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Fonte: arquivo pessoal

UH5816 - Metodologia e prática da reabilitação urbanística e arquitetônica


Profa. Dra. Beatriz Kuhl  -  Prof. Dr. Pedro Vieira
Resenhista – Priscilla Hammerl

Resenha 1

“Os “usos culturais” da cultura, Contribuição para uma abordagem crítica das práticas e
políticas culturais (MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Yazigi, Eduardo e outros. Turismo,
Paisagem e Cultura. São Paulo, HUCITEC, 1996.

O autor é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da


Universidade de São Paulo, titular aposentado de História Antiga, docente do Programa de
Pós Graduação em História Social, Licenciado em Letras Clássicas (USP, 1959).
Doutorado em Arqueologia Clássica (Sorbonne, 1964). Dirigiu o Museu Paulista/USP
(1989/1994), organizou o Museu de Arqueologia e Etnologia/USP (1963/1968) e o dirigiu
(1968-1978). Membro do Conselho Superior da FAPESP (1977-1979), da Missão
Arqueológica Francesa na Grécia (antigo membro estrangeiro), do CONDEPHAAT
(1971/1987, 1996/2004, 2006-2007) do Conselho do IPHAN (desde 2005). Fez pesquisas e
publicou, no Brasil e no Exterior, nas áreas de História Antiga (história da cultura, história
helenística, urbanismo antigo), cultura material, cultura visual, patrimônio cultural, museus
e museologia. Recebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico (2002).

O autor inicia o texto listando empregos e concepções completamente equivocadas de “usos


de cultura”, tais como aquelas ligadas a “demarcação de fronteiras”, de “base para
sustentação do status” e de “alimentação de prestígio”, de “fator de alienação” associado ao
consumo em uma sociedade capitalista.

Ulpiano relata o uso da cultura de uma forma globalizada e seus diversos sentidos já que não
existe um conceito definido dependendo do ponto de vista e das suas influências ou a falta
delas, dando ênfase a relação com o turismo cultural.

A cultura é uma condição de produção e reprodução generalizada da sociedade baseada em


políticas que influenciam e geram grandemente interesses ou a falta destes em determinados
grupos. Isso ocasiona conflitos em relação aos valores e sentidos impostos, imposição essa
que se transforma pela falta ou não de conhecimento, produção e valor, que haveria de
mudar e fazer contraposição a costumes estabelecidos ou ainda conceitos já formados através
do tempo.

Fica destacado no texto que a “problemática da cultura” diz respeito à “produção,


armazenamento, circulação, consumo, reciclagem, mobilização e descarte de sentidos e
significados”, levando diretamente aos valores inseridos em um “circuito de vida social” e
estabelecendo um englobamento da cultura através de aspectos materiais e não-materiais,
configurando cultura como “uma condição incessante de produção e reprodução na
sociedade”.

A expressão-título - Usos Culturais da Cultura – ao contrário do que poderia ser suposto


inicialmente, aponta que a cultura não é externa aos sujeitos sociais e sim parte da vida
social. O autor aponta itens não considerados em sua análise, como a cultura como
delimitador de fronteiras, como suporte para status e prestígio e também como parâmetro
alienador. É presente o desejo do autor em discutir usos, funções culturais e o que define o
uso cultural da cultura.
São apresentados conceitos de cientistas e antropólogos, como Alfred Kroeber e Clyde
Kluckhon, sendo que estes conceitos servem para contextualizar cultura.

A cultura no universo do sentido é apresentada em sua complexidade e relação com a


produção, circulação e uso dado dentro da sociedade.

Dentro deste universo, o autor apresenta exemplos e referências com as quais não concorda
para exaltar suas próprias contextualizações e ainda quatro proposições visando facilitar o
entendimento da cultura, especialmente sob a ótica do turismo.

A primeira proposição é: Cultura, escolha, sentido, valor. Fica exposto que as fronteiras entre
homens e animais não são tão claras como se entendia anteriormente. No comportamento
humano, o traço fundamental é a escolha, a opção e padrões sempre sujeitos a
transformações.

Enquanto no comportamento animal as necessidades biológicas são determinantes e


acompanhadas de mudanças evolutivas e não históricas, excetuando-se situações de
amestragem e domesticação, nas escolhas humanas esse comportamento mostra-se não
aleatório e participam de significações e hierarquias. Como exemplo, o autor cita que
animais não mudam de alimentação em dias especiais, assim como não “cansam” da dieta
repetitiva e cujo objetivo principal trata de prover o que biologicamente é necessário aos seus
organismos. Ainda é citado pelo autor que o mundo globalizado tende à homogeneização e
que o turismo cultural deve respeitar as diferentes facetas da cultura, resguardando o direito à
diferença.

A segunda proposição é: Cultura e conflito. É exposto pelo autor que o universo da cultura é
um universo historicamente criado com valores que não são apresentados espontaneamente,
não nascem com o indivíduo, não são produtos da natureza e decorrem da ação social. Ele
também destaca que o universo cultural tem um caráter político e de laços estreitos com o
poder onde é esperado resultados de harmonia e integração social. O processo de
tombamento é citado como uma forma institucionalizada de indicação de valor.

A terceira proposição é: Valor, cultura e fetichismo. Aqui é afirmado pelo autor que o valor
não está nas coisas e sim na disposição das relações sociais. Ele aponta exemplos citando que
objetos tem características físico-químicas e que a “manipulação” de tais propriedades pela
sociedade, como por exemplo uma tela/quadro, pode produzir sua valoração ou não ou em
outras palavras, o valor cultural não está no objeto, ele é construído dentro das relações
sociais. Ele também cita exemplos dos critérios de avaliação e percepção dos bens culturais
ao longo dos séculos e conclui apontando a necessidade de desfetichizar o campo cultural.

A quarta proposição trata das Políticas culturais que, conforme o autor, devem ser sobre a
experiência social descompartimentada e sem privilegiar segmentos da sociedade, ou seja,
que as políticas culturais devem ser dirigidas à totalidade da experiência social.

Ele aponta que a necessidade de políticas culturais já é clara quanto a não ser espontânea e da
sua necessidade de cultivo constante.

O autor destaca também que a cultura, sob a demanda do mercado e imposição de lucros,
também é usada como um mecanismo de segregação e fragmentação tendo sua ação balizada
por produtos, produtores, órgãos, lugares e equipamentos culturais.

Ele menciona um cartoon que exemplifica a situação encontrada em um ambiente religioso


quanto a uma velhinha que se encontra em profunda oração (usuária cotidiana e local) e o
grupo de turistas japoneses (visitante eventual e exploratório) e seu desejo voraz por
absorver e registrar tudo o que for possível naquele ambiente. Aqui é possível notar o quanto
é diverso o uso deste bem cultural pois, enquanto a velhinha estabelece uma apropriação
afetiva e seu próprio uso com a catedral, o grupo de turistas é consumido pela fruição
orientada pelo guia que lhes apresentada os pontos de destaque conforme suas próprias
orientações e significações.

Em sequência, o autor menciona cinco problemáticas envolvendo o turismo cultural como a


desterritorialização que trata da alienação da população quanto ao “seu lugar de viver”
enquanto este mesmo lugar transforma-se em espaço de fruição para “proprietários sazonais”
e turistas.

A segunda questão colocada pelo autor é sobre superar o “voyeurismo turístico” que coloca
em destaque os pontos “dignos” de serem vistos e mostrados transformando a passagem pelo
local em viagem visual.

A terceira questão trata da massificação pela sociedade de uma atividade que deveria buscar
um equilíbrio entre massa e indivíduo dentro de seus diferentes ritmos culturais.

A quarta questão fala sobre como equilibrar dentro do universo cultural a relação identidade
pessoal e a natureza do outro sem que o etnocentrismo absorva o outro como apenas uma
extensão nossa.
Finalmente, ele coloca a questão da desfetichização no turismo dentro do universo cultural
sem causar a tipificação ou conduzir ao estereótipo represando assim a diversidade cultural
ou ainda, o modelo de sociedade pelo qual optarmos estará entrelaçado com as relações que
julgarmos desejáveis e aceitáveis entre nós.

Fica claro no desenvolvimento do tema apresentado pelo autor que trata de tema denso e
controverso, mas cuja reflexão aberta e desvinculada de prejulgamentos pode levar o leitor a
uma sequência de reflexões produtivas e promissoras não só individualmente, mas ainda
num contexto mais amplo sobre quem desejamos ser como sociedade.

Resenha 2

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de
premissas. In: SUTTI, Weber (Coord.). I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: sistema
nacional de patrimônio cultural – desafios, estratégias e experiências para uma nova
gestão. Brasília, DF: Iphan, p.25-39, 2012.

O autor é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da


Universidade de São Paulo, titular aposentado de História Antiga, docente do Programa de
Pós Graduação em História Social, Licenciado em Letras Clássicas (USP, 1959).
Doutorado em Arqueologia Clássica (Sorbonne, 1964). Dirigiu o Museu Paulista/USP
(1989/1994), organizou o Museu de Arqueologia e Etnologia/USP (1963/1968) e o dirigiu
(1968-1978). Membro do Conselho Superior da FAPESP (1977-1979), da Missão
Arqueológica Francesa na Grécia (antigo membro estrangeiro), do CONDEPHAAT
(1971/1987, 1996/2004, 2006-2007) do Conselho do IPHAN (desde 2005). Fez pesquisas e
publicou, no Brasil e no Exterior, nas áreas de História Antiga (história da cultura, história
helenística, urbanismo antigo), cultura material, cultura visual, patrimônio cultural, museus
e museologia. Recebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico (2002).

Sendo um texto apresentado na abertura do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, o


autor apresenta como tema “O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas”
no intuito de invocar uma atitude crítica em relação a premissas que devem orientar as
atividades no campo do patrimônio cultural.

Ele menciona um cartoon proveniente de uma revista francesa que esboça e sintetiza
enormemente a cena de uma velhinha em profunda oração dentro de uma catedral e que é
cercada por um grupo de turistas e seu respectivo guia encontrando estes sedentos por
absorver visualmente a visitação, tendo nesta situação a diversidade de usos de um mesmo
espaço.

Nota-se que a velhinha é uma habitante do lugar e sua ação é territorializada indicando que
aquele lugar é parte de sua vida cotidiana, portanto é estabelecida uma relação de
pertencimento e de extensão temporal do habitar. Já para os turistas, a atividade executada
é desterritorializada e distante de sua habitualidade ou seja, é a expressão de um
distanciamento gigantesco entre o cotidiano da velhinha e o espaço/tempo dos turistas. A
relação que a velhinha e os turistas estabelecem com o bem cultural é profundamente
diversa e onde também é possível perceber o quanto a visão é instrumento estabelecedor de
vínculos em ambos casos ainda que influenciado pela orientação fornecida pelo guia. O
uso dado pela velhinha é profundamente existencial e em oposição ao “uso cultural” dos
turistas.

O autor destaca que o IPHAN vem desenvolvendo uma política de patrimônio imaterial
que busca reconhecer que o campo cultural diz respeito à totalidade da vida social e que
valores podem e dever ser compartilhados e incentivados e inclusive trazer benefícios
econômicos, neste caso, através da visitação a uma catedral – o que é bom é para ser
dividido.

Contudo, o autor relata que bens culturais, ainda que declarados como patrimônio mundial,
não devem não ter valor municipal e serem ignorados pela população local, pois não há
sentido em algo ser valioso para o mundo todo e não ser valioso para aqueles que poderiam
usufruir continua e diretamente dele. Ele aponta a necessidade de haver outros critérios
além dos jurídico-administrativos ou quantitativos e que avaliem a pertinência e interesse
do bem possibilitando a interlocução, sendo essa iniciada com os interlocutores locais e
imediatos.

Ainda sobre a catedral, o autor destaca que este mesmo objeto material tem significados
diversos para turistas, como aqueles que não são identificados diretamente, mas
transferidos pelo conhecimento do guia como se fosse necessária essa mediação
profissional para a apreensão do objeto e para a velhinha que o apreende de diversas
formas, a catedral pode significar uma potencialização da sua comunicação espiritual para
seu tempo de oração.
Meneses afirma que o patrimônio cultural sempre tem vetores materiais inclusive para o
patrimônio imaterial, pois todo patrimônio material tem uma dimensão imaterial e todo
patrimônio imaterial tem uma dimensão material que permite que ele seja realizado.

A Constituição Federal de 1988 incluiu o patrimônio intangível (mais processos do que


produtos), como formas de expressão, criar e viver e o “saber-fazer” é um conhecimento
corporificado, ou seja, segundo o autor, o corpo também é parte integrante do patrimônio
cultural.

Ele coloca que falar e cuidar de bens culturais não é falar sobre objetos ou práticas com
significados intrínsecos, mas sim sobre propriedades derivadas de sua natureza e
mobilizadas por sociedades e grupos sociais de acordo com suas ideias, crenças,
expectativas, enfim, seus valores. Por isso, a problemática do valor está sempre presente e
atuante no campo do patrimônio cultural.

Aqui o autor trata valor como uma questão principal a matriz do valor e questiona sobre
quem produz essa atribuição de valor.

Citando o artigo 216 da Constituição Brasileira de 1988, ele menciona que a grande
novidade neste artigo é a inclusão dos bens de natureza imaterial, mas não como uma
extensão do que é patrimônio e sim como um deslocamento de sua matriz, ou seja, que a
Constituição Federal reconheceu que os valores culturais não são estabelecidos por uma
formalização governamental através de tombamentos por exemplo, mas pela sociedade e
que o patrimônio é sim um fato social. Nesta direção, o poder público tem um papel
protetivo em colaboração com o produtor de valor, a comunidade. Lembrando também de
situações em que proprietários (membros desta comunidade) demonstram uma reação
negativa e de desinteresse por espaços urbanos e bens arquitetônicos.

Seria o caso do valor técnico X valor social? O autor afirma que não, mas aponta a
necessidade de revisão quanto a postura sobre o que é valor e como seu reconhecimento é
feito em conjunto com a visão do especialista sem privilegiar a visão do usuário.

Para tanto, Ulpiano aponta cinco principais componentes do valor cultural:

1-Valores cognitivos como sendo basicamente um valor de fruição onde o bem é tratado
como documento que transmitirá respostas.
2-Valores formais onde além de documento, o bem significa uma oportunidade de
gratificação sensorial entre o expectador e o mundo externo e seu valor proeminente é
estético.

3-Valores afetivos comumente chamados de históricos, apesar de não serem


necessariamente históricos, pontuam vinculações subjetivas de autoimagem e carga
simbólica entre o usuário e o bem.

4-Valores pragmáticos são valores de uso percebidos como qualidades, como no exemplo
da velhinha que percebe a catedral como espaço qualificante para sua prática de oração,
mas que rotineiramente são ignorados em uma sociedade que ainda não superou suas
heranças escravagistas e onde nem todos gozam de cidadania plena.

5-Valores éticos tratam das interações sociais, como acontecem e como são tratadas por
cada indivíduo em relação ao espaço do outro. A postura do guia na catedral revela que ele
não utiliza deste critério em sua ação.

Se o direito à diferença é também o direito a cultura, esta só será valida quando houver
diálogo e transformação mútua. Ulpiano cita que distinguir diversidade cultural de
diferença cultural é conveniente no sentido de não mascarar normas, valores e interesses.

Finalmente, o autor convida à reflexão sobre valores ressaltando que o valor cultural não se
opõe ao valor econômico, mas que existe sim um duelo entre a lógica da cultura que trata
da produção do sentido e comunicação e a lógica de mercado que instrumentalizada a
cultura no sentido de obter lucro monetário.

O autor estabelece neste texto, 16 anos após a publicação de “Usos culturais da cultura”,
exemplo prático e recorrente passível de acontecer em qualquer destinação turística
independente da sua valorização junto ao mercado consumidor, seja ele qual for, e que nos
convida a uma reflexão sobre como acontece nossa própria fruição e valorização e como o
resultado de nossas escolhas nos situam na sociedade em que vivemos e ainda como essa
sociedade pode ser a representação conjunta das escolhas de cada indivíduo.

Conclusão

Não há um vínculo ou viés direto dos textos de Ulpiano com meu projeto de pesquisa, mas
há sim a percepção de que seus textos representam uma oportunidade de compreender a
construção de meus próprios valores culturais e ainda como minhas escolhas podem afetar e
alterar a percepção de outros indivíduos e estes, por sua vez, também influenciarem minhas
escolhas e valores.

Talvez a percepção de objetos, lugares e pessoas como por exemplo o professor que
representa não apenas o indivíduo transferidor de conhecimento, mas também de seus
próprios valores e escolhas, sejam exemplos óbvios de como moldamos nosso próprio
conhecimento e escolhas perante o mundo, porém, muitas vezes, o óbvio é muito difícil de
ser visualizado, inclusive neste caso, onde a junção de escolha e valoração de cada indivíduo
também nos define sobre quem somos como sociedade.

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