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A ponte e a crase

Pasquale Cipro Neto

O poeta Ferreira Gullar, um dia, disse-me que “a crase não foi feita para humilhar
ninguém”. Não sei de quem é a frase – talvez seja do próprio Gullar –, mas é lapidar.
A crase talvez não humilhe, mas causa embaraços. A coisa começa na confusão
entre o nome do acento que indica a crase e a própria crase. O acento que aparece
em “à”, “às”, por exemplo, chama-se grave.

O acento é grave. Crase é o nome do fenômeno. Crase vem do grego e significa


“fusão”, “mistura”. De qualquer coisa com qualquer coisa. O dicionário Aurélio diz
que a palavra é empregada, em linguagem médica, para indicar “mistura, equilíbrio
das partes constitutivas dos líquidos orgânicos”. Em gramática, quando se fala de
crase, fala-se da fusão de duas vogais iguais.

No português moderno, em 99% dos casos, a crase se restringe à fusão da


preposição “a” com o artigo “a”. É o que ocorre em “O livro pertence à diretora”, por
exemplo. O verbo “pertencer” rege a preposição “a”. Se uma coisa pertence,
pertence a alguém. Esse “a” se funde com o artigo feminino “a”, exigido pelo
substantivo feminino “diretora”. Pois bem. A fusão dessas vogais (a + a) é
representada pelo acento grave: a + a = à.

Tome cuidado com a pronúncia, com a leitura. Muita gente, quase sempre com a
melhor das intenções, espicha essa “a” na leitura: “O livro pertence aa diretora”.
Mais caprichosos, alguns exageram e ficam uma semana com o “a” na boca
(“pertence aaaaaa diretora”). Nada disso. Lê-se esse “à” como se lê “a” ou “há”. Na
boca, o som é o mesmo.

E que relação a crase tem com a ponte? Você já deve ter visto na televisão uma
propaganda de uma empresa aérea que termina com a seguinte frase: “A ponte que
liga (ou “une” – não lembro) preço à qualidade”. Que tal o acento grave? Pense

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comigo. Parece que a ponte liga ou une x a y. Quem são x e y? Preço e qualidade,
dois substantivos, isto é, duas palavras de mesma natureza.

Existe, em língua, um processo chamado simetria, paralelismo. Ou se coloca artigo


para os dois substantivos, ou não se coloca para nenhum. Ao empregar o acento
grave antes de “qualidade”, o redator fundiu preposição e artigo, ou seja, empregou
o artigo para “qualidade”. E onde está o artigo para “preço”? O gato comeu.

Moral da história: “A ponte que une o preço à qualidade” ou “A ponte que une preço
a qualidade”. É isso.

Fonte
CIPRO NETO, P. Inculta e bela. São Paulo: Publifolha, 2001.

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