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Obras literárias para

vestibular medicina
4ª edição • São Paulo
2019

L C LINGUAGENS, CÓDIGOS

1
e suas tecnologias
Análise das obras literárias da Fuvest
ENTRE ASPAS Lucas Limberti
© Hexag Sistema de Ensino, 2018
Direitos desta edição: Hexag Sistema de Ensino, São Paulo, 2019
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Lucas Limberti

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Projeto gráfico e capa


Raphael Campos Silva

Foto da capa
pixabay (http://pixabay.com)

Impressão e acabamento
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ISBN: 978-85-9542-134-9

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PREFÁCIO

FUVEST APRESENTA NOVA LISTA DE OBRAS PARA 2020


Vestibular volta ao Barroco como ponto de partida para sua nova lista

A prova de Literatura para ingresso na Universidade de São Paulo chega com nove obras literárias em sua
lista de leituras obrigatórias. Partindo do Barroco, abre mão dos românticos até chegar na literatura que se produz
atualmente. O vestibular cobrará romances, poemas, contos e diário, num percurso em gêneros que, como de cos-
tume nesta prova, tem o romance como seu gênero mestre.
Neste primeiro caderno do “Entre Aspas”, seguiremos cronologicamente a lista até o século XIX, come-
çando com os Poemas escolhidos, de Gregório de Matos – uma escolha bem interessante que leva o aluno aos
primórdios da produção literária no Brasil, com o nosso primeiro grande poeta: o irreverente “Boca do Inferno”.
Na sequência, temos o único romance da Literatura portuguesa, que é A relíquia, de Eça de Queirós, pu-
blicada em 1887. De sua segunda fase, o realismo agudo, Eça aprofunda sua verve anticlericalista deflagrando as
hipocrisias e interesses sociais, sobretudo com o espólio e o arrivismo social.
Aluísio Azevedo continua na lista com O cortiço, de 1890, que “chafurda” na realidade da pobreza e da
vida humana em seus aspectos mais ásperos. Influenciado pelas teorias cientificistas em voga, vai criar o chamado
romance de tese, onde o meio será preponderante na constituição dos sujeitos, imersos sempre num círculo depre-
ciativo da vida.
Machado de Assis – o Bruxo do Cosme Velho – não poderia ficar de fora da lista, aliás, qualquer lista de
vestibular que se preze terá ali elencada alguma obra de um dos mais geniais escritores da Literatura mundial. No
caso, Quincas Borba, seu segundo romance realista, conta a história de Rubião que irá vivenciar as premissas do
famoso filósofo louco – Quincas Borba –, que como é de conhecimento de todos já aparece na obra anterior (1881),
Memórias póstumas de Brás Cubas, que saiu da lista.
Seguindo as orientações e as análises propostas neste volume especial do “Entre Aspas”, tenho certeza de
que os estudantes darão conta de entender o processo constitutivo desta lista contundente e interessante!

Boas leitura e análise!


Lucas Limberti
SUMÁRIO
ENTRE ASPAS
ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS
Obra 1: Poemas escolhidos - Gregório de Matos Guerra 7
Obra 2: A Relíquia - Eça de Queirós 23
Obra 3: O Cortiço - Aluísio Azevedo 33
Obra 4: Quincas Borba - Machado de Assis 55
0 1 Poemas escolhidos

Gregório de Matos Guerra

L C
ENTRE
ASPAS
Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno
O primeiro poeta
O irreverente escritor Gregório de Matos é considerado o primeiro e o maior
poeta barroco brasileiro e um dos fundadores da poesia lírica e satírica em nosso país.
Nasceu em Salvador no ano de 1633, estudou no Colégio dos Jesuítas.
Ao terminar o curso em 1652, Gregório de Matos foi para Portugal na cida-
de de Coimbra, onde se laureou em Direito, tornou-se juiz e ensaiou seus primeiros
poemas satíricos. Depois de formado, exerceu o cargo de curador de órfãos e de juiz
de Alcácer do Sal, no Alentejo. No ano de 1678, ficou viúvo e solicitou ao arcebispo
da Bahia voltar ao Brasil, uma vez que seus poemas incomodavam muitas pessoas de
importância e poder em Portugal. O clima não era dos melhores, uma vez que a acidez
de seu verso já contaminava a ira de seus opositores.
No ano de 1681, Gregório voltou ao Brasil, sua terra natal, Salvador, onde exerceu os cargos de tesoureiro-mor
e de vigário-geral. Embora não fosse padre, o arcebispo dom Gaspar Barata tornou-o vigário-geral da Bahia. Como o
escopo era de ocupar o cargo de tesoureiro-mor da Sé, foi uma maneira de tentar projetar maior compostura ao poeta
bacharel, já que sua “língua de trapo” incomodava a muitos e, claro, terríveis inimigos.
Um adendo importante é que nosso poeta jamais almejou ser padre e sempre se recusou a vestir-se como cléri-
go. Foi perseguido pelo governador baiano Antônio de Souza Menezes, o Braço de Prata, por conta da força satírica de
sua poesia que não poupava ninguém. Depois de casar-se com Maria dos Povos e exercer a função de advogado, saiu
pelo recôncavo baiano como cantor itinerante, um poeta mambembe que se dedicou às sátiras e aos poemas eróticos
repletos de ironia, o que lhe custou alguns anos de exílio em Angola. Destituído em além-mar, direto da África, Gregório
de Matos tornou-se conselheiro do governo, e como recompensa por serviços prestados obteve autorização para voltar
ao Brasil. Porém, vale lembrar que ele foi proibido de pisar novamente em Salvador, e seu destino não foi mais para a
Bahia. Em 1694, voltou e foi viver no Recife, em Pernambuco, longe das perseguições que lhe moviam na Bahia, embora
proibido judicialmente de fazer suas sátiras. Voltou doente ao Brasil e morreu em Recife.
“De que pode servir calar, quem cala nunca se há de falar, o que se sente? Sempre se há de sentir, o que se
fala!”. (GMG)
Ao contrário do padre Antônio Vieira, outra figura do Barroco que povoou o Nordeste brasileiro, Gregório foi de
encontro a uma tendência generalizadora da época, escreveu sobre a religião, os costumes, fazendo uma reflexão moral
de caráter irônico e sarcástico. Convivem em seus poemas o sentimento de sensualismo, erotismo e paixão idealizada.
Do ponto de vista formal, sua estética reteve o gosto pelo jogo de palavras e das brincadeiras semânticas e polissêmica,
além da progressão semântica lírica de caráter cultista em muitos dos poemas.

Cronologia biográfica

O poeta Gregório de Matos viveu durante o ciclo a cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro, especificamente
em Salvador (BA), e fez parte da elite que ele mesmo negou ao se indignar com o atraso da sociedade patriarcal
brasileira, depois de voltar de Portugal e de seus estudos de Direito.

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Ele nada publicou em vida e, após a sua morte, §§ 1652 – matriculou-se, por incentivo de seu pai,
seus manuscritos foram reunidos em um códice em que na Universidade de Lisboa;
a capa trazia o brasão da coroa portuguesa inscrito sob §§ 1661 – formou-se na universidade e se casou
a seguinte insígnia: Ineditas poezias do douto Gregorio com dona Michaela de Andrade;
de Mattos Guerra. §§ 1662 – concluiu o bacharelado, em Coimbra;
§§ 1663 – foi nomeado juiz de fora, em Alcácer do
Sal, no Alentejo;
§§ 1672 – foi nomeado procurador da cidade da
Bahia;
§§ 1674 – deixou o cargo de procurador;
§§ 1678 – ficou viúvo;
§§ 1691 – casou-se pela segunda vez, com Maria
dos Povos;
§§ 1694 – foi degredado para Angola;
§§ 1696 – Morreu em Pernambuco, depois de ser
proibido de voltar a Salvador.

O “Língua de Trapo”

Pelo fato de não ter publicado nenhuma obra


em vida, seus poemas foram transmitidos oralmente, na
Bahia, até meados do século XIX, quando então foram
reunidos em livro por Varnhagen. Antes disso, houve-
ram algumas complicações de valor discutível, pois os
copistas nem sempre seguiram critérios científicos para
realizar esse tipo de trabalho. Por isso, há controvérsias
sobre a autoria de alguns dos poemas atribuídos ao Gregório de Matos foi irreverente como pessoa e
poeta baiano e é comum os textos apresentarem algu- como poeta, ao bater de frente com os valores arcaicos,
mas variações de vocabulário ou de sintaxe, dependen- a hipocrisia social e a falsa moral da sociedade baiana
do da edição consultada. de seu tempo, com comportamentos considerados inde-
Apesar desses problemas, a obra de Gregório de corosos. Em sua produção de caráter lírico, o poeta, ao
Matos vem sendo reconhecida como aquela que, além mesmo tempo, quebrou com os modelos dos barrocos
de ter iniciado uma tradição entre nós, superou os limi- europeus e criou um modelo próprio de reflexão sobre a
tes do próprio Barroco. Em pleno século XVII, o poeta condição humana com matizes locais.
chegou a ser um dos precursores da poesia moderna Como poeta satírico, denunciou as contradi-
brasileira do século XX. ções da sociedade baiana de século XVII, criticando,
§§ 1636 – em 20 de dezembro nasceu em Salvador, sem exceção, todas as classes sociais, fosse a elite ou o
Bahia, Gregório de Matos Guerra; povo – governantes, fidalgos, comerciantes, escravos,
§§ 1650 – aos 14 anos, viajou para Lisboa; mulatos etc.

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Barroco no Brasil Marco inicial

Gregório de Matos e o
retrato crítico da Bahia

No Brasil, Gregório de Matos encontrou na sátira


a arma mais poderosa para criticar o cenário político de
sua época, o poeta ridicularizou, de forma tão debo-
chada, os políticos corruptos que governavam a Bahia, No período colonial, não havia um público leitor
que isso lhe valeu também o desterro de sua terra natal. significativo no Brasil e, entre os anos de 1720 e 1750,
Observe, no trecho abaixo, como ele critica a falta de a poesia barroca ganhou impulso com a fundação de
várias academias literárias. Estendeu-se por todo o sé-
princípios dos políticos de sua cidade.
culo XVII e início do século XVIII, e seu final se deu com
[...] a fundação da academia chamada Arcádia Ultramarina,
na política de estado em 1768, e a ascensão do movimento árcade.
nunca houve princípios certos, O marco inicial do Barroco brasileiro é 1601, ano
[...] em que o poeta português Bento Teixeira publicou, no
Eia! Estamos na Bahia, Brasil, o poema épico “Prosopopeia“, com estrofes em
onde agrada a adulação, oitava rima e versos decassílabos, tal qual Os Lusíadas,
onde a verdade é baldão, de Camões, cujo modelo ele seguiu de perto.
e a virtude hipocrisia:
sigamos esta harmonia O culto do contraste e o dualismo barroco
de tão fátua consonância,
e indo que seja ignorância
seguir erros conhecidos,
sejam-me a mim permitidos,
se em ser besta está a ganância.

MATOS, Gregório de. In: WISNIK, José Miguel [Sel. e org.]. Poemas escolhidos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 70-71.

O Barroco se constitui como uma arte cujo refle-


xo se dá nas forças contraditórias que regem o homem
deste tempo. A ideia de movimento constante entre
opostos faz do Barroco uma escola literária pautada na
angústia, no desequilíbrio, no exagero.

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O universo dualista se destaca justamente pelo §§ Metáfora: é uma figura de linguagem cujo o
contraste, pela já citada tentativa de aproximar opostos. elemento comparativo é retirado uma compara-
Por isso, o Barroco literário é, ao mesmo tempo, místico e ção implícita.
sensual, religioso e erótico, espiritual e carnal. O dualismo “Se és fogo, como passas brandamente?
ocasiona nas manifestações barrocas um conflito entre o Se és neve, como queimas com porfia?“
homem e o mundo. Para traduzi-lo, os recursos da lingua-
gem figurada mais utilizados são antíteses, metáforas, §§ Antítese: jogo de palavras opostas, característi-
sinestesias e hipérboles. Leia o trecho a seguir e perceba ca básica do Barroco, como “noite” e “dia”.
o contraste entre dia e noite, entre luz e sombra, entre o “Nasce o sol e não dura mais que um dia”
nascer e morrer e entre a tristeza e a alegria: §§ Hipérbole: figura de linguagem cujo exagero
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, é a base das comparações. Característica muito
Depois da luz, se segue a noite escura, presente no Barroco.
Em tristes sombras morre a formosura, “É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Em continuas tristezas a alegria Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Rebuscamento formal e Airosa rompe, arrasta presumida.”
detalhismo seiscentista §§ Prosopopeia ou personificação: personi-
ficação de seres inanimados para dinamizar a
realidade. Observe um trecho escrito pelo padre
Antonio Vieira:
“No diamante agradou-me o forte, no cedro o
incorruptível, na águia o sublime, no Leão gene-
roso, no Sol o excesso de Luz.”

Soneto fusionista

Um dos aspectos importantes ao analisar a poe-


Linguagem sia barroca de Gregório de Matos é atentar para o con-
ceito do soneto fusionista. Sobretudo por conta da re-
É interessante pensar na linguagem que Gregó- lação entre forma e conteúdo revelam aspectos da arte
rio de Matos imbrica em sua poesia; sua tenacidade e e da sociedade seiscentista baiana. A primeira questão
pesquisa vão em busca de criar e legitimar a cultura bra- se dá no âmbito da progressão semântica em que os
sileira por intermédio de processo criativo que aglutina 14 versos se estruturam do ponto de vista temático em:
ao código da língua portuguesa vocábulos indígenas e §§ Tese: apresentação de um tema específico.
africanos, além de palavras de baixo calão, palavrões e §§ Antítese: apresentação de uma progressão se-
léxico oriundo do erotismo. mântica contraditória em relação ao proposto na
Outras características técnicas do ponto de vista tese.
da linguagem podem ser elencadas a fim de entender a §§ Síntese: a conclusão que representa uma fusão
maneira com que o poeta Gregório de Matos lida com o entre os aspectos contrários anteriormente apre-
manejo da palavra. Veja: sentados.
§§ Paradoxo: aspecto da linguagem que apresen- As obras barrocas revelam grande atenção de
ta ideias contrárias num só pensamento. seus artistas aos detalhes. Nas artes plásticas, configu-
“Ardor em firme Coração nascido; ra-se no excesso de ornamentação. Na literatura, tradu-
pranto por belos olhos derramado; z-se pela exploração dos jogos de palavras, pelo uso de
incêndio em mares de água disfarçado; figuras de linguagem, pelas sutilezas de raciocínio.
rio de neve em fogo convertido.“

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Dependendo da forma como explora o rebuscamento formal e o raciocínio lógico, o Barroco literário se
classifica em estilos cultista e conceptista.
O estilo cultista ou cultismo, muito influenciado pelo poeta espanhol Luis de Gongora (1561-1627), é carac-
terizado pela linguagem rebuscada, culta, extravagante que supervaloriza o uso de metáforas e hipérboles; e pela
valorização dos jogos. O poema a seguir é um exemplo do emprego do estilo cultista:
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Em todo sacramento esta deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em parte todo,
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.
O estilo conceptista ou conceptismo valoriza o raciocínio lógico, racionalista. A ideia é exposta por meio de
conceitos, analogias, histórias paralelas que facilitam o entendimento.

Poemas escolhidos
A obra é uma coletânea de poema escolhida pelo professor
José Miguel Wisnik nos anos 1970, todavia ganha nova roupagem
com uma nova visita ao livro pelo seu próprio organizador. Os me-
lhores poemas de Gregório de Matos nas diversas modalidades que
cultivou, como é o caso da satírica, a encomiástica, a lírica amorosa
e a religiosa.

Estrutura
Vale atentar para a maneira com que os poemas são organiza-
dos no livro para entender a lógica produtiva de Gregório de Matos:
§§ poesia de circunstância
–– Satírica
–– Encomiástica
§§ poesia amorosa
–– Lírica
–– Erótico-irônica
§§ poesia religiosa

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Características foram traços que contribuíram para o “abrasileiramen-
to” do Barroco importado da Europa.
O crítico social mordaz, que aponta a sociedade
Poesia lírica filosófica
de competição, em que vence quem for mais esperto e/
A lírica filosófica de Gregório de Matos evidência ou desonesto, apresenta-se no soneto a seguir trans-
um poeta que, tal qual os clássicos, transmite um forte crito, que vem precedido da seguinte expedição: “Con-
senso do “desconcerto do mundo” e preocupa-se com templando nas coisas do mundo desde o seu retiro, lhe
a transitoriedade da vida, o escoamento do tempo e a atira com seu ápage, como quem a nado escapou da
fragilidade do ser humano, como se pode perceber no tormenta”.
soneto que segue.
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
À instabilidade das coisas no mundo Quem mais limpo se faz, tem mais carepa
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
Depois da luz se segue a noite escura, O velhaco maior sempre tem capa.
Em tristes sombras morre a formosura,
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Em contínuas tristezas, a alegria.
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa:
Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Quem menos falar pode, mais increpa:
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia? A flor baixa se inculca por tulipa:
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mas no Sol, e na Luz falta a firmeza,
Na formosura não dê Constância, Mais isento se mostra o que mais chupa.
E na alegria sinta-se a tristeza, Para a tropa do trapo vazo a tripa,
Começa o mundo enfim pela ignorância, E mais não digo, porque a musa topa
E tem qualquer dos bens por natureza. Em apa, epa, ipa, opa, upa.
A firmeza somente na inconstância.
(In: MATOS, Gregório de. Obra completa. São Paulo: Cultura, 1943.)
ápage: desaprovação raiva
increpa: censura
carepa: caspa sujeita
Esse soneto exemplifica, pelo tema desenvolvi- inculca: finge, insinuas
do, o estado transitório da condição humana. Ao longo vil: reles, ordinário
do poema, repete-se a utilização da antítese, pela apro- garlopa: trabalhador braçal
ximação de duas ideias naturalmente opostas. decepa: destrói

Na segunda estrofe, o elemento comum a todos “Para a tropa do trapo vazo a tripa” é uma ex-
os versos é o ponto de interrogação, que representa não pressão idiomática que se aproxima de “não quero mais
só o questionamento do eu poético como também sua
dar importância a esse bando de miseráveis”.
perplexidade diante do mistério insolúvel do Universo.
(In: WISNIK, José Miguel (Org.). Gregório de Matos.
Essa visão de mundo corresponde à da arte bar-
Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Cultrix, 1976.)
roca, que vê o homem como um ser instável diante da
realidade que lhe faz apelos opostos, ora dirigidos aos No poema a seguir, Gregório de Matos criti-
sentidos, ora dirigidos ao espírito. ca, de forma impiedosa, a incompetência, a promis-
cuidade e a desonestidade. O poema vem procedi-
Poesia satírica do da seguinte explicação: “Torna a definir o poeta
os maus modos de obrar na governança da Bahia,
A crítica aos mais variados aspectos do sistema principalmente naquela universal fome, que padecia
e do poder fez de Gregório de Matos o poeta maldito. A
a cidade”.
capacidade de provocação aos políticos e a ridiculariza-
ção dos que viviam para bajular e louvar os poderosos,

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Epílogo No entanto, no caso de Gregório de Matos a “so-
Que falta nesta cidade?..... Verdade. ciedade absurda” é real, pois é a Bahia onde ele vive e,
Que mais por sua desonra?..... Honra. pela lógica aplicada, inverte-se o conceito apreendido.
Falta mais que se lhe ponha?..... Vergonha. Logo, tanto uma como outra são consideradas
absurdas, em que o impasse é o da realidade histórica,
O demo a viver se exponha,
um mesmo local, duas Bahias: uma “normal”, que é vis-
Por mais que a fama a exalta,
ta com ar nostálgico, e outra “absurda” e amaldiçoada.
Nesta cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
[...] Poesia encomiástica
E que justiça a resguarda?..... Bastarda. Gregório de Matos escreveu também poemas
É grátis distribuída?..... Vendida. laudatórios, ou seja, de elogio. Chamados também de
Que tem, que a todos assusta?..... Injusta. poemas de circunstância (festas, homenagens, fatos
Valha-nos Deus, o que custa corriqueiros). Um exemplo é o poema em homenagem
O que El-Rei nos dá de graça, ao desembargador Belchior da Cunha Brochado:
Que anda a justa na praça
Bastarda, vendida, injusta.
[...]
O açúcar já se acabou?..... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?..... Subiu.
Logo já convalesceu?..... Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece,
Cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, morreu.
A câmara não acode?..... Não pode.
Pois não tem todo o poder?..... Não quer. O elemento lúdico, o típico jogo de palavras do
É que o governo a convence?..... Não vence. Barroco é a marca predominante do texto. Em cada um
Quem haverá que tal pense, dos pares de versos, há terminações das palavras em
Que uma câmara tão nobre, comum, Como exemplo: primeira palavra do primeiro
Por ver-se mísera e pobre, verso: douTO; primeira palavra do segundo verso: reTO.
Não pode, não quer, na vence. Tal lógica justifica o inusitado uso da palavra nos
(In: DIMAS, Antônio. Gregório de Matos. São Paulo: Abril Educação, 1981.) espaços em branco do papel. A orientação de leitura
deve seguir a lógica tradicional, por exemplo, os dois
Num ritmo de perguntas e repostas, o verso se
estrutura bem aos modelos da tradição oral. O espaço é primeiros versos devem ser lidos da seguinte forma:
a Bahia em que o eu poemático critica os desmandos de Douto, prudente, nobre, humano, afável,
sua cidade, a degradação moral e religiosa, bem como
Reto, ciente, benigno e aprazível
o aspecto econômico. Os oportunistas da sociedade são
os detentores do poder político e econômico, enquanto
os trabalhadores honestos encontram-se na pobreza. Poesia erótica
Conforme explica o professor José Wisnik – or-
ganizador do livro escolhido para a análise –, o poe- Este tipo de poema também pode ser classifica-
ma satírico de Gregório de Matos é marcado por essa do de poesia profana, em que o poeta exalta a sensua-
cizânia entre uma sociedade do homem bem nascido, lidade e tenacidade dos amantes na Bahia, além dos
dita “normal” e outra, considerada “absurda” que é escândalos sexuais envolvendo as personagens que
composta por pessoas oportunistas, mas que estão ins-
existiam nos conventos de Salvador.
taurados no poder.
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Necessidades forçosas da Natureza Humana A Jesus Cristo Nosso Senhor

Descarto-me da tronga, que me chupa, Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Corro por um conchego todo o mapa, Da vossa alta clemência me despido;
O ar da feia me arrebata a capa, Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
O gadanho da limpa até a garupa.
Se basta a vos irar tanto pecado,
Busco uma freira, que me desentupa
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
A via, que o desuso às vezes tapa, Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Topo-a, topando-a todo o bolo rapa, Vos tem para o perdão lisonjeado.
Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Que hei de fazer, se sou de boa cepa, Glória tal e prazer tão repentino
E na hora de ver repleta a tripa, Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Darei por quem mo vase toda Europa?
Eu sou, senhor, a ovelha desgarrada,
Amigo, quem se alimpa da carepa, Cobrai-a; e a não queirais, Pastor divino
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa, Perder na vossa ovelha a vossa glória.
despido: despeço
Ou faz da mão sua cachopa.
delinquido: cometido delito
empenhado: comprometido
(In: WISNIK, José Miguel (Org.). Poemas escolhidos de
Poesias líricas sacra e amorosa Gregório de Matos. São Paulo: Cultrix, 1976.)

No conjunto da obra de Gregório de Matos, a O lirismo amoroso é contraditório, fortemente


poesia lírica é idealista, às vezes emocional, às vezes marcado pela ambiguidade da mulher, vista a partir de
conceitual, mas quase sempre preocupada com a busca uma dualidade entre a matéria e o espírito. No soneto
de entender contradições, conforme ensina o professor dedicado a dona Ângela de Souza Paredes, transcritos a
Antonio Candido. seguir, o eu lírico está diante do dilema: qual a finalida-
de da beleza, se esta leva à perdição? Que papel tem o
Nesse soneto, o xeque entre as temáticas con-
anjo (a mulher admirada), se causa a desventura?
troversas da “culpa” versus “perdão” ganha formato
no soneto fusionista. O eu lírico se vale da linguagem Não vira em minha vida a formosura,
para conseguir seu perdão e salvação enfrentando o po- Ouvia falar dela a cada dia
E ouvida, me incitava e me movia
der divino. Logo, da mesma forma como o poder divino,
A querer ver tão bela arquitetura:
colocado aqui na figura de Jesus, precisa perdoar, o pe-
cador precisa pecar para poder ser perdoado. Ontem a vi, por minha desventura
O conflito de ordem espiritual é típico do período Na cara, no bom ar, na galhardia
Barroco: de um lado, o teocentrismo (Deus é o centro De uma mulher, que em Anjo se mentia
do Universo) e, por outro lado, o antropocentrismo (o De um Sol, que se trajava em criatura:
homem é o centro do universo). Matem-me, disse eu vendo abrasar-me,
Apresenta versos decassílabos (versos com dez Se esta a coisa não é, que encarecer-me
sílabas poéticas), rimas regulares, ou seja, rimas opos- Sabia o mundo e tanto exagerar-me:
tas ou interpoladas nos dois quartetos (ABBA-ABBA) e Olhos meus, disse então por defender-me,
rimas mistas nos dois tercetos (CDE-CDE). Ressalta-se Se a beleza heis de ver para matar-me,
na lírica sacra o senso do pecado, ao lado do desejo do Antes olhos cegueis, do que eu perder-me
perdão, como se pode verificar neste soneto:
(In: WISNIK, José Miguel (Org.). Poemas escolhidos de
Gregório de Matos. São Paulo: Cultrix, 1976.)

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A poesia lírico-amorosa de Gregório de Matos é construída em torno de contradições e pares de opostos,
utilizando figuras de linguagens como o oximoro, que reforça essas contradições. Porém, deve-se ter em mente
que estas contradições não se anulam e a mensagem final que o poeta passa é de que “diferença é identidade”.

No cinema
(Gregório de Mattos, 2002) – Em pleno século XVII, surge, na Bahia, o poeta Gregório de Mattos (Waly
Salomão), que com sua obra e vida trágica anuncia o perfil tenso e dividido do povo brasileiro. Com sua produção
literária, o poeta cria situações desconfortáveis aos poderosos da época, que passam a combatê-lo até transformar
sua vida em um verdadeiro inferno.

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Aprofunde seus conhecimentos
1. (Uepa) 3. (UCS) As obras literárias marcam diferentes
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, visões de mundo, não apenas dos autores,
Depois da luz se segue a noite escura, mas também de épocas históricas distintas.
Em tristes sombras morre a formosura, Reflita sobre isso e leia os fragmentos dos
Em contínuas tristezas a alegria. poemas de Gregório de Matos e de Tomás
Gregório de Matos Guerra Antônio Gonzaga.
Assinale a alternativa que contém uma carac- Arrependido estou de coração,
terística da comunicação poética, típica do de coração vos busco, dai-me abraços,
estilo Barroco, existente no quarteto acima.
abraços, que me rendem vossa luz.
a) Reflexão sobre o caráter humano da divindade.
b) Associação da natureza com a permanência da Luz, que claro me mostra a salvação,
realidade espiritual. a salvação pretendo em tais abraços,
c) Presença da irreverência satírica do poeta com
misericórdia, amor, Jesus, Jesus!
base no paradoxo.
d) Utilização do pleonasmo para reforçar a superio- (MATOS, Gregório. Pecador contrito aos pés
do Cristo crucificado. In: TUFANO, Douglas.
ridade do cristianismo sobre o protestantismo. Estudos de literatura brasileira. 4 ed. rev. e
e) Uso de ideias contrastantes com base no ampl. São Paulo: Moderna, 1988. p. 66.)
recurso da antítese.
Minha bela Marília, tudo passa;
2. (G1 ifsp) Leia o soneto do escritor barroco
a sorte deste mundo é mal segura;
Gregório de Matos.
se vem depois dos males a ventura,
Descrição da cidade de Sergipe d’El-Rei vem depois dos prazeres a desgraça.
Três dúzias de casebres remendados, Estão os mesmos deuses
Seis becos, de 1mentrastos entupidos, sujeitos ao poder do ímpio fado:
Quinze soldados, rotos e despidos, Apolo já fugiu do céu brilhante,
Doze porcos na praça bem criados. já foi pastor de gado.
(GONZAGA, Tomás António. Lira XIV. In: TUFANO,
Dois conventos, seis frades, três letrados, Douglas. Estudos de literatura brasileira. 4 ed. rev.
Um juiz, com bigodes, sem ouvidos, e ampl. São Paulo: Moderna, 1988. p. 77.)
Três presos de piolhos carcomidos,
Por comer dois meirinhos esfaimados. Em relação aos poemas, analise a veracida-
de (V) ou a falsidade (F) das proposições
As damas com sapatos de baeta,2
abaixo.
Palmilha de tamanca como frade,
Saia de 3chita, cinta de raqueta. ( ) O poema de Gregório de Matos apresenta
O feijão, que só faz ventosidade
4 um sujeito lírico torturado pelo peso de
Farinha de pipoca, pão que greta, seus pecados e desejoso de aproximar-se
De Sergipe d’El-Rei esta é a cidade. do Divino.
(DIMAS, Antônio. Gregório de Matos. ( ) Tomás Antônio Gonzaga, embora perten-
São Paulo: Nova Cultural, 1988.) ça ao mesmo período literário de Gre-
gório de Matos, revela neste poema um
1
mentrasto: tipo de erva
sujeito lírico consciente da brevidade da
2
baeta: tecido felpudo
vida.
3
chita: tecido de algodão de pouco valor
( ) Em relação às marcas de religiosidade, a
4
ventosidade: que provoca flatulência
visão antagônica que se coloca entre os
Pela leitura do soneto, é correto afirmar que dois poemas reflete, no Barroco, a in-
o poeta: fluência do cristianismo e, no Arcadismo,
a) critica veladamente o governo português a da mitologia grega.
por ter escolhido essa cidade para ser a sede
administrativa da colônia. Assinale a alternativa que preenche corre-
b) escreve esse poema para expor as angústias tamente os parênteses, de cima para baixo.
vividas durante o período em que cumpria a a) V – V – V
primeira ordem de desterro. b) V – F – F
c) comenta a elegância e a sensualidade das c) V – F – V
damas, visto que sempre apreciou as mulhe- d) F – F – F
res brasileiras. e) F – V – F
d) lamenta a inexistência de instituições reli-
giosas, pois elas organizariam moralmente a
cidade.
e) descreve as condições do local, mostrando
que os habitantes vivem rusticamente e com
poucos recursos.
18
4. (UFPR) Considerando a poesia de Gregório de O certo é, pátria minha,
Matos e o momento literário em que sua obra que fostes terra de alarves,
se insere, avalie as seguintes afirmativas: e inda os ressábios vos duram
desse tempo e dessa idade.
I. Apresentando a luta do homem no embate
entre a carne e o espírito, a terra e o céu, Haverá duzentos anos,
o presente e a eternidade, os poemas re- nem tantos podem contar-se,
ligiosos do autor correspondem à sensi- que éreis uma aldeia pobre
bilidade da época e encontram paralelo e hoje sois rica cidade.
na obra de um seu contemporâneo, Padre
Antônio Vieira. Então vos pisavam índios,
II. Os poemas erótico-irônicos são um e vos habitavam cafres,
exemplo da versatilidade do poeta, mas hoje chispais fidalguias,
não são representativos da melhor poesia arrojando personagens.
do autor, por não apresentarem a mesma Nota: entenda-se “Bahia” como cidade.
sofisticação e riqueza de recursos poéticos
que os poemas líricos ou religiosos apre- Vocabulário:
sentam. §§ alarves – que ou quem é rústico, abruta-
do, grosseiro,
III. Como bom exemplo da poesia barroca, a §§ ignorante – que ou o que é tolo, parvo, es-
poesia do autor incrementa e exagera túpido.
alguns recursos poéticos, deixando sua §§ ressábios – sabor; gosto que se tem depois.
linguagem mais rebuscada e enredada §§ cafres – indivíduo de raça negra.
pelo uso de figuras de linguagem raras e
de resultados tortuosos. 5. (UFF) Todas as afirmativas sobre a constru-
IV. A presença do elemento mulato nessa ção estética ou a produção textual do poema
poesia resgata para a literatura uma di- de Gregório de Matos (texto) estão adequa-
mensão social problemática da socieda- das, exceto uma. Assinale-a.
de baiana da época: num país de escravos, a) Existem antíteses, características de textos
o mestiço é um ser em conflito, vítima e no período barroco.
algoz em uma sociedade violentamente b) Há uma personificação, pois a Bahia, ser
desigual. inanimado, é tratada como ser vivo.
c) A ausência de métrica aproxima o poema do
Assinale a alternativa correta.
Modernismo.
a) Somente as afirmativas I e II são verdadeiras.
d) O eu lírico usa o vocativo, transformando a
b) Somente as afirmativas I, II e III são verdadeiras.
Bahia em sua interlocutora.
c) Somente as afirmativas I, III e IV são verdadeiras.
e) Há diferença de tratamento para os habitan-
d) Somente as afirmativas II e IV são verdadeiras. tes locais e os estrangeiros.
e) Somente as afirmativas III e IV são verdadeiras.
Leia o texto a seguir para responder às ques-
Leia o texto a seguir para responder à tões 6 a 8.
questão 5.
1 Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Senhora Dona Bahia, 2 Estás, e estou do nosso antigo estado!
nobre e opulenta cidade, 3 Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
madrasta dos naturais, 4 Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
e dos estrangeiros madre: 5 A ti trocou-te a máquina mercante,
6 Que em tua larga barra tem entrado,
Dizei-me por vida vossa
7 A mim foi-me trocando, e tem trocado
em que fundais o ditame
8 Tanto negócio, e tanto negociante.
de exaltar os que aqui vêm,
e abater os que aqui nascem? 9 Deste em dar tanto açúcar excelente
10 Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Se o fazeis pelo interesse 11 Simples aceitas do sagaz Brichote.
de que os estranhos vos gabem,
12 Oh se quisera Deus, que de repente
isso os paisanos fariam
13 Um dia amanheceras tão sisuda
com conhecidas vantagens.
14 Que fora de algodão o teu capote!
E suposto que os louvores (MATOS, Gregório de. Poesias selecionadas.
em boca própria não valem, 3. ed. São Paulo: FTD, 1998. p. 141.)
se tem força esta sentença,
mor força terá a verdade.

19
6. (UEL) No que diz respeito à relação entre o III. Os versos 3 e 4 são exemplos do papel
eu lírico e a Bahia, considere as afirmativas relevante da gradação no conjunto do
a seguir. poema, pois enumeram estados de espí-
I. Na primeira estrofe, o eu lírico identifi- rito do eu lírico.
ca-se com a Bahia, pois ambos sofrem a IV. Os versos “Um dia amanheceras tão
perda de um antigo estado. sisuda/ Que fora de algodão o teu capote!”
II. Na primeira estrofe, a Bahia aparece per- configuram exemplos de personificação e
sonificada, fato confirmado no momento metáfora, respectivamente.
em que ela e o eu lírico se olham. Assinale a alternativa correta.
III. Na terceira estrofe, constata-se que a a) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
Bahia não está isenta da culpa pela perda b) Somente as afirmativas II e III são corretas.
de seu antigo estado. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
IV. Na quarta estrofe, o eu lírico conclui que d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
a lamentável situação da Bahia está em e) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.
conformidade com a vontade divina.
Assinale a alternativa correta. 9. (G1 CFT-MG) O poeta Gregório de Matos tor-
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. nou-se importante na representação da lite-
b) Somente as afirmativas II e IV são corretas. ratura barroca brasileira porque:
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. a) enfatizou a produção poética satírica em de-
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. trimento da religiosa.
e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas. b) pautou sua vida pelo respeito às normas e
costumes sociais e estéticos.
7. (UEL) A partir da leitura do texto, considere c) criticou membros do clero e do poder políti-
as afirmativas a seguir. co e exaltou índios e mulatos.
d) apropriou-se de formas e temas do barroco
I. O poema faz parte da produção de Gregó-
europeu, adequando-os ao contexto local.
rio de Matos caracterizada pelo cunho sa-
tírico, visto que ridiculariza vícios e im-
perfeições e assume um tom de censura. 10. (UEG)
II. As figuras do desconsolado poeta, da
triste Bahia e do sagaz Brichote são
imagens poéticas utilizadas para expres-
sar a existência de um triângulo amoroso.
III. O poema apresenta a degradação da Bahia
e do eu lírico, em virtude do sistema de
trocas imposto à colônia, o qual privile-
giava os comerciantes estrangeiros.
IV. Os versos “Que em tua larga barra tem
entrado” e “Deste em dar tanto açúcar
excelente” conferem ao poema um tom
erótico, pois, simbolicamente, sugerem a
ideia de solicitação ao prazer.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
b) Somente as afirmativas I e III são corretas.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
d) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.

8. (UEL) Sobre figuras de linguagem no poema,


Aleijadinho, Cristo do carregamento da
considere as afirmativas a seguir. Cruz. Enciclopédia Barsa, 1998.
I. A descrição do eu lírico e da Bahia confi-
gura uma antítese entre o estado antigo Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
e o atual de ambos. Da vossa alta clemência me despido;
II. A antítese é verificada na oposição Porque quanto mais tenho delinquido,
entre as expressões “máquina mercan- Vos tenho a perdoar mais empenhado.
te” e “drogas inúteis”, embora ambas se Obra poética de Gregório de Matos.
Rio de Janeiro: Record, 1990.
refiram à Bahia.

20
Durante o período colonial brasileiro, as
principais manifestações artísticas, popu-
lares ou eruditas, foram, assim como nos
demais aspectos da vida cotidiana, marca-
das pela influência da religiosidade. Nesse
sentido, com base na análise da presença da
religiosidade na obra de Aleijadinho e Gre-
gório de Matos, é correto afirmar:
a) Ambas são modelos da arte barroca, uma
vez que se inspiram mais na temática cristã
do que em elementos oriundos da mitologia
greco-romana.
b) A presença da temática religiosa em ambos
deve-se à influência protestante holandesa
na região da Bahia e de Minas Gerais.
c) No trecho do poema, tem-se a expressão de
um pecador que, embora creia em Deus, não
tem certeza de que obterá o perdão divino.
d) A pobreza estética da obra de Aleijadi-
nho e Matos deriva da censura promovida
pela Santa Inquisição às obras artísticas no
Brasil.

Gabarito
1. E 2. E 3. C
4.
Apenas a afirmativa II é incorreta, pois a
poesia erótico-irônica de Gregório de Matos
apresenta a mesma riqueza de recursos que
a utilizada em poemas líricos ou religiosos.

5. C 6. D 7. B 8. A 9. D

10. A

21
0 2 A Relíquia

Eça de Queirós

L C
ENTRE
ASPAS
Eça de Queirós
José Maria Eça de Queirós (1845-1900)
estudou Direito na Universidade de Coimbra,
cidade onde conheceu a geração que revolucio-
naria a literatura. Aos 21 anos, participou ativa-
mente das Conferências do Cassino.
Ingressou na vida diplomática e atuou
como cônsul em Cuba e na Grã-Bretanha, lo-
cal em que escreveu as obras O crime do pa-
dre Amaro e O primo Basílio, dois importantes
romances de sua carreira literária. Os vaivéns
diplomáticos prosseguiram, mas Eça de Queirós
não parou de escrever para jornais portugueses
e brasileiros.
Em 1883, foi eleito sócio-correspondente da Academia Real de Ciências. Conheceu o escritor Émile Zola, em
Paris, cidade para onde foi transferido.
Eça de Queirós já havia escrito e publicado A relíquia e Os Maias. Nessa altura, 1888, já não era mais o
combativo jovem das Conferências do Cassino, tampouco o eram seus companheiros. Em Paris, escreveu A ilustre
casa de Ramires e A cidade e as serras. A última visita à terra natal foi realizada em 1900, ano em que faleceu.

As três fases de Eça de Queirós


A obra de Eça de Queirós é a mais importante do Realismo português, e para efeito de estudo pode ser
organizada da seguinte forma:
§§ Primeira fase (1865 a 1871): considerada como fase de aprendizado, corresponde à produção dos
folhetins, de gosto popular, reunida mais tarde sob o título de Prosas bárbaras. Nesse aprendizado inicial,
Eça de Queirós sofreu a influência de Victor Hugo e Mechelet, inclinando-se para os temas históricos. Seu
primeiro romance – O mistério da estrada de Sintra (1871) – foi escrito em parceria com Ramalho Ortigão,
em folhetins. O método epistolar da escrita, ou seja, uma troca de cartas entre os dois autores, despertou o
interesse do público: os dois escritores trocavam cartas contando a história de um sequestro, e os leitores
acreditaram que se tratava de um fato verdadeiro.
§§ Segunda fase (1871 a 1888): após a publicação de O crime do padre Amaro e até a publicação de Os
Maias, é a fase chamada “realista”. É nesta segunda fase que o escritor Eça de Queirós ganha maior desta-
que e passa a ser considerado um realista de fato, colocando o dedo na ferida da sociedade burguesa, bem
como ao atraso e hipocrisia que observava em Portugal. É nesta fase que a obra “A relíquia” se enquadra.
§§ Terceira fase (1888 a 1900): considerada como fase de “nacionalismo nostálgico”, em que o escritor
foca o tradicionalismo das origens de Portugal. É o que o romance A ilustre casa de Ramires demonstra
quando o personagem-título busca colocar-se à altura de seus antepassados medievais, cuja história tenta
recompor. A última fase compreende ainda as obras A correspondência de Fradique Mendes e o romance
A cidade e as serras.

25
A relíquia sociedades capitalistas é muito comum que homens po-
bres, para poderem sobreviver, tornem-se aliados das
classes burguesas, e caso houvesse a exposição do es-
cândalo em que Teodorico havia se envolvido na viagem
à Terra Santa, ficaria difícil conseguir suporte das clas-
ses mais abastadas). Nesse sentido, Teodorico desejava
então explicar a natureza e o verdadeiro conteúdo dos
pacotes que havia trazido do Egito e de Jerusalém, e
que eram comentados no livro de seu amigo.
Teodorico nos conta, então, não somente o que
lhe aconteceu na malfadada viagem, mas também vá-
rios aspectos de sua vida pregressa, como, por exemplo,
a história do encontro e morte de seus pais (que fez com,
aos sete anos, fosse obrigado a morar com sua tia rica,
a Dona Patrocínio), ou ainda, os momentos posteriores à
viagem, quando decidiu que deveria escrever suas expe-
riências de vida. É por meio desses relatos que sabemos
que nosso personagem principal é um sujeito que, tendo
se tornado órfão muito cedo, é obrigado a morar com
uma tia que lhe impunha uma rigidez moral bastante in-
cisiva, especialmente no contato com as mulheres. Com
isso, cria-se um indivíduo que, para conseguir mais es-
A relíquia tem seu início com a apresentação do paços, age de maneira hipócrita e cínica. Diante de sua
narrador e protagonista da história, a personagem Te- tia – uma senhora beata e conservadora – finge ser um
odorico Raposo, o qual tenta explicar ao leitor o que o sujeito de visão religiosa (por puro interesse em uma pos-
motivou a escrever suas memórias. Ele revela ao leitor sível herança), mas, na verdade, se envolvia com diversas
que a principal motivação reside no fato de que tan- mulheres, em busca de prazeres sexuais.
to ele como seu cunhado (o Crispim) acreditam que A certa altura do romance, Teodorico resolve pe-
aquelas memórias contêm “uma lição lúcida e forte” dir a sua tia que lhe financie uma viagem a Paris, na
da vida, sendo merecedoras da imortalidade que só “a França. No entanto, sendo D. Patrocínio uma mulher ex-
literatura propicia”. Boa parte da narrativa se concentra tremamente religiosa, ela lhe nega o pedido, alegando
na viagem feita por Teodorico à Terra Santa (passando que Paris era a cidade do vício e da perdição. Sabendo
por Egito e Palestina), logo após uma recente decepção que precisava impressionar sua tia para poder colocar
amorosa. Um dos principais motivos de sua viagem era as mãos na cobiçada herança, sugere então que ela lhe
conseguir angariar alguma recordação religiosa (a tal custeie uma peregrinação à Terra Santa (passando por
“relíquia”) para sua velha tia; o que faria com que Teo- Egito e Palestina), prometendo à velha tia que lhe tra-
dorico fosse digno de receber uma significativa herança. ria uma recordação quando retornasse de sua excursão
Teodorico também nos revela que sua narrati- religiosa. Na verdade, em sua estadia na Terra Santa,
va possui um outro objetivo, além dos citados: realizar Teodorico simplesmente foge de todas as obrigações
uma correção em um livro escrito por um outro amigo, religiosas, aproveitando o fato de estar afastado de sua
participante da mesma viagem à Terra Santa, no qual tia para viver intensamente os atos profanos que já pra-
mencionava que o nosso protagonista levava em dois ticava em menor escala em Portugal.
embrulhos de papel os “restos de seus antepassados”. Um dos episódios definitivos do enredo ocorre
Essa afirmação preocupava Teodorico no que diz res- quando, durante a viagem - em Alexandria -, Teodorico
peito a sua imagem diante da burguesia local, já que se envolve sexualmente com uma inglesa chamada Miss
isso poderia acarretar problemas para o seu futuro (nas Mary (uma espécie de dama de companhia). Ao final da

26
intensa relação, a moça presenteia nosso personagem Após tomar consciência de tudo o que havia per-
principal com sua camisola de rendas, na qual estava dido (e que ainda havia perdido tudo para alguém do
pregada um bilhete que fazia referência à relação que clero), Teodorico chega à conclusão de que não deveria
tiveram. Perto do fim de sua estadia, Teodorico se recor- ter se regenerado, mas sim, que deveria ter sido ainda
da de que precisava providenciar uma lembrança reli- mais hipócrita e cínico, como era o padre Negrão. Tam-
giosa para sua tia. Então resolve forjar uma falsa coroa bém se lembra de que, se no dia da abertura do fatí-
de Cristo com algumas ramagens de arbustos. Portando, dico embrulho, tivesse tido a coragem de declarar que
então, dois pacotes, um com a camisola de Miss Mary, aquela camisa pertencia a Santa Maria Madalena, teria
e outro com a falsa coroa de Cristo, nosso protagonista ficado bem visto entre os presentes e herdado a fortuna.
retorna a Portugal.
Chegando a Lisboa, Teodorico relata hipocritamen-
Análise
te à tia todas as penitências e jejuns que teria feito duran-
te a peregrinação e lhe informa que havia trazido a coroa
de espinhos usada por Cristo, deixando sua tia orgulhosa
e empolgada. D. Patrocínio resolve, então, organizar um
encontro em sua casa para que o embrulho fosse aberto
diante de algumas autoridades religiosas da região.
A abertura da suposta relíquia é feita perante
uma imensa audiência de sacerdotes e beatas, num am-
biente de grande ansiedade. O primeiro pacote a ser
aberto é o de Dona Patrocínio, mas qual o espanto de
todos quando, em vez do objeto sagrado, surge a ca-
misola de Miss Mary com o bilhete que confirmava as
relações lascivas que havia estabelecido com Teodorico.
Confuso, este então se lembra de que, durante a viagem
de retorno a Lisboa, havia encontrado uma pobre men-
diga que lhe pediu alguma esmola. Não tendo dinheiro,
deu à pobre moça o que acreditava ser o embrulho com
a camisola; mas, na verdade, havia trocado os pacotes.
Este episódio faz com que Teodorico seja expul- O romance oitocentista, na vertente europeia,
so da casa da tia e perca a fortuna que ambicionava. é extremamente interessante para compreendermos a
Para poder sobreviver, passa, então, a vender algumas funcionalidade histórica do século XIX. Tanto na França
relíquias da Terra Santa que havia trazido consigo, além como em Portugal – ainda que de maneiras diferentes –
de outras falsas, que ele mesmo fabricava em grandes o romance tomou um espaço na sociedade burguesa e
quantidades (o que, posteriormente, acabou por arrui- fez com que todos os olhos ficassem voltados para ele.
nar o negócio). A partir desses episódios, compreende Do ponto de vista estrutural, a obra que anali-
a inutilidade da falsidade e da mentira, e resolve mu- saremos está dividida em cinco grandes capítulos, sem
dar seu comportamento. Arranja um emprego, graças a nomeação. O romance é bastante descritivista, que nos
um amigo do colégio e casa com a irmã deste. Quando fornece grandes detalhes de cenário, objetos e vestuá-
finalmente parecia regenerado da hipocrisia que o ca- rio, nos transmitindo a sensação de realidade que en-
racterizava, fica sabendo que o padre Negrão – um dos volve a estética realista. Não podemos nos esquecer de
clérigos que costumava frequentar a casa de sua tia – que esse descritivismo minucioso é uma das caracterís-
havia herdado desta toda a herança, inclusive a Quinta ticas marcantes do estilo de Eça de Queirós.
onde ele nascera, e que, ainda, este padre era amante O espaço em que se situa a obra é a Lisboa de fi-
de Amélia, uma mulher com quem Teodorico havia se nais do século XIX, contando também com as incursões
relacionada em momento anterior, e que o havia traído. na Terra Santa, financiadas pela personagem D. Patrocí-

27
nio. A narrativa segue uma ordem linear e cronológica, E justamente por conta desse ambiente, que
a qual nos faz saber de elementos da vida de Teodorico Teodorico não encontra solução a não ser mentir. No
Raposo que envolviam família, relações amorosas, pas- romance, o protagonista se adapta às normas cultu-
sando pela convivência com a tia beata, a excursão na rais sufocando seus impulsos antissociais, e se torna
Terra Santa, até seu retorno e desfecho desastroso. ao mesmo tempo mais profundo e complexo, cada vez
Em A relíquia, de Eça de Queirós, 1887, temos mais atormentado por conflitos internos. E é a partir do
a tentativa de um sujeito de possuir algo cuja realida- conflito interno aflorado em Teodorico que nasce a re-
de não lhe é adequada. Teodorico Raposo é um sujeito flexão sobre seu verdadeiro “erro de conduta”. Há um
pobre que, devido ao falecimento do pai, vai viver com momento marcante do romance no qual o personagem
uma tia severamente beata e rica, a Dona Patrocínio. sonha que encontra Jesus Cristo, e no qual percebemos
Esta, de modo algum, permite em seu redor qualquer certa avaliação de consciência da personagem. Vejamos
tipo de relaxações, ou seja, ela não aprova que Teo- o trecho dessa avaliação de consciência, quando a ima-
dorico, vivendo junto dela, aproxime-se de mulheres gem de Jesus Cristo lhe aparece na Travessa da Palha:
ou lhes faça gracejos. O sobrinho então, pelas costas — O deus a que te prostravas era o dinheiro de
de sua rica tia, envolve-se com meretrizes e goza de G. Godinho; e o céu para que teus braços tre-
todos os prazeres da carne. E, ao final das tardes, às mentes se erguiam – o testamento da Titi... Para
escondidas, retorna à mansão onde vive para fazer as lograres nele o lugar melhor, fingiste-te devoto,
orações religiosas, conforme as coordenadas rigorosas sendo incrédulo; casto, sendo devasso; caridoso,
de Dona Patrocínio. sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho,
Eis então o avesso desse personagem. A duplici- tendo só a rapacidade de herdeiro... Tu foste ili-
dade de Teodorico é responsável pelos delitos que este mitadamente hipócrita! (...) Mentiste sempre; e
assim comete. A realidade do sobrinho se configura na só era verdadeiro para o céu, verdadeiro para o
sua origem e em seus valores, isto é, todos os dogmas mundo, quando rogavas a Jesus e à Virgem que
cristãos impostos a ele por sua tia não foram suficientes rebentassem depressa a Titi.
para a conversão do garoto à religião de Jesus Cristo.
Através dessas considerações, é possível obser-
Tudo não passava do interesse em ascender financeira-
var como Teodorico tenta subverter a realidade da sua
mente, e isso justificava cada segundo de sua devoção.
existência, ou seja, a sociedade em que vive, a fim de
Esse falseamento de castidade é o principal de-
atingir o desejo de mudança. O personagem almeja
lito de Teodorico. É uma clara amostra de como o ro-
destruir a verdade que o concebeu para viver num am-
mance realista oitocentista trabalha com a questão de
biente mais tranquilo e agradável às suas respectivas
ascensão social, como define o estudioso de literatura
ambições. Por isso tantos fingimentos.
Erich Auerbach:
E esse movimento de busca de felicidade é que
“A mistura de estilos, permitiu que personagens representa o maior delito dos nossos personagens, pois
de qualquer classe social, com todos os seus foi através desse deslocamento de papéis que Teodo-
entrelaçamentos vitais prático-cotidianos, se tor- rico Raposo perde tudo aquilo que almejava. Após ter
nassem objetos da representação literária séria.” se afundado na miséria em que sua tia o abandonou,
AUERBACH, Erich. Mimesis. consegue um emprego e uma família, e finda diante de
uma vida pacata que – não sendo ruim – nunca fora seu
Isso significa que essa mistura estilística, no ro- verdadeiro objeto de realização.
mance, como vemos A relíquia, que mistura dados do Essas reflexões nos trazem adiante uma carac-
Realismo e do Naturalismo, proporciona um espaço terística indispensável a qualquer análise de romances
para que um personagem como Teodorico tome algu- realistas do século XIX. Neles, como na maior parte dos
mas atitudes a fim de ascender financeiramente. E ele romances datados da época, há a representação de um
vai longe. O sobrinho desafia a própria sorte cobrindo- sujeito reflexivo que deseja ser responsável pelo próprio
-se com as vestes que a sociedade almeja vê-lo. destino. E esse sujeito precisa necessariamente compor-

28
tar ou variar entre duas esferas. A interna e a do mundo envolvendo com pessoas por dinheiro, ora se envolven-
que lhe é exterior, conforme afirmação do estudioso do do por motivos carnais. Também, na figura de Dona Pa-
século XIX, Ian Watt: trocínio, Eça estabelece uma crítica ao conservadorismo
burguês, que cerceia os modos de comportamento dos
Contudo, embora o dualismo enfatize a oposição
indivíduos na sociedade, como por exemplo, a educação
entre diferentes modos de encarar a realidade,
sexual que se transforma em aversão ao sexo. Por fim, há
não leva à completa rejeição da realidade do ego
ainda uma crítica geral que aponta para o processo de
ou do mundo exterior. Da mesma forma, diferen-
formação nacional português, que faz com que indivíduos
tes romancistas atribuíram diferentes graus de
pobres, como Teodorico (lembremos que ficou órfão cedo,
importância aos objetos exteriores e interiores
atirado à própria sorte), tenham de ficar à mercê de rela-
da consciência, mas nunca rejeitaram inteira- ções de favor e apadrinhamento de indivíduos com maior
mente uns aos outros. poder aquisitivo.
WATT, Ian. A ascensão do romance.

E é nessa dicotomia de passagem do interior ao


Principais personagens
exterior, e vice-versa, que é criada a personagem Teodo- §§ Teodorico Raposo: personagem principal do
rico, de A relíquia. O sujeito reflexivo alimenta sua pró- romance, é um jovem que devido às restrições
pria armadilha. A herança de sua tia o obriga a prestar que lhe foram impostas desde a infância pela tia,
vários serviços religiosos – e que até o fizeram penetrar torna-se um rapaz inescrupuloso e interesseiro.
na Terra Santa. Mas foi justamente essa herança que o Finge ser beato para enganar sua tia e tentar
atirou na miséria. obter sua fortuna em testamento, mas não con-
segue abrir mão de se envolver com as mulhe-
res da região. Durante sua viagem à Terra Santa
(financiada por Dona Patrocínio), irá se envolver
com uma mulher que dará início a peripécia que
é base da história.
§§ Dona Maria do Patrocínio (Titi): tia de Te-
odorico, é detentora de uma grande fortuna, e
usava isto como motivo para controlar as ações
da personagem principal. Extremamente beata,
irá financiar uma viagem à Terra Santa para seu
sobrinho, sob a condição de que ele lhe traga
uma relíquia da região, relíquia essa que será o
estopim de toda a confusão que ocorre no ro-
mance.
§§ Crispim: filho do dono da firma Teles, Crispim &
Cia. Chamado ironicamente de “a firma”. Tinha
cabelos compridos e louros, e um comportamen-
to homossexual durante a vida no internato. Aca-
ba tornando-se patrão e cunhado de Teodorico.
§§ Pinheiro: Padre interesseiro, que não deixa de
frequentar os jantares oferecidos por Dona Pa-
A relíquia em quadrinhos, por Marcatti
trocínio. Tem mania de doença e fica a todo mo-
Há ainda que ressaltar o conjunto de críticas que mento examinando sua língua no espelho.
Eça de Queirós realiza em A relíquia. Temos ataques em §§ Casimiro: padre e procurador de Dona Patro-
direção ao Clero, expondo para o leitor um Padre que cínio. Costuma jantar com frequência com sua
cliente.
estabelece várias ordens de relações promíscuas. Ora se

29
§§ Dr. Margaride: juiz aposentado, foi amigo do pai de Teodorico, na cidade de Viana. Deu início a sua
aposentadoria após receber uma grande herança de seu irmão Abel. Tinha uma mania curiosa de contar de
forma exagerada as desgraças alheias.
§§ Adélia: é a amante de Teodorico (durante o período em que a história focaliza Portugal). Trata-se de uma
jovem interesseira, que irá desprezar o protagonista por conta da sua submissão aos desmandos da tia
(Dona Patrocínio estipulava horários rígidos para que Teodorico voltasse para casa), e também por não con-
seguir vislumbrar possibilidades de ascensão financeira nessa relação. Ao final da história, acaba tornando-
-se amante do padre Negrão (personagem que angaria boa parte da herança de Dona Patrocínio).
§§ Dr. Topsius: é um arqueólogo alemão, formado pela Universidade de Bonn, e sócio do Instituto Imperial de
Escavações Históricas. Descrito como um sujeito “muito magro e pernudo”, e também muito nacionalista,
será o companheiro de viagens de Teodorico durante sua expedição à terra santa. Seu objetivo era passar
pelas regiões da Galileia e da Judeia, a fim de coletar informações para a para produção de um livro.
§§ Mary: moça de origem inglesa com quem Teodorico irá se envolver durante sua viagem à Terra Santa. A
ela pertencem a camisola e o bilhete que causarão o grande escândalo que fará com que a tia de Teodorico
acabe por deserdá-lo.

30
Aprofunde seus conhecimentos
1. (Unicamp) Em A relíquia, de Eça de Queirós, 3. (Unicamp) Em A relíquia de Eça de Queirós,
encontramos a seguinte resposta de Lino, várias são as mulheres com quem Teodorico
comprador habitual das relíquias de Raposo: Raposo, o herói e narrador, se vê envolvido.
Dentre elas, podemos citar Mary, Adélia, Titi,
“Está o mercado abarrotado, já não há
Jesuína, Cíbele.
maneira de vender nem um cueirinho do
a) Uma dessas personagens é importantíssima
Menino Jesus, uma relíquia que se vendia
para a trama do romance, já que acompanha
tão bem! O seu negócio com as ferraduras o narrador desde a infância, e deve-se a ela
é perfeitamente indecente... Perfeitamente a origem de todos os seus infortúnios pos-
indecente! É o que me dizia noutro dia um teriores. Quem é e o que fez ela para que o
capelão, primo meu: ‘São ferraduras demais plano de Raposo não desse certo?
para um país tão pequeno!...’ Catorze ferra- b) a qual delas Raposo se refere como “Tinha
duras, senhor! É abusar! Sabe vossa Senhoria trinta e dois anos e era zarolha”? Que rela-
quantos pregos, dos que pregaram Cristo na ções tem essa personagem com Crispim, a
Cruz, Vossa Senhoria tem impingido, todos quem o narrador denomina como “a firma”?
com documentos? Setenta e cinco, Senhor!...
Não lhe digo mais nada... Setenta e cinco!”
a) Relate o episódio que faz com que Lino dê
essa resposta a Raposo.
Gabarito
b) Sabendo que o autor usa da ironia para suas 1.
críticas, dê os sentidos, literal e irônico, a) Após ter sido expulso pela “Titi”, dona
que pode tomar dentro da narrativa a frase: Patrocínio das Neves, Teodorico Raposo
“São ferraduras demais para um país tão
para sobreviver passa a vender as falsas
pequeno!“. relíquias sagradas a Lino. Entretanto, ele
2. (Unicamp) O trecho que segue relata um próprio desacreditou as suas relíquias.
diálogo entre o narrador-personagem de A Por isso, Lino responde: “Está o mercado
Relíquia e o Doutor Margaride, e contém re- abarrotado.”
ferências básicas para o desenvolvimento do b) No sentido literal significa que as “fer-
romance: raduras” são demasiadas para um país
pequeno como Portugal.
Eu arrisquei outra palavra tímida. No sentido irônico essas “ferraduras” re-
— A titi, é verdade, tem-me amizade... ferem-se aos “burros” que fazem parte
— A titi tem-lhe amizade – atalhou com a da população de Portugal.
boca cheia o magistrado – e você é o seu 2.
único parente... Mas a questão é outra, Teo- a) As expressões “titi”, “Jesus Cristo” e a
dorico. É que você tem um rival. intenção da tia deixar a sua fortuna a “ir-
— Rebento-o! – gritei eu, irresistivelmen- mandades da sua simpatia e a padres da
te, com os olhos em chamas, esmurrando o sua devoção” constituem elementos re-
mármore da mesa. veladores da trama narrativa de “A re-
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de líquia”. Teodorico pretendia traçar uma
cima do seu capilé. E o Dr. Margaride repro- estratégia para sensibilizar a tia, de
vou com severidade a minha violência. movê-la da intenção de deixar a fortuna
— Essa expressão é imprópria de um cava- à Igreja e tornar-se seu herdeiro. Para
lheiro, e de um moço comedido. Em geral não tal, convence a tia a financiar-lhe uma
se rebenta ninguém... E além disso o seu rival viagem à Terra Santa, ao que ela consen-
não é outro, Teodorico, senão Jesus Cristo! te desde que lhe traga uma recordação. A
Nosso Senhor Jesus Cristo? E só compreendi referência a Jesus Cristo também é facil-
quando o esclarecido jurisconsulto, já mais mente associável à coroa de espinhos que
calmo, me revelou que a titi, ainda no último Teodorico “fabrica” antes de voltar a Por-
ano da minha formatura, tencionava deixar tugal para entregá-la como “valiosa relí-
a sua fortuna, terras e prédios, a irmandades quia” do episódio da crucificação.
da sua simpatia e a padres da sua devoção. b) D. Patrocínio das Neves, a “titi”, era uma
a) Localize no trecho ao menos uma dessas re-
mulher beata, seca e mal amada, para
ferências e explique qual a sua relevância
quem o sexo era sinônimo de pecado, mas
para a trama central.
b) O trecho fala da importância da figura de rica. Representa a sociedade portuguesa
Jesus Cristo para a personagem denomi- conservadora e decadente, que privilegia o
nada “titi”. Descreva essa personagem, mundo das aparências, pois a sua devoção
segundo o prisma do próprio narrador, Te- religiosa não a impediu de abandonar o
odorico Raposo, e tente demonstrar como o sobrinho, doente e sem recursos de so-
mesmo trata sarcasticamente o seu “rival” brevivência. O declínio moral revela-se
de herança.
31
também no narrador-personagem, Teo-
dorico Raposo, cujo interesse econômico
faz com que veja em Cristo o seu grande
rival no direito à herança que a tia ten-
cionava deixar à Igreja. Cínico, hipócrita
e amoral, não hesita em descrever o seu
“rival” de forma abjeta, como quando des-
creve o momento em que associa a figura
nua de Cristo às formas sensuais de uma
mulher ou quando afirma que lhe foi re-
velado através de sonho que a crucificação
de Cristo não passara de um embuste.
3.
a) Trata-se da personagem Titi, D. Maria Pa-
trocínio Neves, tia de Teodorico Raposo.
Seu plano consistia em seguir as normas
religiosas, já que sua tia era uma devota
fervorosa.
Quando descobre que Raposo fingia, pois
preferia o pecado e a luxúria, Titi expul-
sa-o de casa pondo fim à conquista da
herança.
b) Refere-se à irmã de Crispim, D. Jesuína.
Crispim é dono da firma Crispim & Cia, e
Raposo, casando-se com D. Jesuína, resol-
veria seus problemas financeiros.

32
0 3 O Cortiço

Aluísio Azevedo

L C
ENTRE
ASPAS
Aluísio Azevedo
Aluísio Azevedo (1857-1913) deixou São Luís, no
Maranhão, sua terra natal, aos dezenove anos e dirigiu-se
para o Rio de Janeiro. Lá morou com o irmão, Artur Azeve-
do, e dedicou-se persistentemente ao desenho e à pintura
na Imperial Academia de Belas-Artes.
Aos vinte e um anos retornou a São Luís, onde pas-
sou a colaborar na imprensa local. Em 1879, já havia lan-
çado o romance romântico Uma lágrima de mulher, mas
foi em 1881 que seu nome se tornou realmente conhecido,
pois publicou o romance O mulato, de temática muito cri-
ticada pela sociedade local, pois o livro atacava questões
de preconceito racial. Aluísio foi aconselhado a “pegar na
enxada, em vez de ficar escrevendo”.
Voltou para o Rio de janeiro, onde produziu folhetins
românticos para jornais cariocas. Memórias de um condena-
do e Mistérios da Tijuca foram romances ditados pelas neces-
sidades de sobrevivência. Ao lado disso, o escritor também
escreveu obras mais bem elaboradas, dentro dos princípios
da estética realista/naturalista: Casa de pensão e O cortiço,
que consolidaram o seu prestígio.
Em 1895, foi nomeado vice-cônsul em Vigo, na Espanha. Era o início de uma atribulada carreira diplomáti-
ca, que o levaria a: Yokohama, no Japão; La Plata, na Argentina; Salto Oriental, no Uruguai; Cardiff; na Inglaterra;
Nápoles, na Itália; e, finalmente, Buenos Aires, na Argentina.

§§ Fase romântica – entre os seus folhetins românticos, destacam-se: Uma lágrima de mulher; Memórias de
um condenado ou A condessa Vésper; Filomena Borges; A mortalha de Alzira; Mistério da Tijuca ou Girân-
dola de amores.
§§ Fase naturalista – à fase realista/naturalista pertencem: O mulato; Casa de pensão; O homem; O coruja;
O cortiço; O livro de uma sogra.
§§ Contos – como contista, deixou algumas narrativas curtas, como “Demônios“, “Pegadas“ e “O touro
negro“.

Considerado o mais importante dos naturalistas brasileiros, em sua obra não há excesso de exploração da
patologia humana, como ocorre, por exemplo, na obra do paradigma francês Émile Zola.
Aluísio prefere a observação direta da realidade, onde ressalta, sobretudo, a influência que o meio exerce
sobre o homem, segundo a teoria determinista de Hipólito Taine.

35
O cortiço no emprego dos diálogos, fisiologismo, traduzindo
como eram os ambientes dos cortiços cariocas do fi-
nal do século XIX. Espaços estes, onde a degradação
de maneira tensa culmina em desfechos mortais, por
ciúmes ou atração sexual.
A classe baixa e humilde da sociedade e a classe
em ascensão são reunidas em agrupamentos humanos.
O próprio cortiço é colocado com um personagem cen-
tral. O espaço se caracteriza como algo de suma impor-
tância para o desenrolar da narrativa, pois vai deter-
minar o comportamento dos personagens. O cortiço se
estrutura em três espaços distintos, que em consequên-
cia determinam o elenco social: o sobrado do Miranda,
a venda de João Romão e o próprio cortiço.

Tendência naturalista
§§ Naturalismo: substantivo masculino. 1. condi-
ção, estado do que é produzido pela natureza. 2.
O cortiço é sem dúvida a obra que fundamen- fil doutrina que, negando a existência de esferas
ta uma tendência literária chamada de Naturalismo no transcendentes ou metafísicas, integra as reali-
Brasil. Essa tendência tem início no Brasil com a publi- dades anímicas, espirituais ou forças criadoras
cação de O mulato, de Aluísio Azevedo, no ano de 1881, no interior da natureza, concebendo-as redutí-
no entanto, é O cortiço que engloba todas as caracterís- veis ou explicáveis nos termos das leis e fenôme-
ticas necessárias para compor o chamado “romance de nos do mundo.
tese” e os pressupostos cientificistas característicos do
final da segunda metade do século XIX.
Em O cortiço, a história gira em torno de dois
Estilos de época e individual
portugueses, Miranda e João Romão, a princípio um
O Naturalismo marca uma oposição ao mundo
contraponto entre a riqueza luxuosa do primeiro e a
idealizado do Romantismo, dando prosseguimento en-
miséria e avareza do segundo. Os caminhos de João
quanto tendência ao Realismo. O trabalho se incumbe
Romão para atingir o mesmo plano econômico serão
aterradores. Além disso, ele vai buscar também uma do materialismo e do cientificismo que analisa as minú-
ascensão social. Romão não vai medir esforços e escrú- cias da natureza humana e da sociedade, o determinis-
pulos para tal. Este é o viés naturalista em questão, ou mo do meio social, da raça e do momento histórico. Um
seja, um mundo de atitudes que pensam no fim sem se dos princípios norteadores do trabalho de H. Taine.
preocupar com os meios em uma conduta justificável,
que trata a visão realista das obras naturalistas. João
Romão é fruto do meio em que luta severamente para
sobreviver e prosperar, e atropela todos que atravessas-
sem seu caminho.
Aluísio Azevedo segue o molde de Eça de
Queirós ou de Zola por trazer como técnica as mi-
núcias da descrição, a precisão analítica e a crítica
social. Além disso, o autor trabalha com versatilidade

36
Estrutura da obra Personagens
Separado em 23 capítulos, O cortiço é um roman- Em, O cortiço, Aluísio Azevedo opta por construir
ce de narrativa quase linear com um enredo simples e or- personagens que configuram tipos sociais, ou seja, que
gânico. No plano da ação, os conflitos entre personagens em sua característica individual vai projetar a classe
se constroem pela lógica da oposição, seja no plano da e/ou o coletivo do qual ela faz parte.
personalidade, do aspecto físico ou econômico. Outro aspecto que deve ser analisado são as re-
lações de oposição entre as personagens que vão sus-
Foco narrativo tentar os conflitos pelo aspecto dialógico e antitético.
Por exemplo: João Romão × Miranda; Jerônimo × Firmi-
O foco narrativo é em terceira pessoa, com nar- no; Piedade × Rita Baiana; Bertoleza × Léonie.
rador onisciente que faz pequenas interferências sem,
necessariamente, criar uma intenção de moralização ou §§ João Romão: chegou como um imigrante por-
juízo drástico de valor. tuguês pobre no Brasil, mas acaba se tornando
um homem rico, o dono do cortiço. Seu poder vai
Espaço se constituir a partir do mal caráter e de sua falta
de escrúpulos. Foi empregado de outro português
O espaço é, sem dúvida, algo que necessita de na venda que o enriqueceu. Tornou-se dono de
uma atenção especial na análise desta obra, uma vez cortiço e de uma pedreira nas proximidades. Ele
que a tese do romance é comprovar que ele determi- sonhava em ter um sobrado como o de seu vizi-
na o comportamento das pessoas. Basicamente, a obra nho Miranda. É, sem dúvida, um vilão da história.
se passa no Rio de Janeiro, especialmente no bairro de
Botafogo, onde se localizava o cortiço de João Romão.
Conhecido como romance de espaço, é possível analisar
o espaço sobre três ópticas:
1. O próprio cortiço, em sua condição física, que
abriga pessoas pobres e os trabalhadores da
pedreira.
2. A quitanda de João Romão, que é considerada
como um espaço intermediário, já que ela media
as relações de transformação social de 1 para 3,
ou seja, da situação social de pobreza de João Por Victor Vieira
Romão, para a condição riqueza.
3. O sobrado (palacete) onde mora Miranda, repre- §§ Miranda: a exemplo de João Romão, Miranda é
sentando o poder socioeconômico mais elevado imigrante português, enriqueceu graças ao dote
e almejado por João Romão, que está no espaço da esposa Estela com o comércio de tecidos.
intermediário e deseja atingir o sobrado, espaço Ele é socialmente respeitado e com o objetivo
mais alto; para isso, dirige todas as suas ambições. de afastar a mulher dos caixeiros, comprou um
sobrado vizinho do cortiço de João Romão, que
Tempo inclusive queria comprar um pedaço de terra
nos fundos de sua propriedade para aumentar o
Não há uma determinação exata de tempo no quintal. É proporcionalmente inverso à constitui-
que diz respeito à especificidade de datas, porém, é ção de João Romão, especialmente no início do
possível situar a narrativa nos anos que antecedem a romance, já que tem título de fidalguia e comen-
abolição da escravatura (1888). da. Socialmente respeitado.

37
§§ Bertoleza: escrava de um velho cego a quem pa- §§ Jerônimo: é mais um personagem português da
gava mensalmente para trabalhar numa quitanda história e se enquadra na obra como um trabalha-
como se livre fosse. Depois da morte do homem de dor da pedreira. Ele possui entre 35 e 40 anos, é
quem ela era escrava, passou a viver como mulher alto, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados,
de João Romão , que falsificara sua carta de al- pescoço de touro e cara de Hércules, olhos de boi
forria, e também como sua empregada, ajudando de canga. Inicialmente, João era um homem bom
na construção de riqueza, em quem confiava ce- e honesto, mas que se deixou levar pela forte atra-
gamente, tanto que confiou ao amante suas eco- ção exercida sobre ele por Rita Baiana. Em função
nomias. disso, ele vai abandonando a mulher e a filha para
dedicar-se a uma vida desregrada ao lado de Rita
Baiana.
§§ Pombinha: é a típica personagem influencia-
da negativamente pela história e principalmen-
te pelo meio. Inicialmente, a jovem simboliza a
pureza, a virgindade, mas, depois do casamento,
acaba tornando-se amante da madrinha, Léonie,
e prostituta.
§§ Piedade: é a esposa de Jerônimo, uma portugue-
Bertoleza e João Romão, por Belmonte sa ignorante e mal vestida.
§§ Estela: “Senhora pretensiosa e com fumaças de “Teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e
nobreza”. Estela é a mulher de Miranda e vive rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes
com ele um romance de aparências. Ela é bra- pouco alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia,
sileira e tem origem rica, e é adúltera e mantém fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona
“relacionamento amoroso” com os empregados (...) expressão de honestidade simples e natural.”
do marido no armarinho. §§ Léonie: era prostituta e usava roupas exageradas
§§ Rita Baiana: Rita Baiana se recusa ao casamento e barulhentas de “cocote à francesa”, saltos altos,
por se considerar uma mulher livre, ela simboliza, luvas de vinte botões que cobriam todo o braço,
de maneira arquetípica, a sensualidade e o sexu- sombrinha vermelha com rendas cor-de-rosa, cha-
alismo da mulher brasileira. O seu rebolar e sua péu de imensas abas forradas de veludo, lábios
dança cativam e, em alguma dimensão, excitam pintados de vermelho, pálpebras tingidas de viole-
os homens do cortiço, inclusive sendo atribuído ta, cabelo artificialmente pintado de loiro.
característica zoomórficas aos seu comportamen-
§§ Zulmirinha: filha do Miranda e de Estela, Zulmira
to e descrição física. Ela era amante de Firmo, mas
é frágil e pálida, sempre triste. Existe uma dúvida
se entrega ao português Jerônimo. Em função dis-
quanto à sua paternidade e, por isso, foi despre-
so, Jerônimo e Firmo acabam brigando, num jogo
zada pelo pai por não ter certeza de que é sua
de vinganças que culminará com a morte de Firmo
filha, e pela mãe por achar que é filha do Miranda
depois de uma tocaia.
mesmo. Termina casando-se com João Romão.
§§ Firmo: representa o típico malandro carioca, um
mulato jogador de capoeira. Sempre quis arranjar
um emprego em repartições públicas e era uma
espécie de faz-tudo: “delgado de corpo e ágil
como um cabrito”.
§§ Botelho: é um velho que vegeta à sombra do Mi-
randa e sofre de hemorroida, dizia conhecer todo
o Rio e as fofocas e os podres de todas as pessoas.

38
§§ Outras personagens: Henrique; Alexandre e “Estes furtos eram feitos com todas as cautelas
Augusta (pais de Juju, afilhada de Léonie); Mar- e sempre coroados do melhor sucesso, graças à
ciana (mãe de Florinda); Florinda (que engravidou circunstância de que nesse tempo a polícia não
de Domingos, caixeiro de João Romão). se mostrava muito por aquelas alturas.”

Ao lado direito da venda de João Romão, surge


Enredo da obra Miranda, português negociante de tecidos que se muda
para o sobrado para afastar sua mulher, Estela, de seus
João Romão começou trabalhando como empre-
empregados, já que sabia das traições e não pelo moti-
gado de um verdureiro, dos treze aos 25 anos, especi-
vo alegado aos colegas: para evitar a fragilidade de sua
ficamente no bairro de Botafogo. Sempre economizou
e trabalhou muito duro para enriquecer, passando por pálida filha Zulmirinha.
dificuldades e privações: dormia na própria venda e co- “Dona Estela era uma mulherzinha levada da
mia o que dava por quatrocentos réis por dia pela es- breca: achava-se casada havia treze anos e du-
crava Bertoleza que era quitandeira e desde a morte de rante esse tempo dera ao marido toda a sorte e
seu amante, outro português que puxava carroça com desgosto.”
carga superior às suas forças. Ela entregou seu dinheiro
Já no segundo ano de casamento, Miranda já
para João Romão para que ele guardasse. Dia após dia,
flagrara os adultérios de sua esposa e só não se sepa-
ela passou a depender totalmente de João Romão, que
rou dela por causa do dote que recebera, puro interesse
propôs morarem juntos.
financeiro e social.
Bertoleza “concordou de braços abertos, feliz
“Prezava, acima de tudo, a sua posição social
em manter-se de novo com um português, por-
que, como toda a cafuza, Bertoleza não queria e tremia só com a ideia de ver-se novamente
sujeitar-se a negros e procurava instintivamente pobre...”
o homem numa raça superior à sua”. Odiavam-se e dormiam em quartos separados.
João Romão comprou alguns pedacinhos de ter- Algumas poucas vezes, não resistindo ao desejo, pro-
reno no entorno esquerdo da venda e construiu uma curava a mulher. Porém, ela fingia dormir e, depois, ria
pequena casa de duas portas, com as economias de e gargalhava dele. Miranda se afasta, arrependido, mas
Bertoleza. A quitandinha ficava na parte da frente da ela consegue segurá-lo e, enfim, se entrega tendo todo
casa e o fundo se destinou para um dormitório. Bertole- o domínio da situação.
za pagava mensalidade de vinte mil réis a seu dono, um Miranda “gozou-a loucamente, com delírio, com
velho cego de Juiz de Fora. João Romão falsificou uma verdadeira satisfação de animal no cio”.
carta de alforria, evitando, assim, as despesas e o envio
Esta situação dura pelos menos dez anos e Este-
mensal do dinheiro. Bertoleza mais uma vez se emocio-
na como ato e fica agradecida. Três meses depois deste la estava sempre propensa a se relacionar com os cai-
ocorrido, morreu o dono de Bertoleza. Os dois filhos não xeiros do marido.
iriam procurar uma escrava, pois nem a conheciam, o A desavença entre os dois portugueses, Miranda
que, de alguma maneira, tranquilizou João Romão. e João, se dá quando o primeiro resolve comprar pe-
Bertoleza era, ao mesmo tempo, criada e aman- daços de terra de seu imóvel e, em contrapartida, João
te. Depois de se passar um ano, João Romão se vale das quer comprar um pedaço do sobrado.
economias que ajuntou para comprar mais pedaços de João Romão inicia a construção de sua estala-
terra, ampliando seu terreno ao fundo da venda. Tudo gem e sua única preocupação é aumentar os bens; para
às custas de sua malandragem, roubando material, so- isso, não medem esforços, comem os piores legumes da
turnamente, de construções vizinhas. Ele construiu as horta, não comem um ovo produzido pelas galinhas e
três primeiras casinhas que deram início ao cortiço. aproveitam os restos de comida dos trabalhadores.

39
Agora, João Romão soma 95 casinhas em sua Estela fica assustada e diz que não fazia nada;
estalagem, para desespero de Miranda, que se incomo- quando vê Botelho e Valentim envergonha-se.
dava com o cortiço do lado de sua casa. O nome dado
“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acorda-
é “Estalagem de São Romão”. Miranda ergue um muro
va, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade
para separar sua casa do cortiço.
de portas e janelas alinhadas.
O próspero negócio de João Romão irrita e en-
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de
che de mágoa o Miranda, que:
uma assentada, sete horas de chumbo. Como
(...) não suporta a “exalação forte de animais que se sentiam ainda na indolência de neblinas
cansados” e o “bafo, quente e sensual que o as derradeiras notas da última guitarra da noite
embebedava com o seu fartum de bestas no coi- antecedente, dissolvendo-se à luz loura e terna
to”. Inveja do outro português que fez fortuna da aurora, que nem um suspiro de saudade per-
sem precisar “roer nenhum chifre”. dido em terra alheia.”

Miranda agora se ocupa em busca de um título de Os ambulantes começam a movimentar o es-


nobreza. Dá festa e movimenta as conveniências sociais. paço e torna-se intenso pouco depois. Leandra, ape-
Henrique, filho de um fazendeiro freguês de Mi- lidada de...
randa, chega de Minas Gerais para terminar os cursos
“Machona foi a primeira lavadeira que se pôs
preparatórios para Medicina e fica hospedado na casa
a trabalhar. Ela é portuguesa feroz, com pulsos
de Miranda. Dona Estela toma ares maternais pelo jo- cabeludos e grossos, anca de animal do campo.”
vem. Henrique é contido e só sai de casa com o Miranda
pela manhã. Tem duas filhas e um filho que não se parecem
Na casa, vivem alguns criados; são eles: fisicamente:
§§ Isaura, mulata ainda moça; §§ Ana das Dores, casada e desquitada do marido;
§§ Leonor, negrinha virgem, porém maliciosa, ligei- §§ Neném, ainda moça virgem;
ra e viva como um moleque; §§ Agostinho, grita igual ou melhor que a mãe.
§§ Valentim, filho de uma escrava alforriada por
Depois foi a vez de Augusta Carne-Mole:
Dona Estela, que “gosta” muito dele, dando a
Valentim liberdade, dinheiro e levando-o consigo “Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mu-
a passeio; lher de Alexandre, um mulato de quarenta
§§ Botelho, o velho parasita que foi empregado do anos, soldado de polícia, pernóstico, de grande
comércio e corretor de escravos que acaba na bigode preto...”
completa miséria. É contra o movimento abo-
§§ Depois vieram Leocádia, mulher do ferreiro Bruno;
licionista e exalta os militares. Odeia Valentim,
§§ Paula, cabocla velha, meio idiota;
que, sabendo disso provoca-o.
§§ Marciana e a filha Florinda;
“(...) caminhando para os setenta anos, antipá- §§ A velha Isabel, mãe de Pombinha;
tico, cabelos brancos, curto e duro como escova, §§ Pombinha, bonita, loura e pálida, com jeito de
barba e bigode do mesmo teor.” mocinha de boa família. Conhecida como “a flor
do cortiço”, é querida por todos, pois além de
Miranda conta as peripécias de sua esposa a Bo-
tudo escreve as cartas, ajuda as lavadeiras, tira
telho, que óbvio sempre dá razão ao dono da casa. Por-
as contas, lê o jornal para quem quiser. É noiva
tanto, Botelho comporta-se da mesma maneira quando de João da Costa;
Estela detona o marido. Certa vez, Botelho encontra §§ João da Costa, querido pelos colegas e pelo pa-
Estela numa situação constrangedora: trão, é do comércio.
“Estela entalada entre o muro e o Henrique”.

40
Pombinha não havia menstruado e, por isso, não Pombinha escreve cartas para o pessoal do corti-
poderia se casar; seu casamento será a felicidade da ço aproveitando o domingo.
mãe, pois voltariam a viver numa condição financeira Por volta das três da tarde, Firmo e seu amigo
melhor do que estavam vivendo depois do suicídio do Porfírio chegam com violão e cavaquinho. Ao mesmo
marido de Dona Isabel. tempo do jantar de Rita, das Dores recebe seu homem
Albino é lavadeiro e por viver entre as mulheres com um companheiro do comércio. Os dois estavam
se comporta como elas, que o tratam como do mesmo vestidos de fraque e chapéu alto. Agostinho, Machona
sexo. Efeminado que era, no carnaval saía vestido de e Neném estão ajudando das Dores e acabam ficando
dançarina pelos bailes dos teatros. Porém, não sai do para o jantar.
cortiço desde que apanhou dos estudantes de uma re- Jerônimo e Piedade são convidados paras os
pública, quando foi cobrar a roupa lavada das colegas. dois jantares, no entanto, contidos que eram, ficam em
Jerônimo propõe-se a trabalhar na pedreira por casa comendo o seu cozido à moda da terra e bebendo
setenta mil réis, mas João Romão acha a soma muito seu vinho verde.
alta. Jerônimo paga os doze vinténs do almoço e acom- O alarido vem agora da casa do Miranda.
panha João Romão. Atravessam o cortiço, enquanto as
lavadeiras continuam seu labor em cantoria, apesar do “Saía de lá uma terrível gritaria de hipes e hur-
clima muito quente com o sole escaldante do Rio de ras, virgulada pelo desarrolhar de garrafas de
Janeiro. João Romão, com o poder de sua condição, pas- champanha.”
sa por trás de Florinda e dá uma palmada na parte de Em função do barulho, a família de Miranda vira
trás do corpo. Ela reage bradando: “diabo de galego”. alvo de fofoca. Leocádia conta mais uma fofoca envol-
João Romão, inescrupuloso que era, novamente apalpa vendo Dona Estela, dizendo que a viu atracada com
a moça, que se defende com regador cheio de água. Henrique e maldizem também o namorinho de Zulmiri-
Jerônimo e sua mulher, Piedade de Jesus, che- nha com um estudante.
gam ao cortiço chamando atenção de todos. As lavadei- Jerônimo dedilha um fado triste com sua guitar-
ras fuxicam sobre a boa aparência de Jerônimo e sobre ra. Firmo, em contrapartida, toca um chorado baiano
a qualidade dos objetos que carregam na mudança. para afastar a melancolia e tristeza daquelas canções.
Marianita é a filha do casal que está no colégio Jerônimo fica curioso com aquela música e resolve ou-
e visita os pais aos domingos e dias santos. vir de perto, distraindo-se com aquela música estranha.
Jerônimo é um trabalhador exemplar e modifi-
Junto a sua mulher, vai até aquela grande roda em volta
cou o serviço na pedreira, fazendo, inclusive, com que
de Firmo e Porfiro. Vê Rita Baiana “surgir de ombros
seus companheiros mudassem seu comportamento e
nus, para dançar”.
seguissem seu exemplo de seriedade.
Jerônimo não consegue desgrudar os olhos de
Rita Baiana retorna de Jacarepaguá com o
Rita Baiana:
Firmo e com ela a alegria, depois de três meses, re-
voluciona o cortiço, pois todos querem saber de suas “(...) o mistério, a síntese das impressões que ele
novidades. recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do
Leocádia pergunta à Rita por que não se casa meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da
com Firmo. Rita responde: fazenda; era o aroma quente dos trevos e das
baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras;
“Um marido é pior que o diabo; pensa logo que
era a palmeira virginal e esquiva que se não tor-
a gente é escrava.”
ce a nenhuma outra planta (...) uma nota daque-
Rita Baiana agita seu retorno e junto com Albino la música feita de gemidos de prazer, uma larva
prepara um jantar do Norte para o Firmo e um amigo. daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em
E durante a noite, participarão do tradicional pagodinho torno da Rita Baiana e espelhavam-se pelo ar
de violão. numa fosforescência afrodisíaca.”

41
Jerônimo fica encantado com Rita e não conse- dendo-se, nega tudo e diz que Bruno já queria terminar
gue ver mais nada do que acontece, nem ninguém e com ela e estava inventando desculpas. Alexandre pede
percebe que está apaixonado por Rita. que o marido receba a mulher de volta numa tentativa de
Ele volta para almoçar em casa no dia seguinte, apaziguar a situação, porém Bruno recusa-se, assim como
diferentemente do que costuma fazer e manda a mulher Leocádia, que se dispõe a apanhar o que resta. Rita não
avisar João Romão que não irá trabalhar. Piedade acha aceita que Leocádia chame um carregador e coloca suas
estranho o comportamento do marido e quer saber o que coisas em sua casa, saindo depois com a amiga.
ele tem, se ele está doente, com medo, de que seja febre Jerônimo odiava café, mas depois da doença e de
Rita passa a tomar toda manhã uma xícara de café bem
amarela. Várias mulheres do cortiço foram visitá-lo e Rita
grosso e dois dedos de parati “pra cortar a friagem”. Ele
disse que ele estava assim por conta de sua chegada.
muda seu comportamento, marca do determinismo social,
Jerônimo diz que se encantou ao ver Rita dançar
sua energia é afrouxada e ele se torna contemplativo e
e ela prepara um café bem forte. Sai logo em seguida.
amoroso.
A chegada de Piedade deixa Jerônimo ranzinza e rejeita
É o processo de abrasileiramento de Jerônimo que
também a companhia da mulher com seu cheiro azedo, se estabelece como uma crítica ao determinismo social de
que passa seu serviço para a Leocádia. um ambiente degradante, como é o caso do cortiço.
Ao sair, Piedade encontra com Rita portando Abrasileira-se, e um exemplo disso é que o vinho
café misturado com cachaça parati e um cobertor gros- verde português é substituído pela cachaça; as comidas
so para dar um suadouro em Jerônimo. Obviamente, portuguesas pelas brasileiras. Começa também a fumar.
Piedade resolve ficar e sorri meio a contragosto, pois Diferentemente do marido, Piedade se adapta
acha tudo aquilo muito estranho, uma mulher cuidando apenas exteriormente, mas ainda conserva suas tradições
de seu homem. Jerônimo segue as recomendações de e os hábitos morais do passado, o que a torna mais triste.
Rita, toma a cachaça e o suadouro e quando Rita volta, Estranha quando o marido passa a dormir no sofá da sa-
ele segura sua mão e passa o braço esquerdo em sua linha e, mais tarde, numa rede perto da porta de entrada,
cintura, como forma de reconhecimento, porém o que inclusive, num certo momento, ele se nega a ficar com ela.
se vê é um desejo insaciável. Piedade fica mal e chora amaldiçoando a mudança para
a estalagem.
“Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, Automaticamente, este distanciamento da mulher
escapou-lhe das garras com um pulo.” determina uma aproximação de Rita, eles estão sempre
conversando. Jerônimo inventando estar preocupado com
Piedade conversava com Rita na porta, quando
a Leocádia que está de quatro meses, vai visitar Rita sem-
um escândalo explode no cortiço. Leocádia e Henrique se
pre. Jerônimo é o primeiro a chegar e o último a sair em
encontravam no capinzal nos fundos do cortiço, ela aceita
entregar-se sexualmente ao rapaz em troca de um coelho. noites de samba. Está definitivamente apaixonado por Rita.
Quando ouve um barulho, Henrique foge, mas não tem
jeito, Bruno surpreende Leocádia ainda deitada tentan- Problemática e principais temas
do vestir a saia e lhe dá uma tremenda surra. Leocádia
tinha pedido a Henrique para fazer-lhe um filho, para O cortiço revela um traço de realidade ligado ao
que pudesse servir como ama de leite. Provoca o ferreiro, crescimento urbano desenfreado nos grandes centros,
dizendo que ele não presta sequer para fazer um filho. especificamente no Rio de Janeiro. A necessidade de ha-
Bruno expulsa Leocádia de casa. Albino tenta reconciliar bitação para as classes pobres menos favorecidas levou
o casal, mas não adianta; ele a expulsa de casa e ele co- ao surgimento de grandes cortiços em centros urbanos.
meça a jogar pela janela todos os pertences da mulher. As Os miseráveis se reuniam nos cortiços para tentar ga-
mulheres do cortiço assistem ao “espetáculo”, algumas nhar a vida nos grandes centros, mantendo seu com-
com indiferença. Leocádia faz o mesmo com as coisas do portamento baseado na necessidade de sobrevivência
marido quebrando tudo e Bruno surge com um porrete. As e no desejo de uma vida melhor. Em função disso, al-
pessoas o desarmam e João Romão com Alexandre apare- guns temas, como a prostituição (caso de Pombinha), o
cem para colocar fim na bagunça. Bruno explica que não enriquecimento ilícito (João Romão), a manutenção da
conseguiu ver quem estava com Leocádia e ela, defen- riqueza e o casamento dotal (Miranda).

42
A falta de escrúpulos está presente como atitu-
Resumo dos capítulos
de normal neste ambiente completamente degradante,
deixando aflorar os sentidos mais animalescos, como a
sexualidade, as taras, a venda da virgindade por meio
Capítulo 1
do casamento, como condição para a ascensão eco-
A história começa com a estruturação descritiva
nômica, assim como o homossexualismo masculino ou
do personagem João Romão, um português que traba-
feminino. A dita zoomorfização, processo de animaliza-
lhou numa venda desde muito jovem, até que seu patrão
ção dos instintos humanos, mostra-se como produto de
voltou a Portugal e ele herdou o estabelecimento. Desde
uma situação de miséria determinada pelo meio.
então, seguiu firmemente seu objetivo de enriquecer.
Outro ponto fundamental é a ironia do narra-
Bertoleza é uma escrava amigada de um portu-
dor no que diz respeito à abolição da escravidão. João
guês que fazia fretes na cidade e que morre pelo excesso
Romão recebe a visita de um grupo de abolicionistas
de carga em sua carroça. Com a morte de seu companhei-
no exato momento que acaba de entregar Bertoleza à
ro, Bertoleza abriu-se para João Romão e com o avanço
polícia e aos antigos donos. Fato que desencadeia o sui-
da intimidade entre os vizinhos, João se tornou respon-
cídio de Bertoleza.
sável pela negra, seu “caixa, procurador e conselheiro”.
Jerônimo sente uma atração doentia por Rita
Romão falsificou uma carta de alforria que deso-
Baiana, que, por sua vez, não mede as consequências
brigava o pagamento dos vinte mil réis mensais ao dono
de seus atos para manter o que supõe seja a sua li-
de Bertoleza. Esta era mais uma forma de acúmulo de
berdade de mulher. A base do romance naturalista é
capital. O dono de Bertoleza logo morreu e a carta nunca
o retrato de uma sociedade degradada, na qual João
trouxe preocupações para o casal.
Romão é premiado pela imoralidade, cumprindo seus
Romão inicia um processo de ampliação de poder
objetivos às custas da desgraça alheia.
local, e começa a adquirir os terrenos próximos à venda e
à quitanda. Junto com Bertoleza, roubavam materiais de
No cinema construção da vizinhança durante a noite para a constru-
ção de casinhas e quartos em seus terrenos, para serem
O filme ”O cortiço” baseia-se no romance natu- alugadas. Seu processo de acúmulo passava por cima de
ralista com o mesmo nome, de Aluísio Azevedo. A obra tudo e de todos. Para enriquecer João ainda deixava de
cinematográfica foi produzida em 1977 e retrata, à se- pagar sempre que podia sem nunca deixar de receber. Lu-
melhança do livro, a realidade da sociedade do século dibriava seus fregueses, mudava o valor das cobranças,
XIX. O filme foi dirigido por Francisco Carvalho Jr. e tem abusava dos juros e modificava nos pesos e medidas. Uma
duração de 110 minutos. Grandes atores da época em das suas grandes conquistas foi adquirir com esse dinhei-
que foi produzido fazem parte de seu elenco, como Bet- ro “arrecadado” uma pedreira que ficava atrás de seus
ty Faria, Mário Gomes e Antônio Pompeu. terrenos.
Fonte: <http://canaldoensino.com.br/blog/ Mudou-se, para um sobrado vizinho, um portu-
assista-gratis-ao-filme-o-cortico-de-aluisio-azevedo>.
guês chamado Miranda, um comerciante que sofria com
o adultério de sua esposa. A desculpa de sua mudança
era que ali seria um lugar melhor para o crescimento de
sua filha, Zulmira. Porém, a realidade era que ele queria
afastar Dona Estela, sua esposa, de seus amantes.
Miranda queria adquirir terrenos que ficavam ao
lado de seu palacete e fazer de jardim, mas João Romão
recusava-se a vender por puro capricho.
João Romão tinha uma estalagem que ocupava
todos seus terrenos que totalizavam 95 casinhas. A água
era abundante e o local era próximo da pedreira, o que
atraiu muitos trabalhadores, especialmente da pedreira, e
lavadeiras. O cortiço e o desenvolvimento das construções
irritou Miranda.

43
Capítulo 2 Leocádia, uma outra lavadeira portuguesa, era
casada com Bruno, um ferreiro. A vizinhança atribuía
Miranda invejava cada vez mais João Romão e, fama de leviana a ela.
em dois anos o cortiço cresceu. João Romão sem nunca A “Bruxa”, na verdade se chamava Paula, além
usar um terno, vivendo com uma escrava, acaba enri- de lavadeira, era respeitada como rezadeira, benzedeira
quecendo mais que Miranda, o que o irrita. e feiticeira. Marciana tinha mania de limpeza, era a filha
Era casado por interesse, mantinha seu relacio- virgem de Florinda, outra lavadeira.
namento para não perder os dotes que recebera em fun- A mais respeitada das lavadeiras era Dona Isa-
ção desta união. Diante dessa disputa, Miranda busca bel, pois viu seu marido suicidar-se e, mesmo assim,
uma outra forma de se colocar acima de seu oponente educou muito bem sua filha, a Pombinha.
e que, talvez, não fosse assim tão fácil de ele conseguir; Pombinha tinha um pretendente chamado João
que era comprar o título de barão. da Costa, que trabalhava no comércio. Por ainda não
Eis que veio instalar-se junto a Miranda a figura ser moça adulta, Dona Isabel não autorizava Pombinha
de Henrique, um jovem de 15 anos, filho de um clien- a se casar.
te fazendeiro. A casa de Miranda já estava bem cheia, Albino é outro personagem, um sujeito fraco, po-
moravam, além de Miranda, Dona Estela e Zulmira (com bre e afeminado, sempre rodeado de mulheres e tam-
12 anos), mais três criados: Isaura, uma jovem mulata, bém lavava roupas. Saía do cortiço apenas no carnaval.
Leonor, uma negrinha virgem, e Valentim, filho de uma Ainda foi comentada Rita Baiana, lavadeira que adora-
escrava que Dona Estela tinha alforriado. va uma festa, e que estava sumida do cortiço desde que
Além desses, ainda havia Botelho, um velho se engraçou com um torneiro.
amargurado ex-funcionário de Miranda, mas agora já O narrador cria muitos personagens que não
não prestava para nada nem tinha família. seguem a lógica tradicional dos romances, na verdade
Certa vez, ele flagrou a Dona Estela se agarrando funcionando como tipos sociais que compõem a estru-
com o jovem Henrique no jardim. Era esperto, pois sa- turação do espaço. Após encerrar essa exaustiva descri-
bendo dos segredos de ambos, sem revelar a ninguém, ção de tantas figuras do cortiço, o narrador se concentra
mantinha sua posição favorável na casa. Ao falar a sós na venda à entrada da estalagem, em que Domingos
com Henrique, deu a entender que esse silêncio não se- e Manuel atendiam inúmeros fregueses no balcão, en-
ria gratuito: acariciava-o constantemente e elogiava a quanto João Romão, seu patrão, e Bertoleza atendiam
beleza de Henrique, ou seja, Botelho com crenças mili- no estabelecimento ao lado, servindo refeições. Neste
tares também apresenta tendência homossexuais. espaço, surge um estranho que quer falar com o dono
do estabelecimento.
Capítulo 3
Capítulo 4
O cortiço se desenvolve e a descrição de seus
moradores se assemelham a de animais (“machos e fê- O estranho que ali chegou se apresenta a João
meas” ao invés de homens e mulheres.), o processo de Romão, ele se chama Jerônimo e é um indicado para
zoomorfismo. trabalhar em sua pedreira. O salário que deseja é de se-
Alguns personagens vão sendo apresentados tenta mil réis, mas João aceita pagar apenas cinquenta.
de maneira espiral, como se todos fossem frutos deste João leva Jerônimo para conhecer a pedreira elo-
ambiente degradante. As primeiras são as mulheres que giando o lugar, ao mesmo tempo que fala mal dos seus
estavam lavando roupas. contratados. Antes de contratá-lo, João procura saber se
seu novo empregado irá estabelecer moradia no cortiço
Leandra, apelidada de “Machona”, era uma la- e se fará compras e refeições em seu estabelecimento,
vadeira portuguesa com três filhos: Maria das Dores, co- pois assim garante que o salário diferenciado que lhe
nhecida como “Das Dores”, mulher separada, Neném, pagará voltará, de alguma maneira, ao seu bolso.
jovem ainda donzela, e Agostinho, um menino levado.
Augusta Carne-Mole, também lavadeira, era brasileira e
casada com Alexandre, um mulato soldado de polícia.
Tinham filhos pequenos, um deles era Juju e Léonie.

44
Capítulo 5 Algumas vizinhas foram visitá-lo com remédios,
mas ele não gostou. Até que chegou Rita Baiana e o
Jerônimo e Piedade de Jesus, sua esposa, muda- alegrou. Ela preparou para ele um café com parati (pin-
ram -se para o cortiço no dia seguinte de sua contrata- ga) e fez recomendações a Piedade.
ção. Ocuparam a casa de número 35, os vizinhos diziam Numa das visitas de Rita, Jerônimo deu em cima
que tinha má sorte, por conta de que a antiga moradora dela, devido ao desejo que só crescia desde que a viu
tinha morrido ali. dançando no pagode. Ela fugiu e ameaçou contar tudo
Era um português muito forte e trabalhador, sua à sua mulher. Já Piedade percebeu o clima, mas não
qualidade refletiu prontamente nos resultados da pe- questionou nada.
dreira. Romão viu seus lucros subirem e aumentou o Nesse momento, surgia uma confusão sexual no
salário de seu novo empregado. Jerônimo passou a ser cortiço. Henrique deu um coelho branco para Leocádia,
respeitado pela vizinhança por seu comportamento. que se entregou ao jovem. Bruno, seu marido, desco-
briu e armou uma briga que trouxe grande confusão ao
Capítulo 6 cortiço. Henrique conseguiu fugir sem ser reconhecido.
Com o orgulho ferido, Bruno mandou Leocádia
Num domingo, chega Rita Baiana e se torna o embora de casa e jogou todos os seus pertences para
assunto de todos, justamente por ser festeira, compor- fora. Quando teve oportunidade, Leocádia se vingou, des-
tando-se de forma “diferente”. Então, cumprimentava truindo tudo que restava na casa. Alguns vizinhos riam,
um a um, comentava sobre suas diversões no carnaval, outros ficavam preocupados, não havia individualidade
em Jacarepaguá. Prometeu que naquela noite haveria naquele lugar. A coisa se agravou quando Bruno tentou
um pagodinho de violão na estalagem e todos ficaram bater na mulher e todos se misturaram numa confusão.
animados. Leocádia juntou o pouco seu que restou e de-
As mulheres preparavam as casas para receber cidiu sair do cortiço. Rita Baiana disse que sairia junto
seus homens. Pombinha escrevia cartas para os mora-
com ela para ajudar, o que gerou curiosidade de todos.
dores que eram analfabetos.

Capítulo 9
Capítulo 7
Todas as manhãs, Jerônimo tomava o café e pa-
Assim, o cavaquinho e o violão começaram a se
rati, receitados pela Rita Baiana “pra cortar a friagem”.
aquecer para a festa. Miranda espiava, da janela, a ba-
gunça, assim que o amante de Rita, Firmo, chegou à sua No trabalho, ele mudou de comportamento, passou a
casa, junto com Porfiro, seu amigo. dar mau exemplo. Abriu mão de todas as tradições por-
Jerônimo foi convidado, mas preferiu ficar na tuguesas e absorveu os costumes brasileiros, as músi-
porta da sua casa tocando cantigas portuguesas. Con- cas, as refeições e danças. Claro, tudo isso colocado por
tudo, foi atraído pela música alegre e juntou-se ao povo. conta de sua paixão pela mulher brasileira.
Logo, havia diversas pessoas dançando. Jerônimo não dava mais atenção para Piedade,
Quando Rita Baiana entrou na dança, o portu- inclusive na cama, e avançava cada vez mais para Rita
guês Jerônimo ficou enfeitiçado pela beleza da brasilei-
Baiana. Piedade percebeu a situação de seu marido e
ra. Para ele, o tempo parou, não viu o mesmo passar e,
resolveu procurar ajuda com Paula, a Bruxa. Ela tirou a
quando se deu conta, já era a hora de ir trabalhar.
sorte nas cartas, mas foi em vão. Firmo, amasio de Rita,
percebeu também o clima com Jerônimo.
Capítulo 8
Outra confusão no cortiço: Florinda, filha virgem
Jerônimo não passou bem e se recolheu para de Marciana (até então), aparece grávida e sua mãe
dormir em casa na hora do almoço. Com a fofoca do descontrolou-se e a atacou violentamente até descobrir
povo do cortiço, o mal-estar de Jerônimo logo era de o homem responsável pelo ato: Domingos, o caixeiro
conhecimento de todos. da venda.

45
A confusão rolou até chegar à venda, onde João Neste mesmo domingo à noite, a festança no
Romão, espécie de prefeito local, fez o papel de juiz, cortiço aumentou, contrapondo-se à festa de Miranda.
interrogando e decretando punição a Domingos, que Durante as danças, Jerônimo e Rita Baiana se insinua-
também era seu funcionário. A pena seria ter que se vam e, num certo momento, Firmo, que lutava capoeira,
casar, senão seria demitido. João prometeu ainda que, partiu pra cima do português.
caso Domingos preferisse fugir, ele arcaria com o dote Rita não disfarçava certo contentamento em ver
de Florinda, o que acalmou os ânimos de Marciana. dois homens brigando por ela e Piedade estava preocu-
pada com a vida do marido. Ao que, de pronto, Firmo
À noite, Augusta e Alexandre receberam a visita
enfiou uma navalha em Jerônimo.
da comadre Léonie, a cocote que cuidava da filha do
O cortiço estava um caos e a polícia chegou ao
casal, Juju. Esta visita também interessava a todos na
local quando outro conflito se armou: ninguém queria
estalagem, já que Leónie vivia como prostituta desfru-
que os soldados entrassem, pois sabiam que, quando
tando de festas e roupas luxuosas. Por conta de sua
isso acontecia, todas as casas eram invadidas e destru-
independência, ela não recebia discriminação entre os
ídas. Jerônimo ficou recolhido em casa, quando todos
moradores. Algumas mulheres do cortiço invejavam-na, protegiam a estalagem, montando uma barricada.
pois não precisava de marido para ter boa vida. A resistência se rompeu quando a casa de Mar-
Juju vestia-se de maneira diferente também, o ciana, a de número 12, pegou fogo, que se estendeu
que fazia dela uma pessoa admirada pelos moradores. para outras casas. Em seguida, caiu uma tempestade.
Já Pombinha era a garota mais educada do lugar, e se
interessava por essa vida da amiga Léonie. Certo dia,
Léonie convidou Pombinha e sua mãe para jantar em
sua casa.

Capítulo 10
Com o sumiço de Domingos, Marciana foi pro-
curar por João Romão para acertar a promessa de dote
Ilustração de Portinari para o capítulo “O vergalho”.
que havia feito. Ele se fez de desentendido e não garan-
In: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
tiu nada para ela.
Quando Marciana chegou em sua casa, descon-
Capítulo 11
tou a desgraça em sua maior mania, a limpeza domés-
tica. Ao mesmo tempo que isso acontecia, Florinda cho- Ninguém desconfiou, mas foi a Bruxa que co-
rava, irritando ainda mais sua mãe, que tentou bater-lhe locou fogo no cortiço e João Romão logo começou a
novamente, o que fez com ela fugisse de casa. planejar a recuperação cobrando algo a mais dos seus
Marciana entrou em choque com a atitude de inquilinos para cobrir os custos. Antes disso, precisou ir
Florinda e iniciou a armar confusão com João Romão, a à cidade prestar depoimento na Secretaria de Polícia,
quem considerava culpado pelos últimos acontecimen- aonde foi acompanhado por vários moradores curiosos
tos. Ele foi enérgico, mandando-a embora da estalagem. que responderam junto a ele a todas as perguntas.
Miranda ganhou o título de barão e fazia uma fes- Jerônimo era cuidado por Rita e Piedade, e uma
ta para comemorar. João Romão, que só se preocupava noite após o ocorrido, todos já voltavam à rotina. Ape-
em ficar rico, agora, por inveja, queria se tornar barão. nas a Pombinha mudara seu cotidiano. Naquele domin-
go, havia atendido ao convite de Leónie e havia sido
Para mostrar sua força, João Romão saiu pelo abusada sexualmente por ela enquanto sua mãe dor-
cortiço a impor seu poder reclamando de tudo e de to- mia por ter bebido vinho.
dos. Chamou a polícia para levá-la presa e somente a Confusa, Pombinha resolve caminhar sozinha
Bruxa se impressionou com tudo aquilo. pelo cortiço, e pensa em “tornar-se mulher”.

46
Capítulo 12 No retorno para casa, encontrou Bertoleza, mal-
tratada pelo trabalho, suja e já dormindo.
Pombinha tem sua primeira menstruação e sua João pensou que, se ela morresse, seu caminho
mãe entende como dádiva divina. Todos ficaram saben- estaria livre com Zulmirinha.
do e João da Costa se apresentou para que ele fosse
sua noiva. Capítulo 14
Jerônimo foi para um hospital e Rita ficou sozi-
nha, já que Firmo foi proibido de entrar na estalagem. Rita e Firmo mantiveram seus encontros alugan-
Bruno se arrependeu de ter expulsado Leocádia do um quarto de uma velha na Rua de São João Batis-
de casa e a Bruxa lhe diz que sua mulher ainda o ama- ta, já que um não poderia entrar no cortiço. Mas Firmo
va, por meio das cartas. Bruno foi até Pombinha para ela já desconfiava de alguma traição, que foi confirmada
lhe escrever uma carta. quando soube que na mesma época Jerônimo havia sa-
Pombinha se interessou pela relação, pois seus ído do hospital. Prometeu se vingar.
olhos mudaram em relação aos homens e mulheres. Rita cuidava de Jerônimo, que ainda estava de
E eis que chega o dia de seu casamento. cama. Piedade sofria em silêncio.
Jerônimo e mais dois amigos, Zé Carlos e Pataca,
Capítulo 13 fizeram uma emboscada para Firmo em vingança.

O cortiço e o bairro crescia, tanto que surgiu um Capítulo 15


cortiço concorrente, o “Cabeça-de-Gato”, levantado
por outro português. Naquela mesma noite, os três foram ao bar fre-
João Romão incentivou a intriga entre os mo- quentado por Firmo (Garnizé). Pataca entrou sozinho e
radores. Até os moradores de cada cortiço tinham sua se fez de amigo de Firmo oferecendo-lhe mais bebidas.
denominação: os carapicus eram do São Romão (esta- Firmo confessou seu interesse em atacar e se vingar de
belecimento de João Romão) e os cabeças-de-gato, do Jerônimo ainda naquela noite. Pataca aproveitou-se da
concorrente. situação para saber quais armas ele levava e atraiu-o
Firmo, que havia sido expulso do São Romão, era para a emboscada: alegando ter visto Rita na praia con-
um dos mais respeitados dos cabeças-de-gato, conside- venceu Firmo de segui-lo.
rado um líder por suas habilidades. Jerônimo e seus comparsas pegaram Firmo na
No entanto, após três meses, João Romão notou praia e bateram nele até a morte. Jogaram o corpo ao
que o cortiço vizinho não era uma grande ameaça e mar. Jerônimo pagou seus ajudantes e voltou ao cortiço
que, por fim, ajudava no movimento dos seus negócios, percebendo que já não gostava de sua mulher. Mudou
com o crescimento do bairro. Aí mudou o foco de sua sua rota e foi ver Rita que, ao vê-lo cheio de sangue
intriga: Miranda. pelo corpo e com a navalha que fora de Firmo, entre-
João começou a enrolar o bigode e mudou seus gou-se completamente a ele. Fizeram planos de fugirem
costumes, usava chapéus, casacos, lia jornais e roman- da estalagem e viverem juntos.
ces. Contratou pessoas para servir pratos e, finalmente,
encontrou uma maneira de investir seu dinheiro. Capítulo 16
Numa conversa de Romão com Botelho, o velho
lhe deu uma ideia: que conquistasse Zulmira, a filha de Piedade passara a noite acordada e, quando
Miranda, por conta da herança. amanheceu, foi à rua procurar notícias. Quando voltou
Botelho poderia ajudar, pois tinha influência, e ao cortiço, ela já sabia que seu marido estava bem, mas
João tentou pechinchar no acordo, mas cedeu ao que havia fugido de casa. Descobre que Firmo estava morto
Botelho queria. e entendeu tudo o que havia acontecido.
Poucos dias depois, João Romão já era convida- Rita chega feliz ao cortiço, e Piedade parte para
do de Miranda para jantar. Apesar da falta de costume cima dela, primeiro com ofensas, depois fisicamente.
de participar de eventos como esse, o dono do cortiço Como de costume, o cortiço todo parou para ver a bri-
arranjou-se e lá foi. ga: os portugueses apoiavam Piedade e os brasileiros,

47
a Rita. A briga se espalhou e todos começaram uma Miranda e Botelho questionavam o status do re-
grande confusão. lacionamento de Romão com uma escrava, a Bertoleza,
João Romão protegeu sua venda e Miranda que percebia o distanciamento de seu amasio. Ela per-
chamou a polícia. A confusão aumentaria, pois nesse cebia a mudança do comportamento, o cheiro de outras
momento se aproxima um bando vindo dos cabeças-de- mulheres e a ausência de interesse dele, mas ainda o
-gato que vinham vingar a morte de Firmo. admirava. Bertoleza já não esperava amor, mas respeito
a todos os anos de serviços prestados. Botelho disse a
João Romão que poderia pedir a mão de Zulmira, uma
Capítulo 17 vez que Miranda já havia aprovado. Bertoleza ouviu a
conversa e não pôde segurar suas lágrimas.
A batalha teve início, em instantes, via-se a casa Jerônimo já estava trabalhando em outra pedrei-
88 pegando fogo. Mais uma vez, a responsável foi a ra e vivia com Rita Baiana. Ele viciou-se nas bebidas, nas
Bruxa, que fez o trabalho perfeito, pois o fogo não dava danças, já não sabia mais economizar, mas vivia feliz.
sinais de baixar. Surpreendentemente, os cabeças-de- Piedade emagreceu muito e descobriu nas be-
-gato, diferente dos policias no último incêndio, não se bidas a fuga de sua tristeza, e os vizinhos a elegeram
aproveitaram da situação, mas recuaram por conside- a nova Pombinha, agora sobre o nome de Senhorinha.
rar uma briga injusta. Até ajudaram a salvar os bens de Um dia, Piedade foi cobrar a mensalidade do co-
seus inimigos. légio e encontrou Jerônimo nos braços de Rita Baiana.
A confusão no cortiço crescia e a Bruxa sorria
vendo o cortiço ser consumido pelo fogo. Tudo se acal- Capítulo 20
mou com a chegada dos bombeiros.
Na entrada do cortiço, que estava mudado e
muito desenvolvido, agora havia um jardim e uma placa
Capítulo 18 “Avenida São Romão”. Havia estudantes, funcionários
públicos, artistas e não só lavadeiras e operários como
Durante o incêndio, o velho Libório, pedinte do antigamente.
cortiço, correu para sua casa para pegar uma riqueza. Piedade colocou a filha para dormir depois de
Vendo isso, João Romão o seguiu e pegou de surpresa chegar em casa e foi à vizinhança procurar o que fazer.
o velho arrastando um enorme embrulho. Em meio às Na casa de Das Dores, se embebedou. Quando João Ro-
chamas, os dois brigaram, quando uma parte do teto mão viu a bagunça, mandou todos para as suas casas.
caiu sobre o velho, então o dono da estalagem pegou o Piedade até quis bater de frente, mas foi impedida por
embrulho e fugiu. Pataca, que já a assediava e tinha interesse nela há al-
No dia seguinte, a cena era terrível, havia ca- gum tempo.
dáveres queimados no meio do pátio, entre eles o da Foram Pataca e Piedade para a casa dela, con-
Bruxa e de Libório. versaram e beberam mais, até que ele a atacou no chão
Miranda consolava João, mas após o primeiro in- da cozinha. Senhorinha acordou com o barulho e en-
cêndio havia feito um seguro, e este, segundo o deixara controu os dois juntos, com Piedade toda vomitada.
mais rico ainda. O português já planejava reconstruir
sua estalagem, com ainda mais casas. Miranda admirou Capítulo 21
sua sagacidade.
Romão contou o dinheiro do Libório e começou Bertoleza dormia no chão, nos fundos do arma-
seus planos de ampliação do cortiço. zém, e João Romão em seu quarto, todo reformado,
com papel de parede, móveis novos e cama de casal.
Capítulo 19 Miranda já havia concedido a mão de sua filha Zulmira.
Dona Estela já procurava uma data para o casamento,
Além de reconstruir casas, Romão construiu um mas Bertoleza ainda estava em sua casa.
sobrado mais alto que o de Miranda. E começou a se Romão pensou em matá-la e foi até onde ela
comportar como um burguês (aplicava em ações da bol- dormia e a olhou por um tempo pensando no que faria
sa, amizade com barões, frequentava cafés etc.). dela. Ela acordou e ele assustado pensou se ela descon-
fiava de algo.
48
Agostinho, filho de Machona, morreu violentamente num acidente na pedreira. João lamentou: “morrer
assim uma criança que não faz mal a ninguém, e não Bertoleza, que tanto o atrapalha!”.
Botelho e João procuravam uma maneira de resolver o “problema” da Bertoleza. Bertoleza entrou e xingou
João Romão, pois não queria ser descartada, dizendo que “quem lhe comeu a carne haveria de roer seus ossos”.
Botelho e João tiveram uma ideia, a de denunciar Bertoleza ao seu dono, já que Romão havia falsificado a carta de
alforria da negra, portanto, ela ainda era escrava.

Capítulo 22
Bertoleza ficou esperta e acordava com qualquer barulho durante a noite, sabia do risco que corria.
O armazém se tornou um centro de distribuição de mercadorias para vários comércios.
Léonie ainda visitava o lugar levando Juju para visitar Alexandre e sua mulher. Essas visitas continuavam
causando alvoroço e admiração entre os moradores, principalmente a partir de quando, junto a Léonie, estava
Pombinha que se cansou do noivo, se aventurou com outros até perder o marido. Foi morar com Léonie e virou
prostituta.
Dona Isabel rejeitou a postura da filha, mas por dependência financeira aceitou. Léonie e Pombinha se
tornaram as grandes damas da cidade enricando a partir dos desejos dos homens. Pombinha tinha no cortiço uma
“aprendiz”, a filha de Jerônimo.
Piedade não trabalhava e estava entregue à bebida e era abusada todos os dias por homens que se aprovei-
tavam de sua condição. Ela e sua filha passaram a ser mal vistas e foram expulsas. Foram para o Cabeça-de-Gato,
que estava cada vez mais miserável.

Capítulo 23
Botelho avisa o português que o dono de Bertoleza já estava sabendo da situação. O “dono” de Bertoleza
chegou acompanhado de policiais e, cinicamente, João Romão disse que não sabia de onde tinha vindo aquela
negra. Num ato de plena decepção e traição, Bertoleza é surpreendida na cozinha; a escrava percebe a emboscada
e se mata enfiando a faca enferrujada em que descamava peixes, em sua barriga.
No mesmo tempo chegava à estalagem uma comissão de abolicionistas para trazer um diploma de sócio
benemérito a João Romão. Ele, como se nada tivesse acontecido, pede para que eles o aguardem na sala de visitas.

49
Aprofunde seus conhecimentos
1. Na obra-prima de Aluísio Azevedo, O cortiço: 4. Sobre o Realismo, assinale a incorreta.
a) podem-se perceber as características bási- a) O Realismo na Literatura manifesta-se na
cas da prosa romântica: narrativa passio- prosa. A poesia da época vive o Simbolismo.
nal, tipos humanos idealizados, disputa b) O romance social, psicológico e de tese é a
entre o interesse material e os sentimentos principal forma de expressão do Realismo.
mais nobres. c) O romance realista deixa de ser apenas dis-
b) transporta-se o leitor ao doloroso universo tração e torna-se veículo de crítica a insti-
dos miseráveis e oprimidos migrantes que, tuições, como a Igreja católica, e à hipocri-
fugindo da seca, se abrigam em acomoda- sia burguesa.
ções coletivas. d) A escravidão, os preconceitos raciais e a se-
c) consagra-se, na literatura brasileira, a prosa xualidade são os principais temas, tratados
naturalista, marcada tanto pela associação com linguagem clara e direta.
direta entre meio e personagens quanto pelo
estilo agressivo. 5. O cortiço, obra naturalista:
d) vê-se renascer uma prosa forte, de cunho re- a) traduziu a sensualidade humana na ótica
gionalista, característico da década de 30, do objetivismo científico, o que se alinha à
que retrata nossas mazelas, em estilo seco. grande preocupação espiritual.
e) verifica-se uma forte relação entre o meio b) fez análises muito subjetivas da realidade,
em que vivem os personagens e sua vida pouco alinhadas ao cientificismo predomi-
pessoal, relação essa baseada no sentimen- nante na época.
talismo romântico. c) explorou as mazelas humanas de forma a in-
citar a busca por valores éticos e morais.
d) não pôde ser considerado um romance en-
2. Sobre o Realismo, assinale a alternativa in- gajado, pois deixou de lado a análise da re-
correta. alidade.
a) O Realismo e o Naturalismo têm as mesmas e) tratou de temas de patologia social, pouco
bases, embora sejam movimentos diferentes. explorados nas escolas literárias que o pre-
b) O Realismo surgiu como consequência do cederam.
cientificismo do século XIX.
c) O Realismo surgiu na Europa, como reação Leia o texto a seguir para responder às ques-
ao Naturalismo. tões 6 e 7.
d) Gustave Flaubert foi um dos precursores do
Realismo. Escreveu Madame Bovary. Jerônimo bebeu um bom trago de parati,
e) Emile Zola escreveu romances de tese e in- mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita.
fluenciou escritores brasileiros. — Vem pra cá... disse, um pouco rouco.
— Espera! Espera! O café está quase pronto!
E ela só foi ter com ele, levando-lhe a cháve-
3. Dos segmentos abaixo, extraídos de O cor-
na fumegante da perfumosa bebida que ti-
tiço, de Aluísio Azevedo, marque o que não
nha sido a mensageira dos seus amores [...]
traduza exemplo de zoomorfismo. Depois, atirou fora a saia e, só de camisa,
a) Zulmira tinha então doze para treze anos e lançou-se contra o seu amado, num frenesi
era o tipo acabado de fluminense; pálida, ma- de desejo doido.
grinha, com pequeninas manchas roxas nas Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus bra-
mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, ços; ao sentir na sua pele a carne quente da-
faces levemente pintalgadas de sardas. quela brasileira; ao sentir inundar-se o rosto
b) Leandra [...] a Machona, portuguesa feroz, e as espáduas, num eflúvio de baunilha e
berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da
de animal do campo. mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo
c) Daí a pouco, em volta das bicas era um zun- e peludo colo de cavouqueiro os dois globos
zum crescente; uma aglomeração tumultuo- túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas
sa de machos e fêmeas. dela; sua alma derreteu-se, fervendo e bor-
d) E naquela terra encharcada e fumegante, na- bulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe
quela umidade quente e lodosa começou a pela boca, pelos olhos, por todos os poros do
minhocar, [...] e multiplicar-se como larvas corpo, escandescente, em brasa, queimando-
no esterco. -lhe as próprias carnes e arrancando-lhe ge-
e) Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era midos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe
um mulato pachola, delgado de corpo e ágil sacudiam os membros, fibra por fibra, numa
como um cabrito [...]. agonia extrema, sobrenatural, uma agonia
de anjos violentados por diabos, entre a ver-
melhidão cruenta das labaredas do inferno.

50
6. A atração inicial entre Rita e Jerônimo não c) as comparações dos seres humanos com ani-
acontece na cena descrita. Segundo o texto, mais, a promiscuidade.
pode-se inferir que ela se relaciona com: d) a representação objetiva da vida, o endeusa-
a) uma dose de parati. mento do ser humano.
b) a cama de Rita. e) a fuga à realidade, o positivismo exacerbado.
c) uma xícara de café.
d) o perfume de Rita. 10. O Realismo e o Naturalismo são movimentos
e) o olhar de Rita. surgidos na segunda metade do século XIX,
marcado por transformações econômicas,
7. O enlace amoroso, seja na perspectiva de científicas e ideológicas. Sobre esses dois mo-
Rita, seja na de Jerônimo: vimentos, assinale a alternativa incorreta.
a) é sublimado, o que lhe confere caráter gro- a) Para o escritor realista, a neutralidade dian-
tesco na obra. te do tema é imprescindível. Para isso, usa
b) é desejado com intensidade e lhes aguça os a narrativa em terceira pessoa. O naturalista
ânimos. observa também esse princípio, acrescen-
c) reproduz certo incômodo pelo tom de ritual tando uma aproximação das ciências expe-
que impõe. rimentais e da filosofia positivista.
d) representa-lhes o pecado e a degradação
b) O Realismo brasileiro teve poucos seguidores
como pessoa.
e uma de suas figuras marcantes foi Machado
e) é de sensualidade suave, pela não explicita-
de Assis. Euclides da Cunha, com Os sertões,
ção do ato.
foi outra figura de destaque no movimento.
8. Pode-se afirmar que o enlace amoroso entre c) O Naturalismo é considerado um prolonga-
Jerônimo e Rita, próprio à visão naturalista, mento do Realismo, pois assume todos os
consiste: princípios e as características deste, acrescen-
a) na condenação do sexo e consequente reafir- tando-lhe, no entanto, uma visão cientificis-
mação dos preceitos morais. ta da existência. No Brasil, o Naturalismo foi
b) na apresentação dos instintos contidos, sem iniciado por Aluísio Azevedo, que publicou O
exploração da plena sexualidade. mulato, Casa de pensão e O cortiço.
c) na apresentação do amor idealizado e reves- d) Ambos, Machado de Assis e Aluísio Azevedo,
tido de certo erotismo. iniciaram-se na estética romântica. Poste-
d) na descrição do ser humano sob a ótica do riormente, o primeiro seguiu a estética rea-
erótico e animalesco. lista, e o segundo, a estética naturalista.
e) na concepção de sexo como prática humana e) A fase realista de Machado de Assis pode
nobre e sublime. ser observada nos seus contos e romances.
Entre eles, se destacam Memórias póstumas
9. O DESPERTAR DO CORTIÇO de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom cas-
murro, obras em que abordou temas como o
Daí a pouco, em volta das bicas era um zun-
adultério, o parasitismo social, a loucura e
zum crescente, uma aglomeração tumultu-
a hipocrisia.
osa de machos e fêmeas. Uns, após outros,
lavavam a cara, incomodamente, debaixo do
fio de água que escorria da altura de uns 11. Acerca do romance O cortiço, de Aluísio Aze-
cinco palmos. O chão inundava-se. As mu- vedo, não é correto dizer que:
lheres precisavam já prender as saias entre a) todas as personagens, por serem muito po-
as coxas para não as molhar; via-se-lhes a bres, enveredam pelo mundo do crime ou da
tostada nudez dos braços e do pescoço, que prostituição.
elas despiam, suspendendo o cabelo todo b) as personagens, ainda que todas sejam po-
para o alto do casco; os homens, esses não bres, possuem temperamentos distintos, tais
se preocupavam em não molhar o pelo, ao como Bertoleza, Rita Baiana e Pombinha.
contrário metiam a cabeça bem debaixo da c) homens e mulheres são, na sua maioria, ví-
água e esfregavam com força as ventas e as timas de uma situação de pobreza que os
barbas, fossando e fungando contra as pal- desumaniza muito.
mas das mãos. As portas das latrinas não d) as personagens, na sua maioria, sejam ho-
descansavam [...] mens ou mulheres, vivem quase que exclusi-
AZEVEDO, Aluísio de. “O Cortiço”, vamente em função dos impulsos do desejo
São Paulo: Martins, 1968, p. 43. e da perversidade sexual.
e) a vida difícil das personagens, tão ligadas à
São características desse texto, consideradas
criminalidade e à prostituição, é condicio-
típicas do Naturalismo, entre outras:
nada pelo meio adverso em que vivem e por
a) o idealismo, o comportamento determinista.
problemas biopatológicos.
b) a ênfase no aspecto material da vida, o com-
portamento sofisticado.

51
1
2. A propósito de O cortiço, de Aluísio Azevedo, 14. Em O cortiço, o caráter naturalista da obra
é correto afirmar que: faz com que o narrador se posicione em ter-
a) trata-se de um importante exemplar do na- ceira pessoa, onisciente e onipresente, preo-
turalismo brasileiro. Nele, as personagens cupado em oferecer uma visão crítico-analís-
são animalizadas e dominadas pelos instin- tica dos fatos. A sugestão de que o narrador
tos. A obra marca a história de trabalhado- é testemunha pessoal e muito próxima dos
res pobres, alguns miseráveis, amontoados acontecimentos narrados aparece de modo
numa habitação coletiva.
mais direto e explícito em:
b) a narrativa é um retrato da sociedade bur-
guesa do século XIX e pode ser considerada a) Fechou-se um entra-e-sai de marimbondos
uma das obras-primas da ficção romântica defronte daquelas cem casinhas ameaçadas
brasileira porque focaliza a heroína Rita pelo fogo.
Baiana em sua multiplicidade psicológica. b) Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes
c) todo o livro é marcado pela desilusão e pelo que se despejavam sobre as chamas.
abandono dos ideais realistas. Defendendo c) Da casa do Barão saíam clamores apopléticos...
os valores de pureza e retorno à vida pacata d) A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à
do campo, há nele fortes indícios do Roman- boca de uma fornalha acesa.
tismo que se anunciava no Brasil. e) Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu
d) narrado em primeira pessoa, O cortiço é uma estalar o madeiramento da casa incendiada.
análise da psicologia e da situação dos imi-
grantes no Brasil. Os perfis psicológicos e
as análises de comportamento conduzem a 15. Sobre os autores do Realismo/Naturalismo,
história à idealização da mestiçagem brasi- numere a 2ª coluna de acordo com a 1ª.
leira, representada pela ascensão social dos 1. Machado de Assis
portugueses Jerônimo e João Romão. 2. Aluízio Azevedo
e) o tema da mulher idealizada é constante
nessa obra. A figura da virgem sonhada é ( ) Em O cortiço, as ideias naturalistas se
simbolizada pela lavadeira Rita Baiana e conjugam para revelar as misérias exis-
constitui uma forma de denúncia dos pro- tentes na capital do País.
blemas sociais, tão frequentes nos livros fi- ( ) O autor inova na literatura brasileira pelo
liados à estética naturalista. seu senso de coletividade, pela descrição
de multidão.
13. O caráter naturalista nessa obra de Aluísio ( ) Escreveu um romance, em que ataca o ra-
Azevedo oferece, de maneira figurada, um cismo, o reacionarismo clerical, a estrei-
retrato de nosso país, no final do século XIX. teza do universo provinciano e descreve a
Põe em evidência a competição dos mais for- lenta e difícil ascensão social do mestiço
tes, entre si, e estes, esmagando as camadas brasileiro.
de baixo, compostas de brancos pobres, mes-
( ) Autor de obras-primas, como Quincas Bor-
tiços e escravos africanos. No ambiente de
degradação de um cortiço, o autor expõe um ba e Dom Casmurro, é irônico, pessimista
quadro tenso de misérias materiais e huma- e crítico. Suas tramas quebram a estrutu-
nas. No fragmento, há várias outras caracte- ra linear e seu estilo é refinado e elegan-
rísticas do Naturalismo. Aponte a alternativa te, esmerando-se na correção linguística.
em que as duas características apresentadas ( ) Na sua 1ª fase, estava comprometido com
são corretas. o idealismo romântico. Na 2ª fase, mais
a) Exploração do comportamento anormal e maduro, fazia a análise psicológica e so-
dos instintos baixos; enfoque da vida e dos cial de temas da burguesia da época: o
fatos sociais contemporâneos ao escritor. adultério, o parasitismo social, o egoís-
b) Visão subjetivista dada pelo foco narrativo; mo, a vaidade, o interesse, além da con-
tensão conflitiva entre o ser humano e o fusão entre razão e loucura.
meio ambiente.
c) Preferência pelos temas do passado, propi- A sequência correta é:
ciando uma visão objetiva dos fatos; críti- a) 1, 1, 2, 1 e 2.
ca aos valores burgueses e predileção pelos b) 2, 2, 1, 2 e 1.
mais pobres. c) 1, 2, 1, 1 e 2.
d) A onisciência do narrador imprime-lhe o pa- d) 2, 2, 2, 1 e 1.
pel de criador, e se confunde com a ideia de e) 2, 2, 1, 1 e 1.
Deus; utilização de preciosismos vocabula-
res, para enfatizar o distanciamento entre a 1
6. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, re-
enunciação e os fatos enunciados. luzia que nem metal em brasa; a sua crina
e) Exploração de um tema em que o ser hu-
preta, desgrenhada, escorrida e abundante
mano é aviltado pelo mais forte; predomi-
como as das éguas selvagens, dava-lhe um
nância de elementos anticientíficos, para
ajustar a narração ao ambiente degradante caráter fantástico de fúria saída do inferno.
dos personagens.
52
O fragmento anterior pertence ao romance O
cortiço, de Aluísio Azevedo.
a) A descrição da personagem exemplifica um
típico recurso do movimento literário a que
se filiou o autor. Que movimento foi esse e
qual o recurso aqui adotado?
b) Exemplifique, com duas expressões retiradas
do texto, a resposta que você deu ao item
anterior.

Gabarito
1. C 2. C 3. A 4. A 5. E

6. C 7. B 8. D 9. C 10. B

11. A 12. A 13. A 14. E 15. D


16.
a) O autor, utilizando-se de comparação, re-
duz a personagem ao nível animal, como
é típico do Naturalismo.
b) As expressões são “crina (cabelo) preta”
e “como éguas selvagens”.

53
0 4 Quincas Borba

Machado de Assis

L C
ENTRE
ASPAS
Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio
de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e faleceu também na capital
fluminense, em 29 de setembro de 1908. Filho do pintor Francisco
José de Assis e da portuguesa dos Açores, Maria Leopoldina Machado
de Assis, perdeu a mãe muito cedo e foi criado no Morro do Livra-
mento. Sem meios para cursos regulares, estudou sempre como um
autodidata. Com apenas 15 anos incompletos, publicou um soneto
no Periódico dos Pobres, em 1854. Foi jornalista, contista, cronista,
romancista, poeta e teatrólogo.
Em 1856, entrou para a Imprensa Nacional, como aprendiz
de tipógrafo, em 1858, era revisor e colaborador no Correio Mer-
cantil e, em 1860, a convite de foi para redação do Diário do Rio de
Janeiro. Escrevia para a revista O Espelho, onde estreou como crítico
teatral, para a Semana Ilustrada e para o Jornal das Famílias, no qual
publicou de preferência contos. Fundou e ocupou por mais de dez
anos a presidência da Academia Brasileira de Letras, que futuramente
passou a ser intitulada de Casa de Machado de Assis. Casou-se com
a irmã do amigo, Carolina Augusta Xavier de Novais, a qual foi sua
companheira perfeita durante 35 anos.
A obra de Machado de Assis abrange, praticamente, todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com
o romantismo de Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo Indianismo em Americanas (1875) e pelo
Parnasianismo em Ocidentais (1901). Paralelamente, apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e
Histórias da meia-noite (1873); os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá
Garcia (1878), são considerados como pertencentes ao seu período romântico.
A partir daí, Machado de Assis entrou na grande fase das obras-primas, que fogem a qualquer denominação
de escola literária e que o tornaram o escritor maior das letras brasileiras e um dos maiores autores da literatura
de língua portuguesa.
Machado publicou na Gazeta de Notícias, de 1881 a 1897, diversos textos, mas, principalmente, suas me-
lhores crônicas. Em 1881, saiu o livro que daria uma nova direção à carreira literária de Machado de Assis – Memó-
rias póstumas de Brás Cubas –, dando início ao Realismo no Brasil. Sem dúvida, suas obras são as representantes
máximas do Realismo, remodelando a literatura e trazendo conceitos que negaram a prática romântica em voga
até então.
Como contista, publicou Papéis avulsos, no ano de 1882. Em 1889, foi promovido a diretor da Diretoria do
Comércio no Ministério.
O “Bruxo do Cosme Velho”, como é conhecido Machado, é um
dos maiores escritores que se tem notícia, entender suas inovações é
a grande chave para se dar bem no vestibular. Não podemos esquecer
que ele começou escrevendo sobre o molde alencariano, com roman-
ces românticos como as já citadas obras – Ressurreição; A mão e a
luva; Helena, Iaiá Garcia –, mas, sem dúvida, seu reconhecimento se
dá pelas obras realistas.
O diálogo com o leitor, a digressão, a metalinguagem e um
mergulho na psicologia do homem montam este conjunto de genia-
lidade temperada por uma ironia refinada que desnuda as aparên-
cias da sociedade burguesa com um cinismo elegante que fazem
de Machado de Assis um dos maiores nomes da Literatura Mundial.

57
Cronologia biográfica Contexto
§§ 1839 – Nasce Joaquim Maria Machado de Assis, Inglaterra e França detinham o controle admi-
no dia 21 de junho, no Rio de Janeiro. Filho do nistrativo, econômico e militar no mundo capitalista e
brasileiro Francisco José de Assis e da açoriana caminhavam no afã de ampliar consumidores para seus
Maria Leopoldina Machado de Assis, moradores produtos industrializados. Na segunda metade do sécu-
do Morro do Livramento. lo XIX, o Brasil consolidava o império apoiado na escra-
§§ 1849 – O autor é cuidado por sua madrinha, após vidão e com algum encaminhamento de modernização.
o falecimento de sua mãe e de sua única irmã. O Brasil, neste tempo, revelava uma visão do
mundo vinculada ao modelo europeu colonizado. En-
§§ 1854 – Seu pai casa-se com Maria Inês da Silva,
frentava o racismo e a ideia de que o trabalho manual
com quem Machado continuará vivendo após a
era algo indigno.
morte do mesmo.
Machado de Assis viveu momentos históricos
§§ 1855 – Publica “A palmeira”, seu primeiro tra-
importantes da História do Brasil, como a luta abolicio-
balho, e “Ela”, seu primeiro poema no periódico
nista e a constituição da república, além da guerra do
Marmota Fluminense.
Paraguai, que repercutiram em sua produção literária.
§§ 1856 – Entra para a Tipografia Nacional como
O período situado na segunda metade do século XIX,
aprendiz.
como foi dito, surgiu como um momento de intensas
§§ 1858 – Estuda francês e latim com o professor
transformações na sociedade brasileira. O que é possí-
padre Antônio José da Silveira Sarmento. Torna-
vel perceber no romance Quincas Borba, em que o Rio
-se o revisor de provas de tipografia e da livraria
de Janeiro, por ser a corte, era um espaço onde surgiam
do jornalista Paula Brito, época em que conhece
os enganadores e suas falcatruas.
membros da Sociedade Petalógica, como Manuel
Antônio de Almeida, Joaquim Manoel de Macedo.
Colabora no jornal O Paraíba e no Correio Mer- O romance machadiano
cantil.
§§ 1864 – Publica Crisálidas, seu primeiro livro.
§§ 1867 – Nomeado ajudante do diretor no Diário
Oficial.
§§ 1869 – Casa-se com Carolina Augusta Xavier de
Novaes.
§§ 1873 – Nomeado o primeiro-oficial da secretaria
do Estado do Ministério da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas.
§§ 1878 – Por motivos de doença passa uma tempo-
rada em Friburgo.
§§ 1881 – Oficial de gabinete do ministro da Agri- Estilo
cultura, Pedro Luis.
§§ 1888 – Oficial da Ordem da Rosa por decreto do Elegância e certa contenção ao escrever, rápidas
imperador. pinceladas na composição da personagem, muita discri-
§§ 1889 – Diretor na Diretoria do Comércio. ção: eis o estilo machadiano de criar. Sempre foi adepto
§§ 1897 – É eleito presidente da Academia Brasileira de personagens fortes. A sua grande capacidade de ob-
de Letras, fundada por ele um ano antes. servação do ser humano e da sociedade já vem impressa
§§ 1904 – Torna-se membro da Academia das Ciên- desde o início – não é um privilégio da fase realista.
cias, de Lisboa. Morre sua mulher, Carolina Xavier. Machado de Assis organizou seus personagens
§§ 1908 – Falece na cidade do Rio de janeiro, em 29 de modo diverso ao dos românticos, ainda que tivesse
de setembro. sabido aproveitar as ligações que aprendeu da leitura
de grandes mestres, como o próprio José de Alencar, o
português Almeida Garrett, o francês Victor Hugo ou o
inglês Swift.
58
Entrelinhas – não ditos Crítica
“No romance machadiano praticamente não “Seja no plano da forma, através das interrup-
há frase que não tenha segunda intenção ou propósi- ções, seja no plano do conteúdo, através de anedotas e
to espirituoso. A prosa é detalhista ao extremo, sempre apólogos sobre a vaidade humana, a experiência visada
à cata de efeitos imediatos, o que amarra a leitura ao não muda, (...) Machado carrega a tinta com maestria –
pormenor e dificulta a imaginação do panorama. Em são formas fechadas em si mesmo, e neste sentido, ma-
consequência, e por causa também da campanha do téria romanesca de segunda classe, estranha ao movi-
narrador para chamar a atenção sobre si mesmo, a com-
mento global própria ao grande romance oitocentista.”
posição do conjunto pouco aparece.” (SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. p. 51.)
(SCHWARZ, Roberto. In: Um mestre na periferia do
capitalismo – Machado de Assis. p. 18)

Ironia anatômica: o olhar por


Quincas Borba
detrás das máscaras
Nos romances iniciais, Machado é um romântico
um pouco diferente: já é marcante a crítica que haveria
de constituir sua característica singular. Em sua obra, o
casamento não era a cura para todos males (como faziam
os românticos), mas um tipo de comércio, uma certa troca
de favores.
Nos romances escritos após 1880, passou a
acentuar essa crítica social, assumindo uma fina ironia
quando focaliza questões delicadas como o casamento, o
adultério, a exploração do homem pelo próprio homem.
Acostumou-se a olhar por detrás das máscaras sociais, a
fim de desmascarar o jogo das relações sociais, de com-
preender a natureza humana, focalizando personagens
com espírito de análise. Em outras palavras, Machado de Personagens
Assis acreditava que nos indivíduos existem sempre in-
tenções supostas para objetivos reais. É disso que resulta
os atos, os quais se dirigem para a satisfação pessoal de
quem os prática.

Digressão
Própria do discurso oratório, a digressão pode
apresentar qualquer medida, aparecer em qualquer
parte do texto e em obras de qualquer outra nature-
za, sobre tudo a poesia épica, o romance e o ensaio.
Empregada desde a antiguidade greco-latina, constitui §§ Rubião: ex-professor que ensinava no primá-
expediente difícil de manejar, uma vez que pode com- rio em Barbacena, enfermeiro e protagonista
prometer a integridade da obra em que se insere. Por da história. Ele é o herdeiro do filósofo Quincas
isso, hoje em dia, tende a ostentar sentido pejorativo, Borba. Rubião e Cristiano se tornam sócios em
equivalente a “desvio”, “divagação”, “subterfúgio”. uma importadora, Palha & Cia. De origem humil-
(Moisés Massaud. 2004, p. 125)
de, muda de vida radicalmente quando conhece
Quincas Borba, tornando-se seu herdeiro. Mostra

59
descontrole sobre a fortuna, além de se mostrar “Queres o avesso disso, leitor curioso? Vê este
ingênuo. Apaixona-se por Sofia, mulher de seu outro convidado para o almoço, Carlos Maria. Se
mais novo amigo, Cristiano Palha. aquele tem os modos “expansivos e francos”, – no
“Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara bom sentido laudatório, – claro é que ele os tem
e, enquanto lhe deitava açúcar, ia disfarçadamen- contrários. Assim, não te custará nada vê-lo entrar
te mirando a bandeja, que era de prata lavrada. na sala, lento, frio e superior, ser apresentado ao
Prata, ouro, eram os metais que amava de cora- Freitas, olhando para outra parte. Freitas que já
ção; não gostava de bronze, mas o amigo Palha o mandou cordialmente ao diabo por causa da
disse-lhe que era matéria de preço, e assim se ex- demora (é perto do meio-dia), corteja-o agora
plica este par de figuras que aqui está na sala, um rasgadamente, com grandes aleluias íntimas.”
Mefistófeles e um Fausto.” §§ Maria Benedita: ela é a prima de Sofia e es-
§§ Cristiano Palha: esposo de Sofia e suposto posa de Carlos Maria. Uma personagem secun-
amigo de Rubião, mas que afinal está somente dária desta obra. No livro, há o relato de que o
interessado em sua fortuna. Cristiano rompe a nome “Maria Benedita” a incomodava, por ser
sociedade com Rubião, alegando a necessidade um nome de velha. É uma mulher prendada, que
de desligar-se da empresa a fim de capacitar-se aprende bons costumes com sua prima.
a assumir cargos no sistema financeiro. Na ver-
“Maria Benedita, nome que a fechava, por ser de
dade, já estabelecido, Cristiano quer continuar a
velha, dizia ela; mas a mãe retorquia-lhe que as
conduzir sozinho os seus negócios. Sofia também
velhas foram algum dia moça as meninas, e que
se afasta de Rubião, recusando seus insistentes
os nomes adequados às pessoas eram imagina-
convites para passeios.
ções de poetas e contadores de histórias.”
“Chegados à estação da corte, despediram-se
quase familiarmente (...). No dia seguinte, estava §§ Camacho: advogado, político e falso jornalista,
Rubião ansioso por ter ao pé de si o recente ami- figura que vai se aproveitar da fortuna de Rubião.
go da estrada de ferro, e determinou ir a Santa “Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os
Teresa, à tarde; mas foi o próprio Palha que o pro- dez homens tratavam de política, porque este bai-
curou logo de manhã.” le, ia-me esquecendo dizê-lo, era dado em casa de
§§ Sofia Palha: esposa de Cristiano e que por fim, Camacho, a propósito dos anos da mulher.”
fica interessada em Carlos Maria. Ela apoia o ma- §§ D. Fernanda: A personagem nasceu em Porto
rido em suas ações. Alegre e possuía pouco mais de trinta anos. Era
“As senhoras casadas eram bonitas; a mesma jovem, expansiva, corada e robusta.
solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco “Sofia organizou a comissão, que trouxe novas re-
anos; mas Sofia primava entre todas elas. Não se- lações à família Palha. Incluída entre as senhoras
ria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era mui- que formavam uma das subcomissões, Maria Be-
to. Era daquela casta de mulheres que o tempo,
nedita trabalhou com todas, mas granjeou em es-
como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai
pecial a estima de uma delas, D. Fernanda, esposa
polindo ao passar dos longos dias. Essas escultu-
de um deputado. D. Fernanda se casara com um
ras lentas são miraculosas; Sofia rastejava os vinte
bacharel das Alagoas, deputado agora por outra
e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete;
província, e, segundo corria, prestes a ser ministro
era de supor que só aos trinta desse o escultor os
de Estado.”
últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda
o trabalho, por dois ou três anos.” §§ Dona Tônica: é uma personagem secundária. D.
Tônica é filha do Major Siqueira. Ela é caracteri-
§§ Carlos Maria: homem que desperta o interesse
de Sofia e que por fim, casa-se com sua prima. zada por ser uma “solteirona” desesperada para
Torna-se também amigo de Rubião. É um rapaz se casar.
jovem que respira prepotência. Além de franco,
expansivo e possuir bons modos.

60
§§ Quincas Borba (o cão): teve esse nome dado
pelo seu dono, também chamado Quincas Borba
e, mais tarde, vem a ter outro dono: Rubião. Este
cão, ao longo do livro, mostra-se amável e fiel com
os seus dois donos. As atitudes do cão faziam com
que Rubião achasse que ele recebeu a alma do
filósofo morto (Quincas Borba).

Espaço e tempo
O livro foi publicado em 1891, porém, a história
inicia-se em 1867, em Barbacena, MG, estendendo-se
A traição enquanto temática sempre presente nas
para o Rio de Janeiro, a partir de 1870. Toda a história
obras machadianas de caráter realista, é insinuada no in-
se passa em Barbacena que por conta da universalidade
teresse que Sofia manifesta pelos homens que a cortejam:
do texto poderia ser qualquer lugar do mundo. Fora isso,
vale mencionar os personagens Rubião e Carlos Maria.
os fatos intermediários acontecem na Corte (RJ). Como
Não chega a de fato acontecer, talvez porque a moça vai
se a história pudesse se passar em quaisquer das muitas
encontrar no marido o seu melhor parceiro, na enganação,
cortes ou Barbacena’s pelo mundo. sendo esta, enfim a temática central da obra.
“Há muitos Palha’s e Sofia’s nesse mundo.” O engodo em sua generalização sugere é a exis-
tência de uma sociedade improdutiva e parasitária, que
age sempre sob máscaras que dissimulam duvidosas tran-
Foco narrativo sações financeiras e falsos elogios nos jornais. O jogo de
aparências revela a sociedade: um diretor de banco é hu-
Narrado em terceira pessoa, o narrador da obra milhado em uma visita ao ministro e desconta em Cristia-
possui uma posição imparcial sobre os fatos. O narrador no Palha, tratando-o da mesma forma. O próprio Rubião,
de Quincas Borba é, em certa medida, o próprio Ma- senhor de sua fortuna, sente-se pequeno ao se deparar
chado de Assis. É importante observar que não se deve com a suntuosidade de uma baronesa do Império. Neste
confundir o narrador com o escritor. sentido, a demonstração de poder é sempre mais impor-
Machado de Assis assume a postura de escritor/ tante que o poder em si, que permanece mascarado.
narrador. A passagem a seguir, como outras da obra, No desenrolar do enredo, o leitor pode-se pergun-
quebra a objetividade do narrador em terceira pessoa: tar as razões do título dado ao livro, seria uma referência
ao filósofo que morre logo na abertura ou ao cachorro que
“Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor
fica de herança? A resposta não pode ser respondida sem
de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mes-
a reflexão de que ambas as respostas estão certas. Segun-
mo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo,
do a filosofia criada por Quincas Borba, Humanitas é o
herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia. Aqui o
princípio da existência que se manifestaria em todo ser
tens agora, em Barbacena.”
vivente, podendo também existir no cão. E talvez esteja
nesse princípio a verdadeira razão do título: ele pode ser
uma referência ao Humanitismo.
Temas: filósofo ou cachorro? A história de Rubião confirma a filosofia de Quin-
O romance tem como principal característica o cas Borba, afinal. Sofia e seu marido não fazem mais do
que seguir a máxima segundo a qual “Humanitas precisa
foco nas relações sociais da época. Machado faz fortes
comer”. Eles seguem à risca essa prescrição, alimentando-
críticas as relações humanas, por exemplo, o casamento
-se da fortuna e da credibilidade de Rubião. Os espólios da
por interesse. Temas como interesse, herança, traição,
guerra se destinam aos vitoriosos, segundo outra máxima
poder, aparência, loucura, ironia, imoralidade e falsida-
da filosofia que retoma Quincas e se coloca na fala de Ru-
de são salientadas na obra de Machado.
bião antes de morrer: “Ao vencedor, as batatas”. Rubião é
61
o derrotado justamente por representar o anti-Humanitas, Assim, nessa luta incessante pela sobrevivência,
uma vez que nada em sua vida foi conseguido com luta, os ingênuos são manipulados pelos espertos. Sendo as-
mas por mera condição do acaso. Sua loucura gradativa sim, os fracos padecem, e os fortes permanecem vivos e
– aproximada da loucura que atinge Quincas Borba – é a manipulando outros.
confirmação do destino de quem acreditou excessivamen- O livro representa a filosofia inventada por Quin-
te na aparência, ironicamente Rubião morreu acreditando- cas Borba, de que a vida é um campo de batalha onde
-se Napoleão III. só os mais fortes sobrevivem e que fracos e ingênuos,
Neste sentido, Quincas Borba simboliza a reafirma- como Rubião, são manipulados e aniquilados pelos su-
ção dos princípios humanitistas, desnudos de moralidade, periores e espertos, como Palha e Sofia, que no fim da
onde tudo é permitido, porque tudo se faz em nome da
obra terminam vivos e ricos.
substância original. A filosofia se enquadra perfeitamente
no jogo de fingimento das relações sociais - a moralidade
aparente esconde a imoralidade da essência dessas rela- Humanitismo
ções.
“Nunca há morte. Há encontro de duas expan-

A filosofia: intertextualidade sões, ou expansão de duas formas.”

Vale notar que na obra Memórias póstumas de


Brás Cubas, Quincas Borba é citado pelo escritor. Por
isso, Quincas Borba pode ser considerado (em partes)
uma continuação de Brás Cubas.
As narrativas de Memórias póstumas de Brás Ilustração de D.G. Davis
Cubas e de Quincas Borba tocam-se no início do capítu-
lo IV, sendo uma espécie de continuação daquela. Mas a
Com essa máxima, Quincas Borba criou sua filo-
história de Quincas Borba é completamente outra.
sofia e ao explica-la melhor deu cabo a célebre máxima:
Este romance mostra a caminhada de Rubião
“Ao vencedor, as batatas”.
para a loucura. De modo que o verdadeiro elo entre os
romances é apenas o Humanitismo, filosofia com a qual Este é o princípio que rege a lógica constitutiva
Quincas Borba marcou sensivelmente Brás Cubas, mas desta obra, portanto é de suma importância que o aluno
da qual apesar de seus esforços, nada conseguiu trans- entenda a tal explicação:
mitir a Rubião. Com a palavra, o Quincas:
Nas duas obras, Machado menciona sobre a teo-
“Supõem-se em um capo de duas tribos famin-
ria filosófica do Humanitismo criada por Quincas.
tas. As batatas apenas chegavam para alimentar uma
Segundo o filósofo, esse conceito está relaciona-
do com a exploração das pessoas e a falta de humanis- das tribos, que assim adquire forças para transpor a
mo na construção das relações sociais. montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em

62
abundância; mas se as duas tribos dividirem em paz as A partir daí, ele começa a ter contato com diver-
batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficiente- sas características que o levam a se tornar um “profes-
mente e morrerão de inanição. A paz, neste caso, é a sor capitalista”.
destruição; a guerra, é a esperança. Rubião foi visto no Rio de Janeiro como uma
Uma das tribos extermina a outra e recolhe os pessoa que facilmente poderia ser enganada, dada a
despojos. Daí, a alegria da vitória, os hinos, as aclama- sua ingenuidade e vida simples que levava em Minas
ções. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não Gerais. Então, Rubião passa a conviver com o casal Pa-
chegariam a dar-se. Ao vencido, o ódio ou compaixão. lha, seus supostos novos “amigos” – e acaba por se in-
Ao vencedor, as batatas!” teressar por Sofia, devido a beleza e meiguice da moça.
Esta tal “filosofia” se enquadra no jogo de fingi- Em certo ponto da história, Rubião, finalmente, resolve
mento das relações sociais em que a aparente moralida- declarar seu amor, porém é rejeitado por Sofia, pois era
de esconde a imoralidade dessas relações. fiel a seu marido. Sofia conta a Cristiano que mesmo
sabendo dos intentos continua a relação com Rubião, já
que tinha interesses em sua fortuna.
Resumo da obra Rubião, aos poucos, vai ficando louco motivado
pela decisão de Sofia. Ele acredita ser Napoleão III e re-
pete aos quatro cantos a máxima de seu amigo falecido
Quincas “Ao vencedor, as batatas”.
Fala de Quincas Borba:
“Não há morte. O encontro de ditas expansões,
ou a expansão de duas formas, pode determinar a su-
pressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há mor-
te, há vida, porque a supressão de uma é a condição
da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o
princípio universal e comum. Daí o caráter conservador
e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e
duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para
alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para
transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há ba-
É logo no título da obra que se vê uma referência
tatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem
direta ao filósofo Quincas Borba, como é sabido por to-
em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se
dos é um personagem que aparece pela primeira vez
suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse
na obra Memórias póstumas de Brás Cubas, que morre
logo no início da história. Após a sua morte, Pedro Ru- caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das
bião de Alvarenga que era seu discípulo e enfermeiro tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a
particular, é beneficiado com uma grande herança. alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas
Com o benefício da herança, Rubião se muda da públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se
fazenda que vivia em Barbacena – cidade de Minas Ge- a guerra não fosse isso, tais demonstrações não che-
rais –, para um palacete no bairro do Botafogo no Rio gariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só
de Janeiro. comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e
Além disso, Rubião fica encarregado de cuidar pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza
do cão de seu amigo, que também, ironicamente – di- uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio
ga-se que de passagem –, se chamava: Quincas Borba. ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”
A obra narra a história de Rubião, que é um ex- Ao final da história, Rubião foge para Barbacena
-professor primário e enfermeiro, que decide mudar sua e ali morre ele e o cão e o casal Palha, por outro lado,
vida provinciana passando a viver na cidade. No ínterim tornam-se ricos.
de sua trajetória, o enfermeiro conhece o casal Palha:
Sofia e Cristiano.

63
Trechos da obra Capítulo II
Acompanhe alguns trechos para compreender Que abismo que há entre o espírito e o coração!
melhor a linguagem utilizada no livro. Confira abaixo: O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamen-
to, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa
Prólogo da 3ª edição que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a
bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o cano-
A segunda edição deste livro acabou mais de- eiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregala-
pressa que a primeira. Aqui sai ele em terceira, sem dos? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana
outra alteração além da emenda de alguns erros tipo-
Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; po-
gráficos, tais e tão poucos que, ainda conservados, não
dia vir um filho ou uma filha... – Bonita canoa! – Antes
encobririam o sentido.
assim! – Como obedece bem aos remos do homem!
Um amigo e confrade ilustre tem teimado co-
– O certo é que eles estão no céu!
migo para que dê a este livro o seguimento de outro.
“Com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, donde
este proveio, fará você uma trilogia, e a Sofia de Quin- Capítulo XCV
cas Borba ocupará exclusivamente a terceira parte.”
Vou agarrá-la antes de chegar ao Catete, disse
Algum tempo cuidei que podia ser, mas relendo agora
Rubião subindo pela Rua do Príncipe.
estas páginas concluo que não. A Sofia está aqui toda.
Calculou que a costureira teria ido por ali. Ao
Continuá-la seria repeti-la, e acaso repetir o mesmo se-
ria pecado. Creio que foi assim que me tacharam este e longe, descobriu alguns vultos de um e outro lado; um
alguns outros dos livros que vim compondo pelo tempo deles pareceu-lhe de mulher. Há de ser ela, pensou; e
fora no silêncio da minha vida. Vozes houve, generosas picou o passo. Entende-se naturalmente que levava a
e fortes, que então me defenderam; já lhes agradeci em cabeça atordoada: Rua da Harmonia, costureira, uma
particular; agora o faço cordial e publicamente. dama, e todas as rótulas abertas. Não admira que, fora
1899 – M. de A. de si, e andando rápido, desse um encontrão em certo
homem que ia devagar, cabisbaixo. Nem lhe pediu des-
culpa; alargou o passo, vendo que a mulher também
andava depressa.

Capítulo CCI
Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que
adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado
em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias
depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo
especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu
defunto homônimo é que dá o titulo ao livro, e por que
antes um que outro, – questão prenhe de questões, que
nos levariam longe. Eia! chora os dois recentes mortos,
se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa.
O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe
pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos
e as lágrimas dos homens.

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No cinema

Em 1987, foi lançado o longa-metragem Quincas Borba, dirigido por Roberto Santos. Assistir ao filme pode
complementar o entendimento da obra, mas nunca substituir a leitura da mesma.

Sinopse
Releitura para os tempos atuais do clássico de Machado de Assis. Rubião sai do interior de Minas Gerais
com apenas um objetivo em mente: aproveitar ao máximo todos os prazeres que uma cidade como o Rio de Janeiro
pode lhe oferecer, em uma viagem patrocinada pelo dinheiro que seu mestre, o filósofo Quincas Borba, lhe deixou
como herança. No entanto, assim que Rubião chega à Cidade Maravilhosa as coisas começam a se complicar.
(Fonte: <www.adorocinema.com/filmes/filme-243499>. Acessado em: janeiro de 2019)

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Aprofunde seus conhecimentos
1. (ITA) Em 1891, Machado de Assis publicou As questões 4 e 5 referem-se ao texto a
o romance Quincas Borba, no qual um dos seguir, extraído do sexto capítulo de Quincas
temas centrais do Realismo, o triângulo Borba (1892), de Machado de Assis (1839-
amoroso (formado, a princípio, pelas per- 1908).
sonagens Palha–Sofia–Rubião), cede lugar
a uma equação dramática mais comple- “Supõe tu um campo de batatas e duas tribos
xa e com diversos desdobramentos. Isso se famintas. As batatas apenas chegam para
alimentar uma das tribos, que assim adquire
explica porque:
forças para transpor a montanha e ir à outra
a) o que levava Sofia a trair Palha era apenas
vertente, onde há batatas em abundância;
o interesse na fortuna de Rubião, pois ela
mas, se as duas tribos dividem em paz as
amava muito o marido. batatas do campo, não chegam a nutrir-se
b) Palha sabia que Sofia era amante de Rubião, suficientemente e morrem de inanição. A
mas fingia não saber, pois dependia finan- paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é
ceiramente dela. a conservação. Uma das tribos extermina a
c) Sofia não era amante de Rubião, como outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da
pensava seu marido, mas sim de Carlos vitória, os hinos, aclamações, recompensas
Maria, de quem Palha não tinha suspeita públicas e todos os demais efeitos das ações
alguma. bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais de-
d) Sofia não era amante de Rubião, mas se in- monstrações não chegariam a dar-se, pelo
teressou por Carlos Maria, casado com uma motivo real de que o homem só comemo-
prima de Sofia, e este por Sofia. ra e ama o que lhe é aprazível ou vantajo-
e) Sofia não se envolvia efetivamente com so, e pelo motivo racional de que nenhuma
Rubião, pois se sentia atraída por Carlos pessoa canoniza uma ação que virtualmente
Maria, que a seduziu e depois a rejeitou. a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao
vencedor, as batatas.”
2. (PUC-RS) No início de Quincas Borba, a per- (ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba.
sonagem Rubião avalia sua trajetória, en- Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 648-649.)
quanto olha para o mar, para os morros, para 4. Com base nas palavras de Quincas Borba,
o céu, da janela de sua casa, em Botafogo. considere as afirmativas a seguir:
Passara de _______________ a capitalista ao I. As duas tribos existem separadamente
_______________. Mas, no final do romance, uma da outra.
o personagem acaba morrendo na miséria. II. A necessidade de alimentação determi-
As lacunas podem ser correta e respectiva- na os termos do relacionamento entre as
mente preenchidas por: duas tribos.
a) jornalista – receber um prêmio III. O relacionamento entre as duas tribos
b) professor – receber uma herança pode ser amistoso (“dividem entre si
c) enfermeiro – se tornar comerciante as batatas”) ou competitivo (“uma das
d) filósofo – investir em terras tribos extermina a outra”).
e) enfermeiro – se casar com Sofia IV. O campo de batatas determina a vitória
ou a derrota de cada uma das tribos.
3. (Ufrgs) Assinale a alternativa correta em Estão corretas apenas as afirmativas:
relação a Quincas Borba, de Machado de a) I e IV.
Assis. b) II e III.
c) III e IV.
a) O título do livro, como esclarece o narrador,
d) I, II e III.
refere-se ao filósofo Quincas Borba, criador
e) I, II e IV.
do “Humanitismo”.
b) Quincas Borba é apenas um interiorano mi- 5. (UEL) O Humanitismo, filosofia criada por
lionário explorado por parasitas sociais como Quincas Borba, é revelador:
Palha e Camacho. a) do posicionamento crítico de Machado de
c) Rubião é objeto de disputa amorosa entre a
Assis aos muitos “ismos” surgidos no século
bela Sofia e dona Tonica, filha do major Si-
XIX: darwinismo, positivismo, evolucionismo.
queira.
b) da admiração de Machado de Assis pelos
d) Rubião, sócio do marido de Sofia, comete
muitos “ismos” surgidos no início do século
adultério com ela sem levantar suspeitas.
XX: futurismo, impressionismo, dadaísmo.
e) Ao fugir do hospital, Rubião retorna com
c) da capacidade de Machado de Assis em antever
Quincas Borba à sua cidade de origem, Bar-
os muitos “ismos” que surgiriam no século
bacena.
XIX: darwinismo, positivismo, evolucionismo.

66
d) da preocupação didática de Machado de Assis outro, – questão prenhe de questões, que
com a transmissão de conhecimentos filosófi- nos levariam longe... Eia! chora os dous re-
cos consolidados na época. centes mortos, se tens lágrimas. Se só tens
e) da competência de Machado de Assis em riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro que
antecipar a estética surrealista surgida no a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia
século XX. Rubião, está assaz alto para não discernir os
risos e as lágrimas dos homens.
6. (Cefet-PR) A filosofia de Quincas Borba é ex- (Machado de Assis. Quincas Borba.)
plicada nos primeiros capítulos do romance.
Posteriormente, em alguns momentos de Depreende-se do texto que:
delírio, Rubião recorda-se dos ensinamen- a) ao narrar a agonia de Rubião, o narrador
tos do mestre e os sintetiza na frase: “Ao deixa implícito que aquele merecia as hon-
vencedor, as batatas”. A versão completa da rarias de um rei.
máxima, enunciada por Quincas a Rubião no b) a ambiguidade no título do romance, Quincas
capítulo 6, é esta: “Ao vencido, ódio ou com- Borba, justifica-se pelo fato de o autor não
paixão; ao vencedor, as batatas”. conseguir definir-se por homenagear o filó-
A filosofia inventada por Quincas Borba pode sofo ou seu cão.
ser comprovada com os seguintes aconteci- c) a afirmação que encerra o capítulo CC revela
mentos do romance, exceto: um traço machadiano característico: a
a) a organização da comissão das Alagoas. ironia.
b) a morte da avó de Quincas, atropelada por d) a declaração de que Sofia não quis fitar o
carro puxado a cavalos. Cruzeiro revela a indiferença como matriz do
c) o tipo de relação estabelecida entre Camacho estilo do autor.
e Rubião. e) a linguagem empregada para descrever a
morte de Quincas Borba revela tendência do
d) o empenho de D. Fernanda em casar Maria
narrador a dar mais importância ao cão do
Benedita.
que a Rubião.
e) o gesto de Rubião de salvar de um atropela-
mento o menino Deolindo.

7. (Fatec) Leia o texto. Gabarito


Capítulo CC
1. D 2. B 3. E 4. D 5. A
Poucos dias depois, [Rubião] morreu... Não
morreu súbdito nem vencido. Antes de prin- 6. D 7. E
cipiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na
cabeça, — uma coroa que não era, ao menos,
um chapéu velho ou uma bacia, onde os es-
pectadores palpassem a ilusão. Não, senhor;
ele pegou em nada, levantou nada e cingiu
nada; só ele via a insígnia imperial, pesada
de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras
preciosas. O esforço que fizera para erguer
meio corpo não durou muito; o corpo caiu
outra vez; o rosto conservou porventura uma
expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao
vencedor...
A cara ficou séria porque a morte é séria;
dous minutos de agonia, um trejeito horrí-
vel, e estava assinada a abdicação.

Capitulo CCI

Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba,


que adoeceu também, ganiu infinitamen-
te, fugiu desvairado em busca do dono, e
amanheceu morto na rua, três dias depois.
Mas, vendo a morte do cão narrada em ca-
pítulo especial, é provável que me pergun-
tes se ele, se o seu defunto homônimo é que
dá titulo ao livro, e por que antes um que

67

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