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JAMES CIIFFORD
JOSÉ REGINALDO SANTOS GONÇALVES
Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
i. Património cultura! — Proteçào — Brasil. 2. Memória — Aspectos sociais — Brasil. I. VERA BEATRIZ SIQUEIRA
Abreu, Regina. II. Chagas, Mário.
08-1519. CDD: 363.690981
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2a edição
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O PATRIMÓNIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO"
JOSÉ REGINALDO SANTOS GONÇALVES
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O PATRIMÔN IO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO 27
MEMÓRIA E PATRIMÓNIO
de outras localidades. A exemplo do mana melanésio, discute-se Em termos históricos, a manifestação apresenta grande profun-
a presença ou ausência do património, a necessidade ou não de didade. Os mitos de origem da festa referem-se à sua criação no
preservá-lo, porém não se discute sua existência. Essa categoria é século XIII, em Portugal. Mas há referências sobre sua existência
um dado de nossa consciência e de nossa linguagem; um pressu- na Alemanha e na França, ainda no século XII. Estamos, pois,
posto que dirige nossos julgamentos e raciocínios. diante de uma estrutura de longa duração.
Ainda que possamos usar a categoria património em contextos Trata-se, também, de um "fato social total", na medida em que
muito diversos, é necessário adotar certas precauções. É preciso envolve arquitetura, culinária, música, religião, rituais, técnicas, esté-
contrastar cuidadosamente as concepções do observador e as con- tica, regras jurídicas, moralidade etc., o que suscita algumas questões
cepções nativas. relativamente voltadas às concepções de património. Em especial
Recentemente, construiu-se uma nova qualificação: o "patrimó- pelo fato de essas diversas dimensões não aparecerem, do ponto de
nio imaterial" ou "intangível". Opondo-se ao chamado "património vista nativo, como categorias independentes. Evidenciam-se de modo
de -pedra e cal", aquela concepção visa a aspectos da vida social e cul- simbólico, totalizadas pelo Divino Espírito Santo. Este, por sua vez, é
tural dificilmente abrangidos pelas concepções mais tradicionais. representado não exatamente como a terceira pessoa da Santíssima
Nessa nova categoria estão lugares, festas, religiões, formas de Trindade, mas como uma entidade individualizada e poderosa.
medicina popular, música, dança, culinária, técnicas etc. Como su- Essas festividades são exemplo do que poderíamos chamar de
gere o próprio termo, a ênfase recai menos nos aspectos materiais "património transnacional". Todavia, classificar essa festa como pa-
e mais nos aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Di- trimónio exige cautela. É preciso reconhecer algumas nuanças nas
ferentemente das concepções tradicionais, não se propõe o tom- representações do que se pode entender por património.
bamento dos bens listados nesse património. A proposta existe no É bem verdade que são as próprias lideranças açorianas que fa-
sentido de registrar essas práticas e representações e acompanhá- lam de um "património açoriano" ou da açorianidade. Mas esse uso
las para verificar sua permanência e suas transformações. está distante das concepções assumidas pelos devotos do Espírito
A iniciativa é bastante louvável, porque representa uma inovação Santo em sua vida cotidiana. A diferença fundamental encontra-
e flexíbilização nos usos da categoria "património", particularmente se precisamente no uso das categorias "espírito" e "matéria", que
no Brasil. Ela oferece, também, a oportunidade de aprofundar nossa são diversamente concebidas por intelectuais e lideranças açoria-
reflexão sobre os significados que pode assumir essa categoria. Para nas, pelos padres da Igreja Católica e pelos devotos.
isso, gostaria de trazer uma experiência recente como pesquisador. Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas,
Nos últimos anos, venho realizando pesquisas sobre as Festas do os objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a
Divino Espírito Santo entre imigrantes açorianos, nos Estados Uni- festa são propriedade das irmandades) são, de certo modo, mani-
dos e no Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um "fato festações do próprio Espírito Santo. Do ponto de vista dos padres,
de civilização", no sentido atribuído por Mareei Mauss a esse termo são apenas "símbolos" (no sentido de que são matéria e não se con-
(1981, p. 475-493). Não se restringem a uma determinada área social fundem com o espírito). Na visão dos intelectuais, são apenas re-
e cultural, transcendendo fronteiras nacionais e geográficas. É vas- presentações materiais de uma "identidade" e de uma "memória"
ta sua área de ocorrência: Açores, Canadá, Estados Unidos (Nova étnicas. Sob essa ótica, as estruturas materiais que poderíamos clas-
. Inglaterra e Califórnia, principalmente) e Brasil (especialmente nas sificar como património são, primeiramente, boas para identificar.
regiões Sul e Sudeste).
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JU MtMUKIA £ PATRIMÓNIO
As classificações dos devotos são estranhas a tal concepção de dessa disciplina, ao longo do século XX, do estudo de objetos ma-
património. Do ponto de vista deles, trata-se fundamentalmente teriais e técnicas (Schlanger, 1998). Não por acaso, são antropólo-
cie uma relação de. troca com uma divindade. E, de acordo com essa gos muitos dos que estão à frente daquele projeto de renovação ou
concepção total, culinária, objetos, rituais, mitos, espírito, matéria, ampliação da categoria património.
tudo se mistura. Sabemos do caráter fundador dessas relações de tro- Do ponto de vista dos devotos, o património é pensado não exa-
ca com os deuses. Segundo Mareei Mauss (1974, p. 63), foi com eles tamente como um símbolo de realidades espirituais, nem, necessa-
que os seres humanos primeiro estabeleceram relações de troca, uma riamente, como representações de uma identidade étnica açoriana.
vez que aqueles eram "os verdadeiros proprietários das coisas e dos Na verdade, ele é pensado como formas específicas de manifesta-
bens do mundo". ção do Divino Espírito Santo.
Como podemos usar adequadamente, em contextos como es- Afinal, os seres humanos usam seus símbolos sobretudo para
ses, a categoria "património"? É possível ali, certamente, identificar agir, e não somente para se comunicar. O património é usado não
estruturas espaciais, objetos, alimentos, rezas, mitos, rituais nessa apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir.
categoria. Mas é preciso não naturalizá-la e impor àquele conjunto Essa categoria faz a mediação sensível entre seres humanos e di-
um significado peculiai e estranho ao ponto de vista nativo. vindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o
Há uma diferença básica que reside no modo como é representada céu e a terra e entre outras oposições. Não existe apenas para re-
a oposição entre matéria e espírito. Sabemos que a concepção de presentar ideias e valores abstratos e ser contemplado. O patri-
uma matéria depurada de qualquer espírito é uma construção mo- mónio, de certo modo, constrói, forma as pessoas.
derna (kl., ib., p. 163). O mesmo acontece com um espírito, indepen- Vale sublinhar que esses diversos significados não se excluem.
dentemente de toda e qualquer materialidade. Não é a partir dessa As mesmas pessoas podem operar ora com um, ora com outro sig-
dicotomia que pensam os devotos. É necessário levar em conta esse nificado, como no caso da "coroa do divino", um elemento ex-
fato, se quisermos entender a concepção nativa de património. tremamente importante desse património. Exposta num museu,
É possível preservar uma "graça" recebida? É possível tombar os estabelece a mediação entre os visitantes e a "cultura açoriana",
"sete dons do Espírito Santo"? Certamente não. Mas é possível, torna visível essa dimensão do "invisível" (Pomian, 1997). Numa ir-
sim, preservar, por meio de registros e acompanhamento, lugares, mandade religiosa, circula entre os irmãos, está presente em festas
objetos, festas, conhecimentos culinários etc. É nessa direção que e cerimónias, nos almoços rituais, manifestando concretamente a
caminha a noção recente dê "património intangível", nos recentes presença do Espírito Santo, fazendo uma mediação sensível entre a
discursos brasileiros acerca de património. divindade e seus devotos. No último contexto, não se trata de uma
É curioso, no entanto, o uso dessa noção para classificar bens simples coroa de prata. No contexto de uma exposição museológj-
tão tangíveis quanto lugares, festas, espetáculos e alimentos. De ca, é um objeto cultural, parte do chamado "património açoriano",
certo modo, essa noção expressa a moderna concepção antropo- aqui entendido em seu sentido estritamente moderno.
lógica de cultura. Segundo ela, a ênfase está nas relações sociais A originalidade da contribuição dos antropólogos à construção e
ou mesmo nas relações simbólicas, mas não nos objetos e nas téc- ao entendimento da categoria "património" reside, talvez, na ambi-
nicas. A categoria "intangibilidade" talvez esteja relacionada a esse guidade da noção antropológica de cultura, permanentemente ex-
caráter desmaterializado que assumiu a referida moderna noção posta às mais diversas concepções nativas. Explorando essa dire-
antropológica de cultura. Ou, mais precisamente, ao afastamento ção de pensamento, é a própria categoria património que vem a ser
O PATRIMÓNIO COMO CATEGORIA Dt PINSAMENTO
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Referências