço político-econômico (MOREIRA, 1960). potâmica; b) assimetria da rede de drenagem,
Nesse sentido, conforme o critério utilizado sendo a área de drenagem dos afluentes
para sua definição (geodésico, botânico ou meridionais do Amazonas muito maior do
fisiográfico), a sua área, ora se amplia, ora se que os setentrionais; c) notável capacidade
reduz, de acordo com o objeto de interesse, de abrangência política, em decorrência do
estudo ou consideração. número de entidades que dela participam di-
No que concerne ao conceito hidro- retamente (nove unidades políticas do Brasil
gráfico, Moreira (1960) afirma que é o mais e sete do continente); d) condições altamente

* Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.

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favoráveis de navegabilidade e, como tal, de mediante as correlações de força existentes


grande importância sob o ponto de vista eco- nas diferentes esferas do poder, que incidem,
nômico, social e histórico (MOREIRA, 1960). diretamente, no modo de vida das comuni-
No que diz respeito ao conceito botâ- dades tradicionais. Para Chaves (2001; 2009),
nico, o referido autor afirma que, devido a as Políticas Públicas na Amazônia possuem
natural correlação entre fauna e flora, a Hileia lógicas opostas aos interesses e demandas de
representa, tanto um espaço botânico, quanto vastos segmentos das populações amazôni-
faunístico. Segundo Moreira (1960), é com a das, tendo em vista que estas sempre foram
fauna e flora que a Amazônia tem desper- justificadas sob a alegação da premente neces-
tado maior interesse, sob o ponto de vista sidade de “desenvolver” e “integrar” a região
científico, pela soma de materiais e imensas aos centros dinâmicos do país e à economia
possibilidades que oferece ao estudo nesse internacional.
terreno. Dentre as principais características Na mesma linha de pensamento, Reis
da Hileia, destacam-se: a) riqueza e variedade (1997) afirma que, durante todo processo de
da sua fauna, no que diz respeito às formas e formação e desenvolvimento, a região ama-
ao colorido; b) predominância acentuada das zônica sempre foi vista como imensa reserva
espécies de vida arbórea e aquática, contras- de matérias-primas:
tando em variedade e número de indivíduos Desde o período em que os ingleses,
com as demais; c) sensível homogeneidade holandeses, franceses, espanhóis e portu-
de composição e de distribuição das espécies, gueses, em disputa militar e em concorrência
sob o ponto de vista geográfico. mercantil, se lançaram à grande empresa de
Quanto ao conceito político-econômico, descobrir, penetrar, dominar politicamente
conforme Moreira (1960), a Amazônia designa a região, impondo-lhe soberania europeia
uma das regiões naturais em que se divide o e criando o empório de matéria-prima que
Brasil. Segundo a divisão corrente, essa região satisfizesse as exigências dos mercados con-
compreende a vasta zona equatorial do País sumidores do Velho Mundo, aos nossos dias,
e integra-se ao quadro político do Setentrião quando o próprio Brasil vê, a Amazônia,
brasileiro, razão por que, também, se chama como a sua imensa reserva de produtos pri-
Região Norte. O autor explicita que devido à mários essenciais à sua caminhada no campo
pujança do seu revestimento vegetal, pela ri- da industrialização. (REIS, 1997, p. 13).
queza e variedade da sua fauna, pelo número Reis (1997) explicita, ainda, que a Ama-
e caudolosidade dos seus rios, pela exuberân- zônia tem propiciado, ao mundo, elementos
cia e amplitude dos seus cenários, a Amazônia de bem-estar material e espiritual, contudo
é a região de maior interesse geográfico no não têm sido criadas, na mesma proporção,
país. Entretanto, em consonância com o autor, condições existenciais para as próprias popu-
a delimitação territorial de tão imensa região lações amazônicas.
não se processou em termos geográficos e, Tendo por base os autores supracitados,
sim, em função de uma acomodação política. entende-se que, desde o período colonial,
Contudo, para Moreira (1960), a Ama- até os dias atuais, as políticas públicas via-
zônia não tem sido vista, apenas, como uma bilizadas trataram o espaço amazônico sem
área dotada de configuração fisiográfica pe- considerar as formas de vida e os saberes,
culiar, suscetível de ser definida e delimitada historicamente construídos, demonstrando
à luz deste ou daquele critério, mas também, um profundo desrespeito pelos mosaicos so-
como um imenso potencial econômico e, cioculturais que dão vida a região. Assim, a
como tal, uma soma de possibilidades a Amazônia não pode ser vista, somente, como
serem exploradas em função de um critério ambiente físico, natural ou humano, pois se
técnico e racional. E é como uma perspectiva constitui em uma totalidade complexa que
econômica que muitas Políticas Públicas são envolve as dimensões naturais, política, ide-
adotadas na Amazônia. ológica e sociocultural, sob o estabelecimento
Segundo Chaves (2001), as Políticas de relações sociais dos homens, entre si, e com
Públicas implementadas, na região, vêm a natureza. Nesse sentido, o presente artigo
sendo marcadas pelos interesses e estraté- objetiva contribuir com o debate sobre comu-
gias de expansão das relações capitalistas, nidades tradicionais na Amazônia, partindo

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do pressuposto de que elas apresentam um Tönnies (1947) formulou uma teoria que
modelo sociocultural de ocupação do espaço distinguia dois tipos de relações ou dicotomias
e uso dos recursos naturais voltado principal- sociais, quais sejam: Gemeinschaft e Gesellschaft,
mente para a subsistência, com fraca articula- frequentemente traduzidas como comunida-
ção com o mercado, baseado em uso intensivo de e sociedade. Para Tönnies Gemeinschaft,
de mão de obra familiar, tecnologias de baixo seria a sociedade pré-capitalista1, a qual seria
impacto derivadas de conhecimentos tradi- homogênea com conformidade social, como
cionais, normalmente, de base sustentável. norma, e teriam relacionamento local, coeso,
duradouro, íntimo e face a face. Por outro lado,
2 COMUNIDADES TRADICIONAIS: Gesellschaft, seria a sociedade industrial urba-
ELEMENTOS PARA O DEBATE na, a qual se refere à larga escala, impessoal e
de prudentes relações, que tendem a ser fracas
O conceito de comunidade tem sido e baseadas na não afinidade. As dicotomias
muito debatido nas Ciências Sociais o qual, da relação social são tipos ideais, e Tönnies
junto com o conceito de sociedade, constituem sugeriu que ambas podem coexistir nas áreas
as unidades mais complexas na Sociologia. urbanas e rurais. Entretanto Gemeinschaft foi
Elas congregam agentes sociais, combinando mais aceita em relação às áreas rurais.
e absorvendo instituições, grupos e diferen- Para Tönnies (1947), a comunidade é
tes segmentos. Weber (1973), ao analisar o diferente da sociedade. O que essencialmen-
conceito de ação social, analisa detidamente te caracteriza a comunidade é a “vida real e
os significados de “relação social”. O autor orgânica” que liga os seres humanos fazendo-
explica como uma relação social denomina-se -os se afirmarem reciprocamente. As relações
“relação comunitária” e quando se denomina que se estabelecem são pautadas pelos graus
“relação associativa”. de parentesco, vizinhança e amizade. “Tudo
Uma relação social denomina-se “re- aquilo que é partilhado, íntimo, vivido exclu-
lação comunitária” quando e na me- sivamente em conjunto, será entendido como
dida em que a atitude na ação social a vida em comunidade” (1947, p. 35).
– no caso particular ou em média ou Gusfield (1975), ao analisar o conceito
no tipo puro – repousa no sentimento
de comunidade, distinguiu dois usos princi-
subjetivo dos participantes de per-
tencer (afetiva ou tradicionalmente) pais, os quais podem ser, assim, descritos: a)
ao mesmo grupo. uso no sentido territorial e b) uso no sentido
relacional. O autor focaliza pontos de qualida-
Uma relação denomina-se “relação
de ou de caráter dos relacionamentos sociais,
associativa” quando e na medida
em que a atitude na ação social re- sem referência à localização.
pousa num ajuste ou numa união de Gusfield (1975) escolhe, para sua ênfa-
interesses racionalmente motivados se, o uso relacional de comunidade. Para ele
(com referência a valores ou fins). trata-se de um instrumento analítico básico
A relação associativa, como no caso para análise das mudanças sociais em socie-
típico, pode repousar, especialmente, dades ocidentais e nas “novas nações”. Nesse
(mas não unicamente num acordo sentido, utiliza-se a chave heurística dos estu-
racional, por declaração recíproca.
dos de Gusfield, visto que o autor caracteriza
Então a ação correspondente, quan-
do é racional, está orientada: a) de
uma comunidade, não pelo espaço geográfico,
maneira racional referente a valores, mas pelas relações sociais que se estabelecem
pela crença do compromisso próprio; no contexto comunitário.
b) de maneira racional referente a fins
pela expectativa da lealdade da outra 1
Neste trabalho, pensa-se a comunidade de modo
parte. (WEBER, 1973, p. 25). diferente de Tönnies. Conforme o autor, as comunidades
são formas de relações sociais pré-capitalistas,
Essa afirmação de Weber endossa a ca- que tenderiam, inevitavelmente, a desaparecerem,
racterística inerente a toda relação social que tragadas pela sociedade capitalista. Contudo parte-se
é a tensão entre valores e ideias opostos que do entendimento que as comunidades tradicionais
se cruzam e dão a base para a constituição na Amazônia, constituem-se como relações sociais
não capitalistas, haja vista que se observa de modo
do ethos e da visão de mundo de determinado empírico na Amazônia, a resistência sociocultural dessas
grupo social. comunidades tradicionais.

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Tendo por base os autores supracitados, é um herdeiro de um longo processo


parte-se do entendimento de que as comuni- acumulativo, que reflete o conhe-
dades tradicionais, na Amazônia, possuem cimento e a experiência adquirida
“um modelo particular de gestão dos recursos pelas numerosas gerações que o an-
tecederam. A manipulação adequada
naturais e de organização social” (CHAVES,
e criativa desse patrimônio cultural
2001, p. 77), assim sendo, a comunidade se permite as inovações e invenções.
constitui “num espaço onde se estabelecem Estas não são, pois, o produto de
a construção de construção de identidades uma ação isolada de um gênio, mas
sociais, de projetos comuns, mas também, o resultado do esforço de toda uma
de manifestação da diversidade” (CHAVES, comunidade.
2001, p. 77). Portanto a comunidade é o espaço
Clifford Geertz (1989) analisa a cultura
em que se solidificam as relações sociais e mo-
como sistemas simbólicos, a qual considera
dos de vidas específicos, bem como, formas
não como um complexo de comportamentos
de gestão apropriadas dos recursos locais, o
concretos, mas um conjunto de mecanismos
que evidencia o importante papel da cultura.
de controle, planos, receitas, regras, instruções
A discussão sobre cultura possui uma
(que os técnicos de computadores chamam de
centralidade nos estudos antropológicos. Tal
programas) para governar o comportamento.
assunto tem-se mostrado inesgotável, uma Assim para Geertz (1989), todos os homens
vez que tem sido alvo constante de estudos são, geneticamente aptos para receber um
científicos nos últimos 100 anos, razão esta programa e, esse programa, é o que chama-
que justifica as inúmeras bibliografias que mos de cultura. Tal afirmativa permitiu ao
visam aprofundar o conceito. Segundo Laraia autor a constatação de que todo ser humano
(1999), o conceito de cultura foi definido, nasce com um equipamento para viver mil
primeiramente, por Edward Tylor, no final vidas, mas termina vivendo apenas uma só.
do século XVIII, no qual o autor se utilizou Para Geertz (1989), o homem pode ser
do vocábulo germânico Kultur (utilizado para visto e entendido como ser simbólico. Desse
simbolizar todos os aspectos espirituais de modo, o comportamento humano, também,
uma comunidade) e a palavra francesa Civi- aparece como ação simbólica. Para o autor, os
lization (referia-se às realizações materiais de códigos peculiares e específicos que regem as
um povo) para sintetizar o vocábulo inglês ações de determinados grupos e/ou comuni-
Culture, que, “tomado em um amplo sentido dades, as interpretações e leituras da natureza
etnográfico, é este todo complexo que inclui desenvolvidas por essas populações, podem
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, não ser decifráveis por outros grupos ou pela
costumes ou qualquer outra capacidade ou própria sociedade em geral. Daí a necessidade
hábitos adquiridos pelo homem como mem- da busca do significado, da explicação ou da
bro de uma sociedade” (TYLOR, 1971 apud compreensão, de determinadas expressões
LARAIA, 1999, p. 25). Laraia (1999) explicita, sociais a princípio enigmáticas em sua super-
ainda, que a definição de cultura, formulada fície. Na mesma linha de pensamento, Ruth
por Tylor, abrangeu em uma só palavra todas Benedict (apud LARAIA, 1999) contribui com
as possibilidades de realização humana, além a discussão afirmando que a cultura é compa-
de marcar fortemente o caráter de aprendiza- rada a uma lente por meio da qual o homem
do da cultura em oposição à ideia de aquisição pode ver o mundo. Para a autora, homens
inata, transmitida por mecanismos biológicos. de culturas diferentes usam lentes diversas
Boas (1896 apud LARAIA, 1999) acres- e, portanto, têm visões desencontradas das
ceu um elemento importante para a ampliação coisas.
do conceito de cultura que são as investigações Assim, tendo por base a discussão dos
históricas. Em conformidade com este autor, autores, parte-se do entendimento de que o
cada cultura segue os seus próprios caminhos, modo de ver o mundo, as apreciações de or-
em função dos diferentes eventos históricos dem moral e valorativa, as diferentes relações
que enfrenta. Nesse sentido, Laraia (1999, p. sociais e mesmo posturas comportamentais
46) explicita que: e corporais são produto de um patrimônio
O homem é o resultado do meio cultural resultado da operação de uma deter-
cultural em que foi socializado. Ele minada cultura. Entende-se a necessidade de

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se analisar a cultura das comunidades tradi- constituem, ­enquanto meios pelos quais os
cionais da Amazônia, tendo em vista que estas homens, no estabelecimento de suas relações,
possuem um sistema cultural que não disso- reinventam seu mundo, reforçam ou trans-
cia o homem da natureza, o que permitem o formam os mundos de seus antepassados
manejo do ambiente sem a degradação dos (GEERTZ, 1989).
recursos naturais, possibilitando uma gestão
sustentável dos recursos naturais a partir do 3 COMUNIDADES TRADICIONAIS:
etnoconhecimento. FORMAS DE ADAPTAÇÕES E RESIS-
No que concerne à cultura das comuni- TÊNCIAS
dades amazônidas, Morán (1990) afirma que
esta representa a síntese dos conhecimentos As comunidades tradicionais, que co-
produzidos e assimilados pela sociedade meçaram a ganhar visibilidade e reconheci-
sobre o meio em que vive, sendo esta media- mento de seus direitos a partir da década de
tizada pela relação dos homens entre si, bem 80, começaram a se organizar politicamente,
como, por suas inter-relações com a nature- questionando sua expulsão de áreas que per-
za. Nesse caso, as relações homem-natureza tenciam aos seus antepassados e que forne-
encontram-se mediadas pela cultura. ciam recursos naturais usados como principal
Para compreender as formas de uso fonte de reprodução social. Segundo Diegues
dos recursos naturais pelas comunidades (2001), essas resistências são fruto da reorga-
tradicionais, interessa não só conhecer as nização da sociedade civil brasileira por meio
classificações e as taxonomias que refletem dos seguintes elementos: 1) os movimentos
o saber florístico e faunístico, mas todo um sociais; 2) o ressurgimento de um sindicalis-
sistema de crenças e saberes, de mitos e ritos, mo rural ativo e 3) a emergência e proliferação
que conformam o modo de vida, a partir da de ONG, no âmbito nacional e internacional;
percepção e aproveitamento dos recursos, 4) o reconhecimento, em âmbito internacional,
pois essas formas de significação estão, in- da importância dessas comunidades para a
timamente, relacionadas com a organização conservação ambiental.
cultural. Sobre a importância da cultura dos Um exemplo desse reconhecimento
povos tradicionais para a conservação da internacional é o documento programático
biodiversidade, Posey (1980) argumenta que: da IUCN, UNEP e WWF, no qual “povos
[...] os povos tradicionais (índios, indígenas” aparecem no capítulo intitulado
caboclos, ribeirinhos, seringueiros, “Permitir que as comunidades cuidem de seu
quilombolas) possuem vasta experi- próprio meio ambiente”. Neste, as comunida-
ência na utilização e conservação da des são caracterizadas como:
diversidade biológica e ecológica que
[...] culturalmente diferentes, com
está, atualmente, sendo destruída direitos à terra e outros direitos base-
[...]. Os povos tradicionais, em geral, ados no uso e na ocupação histórica.
afirmam que, para eles, a ‘natureza’ Suas culturas, economias e identida-
não é somente um inventário de des estão inextricavelmente ligadas
recursos naturais, mas representa às suas terras e recursos tradicionais.
as forças espirituais e cósmicas que [...] Além disso, os índios transmi-
fazem da vida o que ela é. (POSEY, tem, às suas comunidades nativas,
1980, p. 149-150). uma percepção deles próprios como
Segundo Leff (2000), essas práticas uma continuidade inegável de seu
­autóctones de manejo dos recursos continu- passado e como uma extensão do
mundo da natureza. (IUCN; UNEP;
am reproduzindo-se em diferentes espaços
WWF, 1991, p. 67).
étnicos e geográficos como verdadeiras es-
tratégias de sobrevivência cultural e desen- Esse mesmo documento aponta reco-
volvimento sustentável. Dessa forma, no am- mendaçãoes para o reconhecimento dessas
biente das comunidades tradicionais, pode-se comunidades: (i) “reconhecer os direitos abo-
identificar o forte componente cultural, no rígenes dos povos indígenas às suas terras e
qual os homens constroem suas representa- recursos”, incluindo a “participação efetiva na
ções simbólicas, seus mapas cognitivos que tomada de decisões que afetem seus recursos
orientam suas ações. Tais representações se e terras”; (ii) “assegurar que o prazo, o ritmo

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e a forma de desenvolvimento minimizem resultado de uma articulação que resultou


os impactos danosos ao meio ambiente, so- em uma aliança de forças, a qual propiciou
ciedade ou cultura dos povos indígenas, e uma visibilidade nacional e internacional.
que estes tenham uma parcela equitativa dos Dentre os principais movimentos sociais
lucros”; e (iii) assegurar a cooperação da parte que surgiram nessa década, destacam-se: o
de legisladores, planejadores, cientistas e ad- Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS),
ministradores, para com os povos indígenas, os Movimentos dos Atingidos por Barragens
“num esforço conjunto para a administração (MAB), os Movimentos dos Pescadores Arte-
de recursos e desenvolvimento econômico”. sanais (Movimento Nacional dos Pescadores
Esse documento trouxe vários avanços (MONAPE), Movimento dos Pescadores do
políticos para o reconhecimento das comuni- Pará (MOPEPA) e Movimento dos Pescadores
dades indígenas, uma vez que considerou a do Baixo Amazonas (MOPEBAM), Movimen-
cultura indígena como um elemento impor- to de Ribeirinhos e os Movimentos Indígenas.
tante para conservação ambiental e partici- Dentre os movimentos sociais que
pação desses agentes sociais na tomada de surgiram nesse período, destaca-se, como ex-
decisões. Tal entendimento norteou várias poente, o Conselho Nacional de Seringueiros
análises e políticas públicas até a década de (CNS), que, ainda na década de 80, iniciou a
90. Contudo, até a referida década, esse reco- luta por reservas extrativistas como forma
nhecimento se restringia aos povos indígenas; mais adequada de garantir, para a Amazô-
somente a partir dos anos 2000, essa discussão nia, uma atividade econômica que respeite a
se ampliou para as comunidades tradicionais floresta e não expulse sua população (serin-
não indígenas e ganhou legitimidade no gueiros, coletores de castanhas, indígenas,
Brasil, a partir do Decreto n. 6040, de 07 de ribeirinhos).
fevereiro de 2007, o qual instituiu a Política O CNS tornou-se um agente relevante
Nacional de Desenvolvimento Sustentável por meio da liderança de Chico Mendes, um
dos Povos e Comunidades Tradicionais, a dos primeiros dirigentes a fazer a denúncia
qual, no Art. 3, define: sobre a situação de pobreza da população
amazônica e a violência dos fazendeiros, pro-
Povos e comunidades tradicionais:
grupos culturalmente diferenciados pondo soluções alternativas de manejo flores-
e que se reconhecem como tais, tal sustentável. A capacidade de articulação e
que possuem formas próprias de de resistência cultural e política dos seringuei-
organização social, que ocupam e ros na defesa da permanência dos seringais
usam territórios e recursos naturais nativos tornou-se um marco na história dos
como condição para sua reprodução movimentos sociais, associados ao meio am-
cultural, social, religiosa, ancestral e biente. Após o assassinato de Chico Mendes,
econômica, utilizando conhecimen- em 22 de dezembro de 1988, em Xapuri, no
tos, inovações e práticas gerados e Acre, as propostas de reservas extrativistas
transmitidos pela tradição.
ganharam repercussão internacional. Face
Tendo por base essa assertiva, parte-se à repercussão desse ato de barbárie cometi-
do entendimento de que os ribeirinhos con- do contra os seringueiros, ainda em 1989, o
tituem comunidades tradicionais, uma vez governo elaborou um decreto de criação da
que o próprio movimento dos ribeirinhos se primeira reserva extrativista no Acre.
autorreconhece dessa forma, caracterizando Segundo Almeida (2008), a partir da
um processo de empoderamento, tendo em atuação desses movimentos sociais, houve
vista que possuem uma relação particular um redirecionamento e, em alguns casos, a
com a natureza, traduzida num corpo de ­ruptura com as formas de pensamentos vi-
saberes técnicos e conhecimentos sobre os gentes sobre a região, até então tratada, ape-
ciclos naturais e os ecossistemas locais de que nas, como um quadro natural, depositária de
se apropriam. paisagens exuberantes e espécies de animais
A emergência do movimento desse exóticos.
segmento ocorreu em cocomitância com Essa nova forma de ver a Amazônia, se-
vários movimentos sociais com a bandeira gundo Almeida (2008), trouxe, em seu bojo, a
socioambiental, não por acaso, mas como percepção de que os ecossistemas ­amazônicos

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72  Talita de Melo Lira; Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

são constituídos, também, por relações sociais adaptação de saberes e técnicas de acordo com
e está prenhe de antagonismos, como um suas necessidades; b) ao padrão complexo
campo de lutas, em torno do controle do pa- de organização da produção e de gestão dos
trimônio genético, do uso de tecnologias e das recursos naturais; c) a luta pela garantia de so-
formas de conhecimento e de apropriação dos brevivência e acesso a bens e serviços sociais;
recursos naturais, levando a uma politização d) as atividades exercidas, como: agricultura,
do saber sobre a natureza e, por extensão, a caça, pesca, coleta e extração, desempenhadas
uma politização da própria natureza. de acordo com suas necessidades e recursos
Dessa forma, de acordo com Almeida naturais disponíveis.
(2008), a questão ambiental na Amazônia Nesse sentido, considera-se que modus
passou a ser tratada não mais como uma vivendi e a organização política das comuni-
questão sem sujeitos, mas como uma cons- dades tradicionais ribeirinhas são marcadas
trução coletiva vinculada ao advento dos e orientadas por uma identidade pautada nos
vários movimentos sociais que passaram a valores socioculturais e na dinâmica sócio-
expressar as formas peculiares de uso e ma- -histórica da região amazônica. Na base dos
nejo dos recursos naturais por povos indíge- conhecimentos das comunidades tradicio-
nas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, nais, predominam os saberes herdados das
quebradeiras-de-coco-de-babaçu, pescadores, populações indígenas que habitam a região,
entre outros. À medida que as disputas por desde momentos que antecedem ao processo
territórios e pelo uso dos recursos naturais de colonização. A influência desses outros po-
foram aguçando-se, a atuação e abrangência vos, principalmente a portuguesa, fez surgir a
desses movimentos sociais foram, paulati- cultura dos caboclos (MORÁN, 1990).
namente, ganhando corpo, redesenhando a De acordo com Morán (1990), a cultura
sociedade civil na Amazônia e impondo seu cabocla2 iniciou-se com a chegada dos portu-
reconhecimento aos centros de poder. gueses (1500 a 1850), seguida por uma fase
de aculturação e uma economia extrativista
4 COMUNIDADES RIBEIRINHAS: baseada no extrativismo da borracha (1850
­SABERES E HABILIDADES a 1970). O estudo de Morán (1990) evidencia
que o caboclo pode ser o ribeirinho, o coletor
A Amazônia é ocupada por uma diver- de seringa ou de castanha, horticultor, cano-
sidade de grupos étnicos e por populações eiro e pescador, normalmente subsistindo de
tradicionais, historicamente constituídas, a várias ou algumas dessas atividades.
partir dos vários processos de colonização Chaves (2001) afirma que os ribeirinhos
e miscigenação por que passou a região. são uma referência de população tradicional
Pode-se afirmar que o homem amazônico é na Amazônia, a iniciar pela forma de co-
resultado dos intercâmbios históricos entre municação, no uso das representações dos
diferentes povos e etnias. Tal intercâmbio lugares e tempos de suas vidas na relação
possibilitou uma herança que se revela nas com a natureza. Desde a relação com a água,
mais diferentes manifestações socioculturais seus sistemas classificatórios da fauna e flora
expressas pelo homem amazônico na vida ­formam um extenso patrimônio cultural. Para
cotidiana, quais sejam: as relações de trabalho, a autora, os agentes sociais identificados como
a educação, a religião, as lendas, os hábitos ribeirinhos.
alimentares e familiares. [...] vivem em agrupamentos comu-
Dentre os principais agentes sociais que nitários com várias famílias, locali-
compõem o mosaico amazônico, destacam-se zados, como o próprio termo sugere,
os povos indígenas, as populações ribeirinhas, ao longo dos rios e seus tributários
pescadores, extrativistas, quilombolas, mi-
grantes, entre outras. Segundo Chaves (2009), 2
Expressão que vem do tupi (kari bora), na sociedade
cada um desses segmentos é constituído moderna, designa, de forma pejorativa, as populações
por uma identidade sociocultural e política que habitam na área rural da Amazônia, tais como:
índio bravio, mestiço de índio, matuto, indolente, pessoa
própria, cuja modalidade de sobrevivência e
desconfiada ou traiçoeira. Nesse sentido, neste trabalho
relações político-organizativas estão relacio- não será utilizado nomenclatura caboclo para designar
nadas: a) a origem étnica por meio da adoção e as populações ribeirinhas.

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Comunidades Ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política 73

(­lagos). A localização espacial nas percebendo o tempo ecológico dos recursos


áreas de várzea3, nos barrancos, os naturais para organizar o trabalho na hetero-
saberes sócio históricos que determi- geneidade das diversas formas de utilização
nam o modo de produção singular, o dos recursos naturais, tais como: agricultura,
modo de vida no interior das comu-
criações de pequenos animais, extrativismo
nidades ribeirinhas, concorrem para
animal (pesca e caça) e extrativismo vegetal
a determinação da identidade so-
ciocultural desses atores (­CHAVES, (madeireiro e não-madeireiro) (FRAXE, 2009).
2001, p. 78). Em relação ao uso comunitário da terra,
Almeida (1989) enfatiza que as comunidades
Assim, as comunidades tradicionais tradicionais na Amazônia, frequentemen-
ribeirinhas são o locus onde os ribeirinhos te, ignoram a estrutura agrária brasileira e
estabelecem as relações sociais, em que o rio usam a terra de forma coletiva, nas quais o
lhes traduz um significado muito grande, controle dos recursos básicos não é realiza-
configurando-se como complemento de suas do individualmente por um determinado
vidas ou, até mesmo, suas próprias vidas, grupo doméstico ou pequenos produtores,
como descreve Cruz (1999, p. 04), mas, coletivamente. Tal controle ocorre por
[...] Rio e ribeirinho são partes de meio de normas específicas instituídas para
um todo. Se o rio oferece os seus além do código legal vigente e acatadas, de
alimentos, fertiliza as suas margens maneira consensual, nos meandros das rela-
no subir e baixar das águas. O ribeiri- ções sociais estabelecidas entre vários grupos
nho lhe oferece sua proteção, através familiares, que compõem uma comunidade.
de suas representações (seus mitos) Segundo o autor, tanto podem expressar um
como a mãe-d`água, a cobra-grande
acesso estável a terra, como ocorre em áreas
que come os desavisados (que não
de colonização antiga, quando evidenciam
respeitam a natureza) e tantas outras,
que nascem desta humanização da formas relativas transitórias intrínsecas às
natureza e naturalização do homem. regiões ocupadas recentemente. O aludido
autor afirma que a atualização dessas nor-
O rio influencia, inclusive, a própria mas ocorre em territórios próprios, cujas
construção das casas do ribeirinho, uma vez delimitações são, socialmente, reconhecidas.
que são sempre construídas de frente para o Conforme o autor,
rio, as quais podem ser vistas pelas grandes
A territorialidade funciona como
embarcações que navegam nos rios amazô-
fator de identificação, defesa e for-
nicos, evidenciando que o rio possui um alto
ça. Laços solidários de ajuda mútua
poder simbólico para ribeirinhos. informam um conjunto de regras
As comunidades ribeirinhas apresen- firmadas sobre uma base física
tam, ainda, um modo particular de vida em considerada comum, essencial e
vários aspectos, tais como: uso do território, inalienável, não obstante, disposições
uso e manejo coletivo dos recursos locais, sucessórias, porventura existentes.
orientados por seus saberes e em bases comu- De maneira genérica, estas extensões
nicativas e cooperativas; no estabelecimento são representadas por seus ocupan-
das relações sociais de trabalho, bem como, tes e por aqueles de áreas lindeiras
sob acepção corrente de terra comum.
nas relações de compadrio e parentesco. No
(ALMEIDA, 1989, p. 163).
contexto amazônico, esses aspectos assumem
singularidades regionais próprias (CHAVES, Almeida (1989) explicita que, nesse
2001). sistema de uso comum da terra, há também
Essas comunidades são detentoras de regras de apropriação privada, como a casa
amplo saber sobre o ambiente amazônico e e o quintal com seus jiraus que pertencem,
suas diversas formas de uso e manejo. Assim, individualmente, a cada grupo familiar, do
compreende-se que as comunidades ribeiri- mesmo modo que o produto da colheita e os
nhas se apropriam dos recursos florestais, demais frutos do roçado.
baseado na reciprocidade com a natureza, Vale ressaltar que as comunidades
tradicionais ribeirinhas não estão isoladas
3
Terras anualmente alagáveis, fato que proporciona o no tempo e espaço; distanciadas uma das
enriquecimento nutricional do solo. outras, elas estabelecem conexões e vínculos

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74  Talita de Melo Lira; Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

entre si. As sociedades urbanas, por exemplo, quando para o consumo, pelos adultos e
necessitam da produção agrícola e extrativista jovens do sexo masculino e pelas crianças,
da vida rural para sobreviver. Em contrapar- como mecanismo de liberação dos outros
tida, as comunidades tradicionais precisam membros da família para outras atividades
estabelecer trocas com a sociedade urbano- e como processo educativo sobre o manejo
-industrial para adquirirem acesso a bens e do ambiente aquático. Conforme a autora, a
serviços que garantam sua reprodução social. pesca é praticada tanto na cheia, quanto na
No que tange ao elemento religioso, vazante dos rios, ao passo que a caça é mais
conforma Fraxe (2009), as comunidades importante na composição alimentar das fa-
tradicionais apresentam uma rica variedade mílias produtoras na época da cheia.
de mitos, concepções, crenças e práticas, No que se refere à produção agrícola,
considerando a influência religiosa indígena, o cultivo de mandioca é a mais comum.
africana e portuguesa. Segundo a autora, os As cultivares venenosas são denominadas
santos populares católicos assumem uma mandiocas, e as não venenosas, macaxeira,
importância significativa para a determinação ambas da espécie Manibot esculenta Crantz. A
da vida cotidiana nessas comunidades, uma mandioca é o componente básico do sistema
vez que esses santos são aqueles de quem se de produção agrícola na Amazônia, quer seja
obtêm os “milagres” e “graças”, por meio de em regiões de terra firme, quer em regiões de
promessas. Por outro lado, a referida autora várzea, devido a sua dupla finalidade: subsis-
acrescenta que, no contexto amazônico, há tência e comercialização. O pequeno produtor
uma efetiva ascensão da religião evangélica transforma quase toda a sua produção de
presente em muitas comunidades, o que tem raízes da mandioca, rica em amido, em fari-
enfraquecido as igrejas católicas na região e nha, utilizando-se de processos inteiramente
causado vários conflitos e divisões no âmbito artesanais (NODA et al., 2001).
comunitário. Ainda com relação à produção, Fraxe
No que diz respeito ao desenvolvimen- (2004) argumenta que esta é efetivada através
to das atividades de trabalho dos ribeirinhos, dos ciclos mercadoria-mercadoria e merca-
Chaves (2001) ressalta que estas se fundamen- doria-dinheiro-mercadoria. Trata-se, basica-
tam no desenvolvimento de técnicas simples mente, de dois tipos de transação: relação não
e apropriadas ao atendimento de suas ne- monetarizada (mercadoria-mercadoria) e a
cessidades prioritárias. Dentre as atividades relação que ocorre entre a troca de um valor
desenvolvidas, destacam-se: o acesso aos de uso pela moeda, para se adquirir outro va-
recursos pesqueiros e a produção agrícola lor de uso (mercadoria-dinheiro-mercadoria).
para subsistência. Nesse sentido, embora se verifique a presença
A pesca é uma prática que vem sen- do dinheiro, a troca se caracteriza por uma
do desenvolvida por séculos na Amazônia, economia mercantil de troca simples, bem
primeiramente pelos indígenas e, logo após, diferente da sociedade capitalista, a qual visa
pelos ribeirinhos, todavia sempre tomando ao lucro.
como referência os hábitos da pesca indígena, A dinâmica produtiva nas comunida-
aprimorando os utensílios e adequando-os des ribeirinhas guia-se pela relação homem-
às suas necessidades de maior produção -natureza. Nessa região, os agentes sociais uti-
por tempo disponível à atividade. Dentre os lizam seus saberes tradicionais, acumulados
utensílios utilizados na pesca, destacam-se: de geração em geração, instituindo múltiplas
o arco e flecha, a zagaia e arpão (haste) e a relações com o ambiente natural e os recursos
malhadeira (NODA et al., 2001). locais, como por exemplo, os ciclos naturais, a
De acordo com Noda (2001), a pesca tem reprodução e migração da fauna, a influência
grande representatividade, principalmente, da lua nas atividades de corte da madeira, da
porque o peixe é a principal fonte de proteína pesca, do roçado, os sistemas de manejo dos
das famílias ribeirinhas. A prática da pesca é recursos naturais, utilizando tais informações
intensa, sendo executada nos lagos, igapós, no seu dia a dia. Entende-se, também, que as
igarapés e rios, utilizando, como meio de práticas produtivas encontram-se pautadas
transporte, normalmente, a canoa movida por uma dinâmica peculiar, e não em função
a remo e/ou motor de rabeta. Executada, das relações de produção para atender as

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Comunidades Ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política 75

demandas do mercado. São relações de res- do manejo dos recursos locais, desenvolven-
peito ao meio ambiente e de manutenção da do estratégias de organização comunitária
subsistência de seus grupos. para superar as dificuldades decorrentes da
As modalidades de organização socio- carência de bens e serviços sociais, o que se
cultural das comunidades na Amazônia, em configura como uma potencialidade dessas
suas singularidades, criam mecanismos e comunidades. Tais estratégias se estabelecem
práticas que objetivam a construção coletiva por meio de solidariedade e ajuda mútua en-
de alternativas e soluções para atender suas tre os comunitários, práticas alicerçadas em
necessidades básicas tendo, como fundamen- conhecimentos tradicionais que possibilitam
to, os conhecimentos tradicionais (CHAVES, superar a doença por intermédio do uso de
2001). plantas medicinais, a ausência de um médico
Em relação à organização política, as por uma parteira, a falta de um equipamento.
formas de organização das comunidades Nesse sentido, as atividades coletivas repre-
tradicionais denotam a existência de identida- sentam a solidificação dos laços de paren-
des políticas diferenciadas que, por sua vez, tescos e compadrios, característica marcante
produzem condições propícias para os mais nas comunidades tradicionais. Essas práticas
diversos processos sociais, dentre os quais se objetivam e fortificam a organização social,
destacam as ações comunitárias, como meio política e cultural das populações tradicionais.
para a organização sociopolítica. No que diz
respeito às estratégias utilizadas para a orga- 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
nização, a referida autora destaca: a solidarie-
dade interna aos grupos, as alianças políticas
Nas comunidades ribeirinhas na Ama-
com interlocutores externos, as reivindicações
zônia, prevalece uma relação de respeito
feitas nas manifestações públicas e nas cam-
entre homem-natureza, tendo em vista que
panhas, segundo o grau de politização e cons-
os ribeirinhos não dissociam o homem da
cientização do grupo social. De certa forma,
natureza, o que permite o manejo do ambien-
pode-se afirmar que a principal finalidade da
te sem a degradação dos recursos naturais,
organização sociopolítica desses grupos está
possibilitando uma gestão sustentável dos
na busca pela conquista de seus direitos e na
constituição de meios para atendimento das recursos naturais a partir do etnoconheci-
necessidades básicas de seus protagonistas. mento. Pode-se afirmar que o sistema cultural
Em consonância com Chaves et al dos ribeirinhos possui uma lógica e coerência
(2009), é possível identificar algumas con- particular que deve ser mais bem investigada
figurações que marcam a associação entre e entendida em outros trabalhos, uma vez
organização política e produtiva, são elas: a) que possui uma imensurável riqueza a ela
as associações comunitárias que adotam, como subjacente. Cada formação social expressa a
referência organizacional, as representações emergência do caráter próprio de sua cultura,
e representatividade que os atores possuem que não pode ser atribuível a nenhum deter-
para formar seus quadros; b) os mutirões nos minismo geográfico, genético ou ecológico,
quais o trabalho é compartilhado por todos que não é uma simples resposta adaptativa às
os membros da comunidade e se constituem condições do meio, mas que imprime a marca
como serviços para coletividade, para me- de sistemas simbólicos, dos significados e
lhoria de bens e/ou prestação de serviços modos de apropriação que cada comunidade
comunitários; c) os ajuris, modalidades de constrói de forma sócio-histórica.
organização do trabalho realizadas pelos Vale ressaltar que as observações rea-
comunitários de maneira coletiva, cujos re- lizadas nesta análise, em momento algum,
sultados são partilhados pelos participantes compartilham da visão romântica do “bom
da atividade; d) os puxiruns, atividades de- selvagem”, tal visão coloca esses agentes na
senvolvidas em grupos para troca de serviços, posição de vítimas sem advogados ou de
na qual todos se reúnem para beneficiar um exímios conservadores da natureza e que a
membro, que, em momento posterior, presta esta não causam impacto algum. A posição
serviço equivalente àqueles que o ajudaram. tomada refere-se à questão de que, não se
As comunidades tradicionais têm sua deve proteger a natureza em detrimento das
reprodução social e física garantida, a partir comunidades que habitam as unidades de

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76  Talita de Melo Lira; Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

conservação, pois, assim como o meio am- CRUZ, Manuel M. Sítios agroflorestais na várzea do
biente, os saberes das populações tradicionais Careiro. Revista de Geografia da Universidade do Amazonas,
Manaus, v. 1, n.1, p. 105-122, jan./dez.1999.
também devem ser valorizados. .
DIEGUES, Antônio Carlos Santana. O mito moderno da
Tendo por base a concepção de Chaves
natureza intocada. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2001.
et al (2009), entende-se que o desenvolvimento
FRAXE, Therezinha et al. Os povos amazônicos: identi-
ecologicamente viável só é possível quando dades e práticas culturais. In: PEREIRA, Henrique dos
socialmente justo. No caso das comunidades Santos (Org.). Pesquisa interdisciplinar em ciências do meio
tradicionais que vivem na Amazônia, identi- ambiente. Manaus: EDUA, 2009.
fica-se a necessidade de ampliar os estudos ______. Therezinha. Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, len-
que privilegiem a busca pelo conhecimento do das e transculturalidade. São Paulo: Annablume, 2004.
modus vivendi desses povos e que as interpre- GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
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