Você está na página 1de 4

ROF 107 Abr/Jun 2013

MeDICAMeNtOS DeRIvADOS DO PLASMA huMANO


Os medicamentos derivados do plasma humano constituem um INDICAçÕeS teRAPÊutICAS
grupo particular e diferenciado dentro das especialidades farma- A OMS considera como medicamentos essenciais quatro hemo-
cêuticas. derivados, sendo eles: a albumina humana, que é usada no cho-
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estes medica- que hipovolémico, diálise hepática, no tratamento de grandes
mentos são constituídos por proteínas plasmáticas de interesse queimados e em terapêutica intensiva, as imunoglobulinas po-
terapêutico que não se podem sintetizar por métodos conven- liespecíficas usadas em doentes com HIV, doenças autoimunes
cionais, pelo que são obtidos de plasma de dadores humanos e os fatores de coagulação VIII e IX.
sãos, através de um processo tecnológico adequado de fracio- Além destes quatro hemoderivados de base, existem outros
namento e purificação, sendo os principais: albumina, imunoglo- hemoderivados, os quais iremos classificar como proteínas de
bulinas e fatores da coagulação (Fator VII, Fator VIII, Fator IX, coagulação, proteínas de anticoagulação e imunoglobulinas es-
além dos complexos protrombínicos).1 pecíficas, de acordo com os quadros abaixo.3
No Formulário Hospitalar Nacional de Medicamentos (FHNM),
estes medicamentos encontram-se divididos pelo Grupo 4.4.2. IMPOSIçÕeS LegAIS
(Sangue-Hemostáticos), do qual fazem parte o Fator de Von O Laboratório do Infarmed integra a Rede Europeia dos Labora-
Willebrand humano, o Fator IX de coagulação humana, o Fator tórios Oficiais de Comprovação da Qualidade dos Medicamen-
VIII de coagulação humana e o Fator VIII de coagulação humana tos, competindo-lhe, neste âmbito, proceder à libertação oficial
associado ao Fator Von Willebrand humano. No Grupo 12.6. (Cor- de lotes de medicamentos de origem biológica. Nestes medica-
retivos da volémia e das alterações eletrolíticas – substitutos do mentos incluem-se os Hemoderivados, de acordo com o Esta-
plasma e das frações proteicas do plasma) temos a albumina tuto do Medicamento (n.º 135 do Decreto-lei n.º 176/2006, de
humana e, finalmente, no Grupo 18.3 (Vacinas e Imunoglobulinas 30 de agosto), bem como as normas europeias aplicáveis “EC
– Imunoglobulinas) temos as imunoglobulinas, que são utilizadas Administrative Procedure For Official Control Authority Batch Re-
contra a hepatite B, contra a varicela, contra o antigénio D, con- lease” PA/PH/OMCL(09) 103 DEF.
tra o citomegalovírus e contra o tétano.2 O processo de libertação oficial de lotes de medicamentos de

PROteÍNAS DA COAguLAçãO
QuADRO 1. heMODeRIvADOS uSADOS PARA tRAtAMeNtO De COAguLOPAtIAS (ADAPtADO De Cgee, heMODeRIvADOS, 2006)

PRODutO INDICAçÕeS teRAPÊutICAS


Complexo Protrombínico (Fatores II, VII, IX, X) Hemofilia B; Reversão do uso de anticoagulantes; Cirrose hepática
Concentrado de Fibrinogénio Septicémia; Coagulação intravascular disseminada
Concentrado de Fator XIII Deficit congénito de Fator XIII
Concentrado de Fator VIII rico em multímeros de Fator von Willebrand Doença de von Willebrand
Concentrado de Fator de von Willebrand Doença de von Willebrand
Concentrado de Fator XI Deficit congénito de Fator XI
Concentrado de Trombina Uso na preparação da cola de fibrina
Cola de Fibrina Cola biológica para uso em cirurgias
Concentrado de Fator VII Deficit congénito de Fator VII

PROteÍNAS DA ANtICOAguLAçãO
QuADRO 2. heMODeRIvADOS À BASe De PROteÍNAS DA ANtICOAguLAçãO (ADAPtADO De Cgee, heMODeRIvADOS, 2006)
PRODutO INDICAçÕeS teRAPÊutICAS
Concentrado de Proteína C Tromboses por Deficit congénito de Proteína C
Concentrado de antitrombina III Tromboses por Deficit congénito de Proteína C; Septicémia
Concentrado de α-1 antitripsina Enfisema pulmonar por Deficit de α-1 Antitripsina

IMuNOgLOBuLINAS eSPeCÍFICAS
QuADRO 3. heMODeRIvADOS À BASe De IMuNOgLOBuLINAS eSPeCÍFICAS (ADAPtADO De Cgee, heMODeRIvADOS, 2006)

PRODutO INDICAçÕeS teRAPÊutICAS


Imunoglobulina anti-D Prevenção da doença hemolítica perinatal
Imunoglobulina anti-CMV Prevenção e tratamento da infeção por CMV
Imunoglobulina anti-hepatite B Prevenção da hepatite B
Imunoglobulina antitétano Prevenção e tratamento do tétano
Imunoglobulina antirrábica Prevenção da raiva
Imunoglobulina antivaricela Prevenção do herpes zoster
origem biológica envolve uma avaliação detalhada da documen- com a legislação em vigor, os critérios técnicos a considerar são:
tação de produção de cada lote individual e a realização dos en- 1. Passos e graus de inativação viral/remoção viral;
saios laboratoriais definidos nas normas europeias específicas 2. Medidas adotadas para reduzir a infeciosidade por priões;
para cada tipo de produto. 3. Outros tipos de segurança: (PCR para os vírus HIV, HBV, HCV,
É emitido um Certificado Oficial Europeu de Libertação de Lote HAV e B19; armazenagem à temperatura ambiente);
– COELL, reconhecido em toda a UE e no Espaço Económico 4. Número de reações adversas graves na UE nos últimos 2
Europeu, sempre que a avaliação laboratorial realizada pelo La- anos, face às unidades vendidas na UE nos últimos 2 anos,
boratório do Infarmed cumpra os requisitos legais e normativos por substância ativa/marca comercial, independentemente
aplicáveis. da dosagem;
Para a emissão de COELL, o Laboratório do Infarmed analisa os 5. Apesar de não ser um critério técnico, o preço deverá ser con-
seguintes produtos: siderado, pois o seu valor é dos mais elevados no mercado
− Albumina farmacêutico.
− Imunoglobulina Normal A aquisição dos medicamentos derivados do plasma humano é
− Imunoglobulina Anti-D (Anti-Rhesus) regulada pelo Despacho do Ministério da Saúde n.º 5/95 de 25
− Fatores de Coagulação: Fator VIII e Fator IX de janeiro, o qual foi revogado pelo Despacho n.º 28356/2008,
− Complexo de Protrombina de 13 de outubro, no que concerne à constituição da comissão
− Plasma Humano Inativado de análise de propostas. O Despacho conjunto n.º 1051/2000,
Os documentos a submeter à Direção de Comprovação de Qua- de 14 de setembro que veio revogar o Despacho n.º 11291/97,
lidade dependem se o medicamento é produzido na UE ou em de 27 de outubro, determinou a obrigatoriedade de identificar e
país com acordo de reconhecimento mútuo em vigor, ou se o registar todos os medicamentos hemoderivados prescritos e ce-
medicamento é proveniente de país terceiro. didos em meio hospitalar, em impresso próprio para o efeito, mo-
Juntamente com os documentos, terão de ser submetidas amos- delo n.º 1804 da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM).8­‑11
tras à Direção de Comprovação nas seguintes quantidades: Para finalizar, parece­‑me oportuno deixar algumas normas bási-
− Concentrados de fatores de coagulação, concentrados de ini- cas e precauções, que se devem verificar na administração des-
bidores plasmáticos e colas de fibrina: 4 amostras do produto tes produtos:
acabado • Com a administração endovenosa, podem verificar­‑se reações
− Restantes produtos: 3 amostras do produto acabado.4,5 ligadas à velocidade de perfusão. Devido ao elevado conteúdo
Sendo o plasma humano a matéria­‑prima para a obtenção dos proteico, poderá haver reações anafilatóides.
diversos hemoderivados utilizados na clínica, há uma natural e • As reações anafiláticas específicas (reação de hipersensibilida-
importante preocupação dos produtores destes medicamentos de) podem ocorrer.
com a transmissão de agentes infetocontagiosos. Esta preocu- • O estado do doente deve ser vigiado durante a administração.
pação estende­‑se igualmente aos doentes e aos profissionais • Se a conservação destes medicamentos for entre 2 e 8º C,
de saúde.6,7 devem estar à temperatura ambiente antes de serem recons-
Assim, e para que seja aprovado para procedimento de fracio- tituídos e administrados. Nunca congelar. Proteger da luz.
namento, o plasma humano terá que ser testado, por intermé- • Proceder a inspeção visual para detetar mudanças de cor ou
dio de um método validado, com sensibilidade e especificidade aparição de partículas em suspensão.
adequada, para a determinação dos seguintes marcadores de • A dissolução deve ser sempre efetuada com o diluente específico.
agentes transmissores de doença: • Não misturar com outro produto.
− Antigénio HBs • Agitar suavemente.
− Anticorpo anti-HIV 1 e 2 • Utilização o mais imediatamente possível, para evitar contami-
− Anticorpo anti-HCV nação microbiana.
− Anticorpo da sífilis • Controlo cuidado e personalizado por lote.
Para garantir uma maior segurança, a indústria farmacêutica as- A utilidade dos hemoderivados é inquestionável e está a aumen-
socia a uma triagem rigorosa e documentada de todos os dado- tar em alguns casos de maneira notável (IGIV), o que se deve à
res de sangue de cada pool vários métodos de inativação viral. margem de segurança muito ampla que possuem.
Deste modo, cada empresa produtora de medicamentos hemo- As empresas fracionadoras de plasma continuam a trabalhar,
derivados utiliza os métodos de inativação viral que, nas suas tendo como objetivo o aumento da eficácia da margem de segu-
técnicas de inativação, consideram adequados. rança e investigando sobre novas indicações.
Atualmente estão disponíveis os seguintes métodos de inativa- É praticamente impossível que as tecnologias alternativas pos-
ção viral por: sam substituir na sua totalidade a dos derivados plasmáticos.
− pH ácido
Florbela Braga
− Enzimas IPOPFG EPE
− Solvente/detergente
Referências bibliográficas
− Pasteurização   1. Blood safety and availability. WHO, Fact sheet nº 279, jun 2012.
  2. Formulário Hospitalar Nacional de Medicamentos, 9ª edição, Lisboa, Infarmed, 2006.
Dado que cada um dos métodos de inativação viral tem grande   3. Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Hemoderivados, março 2006. [acedido a
capacidade de remoção de partículas virais, a seleção do método 25.10.2012] Disponível em: www.anbio.org.br/pdf/2/tr07_hemoderivados.pdf.
  4. Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto. Estatuto do Medicamento.
a usar será de acordo com a morfologia de cada vírus. A eficácia   5. Normas europeias aplicáveis (EC Administrative Procedure For Official Control Authority
Batch Release” PA/ PH/OMCL (09) 103 DEF).
de cada método varia de acordo com os vírus, por exemplo:   6. Guideline on plasma-derived medicinal products, 21 July 2011. EMA. [Acedido a 1.07.2013]
Disponível em: http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scientific_guide-
− Pasteurização: é muito eficaz na maioria dos vírus com e sem line/2011/07/WC500109627.pdf.
cápsula lipídica.   7. Carbone J. Adverse reactions and pathogen safety of intravenous immunoglobulin. Current
Drug Safety. 2007; 2(1):9-18.
− Solvente/Detergente: muito eficaz frente aos vírus encapsu-   8. Despacho do ministro da Saúde n.º 5/95, 25 de janeiro. Aquisição de produtos derivados
do plasma humano.
lados, mas não afeta os vírus sem cápsula como o vírus da   9. Despacho n.º 28356/2008, 13 de outubro. Aquisição de produtos derivados do plasma
hepatite A (VHA) e o parvovírus B19 (VB19). humano.
10. Despacho conjunto n.º 1051/2000, 14 de setembro. Registo de medicamentos derivados
− pH Ácido: não afeta os vírus resistentes como enterovírus, do plasma.
11. Resolução do Conselho de Ministros n.º 14/2009, 3 de fevereiro de 2009. Aquisição de
VHA, VB19 e determinados vírus encapsulados. medicamentos hemoderivados.
Para uma maior garantia de segurança na diminuição do risco de Links de interesse
transmissão de agentes infeto­contagiosos, é aplicada a combina- http:/www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MONITORIZACAO_DO_MERCADO/
COMPROVACAO_DA_QUALIDADE/CAUL
ção dos diversos métodos de inativação atualmente conhecidos. http:/www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MONITORIZACAO_DO_MERCADO/
COMPROVACAO_DA_QUALIDADE/COELL
No final, estes produtos devem reunir três premissas essenciais: http:/www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MONITORIZACAO_DO_MERCADO/
eficácia terapêutica, tolerância clínica e segurança viral. 7 COMPROVACAO_DA_QUALIDADE/CAUL/MED_DRIV_SANGUE_PLASMA_HUMANO
http:/www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MONITORIZACAO_DO_MERCADO/
Na aquisição centralizada nacional destes produtos, de acordo COMPROVACAO_DA_QUALIDADE/COELL/MED_DRIV_SANGUE_PLASMA_HUMANO)
ROF 107 Abr/Jun 2013
Boletim do CIM

Segurança e Desempenho dos Produtos


Fronteira
Uma das premissas da legislação é garantir aos cidadãos que Figura 1: Processo de Qualificação de Produtos de Saúde
os produtos que se encontram disponíveis no mercado sejam
Processo de Qualificação
seguros e tenham um desempenho adequado e concordante
com as reivindicações que apresentam.
Na área da saúde, independentemente do enquadramento Não Finalidade Sim
regulamentar do produto em causa, esta premissa assume a Médica

máxima relevância. Quer se trate de um medicamento, dispo- Outros Dispositivo Médico


Dados Científicos ou Medicamento
sitivo médico, biocida, cosmético ou outro, a sua conceção, • Biocidas
• Software
desenvolvimento e fabrico devem garantir que, aquando da • Cosméticos
• Máquinas
sua utilização, não comprometam o estado clínico nem a se- • EPI
Não Principal Modo de Ação Sim
gurança dos doentes, bem como a segurança e a saúde dos • Produtos de Consumo
• Produtos Milagre
Farmacológico
Metabólico
utilizadores, ou eventualmente de terceiros. Devem, também, Imunológico
Dispositivo Medicamento
ser eficazes, ou seja, desempenharem as funções que reivin- Médico Dados Científicos
dicam de acordo com as especificações que presidiram à sua
conceção.
Quadro 1: Exemplos de DMs que têm como parte
Verifica-se, no entanto, que os procedimentos disponíveis para
integrante uma substância que isoladamente se considera
presumir e avaliar a conformidade regulamentar em termos de
um medicamento
segurança e eficácia/desempenho* variam com a legislação
aplicável.1-6 Apesar do recurso a técnicas legislativas e nor- – Stents medicados;
mativas diferentes, os procedimentos previstos adequam-se – Cimento ósseo com antibiótico;
sempre aos riscos inerentes ao produto e decorrentes da sua – Material de penso impregnado com antibiótico ou outras
utilização. Desta forma, e independentemente da qualificação substâncias antimicrobianas;
dada, existe sempre uma avaliação prévia à colocação no mer- – Catéteres revestidos com heparina;
cado que, no caso dos produtos de maior risco, envolve, além – Soluções de preenchimento cutâneo que incorporam anesté­
sicos locais;
do fabricante, a intervenção de uma entidade avaliadora exter-
– Preservativos com espermicida;
na. Enquanto para os medicamentos essa entidade se espelha – Dispositivos intrauterinos com cobre ou prata.
na figura do Estado (Autoridade Competente), no caso dos dis-
positivos médicos o avaliador externo é uma das cerca de 80
entidades independentes, designada por um Estado-membro, pré-clínica e clínica. No caso dos DMs de classe III, é obrigató-
para realizar as atividades de avaliação da conformidade no ria a condução de investigações clínicas em seres humanos, a
âmbito das Diretivas Europeias (Organismo Notificado).7 não ser que seja justificado adequadamente pela confirmação
Quer para os Cosméticos (que por lei são considerados se- de dados clínicos previamente existentes, nomeadamente
guros), quer para os dispositivos médicos (DM) de baixo risco obtidos através da documentação que suporta a equivalência
(classe I), a avaliação da conformidade é apenas da responsa- clínica, técnica e biológica com outro DM já colocado no mer-
bilidade do fabricante, o qual os deve notificar, previamente à cado. Do dossiê faz ainda parte um parecer emitido por uma
sua colocação no mercado, junto do Estado-membro em que Autoridade Competente dos medicamentos, ou pela EMA, em
está sediado para fins de fiscalização. No caso dos cosmé- matéria de qualidade, segurança e utilidade do medicamento,
ticos, com a publicação do novo Regulamento8 a notificação incluindo o perfil clínico benefício-risco da sua incorporação no
passou a ser centralizada a nível europeu. dispositivo.
Os DMs podem, ainda, ser destinados à administração de
A Delimitação da Fronteira Regulamentar: medicamentos. No entanto, aplica-se a legislação dos medi-
Qualificação e Avaliação da Conformidade camentos sempre que sejam colocados no mercado, de tal
Nem sempre é fácil delimitar a fronteira regulamentar. A finalida- forma que o dispositivo e o medicamento constituam um úni-
de médica, suportada na evidência técnica e científica, permite co produto integrado, destinado a ser utilizado nessa associa-
distinguir os DMs e os medicamentos dos outros produtos. En- ção e que não possa ser reutilizado (ex: seringas pré-cheias
tre si, medicamentos e DMs distinguem­‑se com base no meca- e nebulizadores pré-carregados com medicamento, sistemas
nismo de ação que fundamenta o principal efeito pretendido no transdérmicos para administração de medicamentos, disposi-
corpo humano. Nos DMs esse efeito não pode ser alcançado tivos intrauterinos destinados à libertação de progesterona,
por ações farmacológicas, imunológicas ou metabólicas, uma implantes contendo medicamentos numa matriz polimérica
vez que estas presidem ao desempenho dos medicamentos cujo principal efeito é a libertação do medicamento, etc.). Con-
(Figura 1). trariamente, se o dispositivo, destinado à administração de
No entanto, os DMs podem incluir, como parte integrante, uma um medicamento for colocado no mercado de forma individua­
substância que, quando utilizada separadamente, se considera lizada, então aplica-se a legislação dos DMs (ex: bombas de
um medicamento, desde que o seu efeito seja acessório ao infusão, nebulizadores, câmaras expansoras). Dependendo da
principal modo de ação (ver exemplos no Quadro 1). classificação de risco na avaliação intervirá, ou não, um ON.
A legislação classifica estes dispositivos na classe de risco Realce-se, contudo, que mesmo na classe de risco mais baixa
mais elevada (classe III) exigindo, assim, que um Organismo (classe I), se o dispositivo apresentar uma função de medição,
Notificado (ON) avalie de forma pormenorizada o dossiê téc- ou for estéril, existe a obrigatoriedade da intervenção do ON
nico e científico da conceção do produto. Este dossiê integra na avaliação dessas características por serem consideradas
toda a informação relevante quanto à conceção, fabrico e ca- críticas (ex: sistemas de perfusão, seringas graduadas sem
racterísticas do produto, sublinhando-se os dados de avaliação agulha acoplada, colheres para medição, etc.).
Casos de Dúvida Regulamentar Resolvidos e ção consensual ou maioritária, dando consequentemente origem
Outros por Resolver à introdução de um novo parecer no Manual, existem outros para
Apesar de as definições e âmbitos de aplicação estarem esta- os quais se torna difícil atingir um entendimento harmonizado.
belecidos legalmente e da existência de diferentes documen- Na actual revisão do quadro legislativo encontram­‑se em dis-
tos orientadores para a sua adequada implementação9­‑13 exis- cussão propostas que pretendem resolver alguns destes ca-
tem muitas situações em que se coloca a dúvida regulamentar sos, como seja a adequada classificação e avaliação dos dispo-
quanto à adequada qualificação de um produto, conduzindo a sitivos destinados a ser ingeridos, inalados ou administrados
longos processos de discussão a nível europeu. retal ou vaginalmente.
Para muitos casos, existem argumentos técnicos e científicos
que fundamentam a discussão, como por exemplo acontece Conclusão
com as soluções viscoelásticas de hialuronato de sódio, as quais A segurança e o desempenho/eficácia dos produtos de saúde são
substituem o líquido sinovial a nível articular. O principal efeito aspetos centrais da legislação europeia e nacional, independente-
parece ser exercido através de uma ação mecânica (lubrificação), mente da sua qualificação regulamentar. O legislador preocupa­‑se
o que conduz à sua qualificação enquanto DM. No entanto, tam- em adaptar os requisitos legais, os procedimentos de avaliação
bém se pode evidenciar as suas propriedades anti­‑inflamatórias de conformidade e as regras para a colocação no mercado aos
e, nesse caso, deve ser qualificado como medicamento. riscos inerentes ao produto e/ou decorrentes da sua utilização.
A situação supra mencionada tem permitido a colocação no Neste contexto, em teoria, não existem legislações fortes ou fra-
mercado de produtos com estatuto regulamentar diferente, cas quando nos referimos à garantia da segurança e do desem-
mas com composição e finalidade semelhantes. penho. É também por este motivo que a qualificação regulamen-
Nos pensos com nanopartículas de prata ou com antibiótico, tar de um produto de saúde não é determinada pelo risco que lhe
será importante avaliar se o principal efeito pretendido é exer- está associado, mas sim pela finalidade e mecanismos através
cido pelo agente antimicrobiano, ou através do controlo do dos quais exerce a sua principal ação no corpo humano.15­‑17
microambiente da ferida desenvolvido pelo material polimérico
que constitui o penso. Maria Judite Neves
Farmacêutica
Os cremes com óxido de zinco, destinados à prevenção e tra- Directora da Direção de Produtos de Saúde do INFARMED, I. P.
tamento da pele lesada, tal como em situações de queima-
dura, eczema, cortes, etc., podem ser qualificados como DM
ou como medicamento. Segundo a literatura, o óxido de zinco Nota:
* Na legislação dos medicamentos, o termo utilizado é eficácia, enquanto na dos DMs
tem ação farmacológica e metabólica demonstrada, uma vez é desempenho funcional. O termo está adaptado às características gerais dos produ-
que intervém nos processos enzimáticos de cicatrização das tos cobertos.
feridas. No entanto, esta ação pode ser considerada acessó-
ria, caso o fabricante do produto demonstre que o principal
efeito pretendido no corpo humano é o efeito barreira. Neste Referências bibliográficas
  1. Diretiva n.º 2011/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de novembro de
caso, o creme é considerado um DM. 2001. Jornal Oficial das Comunidades Europeias. L 311/67 (28.11.2001).
Na discussão torna­‑se, portanto, essencial a avaliação da nature-   2. Diretiva n.º 93/42/CEE do Conselho de 14 de junho de 1993. Jornal Oficial das Comunida-
des Europeias. L 169 (12.07.93) 0001­‑0047.
za principal ou acessória da ação farmacológica, imunológica ou   3. Diretiva n.º 90/385/CEE do Conselho de 20 de junho de 1990. Jornal Oficial das Comuni-
metabólica do próprio produto ou do medicamento incorporado. dades Europeias. L 189 (20.07.90) 0017­‑0036.
  4. Diretiva n.º 98/79/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de outubro de 1998.
Mas no mercado existem também cremes com óxido de zin- Jornal Oficial. L 331 (07.12.1998) 0001­‑0037.
co qualificados como cosméticos destinados, por exemplo, à   5. Diretiva n.º 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976. Jornal Oficial n.º L 262/169
de 27/09/1976 (27.9.76) 0169 – 0200.
proteção da pele contra as assaduras da fralda ou como pro-   6. Diretiva n.º 98/8/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de fevereiro de 1998.
tetores solares. Neste último caso, o óxido de zinco (nanopar- Jornal Oficial. L 123 (24.4.1998) 0001–0063.
  7. European Commission – Enterprise & Industry – Notified Bodies – NANDO. Disponível
tículas) não pode exceder a concentração de 25%. em: http://ec.europa.eu/enterprise/newapproach/nando/index.cfm?fuseaction=directive.
As soluções para lentes de contato (desinfeção, lubrificação, lava- main [acedido a 15­‑05­‑2013].
  8. Regulamento (CE) n.º 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho de 30 de no-
gem e/ou hidratação), sendo consideradas acessórias de um DM vembro de 2009. Jornal Oficial da União Europeia. L 342/59 (22.12.200).
(as lentes de contato), são abrangidas pela legislação aplicável a   9. European Commission – DG Health & Consumers – Medical devices: MEDDEV 2.1/3 rev.3
­‑ Borderline products, drug­‑delivery products and medical devices incorporating, as integral
esses produtos de saúde, enquanto as soluções oftálmicas subs- part, an ancillary medicinal substance or an ancillary human blood derivative. December
titutas do líquido lacrimal são qualificadas como medicamento. 2009. Disponível em http://ec.europa.eu/health/medical­‑devices/files/meddev/2_1_3_
rev_3­‑12_2009_en.pdf [acedido a 15­‑05­‑2013].
Contudo, encontram­‑se no mercado soluções destinadas ao alívio 10. European Commission – DG Health & Consumers – Medical devices: MEDDEV 2.14/1
do desconforto, irritação e secura causadas por fatores ambien- rev.2 ­‑ Borderline and Classification issues. A guide for manufacturers and notified bo-
dies. January 2012. Disponível em http://ec.europa.eu/health/medical­‑devices/files/med-
tais ou simplesmente destinadas a “olhos cansados” ou “fadiga dev/2_14_1_rev2_ol_en.pdf [acedido a 15­‑05­‑2013].
ocular”. A qualificação destas soluções deverá ser apreciada caso 11. European Commission – DG Health & Consumers – Medical devices – MDEG Borderline
and Classification. Disponível em http://ec.europa.eu/health/medical­‑devices/documents/
a caso. Poderão ser consideradas DMs se o seu principal efeito borderline/index_en.htm [acedido a 15­‑05­‑2013].
for suportado em ações primariamente físicas, nomeadamente a 12. European Commission – Consumers – Policy Professionals – Cosmetics Cosmetic­‑products
– Borderline­‑products – Manual on the scope of application of the Cosmetics Directive
lubrificação dos olhos ou a lavagem ocular. No entanto, se reivin- 76/768/EEC. Disponível em http://ec.europa.eu/health/medical­‑devices/regulatory­
dicarem a substituição das lágrimas naturais, serão enquadradas ‑framework/index_en.htm [acedido a 15­‑05­‑2013].
13. European Commission – Consumers – Policy Professionals – Cosmetics Cosmetic­
como medicamentos. ‑products – Borderline­‑products – Guidance documents on “borderline products”. Disponí-
Mais informação sobre estes e outros casos de qualificação re- vel em http://ec.europa.eu/consumers/sectors/cosmetics/cosmetic­‑products/borderline­
‑products/ [acedido a 15­‑05­‑2013].
gulamentar poderá ser encontrada no Manual on Borderline and 14. European Commission – DG Health & Consumers – Medical devices: Regulatory frame-
Classification in the Community Regulatory Framework for Me- work. Disponível em http://ec.europa.eu/health/medical­‑devices/regulatory­‑framework/
index_en.htm [acedido a 15­‑05­‑2013].
dical Devices.14 No entanto, os pareceres incluídos neste docu- 15. Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on medical devi-
mento apenas apresentam um caráter informativo, ou seja, não ces, and amending Directive 2001/83/EC, Regulation (EC) No 178/2002 and Regulation
(EC) No 1223/2009. Brussels, 26.9.2012. Disponível em http://ec.europa.eu/health/
têm valor de lei. Cabe ao Tribunal de Justiça da União Europeia medical­‑devices/files/revision_docs/proposal_2012_542_en.pdf [acedido a 15­‑05­‑2013].
interpretar a legislação comunitária e decidir, em última instância 16. DS 1256/13. Proposal for a Regulation from the United Kingdom delegation regarding in
vitro diagnostic medical devices. Brussels, 5 April 2013. Unpublished.
e de forma vinculativa, a qualificação regulamentar do produto. 17. DS 1232/13. Proposal for a Regulation on Medical devices from the Portuguese delega-
Embora para alguns casos os peritos consigam alcançar uma posi- tion regarding ingested medical devices. Brussels, 26 March 2013. Unpublished.

BOLETIM DO CIM ­‑ Publicação trimestral de distribuição gratuita da Ordem dos Farmacêuticos Director: Carlos Maurício Barbosa Conselho Editorial: Aurora
Simón (editora); Clementina Varelas; Francisco Batel Marques; J. A. Aranda da Silva; M.ª Eugénia Araújo Pereira; Paula Iglésias; Rodrigo Campos; Rui Pinto;
Sérgio Simões; Teresa Soares. Os artigos assinados são da responsabilidade dos respectivos autores.

Você também pode gostar