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73915-Texto Do Artigo-99409-1-10-20140207 PDF
73915-Texto Do Artigo-99409-1-10-20140207 PDF
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Antunes, Leonardo Resenha.
são renovados a cada nova tradução. A de dos de sua tradução ou de uma explicação
Trajano Vieira tem o mérito de compreen- dentro do próprio texto do poema:
der perfeitamente essa missão e inserir-se
sem temer a vingança, nêmesis dos homens
numa tradição bem-definida, a que perten-
(xxii.40)
cem, entre outros, Odorico Mendes, Carlos
Alberto Nunes e Haroldo de Campos, cujas vagueava, a fúria de Ate na mente demente
(xxi.302)
traduções, somadas à de Vieira, começam a
configurar um tesouro nacional: uma tradi- ... E aguentaste até que a métis
ção de traduções de Homero. – solércia do pensar – te retirou da furna
(xx.21)
Trabalhando com grande liberdade,
...Aurora
Vieira utiliza tanto o léxico já existente em
rododáctilos, dedirrósea ...
língua portuguesa quanto termos novos que (xiii.17-8).
ele cunha a partir da semelhança morfoló-
gica com os vocábulos gregos. Essa liber- Essa estratégia de Vieira não é um mero
dade de trabalho reflete uma característica ornamento, como talvez se possa pensar.
existente na própria poesia de Homero, que Com efeito, a presença desses termos gregos
empregava uma linguagem artificial, onde colabora para dar maior enfoque e vida a
palavras novas e antigas coexistiam em prol conceitos importantes do poema, que nem
da criação do poema. Nela, portanto, a lin- sempre são chamativos o bastante para um
guagem contemporânea (à época) se mistu- leitor contemporâneo. Quando os gregos
rava a arcaísmos e às inovações linguísticas antigos ouviam um termo como kléos, ele
dos poetas que trabalhavam no poema. não era uma glória descontextualizada, como
Vocábulos não só podiam ser criados pela a nossa talvez seja. A palavra tinha um eco
junção de radicais e afixos [1], mas também profundo em toda a tradição heróica que
decompostos em partes isoladas, resultando tratava do tema, bem como na própria ex-
na tmese [2] que Vieira também emprega periência de vida do indivíduo, num mundo
em sua tradução de modo inovador: onde a glória era um fator mais presente do
que no nosso. Dessa forma, ao apresentar o
... Com macrolança [1], o herói feria, próximo, termo em Grego, Vieira nos alerta ao fato
o Damastóride, e o filho enterra a seta
de que ali reside um conceito importante,
no ventre de Leócrito Evenoride:
per(bronze)passa-o [2] ... (xxii.294-7). alheio à nossa realidade, e que merece uma
atenção dobrada. Com isso, ele nos ensina
O empenho de Trajano Vieira, assim Homero a partir do próprio Homero, dispen-
como foi o de Odorico Mendes e de Ha- sando uma nota de rodapé para tanto.
roldo de Campos, é definitivamente o de A complexidade lexical do texto de
adaptar o Português para conter o Grego, e Vieira, no entanto, não compromete a sin-
não mudar o Grego para se encaixar no Por- taxe do poema, que é geralmente simples,
tuguês. Suas inovações não são apenas lexi- assim como a do texto grego. Para alcançar
cais e sintáticas, como as vistas acima, mas essa sintaxe simples num verso de menor ex-
chegam também até o empréstimo direto de tensão que a do original, no entanto, Vieira
termos-chave do texto grego, acompanha- muitas vezes é obrigado a ser bastante sinté-
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LETRAS CLÁSSICAS, n. 12, p. 283-288, 2008.
tico, ou mesmo deixar de traduzir algumas entre os demais, falou-lhe Atena de olhos blaus
das fórmulas mais repetitivas. O verso for- (vii.47).
mular abaixo, por exemplo, o qual introduz
falas de Palas Atena, recebe duas traduções Contudo, Vieira parece alterar os epíte-
bastante sucintas no primeiro canto: tos não só por necessidades métricas. Isso se
evidencia pelo tratamento de um dos prin-
τὸν δ’ αὖτε προσέειπε θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη· cipais epítetos de Odisseu, polýmetis, que
Atena, olhos azuis... (i.177) aparece na tradução de Vieira, por exemplo,
Atena... (i.221).
como “pluriastuto” (i.174), “multiarguto”
(iv.763), “pluriarguto” (v.214), “plurienge-
O tamanho da perda que se tem com isso nhoso” (vii.207) e “multissolerte” (vii.240).
depende, sem dúvida, do quanto se lê a par- Em alguns desses casos, como de “blaus” e
tir de um epíteto. No mínimo, no entanto, ”glaucos”, Vieira poderia ter se atido a uma
é possível dizer que se trata de um afasta- única tradução. No entanto, ele toma uma
mento da mentalidade do texto original. Da licença poética da qual Homero também
mesma forma, pode-se argumentar que ter gozava, de variar os epítetos de deuses e he-
apenas um nome introduzindo uma fala é róis de acordo com o que lhe parece mais
algo que quebra um pouco a poeticidade e adequado, seja pela sonoridade, pela mé-
o calmo ritmo narrativo do texto homérico. trica, ou simplesmente pela possibilidade de
No entanto, ao traduzir, é sempre preciso existir uma variedade de epítetos semelhan-
fazer escolhas e cortes, e Vieira certamente tes. Essa possibilidade é tanto maior no do-
os faz de forma consciente, orientado pelas decassílabo empregado, que permite o aco-
mesmas diretrizes durante o texto inteiro, lhimento a uma grande variedade de termos
com um propósito bem-definido. A perda de diferentes acentuações. Se Vieira tivesse
que se tem de um lado, decerto resultante se limitado a repetir a mesma solução para
do uso de um verso menos extenso que o uma fórmula ou epíteto durante o texto in-
original, é compensada pela própria natu- teiro, teria deixado de usar todo o potencial
reza do dodecassílabo, o qual suporta uma do verso que emprega. Por conta disso, a va-
variedade maior de acentos e de variações riedade em seu texto parece ser uma carac-
internas do que, por exemplo, o hexâmetro terística positiva, que compensa as possíveis
dactílico de que Carlos Alberto Nunes fez perdas mencionadas anteriormente.
uso com bastante primor. As influências mais diretas de Vieira em
Pode-se imaginar (talvez erronea- língua portuguesa, como ele próprio aponta
mente) que, também pela extensão do em seu livro, são Odorico Mendes e Ha-
verso, Vieira não se atenha a uma mesma roldo de Campos. De fato, o tradutor ado-
tradução para os epítetos. Em sua tradu- tou o mesmo verso dodecassílabo de Cam-
ção, os olhos de Atena são “azuis” (i.177), pos e, como ele, faz uso de um vocabulário
“glaucos” (i.314) e “blaus” (vii.47), ainda invejável e de diversas inovações lexicais,
que neste último caso o tradutor pudesse como fazia também Odorico Mendes.
ter empregado “glaucos” sem modificar o É possível, de fato, sentir a influência
número de sílabas poéticas do verso: de Haroldo de Campos em algumas das
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Antunes, Leonardo Resenha.
soluções adotadas por Trajano Vieira. Por parecer inicialmente um pleonasmo, traz
exemplo, o uso de “priâmea urbe” (v.108, para nossa língua uma imagem diferente
xxi.532) parece ecoar um dos versos da Ilí- e inexplicável para a vastidão do mar. Re-
ada de Haroldo de Campos: cuperando essa construção empregada por
Haroldo Campos nos fragmentos que tradu-
que a vós os deuses dêem, habitantes do Olimpo,
ziu da Odisseia,1 Trajano Vieira demonstra
derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa
(I.18-9). sua sensibilidade ao perceber, nessa ousadia
tradutória, uma centelha de gênio que me-
O próprio “derruída” do verso acima rece ser imitada:
também aparece num contexto semelhante
Haroldo de Campos:
na tradução de Trajano Vieira, onde a in-
da guerra e do talásseo mar... (i.13)
fluência de Haroldo de Campos se mostra
talvez ainda mais evidente: Trajano Vieira:
terríveis do infecundo mar talássio imerge
derruída a priâmea cidadela alcantilada
(v.51).
(xiii.316).
A influência de Haroldo de Campos é,
Aliás, o termo “priâmea”, empregado
realmente, bastante notável no trabalho de
por Trajano Vieira e Haroldo de Campos,
Trajano Vieira. Contudo, o tradutor não se
já era usado por Odorico Mendes, como se
limita, de forma alguma, a apenas copiar seu
pode ver no verso abaixo, de sua tradução
mentor. Ainda que adote várias das solu-
da Ilíada:
ções de Haroldo de Campos, Trajano Vieira
A Priâmea cidade e as naus atenta (XIII.11). executa seu trabalho a seu próprio modo.
A característica mais marcante disso, que
Entre outros casos, percebe-se ainda, pode mesmo passar despercebida devido à
na Odisseia de Trajano Vieira, a influência sua própria naturalidade, é a mestria com
de Odorico Mendes (I.417) pelo uso de “de- que o tradutor emprega o dodecassílabo.
dirrósea”, como se viu em um dos exemplos
Com efeito, Vieira demonstra uma
citados anteriormente, bem como pelo em-
consciência rítmica extremamente apu-
prego de “alcáçar”/”alcácer” para designar a
rada. Ainda que tenha adotado um verso
morada de Zeus:
de métrica diferente da do original, o tra-
Odorico Mendes: dutor foi capaz de ser fiel à característica
... e estavam já no alcáçar rítmica principal do texto grego, que é a
Do Olimpo os habitantes, em concílio (i.22-3)
fluência constante dos dáctilos e dos espon-
Trajano Vieira: deus (que numa recitação em Grego tinham
reuniam-se no alcácer do Cronida olímpio uma equivalência temporal, mantendo um
(i.27).
1
Cito a edição feita pela Olavobrás, que reúne alguns
Entre outros exemplos da influência fragmentos publicados anteriormente e outros iné-
desses tradutores sobre Vieira, um dos mais ditos: CAMPOS, Haroldo de. Odisséia de Homero:
fragmentos. Organização: Ivan de Campos e Marcelo
marcantes é o uso comum, entre Campos Tápia. Apresentação: Trajano Vieira. São Paulo: Ola-
e Vieira, de “talásseo mar”, que, apesar de vobrás, 2006.
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LETRAS CLÁSSICAS, n. 12, p. 283-288, 2008.
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