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Olavo de Carvalho

Edmund Husserl
Contra o Psicologismo
Preleções Informais em torno de uma leitura
da Introdução às Investigações Lógicas

Rio de Janeiro
IAL
1996

i
Atenção:
Este material não foi revisado
por Olavo de Carvalho.

Não basta crer em Deus; é preciso acreditar também no diabo.


Em nosso tempo, o diabo substitui a lógica por uma falsa psicologia.

Frithjof Schuon

ii
Sumário

1 Preleção I 3
1.1 A origem da lógica . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.2 As condições essenciais do conhecimento ci-
entı́fico, ou: a idéia pura de ciência . . . . . . . . . 8
1.3 Condições existenciais para a idéia de ciência pura 19
1.4 Evolução e transformações da idéia de ciência . . . 32
1.5 Evolução da Idéia de Ciência . . . . . . . . . . . . 45
1.6 Caracteres gerais da obra de Edmund Husserl . . . 53

2 Preleção II 66

3 Preleção III 80

4 Preleção IV 106
4.1 Espinha dorsal da história da filosofia . . . . . . . 106

5 Preleção V 130

6 Preleção VI 146
6.1 4. A imperfeição teorética das ciências particulares 149
6.2 5. Complementação teorética das ciências parti-
culares pela metafı́sica e pela teoria da ciência . . . 164

iii
Sumário

7 Preleção VII 174


7.1 6. Possibilidade e justificação de uma lógica como
teoria da ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

8 Preleção VIII 207

9 Preleção IX 220

10 Preleção X 239

11 Preleção XI 267

12 Preleção XII 273

13 Preleção XIII 294

14 Preleção XIV 326

15 Preleção XV 354

16 Preleção XVI 375

17 Preleção XVII 401

18 Preleção XVIII 420

19 Preleção XIX 448

20 Preleção XX 473

21 Preleção XXI 510

22 Preleção XXII 561

iv
Sumário

23 Preleção XXIII 584

24 Preleção XXIV 622

25 Preleção XXV 635

26 Preleção XXVI 660

27 Preleção XXVII 676

28 Preleção XXVIII 702

v
Introdução

Edmund Husserl representa, para mim, o protótipo da honestidade


intelectual, do rigor fundado na sinceridade de propósitos. Perto
dele, quase todos os outros filósofos do século XX parecem um
pouco artificiais. Ele surpreende pela absoluta ausência de pose,
pela total boa-fé, pelo empenho total naquilo que está fazendo e
pela completa ausência de motivos secundários de ordem social,
literária, polı́tica, etc.
Esta leitura informal que será feita de algumas páginas de
suas Investigações Lógicas mostrará o poder do espı́rito filosófico.
Não há melhor porta de ingresso ao mundo da filosofia; o único
obstáculo é que se trata de um texto denso, pesado, que afugenta
o principiante por sua aparência temı́vel — algo como o retrato de
Husserl que lhes mostrei, um par de olhos perfurantes que parecem
julgar com severidade o recém-chegado, lendo na sua alma o teor
das suas intenções. Ele é como um guardião na porta do templo
da filosofia, pronto a afastar o intruso, o farsante, o beletrista.
O que mais nos surpreende na biografia de Husserl é que no
perı́odo de 1933 a 1938, com a Alemanha já sob o domı́nio na-
zista, ele, que era judeu, continuasse imperturbavelmente o seu tra-
balho filosófico, produzindo nesses anos alguns de seus trabalhos
mais importantes, sem emitir jamais uma queixa, uma lamúria,
inteiramente dedicado à única coisa necessária o amor à sabedo-
ria. Muitos alemães notáveis, judeus ou não, se espalharam então

1
Sumário

pelo mundo, representando no Exterior a sobrevivência do espı́rito


alemão aviltado no interior pela tirania. Muitos obtiveram em ou-
tros paı́ses a glória merecida: Thomas Mann, Einstein, Eric Weil,
Eric Voegelin e outros. Mas Husserl, que permaneceu e sofreu ca-
lado, foi o maior de todos. Se Deus não destruiu a Alemanha por
considerar que lá dentro havia cinco justos, Husserl era certamente
um deles.
Quando me pergunto como os nervos desse homem não ce-
deram ante o pavor reinante, só encontro uma resposta: ele era
talvez o único, em todo o mundo, que compreendia realmente o
que estava acontecendo. Ele sabia que o horror do século XX
tinha raı́zes profundas, de ordem espiritual e intelectual, que es-
capavam à maioria dos observadores. Essas raı́zes fincavam-se
no solo da crise intelectual inaugurada a partir do Renascimento,
quando as ciências foram perdendo sua inspiração originária de
saber apodı́ctico, para se contentarem cada vez mais com ar-
tifı́cios técnicos e o deslumbramento de resultados práticos sem
fundamentação intelectual suficiente. Husserl via nesse processo
uma traição à busca da sabedoria, e certamente entendia os ma-
les do presente como o efeito inevitável de uma longa demissão
da inteligência ante o reino deste mundo. Enquanto outros brada-
vam contra o presente às vezes iludindo-se na esperança de poder
combater o mal com o mal , ele, dando o presente por perdido,
sondava, no passado filosófico e cientı́fico, o mal que corroia as
raı́zes da racionalidade humana, para lançar as sementes de um
futuro melhor.
Nestas leituras, tentar-se-á recolher uma parte do seu legado.

2
1 Preleção I
Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1992

1.1 A origem da lógica


Os Quatro Discursos estão, dentro de um processo histórico, numa
constante interação. É como se os temas da preocupação hu-
mana, embora permanecendo os mesmos, passassem por distintos
nı́veis de elaboração, de forma que podemos comparar os Qua-
tro Discursos a uma árvore da qual o Discurso Poético constitui
a raiz, uma raiz que mergulha no mundo da realidade mesma, no
mundo dos cinco sentidos, no mundo da experiência mais direta, e
dessa experiência, desse fundo, se destacam diferentes orientações
humanas, que entram em luta através do Discurso Retórico. A
imaginação mostra vários objetos, que se tornam objetos de de-
sejo. Daı́ surge a multiplicidade dos desejos, e os desejos entram
em luta através do Discurso Retórico — o discurso persuasivo.
Cada desejo tenta se sobrepor aos outros, expressando sua pre-
tensão através do discurso retórico. De vários discursos retóricos,
nenhum é mais probante que o outro, embora uns possam ser mais
persuasivos. Persuasividade, no sentido em que se usa o termo na
Teoria dos Quatro Discursos, é o poder de obter a concordância de
um determinado ouvinte, ou de um determinado número de ouvin-
tes. Ser probante é ter condições de provar, não para uma platéia

3
1 Preleção I

em particular, mas, em princı́pio, para toda e qualquer platéia ca-


paz do pensamento racional. É o mesmo que cogente, ou forçoso.
Quando examinados por uma inteligência mais neutra, nenhum
dos discursos retóricos é mais convincente que o outro e nenhum é
totalmente cogente, ou probante. Daı́ os discursos retóricos pode-
rem se perfilar uns ao lado dos outros como concorrentes eternos.
Existem preferências, é verdade, mas é absolutamente impossı́vel
provar por A + B que um é mais verdadeiro que o outro. Mesmo
porque as bases com as quais se demonstraria a superioridade de
um discurso não servem para o outro discurso. Eles partem de
premissas diferentes — e a decisão racional é impossı́vel. Assim,
a competição dos discursos retóricos é interminável, no plano em
que se coloca.
Porém, os vários discursos retóricos confrontados — de um
ponto-de-vista neutro — revelam determinados pontos comuns.
Revelam certas premissas que estão por baixo, e que podem ser
comuns a todos eles. Pode-se mesmo, com um pouco de paciência,
descobrir que os pressupostos diferentes de que partem se assen-
tam, por sua vez, em premissas comuns, diversamente enfocadas.
É com base nessas premissas que eles poderão ser, se não julgados,
ao menos combinados de determinada maneira, que então permi-
tirá encontrar uma verdade para além do confronto de opiniões.
E essa verdade se encontra no momento em que, confrontando
vários discursos de opinião, várias preferências, percebe-se que a
discussão toda está baseada — de maneira quase sempre implı́cita
e até subconsciente — num certo número de princı́pios, que por
serem auto-evidentes, podem servir de critério para a avaliação
e correção mútua dos vários discursos. Confrontar discursos
retóricos, reduzi-los a um denominador comum, encontrar um
princı́pio de base no qual eles possam ser julgados, essa é a função
do Discurso Dialético.
Uma vez, porém, encontrados esses princı́pios, verificamos

4
1 Preleção I

que eles dizem respeito a aspectos muito gerais, muito univer-


sais da realidade. Mas não estamos querendo conhecer somente
princı́pios gerais, estamos querendo um conhecimento efetivo so-
bre determinadas particularidades, a fim de estender nosso co-
nhecimento do real efetivo (não de meras generalidades lógicas),
e nesse sentido é que tiramos conseqüências mais particulariza-
das dos princı́pios colocados, estabelecendo assim critérios para
que os princı́pios possam se transformar em meios de julgamento
das várias opiniões, de uma maneira apodı́ctica, infalı́vel, indes-
trutı́vel. E isso é exatamente o que se chama o Discurso Lógico.
Essa progressão dos Quatro Discursos corresponde a um mo-
vimento histórico. Todos os temas da discussão humana provêm
da imaginação poética, da imaginação mı́tica, simbólica. Desse
caldo de imagens e de sı́mbolos é que se formam as vontades hu-
manas opostas e em luta — daı́ surgindo a discussão. Da discussão
surge, ao longo do tempo, um princı́pio de arbitragem que se torna,
por sua vez, a base de demonstrações cientı́ficas. Esse processo
mostra também um estreitamento do leque dos temas; daqueles
sugeridos pela imaginação poética somente algumas linhas serão
desenvolvidas até chegar-se a um conhecimento cientı́fico do as-
sunto. O conhecimento cientı́fico, por sua vez, fornece uma base
sólida para a ação humana, que retroage sobre o mundo existente,
real, e o transforma mediante a técnica. A técnica, inspirada na
ciência, muda a face do mundo e muda a experiência humana; daı́
surgem novos temas e novas formas imaginativas e assim o ciclo
prossegue indefinidamente.
É importante não atribuir a esse ciclo uma duração definida. O
mesmo ciclo é percorrido dentro de uma cultura várias vezes e com
velocidades diferentes. O mesmo ocorre no microcosmo da mente
de um indivı́duo. Podemos tomar como exemplo o surgimento de
uma idéia cientı́fica qualquer: é evidente que as idéias cientı́ficas
surgem no plano da imaginação, como meras hipóteses possı́veis,

5
1 Preleção I

e às vezes sob forma simbólica, alegórica, como no caso de Niels


Bohr, que sonhou com a estrutura do átomo. Tendo sonhado com
a estrutura do átomo, ele seria um perfeito idiota se imediatamente
atribuı́sse certeza a esta estrutura tal como ela havia se apresentado
no sonho. A partir dessa imagem, porém, surge um desejo de saber
se ela contém algum conhecimento verdadeiro. E surge um desejo
oposto, que é o desejo de não se deixar enganar por uma mera
imagem. Esse conflito, em seguida, é elaborado na apresentação
das razões pró e contra aquele modelo de átomo e, finalmente ele
pode ser elaborado numa teoria cientı́fica capaz de ser provada ou
refutada logicamente. Esse ciclo deve ter sido percorrido na mente
de Niels Bohr em questão de minutos. Depois, é repetido ao longo
dos dias com uma duração um pouco maior, e assim por diante
em elaborações sucessivas até a formulação final da demonstração
lógica, que por sua vez pode fracassar ou ter sucesso.
Do mesmo modo, podemos encarar a evolução da teoria atômica
no século XX num plano coletivo, histórico, seguindo exatamente
a mesma seqüência: uma imaginação coletiva encontrando esque-
mas hipotéticos, em seguida apostando neles — ou contra eles —,
depois confrontando-os, discutindo-os até achar um princı́pio de
arbitragem. Em última análise, toda investigação cientı́fica segue
esse ciclo e não poderia ser de outra forma.
Assim, a idéia de que se possa haver uma espécie de con-
fronto, uma paridade oposta, entre o mundo poético — o mundo
da imaginação —, e o mundo cientı́fico, é uma coisa que só é crı́vel
para quem desconhece por completo qual é o processo da desco-
berta cientı́fica, quer do ponto-de-vista da psicologia individual,
quer do ponto-de-vista histórico, da evolução da cultura como um
todo: o Discurso Lógico cientı́fico, emerge do mito, do sı́mbolo,
através da mediação dos Discursos Retórico e Dialético.
Esse dualismo foi criado por uma espécie de decreto oficial,
sobretudo na França, a partir da formação das Faculdades de

6
1 Preleção I

Ciências e das Letras. Mas o fato de existirem dois organismos


que estudem duas coisas distintas não quer dizer que a distinção
entre essas duas áreas do conhecimento humano seja tão nı́tida
quanto a distinção espacial entre os dois edifı́cios que contêm as
respectivas instituições. As Letras e as Ciências, de fato, não se
distinguem assim tão facilmente quanto seus respectivos edifı́cios.
Com isso se pode então, entrar um pouco mais profunda-
mente no Discurso Lógico, este surge como uma resposta da
mente grega a uma situação criada por três fatores. Um de-
les é a proliferação dos discursos cosmológicos incoerentes. Os
filósofos pré-socráticos discutiam todos a mesma questão: de quê
se compõe o mundo? Qual é a substância que está por trás de toda
a variedade de fenômenos cósmicos? Eles se perguntam sobre a
natureza do Cosmos. O quê é o Cosmos, em última análise? O
quê seria a Physis?
Physis não quer dizer só “natureza”, no sentido da coleção dos
entes visı́veis, mas no sentido dos princı́pios que estariam por trás
de todos os fenômenos visı́veis; os princı́pios que unificam to-
dos esses fenômenos através de uma lei comum, fundada também
numa substância universal. Os filósofos divergiam com relação
a isso e cada um oferecia um discurso que parecia tão persua-
sivo quanto os demais discursos. A proliferação dos discursos
filosóficos divergentes inclina, naturalmente, a mente grega ao ce-
ticismo e ao relativismo; este último se expressa na idéia de “Cada
cabeça, uma sentença”, ou seja: há uma verdade diferente para
cada um; e o ceticismo por sua vez, se expressa na famosa fórmula
que seria mais tarde a de Francisco Sanchez: Quo nihil scitur, “que
nada se sabe” nem se pode saber.
Nesse mesmo ambiente de ceticismo existe também um outro
fator, que é uma posição de predomı́nio, uma posição de prestı́gio
da atividade retórica, que é a arte da persuasão. Os retóricos
praticamente dominavam a educação da classe letrada leiga. Os

7
1 Preleção I

retóricos eram, sobretudo, educadores, professores, e o jovem es-


tudante grego, sendo um jovem de classe aristocrática, se educava,
fundamentalmente, para a participação na polı́tica, para a qual a
arte da retórica era o instrumento principal.
A retórica é uma arte de persuadir, porém, a técnica da per-
suasão não permite, por si mesma, saber se o conteúdo do que está
sendo dito é verdadeiro ou falso. Ela dá simplesmente os instru-
mentos psicológicos necessários à persuasão, e não ao julgamento
do conteúdo do que foi dito. Então, por um lado, no campo ci-
entı́fico-filosófico havia uma tendência muito grande ao ceticismo
e à equalização, à mútua neutralização de todos os discursos, de
modo que a adoção desta ou daquela tese filosófico-cientı́fica pa-
recia mais uma questão de preferência pessoal do que outra coisa.
Por outro lado, esse ambiente de subjetivismo ainda era fomen-
tado pelo próprio domı́nio da retórica. O grego letrado do tempo
de Sócrates é um sujeito que não acredita em nada, que acredita
que todas as idéias são iguais, que todas valem mais ou menos a
mesma coisa e que, ademais, tem os instrumentos para persuadir
os outros do que quer que seja.

1.2 As condições essenciais do


conhecimento cientı́fico, ou: a
idéia pura de ciência
A fim de sanar esta situação, Sócrates e Platão inventam um
método de tirar dúvidas, que formula uma série de exigências para
que o saber possa ser considerado verdadeiro, independentemente
da persuasividade do orador que defenda a tese, de modo que, os
vários discursos retóricos, se pudessem ser reduzidos a um con-
junto de fórmulas retoricamente neutras, todas não-persuasivas,

8
1 Preleção I

para neutralizar o efeito retórico, ficando somente com o conteúdo


explı́cito das teses defendidas para, em seguida, poder conferir
sua veracidade. Ou seja, se pudéssemos abstrair a eloqüência
dos vários discursos, de modo que todos ficassem chatı́ssimos,
e ficássemos apenas com as teses explı́citas, com o conteúdo
afirmativo formal daquilo que esses discursos disseram, haveria
um meio de confrontá-los, possibilitando, então, investigar qual
disse verdade e qual disse falsidade. Para tornar possı́vel fazer
essa confrontação, Sócrates e Platão conceberam um conjunto de
exigências que formaram a idéia pura do que vem a ser Ciência
— Ciência no sentido mais universal, no sentido do conhecimento
verdadeiro, certo, irrefutável, fundamental.
O que será dito em seguida a respeito das condições ou
exigências do conhecimento cientı́fico não é uma exposição lite-
ral do pensamento de Sócrates e Platão, mas uma interpretação
husserliana, que o mestre deixou disseminada em vários de seus
textos, como Filosofia Primeira e Lógica Formal e Lógica Trans-
cendental, e que aqui resumo livremente, acrescentando-lhe o que
me pareça que deva ser acrescentado por minha conta; ou seja, é
a minha livre interpretação da interpretação de Husserl. A vanta-
gem de entrar no assunto por essa via é que, expondo os antece-
dentes históricos, já se atinge o núcleo do pensamento do próprio
Husserl, isto é, tem-se uma visão husserliana dos antecedentes de
Husserl. Husserliana no espı́rito e na fidelidade interior, entenda-
se, já que nestas preleções não tenho um compromisso de exatidão
filológica permitindo-me, assim, introduzir, onde me pareça bom
fazê-lo, minhas próprias idéias, na medida em que sejam fiéis, não
digo à letra, mas ao ideal da obra de Husserl.
A primeira exigência desta idéia pura de Ciência, é a evidência
direta, ou seja, o conteúdo afirmado deve ser, no mais possı́vel,
evidente, ou seja, que ele não possa ser de outra maneira, como
por exemplo, a afirmação: “Nós estamos aqui, agora”. Cada um

9
1 Preleção I

de nós sabe isto por evidência direta sem precisar de provas.


Se pudéssemos saber todas as coisas com a mesma evidência
com que sabemos que estamos aqui agora, tudo seria muito fácil
e nem sequer haveria o confronto dos discursos. Porém, lamen-
tavelmente, isso não se dá porque existem muitas coisas que pre-
cisamos conhecer mas que estão para além da nossa experiência
direta possı́vel. Por exemplo, se alguém cometeu um crime, só
podemos ter uma evidência direta de quem é criminoso se tiver-
mos presenciado o crime — e aı́ não haveria necessidade de in-
vestigar. Caso contrário, não podemos ter uma evidência direta,
mas talvez possamos ter uma evidência indireta. Uma evidência
indireta é uma verdade que em si mesma não é evidente, mas que
é garantida por uma outra que é evidente. Por exemplo, se você
está aqui neste momento, para chegar até a escada você vai ter de
dar um certo número de passos. Eu não tenho a evidência de você
caminhar, não estou vendo você caminhar, mas sei que, se quiser
ir até a escada, vai ter de dar um certo número de passos. O que sei
evidentemente é que você está aqui, e que a escada está lá. Com
base nessa evidência direta posso acreditar numa outra evidência,
menor, mais fraca, indireta, mas que é garantida pela evidência
maior.
Isto posto, chega-se a uma segunda exigência da idéia de
ciência, que é a de transferência de veracidade. É necessário que
uma verdade possa garantir uma outra verdade menos evidente —
se ficássemos apenas com as verdades evidentes não irı́amos muito
longe, não transcenderı́amos o cı́rculo da nossa experiência imedi-
ata. Portanto, para existir ciência, é absolutamente necessário que
umas verdades possam ser garantia de outras verdades que não
possam se garantir por si mesmas.
Porém, o que é que garante que a primeira verdade garanta a
segunda verdade? É preciso também que haja um nexo qualquer,
uma ligação qualquer entre as duas verdades, e aqui, a terceira

10
1 Preleção I

exigência.
Mas é preciso ainda que o nexo que estabelece a transferência
seja, ele próprio, evidente, ou seja, não pode ser um nexo qual-
quer. Isso porque, se não for evidente, ele também precisará ser
garantido por uma outra evidência — e assim por diante indefi-
nidamente. Temos, assim, outra exigência que é a da existência
de um nexo evidente. Se tenho aqui uma verdade, que chamo de
evidente, e ali uma evidência indireta, tenho de ter um nexo entre
as duas. Porém, se esse nexo não é evidente diretamente, isso quer
dizer que ele é uma evidência indireta que depende de uma outra
verdade evidente; e haverá necessidade de um outro nexo, o qual
se não for evidente vai depender de uma outra verdade evidente,
a qual está ligada por um outro nexo. Se isso não parar nunca,
ou seja, se nunca encontrarmos um nexo evidente entre a verdade
direta e a verdade indireta, acabou-se a nossa Ciência.
Essas são, então, as quatro condições gerais, ou teóricas, da
Ciência. Ciência quer dizer conhecimento verdadeiro. A evidência
indireta não é evidência em si mesma, senão seria uma evidência
direta. Se as duas verdades que nós queremos conectar são real-
mente diferentes uma da outra, inteiramente heterogêneas, estra-
nhas entre si, então, não haverá um nexo evidente possı́vel. Mas
pode haver nexos acidentais. Um nexo só poderá ser evidente na
seguinte situação: se entre a primeira verdade e a segunda verdade
não houver, na realidade, salto algum. Porém, quando examina-
mos retroativamente percebe-se, de fato, que a segunda verdade
é igual à primeira verdade, embora não tivesse assim parecido
de inı́cio. Como se faz isso? Se temos uma verdade evidente
de que estamos aqui e a escada está lá e, eu, partindo da pri-
meira evidência de que estamos aqui e a escada está lá, digo que
para chegar até lá, precisamos nos mover. O quê é mover-se? É
deslocar-se no espaço. O quê é aqui e lá? São diferentes lugares no
espaço. Então, eu dizer que você está aqui, é exatamente a mesma

11
1 Preleção I

coisa que dizer que para você estar lá tem que haver um movi-
mento, um deslocamento. Ou seja, eu disse exatamente a mesma
coisa, só que com duas palavras diferentes, e a diferença da frase
me enganou. Dizer que você está aqui é a mesma coisa que dizer
que você não está em outro lugar. Qual é a conexão entre dois lu-
gares? É somente o movimento, que conecta os dois lugares. Na
hora em que eu disse que você está aqui, já está implı́cito que você
não está lá, e que a única maneira de você chegar lá é através do
movimento, ou seja, somente explicitei o que estava implı́cito. Eu
não disse uma coisa nova; não acrescentei um conhecimento novo,
uma informação nova.
Existem conexões ideais como, por exemplo, a medida: daqui
até lá dista cinco metros. Só que a medida, em si mesma, não leva
um corpo até lá. O que o leva é o movimento através desses cinco
metros. No instante em que eu digo que você está aqui, eu já es-
tou implicitamente dizendo que você não está lá, e que só através
do movimento você pode chegar até lá. Retire essas duas coisas
e você verá que a expressão “você está aqui” fica totalmente des-
tituı́da de qualquer significado. O que quer dizer a frase “você está
aqui” sem ela significar que você não está lá? Não quer dizer nada
— isso já está incluı́do. De modo que, a análise do significado do
que eu falei me leva à segunda verdade evidente. Eu não acres-
centei uma segunda proposição, eu apenas desmembrei a primeira
proposição, apenas expliquei o que a primeira queria dizer. Isto
significa que, entre a verdade direta e a verdade indireta, existe
uma relação que é como a do Todo e a da Parte. Esse é que é o
nexo, e que se chama de Silogismo. Silogismo é um conjunto de
três proposições, o qual, dadas as duas primeiras, a terceira de-
corre necessariamente. Um exemplo disso é o famoso: “Todos os
homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal.
Aquilo que eu digo de todos, evidentemente se refere a cada um,
porque todo e cada um são exatamente a mesma palavra. Portanto,

12
1 Preleção I

a transferência de veracidade é, evidentemente, no mesmo sentido


de que, duas frases ditas são a mesma frase. Quando eu digo que
todos os homens são mortais, e que cada um homem é mortal, o
que eu digo de um homem em particular já está incluı́do na pri-
meira proposta. Portanto, eu não disse uma coisa nova. O nexo
que existe aı́ é o nexo entre o todo e o cada um. Eu disse apenas
que todo é igual a todo e que cada um é igual a cada um. E se uma
coisa é igual a ela mesma, essa coisa é uma evidência. Apenas
a formulação da frase é que me pareceu diferente, porém, anali-
sando o sentido da primeira frase, eu vejo que na segunda frase ela
já estava dita. E se eu disse que todos os homens são mortais, eu
não posso negar que um deles seja mortal.
O quê é o conhecimento evidente? É um conhecimento onde
exista a total impossibilidade de negá-lo, a não ser introduzindo
um duplo sentido nas palavras. Se um indivı́duo diz, “eu não estou
aqui”, ou ele está mudando o sentido da palavra eu, ou da palavra
aqui. Se ele diz, “eu não estou aqui; na verdade, eu estou na minha
casa”, isso significa que o sentimento dele, ou o seu coração, está
lá, porém, nesse caso ele criou um duplo sentido porque ele está
utilizando a palavra aqui num sentido espacial, e a palavra eu, não
no sentido corporal, mas num outro sentido. Quando você nega
uma evidência, você está sempre jogando com um duplo sentido
de palavras. Se eu digo, por exemplo, A = A, então o primeiro
A é o mesmo A do segundo lado da igualdade. Se digo que AA,
eu estou negando a frase anterior? Se digo isso, significa que o
primeiro A não é igual ao primeiro A e, se ele não é o mesmo que
o primeiro, não é a ele que se refere a primeira sentença (A = A).
Se a segunda frase (AA) não se refere à primeira (A = A), ela
não pode ser a sua negação. A pessoa tem a impressão que negou,
mas não negou. Ele só enganou a si mesmo. Para ficar mais claro,
vamos numerá-los: A1 = A2 e A3 A4 . Vamos supor que A1 = A3 ,
e se A1 A4 , então A4 é um outro A. A = A não tem como ser

13
1 Preleção I

negado — você só pode imaginar que negou.


Se você duplica o sentido de uma palavra, então, duas frases
aparentemente iguais são, na verdade, duas frases diferentes, que
não se referem às mesmas coisas. Então, uma frase não pode ser
a negação da outra. Se eu digo, por exemplo, “O Paulo está de
camisa azul”, e o Alexandre diz, “Não! o Guilherme está de ca-
misa branca”, é evidente que a segunda frase não é uma negação
da primeira. Entretanto, e se ele chamar o Guilherme de Paulo?
Isso significa que ele se equivocou de nome. Houve uma troca
de nomes. Assim, nós podemos dizer que um conhecimento, uma
sentença, uma proposição, é evidente se ela não puder ser negada,
exceto mediante o uso de um duplo sentido. Isso é fundamental se
você quiser ter certeza de qualquer coisa na vida.
Assim, tudo o que não é diretamente evidente pode ser negado.
Quando você diz, “eu já não sou mais o mesmo”, significa que
você está atribuindo um duplo sentido à palavra eu. Num caso,
designa uma individualidade, e aı́ é você mesmo. Num outro caso,
designa uma qualidade desse indivı́duo. A individualidade conti-
nua a mesma, só a qualidade é que foi alterada. Para que o in-
divı́duo fosse, primeiro pobre, depois rico, é necessário que ele
continue a ser o mesmo. Uma sentença só é negação da outra
quando o sujeito é o mesmo.
O princı́pio da identidade é imortal. É a própria unidade do
real. Isso significa que ele não pode ser escamoteado pelos nos-
sos mesquinhos jogos de palavra. No entanto, há conhecimentos
que são verdadeiros, mas não são evidentes. Por exemplo, se você
me afirma que tem Cr$ 1.000,00 no seu bolso, isto não quer dizer,
para mim, que isso seja evidente. Eu posso negar isso sem duplo
sentido. Existe apenas uma veracidade contrastada com uma fal-
sidade. Pode ser que isso seja uma verdade, e eu esteja dizendo
uma falsidade. Ou, pode ser o contrário. Mas nessa contradição
não existe duplo sentido. A coisa pode ser negada mesmo.

14
1 Preleção I

Um conhecimento qualquer de ordem cientı́fica pode ser ne-


gado. Por exemplo, você pode negar toda a Fı́sica porque não
há contradição. As teorias não são evidentes em si mesmas.
A negação de uma evidência não é a mesma coisa que uma
contradição lógica. Contradição lógica significa você negar al-
guma sentença anterior, cuja veracidade já afirmou — A = A se
sustenta sozinho, não há necessidade de outra afirmação anterior;
e AA se derruba sozinho. Contradição lógica é um falso nexo.
Entre A = A e AA, não há nexo, são frases isoladas. A = A se
sustenta pela simples enunciação — é óbvio.
Portanto, eu gostaria que vocês fizessem todas as tentativas
possı́veis para derrubar o princı́pio da identidade. Quando vocês
estiverem definitivamente derrotados e começarem, de alguma
maneira, a aceitar o princı́pio, vocês começam a aceitar a verdade.
É para você lutar consigo mesmo — é difı́cil. Você pode dizer,
“Parece verdade...”, mas parecer significa uma verossimilhança. É
uma convicção retórica. Você está retoricamente convencido do
princı́pio de identidade.
O sujeito estar retoricamente persuadido do princı́pio de identi-
dade quer dizer que ele não teve uma convicção firme, pessoal.
Prove que, A = A, embora verdadeiro, prove que ele não é um
princı́pio auto-evidente. Prove que ele se baseia em alguma outra
coisa. Prove se puder. Muitos filósofos caı́ram nessa tentação.
Qualquer evidência direta é uma repetição do princı́pio de iden-
tidade, sob uma nova forma. E é tão válida quanto o princı́pio de
identidade.
E se eu indagasse, se uma coisa que eu vejo, se ela é uma
evidência direta, nesse sentido? A resposta é não, porque você
pode estar enganado. você pode ser enganado pelos seus sentidos.
Se eu posso ser enganado pelos meus sentidos, como é que eu
sei que eu estou aqui? Resposta: você não precisa dos sentidos
para saber que você sempre está, onde estiver, para você saber que

15
1 Preleção I

você faz o que você faz.


Quando Descartes diz que, “Eu posso duvidar de tudo, mas não
posso duvidar que estou duvidando”, eu não posso duvidar do que
eu estou pensando (dúvida já é o conteúdo do pensamento).
E se eu parar de pensar? Eu duvido que estou pensando, porém,
eu faço essa dúvida, sem pensar propriamente. Portanto, um su-
jeito não pode negar que ele está pensando naquela hora. Porque
negar, ou afirmar, é pensar. É o famoso “cogito ergo sum”, que é,
de novo, o princı́pio de identidade, só que aplicado à minha pes-
soa. Se eu digo que A = A, se eu afirmo isso, logo estou pensando
(cogito ergo sum).
Toda investigação sobre qualquer coisa sempre começa com
esse tipo de coisa.
No caso do silogismo anterior (Todo homem é mortal; Sócrates
é homem; logo Sócrates é mortal), para eu saber que a palavra
todo é igual a cada um, basta saber o que significa a palavra todo.
E cada um significa todos um. Então, quando eu digo que esse
homem em particular também está incluı́do na mesma regra geral,
eu estou apenas repetindo que todos é cada um. E esse nexo é
auto-evidente. É a identidade do todo com cada um. São duas
expressões da mesma idéia.
O nexo é a identidade entre a expressão todos e a expressão cada
um.
Não confundir nexo lógico com a premissa menor. No silo-
gismo você tem, Premissa maior, Premissa menor e Conseqüência.
A Premissa Menor é o elo entre as duas.
Nexo lógico é a garantia (e, não uma outra premissa) de que, de
duas premissas dadas você pode concluir uma terceira. Por quê?
Porque a terceira sintetiza as duas anteriores, dizendo a mesma
coisa, sob uma outra forma. Mas, é a mesma coisa que está sendo
dita. Apenas transferindo de todos para cada um, e de cada um
para um um em particular.

16
1 Preleção I

Se eu digo que todos os quadrados têm quatro lados, isso quer


dizer que, cada quadrado tem quatro lados. E, esse quadrado tem
quatro lados, como todos os outros. Aliás, como cada um deles. É
apenas a forma verbal que foi mudada. E, eu posso ser enganado
com isso aı́ acreditando que eu estou falando uma coisa que não
tem nenhuma relação com a outra. Só que, não apenas tem uma
relação, como é a mesma coisa. E, se é a mesma coisa, então
entra o princı́pio de identidade, e que estou afirmando que A = A,
que todos = todos, que cada um = cada um, etc. O nexo é o
que mostra a identidade entre duas proposições diferentes. Assim,
essas são as condições gerais, ou teóricas, para que possa existir
qualquer conhecimento.
Com base no que foi dito anteriormente, nós podemos pegar
vários discursos retóricos e conferi-los, uns com os outros, para
ver se estão dizendo a mesma coisa, ou se estão dizendo coisas di-
ferentes, se são uma negação um do outro, ou se trata de discursos
inconexos como, por exemplo, “O João está de camisa branca”,
“Não, a Maria está de camisa azul”.
Com base no princı́pio de identidade eu faço a comparação e
a seleção: se estão dizendo as mesmas coisas, se estão dizendo
coisas diversas, se efetivamente se negam um ao outro, ou se são
falsas negações.
Se eu encontrar dois discursos que efetivamente se negam, quer
dizer, descontadas as diferenças, os erros de interpretação, então,
daı́ temos um problema. Eu tenho uma alternativa, das quais uma
terá que ser verdadeira, e a outra, falsa. Porém, isso não se aplica
a todos os discursos que se contradizem. Isso porque, primeiro, se
precisa reduzi-los a uma significação comum. Por exemplo, “João
matou Pedro”. Qual é a negação disso aqui? Só haverá negação
se houver o mesmo sujeito, o mesmo objeto, e o mesmo verbo, e
somente introduzindo a palavra não. Se o outro responde, “Não,
João não matou Joaquim”, se a comparação não tem cabimento,

17
1 Preleção I

então a comparação é absurda.


Mas, os discursos podem ser contraditórios, por exemplo, “João
não matou Pedro”. Se João é o mesmo, o Pedro é o mesmo, e ma-
tar significa a mesma coisa, então temos um problema, que terá
que ser resolvido mediante uma afirmação de uma das alternati-
vas, e a negação da outra. Assim, vemos que não há uma terceira
alternativa.
Porém, nas discussões que nós efetivamente encontramos no
dia-a-dia, existe não somente uma terceira alternativa, como
também, uma quarta, uma quinta, e uma sexta, ou mais. Isto por-
que o sentido do discurso é múltiplo. E, freqüentemente, não se
referem exatamente às mesmas coisas, porém, a diferentes aspec-
tos da mesma coisa.
Se você observar uma campanha eleitoral, é sempre assim que
acontece. É inteiramente absurda. É o non-sense por completo.
Trata-se de um show para enganar idiotas. E, às vezes, pessoas
letradas tomam partido nisso. Por exemplo, o César Maia diz, “A
Benedita empregou o filho na Câmara, sem diploma”. A Benedita
responde, “Você diz isso porque eu sou mulher, negra e favelada,
e você é racista”. A resposta do César Maia deveria ser, “Mesmo
que eu fosse racista, isso não tem nada a ver com a estória”. Só
que isso não repercutiria bem no eleitorado. Aı́, ele tenta contornar
a situação.
A discussão polı́tica consiste sempre em confundir, conteúdo,
sujeito, propósito, etc. Mas, nunca responder no mesmo plano,
ou seja, é a “arte do sabonete”. Isso não é nem retórica, é sub-
retórica. Nem nos tribunais, hoje em dia, você vê a retórica pura.
Houve um jurista que afirmou, “Antes, a corrupção era constituı́da
de casos isolados. Depois do governo Collor, isso virou uma coisa
sistemática”. A resposta é a seguinte: “O senhor pesquisou? Tem
dados estatı́sticos? Quanto foi roubado antes, e quanto foi rou-
bado agora? Se não sabe, então não deve se pronunciar sobre o

18
1 Preleção I

assunto”.
O que estamos tentando aqui é colocar a questão de uma ma-
neira séria, com o intuito de resolver o problema, efetivamente.
E o problema é o seguinte: se existem tantos discursos contra-
ditórios, se falam tanta besteira, como fazer para nos orientar no
meio dessa confusão, para ter uma certeza firme de alguma coisa,
ainda que fosse pouca?
Com isso, Sócrates–Platão, inventam a idéia de Ciência, que é o
conhecimento seguro, que é a idéia que, até hoje, orienta quaisquer
esforços cientı́ficos feitos no mundo inteiro para assumir qualquer
coisa.
A idéia pura de Ciência, o ideal de Ciência, é algo que o ho-
mem se esforça para alcançar, com diferentes graus de sucesso. É
como se fosse um objetivo a ser alcançado. E ele não precisa ser
alcançado para que possa existir Ciência efetivamente. Basta que
a Ciência esteja nessa direção, e não numa outra.
Isso significa que mesmo que a Ciência tenha sido um fra-
casso completo, desde os tempos de Platão até hoje, ainda assim,
nós dirı́amos que é esse ideal que continua orientando os nossos
esforços, e nós continuamos tentando. É como disse o Barão de
Itararé, “Num pugilato com o adversário, ele, no fim, chegou à
conclusão que era melhor demonstrar que a corrida de velocidade
era um esporte muito superior”.

1.3 Condições existenciais para a


idéia de ciência pura
Uma vez colocadas essas condições, elas não bastam. Para que
possa haver Ciência, é necessário haver algumas outras condições,
de ordem prática.

19
1 Preleção I

Repetibilidade do ato intuitivo. A primeira dessas condições


práticas é a de que, o ato cognitivo pelo qual o homem capta uma
evidência tem que poder ser repetido, ou seja, se não podemos ter
duas vezes a mesma evidência, uma evidência não poderia servir
de fundamento para uma outra evidência. Seria a repetibilidade de
um ato intuitivo. Isto porque, na hora que eu capto uma verdade
evidente, por evidência direta, eu estou prestando atenção nela. Na
hora em que eu me dirijo a uma evidência indireta, se a primeira
evidência desaparecer por completo, não posso estabelecer o nexo.
Isto quer dizer que, para que seja possı́vel qualquer conhecimento,
é necessário que você tenha a mesma evidência, pelo menos duas
vezes.
Isto é mais grave do que parece, porque significa que o objeto
de dois atos diferentes, feitos num instante diferente, é exatamente
o mesmo. Quando digo que A = A, eu tenho dois atos intuiti-
vos. Só ao afirmar o princı́pio de identidade á existe essa condição
prática que tem que estar presente, ou seja, que dois atos intuitivos
diferentes que são distintos no tempo, podem se repetir à mesma
evidência e, ao mesmo objeto. Sem que haja nenhuma mudança
substantiva.
Claro que, se eu digo dois atos, eles são diferentes. Isto aqui
poderia ser contraditado pela citação de que “não nos banhamos
duas vezes no mesmo rio”, ou seja, tudo flui continuamente, e não
temos duas vezes a mesma experiência. Isto, muitas vezes, é con-
fundido, tomado no sentido de que não temos duas experiências
no mesmo objeto. Assim, se proferimos a frase acima, é porque
o rio correu, e a água já não é a mesma. Mas, como é que eu sei
que é o mesmo rio, já que eu não me banho nele? Se fosse um
rio completamente diferente, eu não perceberia que ele não mu-
dou em nada. Eu acreditaria estar entrando ali pela primeira vez.
E, assim, eu não poderia proferir a sentença acima.
A objeção consiste em alegar que, o fluxo permanente em todas

20
1 Preleção I

as coisas não afeta o princı́pio de identidade. Se afetasse, não se


poderia proferir a frase acima, a não ser que fosse um duplo sen-
tido. Assim, quando digo que, “não nos banhamos duas vezes, no
mesmo rio”, é porque eu sei que, eu mesmo, entrei duas vezes no
mesmo rio. Esse eu continua o mesmo. Ou mudou o rio, ou mudei
eu. Se o rio mudou, é porque eu sei que eu fiquei. Ademais, não
fiquei só eu, mas, também ficou o rio, com outras águas. Ou seja,
a constatação do fluxo é impossı́vel ser a constatação do princı́pio
de identidade.
Qualquer mudança, qualquer alteração, só se torna cognoscı́vel
perante um fundo de identidade. Quer dizer, o princı́pio de identi-
dade não é só um princı́pio lógico, não é um princı́pio psicológico,
é um princı́pio do ato real do conhecimento. Assim, podemos di-
zer que a repetibilidade do ato intuitivo é o correspondente psi-
cológico do princı́pio de identidade.
Dispositivo de registro. A repetibilidade do ato intuitivo, por
sua vez, pressupõe que, do primeiro ato, algo restou na memória,
algo permaneceu, através de um registro, ou qualquer dispositivo
de registro, que seria outra condição prática para que possa haver
Ciência. Seja um registro na memória, seja no papel, num dis-
quete de computador, qualquer coisa que, evocando um conteúdo
de um ato intuitivo passado, lhe permita repetir o mesmo ato sobre
o mesmo objeto. Se não existe o registro, não existe a repetibi-
lidade do ato intuitivo, e não existindo isso, então, não podemos
realizar nada. Não havendo a possibilidade do registro, isso sig-
nifica que as quatro primeiras condições não seriam afetadas, elas
continuariam de pé, só que o conhecimento seria impossı́vel. Na
prática, seria impossı́vel.
Assim, podemos dizer que, se existisse um conhecimento, ele
teria que ter evidência direta, evidência indireta, transferência de
veracidade, e nexo evidente. Porém, sendo o homem, organizado
do jeito que é, mas não podendo repetir o ato intuitivo, esse conhe-

21
1 Preleção I

cimento não seria possı́vel. Porém, todo esse raciocı́nio seria falso,
porque ele mesmo pressupõe a repetibilidade do ato intuitivo.
Argumento cético: “Eu não sei nada”. Ora, se nada sei, não sei
nenhum. Eu não posso afirmar que nada se pode afirmar. A não
ser que afirmar tenha duplo sentido. Por exemplo, “Não se pode
afirmar nenhuma regra geral sobre nada”. Então, isto é um regra
geral. Mas, e se colocarmos da seguinte forma: “Não se pode pro-
ferir nenhuma regra geral sobre nada, exceto esta regra”? Sabemos
que há alguma regra geral que é uma exceção à regra geral que, se-
gundo a qual, não há regra geral. A pergunta seria: “De qual das
duas regras ela seria a exceção? Ela é exceção da regra geral, ou é
exceção da inexistência de regra geral?” No primeiro caso, sendo
ela uma exceção, nega a generalidade de regra. No segundo caso,
ela nega a si mesma. Seria a negação da negação.
Assim, os argumentos céticos representam o pré-Mobral. Os
argumentos céticos são todos jogos de palavras, e justamente por
isso, eles exercem um certo fascı́nio. Principalmente para quem
não sabe que eles existem há séculos, e acredita que acabou de
inventar isso. O adolescente está numa fase de ampliar o voca-
bulário, dominar a terminologia e aprender a dominar as palavras.
Então ele é facilmente encantado pela arte de argumentar.
Entendemos que o conhecimento geral, que é o conhecimento
cientı́fico, além de requerer essas condições teóricas, requer
também algumas condições práticas, das quais, a primeira é a do
ato repetitivo, a segunda seria o dispositivo de registro. No mo-
mento que estou olhando para a evidência indireta, ela é o foco da
minha atenção, não é mais aquela evidência direta inicial, porém,
esta não desapareceu completamente. Ela está retida sob forma
de um sinal, que me permite refazer o ato intuitivo, mas que não
estou fazendo no momento em que penso na evidência indireta.
A evidência direta entra num pano-de- fundo, e a evidência indi-
reta ocupa a posição principal. Mas, a primeira não desapareceu,

22
1 Preleção I

porque está lá colocada sob forma de um registro qualquer.


E se eu afirmasse que não existe possibilidade de dispositivo
de registro? Digo isso para mostrar a vocês como a negação da
possibilidade do conhecimento é absurda. É a absurdidade das
absurdidades. E se a pessoa negar a fidelidade da memória? A
memória às vezes não falha? O que é que impede que ela falhe
sempre? Do fato de que ela falha algumas vezes, nós entendemos
que não podemos mais confiar nela sempre. Entre não poder con-
fiar nela sempre, e não poder confiar nela nunca, é apenas questão
de grau. E se eu disser que, “ela falha de vez em quando”, ou “com
muita freqüência”, ou “ela falha, quase sempre”, não parece uma
questão de grau? Dizer que a memória falha quase sempre não
é uma verdade porque você guarda recordação de cada uma das
falhas dela. Logo, isso é uma negação de evidência, porque você
está lembrando que ela falha. Você tem que ter a recordação de que
houve várias falhas, ou seja, você não poderia dizer, jamais, que
ela “falha quase sempre”. Isso quer dizer que nós temos que con-
fiar na memória? Não, isso quer dizer apenas que é inviável uma
crı́tica geral da memória. Nós não podemos corrigir a memória
nesse ou naquele ponto em particular, mas nunca genericamente.
Ou seja, o ser humano é impotente para corrigir a memória, na
sua essência. Assim como, por exemplo, somos impotentes para
corrigir a percepção dos sentidos na sua essência.
Muita gente diz que existe uma instância superior, que seria a
própria Fı́sica, ou a Matemática, que pode fazer uma crı́tica geral
dos sentidos, e estabelecer a jurisdição de que isso é uma impos-
sibilidade lógica, ou seja, que daqui não dá para passar. Isso é
um erro. A idéia de que o homem possa estabelecer limites para a
sua própria memória é uma absurdidade. É, mais ou menos, como
dizia o Barão de Munchausen, “se puxar pelo cabelo para sair da
água”. Achar que as faculdades superiores da inteligência , ou
da razão, podem retroagir sobre a memória, verificar que ela tem

23
1 Preleção I

uma falha essencial e corrigi-la, é impossı́vel, porque a razão se


sustenta na sua memória.
O homem não tem outro remédio senão confiar na sua memória.
Mesmo que ela falhe. Mesmo sabendo que ela vai falhar nesse ou
naquele caso. Também não há outro remédio senão confiar nos
sentidos, mesmo sabendo que eles irão falhar em vários casos.
Seguindo este raciocı́nio, podemos também dizer que os sen-
tido falham às vezes, ou que os sentidos falham muito, mas não
podemos dizer que eles falham na maioria, ou na minoria das ve-
zes. Nós não podemos quantificar o erro geral dos sentidos. Se
eu disser que os sentidos falham quase sempre, eu já entrei num
non-sense, porque estou supondo que existe uma maneira de co-
nhecer os objetos sensı́veis, a qual é melhor que os cinco sentidos.
Assim, eu conheceria qualidades sensı́veis melhor que os meus
próprios cinco sentidos, através da razão. Acontece que a razão
não conhece qualidades sensı́veis. Isto significa que as faculdades
superiores se assentam nas faculdades inferiores e as pressupõe, às
vezes. Não teria jeito de se sair delas.
Entendemos que os dispositivos de registros não são somente
uma necessidade para que possa existir a Ciência, mas nós en-
tendemos que efetivamente existem esses dispositivos de regis-
tros e entendemos que eles têm que existir necessariamente, assim
como têm necessariamente que existir a repetibilidade do ato in-
tuitivo, e o nexo evidente, e a transferência de veracidade, e as
evidências direta e indireta. As condições que fundamentam a
idéia de Ciência são, elas mesmas, verdadeiras. Ou seja, elas ja-
mais poderiam ter sido colocadas a tı́tulo de mera hipótese. No
começo nós raciocinamos como se elas fossem hipóteses, ou seja,
se existisse o conhecimento cientı́fico ele teria que se basear em
evidências. Porém, na hipótese da inexistência de evidências, a
hipótese da existência não poderia ser formulada. Se não existe
um conhecimento evidente, essa hipótese não será adotada de ne-

24
1 Preleção I

nhuma possibilidade de evidência. Isto significa que o simples


caso de você colocar as condições que possibilitam a Ciência,
afirma que a Ciência, que o saber verdadeiro existe necessaria-
mente. Ele não é apenas uma possibilidade humana.
Até que ponto pode ser absurdo as pessoas acharem que o ho-
mem geralmente erra? Que a espécie humana é falha, que ela não
consegue conhecer a realidade? Isto é um pensamento comum
em certos cı́rculos brasileiros, que está muito em moda, que é o
ceticismo: que a espécie humana não é capaz de conhecer quase
nada. Ora, só se medir o restante que ela não conhece. E, se você
conhece efetivamente que ela desconhece, então, você tem uma
idéia da ignorância dela. Só que, para isso, você se coloca numa
posição sobre-humana.
Colocar-se, hipoteticamente, numa posição sobre-humana, só
lhe permitiria emitir um juı́zo hipotético sobre o conhecimento hu-
mano. Ou seja, se eu fosse Deus, eu saberia tudo aquilo que a hu-
manidade não sabe, e eu saberia como ela é ignorante. Mas, esse
juı́zo também seria hipotético. Supondo que eu fosse Deus, e eu
emitisse os seguinte parecer categórico: “A humanidade nada pode
conhecer”. Isso seria a negação de uma evidência, porque hipótese
é hipótese. Isto quer dizer que qualquer tipo de ceticismo é ab-
surdo. Qualquer filosofia que negue a possibilidade de conhecer o
que quer que seja, é absurda, auto-contraditória, demente. A única
coisa certa a dizer é “Existem limites reais, efetivos, empı́ricos, ao
conhecimento humano”. Isto porque eu sei que não conheço tudo,
e eu sei que a humanidade não conhece tudo. Porém, não existe
nenhuma possibilidade de se fixar limites do que ela pode vir a
conhecer.
Em princı́pio o conhecimento humano existe, tem que existir
necessariamente, é uma necessidade imperiosa, indestrutı́vel, e
esse conhecimento é necessariamente ilimitado. Não há nenhuma
barreira que possa ser colocada e que possa ser defendida filoso-

25
1 Preleção I

ficamente como necessária. Existem barreira acidentais, contin-


gentes, por exemplo, um dia você morre e não conhece mais nada.
Porém, até que ponto você vai conhecer, até a hora que morre?
Não existe uma limitação absoluta.
A idéia da limitação do conhecimento humano é uma idéia que
obcecou os filósofos durante quase três séculos, como a idéia do
Barão de Munchausen, onde você poderia sair da água puxando
pelo próprio cabelo.
Assim, existem três grandes correntes, segundo Kant, que são:
o dogmatismo, o ceticismo, e o criticismo. O dogmático é aquele
que confia na possibilidade do conhecimento humano, sem limi-
tes. A palavra dogmático aqui não tem o mesmo sentido que
em religião. Existem dois tipos de dogmatismo: o dogmatismo
ingênuo, ou pré-crı́tico, e o dogmatismo pós-crı́tico. A corrente
cética nega a possibilidade do conhecimento humano. O ceticismo
se divide em ceticismo total e ceticismo parcial. A doutrina crı́tica,
do próprio Kant, não afirma nem nega a possibilidade do conheci-
mento, mas investiga essa possibilidade, e investiga seus limites.
Mas o fato de você investigar já não está afirmando? Não, por-
que você conhecer a possibilidade de uma coisa não é a mesma
coisa que você conhecer aquela coisa. Essa é a objeção de Hegel:
“Como é que eu vou conhecer os limites do conhecimento, sem
conhecer coisa nenhuma?” É a mesma coisa que aprender a nadar
sem entrar na água. Hegel era um filósofo dogmático. Ele afirma
taxativamente a realidade do conhecimento. É a estória do sujeito
cuja casa está caindo, e ele sai correndo e, de repente, ele se per-
gunta: “Como é possı́vel que o meu cérebro emita para as minhas
pernas a ordem de correr, e elas obedeçam?” Aı́, ele pára para in-
vestigar esse problema, e a casa cai em cima dele. A investigação
crı́tica é isso, sem nenhum desrespeito a ela.
O que Kant fez foi uma necessidade histórica. O kantismo é, ao
mesmo tempo, uma possibilidade para uma doença e a cura para

26
1 Preleção I

essa doença. Havia a doença, que é um empacamento da filosofia


causada pelo ceticismo. A idéia de que antes de você julgar um co-
nhecimento de uma coisa vai ser possı́vel uma investigação crı́tica,
é uma idéia ambı́gua. Porque esse antes é apenas lógico, e não cro-
nológico. Na prática, se você está investigando a possibilidade de
existir alguma coisa é porque algo daquilo você reconhece. Você
pode dizer: “Não vamos investigar o fato, mas sim a possibili-
dade de conhecer o fato”. Eu digo: “Mas nós podemos investigar
a possibilidade de conhecer a possibilidade”. E assim por diante
indefinidamente. É o caso do astrólogo que diz para o rei que a
hora da coroação é muito séria, e que a hora certa para a coroação
precisa ser calculada. Aı́, chega outro astrólogo e diz que, calcular
essa hora é algo muito sério e, então, temos que calcular a hora
certa para poder calcular essa hora certa. E não há fim nisso.
Karl Marx dizia: “Não interessa interpretar o mundo; interessa
transformá-lo”. Veio o Stálin, pegou a obra do Marx, uma horda
de proletários, e matou todo mundo.
A essa altura nós entendemos que essas coisas não poderiam ter
sido colocadas aqui por hipóteses, mas que elas têm uma espécie
de integridade intrı́nseca. Ou seja, a evidência direta não pode ser
concebida como hipótese, e o restante também não. Mesmo as
condições práticas não podem ser concebidas como hipóteses. E,
nesse sentido, e não no sentido religioso da coisa, nós vamos ver
que o conhecimento humano é essencialmente dogmático, afirma-
tivo.
Até o momento nós só colocamos os princı́pios da Ciência.
Pode ser que o conjunto inteiro das afirmações de cada ciência
esteja totalmente errado, mas seus princı́pios continuam de pé.
Assim, esse conhecimento, para ser conhecimento, tem de ser
assim, e um conhecimento assim é necessariamente possı́vel. Al-
gum conhecimento assim existe, necessariamente, se existir o ho-
mem. E se não existir o homem, alguém, que não seja o ser

27
1 Preleção I

humano, tem que ter um conhecimento assim. Alguém sabe es-


sas coisas. Essas coisas não podem ser colocadas como simples
hipóteses.
Transmissibilidade essencial. Se existe um dispositivo de re-
gistro, quer dizer que eu posso guardar um conhecimento anterior
e, mediante um sinal qualquer (papel, memória, pedra, etc.), tão
logo, em seguida, me faculta a reprodução do ato intuitivo sobre o
mesmo objeto. Se posso fazer isso de mim para mim mesmo, por
quê não posso fazer de mim para um outro?
Isto significa que o conhecimento é transmissı́vel, não apenas
por acaso, mas essencialmente. Posso transmitir um conhecimento
de mim para mim mesmo em momentos diferentes. De modo que,
em momentos distintos, fazendo atos quantitativamente distintos,
ou seja, um ato não é um outro ato, eu incido novamente sobre
o mesmo objeto. E essa repetição, esse retorno ao mesmo ob-
jeto, é uma condição de possibilidade do conhecimento. Assim,
se não houver essa transmissão de momento a momento, não há
conhecimento algum. Portanto, em princı́pio, a transmissibilidade
faz parte da essência de qualquer conhecimento. Isso significa
que aqueles pressentimentos profundos, aquela coisa que a gente
“saca” às vezes, não são conhecimentos de maneira alguma. São
apenas uma possibilidade de conhecimento.
Hegel dizia, “Se você me pede uma árvore, eu te dou uma se-
mente”. Você fica satisfeito? O fato é que para uma semente virar
uma árvore são necessárias muitas outras coisas que não estão con-
tidas na semente. Por exemplo, precisamos de terra, e essa terra
deve ter substâncias capazes de alimentar a semente, precisamos
do transcurso do tempo, precisamos de uma série de outras coin-
cidências como por exemplo o solo não pode ser removido, etc.
Assim, dizer que a semente é a árvore, ela é árvore de certa ma-
neira, mas não da maneira certa.
Então, quando nós falamos de transmissibilidade, nós estamos

28
1 Preleção I

querendo dizer expressividade. O conhecimento inexpresso não


é conhecimento de maneira alguma, porque se ele for totalmente
inexpresso, significa que você intuiu aquilo num momento, e no
momento seguinte você esqueceu. Mesmo o conhecimento que
foi esquecido, se foi totalmente retirado da memória, se não há
possibilidade da reposição, e quando você diz que não se lembra,
então, como é que você se lembra que conhece aquilo, ou não?
Se o conhecimento é expressivo, tudo aquilo que permaneça to-
talmente inexpresso não é conhecimento, e se for expresso, tanto
faz expressá-lo de mim para mim mesmo, ou de mim para um
outro. É uma diferença de mera quantidade, e não faz a menor
diferença. Você pode dizer que é difı́cil transmitir, mas a dificul-
dade de transmitir um conhecimento não é nem um pouco maior
do que a dificuldade de adquiri-lo. A dificuldade de transmissão é
prática, e não teórica.
Espero que vocês tenham entendido o que se chama discurso
analı́tico, por causa de algo que foi dito há pouco, que o nexo
entre uma evidência direta e uma indireta é, por si mesmo, uma
evidência, que nada acrescenta à primeira verdade, mas que ape-
nas a analisa. Analisar significa desmembrar nos seus membros
constitutivos. Quando digo que o conceito de estar aqui é o mesmo
conceito de não estar lá, significa que não acrescentei nada, apenas
analisei o conceito.
Intuição é ir para dentro; Intelecção é ler dentro; Insight é ver
dentro. São várias maneiras de dizer a mesma coisa. No en-
tanto, se eu vi mas digo que nada se conservou na minha memória,
como é que eu sei que vi? Um insight é um insight quando o seu
conteúdo é claro e permanente. Não confundir um insight com
um pressentimento vago, uma imaginação, um sentimento de não-
sei-o-quê. Quando você tem um insight, você o tem com a mesma
clareza de que você sabe que está aqui, agora. Claro que você pode
ter um insight de coisas tão enormemente complicadas que você

29
1 Preleção I

pode levar um tempo enorme para contar aquilo.


Uma coisa é a expressão interna, de você para você mesmo, que
Sócrates chamava de verbo mentis, a fala mental, a mente falando
para si mesma, ou através de palavras, ou através de figuras, ou
através de gestos, ou através até de uma tensão muscular interna.
Você mesmo entende a sua própria linguagem. Embora já seja uma
expressividade que esteja contida ali. Você passar dessa expressi-
vidade, que é mais ou menos simultânea, e que repete várias vezes
o mesmo ato intuitivo simultâneo (você “saca” aquele conjunto
todo, várias vezes), para uma expressão no tempo (palavras orais,
ou escritas, ou desenho, ou qualquer coisa que possa ser materia-
lizada), pode ser muito complicado. Às vezes, uma única intuição
que você teve em dois segundos, você pode passar o resto da vida
tentando explicar. Vai depender da complexidade do objeto relaci-
onado. Por exemplo, quando um arquiteto, vendo um determinado
terreno, ou paisagem, ele concebe a forma do edifı́cio, ele só pode
conceber o edifı́cio inteiro, de uma só vez. Para colocar no pa-
pel, desenhar, calcular, ele pode levar semanas. Para construir ele
pode levar anos. Na hora de calcular as proporções do edifı́cio,
veja quantas mediações lógicas e matemáticas ele tem que ter para
que ele possa desenhá-lo. É muito complicado mas, tudo aquilo
estava naquele ato intuitivo inicial. Que dele, para ele, estava per-
feitamente claro. No entanto, se não tivesse claro ali, não estaria
claro nunca mais. Mozart “sacava a sinfonia num segundo, porque
ele fazia uma audição não-auditiva, ele fazia um audição intelec-
tual. Para passar aquilo para o auditivo levava um tempo enorme.
Vamos supor que Mozart tentasse imaginar sensitivamente a sua
própria sinfonia. Ele teria que levar a duração real dela. Para es-
crever leva muito mais tempo que para executar. Uma obra de
vinte minutos pode levar horas para ser escrita.
Espero que vocês possam vencer aqui neste curso, a doença que,
para a inteligência brasileira de um modo geral, é a pior doença,

30
1 Preleção I

que é a falta de confiança na Inteligência, que induz ao fanatismo,


ao misticismo, esperar milagres, expressando os fatos daquilo que
você menos deveria saber, ou você necessitar de uma autoridade
que te dê segurança, ou seja, você acreditar que 2 + 2 = 4 porque
papai falou. É claro que o papai tem razão, é evidente, e você deve
acreditar nisso, mas não porque o papai falou, pois se o satanás em
pessoa te falasse isso, também era para acreditar.
Conseguir distinguir a autoridade do sujeito, e a crença por au-
toridade. Se Aristóteles, ou Platão, falou algo, significa que o ho-
mem tem autoridade porque falou a verdade, e não que é verdade
porque a autoridade falou.
Esse complexo de autoridade que existe no Brasil, onde todo
mundo precisa de uma autoridade para você acreditar em algo,
ou então, você só acha que só será inteligente se sempre duvidar
de todas as autoridades. Isso é uma estupidez. Não se trata nem
de você obedecê-las, nem de contestá-las, mas de você ter uma
cabeça suficiente para você pensar, e pensar igual a qualquer outro
sujeito que se coloque no objeto do problema. Em 2 + 2 = 4, é
para todo mundo encontrar o mesmo resultado, dogmaticamente.
Não porque uma autoridade mandou, mas porque é assim.
Se vocês conseguirem superar isto aqui, adquirirem aquela
condição de terem a inteligência própria, alcançar as verdades
universais necessárias, vocês irão colocar como que uma ilha no
meio de uma vida mental caótica, que é a vida brasileira, irão criar
condições de segurança, ou seja, condição de confiança em si mes-
mos. Condição esta que, a intelectualidade brasileira nunca tem.
Toda a nossa vida intelectual é marcada por uma hesitação, por
uma dependência da autoridade estrangeira. Nós nos tornamos
dependentes deles, porque nós necessitamos deles, e isto porque
nós não somos capazes de averiguar por nós mesmos o que é e o
que não é. Entretanto, você querer se rebelar contra eles, também
não funciona. Você se livra da cópia servil, não no momento que

31
1 Preleção I

você se rebela, mas no momento que você se torna mais forte do


que ele. Portanto, não se trata de acreditar ou rejeitar um conheci-
mento mas, sim, de você se perguntar se você pode fazer alguma
coisa.
Todos os nossos movimentos culturais nacionalistas foram mar-
cados por um instinto de rebelião servil. Rebelião servil é um
sujeito que cisma que existe uma autoridade, por quem ele está
sempre rebelado contra ela. Só que, se a autoridade morrer, ele
está liquidado. É preciso ter um pai para poder bater o pé con-
tra, e dizer que é independente e, amanhã, o pai morre, você está
sozinho e não sabe mais o que fazer.
A idéia básica do curso foi a de retomar o projeto originário da
Filosofia como ciência suprema. Não como uma atividade para-
lela ao mundo da ciência, como se tornou costumeiro nos últimos
150 anos (aproximadamente). Retomar este projeto, sem que a
Filosofia se reduzisse a uma ciência em particular, ela adquiriria
nesse caso a dimensão dessa ciência por excelência, mas não se
distanciando de que em cada um dos seus momentos, o pleno ri-
gor demonstrativo, que é caracterı́stica da própria idéia de ciência,
como nós vimos antes. A idéia de ciência, como foi aqui apresen-
tado, não é inteiramente fiel ao texto de Platão. É como se fosse o
Platão relido à luz do Edmund Husserl.

1.4 Evolução e transformações da


idéia de ciência
Também é bom saber que essa idéia de ciência nunca foi contes-
tada realmente por ninguém. É a idéia que está presente em todos
os esforços cientı́ficos da humanidade, desde que alguém a ex-
pressou, e mesmo antes. Porém, essa mesma idéia ao tender a

32
1 Preleção I

uma realização, ela assume formas variadas. Ou seja, se nós per-


guntarmos assim: dadas essas condições para que uma ciência seja
verdadeira, quais são os conhecimentos reais e efetivos que cum-
prem essas condições? A resposta será muitı́ssimo variada, e a
primeira resposta que nós terı́amos foi dada pelo próprio Platão,
e é uma resposta com a qual nós já não podemos concordar hoje
em dia. Isto porque Platão acreditava que somente atendiam ple-
namente a essas condições o estudo dos arquétipos, ou idéias, ou
formas. E, não dos seres humanos, ou do empı́rico.
Uma coisa é o conceito de ciência verdadeira, que é a idéia pura
de ciência. Outra coisa é a ciência efetiva que alguém desenvolve
visando atender a essas condições. Com relação à idéia pura, ja-
mais houve contestação. Porém, quanto à realização concreta, já
é um assunto tão polêmico que o próprio indivı́duo que formulou
as condições, ao tentar realizar, já oferece uma alternativa que a
geração seguinte, com Aristóteles, já não pode aceitar.
A história da Filosofia combinava os esforços para retornar
desde o estado real das ciências, a cada momento (a ciência se
desenvolve, entra em crise, se problematiza, se extingue, sai de
moda, afunda, e aparecem novas ciências), à idéia pura. Como se
fosse um recomeço, uma refundamentação.
A primeira dessas refundamentações é do próprio Platão. A se-
gunda é de Aristóteles. A terceira é dos filósofos escolásticos. A
quarta é de René Descartes. A quinta é de Kant, sob o idealismo
alemão. A sexta é do positivismo de Comte. A sétima é de Hus-
serl. E, esta última, é recomeçar do zero. É como se dissesse: o
estado presente das ciências não atende satisfatoriamente à idéia
pura de ciência.
Assim, o avanço dos conhecimentos prossegue de acordo com
duas linhas: uma é a que vai sempre em frente, avançando, apre-
sentando novos conhecimentos, fundando novas ciência, abrindo
novos campos de investigação, etc. A outra linha é um movimento

33
1 Preleção I

de correção periódica do curso. É como se fosse o motor e o leme


de um barco. Não basta só andar, mas para aonde está andando.
A insatisfação dos grandes filósofos com o estado do conhe-
cimento, tal como se apresentava aos seus olhos, parece que a
história da cultura seja pontilhada desses retornos. Dos quais nós
poderı́amos assinalar sobretudo esses, que seria o próprio Platão,
que decide expressar a idéia pura de ciência, embora essa idéia
não estivesse sido expressada por extenso, ele não estava retor-
nando a um exemplo historicamente anterior, mas a uma espécie
de arquétipo intemporal.
Aristóteles. Porém, ao tentar desenvolver a ciência propria-
mente dita, com determinados obstáculos (ele expressou a idéia,
mas não conseguiu realizar de modo satisfatório), então, logo a
partir desse recomeço platônico, existe um segundo recomeço com
Aristóteles, que vem com tanta força que Aristóteles funda a maior
parte das ciências que nós conhecemos hoje. A ciência da Bi-
ologia, é ele quem formula as bases. A ciência da Fı́sica, da
Lógica, da Polı́tica, são todos conceitos aristotélicos. Não exis-
tia nada disso. Nós estamos tão acostumados com a Biologia, a
tanto tempo, que nós pensamos que ela brotou em árvore mas,
esse esquema, essa delimitação de um certo tipo de objeto, como
biológico, isso foi um pensamento de Aristóteles. A maior parte
dos conceitos que nós usamos, conceitos-chave como por exem-
plo, conceito de causa, de espécie, de gênero, tudo isso, começa
com Aristóteles. De modo que ele “bola” as principais ciências e
os conceitos-chave principais da ciência. E isso continua até hoje.
O Cristianismo. Porém, esse mundo aristotélico se desenvolve
em determinada linha até que chega a um ponto de crise, na me-
dida em que se torna incompatı́vel com outros dados da realidade
que se desenvolveram à margem dele. Principalmente o próprio
Cristianismo, que inaugura certas noções que são perfeitamente
estranhas ao mundo aristotélico. Uma delas que viria a alcançar

34
1 Preleção I

uma importância fundamental (inclusive para nós hoje), é a própria


noção de História. O desenvolvimento humano no tempo, como
sendo uma espécie de linha única, que pode e deve ser vista como
um desenvolvimento orgânico da humanidade, com começo, meio
e fim, isso é uma idéia inaugurada pelo Cristianismo. A idéia da
individualidade, inclusive da inteligência individual, de psique in-
dividual, que para nós hoje é tão óbvia (cada um tem sua indivi-
dualidade), essa idéia, para Aristóteles, era muito difı́cil de enten-
der. Para Aristóteles existia uma inteligência só. Também, a idéia
de fim do mundo, de que o mundo pode acabar, que existe uma
coisa antes do mundo, e outra depois do fim do mundo — para
Aristóteles o mundo era eterno.
Na medida onde esses elementos todos, que não são de origem
filosófica, são de origem religiosa, vão entrando na mente, nos
hábitos, nos valores das pessoas, chega a um certo ponto onde isso
começa a entra numa certa contradição total com o mundo aris-
totélico. Por exemplo, Aristóteles acreditava que existiam dois
planos de inteligência, que ele chamava de intelecto agente e in-
telecto por si. O intelecto por si é um para cada um; o intelecto
agente é uma espécie de inteligência cósmica de que é uma só para
todos. Ele acreditava que quando você morria não sobrava absolu-
tamente nada, somente sobrava o intelecto agente, e que esse era
um só. Assim, a idéia da imortalidade pessoal seria inconcebı́vel
dentro do mundo aristotélico.
Na medida que as pessoas iam à igreja, rezavam, acreditavam
nisso e, ao mesmo tempo, liam Aristóteles, era impossı́vel que,
mais dia menos dia, não percebessem que havia uma contradição
a isso. Essa contradição, que não era uma só, mas um monte de-
las, ainda se agrava pelo fato de que a noção aristotélica de inte-
lecto universal foi endossada por filósofos islâmicos, que a consi-
deraram compatı́veis, sobretudo com as expressões superiores da
mı́stica islâmica, que era uma mı́stica de reintegração do indivı́duo

35
1 Preleção I

ao próprio ser divino, de anulação do indivı́duo com o ser divino,


era a dissolução do indivı́duo.
Isso tudo dava a impressão que Aristóteles estava argumentando
em favor dos infiéis (aos olhos do Cristianismo). Imaginem, então,
na Idade Média, você ter todo o mundo grego, cuja cultura a Eu-
ropa dependia, lutando a favor do outro lado. Era complicado.
Quem procura responder a isso, e reunificar a cultura européia é
São Tomás de Aquino. Ele consegue dar uma expressão unificada
onde, o aristotelismo, a cultura grega, a romana, etc., tudo parece
coerente de novo. Então, essa é uma grande reforma.
Descartes. A outra grande reforma foi empreendida por René
Descartes, que se depara com um fato, que para nós ainda é muito
atual, que é de que a cultura se desenvolveu demais, que tem gente
demais falando coisas, que existem muitos livros, que não dá para
você ler todos, que não dá para você saber tudo, e quanto mais
você lê, mais confuso fica. Esse é, na verdade, o ponto de partida
de Descartes. Ele havia estudado muito na sua juventude, inclusive
com filósofos escolásticos, e tinha saı́do de lá mais confuso do que
tinha entrado. Assim, ele vê necessidade de refundar o mundo do
conhecimento numa base subjetiva, individual, não-coletiva. Ele
descobre que é necessário acreditar no indivı́duo, que ele é capaz
de encontrar o fundamento do conhecimento por si mesmo, e em
si mesmo, na sua própria experiência interna, e não simplesmente
nas provas oferecidas pela Ciência socialmente vigente.
Essa é uma das grandes conquistas, e ela ainda é coerente com o
desenvolvimento do Cristianismo. Por isso mesmo que ela é uma
perspectiva estritamente individual, pessoal e não-coletiva. O as-
sunto da salvação da alma é pessoal, ninguém pode te ajudar. O
Cristianismo tem essa ênfase subjetiva, pela afirmação da imor-
talidade da alma individual, pela afirmação da individualidade da
inteligência, e pelo desenlace pessoal da questão da salvação da
nação. É lógico que uma filosofia que fosse assim, impessoal, co-

36
1 Preleção I

letiva, desde as suas bases mesmas, inteiramente objetivista, como


a de Aristóteles, nunca bastaria para a questão. Ou seja, além de
você ter os motivos da certeza objetiva, é um fundamento de cer-
teza subjetiva. Essa é a pergunta de Descartes: não apenas qual é
o fundamento real do conhecimento mas, como eu, indivı́duo real,
posso encontrá-lo? A novidade que Descartes introduz é o eu.
Ele pretende encontrar o fundamento da certeza dentro do próprio
eu, no ato reflexivo do próprio eu, e não na verificação de uma
evidência externa, como os filósofos de até então.
Veja que em toda a obra de Aristóteles, Platão, Sto. Tomás de
Aquino, os escolásticos, o indivı́duo humano está completamente
ausente, ou seja, a Filosofia é igual para todos. A escolástica é
coletiva, onde todos os assuntos são tratados segundo uma ter-
minologia uniforme, conceitos, técnicas uniformes. Tudo dentro
de uma coletividade intelectual vigente, altissimamente treinada.
Eram profissionais de Filosofia, por assim dizer.
Assim, Descartes inaugura a Filosofia do amador, que raciocina
sozinho, na sua casa. Isto porque este amador, esse investigador,
esse buscador de conhecimento, ele vê que existe uma ciência es-
tabelecida, uma ciência que tem uma autoridade coletiva, mas ele
também vê que ela contém contradições. E, ele como indivı́duo,
por mais que ele tente confiar na autoridade da ciência recebida,
ele não pode fazer isso sem que ele tenha a condição de que ele
possa verificar isso pessoalmente. Assim, ele não garante que uma
coisa seja certa, é preciso que eu tenha a evidência de que ela é
certa. E essa evidência é uma conquista pessoal. Assim, Descar-
tes faz essa grande descoberta de que o fundamento da atividade
filosófica está no encontro de certas evidências universais, por as-
sim dizer, externas. O fundamento da Ciência se dá na própria
consciência humana.
A primeira certeza que o indivı́duo tem não é a certeza do
mundo, de Deus, da Ciência, da religião. Isso tudo são certezas

37
1 Preleção I

que ele vai descobrir depois. São certezas secundárias, e que de-
pendem de uma anterior, que é a certeza de que a consciência está
presente, de que o indivı́duo tem certeza. Esse é o fundamento
subjetivo. Assim, se o homem busca uma evidência, é ele mesmo,
ou seja, a autoconsciência é que é o fundamento do conhecimento.
Com isso, ele traz de volta uma tradição pré-Platão, que é o famoso
“Conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates. Aquela linha socrática, que
é a do exame, do livre- exame feito pelo indivı́duo isolado, que não
começa na Academia, começa pelo amador (Sócrates era um em-
preiteiro), pelo indivı́duo que se investiga.
Porém, essa tradição do livre-exame, tão logo começa com
Sócrates, ela fica esquecida durante mais de mil anos, para so-
mente retornar com Descartes. É uma reconquista fundamental,
porque todo o restante do desenvolvimento da Filosofia, desde
Platão até Sto. Tomás de Aquino, é todo um empreendimento co-
letivo. O desenvolvimento das várias ciências e da Filosofia são
sempre feito por grupos humanos, mais ou menos organizados,
como a Academia Platônica, o Liceu Aristotélico, e as Universi-
dades em geral.
Quando Descartes larga tudo isso, como um cidadão comum fe-
chado em sua casa, tentando consigo mesmo, reconstruir dentro de
sua própria mente, o mundo do conhecimento, ele está retomando
a uma das sementes da própria Filosofia, que é de Sócrates.
Kant. A próxima grande retomada é com Kant, que empreende
a busca da certeza, não no sentido cartesiano, na certeza ı́ntima,
mas a pergunta fundamental é: “Por quê todas as ciências não
progridem do mesmo modo?” “Por quê uma vão para frente e ou-
tras não vão?” “E, particularmente, por quê todas as coisas que
estão mais atrasadas são justamente aquelas que tratam dos as-
suntos mais importantes: Biologia, Metafı́sica, etc.?” “Por quê
as ciências que teriam que nos dar respostas dos problemas mais
graves, e mais universais, não progridem tanto quanto deveriam,

38
1 Preleção I

mesmo usando o método cartesiano?”


Kant se preocupa com a organização do mundo da ciência como
um todo. Saber qual é o lugar de cada uma. Kant, praticamente,
vai dividir as ciências entre aquelas que tratam dos objetos de ex-
periência, e aquelas que tratam das condições internas. É como se
fossem as ciências do objeto do mundo, e as ciências do sujeito,
do homem. A segunda divisão de Kant é a de que todos os dados
da experiência são dados da experiência humana. Portanto, todo o
nosso conhecimento é, por assim dizer, co-proporcional à própria
forma humana, a qual nós não podemos escapar. Isto quer dizer
que as respostas às perguntas fundamentais da Metafı́sica, sobre
Deus, imortalidade, etc., só podem ser encontradas sob a forma
humana, e não sob a forma de uma objetividade externa. Não
podemos encontrar provas da existência de Deus fora de nós, na
natureza.
São Tomás de Aquino, os escolásticos, acreditavam que a prova
da existência de Deus está na própria natureza. Kant diz que a na-
tureza não é, senão, uma representação que nós mesmos fazemos,
a partir de informações mais ou menos esparsas dos sentidos, que
a nossa forma humana unifica na forma de conhecimento humano.
Portanto, a nossa visão da natureza é determinada por categorias
de espaço e de tempo, que não estão na natureza, mas em nós.
Kant liberta o homem de uma espécie de objetivismo que procu-
raria no mundo externo as provas das respostas das máximas per-
guntas e devolve o homem a si mesmo. A resposta está em você.
Está na própria experiência da sua alma. Você verá a exigência de
Deus, a exigência da imortalidade, etc., e não uma prova externa.
A idéia de uma prova cientı́fica da imortalidade, para Kant, seria
o absurdo dos absurdos. Assim, para Kant, o homem não pode-
ria encontrar uma prova, uma evidência de Deus, da imortalidade,
no mundo da experiência externa, nem da experiência interna, no
mundo fı́sico. Mas, o homem pode encontrá-la no mundo da sua

39
1 Preleção I

vontade, da sua liberdade moral. A única prova da existência de


Deus é a liberdade moral do homem.
A partir dessa divisão estabelecida por Kant, a coisa toma dois
rumos. Um rumo é o do idealismo alemão, com Hegel, Fichte,
e Schelling, que, meio juntos, meio separados, empreendem a ta-
refa de juntar aquilo que Kant havia separado. E para fazer isto
eles desenvolvem a idéia da verdade absoluta, como algo que não
pode ser encontrado, exceto no próprio desenvolvimento temporal
da natureza da História. O Absoluto Deus não pode ser conhecido
como coisa, como fı́sico. Ele só pode ser conhecido no próprio
fluxo da sua manifestação externa, à qual nós fazemos parte. Kant
diz que o espı́rito absoluto é ao mesmo tempo, uno — algo que
existe em si mesmo —, e ele é para ser algo que tem consciência,
que tem inteligência. No seu desdobramento, na manifestação
real, ele se duplica. E ele aparece sob a forma de natureza por
um lado, ou de objetividade, e de uma forma de inteligência, ou
de subjetividade, por outro lado. Mas é a mesma coisa.
É fácil perceber como o seu ego, o auto-consciente, é algo frágil
perante esse dado do tal da materialidade do mundo, de tamanho
descomunal. Você só pode conhecer, efetivamente, o que é ob-
jeto de experiência. Acontece que essa experiência é a sua ex-
periência humana. No que o mundo realmente é, nós só recebemos
aquilo que é compatı́vel com a forma humana. O que está fora da
forma humana, para nós, não tem sentido. Nós jamais saberemos
se existe. Só quem pode saber se existe ou não é Deus. Assim,
como nós vamos conhecer Deus? Eu não posso conhecê-lo por
experiência. Também não posso conhecê-lo como ente subjetivo,
cuja existência efetiva posso provar, como eu provo a existência
de fenômenos fı́sicos. Por outro lado, a minha experiência interna
também não ajuda em nada, porque a experiência que eu tenho de
mim mesmo está enquadrada na categoria de espaço e tempo, que
são minhas mesmas. Assim, eu não saio nunca da forma humana.

40
1 Preleção I

Estou preso dentro dela. E, ele diz que o único ı́ndice, o único
sinal que existe de um Deus, ou de uma imortalidade, é a liber-
dade humana. Mas, você não pode provar a liberdade. Você não
pode provar metafisicamente que o homem é livre. Ele diz que a
liberdade é um imperativo categórico. Você tem que agir como se
fosse livre. É como se você estivesse condenado a isso. Eu não
posso provar que o homem é livre, mas eu não posso agir exceto
se eu supuser que eu sou livre. Que eu sou o autor dos meus atos.
Eu não posso agir supondo que os meus atos sejam determinados
por um outro. Ou seja, não existe prova teórica, nem de Deus nem
da liberdade humana. Eu não posso provar que eu sou livre, mas
eu não consigo pensar de outro jeito.
Ele diz que o caminho para Deus é o caminho pelo qual o ho-
mem, ao invés de procurar provas de Deus, procurar desenvolver a
Metafı́sica como ciência, nesse sentido, ele aceita e assume a liber-
dade, na qual implica a própria responsabilidade pelos seus atos,
que você é autor de seus atos. E essa liberdade é que é a chave
da divindade, da imortalidade, etc. O caminho para as respostas
metafı́sicas é um caminho que passa pela vontade humana, e não
pela inteligência. É um caminho prático, e não, teórico.
Por um lado, isto tem um mérito enorme, porque ele libera o
homem para uma espécie de ciência religiosa mais pessoal. In-
clusive, a Igreja Católica jamais o perdoa por isso, porque, nesse
sentido, não adianta você ter uma doutrina externa pronta, com
tantas provas, tantas demonstrações, porque é somente assumindo
a sua própria liberdade que você vai chegar a conhecer alguma
coisa desse outro mundo do divino. Ele diz, “Se não tem prova
de que eu sou livre, que Deus existe, não tem prova que a alma é
imortal”, porém, de fato, eu não consigo agir, a não ser com base
nesses três pressupostos: liberdade, Deus e imortalidade. Cada ato
humano, se for moralmente responsável, ele pressupõe esses três
pressupostos. Então ele diz que existe uma espécie de lógica do

41
1 Preleção I

ato moral, porque somente através dessa lógica é que nós pode-
remos adquirir convicção em Deus, porém, essa convicção jamais
poderá ser sustentada em provas, porque se eu pudesse provar que
Deus existe, eu não seria responsável pela minha crença em Deus.
Kant foi um dos grandes mı́sticos da humanidade. Se você está
sozinho, você é livre, é como se fosse um ponto num espaço to-
talmente indeterminado, onde nada te segura, nada te prende, te
exige, e você vai nos caminhos de uma determinada crença, e não
de outra, como uma exigência da tua própria liberdade, e não por
uma prova externa. Assim, nós poderı́amos dizer que, para as pes-
soas que são sinceramente desejosas de uma vida espiritual mais
profunda, Kant te dá uma maneira de salvação. Para quem não
está a fim de nada, mas está só querendo encher o saco da Igreja
Católica, o Kant lhe dá todos os pretextos. Kant também serve.
Porém, a obra de Kant fecha as portas à Metafı́sica como ciência.
Na verdade, ele não fecha totalmente a porta, porque o próprio
Kant tenta no fim da vida desenvolver uma nova Metafı́sica como
ciência, a partir da própria noção de liberdade humana, mas, aı́ ele
morreu.
Assim, se podemos conhecer os objetos de experiência, sendo
que isso está condicionado à nossa estrutura de percepção de
tempo e de espaço, a categorias lógicas, se só nós percebemos do
mundo aquilo que é captável pela forma da esquemática humana,
e se tudo que está para além da experiência exclusivamente da sua
liberdade pessoal, a geração seguinte (não os idealistas, mas os
positivistas, um pouco mais tarde), concluem que essas questões
de ordem metafı́sica, religiosa, etc., dependem do arbı́trio pessoal,
e que portanto são questões que não têm importância cultural al-
guma. Isso foi feito por Comte.
Assim, Comte inaugura a ciência positivista, que trata dos da-
dos da experiência e deixa de lado as questões metafı́sicas. Isso
também é uma grande contribuição, senão as ciências não teriam

42
1 Preleção I

prosseguido, teriam empacado nas questões metafı́sicas. Porém, o


positivismo é uma das linhas de desenvolvimento possı́veis a partir
de Kant. A outra linha é o idealismo alemão.
No mundo universitário alemão, o esforço da geração imediata-
mente seguinte, que foi marcada por Schelling, Hegel, e Fichte,
o esforço é no sentido de reunificar os dois mundos, subjetivo
e objetivo, que Kant havia separado tão radicalmente. Por um
lado você tem as ciências de experiência, a ciência aplicando os
padrões lógicos, os padrões de percepção de espaço e tempo, a
experiência do mundo, que chega a resultados efetivos, etc., por
exemplo, na Fı́sica. Por outro lado, temos o mundo do conheci-
mento metafı́sico, que na verdade não são conhecimentos, e que
dependem de uma indefinı́vel liberdade humana, e que portanto
são não-conhecimentos.
O idealismo alemão. Os filósofos do idealismo alemão perce-
beram as conseqüências trágicas que essa idéia do Kant poderia
ter mais tarde, que seria simplesmente tirar a preocupação me-
tafı́sica da jogada, que foi exatamente o que fez o positivismo, e
se prender apenas ao mundo da experiência sensı́vel. Porém, para
essa reunificação eles partiram da idéia do Kant de que o conheci-
mento metafı́sico era um conhecimento de ordem prática, moral,
e não, teórico, intelectual. E desenvolveram a idéia de uma teoria
da prática, de uma espécie de evidência intelectual, que não vem
pronta num ato único, mas se desenvolve no próprio tempo, no
próprio tecido da vida real (uma espécie de pensar, vivendo o pen-
samento da vida mesmo). Era uma sı́ntese da teoria e da prática.
Que teoria e prática seriam a mesma coisa. É um dos pensamentos
mais complexos que a humanidade já concebeu.
Nesse sentido, nós podemos colocar o que Schelling propôs:
o absoluto, ou Deus, Ele é ao mesmo tempo, ser, real, e Ele é
também, conhecer, é a inteligência subjetiva. No processo da sua
manifestação, que nós chamamos da criação, ele se desdobra no

43
1 Preleção I

aspecto objetivo, que é dado pela natureza, pelo mundo corpóreo, e


num aspecto subjetivo, está representado na inteligência humana.
Parece que é um abismo e, de fato é um abismo entre o mundo
da objetividade e o mundo da subjetividade. Por exemplo, nós
entendemos que a natureza está regida por leis que são matemati-
camente expressadas pelo princı́pio da necessidade terrena. E por
outro lado, nós entendemos que a nossa inteligência, o nosso ser
humano está regido por um princı́pio de liberdade, mas no abso-
luto, liberdade e a necessidade teriam que ser uma coisa só. Se
não houvesse necessidade alguma seria o caos total, e se não hou-
vesse liberdade alguma, então, Deus não poderia ser um sujeito
criador. Assim, os dois aspectos, homem e natureza, em Deus, são
uma coisa só: liberdade e necessidade, objetivo e subjetivo. Qual
é, então, o processo de retomada, redescoberta, dessa unidade pri-
mordial?
A grande pista para isso aı́ é dada pela Mitologia. Toda a nossa
idéia atual sobre o mito, que o mito contém uma verdade me-
tafı́sica profunda a ser descoberta, quem colocou isso foi Schel-
ling. As duas grandes pistas, de um lado, o mito relacionado à
criação artı́stica, onde uma coisa subjetiva se torna objetiva, ma-
terial, sem perder a presença do elemento subjetivo, de modo que,
para Schelling a Arte era a suprema atividade humana.
Os mitos são a linguagem divina por excelência, a linguagem
absoluta. No mito, o objetivo e o subjetivo estão todos mistura-
dos. Por isso que eles parecem non-sense. De modo que, se você
vê na perspectiva correta, você vê que eles são a expressão de uma
unidade interior da divisão de objetivo e subjetivo. O Schelling é
de uma profundidade assombrosa, de modo que, todos nós vive-
mos num mundo schellinguiano, sem nunca termos lido Schelling.
O movimento esotérico que está aı́ hoje, é um Schelling estragado.
Jung é um Schelling estragado. Schelling é um dos grandes mar-
cos da história filosófica.

44
1 Preleção I

1.5 Evolução da Idéia de Ciência


• Sócrates–Platão: idéia pura de ciência.
• Platão: ciência das formas ou dos arquétipos.
• Aristóteles: ciência natural ou ciência das coisas efetiva-
mente existentes.
• Cristianismo: senso da história, alma individual.
• Santo Tomás de Aquino: harmoniza o cristianismo com a
ciência aristotélica.

(RUPTURA)
• Descartes: retorno a Sócrates; a consciência individual
como sede da ciência verdadeira.
• Kant:
– conhecimento interno (formal)
– conhecimento externo (material)

Idealismo Positivismo
por reação, por reação
surge Marx surge E. Husserl

Este quadro me permite ter uma visão do que está sendo discu-
tido. Qual é o problema? Do quê se trata? Trata-se, em última
análise, sempre da mesma coisa: como atingir um conhecimento
verdadeiro?
Em relação ao que seja conhecimento verdadeiro na sua
idéia pura, dificilmente houve mudança. Aqueles que discutem
questões, tentam abalar a noção de idéia pura do conhecimento,

45
1 Preleção I

são sempre filósofos menores, que estão aı́ só para chatear, e es-
timular uma reação de algum grande filósofo. São geralmente os
movimentos céticos que antecedem uma grande reação. São sem-
pre as mesmas dúvidas, sob uma outra forma que provocam uma
reação.
Fichte já está incluı́do aqui, porque Schelling já é uma resposta
a ele. Fichte resolve a questão do Kant pelo modo radical, onde só
existe o eu, o ego. Schelling prometeu mas não realizou, somente
disse, afirmou, que o absoluto unifica o ser, e o saber, o conhecer,
o objeto do sujeito, mas ele não explica completamente como. O
Schelling é uma promessa do conhecimento, e não o conhecimento
efetivo.
Hegel só acredita no conhecimento quando ele está totalmente
desenvolvido num sistema. Hegel faz o sistema do idealismo
e o sistema do desenvolvimento da progressiva manifestação do
espı́rito na vida histórica real, de modo que a noção de teoria e de
prática já foi para as cucuias a muito tempo. A própria teoria é a
distinção da própria prática.
Hegel, Fichte e Schelling são pessoas profundamente voltadas
para o mundo da ação, e não para o mundo da intelecção pura. E,
nesse mundo da ação, para eles, é onde justamente vai aparecer a
idéia. A idéia do espı́rito está justamente ali, no real. Segundo He-
gel, essa manifestação do espı́rito é o tecido da própria História. A
História é a dimensão suprema onde todas as contradições se re-
solvem. Por isso mesmo é que Hegel não aceita as contraposições
estáticas (teoria contra outra teoria). Para ele, a teoria tem de que
ser vista como um momento de um desenvolvimento dialético. A
teoria errada não pode ser totalmente errada. Isto quer dizer que,
o que nós definirı́amos entre o que é uma verdade objetiva, do que
é o processo de descoberta dessa verdade. Para ele, essa distinção
não existe. O processo de descoberta é a própria verdade. Hegel
diz que a história da filosofia é a própria filosofia. A filosofia não

46
1 Preleção I

tem nenhum conteúdo a não ser o desenvolvimento dialético das


idéias ao longo da História. E esse desenvolvimento dialético é
o próprio conteúdo da ciência que nós chamamos de Filosofia, a
qual, no fim do processo, toma conhecimento de si mesma. Com
isso Hegel retoma essa idéia de História, que havia sido enxertada
ali com o Cristianismo. A História é tudo.
A célebre formulação de Hegel: “A essência de uma coisa é
aquilo que ela se torna. Não é aquilo que ela é em potencial”.
Para Aristóteles, a idéia de essência, é a idéia do que ela vira com
o tempo. A essência de uma coisa é independente dela existir
ou não. Porém, Hegel diz que isso é somente uma potência de
essência. Não é uma essência real, que é aquilo em que a coisa se
tornou. O sentido de um ato, é o resultado desse ato. Não há ne-
nhum outro sentido. Se você tem uma semente, e você quer saber
o que ela é, você tem que plantar e, aı́, ela irá se transformar em
manga, tomate, laranja, etc. Isto quer dizer então que a prática é a
própria revelação da essência.
Todas essas coisas que estão em discussão vão dar nessa dupla
raiz d o mundo ocidental que é, por um lado, o pensamento grego,
e por outro lado, o Cristianismo. A questão que nós estamos li-
dando ainda é a mesma: como é que nós vamos conjuminar essas
duas coisas?
Para Platão a essência praticamente não existe, ela é apenas
uma idéia. Mas, essa idéia é independente da existência, ou não-
existência, da coisa. Hegel acredita na noção de uma essência
real que se manifesta, não no mundo das idéias, mas no processo
temporal, através dos resultados. Para Hegel, tudo aquilo que é
potência, não é nada. Só existe se estiver plenamente desenvol-
vido. A potência que não se manifestou, não é potência.
Karl Marx. Karl Marx complementa Hegel no seguinte sentido:
ele concorda com Hegel que os enigmas filosóficos somente se
desenvolvem e se resolvem na História. A História não é o de-

47
1 Preleção I

senrolar das idéias ou doutrinas, como dizia Hegel, mas o desen-


rolar dos atos humanos, de indivı́duos reais (indivı́duo, não con-
siderado isoladamente, como se fosse uma essência metafı́sica,
mas o indivı́duo unido a outros indivı́duos como um sistema de
relações determinadas). Por exemplo, nós não estamos aqui como
indivı́duos abstratos (mas, como professor e aluno). E, o in-
divı́duo real, considerado fora dessas relações que demarcam as
suas relações com os outros não é absolutamente nada. Nunca
existiu um indivı́duo assim. Um indivı́duo assim seria apenas uma
potência de ser humano. Porque quando alguém nasce, já nasceu
filho de alguém, num determinado lugar, e não num outro, então
faz parte de um conjunto de relações.
A História é a história dos atos humanos, considerados no
entrelaçamento total das suas relações (econômicas, jurı́dicas,
polı́ticas, etc.). Marx radicaliza a idéia de Hegel de que a prática
é teoria. Marx vê os atos reais, fı́sicos, econômicos, militares,
polı́ticos, etc. Daı́, ele pergunta como nós podemos descrever
o mundo baseado num sistema dessas relações humanas? Ele
também vê que esse sistema não é estático, que ele muda, então,
ele pergunta: nessa mudança, quais são as relações decisivas cujas
alterações, dependem das alterações de outras regras? Ele tem a
impressão que estão nas relações econômicas.
A História é a história dos atos humanos determinados por um
conjunto de relações, as quais, impossibilitam outros atos. Por
exemplo, se um é pai, e o outro é filho, então, o filho não pode
agir como pai. Está excluı́do. Fim de papo. É incongruente. O
ato fica sem efeito. Se é patrão e empregado, patrão não age como
empregado, e empregado não age como patrão. Essas relações
são de uma complexidade formidável. São relações de âmbito
econômico, polı́tico, jurı́dico, psicológico, etc. Vendo que o se-
gredo do enigma somente seria resolvido se fosse possı́vel des-
crever esse sistema de relações, ou seja, contar a História, contar

48
1 Preleção I

o sistema de relações existente de atos determinados, e como ele


evoluiu com o tempo, Marx pergunta: como fazer isso? Ele vê que
a modalidade mais simples e estável é a Economia, porque você
pode, facilmente, encontrar quatro sistemas básicos: um é o que
ele chama de comunidade primitiva, que é uma espécie de socia-
lismo, depois, um outro que ele chama de feudalismo; outro que
é o capitalismo, e um outro que seria o socialismo, que era uma
coisa que só existia em germe. Apenas os três primeiros ele podia
identificar.
Assim, vendo essas relações econômicas como mais estáveis,
ele acreditava que, para cada um desses sistemas havia uma infi-
nidade de sub-sistemas que podiam se desenvolver em cima desse
sistema econômico, mas sempre ligados a esse sistema de base.
Este é o famoso materialismo histórico.
Positivismo. A partir de Kant, existe uma outra linha de desen-
volvimento, que surge com o Comte, que é o positivismo, que é
a proposta da organização do mundo das ciências como sendo co-
nhecimento positivo. O conhecimento positivo é o conhecimento
afirmativo, provado, dentro dos seus próprios limites, e que se li-
mita, sobretudo, ao mundo da experiência. Lida, principalmente,
com a experiência sensı́vel. Abandona as questões da metafı́sica,
não exatamente a liberdade humana, na maneira como entendia
Kant, que vê que a liberdade humana é uma só para todos, que, o
que existe de imperativo e categórico é igual para todos os seres
humanos, mas o positivismo não admite exatamente isso, e sim,
ele coloca entre parênteses essas questões, deixando-as ao arbı́trio
de cada um.
Essa é uma tendência que ainda existe hoje, no sentido das
questões metafı́sicas, religiosas (todo mundo tem direito de ter a
fé que quiser; todas as crenças são igualmente neutras do ponto-
de-vista da Ciência). A Ciência não pode opinar sobre isto.
Husserl. Aı́ chegamos ao ponto que nos interessa, que é onde

49
1 Preleção I

Edmund Husserl faz a mesma pergunta que todos fizeram. Re-


sume todas essas perguntas dizendo que, se as ciências tem que
se ater apenas ao mundo da experiência, se as ciências positivas
(Fı́sica, Biologia, etc.), se tornam donas do mundo conhecimento,
isso se deve unicamente ao fato de que elas são ciências. Se não
fossem válidas não seriam ciências. E o que as torna ciências?
Qual é o princı́pio da sua cientificidade? Esse princı́pio pode ser
estabelecido pelas próprias ciências positivas? O estudo da totali-
dade dos fenômenos fı́sicos poderia me informar qual é o princı́pio
de validade do conhecimento fı́sico? Se elas são ciências é porque
obedecem a uma idéia pura de ciência, a uma determinada idéias
de ciências que elas não poderiam fundamentar.
Assim, aceitando a idéia de ciência positiva, ele procura levá-
la mais adiante, dizendo que as ciências somente têm autoridade
na medida que são ciências. E, só serão ciências se atenderem
a determinadas condições que não dependem de nenhuma delas.
A Biologia, a Quı́mica, a Economia, são ciências. Por quê o co-
nhecimento que elas produzem é válido? O conhecimento dos
fenômenos econômicos me dirá qual é o princı́pio que valida a
Economia como ciência? Tudo isso, para ele, depende da idéia
mesma de Ciência. A idéia mesma de Ciência é o que é o objeto
de algo chamado de Teoria da Ciência. E, para a Teoria da Ciência
restabelecer o que é Ciência, ela o tem que estabelecer cientifica-
mente, ou seja, ela é Ciência, por excelência. O quê é a Teoria da
Ciência? É o que chamam de Lógica.
O primeiro passo de Husserl será ele demonstrar que nenhuma
ciência positiva pode legislar nada, em matéria de Lógica. Ne-
nhuma descoberta, seja em Fı́sica, Biologia, Matemática, etc.,
pode afetar em absolutamente nada o princı́pio da Lógica. Se-
ria uma absoluta autonomia da ciência lógica. Para refundamen-
tar desde o inı́cio, já não seria como em Descartes (uma desco-
berta subjetiva), mas teria que ser um inı́cio apodı́ctico, indes-

50
1 Preleção I

trutı́vel, como no começo, um começo que esteve sempre presente


no fundo de tudo isso.
Para recolocar a idéia de Ciência ele diz que ia resolver o que
ele chama de “a crise das Ciência”, o que significa que elas não
são muito cientı́ficas. Nenhuma delas. Seria como “apertar o pa-
rafuso” de todas as ciências, para que elas se tornem, todas, mais
corretas. Reconstruir todo o mundo das ciências numa frase total-
mente exata. Talvez esse seja o recomeço mais radical de todos os
outros. Ele deixa tudo entre parênteses, as questões da metafı́sica,
etc. Ele diz que não sabe porque não tem certeza de nada, das
questões da metafı́sica, nem das questões morais, nem da História,
etc. Ele diz que tudo isso só é válido se for Ciência.
Assim, nós temos que saber qual é a condição que torna um
conhecimento absolutamente verdadeiro e, em seguida, saber se
essa condição está presente em todos os conhecimentos verdadei-
ros. O que move o sujeito para aprender não é o simples desejo
para aprender, mas é o desejo de se transformar. É o desejo de
ser amanhã o que você não é hoje. Sem isso não adianta estudar
nada. A partir do momento que você sabe alguma coisa, você já
não é o mesmo quando não sabia. Agora, se eu sei, e continuo a
ser como se não soubesse... Se eu sei os parâmetros, os critérios,
para uma tomada de determinada decisão, mas ainda sinto a ne-
cessidade de perguntar, então, você não aprendeu nada. Depois
de uns dez ou quinze anos de estudo disto aqui (IAL), você tem
que não precisar de perguntar mais nada para ninguém (na esfera
prática). Nós temos o direito de ter uma cota enorme de perplexi-
dade na adolescência e, essa cota tem que ir diminuindo. Agora,
se você está perplexo, e não sabe o que fazer, então será um pro-
blema, porque também ninguém sabe. Você tem que aprender a
você responder às suas próprias questões. Chega a um ponto que,
se você não pode se ajudar, ninguém mais vai te ajudar. Você tem
que aprender a tomar as suas decisões, nem que seja por tentativa

51
1 Preleção I

e erro. Aquela ilusão de que você pode ser guiado de tal maneira
que você será poupado dos erros, dos fracassos, de não estar se-
guro todo dia, isso tudo é sonho, ilusão, poesia e romance. Isso não
existe. Você pode ser guiado durante um perı́odo da sua vida para
evitar quedas traumáticas, de certos erros, decepções, quando tem
doze, quinze, dezesseis anos de idade, os quais podem acabar com
você. Entretanto, as mesmas quedas e decepções, aos vinte e cinco
ou trinta anos de idade, você tem que agüentar sozinho. Ninguém
pode te poupar disso, e se o fizerem, estarão te fazendo um mal. O
importante é saber que nas questões existenciais ninguém tem as
respostas. E, se eu as tivesse, eu não as daria, porque elas só ser-
vem para mim. Kant dizia: “Não é possı́vel você fazer nada a não
ser com base na suposição de que você é o senhor dos seus atos”.
Sempre que nós agimos, o fazemos com base nesse pressuposto,
porém, quando vamos raciocinar, nós erramos. O princı́pio básico
da ação humana é: “Fi-lo porque qui-lo”.
No entanto, como é que eu vou raciocinar, se o que eu fiz, eu
conto a estória errada? Eu raciocino na base de que não fui eu
quem fiz, porque foram as condições externas, porque fui obri-
gado, porque não tinha outro jeito, etc. Existe uma tendência de
que, quando você fez uma coisa que te frustra, você diz que não
era bem aquilo o que você queria, e se não era bem aquilo o que
eu queria, não foi bem eu quem o fez. Se não foi você quem o
fez, significa que você mudou, então, o que você queria naquela
época não é o que você quer agora. Só que isso não é motivo
para você, retroativamente, dizer que não foi você quem fez, exa-
tamente o que fez. Você queria, e se queria, você o fez. Depois,
se deu errado, admita que escolheu errado. Se você não reconhece
isso, não vai aprender nunca. A perda da evidência sobre os seus
próprios atos também contraria os princı́pios fundamentais que ti-
nham sido descobertos por Descartes. A certeza que eu tenho não
te serve nunca. Se você concordou comigo porque acha que eu

52
1 Preleção I

sou um sujeito legal, também não adianta de nada. Se eu digo que


A = A, mas você não tem firmeza disto, mas concordou, quer
dizer que você pegou isto como uma verdade, mas não como uma
verdade absoluta. Você não captou totalmente. Você recebeu a
minha mensagem, mas não a mensagem do objeto, do A. Você
prestou atenção em mim, e não no objeto.
É claro que você tem que captar isto através do que eu pensei,
mas o que eu pensei é como se fosse um canal para que você che-
gasse ao objeto. Aquilo que você vê através de mim, você tem que
ver sem mim. Senão, será como naquela parábola de Buda: “O
sábio aponta para a lua e o néscio olha para o dedo”. Você pode
achar que o dedo é a lua. Você tem que tentar provar o absurdo, até
cansar, até descobrir que é um absurdo. Por você mesmo. Isto é
para vocês entenderem que há certas coisas que o ser humano pode
negar, ele tem a liberdade de negar, porém, ficticiamente. Ele tem
a liberdade de viver uma vida fictı́cia se ele quiser, que é tomar as
duas formas da mentira e da loucura. A mentira é quando você é
o autor do mal, e na loucura, você é a vı́tima. A neurose é uma
mentira esquecida, mas você ainda acredita nela, então começa a
mentir e termina mal.

1.6 Caracteres gerais da obra de


Edmund Husserl
A obra do Husserl divide-se num certo número de etapas. É uma
obra muito grande, pois ele era taquı́grafo, e tudo o que ele pen-
sava de importante era passado para o papel imediatamente. Desse
conjunto de anotações, ele publicou uma parte, e o resto está sendo
publicado até hoje. Existem um certo número de etapas que cor-
respondem a determinados problemas.

53
1 Preleção I

Husserl era judeu tcheco, nascido na Morávia.


A obra de Husserl se divide-se em três etapas: a primeira é a
colocação do problema da idéia pura de Ciência, da idéia do co-
nhecimento verdadeiro e o afastamento das alternativas falsas que
impedem a formação de uma verdadeira teoria da Ciência.
Para que exista uma verdadeira teoria da Ciência que expresse
plenamente o conteúdo do que é o conhecimento verdadeiro, as
normas do conhecimento verdadeiro, etc., existem uma série de
noções que estão no ar, e que precisam preliminarmente serem
desbastadas.
A segunda seria a formulação desta teoria e do método da teoria
da Ciência.
A terceira seria a formulação do que seria a filosofia de Husserl.
O que Husserl tivesse a dizer a respeito dessa ou daquela questão
filosófica concreta, ficou para o fim. Esta última parte só ficou co-
nhecida postumamente, e as partes comunicadas em vida que exer-
ceram uma influência enorme em todo mundo, se diversificou em
muitas escolas, que partindo das primeiras bases, desenvolveram
essas idéias num sentido completamente diferente do dele. Por
este motivo, Husserl sempre disse que nunca teve discı́pulos. Hou-
veram algumas pessoas que desenvolveram algo a partir do que ele
escreveu. Max Scheler foi um deles. Scheler pega os indı́cios do
método fenomenológico e desenvolve num determinado sentido.
Heiddeger e Jean-Paul Sartre, foram outros. Cada um desses de-
senvolve, parte de uma parte inicial da fenomenologia, do método,
num determinado sentido. Edmund Husserl sempre achou isso
muito ruim, porque eles teriam que esperá-lo acabar de falar. Por
isso o pensamento de Husserl é visto de maneiras errôneas quando
interpretado a partir da obra dos seus muitos discı́pulos.
A meta de Husserl é a restauração da idéia essencial da Ciência,
a formulação do método essencial da Teoria da Ciência, o julga-
mento do conjunto das ciências existentes, e a reformulação total

54
1 Preleção I

do sistema das ciências. É a reforma total do mundo das ciências.


Este é o objetivo. Ele o põe desde o começo. Porém, ele tra-
tando problema por etapas, exaustivamente, de modo que, quando
pegava um problema, ele nunca se contentava com aquilo, de ma-
neira que não sobrasse mais nenhuma dúvida. É o que ele faz
aqui nessas investigações lógicas. Esse texto não é para ser esgo-
tado neste curso. É algo para servir, em princı́pio, de referência
para nós o resto da vida. A dificuldade maior do texto do Hus-
serl é o fato dele se estender demais sobre cada ponto, o que, de
um ponto-de-vista retórico, pedagógico, é um verdadeiro desastre,
porque você acha que não vai mais sair daquilo, nunca mais. O
texto que está em suas mãos poupa vocês dos fatos intermediários
das investigações dele.
Esta não é a principal obra de Husserl, porém, aqui é onde ele
vai enfrentar as primeiras das grandes dificuldades, e vocês verão
porque muitas dessas dificuldades que se resolvem aqui se cons-
tituem de doutrinas filosóficas do século passado, e que, embora
já rebatidas inteiramente por ele, continuam presentes nas cabeças
das pessoas, como hábitos arraigados. Tudo que é hábito para nós,
faz parte do natural. Se é hábito é uma segunda natureza. Quando
você pensa de uma maneira habitual, você pensa que as pessoas
sempre pensaram assim, e que é da natureza humana. Isto quer
dizer que, idéias que são destruı́das, do ponto-de-vista cientı́fico,
continuam sendo de fato crenças profundas arraigadas e, às vezes,
inconscientes, dentro das pessoas.
Lendo este texto do Husserl, entendi porque existe, da parte de
tantas pessoas, dificuldades em acreditar que seja possı́vel o co-
nhecimento objetivo: porque os obstáculos criados a respeito da
idéia de conhecimento objetivo foram tantos, e de tantas fontes,
que acabaram por virar senso comum, hábito. Para desarraigar
este hábito só há um jeito: ver de onde ele saiu e você mesmo
discutir com ele. Não apenas uma vez, mas muitas vezes, e sobre

55
1 Preleção I

todos os aspectos, até que você o cerca de tal maneira que ele não
aparece mais. Isto quer dizer que esta leitura também tem um sen-
tido psicoterapeuta. Esta leitura restaura o indivı́duo à confiança
na inteligência humana. Só que dá um trabalho enorme.
6 Inı́cio da leitura das investigações lógicas
Prolegômenos à lógica pura
Introdução
1. A discussão em torno à definição da lógica e ao conteúdo de
suas doutrinas essenciais
Ainda hoje estamos longe de uma geral unanimidade com res-
peito à definição da lógica e ao conteúdo de suas doutrinas essen-
ciais.
Sabemos que a Lógica trata das definições, dos silogismos, etc.
Uma coisa é o conteúdo das técnicas lógicas, e quanto a esse
conteúdo não há muito o que dizer, pois todos sabem o que é um
silogismo, premissa maior, premissa menor, etc. Quanto a isso
não há divergência. Mas, não é disso que Husserl está falando.
Ele está perguntando, não qual é o conteúdo das técnicas lógicas,
mas, primeiro, sobre o conteúdo das doutrinas, ou teorias lógicas.
Teorias que respondem ou deveriam responder à pergunta: em que
as técnicas lógicas se fundamentam? E, em segundo lugar: de que
a Lógica trata? Qual é o objeto dela?
Depois de dois mil anos de Lógica, embora a ciência da Lógica
esteja bastante desenvolvida, ainda não se tem clareza sobre o de
que ela está falando. Isto significa que o estudo da Lógica se atém
ao aspecto empı́rico-prático, ou seja, sabemos praticar a Lógica,
sabemos aplicar suas regras, mas não sabemos exatamente o que
estamos fazendo quando fazemos isso. O quê é essa ciência a
que chamamos lógica? Ela é uma formalidade, um conjunto de
esquemas? Ela expressa leis reais que atuam na realidade exterior
ou leis da mente humana? Ninguém sabe ao certo. O próprio
sucesso da Lógica contrasta com a ausência de qualquer clareza

56
1 Preleção I

quanto a esses pontos.


Das três direções capitais que encontramos na lógica, a psi-
cológica, a formal e a metafı́sica, a primeira alcançou uma pre-
ponderância decisiva.
Essa “preponderância decisiva” é válida até 1910. E, o que são
essas três direções?
A primeira teoria que existe a respeito da Lógica e cada uma
dessas teorias é uma direção na qual a ciência da Lógica se de-
senvolve é a teoria psicológica. Ela diz: a Lógica é a ciência das
leis do pensamento humano; é a ciência de como nós efetivamente
pensamos.
A segunda é a direção formal, que hoje (1992), é dominante, e
que diz o seguinte: a Lógica é um conjunto de esquemas que possi-
bilitam a coerência do pensamento. Sendo que a coerência do seu
pensamento nada tem a ver com a veracidade dela, também não
tem a ver com o processo real pelo qual nós pensamos. É como se
fosse a regra do jogo, que dá a esse jogo uma coerência, mas não
quer dizer que essa regra de jogo corresponderia ao modo natural
de nós pensarmos. A Lógica seria uma combinatória que permite
criar esquemas de pensamento coerente. Essa é a lógica dos com-
putadores. A terceira direção, metafı́sica, que é a de Aristóteles,
diz que a Lógica é a tradução das leis ontológicas, das leis fun-
damentais do real, tal como se manifestam no nı́vel do discurso
humano. “A Lógica é uma ontologia do microcosmo do discurso
humano”. diz Frithjof Schuon. Então, as leis da Lógica vigoram
universalmente para o ser em geral, ou seja, se o discurso com a
Lógica é coerente, é porque o real é coerente.
Essas três direções estavam em disputa no tempo de Husserl
(1910), sendo que nessa época a direção psicológica era domi-
nante no mundo universitário, mas sem que tivesse eliminado as
concorrentes. Quando se diz que uma afirmativa foi “derrubada”,
“superada” ou “abandonada”, você precisa verificar se ela foi re-

57
1 Preleção I

futada satisfatoriamente, ou se simplesmente saiu de moda antes


mesmo de ter sido seriamente discutida. O jargão corrente dos
debates intelectuais, mesmo nas universidades, sempre confunde
essas duas coisas. Aqui no Brasil é comum acontecer que, quando
alguém apresenta um argumento contrário a uma teoria, se diga
que ele “derrubou” a teoria. As pessoas não sabem o que é uma
teoria, e não sabem o trabalho que dá para derrubar uma teoria.
Você pode passar vinte séculos para derrubar uma, e às vezes não
consegue. Dizem, por exemplo, que “a queda do Muro de Berlim
refutou o marxismo”.
Mas a conexão entre um fato histórico e uma teoria geral é alta-
mente problemática. Não dá para se estabelecer essa conexão tão
facilmente. Para que esse juı́zo fosse válido, primeiro você preci-
saria provar que a teoria marxista contém como um dos seus pila-
res, como uma das suas demonstrações fundamentais, essenciais,
e não acidentais, a eficácia e a permanência do Muro de Berlim.
Mas demonstrar a conexão entre marxismo e a União Soviética já
é complexo...
Você pode não refutar uma teoria, mas pode neutralizá-la como
força histórica; por exemplo, você desaparece com todos os livros
que falam dela, ninguém mais os lê, e a teoria não tem mais força
histórica atuando. Foi mais ou menos o que aconteceu com a fi-
losofia escolástica depois do Renascimento. Ninguém mais leu os
livros escolásticos e isto ficou como uma “prova” de que as teorias
escolásticas estavam erradas ou não tinham importância. Mas a
popularidade ou impopularidade entre os letrados não nos diz se
uma teoria é verdadeira ou falsa. O fato de uma teoria ter mais
adeptos prova que ela é verdade? Não. Pode acontecer que todos
tenham se enganado juntos.
Assim, em 1910, a dominante era a teoria psicológica, porque
ela abordava as questões de lógica com o espı́rito das ciências
empı́ricas que então obtinham grande sucesso a passavam por ser

58
1 Preleção I

o modelo mesmo do conhecimento válido.


Mas as outras duas continuam propagando-se; as questões de
princı́pio discutı́veis continuam sendo discutidas; e, no que toca
ao conteúdo doutrinal, os distintos autores servem-se das mesmas
palavras para expressar pensamentos diferentes. Mesmo a lógica
psicológica não nos oferece unidade de convicções.
Questões de princı́pio, algumas discutı́veis, outras não; por
exemplo, a Lógica deve produzir pensamento coerente. Entre-
tanto, uma questão que gerou desacordo universal está incluı́da
nessa categoria. Se você segue a lógica da teoria psicológica,
você dirá que, as categorias são esquemas da percepção humana.
Porém, como a percepção humana é exclusivamente humana, pode
ser que o mundo que nós vemos através dessas categorias seja to-
talmente diferente do que vemos. Pode ser que aquilo que eu vejo
como uma deformidade seja uma qualidade, e vice-versa. Se eu
sigo a orientação formal, eu digo: as categorias não são nada. São
apenas grupos de palavras, de conceitos, que eu agrupo por simi-
laridade, e que não têm nada a ver, nem com o meu modo de ser,
nem muito menos com o real. Se eu sigo a orientação metafı́sica,
eu digo: as categorias são, ao mesmo tempo, grupos de conceitos
e aspectos do ser. Porém, esta questão continua sem resposta até
hoje. Com relação a pontos capitais da Lógica, existe a incerteza
total.
2. Necessidades de uma nova dilucidação das questões de
princı́pio
A circunstância de que ensaios tão numerosos para impelir a
lógica pelo caminho seguro de uma ciência não permitam apreciar
nenhum resultado convincente, deixa aberta a suspeita de que os
fins perseguidos não se aclararam na medida necessária, para uma
investigação frutı́fera.
Ele tenta, com este texto, colocar a investigação das questões
filosóficas no caminho seguro da Ciência. Temos que tomar cui-

59
1 Preleção I

dado, pois Kant dá como exemplo modelar de Ciência que entrou
pelo caminho seguro, precisamente a Lógica.
No começo do estudo da Lógica, não foi colocado direito com
que fim estavam fazendo aquilo. Qual era o objetivo? Isso quer
dizer que se estuda a Lógica com três finalidades completamente
diferentes. Então, talvez hajam três sı́nteses completamente diver-
sas, e não uma só.
A concepção dos fins de uma ciência encontra sua expressão
na definição dessa ciência. Não que o cultivo frutı́fero de uma
disciplina exija uma prévia e adequada definição do conceito do
seu objeto. As definições de uma ciência refletem apenas as eta-
pas de sua evolução. Não obstante, o grau de adequação das
definições exerce também seu efeito retroativo sobre o curso da
ciência mesma; e este efeito pode ter influxo escasso ou consi-
derável, conforme a direção em que as definições se desviem da
verdade. A esfera de uma ciência é uma unidade objetivamente
cerrada. O reino da verdade divide-se, objetivamente, em distin-
tas esferas; as investigações devem orientar-se e coordenar-se em
ciências, em conformidade com essas unidades objetivas.
Ele diz que se existe uma confusão tão grande quanto ao rumo
que a Lógica deve tomar, quanto à definição mesma da Lógica, se
é o rumo de uma investigação psicológica, se é o rumo de uma
elaboração formal, de uma construção formal (caso dos compu-
tadores), ou se é o rumo de uma fundamentação de ordem me-
tafı́sica, se não existe qualquer clareza quanto a isso, é muito pro-
vavelmente porque os fins da ciência da Lógica não foram aclara-
dos desde o inı́cio.
Uma Ciência é definida em objeto material, objeto formal mo-
tivo, e objeto formal terminativo. Objeto material é “o quê?”;
por exemplo, Economia e História: o objeto de estudo das duas
é o mesmo, que é a sociedade humana. Objeto formal motivo
é o “por quê?” você estudou, por onde, por que lado você se

60
1 Preleção I

encaminhou no estudo? É o “pelo que”. A História estuda do


ponto-de-vista do encadeamento, das seqüências temporais. Sem-
pre isso. Não existe história simultânea. A Economia olha do
ponto-de-vista de um dos componentes dessa sociedade humana,
que seria a aprovação e distribuição das riquezas, em particular.
Isto não é nem cronológico, nem não-cronológico. Não pode-
mos conceber a idéia de ciência histórica sem uma sucessão de
acontecimentos, porém a Economia pode ser com sucessão, ou
sem sucessão. Por exemplo, pode haver uma história econômica,
pode haver um estudo estrutural de uma sociedade, numa deter-
minada fase, e isso é Economia também. Pode também haver a
investigação de leis que regem essa Economia, portanto, leis que
expressam uma repetição. Objeto formal terminativo, é o “com
que fins?”, ou seja, que pergunta você pretender responder, em
última instância, ou seja, se a sua ciência estivesse plenamente re-
alizada, o que ela te daria? Qual seria o resultado dela? Quando
essa ciência estiver pronta, você terá feito o quê? No caso da Eco-
nomia dirı́amos que ela visa, naturalmente, criar uma técnica. Na
hora em que você conhecesse tão bem as leis e o funcionamento
da Economia que você pudesse regulá-las, estaria realizado o ob-
jetivo dessa ciência. A ciência econômica não se concebe, exceto
como prolegômeno a uma prática, porque ela visa a dar ao homem
um conhecimento que representa automaticamente um poder. Po-
demos dizer o mesmo da História? Podemos dizer que o histo-
riador deveria conhecer a História do passado tão bem, de forma
que, daı́ para frente, ele pudesse regular o curso da História? Se-
ria demência. Portanto, não é isso que você espera da História.
Não é essa a finalidade dela. O princı́pio (poderı́amos dizer assim)
da História seria compreender tão bem o passado que, com ele eu
ficasse compreendendo o presente. Com uma História que reali-
zasse isso, eu passo a entender o meu estado de coisas, e sei de
onde ele saiu. Se a História realizasse isso, poderı́amos dizer que

61
1 Preleção I

ela alcançou o seu objetivo. Esse objeto, em última análise, é de


ordem teórica.
Com isso, nós podemos fixar a ı́ndole, não totalmente teórica,
das ciências da História e da Economia:
— objeto material: (é o mesmo) a sociedade humana;
— objeto formal motivo: (diferente) uma olha por um aspecto
de sucessão temporal; outra olha somente sob o aspecto de uma
par seletiva (histórica ou não);
— objeto formal terminativo: uma visa a produzir um domı́nio
tecnológico, e a outra se esgota no objetivo teórico.
A hora que você definiu História e Economia, já está dado nessa
definição, a expressão da finalidade das ações, aonde ela pretende
chegar, ou seja, qual é o conhecimento que, uma vez dado por
essas ciências, eu consideraria como missão cumprida.
Você pode dizer que uma ciência é teórica ou prática, não com
relação ao seu objeto material, ou objeto formal motivo, mas com
relação aos seus fins. Se é um conhecimento que deve lhe dar um
poder de atuação para fazer isso ou aquilo então é uma Ciência
prática. Se é um conhecimento que deve lhe dar, simplesmente,
uma intelecção, um entendimento de algo, então é uma Ciência
teórica.
Porém, Husserl diz que não é verdade que o cultivo de uma
ciência requeira uma definição mais ou menos confusa, parcial,
por exemplo, o conceito de Economia: Husserl, partindo de uma
hipótese, diz que ela não se refere unicamente a riqueza, e ele
diz que o sujeito nasce, está respirando, ele está provendo a sua
própria subsistência, e isto é um ato econômico. O sujeito que
vai a um jogo de futebol e, ao se distrair, ele está atendendo uma
necessidade humana que não é de ordem, nem ético, moral, nem
de ordem teórica, mas de ordem econômica. Então, isso é uma
crı́tica da definição de Economia.
Se você pensar a partir daı́, você vai entender que muitas vezes

62
1 Preleção I

os processos de fatos econômicos não são compreendidos, porque


a definição de Economia é demasiado estreita em relação à tota-
lidade dos fatores em jogo. Por exemplo, todos os economistas,
em geral, acreditam que um dos fundamentos da Economia é o
princı́pio da escassez. Se existe a escassez de um produto, existe
a ciência da Economia. Se existisse tudo em abundância, não ha-
veria necessidade alguma da ciência econômica. Este conceito já
não pode ser aceito, segundo esta análise que Husserl fez sobre
o corpo humano, porque não existe nenhuma escassez de ar, não
existe nenhuma escassez de energia em um mundo que, segundo a
Fı́sica, é feito de energia.
Partindo disso, você vai poder reformular toda a ciência da Eco-
nomia, abrangendo a multidão de assuntos que estão fora do inte-
resse tradicional da Economia. No entanto, antes da Economia ter
levado em conta esses novos fatores, ou seja, no tempo em que ela
não tinha uma definição suficientemente ampla de seu próprio ob-
jeto, já existia ciência econômica e ela já fazia suas descobertas.
Por exemplo, esta definição de Economia que ele estava discu-
tindo vai ser compatı́vel com Karl Marx, que vê a ação econômica
como a totalidade das transformações que o homem introduz na
natureza, e não somente quando ele lida só com bens e com di-
nheiro.
XXXXXX estudou muito a obra de Karl Marx. O primeiro li-
vro dele foi sobre Karl Marx. Quando ele enuncia esta definição
mais ampla da Economia, ele está dizendo que no marxismo está
implı́cita esta definição mais ampla que, no entanto, Karl Marx
nunca deu. Ou seja, se você, baseado na definição acadêmica,
universitária, de Economia, vai estudar Karl Marx, você já não
entende o que ele está falando, porque entra na abordagem da
Economia, uma série de fatores que outros considerariam extra-
econômicos, e que no entanto ele vai considerá-los como o próprio
centro da Economia.

63
1 Preleção I

O ar está totalmente fora do interesse da Economia, e ele só


entra na Economia se faltar ar. Se começar a falta ar, a atmosfera
se polui, o ar começa a ser vendido em lata. Isso já acontece com
a água.
Com isso surge o problema: o problema da escassez é falso.
Não precisa que exista escassez para que uma coisa seja objeto
de estudo da Economia. Basta a possibilidade da sua escassez.
Mesmo que a escassez seja forjada. Por exemplo, o comércio de
água não existia na Europa, mas no mundo árabe já era assim. A
água era vendida a peso de ouro.
Pode haver uma forma mais requintada de escassez do que você
estragar alguma coisa? E você estragou aquilo por quê? Movido
por uma necessidade econômica. Então quer dizer que, a Econo-
mia, que surgiu no século XVIII (Adam Smith, etc.), todos eles
acreditavam num princı́pio de escassez, e definem a ciência que
estuda o conjunto da produção e distribuição da riqueza. Porém,
existe algo que está a disposição do homem, e que não pode ser
considerado como riqueza porque não é um bem econômico, mas
pode se tornar um bem econômico amanhã ou depois. E pode se
tornar um bem econômico artificialmente, criado por uma outra
necessidade econômica anterior, logo, o princı́pio da escassez não
é o fundamento da Economia. Se a escassez é gerada artificial-
mente por uma necessidade econômica anterior, então, a própria
atividade econômica do homem não pode ser explicada pela es-
cassez. Deve ser explicada por alguma outra coisa.
Vamos supor que não houvesse escassez de nada. O homem
nada produziria? A Economia clássica diria que não. Todos vi-
veriam da economia extrativa. Será que existiu, algum dia, o ho-
mem que não fazia nada? Tudo isso eram questões que colocam
que, embora a Economia tendo por objetivo descobrir determina-
das coisas, antes que fosse ampliada a sua definição, a ampliação
dessa definição permite que você reesclareça essas descobertas e

64
1 Preleção I

as coloque dentro de um plano, dentro de um esquema mais geral,


e mais correto.

65
2 Preleção II
19 de novembro de 1992

Husserl um dos autores mais difı́ceis de se ler porque ele não


tem expressividade literária. Ele escreve como um matemático.
Vai colocando um encadeamento de idéias. Para quem está de
fora, à primeira vista, é um texto chato! Para cada ponto que ele
aborda, ele repete de quatro a cinco maneiras diferentes, para a
questão totalmente, e usando várias terminologias possı́veis. Isso
tem um espı́rito cientı́fico, e não pedagógico. Ele lecionava na
universidade, mas seria como num curso de doutorado. Entre os
alunos dele, você tem os maiores filósofos do século: Heidegger,
Max Scheler, Hartmann, e outros. Ele era um homem que tinha
muitas idéias, sua cabeça não parava de produzir, e além dele es-
crever em taquigrafia, os alunos escreviam para ele. Há vários tex-
tos dele que foram redigidos por alunos dele, e você vê a diferença
no estilo dos textos que foram redigidos pelo próprio Husserl, por
Eugen Fink ou por Ludwig Landgrebe.
A grande pergunta dele surge da própria Matemática: por quê
a Matemática é tão certa assim? Como se dá o fato de que nós
saibamos que ela está tão certa assim? De onde vem, qual é o
fundamento da evidência matemática? Até que, no fim, ele vai
achar uma espécie de parentesco entre o fenômeno da consciência
humana e a certeza matemática. Essa seria a grande culminação
do trabalho: a consciência é a morada da evidência. Não é ne-
cessário conhecer muita matemática para entender a filosofia dele,

66
2 Preleção II

mas é bom ter uma referência sobretudo do estado da Matemática


na época, conhecer os autores a que ele se refere, quais eram as
questões que estavam sendo discutidas também.
[Retomada da parte inicial do texto. Reexplicação do que foi
comentado até agora.]
Pergunte às pessoas: o quê é Lógica? O quê é Razão? Princi-
palmente às pessoas que gostam de opinar sobre isso...
São três os tipos de opinião corrente: psicológica, metafı́sica e
formal. Isto quer dizer que as idéias correntes que constituem o
conjunto de pressupostos mais ou menos inconscientes em cima
dos quais ele se orientam, as idéias vêm sempre de antigas dou-
trinas que foram apresentadas explicitamente por filósofos. Ou
seja, as idéias que nós achamos que brotaram em nós, espontane-
amente, são uma herança cultural que vai como que filtrar através
dos hábitos, e sobretudo através das significações implı́citas na lin-
guagem. De modo que, certas teorias, para nós não surgem como
teorias, mas como se fosse uma maneira natural e espontânea de
ver as coisas. Quando, na verdade, não é natural, nem espontâneas,
mas como invenção de algum ser humano. Tornam-se lugares co-
muns.
Só que, quando o sujeito formulou pela primeira vez, não era
opinião dominante, porque senão ninguém formularia. Depois
aquilo vai se transmitindo às gerações seguintes, sobretudo através
das nuanças que nós, automaticamente conferimos às palavras.
Nuanças que nós nos acostumamos a ouvir. Significações que nós
estamos acostumados a ouvir. Por exemplo, se você perguntar a
qualquer pessoa: o quê é Razão? O quê é racional? Muitos dirão
que racional é o que é matemático, o que é cientı́fico, o que é exato.
Isso é achologia. Você está dizendo vários nomes da mesma coisa.
Vencida a primeira batalha, que é a logomaquia (luta com as pala-
vras, com o conceito das palavras), vamos falar da coisa propria-
mente dita. Não me dê sinônimos, mas diga o que você ache que é

67
2 Preleção II

Razão. Alguns vão dizer que é a própria estrutura do cérebro, que


o cérebro funciona de acordo com certas leis que são determina-
das pela própria natureza. Você tem uma cadeia de neurônios que
permite estabelecer nexos, que são as sinapses, que vai transmi-
tindo uma informação, e vai juntando essas informações em blo-
cos. Essa seria uma maneira do sujeito explicar como o cérebro
funciona.
Se você perguntar pelo conhecimento que não é racional, o co-
nhecimento intuitivo, a pessoa vai dizer que esse é um conheci-
mento que você não pega com o cérebro. Agora, qual é a definição
de racional, para uma pessoa que é contra o racional? Se ela é con-
tra é porque ela acha que é ruim. Se ela acha que é ruim, é porque
ela sabe o que é! Mas, o quê é?
Apertando a pessoa ela vai dizer, mais ou menos, que é artificial.
Mas, se é artificial, então, não pode ser o modo natural de funcio-
namento do cérebro, a não ser que você seja contra o cérebro. Se
é artificial, é um conjunto de esquemas. Daı́ caı́mos na definição
formal. Ao passo que antes, dizendo que a Razão funcionava no
cérebro, caı́mos na definição psicologista. E disso você não vai
escapar.
Pode ser que você encontre um indivı́duo que diga algo assim: a
Razão é como se fosse um gigantesco computador que controla o
Cosmos. Controla sobre a realidade. Isso é a definição metafı́sica.
Assim, pessoas que passaram a vida pensando nesta questão,
vão chegar a essas oferecidas como resultado de perguntas que os
seres humanos fizeram. Nós podemos nos posicionar com relação
a uma ou a outra, e tendo posicionado nós podemos, em seguida,
ser contra ou a favor da Razão, definida formalmente, psicologi-
camente, ou metafisicamente. Por exemplo, eu posso achar que o
controle geral não satisfaz; posso ir contra isso. Posso achar que o
mundo é absurdo, que a realidade é absurda, e que Deus é mau.
Assim, se eu disser que a Razão é um esquema, é um conjunto

68
2 Preleção II

de artifı́cios para dar coerência artificial ao pensamento, eu posso


achar isso bom ou mau. Eu posso achar que isso é muito útil,
e eu posso achar que, com esse artifı́cio, nós descobrimos a ver-
dade. Mas, também, posso achar que, justamente, por ser arti-
ficial, só nos leva a conhecimentos artificiais, que nos enganam,
e que na verdade precisamos apelar a uma outra fonte, intuitiva,
sentimental, etc. Posso também dizer que a Razão é o funciona-
mento normal do cérebro humano, e posso achar que isso é bom
ou mau. Que isso é uma obra-prima da natureza que funciona per-
feitamente bem, nos leva ao conhecimento da verdade, ou então
ao contrário. É um conjunto de conexões bio- elétricas que nos
faz ver tudo errado. Distorce a nossa visão das coisas. Eu posso
adotar uma das três definições e, além disso, posso me posicionar
a favor, ou contra aquela coisa a ser definida.
O quê faz Husserl aqui? Ele vai, inicialmente, se posicionar
a respeito dessas três formas. Ele vai colocar algumas outras
questões as quais dependem dessas três respostas (formas). E,
tratando dessas questões, daı́ sairá gradativamente, e muito tra-
balhosamente, uma resposta. Por isso ele chama de investigações,
termo que não denota a defesa de uma idéia dada num fenômeno,
mas a busca de alguma resposta.
Como Husserl pensava por escrito, nós podemos lê-lo como se
estivéssemos pensando naquilo, exatamente naquela ordem. Ou
seja, nós estamos ouvindo o sujeito pensar. Isso é bom para afastar
a idéia de Filosofia como gênero literário. A Filosofia não está
no livro. Uma obra literária está na obra, materialmente, mas a
Filosofia está no filósofo. Está no conhecimento que ele tem, e
naquele em quem ele transmite. Por isso que na Filosofia não há
outro jeito para facilitar, senão a transmissão oral. Por escrito é
muito difı́cil. Para que você possa aprender alguma coisa, só pelo
escrito, isso pressupõe uma espécie de co-naturalidade entre a sua
mente e a mente do escritor. Isso nem sempre se realiza.

69
2 Preleção II

Quando cessa a comunicação direta, começa o desentendi-


mento, a diferença de interpretações. Enquanto você faz a
explicação direta, fica mais fácil, porque você capta por exem-
plo pela presença do sujeito, pelo tom de voz, que no escrito você
não captaria a não ser que o filósofo seja um poeta capaz de criar
a atmosfera na qual aqueles pensamentos seriam compreendidos.
A não ser que você encontre um sujeito que tenha uma mentali-
dade parecida com o filósofo, e que entenda daquilo, mesmo que
seja só de ouvir falar. É o caso de São Tomás de Aquino com
Aristóteles. São Tomás não sabia nem grego, e no entanto foi o
maior intérprete de Aristóteles até a época dele, e depois também.
São Tomás leu Aristóteles numa tradução latina feita a partir de
uma tradução árabe! Como você explica que ele tenha compreen-
dido tão profundamente? Por pensar parecido, por uma afinidade.
Às vezes, mesmo com o ensino direto, a diferença de mentali-
dade, de personalidade, é tão grande que não permite que o sujeito
seja captado exatamente pela intenção que teve. Ele é captado
parcialmente, e um aspecto lateral do seu pensamento é ouvido
como se fosse um aspecto central. Assim, é importante você no-
tar se você tem um aspecto de co-naturalidade com o sujeito. Se
você tem, deu sorte, e se não tem você pode ter certeza que você
vai se enganar muitas vezes. E vai ter que se corrigir. Mesmo
quando é uma coisa simples, por exemplo, um filósofo que teve
um texto quase todo mal interpretado, como Descartes, que aliás,
como filósofo é literalmente quase perfeito. É tão elegante, tão
lı́mpido, que você entende ao contrário. Você acredita que está
entendendo porque parece que o que ele está falando é simples.
Por exemplo, quando ele fala da seqüência de negações que você
fará quanto à existência das coisas, negação do mundo exterior,
negação dos seus sentimentos, negação das suas memórias, etc. É
fácil você entender, por exemplo, que você não é o seu sentimento,
que o sentimento é uma coisa que você tem, que está em você mas

70
2 Preleção II

não é você. Isso dá para entender! Entretanto, faça efetivamente a


abstração dos seus sentimentos reais. Procure ter autoconsciência
que independa dos seus sentimentos. Uma coisa é você entender
qual foi a proposta de Descartes, outra coisa é você realizá-la para
ver, materialmente, a coisa como ela é. Mas, em geral, as pessoas
se contentam com o entendimento da leitura, entender a filosofia
literalmente, como se estudar Filosofia fosse ler.
A leitura representa para a Filosofia o que a partitura representa
para a música onde, depois de ler, você tem que tocar. É diferente
do que é uma poesia, ou um romance, onde você leu, está lido.
Uma peça, você assistiu, está assistido. A experiência estética se
esgota ali mesmo. O máximo que você pode fazer é analisar, re-
cordar, etc., mas a experiência estética fica inteiramente na hora
da leitura. Você não precisa escrever o romance para entendê-lo.
No entanto, na Música, por exemplo, você, de fato, só chega a
uma compreensão efetiva se você é capaz de executá-la. A Música
requer uma execução para você descrever esse ato. Há pessoas que
estão habituadas e que, lendo a partitura, compõem a música ima-
ginativamente, ouvem mentalmente a música, mas mesmo assim
não podem garantir que é exata.
Na Filosofia você tem uma reprodução de uma experiência inte-
lectual, e se você não a refaz, você pode ferir uma filosofia inteira,
não adianta. Um exemplo disso seria você associar a própria lei-
tura de René Descartes com alguma técnica de relaxamento que
lhe permitisse abstrair totalmente os sentidos, para poder pensar
como Descartes. Daı́ você pode dizer se entendeu ou não. Mesmo
a leitura analı́tica não resolve nada.
Assim, ler é somente o começo, é para saber que existe. Ana-
lisar é apenas decompor de maneira que você possa guardar a
seqüência de operações. É aı́ que vai começar a Filosofia mesmo,
é aı́ que você vai começar a filosofar, repensar para saber se é ver-
dadeiro ou falso. Ou seja, primeiro o sujeito precisa decorar a

71
2 Preleção II

partitura para poder tocá-la e, depois de tocar é que ele vai ver se
foi bom ou ruim. A interpretação tem que ser boa senão ela pode
estragar a música, ou pode mudar o seu estilo completamente.
O ouvinte pode gostar da música por razões fortuitas, por exem-
plo, no meio da sinfonia de uma hora, pode haver uma determinada
melodia que o agradou, mas a melodia é um elemento, ela não é a
música. Uma mesma melodia pode ser usada em várias músicas,
com melodias muito ruins, podemos fazer grandes obras. A me-
lodia é como se fosse a matéria-prima. Por exemplo, quando você
vai a um restaurante, você não vai julgar a qualidade da comida
pelo simples estado em que a carne estava quando chegou ao res-
taurante. O que me interessa é saber o que o cozinheiro fez com
essa carne. É aı́ que entra a arte do cozinheiro.
Assim, diz Husserl, existem três direções capitais no que diz
respeito à compreensão do que é a Lógica, ou o que é a Razão, o
que é a dedução matemática. A psicológica diz que a Lógica é uma
ciência natural, experimental, que observa o funcionamento do
cérebro, o nosso modo de pensar. A formal que vê a Lógica como
um conjunto de artifı́cios inventado pelo ser humano para dar ar-
tificialmente, e a posteriori, uma coerência a um pensamento, que
pode ter sido produzido por meios propriamente incoerentes. A
metafı́sica que diz que a Lógica é um conjunto de leis ontológicas,
de leis que regem a própria realidade.
Husserl diz que, apesar da Lógica ser uma ciência muitı́ssimo
antiga, e que com respeito às suas técnicas, não sofreu alteração
desde o tempo de Aristóteles, ela ainda não alcançou clareza
quanto à sua própria natureza, quanto ao que são propriamente
essas técnicas, por que elas funcionam, e qual é o fundamento da
própria Lógica.
Ele destaca dois aspectos: primeiro, a definição da Lógica. A
definição significa o que é o objeto em estudo, e qual é o ângulo
pelo qual essa ciência enfoca esse objeto, e qual é a finalidade.

72
2 Preleção II

Veja que na definição do objeto, do modo, e da finalidade, nos ca-


sos das orientações psicológica, formal e metafı́sica, essa definição
é completamente diferente. Qual seria o objeto material da Lógica
psicológica? É o processo real do pensamento. É estudar como as
pessoas pensam. Como se faz isso? Observando como elas pen-
sam, e retirando por indução. Pelo fato de que você vê que existem
circuitos que se repetem, você chega à conclusão que as regras na-
turais do pensamento são essas e aquelas. Esta é uma ciência que
tem por objeto material o pensamento real, como um fenômeno
que efetivamente acontece na vida real, que o encara desde o
ponto-de-vista de ciência experimental, de ciência de observação,
por indução, com o objetivo de formular as leis que expressam o
modo real pelo qual nós pensamos.
Qual é o objeto material da Lógica formal? Não é o pensa-
mento real, mas o pensamento ideal. Não como nós realmente
pensamos e, sim, como nós deverı́amos pensar para que o nosso
pensamento fosse coerente. É uma combinatória que não se in-
teressa pelos fenômenos reais. Ela se interessa em conceber, in-
ventar, um sistema de regras que permita o pensamento coerente.
Como ela estuda o pensamento coerente? Do ponto-de-vista de
conceber esquemas que permitam o pensamento coerente. E com
que finalidade? O de expressar plenamente essas regras, de modo
que, esse processo de coerência e ação fique mais fácil. Por exem-
plo, a Matemática investiga como o cérebro produz o resultado das
contas, ou ensina a fazer contas? Ensina a fazer contas. A Lógica,
tal como se entende na atribuição matemática, é uma Lógica pu-
ramente formal. É um conjunto de esquema puramente inventado
para determinado fim, e que não se interessa em saber como esses
esquemas são realmente acionados pelo ser humano real. Assim,
a Matemática é a mesma, seja utilizado pelo ser humano real, seja
pelo computador. Isto não significa que o cérebro humano pensa
exatamente igual como o computador pensa. E pouco importa.

73
2 Preleção II

E se, amanhã o homem inventar um outro tipo de máquina que


reproduza esses esquemas de uma forma mais simples que o com-
putador, também será a mesma Matemática. Assim, não se trata
do pensamento real, pensado por criaturas reais, mas se trata do
pensamento ideal, que é como toda e qualquer criatura deveria
pensar, caso queira que o seu pensamento seja coerente. Criaturas
naturais (homem), ou artificiais (computador). É um pensamento
que estabelece parâmetros que permitem realizar uma seqüência
de operações, não importando a força, a energia, ou a causa que
coloca essas operações em ação. Por exemplo, um programa de
computador é perfeitamente indiferente ao fato do computador ser
movido por eletricidade, gasolina, ou pela força do pensamento
positivo (o programa em si).
As idéias estão aı́ há séculos, e nós naturalmente pelo tipo de
associação de palavras, usado ao longo de nossa vida, nós aca-
bamos achando que uma determinada maneira de pensar é natu-
ral. Por exemplo, acreditar que do estudo do pensamento real
nós podemos acabar deduzindo regras formais. Será possı́vel?
Se o sujeito responder que acha que sim, isso indica que ele tem
uma inclinação psicologista. Há um grande número de psicólogos
célebres que apostaram nisso. Husserl vai se posicionar contra a
teoria psicologista. Só que dá um trabalho enorme para demons-
trar que isso é impossı́vel.
O que importa não é apenas você acertar; que a hipótese da teo-
ria seja certa. O importante é que, se você lança a teoria certa, que
ela seja provada, e, se você lança uma teoria errada, que ela seja
desmentida. Se a lógica psicologista tem como objeto material
o pensamento real, e se o modo dela enfocar é o modo como as
ciências experimentais enfocam os seus respectivos objetos, isto
é, por observação e indução, a finalidade só pode ser a mesma das
demais ciências de observação, que é, a indução de leis gerais que
expressem regularidades, repetições (este é o objeto final). Vocês,

74
2 Preleção II

observando milhares de casos, de pensamentos, de raciocı́nios, de


associações de idéias, etc., você acaba reduzindo esta variedade a
um conjunto de leis que expressam esquemas repetidos.
Com relação à orientação formal, ela, evidentemente, não tem
esse mesmo objeto material, porque ela está pouco se importando
sobre como as pessoas pensam: “Não adianta examinar como as
pessoas pensam porque, geralmente, pensam errado” — este pode-
ria ser o seu argumento. Além do que, poderia dizer o formalista,
você vai estudar o pensamento humano, mas ainda tem o pensa-
mento animal, tem o pensamento das plantas. No entanto, se uma
planta fosse fazer a mesma equação (2 + 2 = 4) teria que che-
gar ao mesmo resultado nosso. O objetivo da lógica psicologista
é, poderı́amos dizer, puramente cientı́fico e teórico; o objetivo da
orientação formal é técnico-prático (formar regras para que você
possa pensar com eficiência, e pensar corretamente), ou seja, fazer
um bom programa de computador e não explicar como funciona
o computador. Aliás, para você ser um gênio em programação de
computadores, você não precisa ter a menor idéia do que acontece
dentro deles. A orientação metafı́sica diria que as leis da Lógica
são as leis da Ontologia. O princı́pio de identidade não é um mero
esquema lógico, ele é algo que vigora na realidade. Assim, as leis
principais da Lógica (princı́pio de identidade, princı́pio de não-
contradição, etc.), são os princı́pios que explicam a realidade in-
teira.
Qual seria o objeto material da orientação metafı́sica? Como as
leis ontológicas aparecem ao nı́vel da linguagem do pensamento
humano? Objeto material: se as leis da Lógica não são nada em
si mesmas, mas são apenas expressão de leis ontológicas, então
fica claro que a Lógica é uma extensão da Ontologia. Considera-
se como uma ontologia regional. A ontologia de um determinado
objeto, o pensamento humano. O pensamento humano como ex-
pressão do ser. Esse é o objeto material da orientação metafı́sica.

75
2 Preleção II

Ou seja, como esse fenômeno chamado pensamento humano ex-


pressa a própria unidade do real?
Você pode dizer que isso é um pouco confuso, porque nós po-
demos cair no problema anterior. A orientação metafı́sica não re-
solve o enigma, o confronto, das duas anteriores.
O pensamento expressa o ser, porque o pensamento existe, e ele
funciona segundo as leis do ser, ou é porque é o contrário: se você
pensar corretamente, segundo as regras corretas, você captará o
ser? Ou seja, ele capta o ser psicologicamente, ou formalmente?
Bem, isso fica para depois...
O objeto terminativo da orientação metafı́sica é chegar a uma
expressão geral da linguagem do pensamento como expressão do
ser. Você pode perguntar: expressão formal ou real? Por exemplo,
dentro da totalidade do ser existe um determinado ente, que é o ho-
mem, o qual pensa, e ele pensa segundo tais e quais leis. Você trata
tudo metafisicamente, só que pelo lado psicológico. Vejamos de
outra maneira: dentro do mundo do ser existe um ente que pensa
e, quando pensa corretamente apreende a verdade do ser. Este é
um tratamento metafı́sico, só que pelo lado formal. A orientação
metafı́sica pode estar até certa, porém ela não pode ficar certa, se
ficarmos em dúvida sobre de qual das maneiras ela está certa. Ou
se é das duas maneiras.
Se você for raciocinar, não como um orador de palanque, que
tão logo ele faz uma frase bonita, já te persuadiu, ou não como
uma criança que imagina, e quando ela imagina um tigre, ela fica
com medo, quando imagina um doce fica com fome, quando ima-
gina um brinquedo fica alegre, ou seja, no fundo é um panaca que
fica fazendo um cineminha para enganar a si mesmo. Se você não
pensar assim, vai pensar como um matemático que quer encontrar
um resultado correto, da conta, e que tem que obedecer à estrutura
dos números mesmos, e não à sua própria vontade. Você vai en-
tender também que se a Lógica é um instrumento básico de todas

76
2 Preleção II

as ciências, e se na prática funciona dessas duas maneiras, mas se


você não está seguro quanto à sua natureza, o que é essa Lógica, e
qual o alcance dela, você pode estar aplicando tudo errado. Ou a
coisa pode estar dando certo por outros motivos. Ou, no mı́nimo,
poderia dar mais certo do que dá. As ciências poderiam render
mais, alcançar respostas mais facilmente.
Para que você possa estabelecer elos entre as várias ciências
(que fazem uso da Lógica), se você não está seguro do que é essa
Lógica, este elo comum é obscuro. Por exemplo, entre a Antro-
pologia e a Fı́sica, qual é o elo? A antropologia é uma coisa que
o homem faz, é uma atividade humana, e estudar Fı́sica é outra
atividade humana. Então, elas estão conjuminadas no homem.
Você pode explicar as duas como atividade humana. O quê é isto?
Orientação psicológica.
Porém, o fato das duas atividades estarem reunidas no mesmo
homem, significa, por acaso, uma sı́ntese entre os conteúdos das
respectivas ciências? É claro que não. Do mesmo modo, você
pode ter duas atividades dı́spares: jogar futebol e mascar chicletes.
é o mesmo sujeito. No entanto, o que uma coisa tem a ver com a
outra? Façam um sı́ntese, ou seja, expresse numa única regra o
futebol e o chicletes, ou, a importância do chicletes no futebol,
relacione as duas coisas de uma maneira que não seja puramente
casual. Não dá! Não há nexo.
Por outro lado, nós poderı́amos fazer uma conexão puramente
formal, no sentido de que, as regras de raciocı́nio que você usa
numa, é a mesma que você usa na outra (lógica probabilı́stica,
estatı́sticas, etc.). Você usa a mesma forma de raciocı́nio. Entre-
tanto, já que você juntou a forma, conexione, de alguma maneira,
os conteúdos! Se a estatı́stica que você usa para fazer previsão
de resultado de eleição é a mesma que você usa para saber se vai
haver uma chuva de meteoros em algum lugar, me diga onde está
a conexão entre esses dois fatos. E se um desses conhecimentos

77
2 Preleção II

pode avaliar o outro ou não, ou, se são completamente distintos,


por quê são distintos? Finalmente poderı́amos tentar conectar me-
tafisicamente. Dentro de uma teoria geral do ser nós terı́amos uma
teoria dos diversos tipos de seres, e estaria situado lá a parte, o as-
pecto, a dimensão do ser estudado pela Antropologia, Fı́sica, etc.
Isso seria o certo. Mas, acontece que todas as tentativas de se fa-
zer isso, caı́ram por terra. Não há nenhuma metafı́sica que possa
funcionar até hoje como princı́pio coordenador geral das ciências.
Não existe uma ontologia geral até hoje que possa dar conta da to-
talidade do mundo das ciências. E, no fundo, é a isso que o Husserl
quer chegar. As duas primeiras explicações, psicológica e formal,
falhariam por contradição interna; a terceira, simplesmente porque
não existe.
No fundo, ele quer chegar a uma ontologia geral. Ele quer uma
refundamentação da idéia pura de Ciência para, com base nisso,
fundar uma ontologia geral que possa servir para a organização
do mundo das ciências. Ele não fala do ponto-de- vista externo,
como aquela classificação feita a posteriori e meramente de utili-
dade prática (ciências humanas e ciências exatas), divisão admi-
nistrativa, puramente externa, e que não tem nada a ver com o
conteúdo das ciências. Aliás, pressupõe-se que as ciências exatas
sejam humanas, e as ciências humanas sejam inexatas.
Ele está falando de uma ontologia geral que permita estabelecer
as divisões reais do ser, e fazer com que os sistemas das ciências
correspondam a essas divisões reais. No final dos seus trabalhos,
Husserl deu algumas indicações bem precisas de onde se vai che-
gar. Nós podemos dizer o seguinte: o problema da idéia pura da
ciência está colocado, o problema da criteriologia está colocado, a
fundamentação da noção de verdade e de evidência está colocada,
e alguns princı́pios da ontologia geral estão colocados. O resto,
com o tempo se faz. Acontece que os discı́pulos dele não fizeram
isso, porque, como ele foi ditando e falando por mais de 10 anos,

78
2 Preleção II

e cada parte do problema parecia tão importante em si mesma, os


discı́pulos já partiam para outros desenvolvimentos.

79
3 Preleção III
21 de novembro de 1992

Diferença entre verdade e falsidade: na prática, se distingue a


diferença entre verdade e falsidade. Mas, as pessoas não tinham
uma consciência clara de que existia um pensamento verdadeiro e
um pensamento falso. Não seria errado dizer que, até a formação
dessa consciência, que se dá na Grécia, com Sócrates–Platão, to-
das as pessoas que pensavam, tendiam a acreditar que, pelo fato
de uma coisa ser pensável, ela era automaticamente verdadeira. É
uma tendência que existe nas crianças, e que sobrevive na idade
adulta, na esfera da imaginação. Para o bem da humanidade de-
veria ser progressivamente extirpada à medida que você evoluı́sse.
Um exemplo disso é o fato de que as pessoas, mesmo conhecendo
a distinção do verdadeiro e do falso, mesmo tendo estudado Fi-
losofia, conhecido a Ciência, etc., continuam tendo a reação de
se sentir mal quando imaginam imagens nocivas. Quando você
imagina uma cena desagradável você se sente mal, como se ela
estivesse acontecendo mesmo. Dificilmente você tem esse distan-
ciamento. Por exemplo, no cinema, onde uma pessoa se sente mal
porque uma cena lhe foi mostrada, embora ela esteja consciente
de que a tela do cinema só possa estimulá-la visualmente, e que o
sangue mostrado é massa de tomate, que é uma experiência exclu-
sivamente visual, não acompanhada dos sinais dos outros sentidos
que dariam a consistência real, a pessoa chega a ter uma reação
orgânica. Isso é um resı́duo de realismo ingênuo que, no fundo,

80
3 Preleção III

consiste em você acreditar em tudo o que você pensa.


Uma das principais funções da Educação é tirar isso das cabeças
das pessoas. Levar a consciência da distinção entre verdadeiro e
falso às suas últimas conseqüências. Inclusive na esfera dos re-
flexos imediatos. Esta é uma conquista tardia da humanidade, do
ponto-de-vista histórico da evolução da humanidade. E para o in-
divı́duo pode ser uma conquista mais tardia ainda. Por exemplo,
se você vê qual é o mecanismo da formação das convicções nas
pessoas em geral, você vê que é a própria possibilidade de formu-
lar uma idéia. Ou seja, dentre as várias idéias que nós poderı́amos
ter a respeito de um determinado assunto, o indivı́duo acredita na-
quela que ele consegue formular. Pelo simples fato de ele conse-
guir formular aquilo, lhe parece mais verossı́mil. Acontece que
um outro indivı́duo, por coincidência, conseguiu formular uma
outra idéia. Por exemplo, se você pega as pessoas progressistas
ou conservadoras. Uma pessoa é progressista porque ele conse-
guiu conceber os benefı́cios do progresso. O outro é conservador
porque ele conseguiu enunciar mentalmente os malefı́cios do pro-
gresso. Entretanto, e se eu conseguisse formular perfeitamente as
duas idéias, ou seja, criar argumentos em favor de um, e argumen-
tos em favor de outro. Dessa forma eu já não sou mais vı́tima do
meu argumento, da estrutura do meu argumento. Eu entendo que,
para além dos esquemas argumentativos que eu invento, deve exis-
tir uma realidade que, talvez não esteja bem captada no meu argu-
mento. E, eu entendo que posso conceber, articular, mentalmente,
argumentos, por exemplo, a favor dos benefı́cios do progresso. E,
que eu posso, igualmente, conceber um esquema que me mostre
os malefı́cios do progresso. Assim, se eu puder argumentar a fa-
vor de A e de não-A, é porque deve haver uma realidade que está
para além dos meus esquemas argumentativos. Eu não identifico
mais a minha facilidade de argumentar com a realidade mesma.
Eu percebo que o pensar não é o ser.

81
3 Preleção III

Porém, mesmo depois que eu consigo fazer isso na esfera inte-


lectual, eu continuo operando do mesmo modo anterior, na esfera
da imaginação, onde as coisas que eu consigo imaginar me pare-
cem reais, porque o sistema nervoso reage igualmente à imagem
vista e à imagem imaginada. Isso é a base da hipnose. Isto signi-
fica que o ser humano é facilmente hipnotizável, porque ele é facil-
mente auto-hipnotizável. Se o ser humano não fosse tão propenso
a se enganar a si mesmo, não seria tão propenso a ser enganado
pelos outros. Além disso, a pessoa é propensa a ser enganada,
exatamente nas mesmas coisas onde ela gostaria de se enganar. E
não nas outras coisas. Assim, nós conhecemos a realidade através
do pensamento e da imaginação. Não há outro meio.
Porém, o pensamento e a imaginação são um pouco lentes
através das quais nós captamos alguma coisa. Não são a reali-
dade mesma. Em geral, como os indivı́duos têm muita dificul-
dade de pensar, por exemplo, você coloca uma questão, o sujeito
não consegue montar o argumento, ele se sente numa atmosfera
opaca, está tudo escuro, ele não está enxergando. No momento
que ele consegue montar o primeiro raciocı́nio, ele sente que che-
gou a algo, e ele acha que chegou à realidade, quando na verdade
ele chegou apenas ao seu próprio pensamento.
Uma das finalidades supremas da educação é varrer isso de
você. Não ser enganado nem pelo seu pensamento, nem pela sua
imaginação, nem pelos seus sentidos. Isso seria, em suma, le-
var às últimas conseqüências o projeto cartesiano que era o duvi-
dar de tudo, até prova em contrário. Duvidar não do pensamento
humano em geral, porque as mesmas pessoas que são vı́timas
do seu próprio pensamento, e crêem ingenuamente em tudo o
quanto pensam, imaginam, sentem, essas mesmas pessoas, às ve-
zes, enunciam dúvidas a propósito da inteligência humana em ge-
ral, a propósito do valor da Ciência, etc.
Assim, se o sujeito é cético em relação aos outros, como é que

82
3 Preleção III

ele não o é em relação a ele mesmo? Se ele duvida de toda in-


teligência humana, que a razão é falha, etc., mas tudo o que ele
pensa é verdadeiro. Isto é a forma mais horrı́vel de mentalidade
que existe. Lamentavelmente, num meio onde as pessoas não têm
educação é a mentalidade geral. As pessoas não têm educação
e, ao mesmo tempo, são convidadas a opinar. É o que acontece
hoje, com freqüência. As pessoas podem até opinar, mas acre-
ditam que os outros têm o dever de ouvi-las, de ouvir qualquer
coisa. Por exemplo, você chega para um garoto de doze anos e
pergunta o que ele acha do impeachment do Presidente, ele fala e
todo mundo tem que ouvir. Num meio assim, o indivı́duo é convi-
dado a amar as suas próprias opiniões, e desprezar o conhecimento
humano em geral, a civilização, a Ciência, etc. Daı́ a pessoa vira
uma espécie de hitlerzinho, napoleãozinho; ele acredita em tudo
quanto ele fala, porque a palavra dele fica como se a voz do ego
fosse a voz de Deus. Se você junta um monte de egos desse tipo,
a somatória é a opinião pública, que acredita que é a verdade, que
é a voz de Deus.
O processo da educação deve, em primeiro lugar, fazer você du-
vidar do seu próprio pensamento, e ao mesmo tempo, fazer você
adquirir um sentido de reverência em relação à inteligência hu-
mana, da humanidade em geral. Você começa a entender que se
o seu pensamento é capaz de alcançar a verdade algumas vezes,
não é por mérito seu, mas por experiência acumulada ao longo
dos milênios, e sedimentada na própria linguagem, e que não foi
você quem inventou. Por exemplo, uma lı́ngua pode ter esquemas
prontos para você pensar isto ou aquilo, para você formular certos
pensamentos e não ter esquemas para formular outros. Assim, essa
facilidade que você tem de articular certas palavras, certas idéias,
essa facilidade não é mérito seu. Você a recebeu com a lı́ngua que
você aprendeu. E, isso mesmo já é uma herança cultural.
Você aprende a ter desconfiança em relação às suas idéias ou

83
3 Preleção III

aos seus argumentos, imaginação, sentimentos, mas aprende a ter


respeito pelo trabalho da humanidade inteira. Ou seja, inverte a
fórmula. A educação é desligar o indivı́duo dos hábitos e precon-
ceitos da sua própria personalidade, do seu próprio meio familiar,
e meio social imediato, e vinculá-lo à humanidade. Tirar o in-
divı́duo da cultura pequena e colocá-lo na cultura grande. Você
passa a adquirir uma dimensão humana, você passa a ser gente. E
começa a pensar como um habitante da Terra, e como um persona-
gem de todo o processo da História da cultura. Quando colocamos
as coisas dessa forma, vemos que o número de pessoas educadas,
no nosso meio, é infinitesimal. Se pegarmos todos os nossos de-
putados e senadores, quase todos são, nesse sentido, pessoas que
vivem no mundo da ilusão, que jamais podem acertar, a não ser
por uma feliz coincidência, por um favor da Divina Providência.
Todo mundo tem o direito de errar, mas esse direito é, mais ou me-
nos, co-extensı́vel à esfera das conseqüências das suas palavras.
Por quê uma criança pode falar um monte de besteiras e ninguém
liga? Porque o que ela fala não tem conseqüência alguma. No
entanto, se um pai de famı́lia, que ganha salário-mı́nimo, acha que
dá para comprar um carro cuja prestação é o dobro do salário dele,
isto tem conseqüências! Então, ele não tem mais esse direito de
errar.
Vejam que a nossa classe dirigente erra, já há duzentos anos.
Nunca acertou uma vez. Ela não tem direito de estar enganada a
tanto tempo assim. Idem para a nossa classe intelectual.
A educação visa, sobretudo, abrir a pessoa às portas da inte-
ligência humana em geral, e fazer com que elas superem essa auto-
ilusão. Ensinar as pessoas a verem as coisas mais indiretamente.
A humanidade é mestra do indivı́duo. Mas, no meio iletrado, o in-
divı́duo corrige a humanidade inteira. Dá lições, acha que quem só
sabe é ele. Se acontece uma mudança social rápida, e o indivı́duo
acha que ele se atualizar com essa mudança, ele está se instalando

84
3 Preleção III

no real, aı́ é que ele está mais maluco. Você se informar dos novos
fatos do mundo só aumenta o seu número de problemas. Novos
fatos são novas possibilidades de erros, porque se você já estava
errando com meia dúzia de fatos, quando tiver sessenta, vai errar
dez vezes mais.
Não se trata do conhecimento de novos fatos, mas da correção
do seu julgamento sobre os fatos. Como você interpreta os novos
fatos. Você pode partir de princı́pios falsos que podem servir de
chave para a explicação falsa de milhões de novos fatos, só que
quanto mais fatos você vai explicando por princı́pios falsos, maior
vai ficando a falsidade do conjunto. A preocupação que existe no
ensino atual acerca da atualização é extemporânea, porque você
não precisa. A educação não tem que acompanhar os progres-
sos da Ciência. Se você ensinar um indivı́duo a ter lucidez sufi-
ciente para ele entender a geometria de Euclides, compreendê-la
profundamente, o restante da evolução da geometria, ele capta em
um mês por conta própria. E continua capaz de se informar com
grande rapidez.
A preocupação com a atualização é uma preocupação com o
quantitativo. Não adianta você tentar passar toda a informação.
Depois ele adquire a informação por si. A função da educação não
é ficar correndo atrás das novas conquistas da Ciência. A educação
não é jornalismo, que é uma coisa periódica. Educação significa
ex-ducere, ou seja, levar o indivı́duo para fora. Ou seja, você está
preso dentro de um mundo subjetivo seu, onde você só olha para
dentro, e a educação faz você olhar para fora. Sair do mundo
pequeno e olhar o mundo grande, real, que está à sua volta.
A distinção entre o verdadeiro e o falso leva um tempo para
surgir historicamente. Você pode encontrar tribos de ı́ndios onde
essa distinção ainda não existe. Os ı́ndios, que no século XX
começaram a ter muito contato com o branco, levaram trinta a
quarenta anos para perceber que o branco mentia. O Juruna é um

85
3 Preleção III

exemplo que, depois de vários contatos com o branco, ele decidiu


comprar um gravador, porque o branco fala uma coisa e faz outra.
Não estar habituado a distinguir entre veracidade e falsidade
na conversa diária vem do fato de que você não está habituado a
fazer essa distinção em geral. Ou seja, você não está habituado de
que o seu pensamento funciona: eu penso assim, ele pensa assim,
então, parece que a natureza se comporta de acordo com o jeito que
nós pensamos. Assim, nós vivemos num mundo onde só existe
veracidade. A falsidade não existe. Mas, o conjunto que você
pensa, somado, é tudo falso. Por ninguém pensar ao contrário,
todos se enganam, uns aos outros há séculos, exatamente assim.
O mundo mı́tico é um mundo onde existe uma confirmação co-
letiva de um pensamento mais ou menos uniforme. Todo mundo
acredita nas mesmas falsidades e nada acontece que desminta es-
sas falsidades. É como se disséssemos que são falsidades que não
contrariam flagrantemente nenhum acontecimento. É como se fos-
sem falsidades inofensivas.
Porém, se o indivı́duo sai daquela tribo e entra em contato com
outra tribo, ele entra no mito da outra tribo. E se o sujeito entra
numa outra sociedade que já não é mais tão premida pelo mito,
mas onde existe uma forma diferenciada de pensamento indivi-
dual, o indivı́duo já não entende mais nada. Para que nós possamos
sobreviver nessa sociedade, temos que desenvolver um sentido de
saber quais são as pessoas mais honestas, e quais as menos deso-
nestas. Temos necessidade de desenvolver uma escala de confia-
bilidade. Isto para o ı́ndio não existe. Lá é tudo igual. A distinção
entre o verdadeiro e o falso não faz parte do mundo indı́gena.
Na história do ocidente essa idéia só se expressa claramente
com Sócrates–Platão. Sócrates convoca, pela primeira vez na
história, a idéia de que a coletividade inteira pode estar enganada
a respeito de coisas fundamentais. Por isso mesmo é que o cha-
maram de um sujeito ı́mpio, que destruı́a os deuses. E era mesmo!

86
3 Preleção III

Ele estava destruindo os deuses, no sentido do mito coletivo. Por


exemplo, o grande mito grego da linguagem. A linguagem é o
mundo onde existe a verdade, portanto, tudo o que pode ser fa-
lado, deve ser verdade. Esse é o mito que sustenta a retórica: você
conseguiu falar, se expressar, conseguiu nos fazer entender, nós
vemos o que você falou, e dizemos: é verdade!
A retórica se baseia nisto: tudo o que é falável, é verdadeiro.
Sócrates mostra que esse discurso, não obstante ele ser expressivo,
é auto-contraditório. Não tem fundamento no real. Isto quer di-
zer que, na evolução de uma comunidade qualquer, supondo uma
evolução ideal onde não haja cortes criados por interferências ex-
ternas, você poderia falar de uma fase poética, onde a palavra é a
própria realidade, onde a palavra é diretamente uma força (como
em Homero), no sentido de que, por exemplo, quando Júpiter fala
uma coisa, ela é verdade automaticamente, ou como está na Bı́blia,
quando na hora que Deus fala, a luz se faz na mesma hora, onde
se acredita na palavra humana como se ela tivesse a força mágica,
criativa, plasmadora divina.
Em seguida a essa fase, entramos numa fase retórica, onde já
não se acredita nessa força da palavra sobre as coisas, mas na força
das palavras sobre as pessoas. Assim, onde existem vários discur-
sos em confrontação, o discurso mais forte, mais persuasivo, que
mais toca o coração, fica sendo a própria expressão da verdade.
Daı́, chega Sócrates e introduz o elemento dialético, ou seja, ele
compara o discurso com o discurso mesmo, e mostra que o sujeito
está afirmando aquilo que ele mesmo tinha acabado de negar. Ele
mostra ao indivı́duo que ele não sabe do que está falando. Por
exemplo, um militar, ele fala sobre a guerra. Mas, se você per-
gunta o quê é a guerra, ele diz: “A guerra é um conflito”. Você
diz: “Então, se eu brigar com minha mulher, isto é guerra.” Ele
diz: “Não é bem isso...” E assim por diante até que o militar
fica todo atrapalhado. Isto quer dizer que, às vezes, o indivı́duo

87
3 Preleção III

sabe se posicionar perante uma coisa na prática, mas não sabe do


que aquilo se trata. Ou seja, conta apenas com o conhecimento
empı́rico. O sujeito só serve para aquelas situações vividas que,
naturalmente, são militares, e não extensı́veis a outras situações.
Após essa fase, naturalmente tende a surgir, se a sociedade che-
gou a evoluir até o ponto de criar uma discussão dialética, isto é,
exigir a confrontação dos discursos, aı́ entra a dúvida, existe a to-
mada de consciência do caráter duvidoso dos discursos, e daı́ surge
a criação das ciências.
Assim, havia de um lado a confrontação dos vários discursos fi-
losóficos, uns contradizendo os outros, às vezes, se contradizendo
a si mesmos, o que gerava o ceticismo, a propensão a não acre-
ditar na possibilidade de conhecer a verdade. De outro lado, a
dominância da retórica, que permitia a credibilidade universal dos
mais eloqüentes, cuja palavra era como se fosse a palavra divina.
Ainda, por um outro lado, esses dois elementos são desafiados por
Sócrates.
A retórica é os deuses da cidade que, mais tarde, Santo Agosti-
nho chamará de Teologia Civil. Aquelas coisas que uma sociedade
inteira acredita, que são os mitos em que se baseia a vida social, e
que nada tem a ver com a religião do espı́rito, isso, Santo Agosti-
nho chamava de Teologia Civil. Não é senso comum, é uma parte
do senso comum. É aquilo em que os membros de uma sociedade
inteira acredita a respeito dessa sociedade e que jamais é questi-
onado, como se aquilo fossem dogmas. Por exemplo, a crença
de que existe liberdade de informação, e de que a liberdade de
informação é uma das bases da sociedade moderna. Este é um
mito da nossa teologia civil.
Na mesma medida em que crescem os meios de informação,
cresce a área das informações consideradas confidenciais, secre-
tas, que ninguém pode saber. A importância adquirida pelos
serviços secretos na administração dos Estados é um fato do século

88
3 Preleção III

XX, e é um fato polı́tico dos mais importantes, como ficou provado


no caso da URSS. A URSS era apenas a KGB. Foi só desmontar a
KGB que a URSS caiu por inteiro. Isto mostra que é possı́vel você
montar um Estado inteiro na base de retenção de informações, e
da difusão de informações falsas. Do mesmo modo, com relação
à CIA, 80% dos problemas que os Estados Unidos tem, foram cri-
ados pela própria CIA. Nós só ficamos sabendo quando o chefe
do FBI morre e deixa as suas memórias. Eu não sou contra ou a
favor do serviço secreto. Ele é uma realidade do século XX, e eu
acredito que, mais do que a democracia, mais do que o estado de
direito, a base da polı́tica do século XX, foi o serviço secreto.
A idéia de que há um progresso democrático crescente é intei-
ramente falsa. À medida que progride a democracia, progridem os
meios de compensá-la. Isto é uma amostra do que é teologia civil.
O ceticismo resulta do próprio confronto dialético. Assim, se
por um lado existe uma propensão cética, e por outro lado existe
um domı́nio da retórica, então, acaba ninguém acreditando em
nada. É a sensação de estar sendo enganado 24 horas por dia.
É o que nós sentimos hoje aqui no Brasil.
Porém, com isso, há um elemento de ordem positiva, que
começou a se desenvolver como uma ciência demonstrativa muito
firme, que era a Geometria. Assim, quando parecia que não se-
ria possı́vel a verdade a respeito de nada, surge Euclides, e mostra
que é possı́vel a verdade a respeito de alguma coisa. E qual é a
diferença entre o modo de pensar da discussão pública e o modo
de pensar de Euclides? Se na discussão pública nós só chegamos
em falsidades e dúvidas, e Euclides chega à certeza, é porque ele
deve ter uma técnica, um jeito, um esquema qualquer de descobrir
a verdade.
É isso que inspira Sócrates–Platão, ou seja, deve ser possı́vel
uma ciência certa, deve ser possı́vel escapar do reino da falsidade.
Essa possibilidade que Euclides havia demonstrado na prática,

89
3 Preleção III

mediante o estudo da Geometria, é o que vai ser teorizado por


Sócrates–Platão, sob forma da idéia pura de Ciência, na qual eles
destacam essas três condições teóricas, e essas três condições
práticas. Primeira condição teórica: o conhecimento tem que
ser tão fundamentado quanto as evidências diretas inegáveis (por
exemplo, as frases, “eu estou aqui, agora”, ou “eu sou eu”, ou
“uma coisa é igual a ela mesma”, etc.). Se todos os conhecimentos,
todos os assuntos pudessem ser tratados com essa evidência, esta-
ria tudo resolvido. Nós estarı́amos vacinados contra o erro. Porém,
não é possı́vel. Assim, é necessário que haja uma evidência in-
direta, uma evidência que é garantida por uma outra evidência,
como no processo do raciocı́nio do silogismo, onde dadas duas
verdades, elas garantem uma terceira. Porém, para que tudo isso
seja possı́vel é necessário essa terceira condição, que o nexo entre
a primeira verdade (a que garante), e a segunda verdade (a ga-
rantida), seja ele próprio evidente. Isso acontece quando a pri-
meira verdade se refere a todos os membros de uma espécie e a
segunda verdade se refere a um ou a alguns deles, porque, daı́,
as duas frases estão dizendo a mesma coisa, apenas sendo ne-
cessário trocar a expressão todos pela expressão cada um, que é
exatamente igual, de modo que, essa transferência de veracidade,
não acrescente uma verdade nova, mas apenas mostra para você
uma verdade que, no fundo, já estava sabida. Este seria o proce-
dimento dito analı́tico. As condições práticas são: primeiro, que
o ato intuitivo (o que capta a evidência), possa ser repetido, por-
que se você tem a evidência e a esquece imediatamente, você não
pode transferir a veracidade dele para nada. Segundo, para que
haja a repetibilidade do ato intuitivo, tem que haver algum regis-
tro, pelo menos na própria memória. Registro que, uma vez mos-
trado para o indivı́duo, lhe permita refazer o ato intuitivo a respeito
do mesmo objeto. Por exemplo, se na demonstração do teorema,
“A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipo-

90
3 Preleção III

tenusa”, é porque eu si que o quadrado da hipotenusa se refere


ao mesmo triângulo do qual eu havia calculado os quadrados dos
catetos. Para eu completar a demonstração, eu tenho que repetir
a mesma intuição inicial várias vezes. Terceira condição: se os
dispositivos de registro são indispensáveis, então tem que haver a
transmissibilidade. Tem que haver uma linguagem, um processo
qualquer de significação. Portanto, o conhecimento é essencial-
mente transmissı́vel.
Mais tarde, Hegel dá grandes risadas da expressão “ciências
ocultas”, porque se é oculta é porque ninguém viu; se ninguém
viu, ninguém sabe; portanto, não é Ciência. Seria a ciência in-
transmissı́vel.
Em seguida, vemos que essa idéia pura de Ciência orienta todos
os esforços de todos os pensamentos, pelo menos no Ocidente,
onde nós podemos acompanhar a evolução histórica, ao longo de
dois mil anos. Porém, essa mesma idéia vai passando por suces-
sivas versões e aperfeiçoamentos, ou reflexões, aprofundamentos.
Pode-se escrever toda a história da Filosofia com base na história
das tentativas de realização da idéia pura de Ciência. Assim, desta-
camos um certo número de passagens que foi enumerado em oito,
mas que, desdobrando, nós vemos que foram dez.
Essas reflexões em torno da idéia pura de Ciência, não se refe-
rem apenas à história da Filosofia, mas no mundo das ciências po-
sitivas também. Vejam que, conhecimentos que são considerados
cientı́ficos numa época, porque parece que atendiam aos anseios
dessa época, numa época seguinte, você vê que não atendiam tão
perfeitamente bem, e são rejeitados. Não são mais considerados
cientı́ficos. É como se você pudesse dizer que o esforço dialético
chega à verdade através de uma sucessão de erros. Por tentativa e
erro.
Nós vemos então que essa evolução, mais ou menos, passa por
essas dez etapas. Primeiro, com Sócrates–Platão, a formulação

91
3 Preleção III

inicial do que é a idéia pura de Ciência. De fato, nós poderı́amos


começar essa evolução com Parmenius. Na hora que ele diz, “o
ser é”, e “o não-ser não é”, ou seja, o caminho da verdade, e o
caminho da opinião, já temos aı́ um princı́pio. Só que ele não
diz como fazer isso. Só deu o nome da coisa. Existe verdade, e
existe falsidade, existe o ser, e existe o não-ser, existe o caminho
da verdade, e existe o caminho da opinião. Daı́ Parmenius morreu
e nada continuou.
Com Sócrates–Platão você tem a expressão do conteúdo dessa
idéia. Porém, ao mesmo tempo que expressam, a sua primeira ten-
tativa de realização já é falha, porque Sócrates–Platão acreditam
que o conhecimento verdadeiro não é possı́vel a respeito de qual-
quer coisa, mas só a respeito de um determinado tipo de coisas,
que são as idéias, ou modelos, eternos. E, o mundo da experiência
só oferece um conhecimento, mais ou menos, fictı́cio. Assim, é
como se eles mesmos tivessem puxado o tapete de sua própria
idéia.
A segunda revolução é feita por Aristóteles, no sentido de pro-
por a realização efetiva dessas idéias com relação aos objetos re-
ais. Aristóteles não só faz um projeto, formula exigências, mas
efetivamente, o realiza através da aquisição de conhecimento de
valor permanente da humanidade. Conhecimentos que duram até
hoje. Por exemplo, não só formula inicialmente a Lógica formal,
que continua intacta até hoje (pode ser aumentada, mas não di-
minuı́da), e que geração após geração se revela como um edifı́cio
indestrutı́vel, como também, ele inaugura as principais ciências
que nós cultivamos até hoje, como a Psicologia, a Biologia, a
Fı́sica, a Polı́tica, a História. Claro que no meio dessas realizações
existem uma infinidade de erros. Particularmente, houve erros gra-
ves na Fı́sica. Entretanto, mesmo assim, o que se conserva vivo na
ciência aristotélica é quase tudo.
A terceira revolução, feita por São Tomás de Aquino que, so-

92
3 Preleção III

bretudo, enxerga na ciência aristotélica uma impossibilidade de


você dar conta de um domı́nio teológico, e ver que por falta de
imaginação metafı́sica, Aristóteles havia proposto coisas como
por exemplo a eternidade do mundo (Aristóteles achava que o
real existente, cósmico, é eterno), o que de certo modo, é auto-
contraditório; a ciência aristotélica não permite enfocar a relação
do indivı́duo humano com o infinito divino. É como se existisse
em Aristóteles uma certa confusão entre o quantitativo e o quali-
tativo.
São Tomás de Aquino vai trabalhar nesses pontos, tratando de
abrir essa noção de Ciência para as duas grandes dimensões da
preocupação do Cristianismo, que seriam, a infinitude divina, e
a unicidade intransferı́vel da alma humana, a perenidade da alma
humana.
Para Aristóteles, nós só podemos individualizar a alma na me-
dida em que individualizamos o Cosmos. E quando nós subimos
às dimensões superiores da alma, como a inteligência, ele não mais
vê individualidade nisso. É como se tudo fosse uma inteligência
única e coletiva. É a mesma coisa que dizer que o indivı́duo
só é distinto do outro corporalmente. Não existe uma noção de
alma psı́quica individual humana. Isso leva a uma infinidade de
contradições, e é isso que São Tomás de Aquino procura conser-
tar, de maneira a completar o edifı́cio aristotélico.
Em seguida, a outra grande revolução é com Descartes, onde
a idéia pura de Ciência tem fundamento na autoconsciência do
indivı́duo humano. Uma coisa é você conceber a idéia pura de
Ciência tal como ela é em si mesma. Outra coisa é você se preocu-
par com os meios em você realizá-la, e na hora em que você se pre-
ocupa com os meios de realizá-la, com as condições práticas, você
tem que acrescentar mais uma àquelas que o mundo antigo havia
descrito, que é o fundamento da idéia da veracidade na própria
consciência humana. Assim, se o indivı́duo, sozinho, meditando,

93
3 Preleção III

não encontra um ponto de apoio firme, ele fica separado da idéia


pura de Ciência. Ele não tem como chegar a ela. Com isso, Des-
cartes descobre o fundamento prático da idéia de Ciência na sub-
jetividade humana, que é o chamado cogito cartesiano — cogito
ergo sum —, “penso, logo existo”. Isto é, ao mesmo tempo, o
inı́cio prático da construção da Ciência, mas é também o funda-
mento teórico, porque esta é a primeira evidência inegável, direta.
Descartes parte de uma investigação prática, ou seja, como que
eu, completamente existente, posso chegar até a verdade? Ele
chega a uma resposta teórica que é a primeira evidência não só
na ordem da descoberta, mas a primeira também na ordem lógica,
que é a autoconsciência do indivı́duo. Ou seja, qualquer coisa que
eu descubra, antes de descobrir a mim mesmo, é uma evidência
secundária. Eu não posso saber nem o princı́pio da identidade
se, primeiro, eu não descobrir o princı́pio da minha identidade, o
princı́pio da identidade referido a mim. Depois é que eu o estendo
às outras coisas.
Em seguida, Kant estabelece uma limitação na aplicabilidade
da idéia pura de Ciência. É como se fosse uma conquista negativa.
Ele diz que não é para ter Ciência neste sentido apodı́ctico, a não
ser a respeito de duas coisas: dos objetos de experiência; a res-
peito das formas do nosso próprio entendimento. A Lógica, e tudo
o mais que não seja nem pura forma do próprio conhecimento hu-
mano, e nem objeto de experiência, escapam da possibilidade de
ser objeto de uma Ciência pura e deve, portanto, ser conhecido por
outro meio. Por exemplo, Deus não é pura forma no mesmo enten-
dimento, ou seja, não é um dos esquemas que presidem o desenro-
lar do pensamento lógico, e nem do conhecimento pelos sentidos,
e ele também não é objeto de experiência. Assim, Ele não pode
ser objeto de Ciência pura. Ele não pode ser objeto de evidência,
de transferência de veracidade, etc. Portanto, Deus só poderia ser
conhecido de uma maneira moral, ou seja, não é um conhecimento

94
3 Preleção III

firme; é um conhecimento que depende da liberdade do indivı́duo.


É como se nós disséssemos que é um não-conhecimento. No en-
tanto, Deus tem que poder ser conhecido de alguma outra maneira
que seria a aceitação da liberdade humana.
Com isso, Kant inaugura uma técnica, que as pessoas não se dão
conta. Parece que fecha todas as portas ao conhecimento de tudo
o que seja transcendente, mas não é isso. Ele está dizendo apenas
que o acesso a esse mundo do infinito, não é um acesso intelectual.
É um acesso volitivo. Não é por um ato cognitivo, mas por um ato
de vontade.
Kant deve ter lido muito São Paulo apóstolo. Fala da Fé, que
significa um ato de vontade. E esse é um dos elementos funda-
mentais da mı́stica protestante, e um dos pontos de separação entre
o protestantismo e o catolicismo. O catolicismo segue São Tomás
de Aquino e acredita na possibilidade de um conhecimento inte-
lectual de Deus, embora não por experiência. E o protestantismo
diz que isso só acontece por um ato de vontade. Com isso Kant
procura salvar o caráter infinitivo da divindade, na medida onde
a liberdade humana se abre para uma dimensão de infinitude e
indeterminação. É como se dissesse que a alma que peca é punida
pela sua própria liberdade, e não por uma instância externa que a
castiga.
Portanto, quando nós violamos uma lei da natureza, como a lei
matemática, por exemplo, onde o indivı́duo que compra uma coisa
que ele não pode pagar, ele é punido de fora para dentro. Não é
ele quem se pune na sua liberdade. Kant acreditava que a lei mo-
ral, a lei divina, é destituı́da. Não é uma lei que se pune de fora
para dentro, como uma lei da natureza. A Igreja, com isso, acha
que Kant é um bárbaro. Eu — Olavo —, não acho que isso seja
maléfico, mas benéfico. Pelo menos livra você da idéia de que
Deus é como se fosse um ente apenas maior do que os outros. Ele
cura você da idéia de naturalização de Deus. Esse Deus absolu-

95
3 Preleção III

tamente transcendente, inacessı́vel, incompreensı́vel logicamente,


de que falam os protestantes, e que Kant fundamenta tão bem, Ele,
pelo menos tem a vantagem de que Ele jamais pode ser confundido
com o Cosmos, com a natureza.
Kant, então, via o abismo que havia entre o mundo do conhe-
cimento e o mundo da Fé, do ato de vontade, da liberdade. Para
fins práticos de educação do homem, ou para fins práticos da vida
mı́stica, é uma solução muito útil. A obra de Kant é uma via
mı́stica, um caminho mı́stico. É para quem quer seguir. É claro
que a maior parte dos mı́sticos contemporâneos não tem nem a
menor capacidade de perceber isso, nem de longe. Porque, para
eles, mı́stico é aquilo que tem algo de mitológico.
A obra de Kant não é somente uma obra teórica. Porém, do
ponto-de-vista teórico, o que ele faz é um desastre, porque ele
fecha a porta a determinado tipo de conhecimento, ou seja, a obra
de Kant só é boa para quem é muito bom. É uma obra que só devia
ser lida por quem é santo...
A partir de Kant, surgem duas correntes possı́veis. Uma que
tenta reunificar o mundo do conhecimento, e o mundo da liber-
dade, que vem com Schelling, com sua filosofia do absoluto que
é, ao mesmo tempo, ser e saber, sujeito e objeto, determinação e
liberdade, ao mesmo tempo, e que se desdobra em dois aspectos
antagônicos e complementares, na natureza e no homem, ao se
manifestar sob a forma da criação. Segundo Schelling, esses dois
aspectos, subjetividade e objetividade, eles são reunificados no re-
torno da consciência às suas fontes originais, para o que serve de
unificador do caminho dos mitos e a criação artı́stica. Schelling é
também um outro grande mı́stico. Vejam que existe o tempo todo
uma tendência de estreitar, ou de ampliar a idéia do saber, a idéia
da Ciência pura. Kant restringe; Schelling amplia.
Hegel vai, então, objetar e diz que o sistema de Schelling é
apenas um apelo e não uma realização. Schelling diz que o que

96
3 Preleção III

precisa fazer, mas não faz. Ele não descreve efetivamente o pro-
cesso da exteriorização do absoluto. Ele fala que existe essa
exteriorização, essa manifestação, que o absoluto se desdobra nas
sucessivas manifestações do ser, mas ele não diz como isso acon-
tece. Ele não diz o que o absoluto faz realmente no processo da
sua manifestação. Ele vai identificar a filosofia da manifestação
do espı́rito com a filosofia da História, que é entendida como um
processo de sucessivas afirmações e negações, que em seguida se
transformam em novas afirmações e negações, e assim por diante.
Nessa altura, acontece uma coisa importante, que a antiga
idéia da dialética, como método da Filosofia, inaugurada por
Aristóteles, é retomada de uma outra maneira por Schelling e He-
gel, onde ela deixa de ser apenas um método humano de descobrir
a verdade e ela passa a ser a própria lei que constitui o real. Para
Hegel e Schelling, a realidade é dialética. Não só o nosso processo
de conhecimento é dialético, mas a própria realidade é dialética,
porque o conhecimento faz parte do processo de desdobramento
do próprio espı́rito, isto é, do próprio real. Para os filósofos do
idealismo alemão, a dialética não era um método de descoberta,
como era para Aristóteles, mas é o próprio processo da existência
do real, da qual faz parte o próprio conhecimento. O processo hu-
mano da descoberta do real, o conhecimento humano, é o próprio
real. Quando o homem descobre algo, é o próprio espı́rito que se
redescobre.
Então, não se pode fazer a distinção entre a teoria e a prática, ou,
entre o real externo e o seu conhecimento. Isso quer dizer que o
processo classificatório e distintivo da Filosofia antiga é aqui aban-
donado, em favor de um processo dialético que engloba as várias
classes e espécies, num todo que está em perpétua transformação
e, naturalmente, a distinção aristotélica entre ciências teóricas e
ciências práticas não existe, porque o conhecimento é um pro-
cesso que se desenrola no tempo, e que é uma prática. Esta prática,

97
3 Preleção III

por sua vez, não é separada do real que o conhecer conhece, mas
quando o homem conhece, é o próprio real que se conhece a si
mesmo, na medida em que o próprio homem é real. Os filósofos do
idealismo alemão comprimem, num processo único e dramático,
tudo aquilo que a Filosofia dos séculos anteriores havia se preo-
cupado em distinguir e classificar com atenção. Como se todas
essas práticas e espécies, conceitos, esquemas, etc., fosse visto
por eles, tudo ao mesmo tempo, como um processo dinâmico. É
claro que eles não poderiam ter feito tudo isso se a filosofia an-
terior não tivesse feito todas essas classificações. O processo de
desdobramento analı́tico das partes precede, depois, à sua sı́ntese
final. Essa direção de reunificar o que Kant havia separado é uma,
que começa com o idealismo alemão.
Por outro lado, a outra linha de desenvolvimento, é a linha do
Positivismo, que vem com Augusto Comte, que tenta, não reu-
nificar o que Kant havia separado, mas formalizar a separação e
torná-la definitiva. É toda uma corrente positivista que, de uma
maneira ou de outra, tem sua origem em Comte.
A lógica positivista é psicologista. A orientação formal surge
do conhecimento, se torna quase que um dogma oficial. Isto
traz um certo benefı́cio, porque permite a formação inteiramente
autônoma das ciências positivas que, a partir daı́, começam a pro-
gredir muito rapidamente, na medida que elas não têm que pres-
tar satisfações de ordem metafı́sica. Até o Idade Média, se você
descobrisse u, novo fato cientı́fico, esse fato não era intuı́do até
que você o confrontasse com todas as doutrinas. Por exemplo, o
sistema de Copérnico: toda a Europa leu o livro de Copérnico e
usou os cálculos de Copérnico, e ninguém deu grande importância
a aquilo, porque aquilo não parecia ter conseqüências de ordem
teológica. Foi só quando Giordano Bruno interpretou o sistema de
Copérnico no sentido teológico, extra-oficialmente, é que o pro-
blema se deu.

98
3 Preleção III

Nas estórias das polêmicas contra a Igreja Católica, a quase to-


talidade que se diz contra ela é mentira. A Igreja Católica proi-
biu o sistema de Copérnico: isso é mentira. O que ela proibiu
foi a interpretação teológica que se estava fazendo. Entretanto,
se os planetas vão para lá ou para cá, isso não tem importância
teológica. Se você interpreta esse fato teologicamente, num sen-
tido contrário, aı́ tem-se a polêmica teológica. Quando se diz que
a Inquisição proibiu os livros de Copérnico, atrasou o progresso
da Ciência, isso é balela. Eu li o Index dos livros proibidos, e lá
não tem um único livro de Copérnico. As obras de Galileu, New-
ton, Copérnico, nada disso foi proibido. Ao contrário, pois a obra
de Copérnico foi introduzida na Penı́nsula Ibérica pelo sujeito que
era chefe da Inquisição, e que era astrônomo.
A partir do século XIX, com o advento do positivismo, as des-
cobertas cientı́ficas são tornadas autônomas, no sentido de que
elas não tem que ser justificadas filosoficamente, ou metafisica-
mente. Elas começam a valer por si, independentemente de suas
conseqüências filosóficas. Por um lado, isso permite um rápido
desenvolvimento dessas ciências; por outro lado, cria uma con-
fusão enorme, porque vai perdendo, gradativamente, a unidade do
mundo da cultura. E, gradativamente, vai começando a entrar o
non-sense.
Paralelamente a isso, acontece um outro processo, que é o fato
de que a dimensão da História que Hegel havia identificado como
o próprio processo de manifestação do absoluto, e que é, no fundo,
um aproveitamento filosófico de uma idéia cristã (o Cristianismo
introduz a noção de historicidade do homem), e as conseqüências
filosóficas disso só vão se tornar plenamente manifestadas 1800
anos depois, com Hegel, que mostra a História como sendo o
real propriamente dito. E este processo de historicização da re-
alidade, da própria Filosofia, que para Hegel, a história da Filo-
sofia, o desenrolar temporal das doutrinas, é o próprio conteúdo

99
3 Preleção III

das filosofias, ele por certo vai ser submetido a uma transformação
por Karl Marx, que vai dizer que o mecanismo fundamental da
História não é o confronto das idéias e das doutrinas no campo
filosófico, mas o confronto das ações humanas reais dentro de um
quadro de relações que delimita a ação humana: relações jurı́dicas,
econômicas, militares, polı́ticas, etc. De maneira que a própria
História, que passa a ser História social, e não a História cultural,
é que passa a ser a chave.
Na obra de Husserl surge a resposta da situação criada pelo
positivismo. Husserl vai à margem do desenvolvimento Hegel-
Marx, na medida onde a autonomia das ciências, permitindo a sua
extensão qualitativa, abre a brecha para a incoerência dentro do
mundo da Ciência. Na medida que surge a incoerência, ou seja,
aquilo que é verdade aqui é desmentido acolá, vai entrando o non-
sense, não só dentro dos interstı́cios entre as várias ciências, mas
dentro do próprio âmbito de cada ciência em particular. Um exem-
plo disto é o caso de Georg Cantor.
Husserl parte do fato que ele chama de “A Crise das Ciências”,
não no sentido de que elas não estejam descobrindo nada, não no
sentido de que elas não progridam, mas no sentido da sua própria
cientificidade, ou seja, são ciências ou não? São ciências verda-
deiras ou são apenas um tecido de conjecturas, retoricamente co-
locadas à sociedade, como que embasadas numa autoridade de um
grupo social determinado que se auto-intitula “a classe cientı́fica”?
Husserl não é, evidentemente, contra as ciências. Ao contrário,
ele apenas quer que elas, de fato, cumpram a sua promessa do
conhecimento apodı́ctico, demonstrativo. E isso é tanto mais im-
portante quanto ele vê a própria civilização européia como fruto,
criação da Ciência, toda ela marcada pelo ideal de Ciência. Por-
tanto, onde estiver um defeito, uma rachadura, uma incoerência no
mundo das ciências, ela se propagará por toda a civilização, mais
cedo ou mais tarde, assim como se fosse uma civilização fundada

100
3 Preleção III

num mito, onde as incoerências do mito, mais tarde, acabariam


com a própria civilização.
A obra de Husserl é de salvação da civilização européia. É a
obra de um abnegado que abriu caminho para o que ele chama
de “os bons europeus”, que são aqueles que amam a civilização
da Europa e que, embora vendo as contradições e defeitos dela,
procuram tocar para frente, e não destrui-la. Ele dizia que essa
nova sensação criada pela perda do sentido de veracidade nas
ciências, deveria ser enfrentada com uma coisa que ele chama
de “o heroı́smo da razão”, que é a Razão que se supera a si
mesma, que vence a absurdidade dos seus próprios produtos, dos
seus próprios efeitos. Ele propõe um retorno à noção primária
da evidência; o que é a evidência; o que é conhecimento correto;
e nesse sentido ele vê que existem duas evidências que ninguém
nega.
A primeira é a do cogito cartesiano, que é a evidência do
próprio indivı́duo humano que existe. Ele considera isso uma
aquisição definitiva do mundo cientı́fico. Ninguém derruba isso.
O fundamento da veracidade na subjetividade, a idéia de que a
existência e o auto-reconhecimento do ego auto-consciente, é a
primeira condição sine qua non do fundamento da Ciência, e é uma
evidência inegável. Nenhum homem pode negar que ele existe.
A segunda evidência que ninguém nega é a veracidade da
dedução matemática. Ninguém nega que 2 + 2 = 4.
Porém, parece que essas duas evidências que não tem nada a ver
uma com a outra, porque o modo pelo qual chego a uma evidência
matemática é totalmente diferente pelo modo o qual eu chego à
evidência subjetiva. Aı́ ele levanta o ponto-chave: as evidências
matemáticas são evidências na medida em que a consciência as
atende, elas são evidências na consciência, para a consciência.
Do mesmo modo que a evidência da sua própria existência, é um
evidência para a consciência. Assim, o problema que se está tra-

101
3 Preleção III

tando é saber o que é consciência, e quais são os diferentes modos


pelos quais as evidências podem se apresentar à consciência.
A consciência humana é uma só, e essa mesma consciência
toma consciência de si mesma, e toma conhecimento da exatidão
da dedução matemática. Portanto, essas duas coisas se dão para a
consciência. Isto quer dizer que existem dois tipos de evidência,
diferentes. O modo de apresentação da verdade são totalmente
diferentes.
Assim, primeiro passo: descrever a consciência, e ver os vários
modos de evidência com o que a verdade se apresenta. Te-
mos que fazer uma fenomenologia da consciência, descrever a
consciência, e no momento em que ele vai tentar reunificar o noção
de evidência, que é comum às duas, mostrando a consciência como
o lugar onde aparece a evidência, ele vem primeiro com a filoso-
fia da Lógica, ou seja, uma filosofia pela dedução matemática e,
segundo, a filosofia da consciência.
Porém, aı́ começa o grande problema: a consciência, no caso,
não pode ser encarada no sentido psicológico, porque senão você
supõe que a consciência possa ser estudada pelos dois métodos ad-
mitidos em Psicologia, que seriam, um, o método de observação e
experimentação, ou método de introspecção. E ele diz que, o pri-
meiro método pressupõe que você coloque entre parênteses a vera-
cidade dos conteúdos de consciência. Quando o psicólogo estuda
como você realmente pensa, que meios ele tem de saber que o que
você pensa é verdadeiro ou falso? A veracidade ou falsidade do
conteúdo de um pensamento não é um problema psicológico. Se
você vai estudar psicologicamente como se produz uma evidência,
você não vai estudar o objeto da evidência, e sim, somente o modo
de produção da evidência em sua mente — quando aqui nós esta-
mos interessados exatamente no contrário.
Nós entendemos que existem diferentes objetos de evidência.
Quando Husserl fala numa fenomenologia da consciência, não é

102
3 Preleção III

no sentido psicológico, e sim, numa fenomenologia dos diferentes


conteúdos de consciência, ou seja, o conteúdo matemático é um,
e o conteúdo do cogito é outro. Entretanto, que se possa estudar
a consciência de uma maneira extra- psicológica, aı́ é que surge
todo o problema, porque então, se escapa da idéia de Ciência, tal
como se admitia na época, que seria a Ciência no sentido posi-
tivo, no sentido experimental. Para isso, Husserl empreende pre-
liminarmente um exame das filosofias da Lógica, e das filosofias
da consciência, até então existentes. E, este texto do Husserl, se
refere ao exame crı́tico das filosofias da Lógica até então conhe-
cidas. Para Husserl, a Lógica é a teoria da Ciência, do conheci-
mento cientı́fico. Essa teoria tem que provar que existe a possi-
bilidade do conhecimento verdadeiro, independentemente do seu
modo de produção psicológico, porque senão, a própria Psicologia
não poderia ser uma ciência. Se a definição do que é veracidade
em Ciência depende de que exista previamente uma ciência para
estudar o funcionamento da consciência que nos dá essa verdade,
nós entramos em contradição. A veracidade e a falsidade têm que
poder ser definidas, e os seus critérios têm que poder ser esta-
belecidos, independentemente de qualquer considerações de or-
dem psicológica, ou seja, independentemente se você pensar com
o cérebro, com o estômago, ou até independentemente de saber se
você pensa, tem que haver um critério do que é o conhecimento
verdadeiro. Condições puramente formais, lógicas, que não têm
nada a ver com o procedimento real do pensamento, por exemplo,
assim como as regras da Geometria são reais, independentemente
do processo do seu pensamento. Vejam que ao se explicar uma
lei geométrica, as pessoas captam essa lei por diferentes manei-
ras. Por exemplo, pensem num triângulo. Agora, me digam: esse
triângulo apareceu solto no espaço, desenhado num papel, recor-
tado num pedaço de madeira? Como? Qualquer que seja o modo,
eu pergunto: algum desses triângulos é geometricamente diferente

103
3 Preleção III

do outro? Não! Isto quer dizer que vocês pegaram a mesma idéia
geométrica, por processos psicológicos que independem de suas
associações de idéias, as quais foram totalmente fortuitas. Isto
quer dizer que, a veracidade dos cálculos geométricos que você
faz, que existem no triângulo, independe do modo psicológico pelo
qual você apreendeu a idéia. Mesmo que fosse o homem das ca-
vernas, o triângulo continuaria tendo três lados, e o quadrado da
hipotenusa continuaria a ser a soma dos quadrados dos catetos.
Assim, Husserl indaga: “É possı́vel a Lógica pura?”, ou seja,
a teoria pura da Ciência. Não apenas a formulação da idéia pura
da Ciência, que é uma coisa, porém é possı́vel formar uma Lógica
inteira? Ou seja, é possı́vel o conjunto total dos critérios do co-
nhecimento de maneira inteiramente pura, sem referência aos da-
dos psicológicos? Ele diz que se não é possı́vel isso, então não é
possı́vel Ciência alguma. Ou destacamos a Lógica da Psicologia,
ou então, essa Lógica não pode fundamentar a própria Psicologia
como ciência.
O mundo dos psicólogos está, até hoje, lesado em todas as pes-
soas que não estudaram Edmund Husserl, e estudaram o restante
da Psicologia. Isto porque tendem a reabsorver nos fenômenos
psicológicos, todo o mundo do conhecimento e a explorar o co-
nhecimento psicologicamente, e portanto você relativiza psicolo-
gicamente, mas, ao mesmo tempo esse mesmo indivı́duo que faz
isso, sabe que a Psicologia não tem fundamento cientı́fico. Resul-
tado: tem que apelar para o mundo do mito. Por isso é que os
junguianos logo vão para o lado do mito, começam a ler o Schel-
ling.
O futuro da Ciência, a cientificidade da Ciência, a sua base
verı́dica, repousa nessa possibilidade: ou existe a Lógica pura,
ou então tudo isso é uma demência. E é justamente isso que
ele vai começar a se esforçar, por etapas, a partir deste livro das
Investigações Lógicas. É um novo São Tomás de Aquino, um novo

104
3 Preleção III

Aristóteles.

105
4 Preleção IV
16 de dezembro de 1992

4.1 Espinha dorsal da história da


filosofia
• Sócrates–Platão: idéia pura de ciência.
• Platão: ciência das formas ou dos arquétipos.
• Aristóteles: ciência natural ou ciência das coisas efetiva-
mente existentes.
• Cristianismo: senso da história, alma individual.
• Santo Tomás de Aquino: harmoniza o cristianismo com a
ciência aristotélica.

(RUPTURA)

• Descartes: retorno a Sócrates; a ciência individual como


ciência verdadeira.
• Kant:
– conhecimento interno (formal)
– conhecimento externo (material)

106
4 Preleção IV

• Kant

– Idealismo: por reação, surge Marx


– Positivismo: por reação surge E. Husserl

Esta é a espinha dorsal da história da Filosofia. É claro que exis-


tem muitos ramos laterais, secundários, auxiliares, mas a espinha
dorsal é esta.
Se você conseguir situar cada filosofia, cada idéia, cada obra,
dentro desta evolução, você sabe onde as pessoas estão. Esta é a
idéia geral. Este é o problema que se discute.
Isto quer dizer que, a essa altura, nós ainda estamos coloca-
dos dentro de uma fase onde a idéia pura de Ciência requer uma
espécie de visão do conhecimento em duas partes, mutuamente
excludentes. Nós ainda estamos dentro de uma atmosfera kanti-
ana, onde uma ciência pura, verdadeira, parece que só pode ser
realizada com relação a uma parte dos fenômenos, ou seja, aquilo
que é objeto de experiência. E, aquilo que está colocado para além
da experiência não é objeto de conhecimento propriamente dito.
Por exemplo, o problema da Lógica sem fundamento ontológico.
Nós podemos conhecer a Lógica, evidentemente, porque nós te-
mos experiência do nosso próprio pensamento, e podemos então
estabelecer as regras segundo as quais esses pensamentos se re-
alizam, ou devem se realizar, para tais ou quais fins. Porém, se
tudo isso tem fundamento ontológico ou não, isso é uma questão
metafı́sica.
Assim, ou desistimos de fundamentar ontologicamente a
Lógica, ou realizamos uma Lógica sem fundamentos ontológicos,
uma Lógica que seria uma ciência puramente formal, e baseada,
em última instância, numa arbitrariedade humana, baseada em
convenções, ou seja, a Lógica como ciência puramente norma-
tiva. A lógica de computadores é puramente normativa. Basta um

107
4 Preleção IV

conjunto de leis, e cria um sistema dedutivo que seja coerente com


essas leis. Entretanto, se tudo isso é coerente com o real pouco im-
porta, o computador vai funcionar do mesmo modo. É a partir de
tudo o que foi dito que nós devemos entender o texto de Husserl.
Este texto pergunta fundamentalmente, o quê é a Lógica? Se é
uma ciência empı́rica, baseada no estudo do pensamento humano
real; se é uma ciência metafı́sica, fundada em leis ontológicas, e
que reflete na unidade do pensamento, na unidade do real; ou se é
uma ciência puramente normativa, formal, constituı́da de um sis-
tema dedutivo, fundado em normas convencionalmente adotadas
pelo homem. Estas são as três orientações que Husserl fala no
primeiro capı́tulo: psicológica, metafı́sica e formal.
2. Necessidade de uma nova dilucidação das questões de
princı́pio
Husserl diz que as três orientações da Lógica, ou seja, esses
três modos de definir a Lógica, aos quais correspondem três mo-
dos respectivos de desenvolver, e esses três modos ainda estão em
conflito, muito embora, na época dela o modo psicológico tenha
alcançado um maior número de adeptos. Só que isso não quer
dizer nada.
Assim, nenhuma das três correntes ofereceu argumentos con-
tundentes que pudessem convencer os partidários das demais. Diz
Husserl, “A circunstância de que ensaios tão numerosos para im-
pelir a lógica pelo caminho seguro de um ciência não permitam
apreciar nenhum resultado convincente, deixa aberta a suspeita de
que os fins perseguidos não se aclararam na medida necessária,
para uma investigação frutı́fera”.
Por quê ele fala em “caminho seguro de uma ciência”? Essa é
uma das expressões que Kant usa no começo dos seus trabalhos.
Ele assinala alguns dos traços que indicam se uma ciência entrou
pelo caminho seguro, ou se ela está perdida. Um dos sinais de
um caminho seguro seria a unanimidade quanto aos resultados, e

108
4 Preleção IV

quanto aos caminhos a seguir. Essa unanimidade não se observa na


ciência da Lógica, e que portanto, Husserl diz que ela não entrou
para um caminho seguro de uma ciência.
Curiosamente, a Lógica é a ciência que Kant dizia ser a ciência
por excelência. Kant considerava a Lógica como a ciência que ha-
via entrado no caminho seguro. Husserl demonstra aqui que não é
nada disso. Ele diz que uma parte da Lógica entrou pelo caminho
seguro, que é o esquema dedutivo, e quanto a isso ninguém dis-
cute. Porém, quanto à natureza da Lógica, e quanto ao campo de
extensão de validade de seus princı́pios, a discussão continua até
hoje. Ele quer dizer que os fins nos casos sobre a discussão quanto
à natureza da Lógica, não foram aclarados de maneira suficiente,
e por isso mesmo os resultados da discussão não são firmes.
A concepção dos fins de uma ciência encontra sua expressão
na definição dessa ciência. Não que o cultivo frutı́fero de uma
disciplina exija uma prévia e adequada definição do conceito de
seu objeto. As definições de uma ciência refletem as etapas de sua
evolução. Não obstante, o grau de adequação das definições exerce
também seu efeito retroativo sobre o curso da ciência mesma;
Você pode ter várias definições na mesma ciência conforme ela
vai se desenvolvendo, porém é fundamental que as definições não
estejam totalmente erradas, ou deslocadas com relação ao objeto.
Elas podem, por exemplo, ampliar o campo do objeto, ou podem
especificá-lo, conforme as novas descobertas vão sugerindo um
caminho ou outro. Porém, se acontece da definição se desviar
completamente do objeto, a ciência perde o rumo.
E esse efeito pode ter influxo escasso ou considerável, conforme
a direção em que as definições se desviem da verdade. A esfera
de uma ciência é uma unidade objetivamente cerrada. O reino da
verdade divide-se, objetivamente, em distintas esferas.
Isto aqui é absolutamente decisivo e que, pelo menos no meio
brasileiro, as pessoas têm muita dificuldade de captar.

109
4 Preleção IV

Em geral, pelo menos no campo que eu tenho visto dos alunos,


nos últimos dez anos, pelos quais eu tomo uma medida do que
se passa no meio universitário, a tendência vigente do brasileiro é
de viver a realidade como uma espécie de pasta caótica, na qual
todas as distinções são estabelecidas apenas pelo arbı́trio humano.
Ou seja, o indivı́duo vê o mundo como um caos onde está tudo
misturado, e vê as distinções como mais ou menos convencionais
e arbitrárias, ou seja, como meramente práticas.
Assim, distingue-se entre um campo da Fı́sica e outro da Biolo-
gia, entre o real e o possı́vel, entre o dentro e o fora, etc., apenas
por uma convenção, por uma necessidade prática. Sendo que essas
distinções não correspondem a traços da própria realidade. Quase
todo mundo pensa assim. Mas, não é que pensem assim por te-
rem examinado o problema, mas, sem jamais terem examinado o
problema.
Existe um preconceito de que todas as distinções, inclusive as
divisões do próprio sistema das ciências são, primeiro, arbitrárias
e, segundo, meramente práticas. Husserl afirma exatamente o
contrário. Ele diz que a esfera de uma ciência é uma unidade ob-
jetivamente fechada. Ou seja, se quiséssemos fazer entrar outros
fatores nessa esfera, não conseguirı́amos. Ele não diz que deve
ser, ele diz que é. Isso é muito importante. Com isso está suben-
tendido que um sistema das ciências só é válido quando as suas
divisões, ou seja, as denominações das várias ciências, correspon-
dem a divisões objetivas do real. Por exemplo, quantas ciências
podem estudar um objeto?
Pelo pressuposto inconsciente na mentalidade do nosso meio
universitário, qualquer coisa pode ser objeto de qualquer ciência,
sob qualquer ponto-de-vista. Basta você inventar um ponto-de-
vista qualquer que você terá uma nova ciência.
O que Husserl diz é exatamente o contrário: as ciências só são
válidas, elas só existem efetivamente, e elas só podem ser prati-

110
4 Preleção IV

cadas efetivamente, quando as divisões dos seus campos corres-


pondem rigorosamente às divisões do próprio real. Isto não quer
dizer que o sistema das ciências tenha que esgotar essas divisões
mas, pelo menos, as que estão nela, são divisões que refletem, não
apenas pontos-de-vista, ou desejos, ou interesses humanos, mas a
constituição dos próprios objetos. Um único exemplo permitiria
tornar isso bastante claro, e isto é uma coisa tão simples que, uma
vez visto, as pessoas percebem que é assim: como nós poderı́amos
fazer uma ciência que pudesse por no objeto, ao mesmo tempo, as
propriedades dos triângulos e o crescimento das plantas? Como
poderı́amos achar uma conexão causal, na qual, o crescimento
das plantas afetasse as propriedades dos triângulos? Existe algum
meio de que algo que aconteça a qualquer planta desse mundo, dos
outros mundos, afetasse a propriedade dos triângulos? É absolu-
tamente impossı́vel. Essas coisas não interferem uma na outra,
jamais. São planos distintos, portanto, são objetos distintos.
Quando um indivı́duo sente as divisões como arbitrárias, ou
convencionais, é que ele está confundindo o mundo, tal como ele é
estudado pelas ciências, com o mundo da experiência sensı́vel, da
experiência real humana, que não são o mesmo mundo. O mundo
que chega à nossa experiência de indivı́duo é o mundo concreto,
onde todos os efeitos, todas as linhas de causa, comparecem ao
mesmo tempo, ou seja, nós experimentamos, ao mesmo tempo, os
efeitos que estão ligados entre si, e os que estão desligados. Por
exemplo, se um aluno me faz uma determinada pergunta relativa à
aula anterior, eu compreendo que isso é um efeito da própria aula
anterior que eu dei. Porém, esse mesmo aluno que manifesta um
efeito de um acontecimento anterior, ele também chega aqui ves-
tido de verde, ou de amarelo, e essas duas coisas acontecem ao
mesmo tempo, e é o mesmo aluno que vem vestido de uma das
cores, por causa de uma escolha arbitrária que ele faz, e que me
faz essa pergunta derivada da aula anterior. Ou seja, eu observo,

111
4 Preleção IV

ao mesmo tempo, indı́cios, num todo inseparável, os efeitos de


duas linhas de causa que não tem nada a ver uma com a outra. O
concreto quer dizer exatamente isso.
O acontecimento concreto é aquele no qual se juntam todas as
linhas de causas, as que estão ligadas entre si, e as que não estão
ligadas entre si, e que somente se juntam no acontecer concreto.
Porém, a Ciência não se interessa pelo acontecimento concreto.
Ela só se interessa pelas conexões de causas. Por quê a Ciência
haveria de se interessar pelo acontecer concreto? Isto é matéria
da experiência humana, comum e corrente. Se a Ciência tratasse
disso ela seria uma simples repetição da experiência, e de nada
serviria. Ou seja, aquilo que nós já sabemos pelas vias comuns e
correntes, não pode ser matéria de Ciência. Da experiência con-
creta nós sabemos os fatos, aquilo que são efeitos (factum est),
aquilo que está sendo, o que já é fato. E, tudo aquilo que é feito,
é feito pelo composto de uma infinidade de causas diferentes, que
convergem num mesmo lugar e momento. Porém, essas causas
não estão conectadas em si mesmas, umas com as outras, embora
estejam ambas conectadas ao mesmo fato. O conhecimento da
aula anterior, e a cor da roupa, estão juntas ambas no mesmo in-
divı́duo, mas não são eles que se juntam um ao outro. É o in-
divı́duo quem os junta. O que pode acontecer é que efeitos de tipo
fı́sico, e de tipo econômico-sociológico, convirjam num determi-
nado momento. Por exemplo, um sujeito dá um tiro no outro. A
bala mata o sujeito devido ao impacto. Esse impacto pode ser
calculado por leis fı́sicas, porém, por quê o sujeito matou o ou-
tro? Isto poderia ser calculado por leis fı́sicas? Não. Pode ser por
motivos psicológicos, ou sociológicos, que nada têm a ver com o
impacto da bala. No entanto, o indivı́duo foi morto, precisamente,
porque o encadeamento das leis fı́sicas que determinam o impacto
da bala, e o encadeamento das causas psicológicas que determi-
naram o tiro, convergiram no mesmo momento. Isto é o que se

112
4 Preleção IV

chama de concreto.
Portanto, para poder captar o que é o ponto-de-vista cientı́fico,
nós temos que sair do aspecto concreto para que nós possamos
pegar quais são os encadeamentos de causa que estão necessari-
amente conectados entre si, ou seja, que sempre vêm juntos, e
aqueles que podem vir separados. Ou seja, o impacto de uma bala
depende do seu calibre, e a causa psicológica pelo qual o indivı́duo
matou o outro, depende de acontecimentos anteriores, de ordem
puramente psicológica. Essas coisas não estão conectadas entre
si, mas apenas no indivı́duo real. Assim, coincidiu de que João ti-
nha tais motivos para matar José, e João tinha uma bala de calibre
38. Não poderı́amos, dessa forma, estabelecer uma relação direta
entre o motivo psicológico e o calibre da bala e, portanto, o seu im-
pacto. Essa relação é indireta e estabelecida através de um terceiro
fator que é o indivı́duo ser o autor do ato. Entre o calibre da bala
e o seu impacto existe uma relação necessária, mas entre o calibre
da bala e a motivação psicológica que motivou o tiro não há uma
relação necessária, portanto, isso não pode ser objeto de Ciência.
Não pode existir Ciência das conexões fortuitas porque senão se-
ria uma Ciência inesgotável, nunca chegaria a nada. É como se
você tivesse uma Ciência que estabelecesse uma estatı́stica entre
o horário de partida dos aviões nos aeroportos de todo o mundo
e a quantidade de nascimentos de crianças. Não é impossı́vel que
você até encontre uma certa coincidência, por exemplo, quando
partem mais aviões, nascem mais crianças, porém a nossa razão
percebe que não há uma conexão entre uma coisa e outra, mesmo
quando elas coincidem.
A incapacidade que o indivı́duo tem de sair do plano da ex-
periência concreta e se colocar no plano abstrato que separa as
várias linhas de causa, ela vem junto, necessariamente, com a
impossibilidade que o sujeito tem de distinguir o necessário do
fortuito. Por quê? Porque só existe conexão necessária em li-

113
4 Preleção IV

nhas causais unı́vocas, por exemplo, entre o calibre e o impacto da


bala. Entretanto, a conexão entre o impacto da bala e a motivação
psicológica é fortuita. Se eu não consigo me desligar do aconte-
cimento concreto, eu não consigo perceber quais são as ligações
necessárias, e quais são as fortuitas. Por isso mesmo é que eu te-
nho uma imagem do mundo que é caótica, onde qualquer coisa
pode acontecer a qualquer momento, por qualquer causa. Isso é,
evidentemente, um sinal de muita fragilidade intelectual. É um
impressionismo. O indivı́duo está tão impressionado pelo aconte-
cimento concreto que ele só consegue ver um amálgama de causas
e efeitos misturados, e não consegue ver que, por trás, existem
conexões necessárias e outras, fortuitas. Portanto, daquele acon-
tecimento em particular, ele não tira nenhuma conclusão que seja
aplicável para um outro acontecimento, e se tentar vai tirar a con-
clusão errada.
O problema é que, pessoas que tenham formação universitária,
que se dedicam à profissão cientı́fica, pensem desta forma, isso é
gravı́ssimo. Se for assim, a pessoa está fazendo Ciência com a
mentalidade mágica, ingênua, de uma criança de cinco anos. É
necessário que a sua imaginação também pense junto com o seu
saber, e que você possa, dentro do mesmo acontecimento, separar
imaginativamente os vários aspectos, uns dos outros, para você ver
quais estavam ali por uma necessidade, e quais estavam de maneira
fortuita.
O indivı́duo confundir o que é necessidade lógica com o encade-
amento causal, real, é também um sinal dessa mesma fragilidade.
O indivı́duo está tentando sair do concretismo, e o faz por um abs-
tracionismo excessivo. Seria a pessoa que tem uma mentalidade
racionalista, ou seja, tudo aquilo que está no raciocı́nio, tem que
acontecer, necessariamente. Isso só acontece se houver, entre os
dados, uma conexão real, homóloga à conexão fı́sica dos seus ra-
ciocı́nios.

114
4 Preleção IV

Nós estamos num situação, que acontece no meio letrado brasi-


leiro, onde tudo aquilo que foi conquistado pela humanidade, ao
longo dos séculos como, critérios de distinção, instrumentos de
classificação do mundo, etc., tudo isso está inacessı́vel ao brasi-
leiro. Assim, dada qualquer problema para resolver, na mão de
indivı́duos assim, mesmo que seja da sua ciência em particular,
eles farão muita confusão.
Sinceramente, eu acho impossı́vel que o sujeito pratique bem
uma ciência se ele não tem idéia de, se o campo daquela ciência
tem uma unidade real ou fictı́cia, real ou convencional, teórica
ou prática. Simplesmente não é possı́vel, porque se o indivı́duo
nem sabe se aquele objeto existe ou foi inventado por ele mesmo.
Ele fica desorientado em face do objeto e, mais dia menos dia,
ele vai começar a fazer burrada. O pior é que todo o mundo das
ciências existentes, Biologia, Economia, História, etc., só tem va-
lidade em cima dessas distinções. Se eu conheço as ciências, mas
não conheço as distinções que as estabelece, que as criam, que as
delimitam, na realidade eu não sei o que é Ciência. Mesmo aquela
que eu pratico profissionalmente.
Por razões como essa é que o problema do Brasil não é a miséria
mas, sim, o de ser um paı́s desorientado, e que só não está numa
miséria maior porque Deus é brasileiro. é um paı́s cujos recursos
são desproporcionais às realizações exatamente por ser formado
de pessoas que estão num nı́vel intelectual muito atrasado. O pior
é que isso é verdade, embora eu gostaria que não fosse, mas acon-
tece que quando você vê como uma discussão é iniciada, como ela
se desenrola, e ao resultado que ela chega, não importa em que
setor seja, sempre chega a uma confusão, porque são pessoas que
não acreditam no conhecimento objetivo, não têm idéia do que é,
e encaram o mundo como um pastiche, no qual todos os conceitos
são uma espécie de joguinhos, regras de jogo que nós inventa-
mos. Pergunte a um psicanalista se existe o id, objetivamente? Ele

115
4 Preleção IV

existe como uma unidade, ou ele é uma função de alguma outra


parte do ser humano realmente existente? O id é sujeito de atos?
É difı́cil você achar um psicanalista que tenha se colocado essa
pergunta. Todos falam do id como se ele existisse, como se ele
fosse uma outra pessoa: o José quer isso, mas o id do José quer
aquilo, ou seja, o José parece uma só pessoa, mas é, na verdade,
duas! O id vira uma espécie de “encosto”.
Assim, saber se os objetos de que você fala são entes, são
funções, são modalidades, são aparências, ou epi-fenômenos, isso
é fundamental. Se eu não sei se estou falando de um ente, ou de
uma palavra, então não vai adiantar nada... É claro que eu posso
fazer raciocı́nios sobre conceitos inexistentes. Às vezes, para com-
pletar certos argumentos lógicos, você procede como em Álgebra:
você tem uma coisa que você não sabe se existe ou não; você a de-
nomina de x e continua raciocinando em cima dela. Mas, se você
não sabe se o x existe ou não, e não o distingue, você nunca pode
chegar a resultado algum que preste.
Vejam, por exemplo, as nossas discussões que prosseguem exa-
tamente a noventa anos, nos mesmos termos. Há um artigo de
Monteiro Lobato, de 1910, discutindo as causas da inflação. A
discussão é exatamente a mesma. Discute-se este problema há
nove décadas e não o resolvem..., assim como uma infinidade de
outros problemas. Se o povo, em determinados momentos, adere
a modas estrangeiras, então fica impossı́vel.
Assim, o povo, enxergando o mundo como um caos, ele fica
desorientado, e fica procurando algo que lhe sirva de referência, e
quando aparece uma nova palavra, uma nova idéia, ele se agarra
a aquilo como um náufrago se agarra a uma tábua. Isso acon-
tece, não porque ele tenha espı́rito de imitação, mas porque tem o
espı́rito de salvar a pele. Para ele não ficar completamente louco,
ele se agarra a uma nova palavra que pode ser, por exemplo, mo-
dernidade. Ele não sabe o que é, mas também não precisa, desde

116
4 Preleção IV

que isso lhe dê a esperança de salvar a sua pele.


Com relação às discussões de problemas de interesse público,
dificilmente você vê alguém que queira colocar as coisas e as
tente resolvê-las efetivamente. Há um amor por certas idéias, de
modo que você depende delas, e se elas morrerem você sente que
o seu mundo caiu. Essa nossa impressão de estarmos isolados do
mundo, ela é verdadeira, mas não pelos motivos que as pessoas
pensam, por estarmos à margem da modernidade. Sempre pensam
que é por motivos econômicos e é evidente que não é por isso. Não
sei por quê um paı́s pobre não pode acompanhar o movimento de
idéias do mundo! É evidente que pode. Sobretudo, eu não sei por
quê um paı́s pobre não pode saber como foi o movimento de idéias
nos tempos de Platão e Aristóteles. Quanto dinheiro você precisa
para saber disso?
O que acontece hoje é ver as pessoas tentando alcançar uma
atualidade, e quando você consegue, já não é mais atual. Isso é
imediatismo, que é uma coisa do indivı́duo só visar o interesse do
seu grupo, e não conseguir enxergar; esse espı́rito de reivindicação
(queremos isso, queremos aquilo) que é como se a sociedade fosse
um pai que não lhe dá as coisas porque ela não quer, porque ela
é malvada. Assim, cada um reivindica a sua parte, e ninguém
tem a menor idéia de que existe um conjunto, e esse conjunto, às
vezes, não pode atender a todo mundo. Ainda, as pessoas reivin-
dicam coisas urgentı́ssimas, e coisas perfeitamente fúteis, com o
mesmo vigor, com a mesma ênfase. Assim, temos situações onde
o indivı́duo que está no hospital do INAMPS, e reivindica o san-
gue que precisa, e o hospital não tem, enquanto o juiz federal que
ganha, apenas, 50 milhões por mês, e que vê o funcionário equiva-
lente ganhando 65 milhões, está igualmente revoltado, e reivindica
nos mesmos termos: “Isso é uma injustiça! É intolerável!”. Isso é
totalmente desproporcional.
Todo ser humano tem direito a isso ou aquilo, e o pai tem o di-

117
4 Preleção IV

reito de não dar para a criança o que ele não tem. Portanto, ficou
tudo na esfera puramente verbal. Essa estória de reivindicação
pode até acabar descambando para a hipocrisia. Um hipócrita é
um sujeito que se coloca deveres morais que estão acima da capa-
cidade dele. Assim, ele não pode atender ao seu próprio padrão
moral elevado, vive abaixo do padrão, vive se condenando, e ao
mesmo tempo, tendo que se esconder. Ele é um para se mostrar,
e outro para dentro. Naturalmente ele tem um complexo de in-
ferioridade enorme, e para compensar isto, ele terá que encontrar
uma série de procedimentos mais ou menos rituais, compulsivos e
completamente malucos. É um sistema adaptativo muito compli-
cado o relacionamento neurótico. O neurótico é o sujeito que vive
em bases muito complicadas. A relação dele com todas as coi-
sas é indireta, simbólica, cheia de mediações. É um código muito
complexo, e a regra do jogo também é muito complexa.
Quanto mais você exige da sociedade o que ela não pode dar, ou
seja, cada nova lei que proclama mais um novo direito para mim,
é um crime, porque a lei já consagrou muito mais direitos do que
a sociedade brasileira pode atender. Se ela não pode atender, por
quê a lei?
Isso aı́ é só uma das manifestações dessa patologia intelectual.
Eu não vejo esperança de melhora para a sociedade brasileira en-
quanto não houver uma espécie de saneamento da nossa vida in-
telectual; enquanto ela não começar a enxergar claro. Sempre que
existe um debate público, sobre qualquer coisa, é seguro que os
termos reais que aquilo se coloca nunca aparecerão.
Com relação a essa visão do real como um pastiche, onde está
tudo misturado com tudo, não é preciso dizer que as pessoas que
não conseguem enxergar essas distinções reais e que, não obs-
tante, são obrigadas a estudar determinadas ciências, e sentem o
mundo da Ciência como opressivo, quando aparece uma coisa cha-
mada holismo, elas sentem um verdadeiro alı́vio. O holismo é a

118
4 Preleção IV

justificação cientı́fica dos pastiches. O que adianta você ensinar


Ciência se antes você não ensinou o indivı́duo a perceber que as
coisas, os eventos, têm conexões necessárias, e têm conexões que
são fortuitas. Ou seja, se você não ordenou a própria visão do
mundo da experiência, se esse indivı́duo chegou à idade adulta
ainda com uma visão infantil, fantasmagórica, do real, você não
conseguirá enfiar Ciência na cabeça de um botocudo para que dê
certo. O problema todo fica colocado numa fase da educação que
está entre o primário e a universidade, que seria a faixa onde de-
veria entrar tudo isso.
Assim, este texto do Husserl, se for bem estudado, ele irá ar-
rancar essas coisas das suas cabeças, ele vacinará você contra essa
sensação de caos e, sobretudo, fundamentar, fazer uma espécie de
experiência do que pode ser um conhecimento firme. De pronto,
ele parte da idéia de que as Ciências, ou têm as denominações, as
suas definições separadas, de acordo com as divisões do real, que
o próprio real impõe, ou então elas não valem de nada, não são
Ciências absolutamente. Isto, ele não vai demonstrar neste livro,
pois não é assunto deste livro. Ele está partindo disto como um
premissa, então, ele não vai mais se explicar a esse respeito.
Então, entenderam o que Husserl quer dizer com “esfera ob-
jetivamente cerrada”? Existem uma definições que valem entre
objetos, mas que não se referem a princı́pios diferentes do conhe-
cimento desse objetivo. Por exemplo, pode existir uma ciência dos
animais, mas não pode existir uma ciência dos leões. Não pode
porque ela seria exatamente igual à ciência dos leopardos, ou à
ciências das onças, etc. Só muda o denominação do objeto. É, fun-
damentalmente, a mesma ciência, que usa os mesmos princı́pios,
os mesmos métodos, apenas aplicam a objetos diferentes. Não
são objetos genericamente diferentes, nem especificamente dife-
rentes. É uma diferença de um indivı́duo para outro indivı́duo. Eu
não posso estudar os leões com os mesmos princı́pios que eu es-

119
4 Preleção IV

tudo as leis de mercado, ou que eu estudo os oceanos. Entretanto,


eu posso estudar os leões com os mesmos princı́pios que eu estudo
os leopardos. É um conteúdo diferente, da mesma ciência, só que
aplicado a um outro objeto, da mesma ciência. Ou seja, os leões
não estão conectados entre si com um sistema de lei diferente da-
quele que conecta os leopardos ou as onças. Enfim, os leões não
constituem uma esfera objetivamente cerrada.
A esfera de uma ciência é uma unidade objetivamente cerrada.
O reino da verdade divide-se, objetivamente, em distintas esferas;
as investigações devem orientar-se e coordenar-se em ciências, em
conformidade com essas unidades objetivas.
Ou seja, essas unidades objetivas estão dadas no real. Elas, às
vezes, não são evidentes à primeira vista. No mundo concreto,
no mundo da experiência, as várias esferas de conexão aparecem
misturadas sempre, e isso mesmo é a definição do concreto. Nós
é que temos que, gradativamente, perceber como esses vários gru-
pos de conexões se distinguem. A medida que descobrimos no-
vas diferenças ou novas relações entre grupos de conexões, esta-
remos aperfeiçoando o edifı́cio da Ciência para que o campo da
Ciência se torne mais completo e ao mesmo tempo mais distinto.
Por isso ele diz que a definição de Ciência vai variando segundo a
sua evolução.
Pois bem: quando um grupo de conhecimentos e problemas se
impõe como grupo coerente e leva à constituição de uma ciência,
a inadequação de sua delimitação pode consistir meramente em
que se conceba a princı́pio a sua esfera de um modo demasiado
estreito, em relação ao dado, e que as concatenações dos nexos
fundamentais ultrapassem a esfera considerada e se concentrem
numa unidade sistemática mais ampla.
Isto quer dizer que uma ciência se constitui estudando um grupo
de fenômenos, mas pode acontecer que entre esse grupo, e um
outro que está ao lado não haja, fundamentalmente, distinção al-

120
4 Preleção IV

guma. Então você acaba percebendo que aquilo também faz parte
da sua ciência.
Husserl diz que isso não é um problema, ao contrário, você ape-
nas amplia o campo da ciência. Por exemplo, no caso da Zoologia,
é evidente que ela se desenvolveu estudando uma fauna européia.
Só que existem outras espécies de animais, totalmente diferentes,
que você nunca ouviu falar, e que representam desenvolvimen-
tos que seriam inesperados em face daquelas espécies de animais
que você já conhece. Ou seja, espécies de animais que seguiram
uma outra linha de evolução, diferentes das espécies que você já
conhece. Isto não quer dizer que eles devam ser objeto de outra
ciência, porque essas diferentes linhas de evolução que levaram
à constituição dessas outras espécies, são baseadas nos mesmos
princı́pios que fundaram a evolução das espécies conhecidas. As-
sim, a estreiteza do campo não é um problema.
Incomparavelmente mais perigosa é a confusão de esferas,
a mescla do heterogêneo numa presumida unidade, sobretudo
quando radica numa interpretação completamente falsa dos obje-
tos.
Podemos citar o exemplo de mesclas heterogêneas numa pre-
sumı́vel unidade. Se vocês olharem qualquer mapa do mundo,
anterior aos grandes descobrimentos, vocês verão demarcados a
Europa, a Ásia, um pedaço da África, em volta deles um monte
de água, e para além disso, a zona dos monstros marinhos. Isto
quer dizer que a Geografia da Idade Média estudava também os
monstros marinhos. Para que uma ciência possa dizer se para lá
de um certo limite geográfico existem monstros marinhos ou não,
ela poderia utilizar os métodos da Geografia? Com o método da
Geografia podemos delimitar se um determinado ser é monstruoso
ou é normal? É impossı́vel saber disso por meio da Geografia.
Assim, quando a Geografia fala de “zona de monstros ma-
rinhos”, ela está colocando, dentro do seu objeto, uma ordem

121
4 Preleção IV

considerações que lhe é totalmente estranha. Quando isso acon-


tece, fica muito difı́cil você desmentir o erro porque como a
própria ciência não dá critérios para você decidir a questão, a fal-
sidade daquilo não pode ser averiguada pela própria ciência que
está tratando do assunto. Então, a mentira se propaga.
É o que acontece em Astrologia, se um astrólogo lê o mapa
das suas reencarnações passadas ou futuras. A existência ou não
da reencarnação é assunto astrológico? Como poderı́amos decidir
essa questão por meio da Astrologia? Essas são tı́picas mesclas
heterogêneas de uma unidade presumida. Outro exemplo: quando
um astrólogo, baseado no seu mapa, diz que você é conservador
progressista. A própria definição do que seja conservador progres-
sista escapa totalmente dos conceitos astrológicos.
A Antropologia pode dizer se uma raça é superior ou não? O ra-
cismo, ou o anti-racismo, pode ser fundamentado? Saber se alguns
homens são superiores a outros é um problema antropológico? A
ciência que estuda a variedade das culturas das espécies humanas
não é a mesma ciência que gradua as qualidades humanas. Um in-
divı́duo pode ser superior a outro sob determinado ponto-de-vista,
por exemplo, moral, ético, etc. Assim, você precisaria recorrer a
uma outra ciência para resolver essa questão. Acontece que essa
ciência não existe. Não existe uma ciência que estuda a superiori-
dade de um ser humano sobre o outro, sob todos os pontos-de-vista
ao mesmo tempo. A Ética pode dizer que um sujeito é melhor que
o outro. Mas, ela pode dizer se um indivı́duo é mais bonito que o
outro? Ou mais forte? Não pode. A clı́nica médica pode dizer se
um indivı́duo tem mais saúde que o outro, mas ela pode dizer se
um indivı́duo é, moralmente, melhor que o outro? Todas as supe-
rioridades e inferioridades conhecidas são especı́ficas. Não existe
a ciência da superioridade geral.
Portanto, isso não é objeto de conhecimento humano. Sendo as-
sim, como é que a Antropologia pode discutir sobre isso? Quando

122
4 Preleção IV

você diz que uma raça é melhor que a outra, você está falando me-
lhor em termos gerais, e não nesse ou naquele ponto. Se assim
fosse, é evidente que uma raça é melhor do que a outra sob certos
aspectos, e pior sob outros aspectos. Entretanto, quando se fala de
uma superioridade geral, a pergunta é: o quê determina essa supe-
rioridade geral? Qual é a ciência que estuda isso? Nenhuma. No
caso, a Antropologia açambarca um objeto que não é, nem da sua
área, e nem de qualquer outra. Qualquer debate sobre isso não vai
dar em nada.
Que um ideólogo discuta sobre isso, tudo bem. Mas um cien-
tista, perder um minuto discutindo sobre isso, é um absurdo. Isso
não é matéria cientı́fica. Ademais, a pergunta “existe uma raça su-
perior?”, é intrinsecamente contraditória, porque uma raça é uma
diferença especı́fica, e não geral. Existe alguma superioridade ge-
ral que possa ser devida a uma diferença especı́fica? Claro que
não! Se existe uma diferença de tipos humanos, só pode haver
uma superioridade — ou inferioridade — que esteja vinculada a
essa diferença mesma. Portanto, jamais poderá ser geral. Entre
seres da mesma espécie, onde há tipos diferentes, jamais poderá
haver uma superioridade geral, sob todos os aspectos.
Isto é o que Husserl quer dizer com “a confusão de esferas”, que
pode chegar ao ponto de uma ciência tomar a seu encargo uma de-
terminada questão que somente poderá ser resolvida pelo saber
universal. Pode acontecer, em outros casos, da ciência simples-
mente tomar a seu encargo um saber que depende de uma outra
ciência, porque se referem a objetos que estão conectados entre
si, por um tipo de nexo, que não aquele que une os objetos dessa
ciência. Isso é metásbases exalogüenos, ou seja, transposição para
um outro gênero. você está falando de um gênero de coisas e,
repentinamente, sem que você perceba você está falando de um
outro gênero de coisas, por exemplo, como no caso da Geografia
da Idade Média, quando ela fala de caracterı́sticas geográficas e,

123
4 Preleção IV

de repente, ela está falando de monstros marinhos.


Uma transposição para um outro gênero, assim inadvertida,
pode ter os efeitos mais nocivos: fixação de objetivos falsos; em-
prego de métodos incomensuráveis com os objetos, confusão de
camadas lógicas, de modo que as proposições e as teorias funda-
mentais, ocultas sob os disfarces mais singulares, vão perder-se
entre séries de idéias completamente estranhas, como fatores apa-
rentemente secundários, ou conseqüências incidentais.
Em todos os debates cientı́ficos, não-decididos, sempre existe
uma coisa desse tipo. Um dos exemplos seria os debates em torno
de condições de evolução. Existe uma evolução animal no tempo,
de modo que as espécies mais aptas vão se substituindo às espécies
mais inaptas. Aptas, em relação a adaptar-se a aquele ambiente em
particular. Acontece que a adaptação ao ambiente em particular
pode ser inadaptação com outro ambiente em particular. Como o
ambiente ao qual uma determinada espécie se adaptou, mediante
tais ou quais alterações, pode, amanhã, ser novamente alterado.
Isso significa que a sobrevivência do mais apto, como lei geral é
também auto-contraditória.
Não existe a aptidão geral. Só existe aptidão especı́fica para isso
ou aquilo, portanto, a sobrevivência do mais apto jamais poderia
ser uma lei geral para explicar todos os casos. Por exemplo, os
peixes são muito mais aptos para viver embaixo dágua do que os
seres humanos. Isso significa que quando a água secar o peixe
morre, a não ser que ele se adapte a uma vida fora dágua. Isso, de
fato, aconteceu em certas regiões da Terra, onde secas prolonga-
das acabaram fazendo com que certos peixes se adaptassem para
ficarem fora dágua por muito tempo. Existe até uma ilha onde
os peixes a atravessam pulando fora dágua. Para que isso ocor-
resse, os peixes tiveram que perder uma série de capacidades, e se
tornaram monstruosamente feios. Entretanto, a adaptação a essa
circunstância em particular facilita a sua evolução posterior, ou,

124
4 Preleção IV

ao contrário? A espécie teve que se transformar tanto que, para se


adaptar a uma determinada circunstância, que depois ela não pode
se adaptar mais à seguinte, porque senão ela morre. Se fosse as-
sim, você vê que a circunstância, o clima, a vegetação, etc., que a
Terra já passou por tantas alterações, que ficaria quase impossı́vel
a sobrevivência de quase todas as espécies.
Portanto, podemos dizer que o princı́pio de sobrevivência dos
mais aptos pode funcionar em certos casos, mas ele não pode ser
um princı́pio explicativo geral. Quem diz que em determinadas
circunstâncias os inaptos não podem ser favorecidos por qualquer
coisa? Existe uma evolução no sentido da complexidade crescente
dos organismos, mas essa evolução, resultar do princı́pio da so-
brevivência do mais apto, isso é quase impossı́vel. A idéia de que
determinados fatos da natureza, ou seja, o fato de que uma de-
terminada espécie sofreu certas alterações no curso do tempo, faz
explicar que se recorre a um princı́pio geral, na verdade, vai com-
plicar tudo formidavelmente. Talvez fosse mais fácil apelar a uns
dez ou quinze princı́pios explicativos diferentes do que a um só.
A grande ambição de Darwin foi oferecer uma explicação para
todas as transformações sofridas por todas as espécies ao longo
de todos os tempos. É uma teoria tão grande, tão ambiciosa, que
jamais poderá ser comprovada, nem desmentida, como aliás o é
até hoje.
Assim, quem disse que a ciência da Biologia, considerada em
si mesma, poderia fornecer explicação para a transformação so-
frida por todas as espécies de animais? A fauna terrestre, no seu
todo, não está só submetida às variações climáticas, geográficas,
locais, mas às condições do planeta como um todo. Portanto, você
pode procurar explicação terrestre enquanto queira. Ou você vai
ter que considerar o sistema solar como um todo, ou não vai achar
explicação alguma. Portanto, não faz parte da Biologia terrestre,
o dever de explicar a evolução terrestre como um todo. Isso é

125
4 Preleção IV

uma metásbases exalogüenos. Isso é um problema de Biologia


cósmica, e não de Biologia terrestre. A entrada de um asteróide
na órbita do nosso planeta pode provocar tais alterações que mate
milhares de espécies animais de uma vez só. Isso significa que
essas espécies estavam inadaptadas? O quê adiantaria se adaptar
a um acontecimento fortuito? Se elas se adaptassem a essa breve
alteração estariam adaptadas para sempre.
A Biologia terrestre só pode explicar os fatos dentro dos âmbitos
terrestres. É claro que você não poderia explicar as transformações
biológicas sem apelar às transformações geofı́sicas, geológicas,
climáticas, etc. Mas, isso é Biologia? Nem existe essa ciência
ainda. É muito complicado. É querer dar um pulo maior que as
pernas. Quando alguém levanta uma pergunta enorme como essa,
ele só irá encontrar uma resposta metafı́sica. A teoria da evolução
é uma teoria cosmológica. Depende de toda uma cosmologia. Por
quê o próprio Darwin não percebeu que a pergunta era insolúvel?
Talvez porque lhe faltassem dados para ele perceber que a questão
era maior do que ele imaginava. Talvez por ele olhar tudo com
olhos de biólogo.
Naquela época não haviam viagens espaciais, as pessoas não
tinham o hábito de pensar a Terra colocada dentro de um sis-
tema, embora soubessem disso. A imaginação de Darwin era a
terrestre, então, a idéia de um conjunto, parecia sensato naquela
época. Hoje, é insensato. Hoje, temos uma consciência de ecolo-
gia cósmica. Teilhard de Chardin já percebera que a idéia de uma
evolução terrestre pressupunha uma evolução cósmica. Darwin,
nem de longe havia pensado nisso. Com isso ele resolveu a per-
gunta? Não, ele só ampliou a pergunta.
Assim, esclarecer a teoria da evolução em termos biológicos é
fixar um objetivo falso. A Biologia não tem obrigação disso. Nem
pode fazê-lo.
Estes perigos são mais consideráveis nas ciências filosóficas do

126
4 Preleção IV

que nas ciências da natureza exterior, nas quais, o curso de nossas


experiência nos impõe divisões nas quais é possı́vel organizar ao
menos provisoriamente uma investigação frutı́fera.
Vejam que, embora a Biologia tenha colocado um obje-
tivo falso, ainda assim é possı́vel você continuar procedendo a
investigações parciais sobre isso ou aquilo sem grandes danos. O
fato da Biologia não poder resolver a questão da evolução como
um todo não impede que você possa reconstituir a evolução de
uma determinada espécie em particular. Ou seja, ainda que no fim
a investigação toda vá tomar um rumo completamente diferente,
aquele pedacinho investigado continua válido dentro dos seus li-
mites. Isto porque a investigação que toma por base o mundo real,
este mundo real nos impõe divisões. Por mais que a resolução da
questão da evolução dependa de considerações de ordem da Eco-
logia cósmica eu posso, por exemplo, reconstituir a evolução da
espécie cavalo porque o cavalo tem certas analogias com os outros
esqueletos de cavalos de outras épocas, e isso é suficientemente
distinto do esqueleto dos tubarões ou dos elefantes. É uma divisão
que o próprio real nos impõe.
Nas ciências da natureza, às vezes, as divisões dos seres estão
tão claras que não há possibilidade de confusão. Porém, nas
ciências filosóficas isso não acontece. Não há experiências para
você verificar. Mesmo as investigações parciais dependem da
orientação do conjunto para serem bem sucedidas. Portanto, aqui
é preciso mais cuidado ainda. E, no caso, a Lógica é uma ciência
filosófica.
3. As questões discutidas. O caminho a empreender.
As questões discutidas tradicionalmente em relação à
delimitação da lógica são:
1. Se é uma disciplina teorética ou prática.
2. Se é uma ciência independente ou subordinada.

127
4 Preleção IV

3. Se é uma disciplina formal ou considera também uma


“matéria”.
4. Se é a priori e demonstrativa ou empı́rica (a posteriori) e
indutiva.
Propriamente só há dois partidos: a lógica é uma disciplina
teorética, independente, formal e demonstrativa; ou é uma tecno-
logia que depende da psicologia.
Que diferença faz a Lógica ser uma disciplina teórica ou ser
prática? Independente ou subordinada? Formal ou material? A
priori ou a posteriori, isto é, demonstrativa ou empı́rica? Qual a
importância disto?
[ Olavo faz uma parada nos comentários para discorrer sobre a
inteligência humana. ]
A inteligência humana não se divide. Não existe inteligência
especı́fica. Só existe geral. Se o sujeito é burro em alguma coisa, é
burro em tudo. Qualquer burrice especı́fica que você tenha é uma
deficiência geral. Se você diz que tem uma incapacidade para a
Matemática, eu digo que essa sua incapacidade lesará, por exem-
plo, a sua capacidade narrativa.
O máximo que você pode admitir é que você tem um desenvol-
vimento desigual nos diferentes setores. Você não pode consentir
com uma incapacidade intelectual para nada. Os diferentes tipos
de objeto não existem separadamente uns dos outros. Uma inca-
pacidade intelectual especı́fica lesa um pouco todas as outras ca-
pacidades. O que você pode é aproveitar essa melhor capacidade
de um objeto para desenvolver a capacidade que você não tem.
Você tem que ser capaz em tudo, embora você não tenha igual
interesse por tudo. Você não precisa desenvolver realmente, mas
você tem que sentir que tem a capacidade de desenvolver o que
você quiser. Por exemplo, o exercı́cio de você expor o que você
pensa sobre um assunto que você ignora completamente. Se você

128
4 Preleção IV

pensar realmente, se você fizer uma cadeia dedutiva, partindo do


pouco que você tem, você vê que, sempre o que você falar, pode
estar deslocado em relação aos dados reais, mas manifesta um con-
junto de possibilidades que é sensato. Só quando você tem isso é
que você pode compreender os dados reais. A prática é baseada
nisso. Porém, as pessoas não fazem isso reflexivamente, e não
entendem que isso é uma lei universal.
Um assunto qualquer, no qual você não tenha uma conjectura
razoável, você nunca vai chegar a entender a realidade dele. Isto
porque a imaginação precede o raciocı́nio, então se você não pre-
para a imaginação para aquilo, você não chega a compreender a
significação dos dados para o entendimento.
O procedimento cientı́fico é você constituir toda a hipótese na
sua cabeça, e quando você pega os dados reais, é só você tirar isso,
ajustar aquilo, e pronto. Na verdade, a explicação da produção do
fato seria muito mais breve do que o imaginado. Se você pensar
sobre qualquer assunto que você desconhece, em primeiro lugar
você vai ver que você conhece muito mais do que você imaginava,
e em segundo lugar você vai ver que a imaginação abre um oco
para o conhecimento entrar, senão o conhecimento desliza no va-
zio e se perde. É como comer sem fome.

129
5 Preleção V
17 de dezembro de 1992

[ continuação dos comentários da aula anterior sobre o


3 do texto. ]
Por quê umas pessoas tomam partido de uma dessas questões, e
outras tomam de outra? Em nome de quê e com que fins? O quê
é uma ciência teorética, e o quê é uma ciência prática? O quê faz
uma disciplina teorética? Qual a finalidade dela?
Exemplo de uma proposição teorética: “Esta parede é branca”.
A proposição teorética fala de alguma coisa sobre a realidade. A
forma da proposição teorética é, “Isto é aquilo”, ou, “Tal coisa
acontece”. A proposição prática é condicional: “Para obter tal
efeito, você faça assim”.
A mesma proposição pode ser dita sob forma teorética ou
prática, por exemplo, “O quadrado da hipotenusa é igual à soma
dos quadrados dos catetos” (proposição teorética); “Para obter
o quadrado da hipotenusa, somam-se os quadrados dos catetos”
(proposição prática).
Uma ciência prática enuncia uma regra. Ela não faz uma
proposição sobre a realidade. Uma ciência teorética se expressa
em proposições categóricas, e para uma ciência prática todos os
juı́zos dela são condicionados, são hipotéticos. Por exemplo, num
manual de televisão podem haver alguns juı́zos teoréticos: a TV
é assim, tem isso, foi feita na época tal, etc. As instruções são os
juı́zos práticos: “Se você quiser ligar a TV, faça isso”, “Se quiser

130
5 Preleção V

ajustar a cor, gire o botão”, etc. Isso não é uma afirmativa sobre a
realidade, isso é um juı́zo hipotético, condicional.
É muito grave que um indivı́duo que tenha formação univer-
sitária não saiba o que é ciência teorética e ciência prática. Um
diagnóstico médico é teorético: “Você tem tal doença”. A te-
rapêutica, a prescrição médica, é prática: “Se você quiser se curar,
tome o remédio tal”.
Existem ciências práticas, inteiras, que não são nada mais do
que a transcrição de uma ciência teorética para a fórmula hi-
potética, quando se trata de objetos de ação humana. A Geome-
tria não é só uma descrição das propriedades, mas a descrição de
operações possı́veis. Idem para a Matemática: 2 + 2 = 4 é igual a
você dizer que, para obter 4, some 2 + 2 — vira uma regra.
Entretanto, nem toda ciência prática é uma transcrição direta
de uma ciência teorética. Há algumas que saem de outras fontes.
Código de trânsito é um juı́zo prático porque ele não diz como o
trânsito é realmente, mas diz o que você deve fazer para obter uma
direção correta.
As pessoas geralmente pensam que qualquer coisa que se refira
à realidade é prático. O prático não se refere à realidade, mas à sua
ação. Numa coisa onde não há interferência do indivı́duo, não há
prática alguma. O teorético representa o que é, independente da
minha ação. As pessoas pensam que o que é teórico não se refere
à realidade, por exemplo, acham que dizer que o triângulo tem três
lados, é prático.
Vejam o que vocês estudaram na faculdade e digam o que é
teórico ou prático. Artes Dramáticas: se você estudasse todas
matérias teoréticas você saberia a Arte Dramática? E se estudasse
somente as matérias práticas? Em qual dos dois casos você saberia
mais? Qual é o objetivo do curso? A Escola de Artes Dramáticas
ensina, fundamentalmente, o que é alguma coisa, ou ela ensina a
fazer alguma coisa? No caso, aqui, predomina o aspecto prático.

131
5 Preleção V

Se você sai da Escola de Artes Dramáticas sabendo toda a história


do Teatro, mas não sabe fazer teatro, não adianta de nada.
Medicina: a ciência médica é, em si mesma, fundamentalmente
prática; Filosofia: é fundamentalmente teorética — ela fala o que
é; Biologia: é fundamentalmente teorética — nas suas finalida-
des; Economia: a Economia ensina a fazer o quê? Nada. O ob-
jetivo do curso se esgota no aspecto teorético. Se o sujeito sabe
como funciona a sociedade econômica, o que é a riqueza, o que
é dinheiro, o que é capitalismo, etc., então ele é um economista.
Engenharia: é prática. Se o indivı́duo sai da faculdade sabendo o
que é uma ponte, o que é uma máquina, mas não sabe fazê-los,
ele não é um engenheiro. Música: é prática. Você saber o que
é um instrumento, o que é uma música, mas não sabe como fun-
ciona, não faz de você um músico. Fı́sica: é teorética. Saber o
que é matéria, tempo, espaço, etc., faz de você um fı́sico. Socio-
logia: é teorética. Administração de Empresas: o sujeito tem que
sair de lá sabendo administrar uma empresa? Não. é uma ciência
teorética. Ele aprende como funciona uma empresa. A prática não
faz parte, não é fundamental para se saber de Administração de
Empresas. Ao encarar como parte real da vida do indivı́duo, tudo
vai ser prático.
Acontece que não é a Economia que é prática. Sou eu quem
tenho que ter uma ação prática para aprender Economia. O que
eu estou interessado aqui é no conteúdo da ciência, e não o que
eu possa fazer com ela. A Engenharia, por exemplo, é prática no
seu conteúdo. Ela ensina a fazer alguma coisa. Mesmo que você
nunca faça. Já a Fı́sica não ensina a fazer nada. O administrador de
empresas não precisa sair da faculdade sabendo administrar uma
empresa. Quando ele compreendeu a teoria toda, já será suficiente.
Administração de Empresas não vai ensinar você como adminis-
trar uma empresa, mas vai ensinar o que é uma empresa, como
funciona, etc. A prática de administração não é transmitida ver-

132
5 Preleção V

balmente. O aluno pode fazer um estágio para aprender como a


teoria se comporta na prática. A caracterı́stica da ciência prática é
que ela se expressa em proposições, em regras.
Geometria: é prática, “para obter tal coisa, faça assim”. Psico-
logia: é teorética. Psicanálise: é prática. Escola de Psicanálise
ensina a fazer análise. E o psicanalista que não sabe fazer análise,
não é psicanalista. No caso da Administração de Empresas, a
parte prática da matéria é quase intransmissı́vel. O sujeito tem
que aprender no dia-a-dia. Se é intransmissı́vel é porque não
há uma ciência prática correspondente. Nos casos onde o saber
prático é difuso, vago, cheio de possibilidades, aı́ temos um saber
teorético. No dia em que a Administração de Empresas, toda, pu-
der ser reduzida a uma série de esquemas formulados e, uma vez
seguidos, dê um resultado x, daı́ ela será uma ciência prática. A
Administração de Empresas suscita problemas porque ela tem um
objetivo prático, tem um ideal prático, mas ela fica sempre aquém
desse ideal. Ela quer se transformar numa ciência prática, só que
ainda não conseguiu, pois é uma ciência nova.
Assim, que diferença faz a Lógica ser uma ciência teorética
ou prática? Se ela fosse uma ciência teorética, que tipo de
proposições ela enunciaria? Que diferença faz o princı́pio de iden-
tidade ser teorético ou prático? Faz uma diferença brutal. Se você
diz que uma coisa é, efetivamente, igual a ela mesma, isso é uma
proposição teorética. Sendo A = A uma proposição teorética,
significa que você deve raciocinar como se uma coisa fosse igual
a ela mesma. É uma regra do raciocı́nio. Isso é uma proposição
prática.
Uma coisa é você afirmar a identidade de uma coisa com ela
mesma. Outra coisa é você dizer que, condução do raciocı́nio,
você deve proceder como se uma coisa fosse igual a ela mesma
e, portanto, jamais diferente. Existe também, um outro princı́pio
chamado de não-contradição, onde uma coisa não pode ser igual e

133
5 Preleção V

diferente de outra, ao mesmo tempo. No caso do princı́pio de iden-


tidade ser considerado teorético, ele é, por si mesmo, um princı́pio.
No caso dele ser considerado um princı́pio prático, ele é absorvido
no princı́pio de não-contradição. Ou seja, basta você raciocinar de
maneira não-contraditória, que o princı́pio estará atendido. Mas,
a Lógica tem condições de emitir proposições teoréticas? Ou ela
tem que se limitar a emitir regras práticas? Se você diz que tem
que atender às duas, você admitiu que ela é uma ciência teorética,
pois de toda ciência teorética você pode tirar uma ciência prática.
Entretanto, que conseqüências isso teria para a totalidade do
nosso conhecimento? Se eu raciocino logicamente, e o meu ra-
ciocı́nio lógico está fundado num saber teórico segundo o qual
uma coisa é igual a ela mesma, esse princı́pio de identidade fun-
damenta tudo o que eu disse para adiante. Se eu raciocino apenas
com base numa regra prática de não-contradição, esta regra prática
garante a coerência lógica do restante, mas não fundamenta. É
como se fosse tudo um vasto conjunto hipotético.
Não se pode confundir prático com empı́rico, com aplicável.
São questões completamente diferentes. Um conhecimento pode
ser prático, e a priori. As condições a priori não dependem da ex-
periência. É por indução que você faz geometria, ou seja, tirando
da prática, da experiência real, ou ao contrário, é a priori que você
sabe que há um triângulo retângulo, que o quadrado da hipotenusa
é igual à soma dos quadrados dos catetos? É a priori ou a posteri-
ori?
Uma ciência teorética diz que as coisas são realmente: um qua-
drado tem quatro lados realmente. Uma regra prática diria o se-
guinte: faça as contas como se o quadrado tivesse quatro lados.
Ou seja, uma ciência prática nada fala sobre a realidade, apenas
sobre o resultado possı́vel.
Assim, quando se começa a discutir a questão da Lógica, as al-
ternativas que se apresentam são sempre essas quatro citadas por

134
5 Preleção V

Husserl. Se você faz um raciocı́nio sobre um problema para sa-


ber o que aconteceu, para saber o que é, o problema é teorético.
Se é para saber o que você vai fazer, qual é a decisão a tomar, o
problema é prático. Entretanto, para você decidir o que vai fazer,
você precisa saber totalmente o que vai acontecer? Não. Mui-
tas decisões são tomadas, às vezes, precisamente porque você não
sabe nada. São duas fórmulas de raciocı́nio completamente dife-
rentes, embora haja uma relação entre elas.
Porém, se não sabemos se um determinado conhecimento é
teorético ou prático, nós simplesmente não sabemos como nos po-
sicionar diante dele. Não sabemos o que esperar dele. A prática
comprova a teoria, quando ela deriva da teoria. É o caso da Ge-
ometria, onde o saber prático é uma simples conversão do sa-
ber teórico, desde proposições categóricas, para proposições hi-
potéticas. Então, resultado prático confirma o teórico. Entretanto,
isso não vale para o caso de outros saberes.
Uma teoria pode ser falsa, mas não deixa de ser uma teoria. Se
eu digo que os gatos voam, isso é uma proposição teorética. Se
eu digo: “Para que os gatos voem, instalem neles um par de asas”,
isto é uma proposição prática — e ambas são falsas.
Somente a proposição teorética pode ser verdadeira ou falsa. A
prática nunca é verdadeira ou falsa. Ela pode ser correta ou in-
correta. Se ela é condicional, nada afirma sobre a realidade. Em
princı́pio, qualquer proposição da qual você possa dizer que ela
é verdadeira ou falsa, ela está colocada como teorética. Quando
uma prática qualquer deu errado, você investiga o por quê, pois
você está esperando uma resposta teórica. Quando a prática con-
firma a teoria? Quando o nexo entre o saber teorético e o saber
prático faz parte da própria teoria. Isso é muito importante. Por
exemplo, o motor a vapor foi construı́do cem anos antes de que se
soubesse por que ele funciona. Não havia teoria. No caso, a teoria
do sujeito estava completamente errada. Ele não tinha a teoria cor-

135
5 Preleção V

respondente. A maior parte dos inventos técnicos do mundo mo-


derno foram assim. Nós imaginamos que toda a técnica moderna
deriva da Ciência moderna. Vejam que todos os inventos feitos
pelos primeiros cientistas modernos — Galileu, Newton, etc. –,
as invenções das máquinas, todas elas eram apenas instrumentos
de observação cientı́fica. Instrumentos para facilitar a investigação
teorética. A única finalidade prática desses inventos eram facilitar
a própria Ciência teorética. Não havia nenhuma finalidade prática.
O saber é teorético ou prático em relação ao seu conteúdo, e não
ao seu possuidor.
Voltando ao texto, uma coisa é a Lógica como saber, que fala de
alguma coisa real. Outra coisa é a Lógica como técnica de fazer
alguma coisa. Segunda questão: a Lógica é uma Ciência indepen-
dente? Se você diz que a Lógica é uma ciência que estuda o pensa-
mento, então o conhecimento da Lógica depende do conhecimento
do que é pensamento. Assim, a Lógica dependeria da Psicologia.
Então ela não seria independente. Assim, que a Lógica faça parte
da Psicologia, é uma decorrência necessária de qualquer definição
da Lógica que implique a palavra pensar, ou, pensamento, mas se
nós disséssemos que a Lógica é a ciência que trata da coerência,
independentemente dos pensamentos terem sido pensados ou não.
Ou seja, independentemente de alguém ter pensado tal coisa ou
não, se pensar assim está coerente, e se pensar assado, está co-
erente. Isso depende de um conhecimento do pensamento real?
Não. Por exemplo, para você saber que uma conta de 2 + 2 seja
igual a 4, para você ter certeza de que essa conta está certa, e de
que o resultado 5 estaria errado, é preciso que você conheça o pro-
cesso psicológico pelo qual se pensa tudo isso? Não, porque senão
a Matemática seria um ramo da Psicologia. Ou seja, muito antes
que alguém se lembrasse de perguntar como é que nós pensamos,
muito antes de existir a Psicologia, já existia a Aritmética. Ela não
poderia existir se dependesse da Psicologia.

136
5 Preleção V

Porém, nesse segundo caso, a Lógica seria uma ciência in-


dependente? O quê é coerência? É a não-contradição? Basta
não ser contraditório para ser coerente? Duas proposições são
coerentes, não só quando elas se exigem mutuamente. Seria a
não- contradição e implicação da interdependência. Por exemplo,
quando você diz que todo homem é mortal, e Sócrates também é
homem, necessariamente ele será mortal. Isto é uma implicação
recı́proca. Você não pode afirmar as duas primeiras sentenças
sem que elas exijam a terceira sentença. Você não pode afirmar
a terceira sem que ela se baseie nas duas anteriores. Porém, a
não-contradição é a própria identidade, é uma maneira de expres-
sar a identidade. E o princı́pio de identidade é teorético, ou é
prático? Se você dissesse que ele é prático, o quê aconteceria com
a Lógica? Se você disser que o princı́pio de identidade é prático,
então ele é uma regra do bem-pensar, o qual, para ser aplicado, não
depende de mais nenhum outro conhecimento além dele mesmo.
Então, a Lógica seria uma ciência prática e independente.
E se você disser que o princı́pio de identidade é teorético? Uma
coisa é igual a ela mesma é uma afirmação sobre todas as coisas
reais, e sobre todas as coisas possı́veis. Isto não é uma afirmação
de ordem metafı́sica ou ontológica? Nesse caso, a Lógica é depen-
dente de uma ciência metafı́sica.
Assim, nós temos a primeira alternativa: teorética e prática. E
temos a segunda alternativa: dependente e independente. No caso
da dependência, nós temos duas dependências fundamentais: de-
pendência da Psicologia, ou da Metafı́sica. Se eu digo: a Lógica
é uma ciência da coerência entre as verdades, então ela é uma
ciência teorética, fundada na Metafı́sica. Esta questão decide o
destino do mundo há séculos. Todas as posições que as pessoas to-
mam em função de quaisquer problemas estão determinadas numa
decisão prévia a respeito deste ponto. E a posição que você tomar
com relação a este ponto determinará o restante do seu pensamento

137
5 Preleção V

pelo resto da sua vida. Isto será grave se para você os seus pensa-
mentos são importantes. Se eles forem irrelevantes, então não tem
importância alguma. Por exemplo, o sujeito que vive inteiramente
segundo os hábitos do seu mundo, do seu centro de referência.
Claro que ele também tem opiniões, mas ele jamais age segundo a
opinião dele. Então, a opinião dele é irrelevante. Ou seja, a quase
totalidade da humanidade não decide coisa alguma jamais. Não
precisa decidir. Já decidiram por ele. Assim, ele pode ter qualquer
opinião. Pode achar que a Lógica é teorética ou é prática, ou que
o quadrado é redondo, tanto faz.
As opiniões são importantes quando o indivı́duo lhes dá im-
portância prática. Se a sua opinião não é ouvida por ninguém,
nem mesmo por você, então você pode ter qualquer opinião. A
diferença, na escala dos seres humanos, entre os inferiores e os su-
periores, é esta. O homem inferior é aquele cuja opinião, cujo pen-
samento, é irrelevante para ele mesmo. Embora ele goste da sua
opinião, ele pode até defendê-la, mas ele não pretende realmente
agir segundo aquilo que ele pensa em nenhum momento. Ele pre-
tende, às vezes, usar o pensamento como uma espécie de disfarce
para justificar, a posteriori, aquilo que ele já fez. Ou seja, o pen-
samento não tem utilidade nenhum para essa pessoa, é colocado
nela como se fosse um luxo. Talvez, se colocasse um disquete e
computador nessa pessoa ela funcionasse melhor.
Vejam, por exemplo, que a Terra está passando agora por um
processo de modernização da economia, ou seja, implantar o
capitalismo de modo global. Não pode haver capitalismo sem
que haja condições sociais e culturais que permitam o capita-
lismo. Isto quer dizer que muito antes de você introduzir as
modificações econômicas que produzirão esse capitalismo mo-
derno, você começa a introduzir as modificações culturais e psi-
cológicas para isso. Existem órgãos internacionais que estudam
isso, e que planejam a mudança de mentalidade das nações sub-

138
5 Preleção V

desenvolvidas para que ingressem no capitalismo. Isso significa


você suprimir determinados valores, e colocar outros. Portanto,
mudar a conduta, os sentimentos, a imaginação, os sonhos, o sub-
consciente das pessoas. Isto é planejado por cientistas sociais, e
não nos interessa julgar se isto é bom ou não, mas o fato é que
estão fazendo. O que importa é: você tem interesse real em saber
quando uma mudança de opinião, de gosto, sua, foi planejada so-
cialmente ou aconteceu espontaneamente? Como que um hábito
que antes era considerado negativo, de repente, entra no universo
de uma pessoa? É uma mudança radical, porém não percebida.
Por isso é que a maior parte das pessoas não tem, propriamente,
gostos pessoais. Não tem nenhum conteúdo pessoal. Tudo vem
de fora. Há alguns sujeitos que se identificam com aquilo, no mo-
mento, e se você o contraria, ele se sente ofendido no seu ı́ntimo.
Você violou a liberdade dele. Isto é um processo que acontece
dentro de nós, diariamente. Assim, eu não gostava de uma coisa
e amanheci gostando. Eu não tolerava tal coisa e, de repente, eu
não ligo mais. Por quê mudou isso em mim? Foi uma livre esco-
lha? Eu pensei, meditei, ou fui arrastado por uma onda de imagens
que vem da sociedade? E essa onda de imagens, ela é um produto
espontâneo da convivência social, ou foi planejada num escritório
em Nova Iorque? E no caso de eu perceber que foi planejada, eu
concordo com esse planejamento ou não? Eu tenho condição de
escolha?
O Brasil todo está passando por este tipo de transformação, e
as pessoas, inclusive letradas, entram nessa corrente sem perceber
que estão sendo levadas. Portanto, jamais se posicionam conscien-
temente. Não estou dizendo que é para combater, para contestar.
Eu, pessoalmente, sou a favor desta transformação, mas você sabe
se você é? Você poderia ser contra!
Para o indivı́duo que amanhece gostando do que ele não gos-
tava, sem perceber, as idéias dele não têm importância alguma.

139
5 Preleção V

O seu pensamento, tudo o que você pensa, é baseado apenas num


conjunto de regras, numa técnica mental, mais ou menos arbitrária,
mais ou menos convencional, ou, ao contrário, expressa uma re-
alidade? Você é um computador que pensa segundo regras ar-
bitrárias, ou você é um ser livre, pensante, auto-consciente, capaz
de captar as verdades? Para mim, este é o problema máximo. Eu
não gosto de pensar nada, não gosto de gostar de nada, sem que
eu possa dizer: fi-lo porque qui-lo. Eu quero ser um sujeito livre e
responsável pelas minhas ações, e saber que fui eu quem fez. Não
gosto de ser manipulado pelas costas. Mesmo porque, você pode
acabar pagando pelo erro dos outros.
A sociedade não é tão maligna assim que te impeça de saber de
tudo isso. Ela deixa você saber dessas coisas, por exemplo, através
de livros publicados. No entanto, que uma massa de pessoas mais
ordenadas, um pouco mais conscientes, de pessoas trabalhadoras,
não queira saber disso, dá para entender. Que as pessoas que têm
um certo peso, uma certa autoridade, por exemplo, chefes de pe-
quenas empresas, também não queiram saber disso, já começa a
ficar ruim, mas ainda é tolerável. Mas, que a intelectualidade não
queira saber disso, aı́ já é demência! Não é possı́vel que um paı́s
seja inteiramente determinado desde fora na sua vida mental, na
sua vida ı́ntima. É uma nação que não existe. É um sem-caráter
total, teleguiado completo. Por exemplo, aqui, quando um intelec-
tual resolve levantar e defender as reivindicações do movimento
negro, do movimento gay, das crianças de rua, etc., ele acha que
está exercendo a sua liberdade criativa, se posicionando contra
uma sociedade que o oprime. Ele não está não. Ele está obe-
decendo a um programa.
Urge, para certos organismos multinacionais, trocar todo o re-
pertório de idéias da nação brasileira, da classe letrada brasileira,
mudar toda a temática, em uma década, e está mudando com uma
facilidade impressionante. É muito importante que certos valo-

140
5 Preleção V

res tı́picos de sociedades protestantes sejam assimilados no con-


texto católico brasileiro. E isto está sendo feito. É muito impor-
tante criar uma sociedade individualista e reivindicante, onde to-
dos os grupos estejam contra todos. Isto porque o grande inimigo
das multinacionais chama-se Estado, Unidade Nacional. Precisam
acabar com isto, no entender delas. Não estou contra elas, pois
acho que a luta é um processo inevitável.
Assim, tem que haver uma situação onde ninguém possa falar
em nome do paı́s como um todo. Você não acha estranho que os
meninos de rua façam um movimento de reivindicação no mesmo
plano que, por exemplo, os juizes federais fazem movimentos de
reivindicação porque se sentem injustiçados, porque eles ganham
apenas 50 milhões de cruzeiros por mês, e o funcionário equiva-
lente ganha 65 milhões? E você ouve o menino de rua falando, e
ouve o juiz federal falando. Estão os dois igualmente indignados
com a injustiça. você acha que isso acontece naturalmente? Você
acha que isso seria possı́vel, no Brasil, a uns quinze anos atrás?
Uma greve de altos funcionários?! Não aconteceria jamais. Qual-
quer um teria vergonha de fazer isso. Hoje ninguém tem — por
quê? Porque reivindicar é bonito, é um dever que qualquer um
tem.
São transformações desse tipo, que acontecem tão lentamente,
que você nem percebe. Às vezes esses planejamentos são feitos
com cinqüenta anos de antecedência, e vão sendo corrigidos o
tempo todo. Vocês têm idéia de quanto os Estados Unidos inves-
tem em educação superior para criar técnicas para obter isso? São
muitas pessoas envolvidas. Vejam, por exemplo, como a esquerda
brasileira assimilou rapidamente o discurso contra a corrupção. A
nossa esquerda sempre foi, tradicionalmente alheia ao nosso pro-
blema da corrupção. Corrupção era assunto da direita, da UDN.
E a esquerda, naturalmente, achando o capitalismo uma coisa cor-
rupta em si mesma, não podia achar que o combate a caso isolados

141
5 Preleção V

de corrupção fosse uma coisa importante. Vejam que em menos


de três anos a esquerda inteira apareceu com a bandeira contra a
corrupção. Ninguém discutiu se isso era importante ou não. Como
se faz isso?
Não estou dizendo que isso seja errado, mas é errado quando a
classe letrada engole as coisas sem examinar. Como que a menta-
lidade do movimento operário foi passando para as outras classes
sociais? Hoje em dia reivindica-se tudo. Quando você entra no
mecanismo da reivindicação, você já está perdido. Você aceitou
a regra do jogo. Você se proletarizou voluntariamente. Você fez
do outro o seu patrão. Por exemplo, pedir aumento, para mim é
um absurdo. Eu teria vergonha. Se for o caso de pedir aumento,
eu prefiro pedir demissão. Se o sujeito não está pagando o que é
justo, o que é digno, e eu estou sendo aviltado, eu não vou recla-
mar. Nós reclamamos com uma pessoa que tem espı́rito de justiça.
Com ladrão não se reclama nada. Você convive com o ladrão e
ainda quer que ele compreenda o seu problema?! Mas, isso, penso
eu.
O jornalismo é considerado profissão liberal. E, profissional li-
beral não recebe salário, recebe honorários, pagamento honorı́fico.
Se o sujeito, tendo muito, me paga pouco, ele não está me explo-
rando, ele está me desonrando. Com exploração de mão-de-obra
você faz uma greve e o sujeito te paga mais — você negocia. No
entanto, você negocia com quem te ofende a tua honra? Não! Se
ele está me desonrando, no mı́nimo, você parte para um duelo.
Porém, dessa proletarização da classe média, quem não re-
clama? Começaram a reclamar na hora que essa proletarização
começou a doer no bolso. Porém, antes dela atingir o seu bolso,
ela já tinha atingido a alma! As pessoas estavam indefesas contra
a proletarização porque já tinham mentalidade de proletários. Pri-
meiro você adquire uma mentalidade de proletário, depois é que
você reclama que se proletarizou.

142
5 Preleção V

Assim, isso são transformações psicológicas muito graduais,


mas, às vezes, muito rápidas e que não são sequer discutidas. Por
exemplo, hordas de pessoas que saem da Igreja Católica, que di-
zem ser repressiva, para entrar numa outra seita religiosa. Assim,
ele não aceitavam aquela repressão, e vão para outra, às vezes mil
vezes mais repressiva — por quê? Porque algo foi feito para que
você chegasse a esse resultado. Você pensa que está fazendo uma
coisa, mas na verdade está fazendo outra. É como o burro e a ce-
noura. O burro acha que está indo atrás da cenoura. Você, que pôs
a cenoura lá, sabe que está pondo o burro para puxar a carroça.
Se você acha que tudo o que é verdadeiro, está na esfera do
prático, e a teoria não se refere a nada, o que acontece com o seu
pensamento? Você age primeiro para pensar depois. Você só pode
ir por indução. Se o pensamento teorético não tem o seu vigor
próprio, você tem que, primeiro, entrar na prática. Quase todo
mundo pensa assim.
Se você não tem uma classe letrada que esteja consciente disso
tudo, capaz de identificar mudanças psicológicas nela mesma,
você não tem autonomia de pensamento. Você é totalmente hip-
notizado, comandado. Eu posso até aderir a essas mudanças, mas
só depois de pensar. Essa é a diferença entre o sujeito, para quem,
o seu pensamento tem importância, e aquele que somente acata os
acontecimentos na prática.
Assim, se você disser que a Lógica é apenas uma ciência
técnica, um saber técnico, para o pensamento obter um determi-
nado resultado, aı́ segue-se uma série de conseqüências. Entre-
tanto, é preciso saber a importância que isso tem para você.
Não ligar para nada é próprio do sujeito que está liquidado. É o
último estágio, ele está na ralé, ele nem liga mais se ele come ou se
não come, se morre... À medida que você vai subindo na escala de
poderes, e na escala de qualidades humanas, as coisas começam
a se tornar importantes. A quintessência dessa importância, seria

143
5 Preleção V

como a pureza de um ritual. Se você errar mil vezes, você tem que
recomeçar mil vezes. Você sabe a importância daquele ponto, sabe
as imensas conseqüências que derivam daquilo. E isso é muito im-
portante. Se nós consideramos que nós só temos o direito de ter
essa exigência caso ocupemos os postos de mando na sociedade,
é porque já nos colocamos como ralé. Se você acha que pensar e
examinar as coisas é para o patrão, para o chefe, aı́ não tem mais
jeito. Prestem atenção que, se você pensar dessa maneira, seria o
mesmo que você cuspir na sua própria cara. Para o cientista so-
cial que faz o planejamento das mudanças sociais que irão ocorrer
no Terceiro Mundo, tudo isso é muito importante. Às vezes, a
Fundação Rockfeller paga um sujeito, durante anos, só para ele
pensar uma coisas dessas, porque isso é muito importante para o
conjunto da coisa. Se o intelectual, o estudante brasileiro, acha
que isso é uma questão que para ele não tem importância, que so-
mente as pessoas que têm poder é que tem que pensar nisso, isso
é uma coisa trágica.
A exigência com um rigor, até uma elegância, da inteligência, é
uma exigência necessária. Se você espera que as pessoas, primeiro
te coloquem numa posição social superior, para daı́ você ser um
aristocrata, você não será aristocrata jamais. Se você pensa assim,
você está confundindo aristocracia com dinheiro no bolso. Se o
conhecimento não vale nada em si mesmo, e vale só pelo talão de
cheques, então ele realmente não vale nada. Que o sujeito do talão
de cheques pense assim, eu entendo, mas que o próprio intelectual
também pense assim... Que o ladrão roube, eu entendo. O que eu
não entendo é que você ofereça o seu bolso.
Vejam que a opinião de um único filósofo vale mais do que mi-
lhares de tiros dados por todos os exércitos, porque ele vão dar
tiros por causa da conseqüência dessa opinião. A partir do mo-
mento onde, na Renascença, a classe cientı́fica desistiu da idéia
grega da Ciência como uma espécie de visão global que levava a

144
5 Preleção V

uma perfeição humana, desistiu do aspecto ético da Ciência, as


conseqüências disso foram monstruosas, e se prolongam até hoje.
É por causa disto que o mundo tem a sua forma de hoje, tem o
comunismo, o nazismo, o capitalismo, etc. Se não tivesse aconte-
cido essa desistência, não teria acontecido nada disso também. As
conseqüências sociais, polı́ticas, dessas idéias filosóficas, são de
muito longo prazo.
A História é como se fosse uma roda que gira, e ela tem um
centro que a faz girar. Esse centro é como se estivesse permanen-
temente pegando fogo. Se você chega perto dele, você queima os
dedos, mas é aı́ que você se torna gente mesmo. De outro modo,
você está rodando e os outros estão fazendo o que querem.

145
6 Preleção VI
18 de dezembro de 1992

Nós vimos então as quatro alternativas. A terceira questão é


saber se a Lógica é uma disciplina formal, ou se deve tomar o
conhecimento como uma “matéria”.
Aristóteles dividia a Lógica em duas partes: a formal e a mate-
rial. Existe a Lógica material, que hoje nós chamamos de a teoria
do conhecimento. O quê significa a Lógica ser formal ou material?
Que diferença faz?
Vamos ler um pouco mais e depois retornamos a esta questão.
Propriamente só há dois partidos: a lógica é uma disciplina
teorética, independente, formal e demonstrativa; ou é uma tecno-
logia que depende da psicologia.
Essas alternativas que existiam no tempo de Husserl, hoje, já
não são somente essas duas. Existem outras possibilidades que
veremos um pouco mais adiante. Temos que entender esses con-
ceitos dessas alternativas para seguir adiante.
A priori e demonstrativo, seria como a Geometria: partindo de
métodos postulados, você faz toda a demonstração a priori, sem
depender da experiência. A parte a priori seria a parte que é evi-
dente. Embora a priori e evidente não queiram dizer a mesma
coisa, pois não se identificam. A priori é quando independe da
experiência, ou seja, por mera análise dos conceitos dados você
já obtém aquele conhecimento — como em Geometria; é por
dedução.

146
6 Preleção VI

Em Geometria você dá o conceito de uma figura e, analisando


esse conceito, você descobre as propriedades daquela figura sem
precisar de investigar outra figuras na realidade. Se for empı́rico,
ao contrário, o conceito não contém tudo. Por exemplo, se eu te
dou o conceito de leão, desse conceito você consegue descobrir
quantos meses é a gestação de uma leoa? Não. Você precisaria
observar a leoa por outro meio que não seja o próprio conceito.
Entretanto, do conceito de ângulo você deduz todas as proprieda-
des do triângulo. Nem todas elas são evidentes à primeira vista.
Quando se diz que o conhecimento a priori, analı́tico, nada
acrescenta ao conceito, não quer dizer que ele nada acrescente ao
seu conhecimento. Ao contrário, na Geometria, freqüentemente,
você vê que por análise você chega a descoberta de proprieda-
des que você jamais teria suspeitado num primeiro momento. A
dedução é uma investigação, só que ela investiga tomando como
objeto, unicamente, os conceitos dos entes que estão dados no pro-
blema. No conhecimento empı́rico, o conceito nunca resolve to-
talmente o problema. O conceito de leão não abrange todas as
propriedades de leão. Mas o conceito de triângulo, abrange.
Assim, vocês acham que a Lógica é a priori e demonstrativa,
ou empı́rica e indutiva? Pela Psicologia você tem o conhecimento
dos processos reais do pensamento. A definição do pensamento
já contém todas as propriedades do pensamento? Pela análise do
conceito do pensamento você descobre como funciona a memória,
a imaginação, etc.? É claro que não. Você precisa de outros es-
tudos. Se a Lógica dependesse da Psicologia, então nós necessi-
tarı́amos de um estudo empı́rico. Ver como as pessoas realmente
pensam, e daı́, tirando por indução, você ter as leis do pensamento
correto. No caso dela ser uma disciplina a priori, dados certos con-
ceitos, todo o conteúdo da Lógica se seguiria por mera dedução.
Entretanto, Husserl diz que, de fato, só existem dois partidos,
e a discussão se dividia nessas duas correntes: uma que dizia

147
6 Preleção VI

que a Lógica é uma disciplina teorética, independente da Psico-


logia, é formal e demonstrativa e, outra que dizia que a Lógica é
uma técnica que depende da Psicologia. Não está excluı́do que
seja uma disciplina formal e demonstrativa, porém, de caráter
técnico, prático, que é a posição que surge mais tarde com a Lógica
analı́tica (posterior à obra de Husserl). A Lógica analı́tica surge
a partir de determinadas obras que são anteriores a Husserl, mas
elas só se desenvolvem depois dele. Para ela, a Lógica analı́tica é
uma disciplina puramente formal, sem caráter teorético, mas ape-
nas técnico. Se fossemos discutir essa questão hoje, terı́amos que
incluir essa alternativa.
Não aspiramos propriamente a tomar parte nessas discussões,
propomo-nos aclarar as diferenças de princı́pio que atuam nelas
e os objetivos essenciais de uma lógica pura. Tomaremos como
ponto de partida a definição da lógica como uma arte e fixaremos
seu sentido e sua justificação.
Husserl não vai, propriamente, se posicionar ante essas alterna-
tivas, mas ele vai partir para uma definição corrente.
Que a Lógica seja uma disciplina teorética ou prática, o fato é
que ela é uma disciplina prática também. Ninguém discute que
exista uma técnica lógica. Só que uns dizem que ela tem fun-
damento teorético, e outros dizem que não. Ela parte da definição
corrente, unânime, da Lógica como técnica e, analisando esse con-
ceito, ele verá se consegue, a partir daı́, fundamentar uma Lógica
pura, teorética, mas também, formal.
Que isto relaciona-se naturalmente a questão das bases
teoréticas desta disciplina e de sua relação com a psicologia. Esta
questão coincide essencialmente com a questão cardinal da teoria
do conhecimento, que concerne à objetividade deste.
Ele diz que a questão da natureza lógica, e das suas relações
com a Psicologia, se identificam com a questão central da teoria
do conhecimento, que é a questão da objetividade, da validade, do

148
6 Preleção VI

conhecimento. Por quê isso acontece? Por quê a decisão quanto


à natureza da Lógica afeta a resposta que nós vamos dar à esta
questão da teoria do conhecimento?
O resultado de nossa investigação sobre este ponto é a obtenção
de uma ciência nova e puramente teorética, que constitui o funda-
mento mais importante de toda arte do conhecimento cientı́fico e é
uma ciência a priori e puramente demonstrativa. Com o que ficará
adotada uma posição clara face às questões colocadas.
Husserl vai chegar, em última análise, à conclusão de que a
Lógica é uma disciplina formal, porém, teorética, a priori, e pu-
ramente demonstrativa. Portanto, também uma ciência indepen-
dente.
Capı́tulo I
A LÓGICA COMO DISCIPLINA NORMATIVA
E ESPECIALMENTE COMO DISCIPLINA PRÁTICA
Neste capı́tulo ele vai ver a definição corrente da Lógica como
técnica, como arte, e a partir desta definição, colocar essas mes-
mas interrogações, e qual é a relação entre a Lógica, assim defi-
nida como técnica, e a Psicologia. Ou seja, se a técnica lógica, tal
como ele define, tem um fundamento psicológico ou não, e se ela
depende desse fundamento psicológico.

6.1 4. A imperfeição teorética das


ciências particulares
A mestria com que um artista maneja seus materiais ou aprecia
as obras de arte, só por exceção se baseia num conhecimento
teorético seguro das leis que prescrevem ao curso das atividades
práticas, sua direção e sua ordem, e determinam os critérios valo-
rativos.

149
6 Preleção VI

O sujeito sabe fazer alguma coisa e você pergunta: “Qual é o


fundamento teórico e prático disso que você faz?” Na maioria dos
casos você vai ouvir: “Não sei!”
Por exemplo, no caso dos escritores, a grande maioria não vai
saber explicar qual é a técnica que ele utilizou para escrever deter-
minado livro. No momento da realização da sua obra, o escritor
“inventa” um jeito, uma técnica, conforme as coisas vão aconte-
cendo. O que ele pode ter aprendido anteriormente em termos de
técnica não ajuda em quase nada no momento de escrever uma
nova obra. A técnica de cada escritor só serve para o próprio es-
critor.
No entanto, ao se examinar os livros — a posteriori –, você vê
que ali há uma técnica, e ela, por sua vez, terá algum fundamento
teórico, mesmo que seja implı́cito. O fato é que no momento que
o escritor está executando o trabalho, ele não está pensando nisso.
É totalmente inconsciente.
Isto não sucede só nas belas-artes, mas também à criação ci-
entı́fica. Nem mesmo o matemático, o fı́sico ou o astrônomo ne-
cessitam chegar à intelecção das raı́zes últimas de sua atividade. O
cientista não pode ter a pretensão de haver provado as premissas
últimas de suas conclusões, nem de haver investigado os princı́pios
em que repousa a eficácia de seus métodos.
Ele diz que essa inconsciência do aspecto teórico não existe só
na criação artı́stica, mas também na investigação cientı́fica. Na
maior parte dos casos, o sujeito procede à sua investigação ci-
entı́fica sem ele estar, propriamente, consciente de qual é o fun-
damento teórico-cientı́fico a que ele se assenta. Recorre-se a de-
terminados métodos como, por exemplo, a indução. A indução é
utilizada em 99% das investigações cientı́ficas, mas se você per-
guntar ao sujeito por quê a indução funciona, ele não vai saber
responder. Peguem, por exemplo, uma pesquisa qualquer. Você
chega à conclusão de que o fumante passivo aspira 60% da fumaça

150
6 Preleção VI

do fumante passivo, logo ele terá uma probabilidade x ou y de con-


trair tais doenças, as quais estariam sujeitos os próprios fumantes
ativos. Por quê isto te persuade? Qual é o fundamento da vera-
cidade desse teu raciocı́nio? Na quase totalidade dos casos não
saberão a resposta.
Acontece que na criação artı́stica isso não tem um grau de pro-
blema maior porque o trabalho do artista se esgota na hora que ele
termina a obra. Essa obra não será prosseguida. Isso é muito im-
portante. No caso da Ciência, isso é imperdoável, porque aquilo
que cada cientista descobriu será usado como fundamento de uma
pesquisa posterior. E, se você não sabe o fundamento da pri-
meira pesquisa, então a dúvida se perpetua. Isto quer dizer que os
métodos e conceitos usados normalmente na Ciência, que são fun-
damentos da veracidade dela, nunca estão perfeitamente aclara-
dos na prática, e as pessoas continuam confiando nesses métodos,
até por uma questão de hábito. As pessoas não têm uma cer-
teza pessoal a respeito daquilo. Também acontece de que quando
você vai investigar esses fundamentos você descobre que eles não
são tão fundamentados assim. Para um sujeito que entenda um
pouco do método de desenvolvimento cientı́fico, a maior parte das
investigações cientı́ficas, sobre tudo e qualquer coisa, será consi-
derada muito insatisfatória.
E a estatı́stica? A estatı́stica é uma formalização matemática da
indução. Qual é o fundamento teórico da indução? Há o funda-
mento metafı́sico, que é a homogeneidade do real onde na maior
parte as coisas que se passam de uma determinada maneira ten-
derão a se passar da mesma maneira nos casos restantes. Por quê
no âmbito do mundo real as coisas não poderiam se passar sempre
na base da exceção? Por quê a homogeneidade tem que imperar?
Ou seja, se tais fatos se passam assim, em 80% dos casos, por quê
tem que se passar da mesma maneira nos outros 20%?
Quando você vai examinar por quê isso funciona, você vê que

151
6 Preleção VI

para se ter uma certeza absoluta de que esse raciocı́nio tem funda-
mento, seria necessário recorrer a um pressuposto de ordem me-
tafı́sica, para saber que o real é homogêneo. Que o real é ho-
mogêneo, pode até ser contestado. É uma premissa metafı́sica
como qualquer outra. A maior parte dos indivı́duos que recorre
a argumentos estatı́sticos, eles não têm idéia de que eles estão fun-
dados numa metafı́sica. Eles acham que aquilo é uma exigência
decorrente do próprio fato. Acontece que os fatos jamais são
estatı́sticos em si mesmos. Todo e qualquer fato que acontece,
só acontece de maneira singular e concreta, e nunca nas mesmas
condições. Você faz estatı́stica a partir do momento que você re-
corta certos aspectos homogêneos de todos os fatos, os agrupa num
conceito único e, em seguida, quantifica. Mas, tudo isso é você
quem fez. O fato não vê assim.
Então, o quê legitima o seu experimento? Por quê o raciocı́nio
estatı́stico indica uma probabilidade real? Qual é o fundamento
da indução? Dizer que o percentual é um dado, isso é um ab-
surdo. Um percentual jamais pode ser um dado, porque ele é
uma medição. O percentual é uma interpretação que você está
fazendo em cima dos dados. Nenhuma medição é natural, é dada.
A medição é sempre uma comparação de fatos que tem a ver com
uma determinada unidade que você escolheu por uma razão ar-
bitrária. Ou seja, já é uma construção da mente.
Por quê essa construção funciona? Que ela funciona, é óbvio,
nós sabemos que funciona. Sabemos por nossa própria ex-
periência. Então, é a nossa própria experiência que serve de fun-
damento da indução. Se você disser que a indução funciona por-
que na maior parte dos casos ela funciona, que tipo de raciocı́nio
é esse? É uma indução. Assim, isso forma um cı́rculo vicioso.
Quando você usa como fundamento da coisa que pretende de-
monstrar a mesma coisa que está para ser demonstrada, isso é,
evidentemente, ilógico. A indução funciona porque indutivamente

152
6 Preleção VI

se prova que a indução funciona. Então, a indução é a prova da


indução. Isto não tem fundamento algum. Ou a indução tem um
fundamento lógico, não-indutivo, ou ela não tem fundamento al-
gum.
A indução não se refere à classificação de objetos, segundo as
várias esferas. Ela se refere à previsão do comportamento de de-
terminados objetos conforme a quantidade de vezes onde eles se
comportaram assim nos casos anteriores. Husserl não levantou o
problema da fundamentação da indução. Eu é quem estou discu-
tindo isto aqui.
Vejam que na quase totalidade dos casos de pesquisas ci-
entı́ficas, as pessoas fundamentam as conclusões com base em
conceitos que ainda não se sabe o que é. Por exemplo, o câncer
é um conceito meramente empı́rico. É um conceito mais indica-
tivo do que qualquer outra coisa. É difı́cil você discutir o que é
câncer, e o que não é. Não há limite preciso, como nos conceitos
geométricos. Quando você usa conceitos meramente empı́ricos,
as suas conclusões têm validade meramente empı́rica. Se essa va-
lidade empı́rica é fundada num raciocı́nio meramente empı́rico,
então ela tem uma validade meramente estatı́stica, a qual se fun-
damenta numa indução, que talvez não tenha fundamento algum.
Essa é a verdade.
No fundo você sabe que a indução tem fundamento, só que
não é óbvio. e, se você desconhece qual é o fundamento, você
acredita que é um fundamento absoluto e você pode sempre con-
fiar na indução. Até porque, você pensa que a indução é uma
coisa que a realidade impõe por si mesma, quando na verdade a
indução depende de uma premissa de ordem metafı́sica, que é a
homogeneidade do real. Se o mundo fosse caótico, funcionasse
como uma combinatória totalmente casual de circunstâncias for-
tuitas, a indução não valeria absolutamente. Assim como não vale
a indução num jogo de cara-ou-coroa. Se a indução vale, é porque

153
6 Preleção VI

o mundo não se comporta como num jogo de cara-ou-coroa. Esse


é um dos fundamentos alegados pela indução. É a famosa frase
do Einstein: “...(?).”. Mas há quem diga que joga sim. O sujeito
pega essas supostas regularidades reivindicadas pela Ciência na
área dos fenômenos e mostra que essas regularidades não são tão
irregulares assim.
Partindo da experiência você pode mostrar tanto a regularidade
quanto a irregularidade, tanto a homogeneidade quanto a heteroge-
neidade, e na hora que você fez tudo pela heterogeneidade, adeus
à indução. Isto quer dizer que toda pesquisa cientı́fica se assenta
em determinados fundamentos metodológicos que são a razão que
você tem para crer que as suas razões são verdadeiras. Na prática
os indivı́duos não se preocupam em conferir os fundamentos em
que se apóiam, mas confiam nesses fundamentos por uma razão
óbvia do costume, do hábito.
Quando você examina a pesquisa cientı́fica à luz do que você
sabe de metodologia, você fica horrorizado. De qualquer ex-
periência você só aproveita um por cento, e olhe lá! O próprio
progresso, com a crescente quantidade de pesquisas, aumenta a
possibilidade de erros, na medida onde esse avanço não é compen-
sado por uma fundamentação cada vez mais firme. Se um sujeito
está progredindo, então, as pessoas dão crédito a ele. Por darem
crédito, ele se lança em novos negócios e dá a impressão de mais
prosperidade, e aumenta o crédito, e assim por diante. No entanto,
será que o sujeito tem bens para sustentar toda essa coisa? Não
tem. Então ele progride só para frente, e não para baixo também.
Ele não tem fundamento, base.
O dito progresso da Ciência, em grande parte é ilusório. Ele só
seria um progresso na medida onde ele tivesse um lastro. Senão
é como emitir cheques, um atrás do outro, sem ter fundos. Vejam
, por exemplo, as últimas pesquisas de qualquer campo cientı́fico.
Procurem ver se elas têm um fundamento absoluto, ou se elas estão

154
6 Preleção VI

somente baseadas numa série de procedimentos costumeiros. Ao


meu ver, o aumento do número das pesquisas não representa ne-
nhum avanço. Isto porque você vai pesquisar mil vezes a mesma
coisa, mil vezes vai chegar a conclusões mais ou menos certas,
mais ou menos iguais às outras, e se a primeira já não tiver funda-
mento, a seguinte também não terá. Assim, trata-se de fundamen-
tar a primeira pesquisa, para daı́ prosseguir.
Muitas vezes você assenta uma determinada conclusão como
hipotética e continua pesquisando, e usando aquela hipótese como
básica, que gerem novas hipóteses, e assim por diante. O que
acontece é que a tecnologia avança, mas a Ciência avança muito
menos. Até porque, uma única descoberta cientı́fica prolifera em
milhões de resultados tecnológicos. Quanto de Ciência existe num
computador? Muito pouco, e com esse pouco você tira milha-
res de conclusões tecnológicas, e as pessoas tomam o avanço tec-
nológico como se fosse o avanço do conhecimento, e não é. É o
avanço da técnica. E as coisas funcionam. Entretanto, o impor-
tante não é saber que funciona, mas por quê funciona. Se funciona
e você não sabe como, a Ciência gradativamente vai se transfor-
mando num empirismo de bolso, e na medida que isso acontece,
daqui a pouco ela começa a se transformar, outra vez, numa ma-
gia. Mesmo os simples avanços das descobertas teóricas, se não
forem sendo refundamentados, eles proliferarão em novas desco-
bertas, e todas só têm valor hipotético. Acaba virando crença. Por
exemplo, na ciência polı́tica, todo mundo acredita que existe um
avanço do estado de direito, que caracteriza a História dos três
últimos séculos. E acreditam que isso é de fato, que vale. Isso
equivale a uma divisão mais equânime do poder? No meu ponto-
de-vista não, porque se há introdução de novos fatores de poder,
que eram desconhecidos como, por exemplo, o serviço secreto.
Você não pode democratizar o serviço secreto. Na medida que a
importância do serviço secreto aumenta, a divisão do poder fica

155
6 Preleção VI

cada vez mais hierárquica. Você tem uma democracia na parte


pública da polı́tica, mas está criando uma aristocracia, que está
mais distante da base, do povo, que qualquer democracia jamais
esteve. Não devia, mas é real. Em certos casos, muito importantes,
como no próprio Estado americano, o serviço secreto adquire uma
tal importância que os fatos históricos fundamentais saem dele e
não do movimento democrático. E mais ainda. Existem meios de
atuação da elite letrada sobre a consciência popular, meios que a
humanidade jamais imaginou, jamais ousou conceber. Na medida
em que essa elite detém conhecimentos secretos e um meio secreto
de atuação, ela cria uma aristocracia mais fechada do que jamais
houve em qualquer outra época. Só seria comparável às castas
da sociedade egı́pcia, onde meia dúzia de pessoas detinha todo o
conhecimento e governava sobre a massa que ignorava tudo, no
conjunto e nos detalhes. O serviço secreto pode ser comparado a
isto.
Eu tenho a tendência a acreditar que tudo isso que aconteceu
com o Collor foi por causa do SNI. Você acha que aquela gente
que estudou aquilo, a vida inteira, para fazer só aquilo, vai para
casa e tudo bem? Vão virar motoristas de táxi? Você acha que a
comunidade de informações se dissolve só porque você mandou
eles para casa? Esse é um fator fundamental para produção dos
eventos de uma sociedade na história. Porém, o povo que se baseia
em jornais, ele vê uma outra linha de causa. Ou então, o povo
inventa essa linha de causa para justificar esses acontecimentos.
O homem não suporta a incoerência, o absurdo, então, quando
ele não entende as coisas que estão sendo mostradas a ele, e ele
não tem explicação, ele inventa uma. A que lhe parece mais sa-
tisfatória, ele a acomoda ali. Ele não vai investigar mais profun-
damente. O homem tem a tendência a ver as coisas de maneira
homogênea. Onde ele vê o caos aparente, ele homogeniza, e das
maneiras dele fazer isso, a primeira é a fantasia. Uma das funções

156
6 Preleção VI

do sonho é homogeneizar os dados daquilo que ele não entendeu.


Entretanto, o sonho homogeneı́za os dados, não com a forma
dos eventos, mas com a forma do seu corpo. Você adapta os fatos
nas divisões de categoria que o seu corpo conhece. Isso é como
você classificar os livros na estante conforme o tamanho e, depois,
supor que aquilo lá é o sistema do conhecimento. Você catalogou,
mas não de acordo com a natureza da informação, e sim de acordo
com a natureza do recipiente. E isso, pode criar uma interpretação
que, ao mesmo tempo pareça coerente, global, e totalmente falsa.
É o que acontece na quase totalidade dos fatos.
Nas ciências da natureza acontece a mesma coisa. Por exemplo,
a idéia de que um conhecimento objetivo seria um conhecimento
que descrevesse os fatos tal como eles se passam em si mesmos,
sem qualquer observador humano, é a base da maior parte do pen-
samento cientı́fico.
Examinando o que foi exposto aqui, nós podemos perguntar:
qual é a força do elemento retórico em Ciência? Quando Galileu
quis provar que dois objetos, de peso diferente, jogados de cima
de uma torre, cairiam ao mesmo tempo, por exemplo, algodão e
chumbo. O fato é que eles caı́ram ao mesmo tempo, e isso con-
traria a percepção sensı́vel. De fato, muitas vezes, o resultado
real será tornado nebuloso pela intervenção de outros fatores, por
exemplo, o vento. Então, isso teria muito mais a ver com a su-
perfı́cie ocupada pelo objeto que com seu peso. Assim, para tentar
demonstrar isso, ele recorreu a um argumento retórico: fazer com
que as pessoas conseguissem imaginar a queda desses dois obje-
tos, não visto desde o chão, onde eles estavam, mas visto desde
um outro lugar, de um outro sistema de referência. A partir do
momento que eles conseguiram enxergar de uma outra maneira,
aquilo pareceu verossı́mil. Isto é um argumento retórico.
Por outro lado, na medida onde você cria um procedimento me-
todológico, rotineiro, habitual, consolidado, ele mesmo se torna

157
6 Preleção VI

um argumento retórico. A estatı́stica aparece hoje como algo que


vale por si mesma. A estatı́stica jamais prova o que quer que seja.
Se você usa a estatı́stica, é justamente porque você não pode pro-
var nada. Você tem que se contentar com o probabilismo. O pro-
babilismo representa respostas prováveis. Se é provável, não está
provado. O provável significa aquilo que, em condições melho-
res, talvez se possa provar algum dia. Por isso é que é provável.
Entretanto, 2 + 2 = 4 não é provável, é provado.
Nós poderı́amos fazer a seguinte estatı́stica: das conclusões es-
tatı́sticas estabelecidas, quanto por cento vai ser provado efetiva-
mente quando houvessem condições melhores? Qual a probabi-
lidade que existe de haverem melhores condições de observação
disto, pelos próximos mil anos? Ou seja, em todos esses casos,
nós teremos que continuar confiando na base de que Deus deve
saber como se resolve esse problema.
É evidente que nem toda Ciência é assim. Vejam, por exemplo,
a Embriologia. Ela depende muito pouco de estatı́stica — quase
nada. Ela pode desenvolver as fases da evolução de um embrião,
e a entrada em cena de um fator que altera o conjunto, com cer-
teza quase apodı́ctica. Um sujeito que procede nesses critérios
metodológicos, sem fundamentos, ele não tem idéia do quanto é
incerto o que ele está afirmando. Acontece que, milhões dessas
incertezas somadas, produzem uma autoridade maciça, sem con-
tar com a intervenção de outros fatores, alheios, como o deficiente
intercâmbio das informações cientı́ficas, ou como a falta de da-
dos homogêneos em todas as partes do mundo, etc. Exemplo de
interpretação errônea do princı́pio da homogeneidade: se é assim
nos Estados Unidos, deve ser assim no resto do mundo.
Um médico que diz que x% dos pacientes que tem tal sintoma,
tem um segundo outro sintoma. Partindo deste princı́pio, um ou-
tro médico investiga o seguinte: os que têm x% dos que tem o
segundo sintoma, também tem um terceiro sintoma. Daı́ você re-

158
6 Preleção VI

laciona com o primeiro sintoma, e assim você vai montando toda


uma cadeia hipotética. Se você abalasse a indução, você abalou
essa Ciência inteira. Por mais que a definição dos objetos dela
seja correto, por mais que os métodos sejam organizados, toda
ela se baseia na indução. A indução não é errada. Ela funci-
ona. O problema é que o indivı́duo que não sabe qual é o fun-
damento da indução, acredita exageradamente nela, e não intro-
duz um princı́pio de correção. A indução não tem um fundamento
absoluto. Ela tem um fundamento probabilı́stico, por um lado, e
um fundamento metafı́sico, por outro lado. Se você conhece o
caráter metafı́sico desse fundamento, com base nisso, você pode
introduzir um princı́pio de limitação da indução, senão, você não
pode. Eu não estou falando que o sistema todo da Ciência está
errado porque ele se baseia na indução. Eu não sou louco. A
indução é uma base muito firme e muito sólida. Porém, ela é
sólida porque ela se baseia num pressuposto metafı́sico. Entre-
tanto, tudo aquilo que é baseado num pressuposto metafı́sico tem
sua validade circunscrita por esse mesmo pressuposto metafı́sico
e pelas condições de sua aplicabilidade. Nem todas as esferas do
real são homogêneas. Se eu digo: se uma coisa aconteceu em 75%
dos casos, deverá acontecer nos demais. Isso não é igual em to-
das as esferas de realidade. O princı́pio de homogeneidade vale,
mas como princı́pio. Este princı́pio tem que ser desdobrado em
regras mais especificadas para cada campo, para cada esfera deter-
minada, onde há homogeneidade, maior ou menor, de acordo com
tais condições.
A Fı́sica é uma ciência que leva em conta esse tipo de coisa. Ela
sabe que a homogeneidade é limitada para cada campo. Quando
você passa da Fı́sica newtoniana para a Fı́sica relativista, ou
quântica, você muda de campo. Neste campo, maior ou menor,
a homogeneidade não é a mesma, porque o princı́pio da homo-
geneidade não é um princı́pio fı́sico, e sim metafı́sico. Sendo

159
6 Preleção VI

metafı́sico, ele não pode obviamente se aplicar em toda a reali-


dade. O princı́pio de identidade é metafı́sico: uma coisa é igual a
si mesma. Me diga, então, no mundo da experiência, qual a coisa
que permaneça exatamente igual a si mesma? Nada permanece.
O quê é metafı́sico? É aquilo que abarca a totalidade do
possı́vel. E que só é válido na escala da totalidade do possı́vel.
Quando você parte para o mundo da experiência, ele se deso-
mogeiniza, ele tem distintos graus de aplicabilidade. Assim, se
o sujeito, por exemplo, na pesquisa médica, pode se basear no
princı́pio da homogeneidade média, ele está doido! Ele está su-
pondo que as coisas vão funcionar ali como funcionam para a
mecânica clássica. Mas a mecânica clássica funciona porque ela
está num universo perfeitamente circunscrito. Como circunscrever
o corpo humano se ele depende de fatores ecológicos, astrológicos,
etc., e se ele é uma coisa que está recebendo influências de todos
os lados?
Numa coisa que é tão elástica, as estatı́sticas também tem que
ser elásticas. E isto não é levado em conta na prática, porque
daria muito trabalho, e haveria muito menos médico publicando
pesquisa, e ele tem que publicar pesquisa para fazer currı́culo.
Ao invés de ter feito 120 pesquisas, seria melhor se tivesse feito
uma só, bem feita. Mas, como o sujeito diz que fazer todas es-
sas considerações não é preciso porque, em média, todo mundo
procede assim e mais ou menos funciona. Baseado num costume,
ele faz funcionar mais ou menos; resultado: nenhum dos pesqui-
sadores está seguro quanto à validade efetiva dos seus resultados,
e todo mundo depende da aprovação do conjunto. É puramente
uma retórica, para não dizer, como numa religião, onde você de-
pende da aprovação da massa de fiéis para se sentir seguro. Isto
é Ciência? Isto acontece também devido à organização social da
pesquisa cientı́fica. Sempre se acredita que, no conjunto, as pes-
quisas vão se compensar, uma à outra. Só que isto é uma mentira,

160
6 Preleção VI

porque se uma pesquisa diz A, e a outra diz B, se não houver um


terceiro sujeito que leia as duas, para confrontar e sintetizar na
cabeça dele, elas vão ficar, eternamente, guardadas no arquivo, se
contraditando uma à outra, sem que ninguém saiba. A sı́ntese só
se opera na mente do indivı́duo que a formou. O sujeito solta uma
pesquisa, e a comunidade cientı́fica nem se dá ao trabalho de ler
o seu trabalho, e os erros que ali tiverem, jamais serão corrigidos.
É preciso a intervenção de um elemento, extra-cientı́fico, extra-
intelectual, um elemento puramente psicológico, na formação da
convicção cientı́fica. Quanto mais pesquisas cientı́ficas são publi-
cadas, mais isso piora. Isto quer dizer que o número de pesqui-
sas é um péssimo indicador do avanço do progresso cientı́fico. E
ainda há quem reclame que as universidades estejam publicando
poucos trabalhos. O que importa é você aperfeiçoar a mesma pes-
quisa para você chegar a um resultado correto. Uma tese de dou-
toramento na França é o coroamento de um vida. O indivı́duo
apresenta uma tese de mestrado, e continua trabalhando com base
naquilo para depois de muitos anos, somar as conclusões das pes-
quisas e elaborar uma tese de doutoramento. Aı́ ele vira doutor.
Aqui no Brasil, a tese de doutoramento é uma coisa que se se-
gue imediatamente a uma tese de mestrado. Isto é um absurdo.
Você está convidando as pessoas ao charlatanismo. Qualquer su-
jeito que tenha estudado um pouco esses assuntos aqui, por mais
desonesto que ele seja, ele vai perceber que aquilo não tem fun-
damento algum. Certamente, ele ficará um pouco mais inibido de
publicar conclusões apressadas. Nenhum indivı́duo que não tenha
meditado sobre o fundamento da indução deveria ter direito de pu-
blicar conclusões baseadas em indução. O maior ...(?) do século,
Karl Popper, disse que não existe indução nenhuma. Se não existe
indução, ela, em si mesma, não tem fundamento algum. Para achar
o fundamento dela, você tem que convertê-la numa forma dedutiva
e toda vez que você fizer isso, você fica horrorizado. Você vê o

161
6 Preleção VI

mundo de hipóteses que estão lá para completar o edifı́cio lógico.


Um cientista que faz isso e que não está consciente desse caráter
hipotético, ele está acreditando na conclusão dele. Acontece que
um outro cientista acredita nele e, baseado nisso, continua o ra-
ciocı́nio, e assim por diante.
O sujeito tem é que fazer a pergunta: “Mas, como?”, “Quid
est?”. Teoricamente falando, a indução tem fundamento, só que
teórico e geral. Para que este fundamento se torne válido, é pre-
ciso que o pressuposto metafı́sico no qual ele se baseia, que é o
princı́pio da homogeneidade do real, seja afinado por uma série de
ontologias regionais. Ou seja, esta realidade aqui é homogênea,
ou aquela outra, etc., nesse plano, encarado nesse nı́vel tal, etc.
Como as pessoas não sabem que ela é um pressuposto metafı́sico,
elas acham que a indução é válida homogeneamente para todos os
setores da realidade. Há setores da realidade onde trinta por cento
dos casos é uma taxa altissimamente significativa, e há outros onde
noventa e nove por cento dos casos não indica absolutamente nada.
A indução tem uma indução validade geral, e dessa validade
geral, você partir para as validades especı́ficas, dentro de cada
campo, e acreditar que todos são iguais, isso é uma outra coisa.
Por exemplo, o raciocı́nio que um sujeito faz com relação ao fumo,
é o mesmo que outro sujeito faz com relação a votos. Não existe
distinção. O que é considerado significativo num setor, é conside-
rado igualmente significativo para outro, como se toda a realidade
obedecesse homogeneamente ao princı́pio da homogeneidade. A
própria Fı́sica já demonstrou que não é assim.
É por isso que Husserl vai falar, em seu último livro, “A Crise
das Ciências Européias”, que as ciências estão em crise, não no
sentido de que elas não façam descobertas, mas que elas estão
perdendo a sua cientificidade. Daqui a pouco as ciências acabam
virando um misticismo que é reforçado pela aprovação do número
de seus fiéis, e que por isso mesmo, quando você levanta uma dis-

162
6 Preleção VI

cussão cientı́fica, ela não é discutida cientificamente, mas na base


do entusiasmo, do fanatismo. As pessoas se ofendem com as teo-
rias alheias, levam tudo para o pessoal. Os fundadores da ciência
moderna, se vissem isso ficariam profundamente decepcionados.
A maior parte desses erros que vão se acumulando, é pelo fato
de você tomar as palavras por coisas. No momento que você se
posiciona com um conceito, na mesma hora, você também está po-
sicionando perante todas as coisas que se apresentam sob aquele
conceito. Seria como raciocinar com bases universais: a Ciência,
o fumo, etc., e achar que você pode, nessas matérias, raciocinar
a priori. O que você falou do conceito abrange todas as proprie-
dades do objeto considerado. Na discussão vulgar, o sujeito toma
posições desse tipo: “Você é a favor disso ou daquilo?” Na ver-
dade, são discussões sobre palavras, sobre conceitos universais.
São discussões que se dão em princı́pio. Nos casos particulares,
na realidade concreta, a sua discussão deveria ser a mesma.
Também não é impossı́vel que existam determinados setores do
saber que são mais sólidos do que outros. Porém, dentro dos se-
tores menos sólidos, existem trabalhos que são mais sólidos do
que todos da outra ciência mais sólida. Por exemplo, me mostre
na ciência biológica, um trabalho no qual se possa confiar tanto
quanto eu confio, por exemplo, no livro do ...(?), “O Outono da
Idade Média”. Vai ser difı́cil você achar um trabalho biológico
que seja tão firme quanto esse da História. O que não quer dizer
que o que você falou genericamente sobre tal ou qual conceito,
deva valer para todos os exemplares da História.
O cientista não pode ter a pretensão de haver provado as pre-
missas últimas de suas conclusões, nem de haver investigado os
princı́pios em que repousa a eficácia de seus métodos.
Se essa eficácia não estiver claramente fundamentada em cada
caso, então, ela é uma eficácia do tipo consuetudinário, baseado
no costume e, em última análise, é uma eficácia do tipo retórico.

163
6 Preleção VI

Mas esta é a causa do estado imperfeito de todas as ciências,


da falta de claridade e racionalidade ı́ntimas da ciência. Mesmo
nas matemáticas os investigadores que manejam com mestria os
métodos da matemática se revelam com freqüência incapazes de
prestar contas da eficácia lógica desses métodos e dos limites de
sua justa aplicação.

6.2 5. Complementação teorética das


ciências particulares pela
metafı́sica e pela teoria da ciência
Para alcançar esse fim teorético é preciso, primeiro, uma classe de
investigações que pertencem à esfera da metafı́sica.
A missão desta é fixar e contrastar os pressupostos de ı́ndole me-
tafı́sica, em geral nem sequer advertidos, que constituem a base de
todas as ciências referentes ao mundo real. Tais pressupostos são,
por exemplo, a existência de um mundo exterior, que se estende
no espaço e no tempo, a submissão de todo evento ao princı́pio da
causalidade, etc.
Qual é o fundamento do princı́pio de causalidade? Quando se
diz que uma coisa é causa de outra, o quê se está querendo dizer
exatamente? Não vou nem perguntar o fundamento, mas, antes, o
significado. O quê significa “ser causa de”? Dizer que uma coisa
é causa da outra quando causou algo é uma frase baseada na idéia
de causa, e não esclarece o que é ser causa mesmo.
Outra questão: esse processo que você denominou de causa,
existe na realidade ou é apenas uma conexão lógica criada pela
mente humana? Se você não sabe nem uma coisa nem outra, e
você, no entanto, continua atribuindo a tais ou quais fenômenos,
tais ou quais causas, você não sabe o que está falando.

164
6 Preleção VI

Claro que na maior parte dos casos você vai usar a palavra causa
no sentido geral, costumeira, habitual, e as pessoas entenderão no
sentido de que elas estão habituadas a entender, e que nesse sen-
tido, você parecerá estar falando de uma coisa que você sabe o
que é, porque você acredita que os outros saibam do que você está
falando. Mas, nem você, nem os outros, têm uma idéia real do pro-
cesso causal e, na verdade, estão falando de uma convenção: de-
nominando de causa, tal ou qual coisa. No máximo você alcança
isso aı́.
Jung disse: “Você diz que o movimento da bola de bilhar causa
o movimento da outra, mas o fato é que, no fenômeno você não vê
isso. Você só vê uma bola rolando e, depois, você vê a outra bola
rolando. Você não vê conexão causal. Se você falar do impulso de
uma bola na outra, você já pressupõe a idéia de causa. Mas, o quê
é causa? Um exemplo: um fenômeno que contém dentro de si, um
outro. Isso seria uma maneira de ser causa? Por exemplo, quando
você diz: “Quando chove é porque a água estava nas nuvens, e ela
caiu de lá”. Isto quer dizer que a nuvem foi causa da chuva, nesse
sentido. A mãe que traz dentro de si o seu filho, ela é causa do
filho, nesse sentido. Ou seja, no processo vital dela, está incluı́do
esse filho. Mas, e as bolas de bilhar? Existe o efeito, mas ele é
parte da causa, assim como o filho é parte do organismo da mãe?
Será que causa é isto? Ou seja, dá para entender que, onde houver
o organismo da mãe, ali está o fenômeno do filho. Ela o traz como
um prolongamento de si.
Um efeito é um prolongamento da causa, como se fosse uma
parte da causa, que a partir de um certo momento se destaca
dela. A causa estaria para o efeito, como o continente está para
o conteúdo. Se você pega um jarro cheio de água e o carrega,
você carrega a água necessariamente. Efeito seria um sinônimo
de pertinência. Mas, e as bolas de bilhar? Uma estava dentro da
outra, por acaso? O movimento da segunda bola, estava no movi-

165
6 Preleção VI

mento da primeira? No caso da mãe, a vida da mãe se transfere


para o filho porque a vida do filho é a vida da mãe. O filho está
vivo, porque a mãe está viva. Porque eles são uma só unidade.
Ela não precisa transferir, porque a vida dela está na vida do fi-
lho. É simplesmente um processo de separação. Um processo de
autonomização. O mesmo ocorre no caso do jarro com água.
E as bolas de bilhar? Como você poderia ver que o movimento
da segunda está contido no movimento da primeira, se são dois
movimentos de dois corpos distintos no espaço? Se, nunca, uma
bola está onde a outra está? Se eu jogo a água fora do jarro, a
água se separa do jarro, e se o filho nasce, ele se separa do corpo
da mãe. No caos da bola, uma jamais está onde a outra esteve.
Como é que se chama essas coisas de causa? O braço não faz
parte do taco, que não faz parte da primeira bola, que não faz parte
da segunda bola, portanto, a explicação não pode ser a mesma do
jarro. Se o impulso passa de uma corpo para o outro, é porque nós
podemos conceber o impulso separado do corpo. No entanto, não
precisa resolver o problema. É só você saber que você não sabe
o que é causa. Você pode reconhecer a causa mas, por exemplo,
uma pessoa que você vê todos os dias, por causa disso, você sabe
quem é ela? Entretanto, se você nunca tivesse visto, você nunca
perguntaria quem é. Se eu nunca tivesse visto uma bola imprimir
movimento a outra bola, eu não levantaria a pergunta. Portanto,
reconhecer não resolve absolutamente o problema. É justamente
porque você consegue reconhecer que o problema aparece.
Assim, se o sujeito não sabe que o conceito de causa é um con-
ceito problemático, o que significa a atribuição que ele faz de uma
causa a alguma coisa? Não significa nada. É flatus vocis. Porque
se ele não sabe o que é causa, como é que ele vai dizer que uma
coisa é causa da outra?
Esses conceitos fundamentais: causa, existência, realidade, in-
ferioridade, posteridade, etc., tudo isso são conceitos metafı́sicos

166
6 Preleção VI

que são usados o tempo todo em pesquisas cientı́ficas. Tudo isso


constitui um vocabulário que o indivı́duo desconhece. Na melhor
das hipóteses, ele sabe o significado convencional. e qual é o sig-
nificado convencional de causa? Nem isso, às vezes, o sujeito está
consciente. Isto significa que qualquer pesquisa cientı́fica feita
nessa base, ele é uma tentativa de explicar fenômenos desconhe-
cidos, com base em princı́pios igualmente desconhecidos. Com
estes princı́pios (causa, realidade , posterior, etc.), você explica o
real. É o mesmo caso da indução.
A idéia de Ciência é você explicar determinados fenômenos
ou fatos à luz de determinados princı́pios, que para você são in-
teligı́veis, ou seja, você torna inteligı́veis os fatos através dessa
explicação. Explicação significa você desdobrar o fato nos seus
princı́pios constitutivos. Se os princı́pios, para você, são ininte-
ligı́veis, o fato explicado por princı́pios ininteligı́veis é ...(?) No
entanto, o processo que você aplica aos princı́pios, e aos fatos, para
obter a explicação, qualquer criança pode aprender. Você repete a
seqüência de operações utilizada em qualquer pesquisa cientı́fica
exatamente como um macaco pode aprender a apertar as teclas da
máquina de escrever e produzir um soneto de Camões. Não quer
dizer que ele saiba ler.
Eu digo que na maior parte dos casos, as pesquisas cientı́ficas
foram feitas, rigorosamente, assim. É uma seqüência de operações
que o indivı́duo aplica mecanicamente, usando instrumentos que
ele desconhece, para explicar fatos que ele não entende. Em
qualquer investigação você procura reduzir o desconhecı́vel ao
conhecı́vel. Até mesmo uma investigação policial, quando você
chega à conclusão de que o autor do crime foi este aqui, supondo
que você saiba quem é este aqui, o Antônio da Silva. Quem é o
Antônio? Não sei. Qual é o CIC e a RG dele? Não sei. Qual é a
cor dele? Não sei. Onde ele mora? Não sei. Ele existe? Também
não sei. Na polı́cia ninguém aceita isso, mas na Ciência se aceita.

167
6 Preleção VI

Se fosse para fazer Ciência de verdade, era para se aplicar todos


os princı́pios de evidência, nexo, etc., como faziam Newton, Des-
cartes, Kepler, etc. Na prática cientı́fica feita por uma multidão
de indivı́duos que receberam um rótulo de cientista, não acontece
nada disso. Na prática é uma atribuição de determinados rótulos
desconhecidos, a outros fatos que, na verdade, eram conhecidos.
Alguns fatos a explicar são mais inteligı́veis que a explicação ob-
tida. Ou seja, antes de pesquisar você estava entendendo o que es-
tava acontecendo; depois, você não tem nem isto. Isto é o que Hus-
serl chama de crise da ciência européia. Elas se tornam ciências
em crise, na medida onde são infiéis ao conceito de Ciência. Na
medida onde não depende do real até que ele dê a sua inteligibili-
dade. No entanto, se contentam com a aplicação de um mecanismo
rotineiro que, na verdade, é trocar palavra por outra palavra.
Tudo o que o homem inventa de bom, depois entra nos hábitos
das pessoas e elas continuam fazendo porque não sabem. Vira
uma rotina, um fetiche, e continua sendo cultuado em si mesmo.
Às vezes, até a idéia originariamente era boa. Mas, por não sabe-
rem bem o que era, os sujeitos acabam por inverter o significado,
completamente, até servir ao contrário do propósito originário. É
a estória do banco da praça onde havia um cartaz dizendo: “É
proibido sentar aqui”. Passaram-se trinta anos até que alguém se
lembra de que a prefeitura havia mandado pintar o banco e esque-
ceram de tirar o cartaz...
Os atos que são puramente imitativos não podem se constituir
numa ciência jamais. Existe a técnica da pesquisa cientı́fica, a
qual é uma derivação da Lógica. Essa derivação é fácil de apren-
der. Você pega qualquer manual, que ele te diz o que fazer. Aliás,
até a metodologia cientı́fica foi substituı́da no ensino, pela técnica
da pesquisa cientı́fica. Hoje em dia, a técnica da pesquisa ci-
entı́fica está sendo substituı́da pela técnica da redação de trabalho
cientı́fico! Newton não sabia da técnica de redação, ele não sabia

168
6 Preleção VI

nem como apresentar as contas ordenadamente, mas ele sabia o


que era Ciência. Ele sabia fazer, e sabia porque aquilo valia.
Tudo aquilo que nasce da criatividade, da espontaneidade hu-
mana, depois, se torna um rótulo, uma fórmula cristalizada, re-
petı́vel. Na hora que se torna repetı́vel, a inteligência some. Vira
um rito. Aquele rito, por si mesmo, vai desencadear tal ou qual
efeito, então, é uma interpretação mágico-religiosa.
A seqüência de operações denominada “pesquisa cientı́fica” não
produz conhecimento cientı́fico. Ela produz se você tiver a plena
inteligência do que está fazendo. Se você tiver toda aquela meto-
dologia cientı́fica, aı́ sim. Não é a rotina, a seqüência de hábitos
que magicamente produz esse efeito, mas a maior parte dos cien-
tistas pensa que seguindo a ordem, seguindo a seta, eles irão con-
seguir. Isso é fetichismo. Isto aqui é um fenômeno que na maior
parte dos paı́ses do Terceiro Mundo, aparece de uma forma mais
grotesca. O erro de base vem do Primeiro Mundo. Nós apenas
padecemos e aumentamos esse erro. Por exemplo, as injustiças do
capitalismo; será que foi algum latino-americano quem inventou
isso? Não. Foi o europeu. Mas o latino-americano sofre aquilo
muito mais do que o europeu.
Do mesmo modo, as aberrações da pseudo-cultura cientı́fica,
também não foi nenhum ugandense quem inventou, mas no en-
tanto, ele sofre aquilo com muito mais impacto que o europeu, por-
que este tem uma série de mecanismos de compensação. Quando
alguém faz um erro, logo vem um outro que reclama. Acontece
que aqui, nós sempre copiamos o que tem de pior. Então, tudo o
que Husserl fala sobre o estado das ciências européias, por volta
de 1930, você vê que em qualquer paı́s do Terceiro Mundo, as con-
seqüências daquilo aumentaram de maneira apocalı́ptica. A ponto
de você ver uma nação inteira, pobre, passando fome, e financi-
ando uma ciência inútil, produzindo balelas. E os sujeitos que
fazem isso, ainda reclamam que o paı́s tem que dar mais dinheiro

169
6 Preleção VI

para eles.
Um outro exemplo sobre o princı́pio da homogeneidade: ele
pressupõe um espaço tridimensional, euclidiano, homogêneo, em
todas as direções. Nós sabemos que o espaço tridimensional eucli-
diano é um espaço ideal, não de fato, real. É um espaço metafı́sico,
não um espaço fı́sico. O espaço fı́sico tem outras caracterı́sticas
que a Fı́sica moderna nem apontou. Se o princı́pio da Geome-
tria euclidiana não vale para o espaço real no qual nós vivemos,
nas condições desse Cosmos aqui, significa que o Cosmos não é
homogêneo em todas as direções, nem em todos os tempos. Por
exemplo, por quê você supõe que o homem de Neanderthal, ou
os gregos, os romanos, enxergavam da mesma maneira que nós?
Quando nós dizemos que o céu é azul, será que o que eles cha-
mavam de azul é exatamente igual ao que hoje nós chamamos de
azul? Será que não houve modificações profundas na percepção
humana ao longo da História? Existe uma História cósmica, o qual
existe um tempo em que a História se modifica. Mas, se modifica,
de que vale a nossa indução ao longo dos anos? Ela vale quando
você tem a idéia do campo delimitado ao qual aquilo se aplica.
Qual é o princı́pio de delimitação do campo em, por exemplo, pes-
quisa médica? Nunca perguntaram isto. Tanto não perguntaram
que partem de pesquisas pretensamente universais sobre o fumo, o
câncer, e assim por diante. Mas isso são entidades abstratas. É pre-
ciso que haja um princı́pio de delimitação e especificação de cada
campo. Isto mal começou. quando se fala dos erros da profissão
médica, o erro que o povo é o erro da prática mesma. Mas, esses
erros seriam diminuı́dos em oitenta por cento se não houvessem
os erros no campo biológico.
Entretanto, sempre há um resı́duo de erros práticos, por exem-
plo, incompetência, burrice, desonestidade, e uma série de outros
fatores aleatórios. No entanto, eu acredito, sinceramente, que a
quase totalidade da profissão médica é constituı́da de gente ho-

170
6 Preleção VI

nesta. De gente que, até quer acertar, mas não pode acertar. Na
verdade, o que me espanta é que hajam tão poucos erros, porque
nessas condições era para ter muito mais erros.
Por outro lado, os erros da profissão médica abrem os flancos
a ataques de movimentos alternativos, mı́sticos, que dizem que
a ciência médica está baseada em princı́pios errados. Como os
médicos vêem que existe o problema dos erros médicos, se sentem
culpados, e cedem a esse tipo de argumentação. Quando não é
para ceder. A Ciência não está errada. Nós apenas não estamos
fazendo Ciência. Estamos fazendo outra coisa. Tem que corrigir,
mas dentro da mesma linha de fidelidade ao ideal puro de Ciência.
Qualquer empreendimento humano, se ele não é perpetuamente
corrigido por um retorno ao intuito originário, você se esquece do
que está fazendo ali, acaba caindo na armadilha, e vai parar longe
do proposto original. Se você não sabe o que está fazendo, você
vai sendo gradativamente empurrado, sem perceber, para outro ob-
jetivo.
A Ciência não está errada. A Ciência é um ato humano, uma
vontade humana. Ninguém é cientista forçado, obrigado pelas leis
da natureza. Foi uma série de decisões humanas, sustentadas por
um intuito humano. O que norteia um impulso humano? A noção
de um objetivo. Se você esqueceu o objetivo, e continua achando
que pelo piloto automático vai acabar parando no mesmo ligar,
isso é um absurdo. O sujeito não pode esquecer qual é o objetivo
da investigação: ele deve estar querendo procurar um nexo evi-
dente, fundamentado entre tais ou quais fenômenos. Ele precisa
conhecer esses fenômenos de um modo evidente, e estabelecer en-
tre eles um nexo de evidência, porém que esse nexo seja logica-
mente evidente com o resultado. Fazer Ciência é isto. Não é outra
coisa.
Para cada operação cientı́fica em particular, trata-se de você
lembrar o que é Ciência. Senão, você aperta o botão do piloto

171
6 Preleção VI

automático e continua como se, sem evidência nenhuma, e pelo


simples fato de que você seguir o procedimento padrão, aquilo pu-
desse ter alguma validade cientı́fica. Em geral, não tem nenhuma.
Você vai ver que, na maior parte dos casos, o indivı́duo está mais
ou menos inconsciente. Ele está apenas seguindo uma rotina pro-
fissional. E ele acredita que não cabe a ele estar consciente das
implicações daquilo tudo, porque a classe social a que ele pertence
há de corrigi-lo. Ele conta com um mecanismo de correção social,
automático, o qual não vigora na quase totalidade dos casos. ele
está supondo que existe um super-cérebro que se chama “classe
cientı́fica”, e que o corrigirá.
A classe cientı́fica é composta de cientistas. Se nenhum cien-
tista fala, avisa, a classe inteira não ficar sabendo. Não é nem ga-
rantido que eles vão ler o seu trabalho, visto que eles não prestam
atenção nem no trabalho deles. Nas ciências humanas, isso chega a
efeitos de uma monstruosidade sem par. Por exemplo, existe uma
escola sociológica, que foi fundada por ...(?), e que fundaram uma
revista chamada “L’Année Sociologique”, que parte do princı́pio
de que as estruturas fundamentais do pensamento humano são uma
transposição, uma externalização de padrões sociais. Ou seja, a es-
trutura social, polı́tica, etc., surge primeiro, e como imitação disso,
surgem os esquemas do pensamento lógico. Isso é uma estupidez.
Isso é uma coisa que os sociólogos admitem como um pressuposto
implı́cito, e nunca pararam para pensar se isso pode ser assim. Só
que isso já está derrubado, com Husserl, em 1910, e a sociologia
mundial ainda não tomou conhecimento disso.
Na hora que você demonstra aqui que os nexos lógicos funda-
mentais, não dependem da psique humana, do funcionamento da
mente humana, como é que poderia surgir, não só da mente hu-
mana, mas uma criação da definições de papéis sociais, e daı́ você
copia, adapta, e fica uma coisa chamada pensamento lógico? O
nexo lógico é anterior a qualquer experiência humana, é anterior

172
6 Preleção VI

até à humanidade, e não depende absolutamente dos circuitos do


pensamento humano real. O ponto básico dele é que a Lógica
pura se identifica com o cálculo puro, com a Aritmética pura. Se
a Lógica é uma parte da Psicologia, a Aritmética também é. Isto
é o mesmo que dizer que a Aritmética foi inventada a partir das
definições sociais, que o raciocı́nio, a veracidade da Aritmética
depende das definições sociais.
Isso é um problema que no campo da metodologia, ninguém
sustenta mais essa tese. a tese psicologista acabou aqui. Mas, no
campo da sociologia, são todos psicologistas, porque eles não se
posicionam declaradamente em face disso. Eles tomam isso como
um pressuposto. E toda uma nova safra de estudos é baseada nesse
pressuposto. Ou seja, estão exatamente 82 anos atrasados. Basta
pegar o livro do Husserl para saber disso. Mas, eles não fazem
isso.
Se você pegar a Sociologia brasileira, como a Sociologia no
Brasil, é uma ciência de bar. A intelectualidade brasileira nunca
parou para pensar no assunto. Com base nisto, você explica os
movimentos sociais, você orienta o pensamento da sociedade. Isto
não é Ciência, é uma retórica, é uma forma de dominação, é uma
casta de mandarins.

173
7 Preleção VII
19 de dezembro de 1992

Mas esta fundamentação metafı́sica concerne meramente às


ciências que tratam do mundo real, e nem todas tratam deste;
por exemplo, as ciências matemáticas, cujos objetos são pensados
como meros sujeitos de puras determinações ideais, independente-
mente do ser e do não ser real. A segunda classe de investigações
se refere a todas as ciências, porque diz respeito a aquilo que faz
com que as ciências sejam ciências. Estas investigações são a “te-
oria da ciência”.
Em princı́pio, ele se divide em dois lados nesse aspecto, por-
que, de em lado, para que exista um conhecimento fundamentado,
é necessário que se tenha alguns pressupostos que digam respeito
ao que é a natureza do real. Por exemplo, o princı́pio de homoge-
neidade, onde o real é homogêneo, não existem hiatos, não existe
uma transição que passa de um universo regido por determinadas
leis, para outro universo, regido por leis completamente diferentes.
Isto é um pressuposto de ı́ndole metafı́sica. Inclusive, alguns
filósofos não aceitaram isso. Epicuro não aceitava isso. Ele dizia
que o mundo, tal como nós o vemos, resulta de uma combinação
fortuita de átomos que se movem em todas as direções. Ora, se deu
uma combinação fortuita aqui, pode ter dado outra combinação
fortuita, diferente, em outra parte. Daı́ o princı́pio de homogenei-
dade, não vale.
Isso parece muito extravagante, mas ainda hoje, há quem pense

174
7 Preleção VII

assim. Mesmo dentro da Fı́sica, há alguns sujeitos que se incli-


naram para uma solução desse tipo. É evidente que, se optamos
por uma metafı́sica dessa ordem, a fundamentação da Ciência, ou
cai por terra, ou teria que ser completamente diferente. Porém,
Husserl diz que isso aı́ se refere somente às ciências que tratam
do mundo real, do mundo das experiências. Há ciências que não
concordam com isso, por exemplo, Matemática pura, quando diz
que 2+2 = 4, nós estamos tratando desses números como sujeitos
de juı́zo meramente possı́vel. Independente de existir um 2, ou de
existir um 4, 2 + 2 vai continuar sendo 4. Não depende que seja
2 isso ou 2 aquilo, e não depende de que exista nem mesmo o 2.
Se nós concebermos a Matemática como um esquema puramente
inventado, as suas leis continuariam exatamente as mesmas.

Estas ciências não necessitam deste tipo de fundamento me-


tafı́sico. Porém, necessitam de um outro tipo de fundamento, que
não se refere ao sue objeto, mas a elas mesmas. Ou seja, uma
fundamentação que distingue essa ciência de um outro conheci-
mento não-cientı́fico e prescreve certas exigências que elas têm
que cumprir para poderem ser verı́dicas. Mesmo que a ciência não
trate do mundo real, se fosse uma ciência puramente formal, como
a Matemática, ainda assim é preciso que ela tenha um fundamento
que explique por quê ela é uma ciência, porque o cálculo funci-
ona. O primeiro tipo de fundamento é metafı́sico, e o segundo
seria gnosiológico, ou referente à teoria da Ciência. A Gnoseolo-
gia e a Epistemologia seriam a mesma coisa.

175
7 Preleção VII

7.1 6. Possibilidade e justificação de


uma lógica como teoria da ciência
A ciência refere-se ao saber. Não que ela seja uma soma ou te-
cido de atos de saber. Só em forma de obras escritas tem ela uma
existência própria, ainda que cheia de relações com o homem e
suas atividades intelectuais. Ela representa uma série de dispositi-
vos externos, nascidos de atos de saber e que podem converter-se
de novo em atos semelhantes, de inumeráveis indivı́duos.
Ou seja, como é que a Ciência chega ao nosso conhecimento?
Como é que nós sabemos que existe Ciência? Principalmente, por-
que existem livros, disquetes, filmes, etc., que registram alguns
atos de saber que foram cometidos por homens, em outras épocas
remotas, ou recentes.
Husserl diz que a Ciência não se constitui propriamente dos atos
de saber, mas dos conjuntos de registros desses atos de saber, e
que esses registros se caracterizam pelo fato de que eles podem se
transformar, novamente, em atos de saber, na hora em que você
entende, intelige, aqueles atos.
A nós basta-nos que a ciência implique ou deva implicar certas
condições prévias para a produção de atos de saber, cuja realização
pelo homem “normal” possa considerar-se como um fim acessı́vel.
Neste sentido a ciência aponta ao saber.
Qual é a relação entre a ciência e o saber? A ciência não se
constitui propriamente do saber, mas de um conjunto de dispo-
sitivos externos que, para um homem normal, em circunstâncias
normais, propiciariam uma renovação, uma retomada, desses atos
de saber.
Pois bem, no saber possuı́mos a verdade. No saber efetivo,
possuı́mo-la como objeto de um juı́zo justo. Mas isto só não basta.
Veja que há um juı́zo que corresponde à verdade, ou seja, nós fa-

176
7 Preleção VII

zemos o ato de saber a medida e no momento onde proferimos, ou


podemos proferir, em voz alta, para nós mesmos, uma sentença do
tipo x é y, sendo que x, de fato, coincide de ser y. Ou seja, quando
o conteúdo do nosso juı́zo corresponde à verdade, dizemos que
isso é um juı́zo justo. E o saber, particularmente o saber cientı́fico,
se apresenta para nós sob a forma de uma seqüência de juı́zos, um
conjunto imenso de juı́zos, de afirmações que se pretendem justas,
ou seja, correspondentes com a verdade.
É necessário, ademais, a evidência, a luminosa certeza de que
aquilo que reconhecemos que é, ou de que aquilo que rechaçamos
não é;
Não basta que o juı́zo seja justo. É necessário que nós saibamos
que ele é justo, e que o juı́zo contrário é falso.
Assim, a Ciência seria uma série de juı́zos, ou proposições, que
são verdadeiras porque nós temos a evidência de que aquilo que
elas afirmam, é de verdade, e de que o contrário daquilo não é.
Certeza que é preciso distinguir da convicção cega, da opinião
vaga, por resoluta que seja. A linguagem corrente, porém, não
se atém a esse conceito rigoroso do saber. Chamamos também
ato de saber, por exemplo, o juı́zo que vem enlaçado com a
clara recordação de haver pronunciado anteriormente um juı́zo de
idêntico conteúdo, acompanhado de evidência (“Sei que o teorema
de Pitágoras é verdadeiro, mas esqueci a demonstração”).
Não é necessário para que seja um ato de saber, que exista
uma evidência presente. Se eu repito agora, sem renovar o ato da
evidência, um juı́zo que eu me recordo de haver proferido outrora,
com evidência, isso também é chamado de um ato de saber.
Nós vamos ver que isso é a fonte de quase todos os proble-
mas, porque o ato de evidência pelo qual obtive um conhecimento,
outrora, ele se expressa numa fórmula, numa proposição, e essa
proposição pode ser registrada e pode continuar sendo repetida in-
definidamente, sem ser acompanhada de sua evidência respectiva.

177
7 Preleção VII

Na medida em que se faz isso, é evidente que se pode introdu-


zir, gradativamente, sutis mudanças de significado, de modo que
o juı́zo fundado em evidência acaba sendo usado posteriormente
para fundamentar falsidades.
Porém, teoricamente, nós poderı́amos dizer que somente o juı́zo
acompanhado de evidência é verdadeiro. O outro nós não sabe-
mos. Na prática, não dá para você puxar, a todo momento, um
ato de evidência a respeito de todos os juı́zos. Então você liga o
piloto automático e vai pronunciando aquela série de juı́zos que
você se lembra de terem sido evidentes algum dia. Periodica-
mente, quando você faz a pergunta: “Por quê eu confio nisso?”,
“Qual é o fundamento disso?”, e você vai rever o fundamento de
evidência, você vê que fez um monte de erros. Isso significa que
o saber não pode funcionar totalmente no piloto automático, em-
bora aquilo que nós chamamos de Ciência na vida prática, se apóie
amplamente nesse piloto automático. Isto porque a Ciência é um
conjunto de registros produzidos pelo homem, e transmitido de
geração a geração, de sociedade a sociedade.
Assim, pela exigência prática, é evidente que a maior parte
disso acaba sendo transmitido na base da credibilidade atribuı́da
à própria classe cientı́fica, e não na base de atos de evidências, de
novas intuições feitas pelos indivı́duos a quem o conhecimento foi
transmitido. Resultado: junto com as evidências, vai passar um
monte de informações falsas. Isso é um problema prático. Prati-
camente insolúvel.
Este é um dos motivos pelos quais eu não acredito muito no
progresso do conhecimento. Acredito que existe progresso no re-
gistro dos conhecimentos e, pessoalmente, tendo a acreditar que
só existe conhecimento no instante do ato intuitivo. Isso, Husserl
não diz, mas já é um radicalismo de minha parte.
O conhecimento efetivo é muito mais raro do que se imagina.
O homem possui muito menos conhecimento do que ele supõe

178
7 Preleção VII

que tenha. O que ele tem é um potencial de fórmulas que são


como comida desidratada. a transmissão da massa de informações
só aumenta a esfera do conhecimento potencial. Então, qual é a
diferença que existe entre a realidade da experiência e os registros
dos conhecimentos? Ambos são conhecimento em potencial. Se
eu tenho aqui uma pedra, ela tem uma determinada estrutura, uma
composição, etc., e tudo isso é um conhecimento potencial que
está nela. Tão logo eu examine a pedra, eu trarei à luz todo esse
conhecimento, eu conscientizarei toda essa estrutura que está den-
tro da pedra. Elas estão colocadas sob forma de presença fı́sica, e
se tornarão uma presença intelectiva. O aspecto intelectivo da pe-
dra está nela, mas só potencialmente. Assim, chega um momento
em que eu intelijo, e a pedra se transforma num objeto de conheci-
mento, e não só em objeto existente. O conhecimento registrado,
o livro, por exemplo, é exatamente a mesma coisa.
A atividade cognitiva humana produz objetos materiais que ape-
nas são a tradução da inteligibilidade das coisas, numa inteligibi-
lidade verbal — que também tem sua dificuldade. Então, o conhe-
cimento se realiza, excepcionalmente, em certos momentos muito
privilegiados, quando o sujeito presta uma grande atenção a aquele
momento em que ele tem um ato intelectivo.
Tudo isso que eu estou colocando é de minha parte. Husserl
não fala nada sobre isso. Ao contrário, ele acredita piamente na
comunidade cientı́fica, na possibilidade de um saber produzido
coletivamente, e entendido coletivamente. Eu já sou um pouco
mais pessimista do que ele. Tentam formar um intelectual cole-
tivo, numa coletividade de pessoas de Q.I. 25. Se não houver, pelo
menos, um sujeito inteligente, o intelectual coletivo desaparece.
Assim, o quê seria propriamente a Ciência? Seria um con-
junto de objetos materiais, que registram certas informações em
códigos, tal como elas são quantificadas na própria natureza. Só
que a natureza está quantificada com a fórmula material, e nós pas-

179
7 Preleção VII

samos para uma forma verbal e lingüı́stica que, teoricamente, seria


mais fácil de ser decodificada. É só isso. Porém, esse “mais fácil”
é relativo, porque a facilidade diminui à medida que aumenta o vo-
lume de registros. Eu acho que este é o maior problema do século
XX. Levy-Strauss disse que a cultura é uma espécie de almofada
entre o homem e a natureza, e que nós nunca temos um contato di-
reto com o mundo real a não ser através da cultura. Acontece que a
cultura é constituı́da de potenciais de conhecimento, por exemplo,
o sujeito que coleciona livros sem jamais os ler. Isso hoje é muito
comum. Por quê isso acontece? Porque ele acha que comprando a
Enciclopédia Britânica, ele tem melhores meios de conhecimento.
A enciclopédia é como se fosse uma programa de computador, que
se você pedir as informações ele te dará, mas se você não pede, ela
não te dará nada.
Isso tudo eu comecei a pensar a mais de vinte anos atrás, e eu
vi que se é assim, então o problema da educação não é a trans-
missão do conhecimento, mas é a criação de condições para uma
espécie de estado de evidência quase permanente. E, mais ainda,
o tempo que você leva na escola, desde que você entra até que
você saia, aproximadamente dezoito anos, nesse perı́odo, quanto
que a Ciência caminhou em novas descobertas? Quanto aumentou
em volume de pessoas, a classe cientı́fica? Quantos novos insti-
tutos foram fundados? Quantos novos livros foram publicados?
De forma que quando você sai da faculdade, você já foi vencido
pela corrente. Cria, então, o que hoje é a corrida contra o cresci-
mento das informações. E essa corrida é utópica. Qualquer um
que entre nela já perdeu. Só que tudo isso aı́ surge do conceito
errado do conhecimento, e às vezes o conhecimento é o registro.
É como se fosse um conjunto de números numa loteria que, de vez
em quando você vai sortear algum.
Não adianta absolutamente você tentar atualizar o sujeito, fazer
com que ele ganhe a corrida. Não adianta você organizar melhor a

180
7 Preleção VII

informação como, por exemplo, existe hoje um investimento mun-


dial na organização da informação cientı́fica para que tudo seja
mais facilmente acessı́vel. Só que quanto maior a facilidade de
acesso, quanto mais organizado está, mais informação você pro-
duz. A própria produtividade da máquina do conhecimento es-
maga o indivı́duo. O crescimento do conhecimento é compen-
sado por um crescimento proporcional da ignorância. Às vezes até
maior. E o que é pior, cada nova geração surge tão burra quanto a
anterior. Só que o que ela tem que aprender é muito mais que a an-
terior. Resultado: se nós entendemos o conhecimento, a educação,
como um problema da transmissão das informações, nós já perde-
mos a guerra.
Não obstante, você vê que o conhecimento, de fato, progride,
e que algumas ciências, de fato, progridem. Isto quer dizer que a
base desse progresso não é a transmissão da informação. É alguma
outra coisa. É algum outro mecanismo, aparentemente mágico,
que está por baixo de tudo isso, e que permite que, de algum modo,
o homem acabe sobrepujando isso tudo. O problema fundamen-
tal da educação consiste em criar condições para que o indivı́duo
possa inteligir — e só. Mas, o quê ele vai inteligir? Não sei, por-
que não sei quais informações vão aparecer na sua frente. Não sei
do que ele vai precisar. Isso é imprevisı́vel.
Deste modo tomamos o conceito de saber num sentido mais
amplo.
A nota mais perfeita da justeza é a evidência, que é para nós
como que uma consciência imediata da verdade mesma. Mas
na imensa maioria dos casos carecemos deste conhecimento ab-
soluto, e em seu lugar serve-nos a evidência da probabilidade.
A evidência da probabilidade de um situação A não funda a
evidência de sua verdade; mas funda aquelas valorações compa-
rativas e evidentes, pelas quais logramos distinguir as hipóteses e
opiniões razoáveis das irrazoáveis.

181
7 Preleção VII

Em primeiro lugar, ele tem o ideal de uma série de conhecimen-


tos, que seria que o conhecimento fosse evidente, mas na prática
isso não acontece. Na maior parte das coisas, nós só temos uma
evidência indireta, ou seja, uma evidência através de uma prova,
através de uma longa cadeia dedutiva. Mesmo neste caso, o objeto
sobre o qual temos a evidência não nos é oferecido integralmente,
mas só sob a forma de uma probabilidade.
A nota mais perfeita da justeza do juı́zo é que ele seja evidente,
e que essa evidência dê uma consciência imediata sobre a ver-
dade mesma. Seja lá essa verdade o que for. No momento, isso
não nos interessa. Mas na imensa maioria dos casos, carecemos
desses conhecimentos absolutos, e em seu lugar nós temos uma
evidência da probabilidade, maior ou menor. Ora, a evidência da
probabilidade de um juı́zo não funda a veracidade desse juı́zo. O
fato de que um juı́zo seja provável não quer dizer que ele seja
verdadeiro. Porém, essa evidência de probabilidade fundamenta
a valoração de várias hipóteses que nós possamos concluir daı́.
Ou seja, uma evidência de uma probabilidade fundamenta o jul-
gamento razoável de hipóteses concernentes ao mesmo assunto.
Apenas razoável. Isso é problema do terreno da dialética.
Todo conhecimento repousa, pois, em última instância, na
evidência.
Não obstante, subsiste uma duplicidade no conceito de saber.
Saber, no mais estrito sentido da palavra, é evidência de que certa
situação existe ou não existe. De acordo com isto, a evidência
de que certa situação objetiva é provável é um saber no sentido
mais estrito (rigoroso) no tocante à probabilidade; mas, no tocante
à existência da situação objetiva mesma, é um saber em sentido
mais amplo (vago).
Se nós temos a evidência de que uma situação objetiva existe,
ou não existe, por exemplo, nós temos a evidência de que nós es-
tamos aqui, agora; essa evidência não é probabilı́stica. Porém,

182
7 Preleção VII

lançamos a pergunta: “A Noemi está presente?”. É uma pergunta


probabilı́stica, porque há uma probabilidade de que ela esteja pre-
sente, sob forma incerta. Ela pode estar atrás da porta, pode estar
no banheiro, etc.
Porém, se nós chamamos de saber a primeira dessas hipóteses, a
de que nós estamos aqui, isso é um saber no sentido estrito. Porém,
se nós dissemos que há 72% de probabilidade de que a Noemi es-
teja aqui, atrás da porta, isto é um saber, não no mesmo sentido da
anterior, porque nós temos uma evidência da probabilidade, mas
não uma evidência da coisa. Quando nós chamamos isto de saber,
isto é um saber no sentido mais elástico.
Vejam, então, que demência que é as pessoas confiarem tanto
em estatı́stica, como algo seguro. Estatı́stica é uma unidade de
probabilidade. E a probabilidade só é um saber num sentido deri-
vado, elástico. Ela não é bem um saber. É exatamente o que ele
está dizendo aqui.
Neste último caso fala-se de um saber ora maior, ora menor,
e se considera o saber em sentido estrito como o limite ideal e
absolutamente fixo a que em sua série ascendente se aproximam
assintoticamente as probabilidades.
Isto é uma curva que vai se aproximando de um limite, mas não
o alcança jamais. A evidência de probabilidades se aproxima de
um saber evidente, assintoticamente. Se a evidência de probabili-
dades for de 100%, então já não é mais probabilidade. É um saber
no sentido estrito.
Mas o conceito de ciência exige mais do que mero saber. É ne-
cessário algo mais: conexão sistemática em sentido teorético; e
isto implica a fundamentação do saber e o enlace e ordem perti-
nentes na sucessão das fundamentações.
Agora a coisa complicou. Para que seja Ciência, você tem
que ter um saber. Esse saber só pode ser no sentido estrito, num
número dito de casos. Na maior parte dos casos, é um saber pro-

183
7 Preleção VII

babilı́stico que se aproxima idealmente de um saber estrito, que


ele não vai alcançar nunca.
Porém, em qualquer dos dois casos, se trata de um saber no sen-
tido estrito, ou no sentido amplo. Mas o saber só não constitui a
Ciência. A Ciência é um conjunto de conexões entre esses sabe-
res, e essas conexões, por sua vez, elas também têm que ser um
saber. A Ciência está mais propriamente nos nexos entre os vários
saberes e nos fundamentos desses nexos.
A essência da ciência implica, pois, a unidade do nexo das
fundamentações, em que alcançam unidade sistemática não só os
distintos conhecimentos, mas também as fundamentações mesmas
e, com estas, os complexos superiores de fundamentações, a que
chamamos teorias.
Vamos fazer um diagrama: temos um conhecimento A, um ou-
tro B, outro C, e outro D. Esses conhecimentos, de fato, estão
sendo conhecidos por evidência. Porém, por um simples enlace,
através de um nexo de um sistema de causas presentes.
A(causa)B = (identidade) = CD
Quando você diz que A é causa de B, você descobre que B é
idêntico a C. Então, você conectou B e C através da identidade.
Assim, identidade, espaço, tempo, são os nexos com que você vai
fundamentando as várias evidências isoladas que você tem.
Entretanto, como que esses fundamentos se enlaçam entre si?
Nós podemos perguntar: Existe identidade no tempo? Quando se
diz que uma coisa é igual a outra, essa identidade persevera no
tempo? Ou a identidade só existe entre objetos ideais? Isso é uma
questão metafı́sica, não é?
Entenderam como que os conhecimentos dependem dos ne-
xos, e estes das fundamentações? O fato de poder fornecer uma
explicação de conjunto para esses fundamentos, que fundamentam
os nexos, e que por sua vez, fundamentam o conhecimento, é isso
que caracteriza a Ciência. Se você sabe que um fato tem algo a

184
7 Preleção VII

ver com um outro fato, mas não têm ambos que ver com isso, es-
ses dois fatos são concomitantes? Um é causa do outro? Um é
aspecto, uma parte, do outro?
Na clı́nica médica isso acontece o tempo todo. Por exemplo, um
sinal qualquer que você perceba no corpo de um paciente, isso é
uma evidência, é um dado evidente. Como é que você vai conectar
isto com uma determinada patologia? Você vai dizer que isto é um
sinal daquilo. Mas, é um sinal, em que sentido? Foi a doença
quem causou aquilo, ou aquilo é parte da doença? Na medida
em que você vai interpretando esses sinais, você está enlaçando
os vários conhecimentos à luz de categorias de causa, identidade,
parte e todo, posterior e anterior, etc. Na prática, é exatamente isso
o que você faz.
Entretanto, esses nexos que você descobre entre os fatos, que
fundamento teria? O quê é isso? Então, vai haver um fundamento
teórico dessas fundamentações. Isso é o que se chama de teoria.
Isto quer dizer que, sem a teoria que fundamente os fundamentos,
as coisas não têm nexo algum.
Por quê as pessoas acham que a medicina mágica dos primiti-
vos está errada? Porque ela conexiona as coisas de maneira errada.
Por exemplo, se você fica doente, o sacerdote diz para você pegar
o seu animal totêmico, como uma simpatia, para que a doença seja
curada. O sacerdote está estabelecendo um nexo entre uma coisa
e outra. Daı́, chega o cientista e diz que esse nexo não existe. É
puramente imaginário. O processo da simpatia é simbólico. No
próprio simbolismo você não fundamenta tudo igual. É diferente
você propor um simples nexo analógico e você ver uma ligação
real entre aqueles entes. Por exemplo, essas cadeias de analogias
que se fazem com o simbolismo. Em que medida o sol, o leão, e o
girassol — que estão conectados simbolicamente — estão conec-
tados realmente? Em que medida você, mexendo num deles, você
afeta o outro?

185
7 Preleção VII

A magia diz que é possı́vel que você, através de um deles, al-


cance o outro. Mas nem sempre. É preciso que haja um monte de
outros nexos. Na verdade, o raciocı́nio mágico é muito mais com-
plexo que o cientı́fico. Vejam, por exemplo, o processo alquı́mico.
Ele consiste na regeneração do mundo metálico por uma inter-
ferência humana. Você vai transformar o chumbo em ouro, e com
isso você vai regenerar uma parte da natureza que está ...(?). Eu
acho que isso é possı́vel. Porém, como se faz isso? Primeiro,
você precisa descobrir o nexo que existe entre um mineral e um
vegetal. Porém, este nexo só se torna evidente em determinados
momentos, muito peculiares, onde as conjunções astrológicas, de
certo modo, o evidencia. Então, você precisaria colher elemen-
tos minerais de uma planta, porém, em um determinado momento,
sob uma conjunção astrológica, que pode acontecer talvez no ano
2073. Vejam o conjunto imenso de nexos que têm que ser estabe-
lecidos.
Na verdade, os nexos que são usados na Ciência moderna são
muito mais simples. Muito mais fáceis de você encontrar. Ou
seja, a fundamentação teórica da alquimia é muito mais compli-
cada. No fim vai ser a mesma coisa, porque você vai lidar com um
número de elementos infinitamente mais rápidos. Se você vai a um
médico e diz: “Doutor, estou com o nariz escorrendo”. Ele tem
uma evidência dos sentidos, ao ver que o nariz está realmente es-
correndo. Isto é uma saber, uma informação, que ele tem. Porém,
depois, ele vai dizer que isto é um sinal de alguma coisa. Este sinal
é um complexo de outros sinais, no qual ele acredita enxergar uma
determinada patologia. Qual é o nexo entre uma coisa e outra?
Qual é a função desse nariz escorrendo? Se o nariz escorrendo é
uma gripe, será que não pode haver uma gripe sem nariz escor-
rendo? Pode. Pode haver uma gripe sem dor alguma, em parte
alguma? Não. Então, o nexo entre o nariz escorrendo e a gripe
não é o mesmo nexo entre a dor e a gripe.

186
7 Preleção VII

Esses vários sinais estão conexionados diferentemente. Isto


aqui pode ser, por exemplo, um sinal mais ou menos casual. Pode
ser até, uma idiossincrasia daquele médico: sempre que ele vê um
indivı́duo gripado, ele pensa nas ...(?). Isto é uma idiossincrasia
dele, que está conexionada com a gripe, mas somente através da
conformação pessoal daquele indivı́duo.
Mas existem outros sinais que estão sempre presentes na gripe,
que podem ser, algia, astenia, etc. O que está sempre presente em
toda gripe? Poderia ser um estado febril. Mas o estado febril é
uma febre em potencial. Se o indivı́duo não tem febre, como é
que se pode dizer que ele está num estado febril? Porque ele teve
antes, e pode ter novamente daqui a pouco, não é mesmo? Vejam
como é complicado!
Isto quer dizer que, quaisquer sinais e quaisquer sintomas, ja-
mais estão conexionados uns com os outros, em função de uma
patologia, porém em função de uma constituição individual. O
conjunto de nexos é completamente diferente. Vejam que o con-
ceito de uma patologia, gripe, icterı́cia, hepatite, bicho-de-pé, etc.,
tudo isso são elementos teóricos com os quais você fundamenta
as conexões que estabelece. Por exemplo, você vê dois sinais e
você diz que isto é hepatite, e eles costumam aparecer juntos na
hepatite, probabilisticamente. Porém, um outro médico diz que
tudo isso não existe, e que é tudo um nome que você dá. Um si-
nal não está conexionado com outro porque existe uma entidade
chamada hepatite, porém, porque este indivı́duo tem uma determi-
nada constituição, e nessa constituição esses sinais se conexionam
deste maneira. Então, a noção de constituição “come” a noção da
patologia.
Esta é a tendência dos homeopatas. Eles não gostam de nomes
de doenças, mas só gostam de nomes de constituições individuais.
Quando o homeopata diz que você é sépia, ou que você é (natrium
muriático), ele está falando o conjunto de nexos que se produzem,

187
7 Preleção VII

não em função de uma doença, mas em função de uma constituição


individual, a qual se manifesta de uma maneira, ora saudável, ora
doentia.
Assim, se você estrutura toda a clı́nica médica em cima das
noções das patologias, ou das constituições, você tem um modo
de raciocinar completamente diferente num caso e no outro. Você
pode pegar indivı́duos diferentes, por exemplo, um gordo, enorme,
vermelho, e outro, astênico, com 1,20 metros de altura, pesando
41 quilos, e você poderia raciocinar de maneira mais ou menos
análoga em ambos os indivı́duos, se os dois estivessem com hepa-
tite. Porém, se você raciocina baseado na constituição, você não
pode fazer isso jamais. Eles jamais terão a mesma doença. Assim,
a doença para um é concreta, para o outro é abstrata. É tudo te-
oria mesmo. E o quê é teoria? É um conjunto de nexos entre as
fundamentações, com as quais você vai conexionar depois, vários
conhecimentos, vários dados.
A noção de doença, de patologia, é um dos fundamentos para
se dizer que existe doença, e os mesmos quadros que se repetem
entre indivı́duos diferentes. Assim, este conceito de doença é um
dos fundamentos do raciocı́nio que, depois, você vai fazer. Porém,
outra pessoa não pode dizer que não existe doença propriamente,
mas só existem as constituições individuais. Isto quer dizer que
os sinais encontrados terão que ser conexionados, não em função
deste fundamento denominado doença, mas em função deste outro
fundamento denominado constituição. São duas teorias diferentes,
e elas vão fundamentar sistemas diferentes de nexos que você es-
tabelece entre os sinais. E se fosse magia? Seria a mesma coisa.
Só que os conceitos fundamentais da magia são muito mais com-
plicados. É uma fundamentação muito mais indireta, e por isso
mesmo, na prática nós acabamos abandonando-a. Ou praticando
magia sem fundamento algum. Seria uma pseudo-magia.
Você diz que a icterı́cia é um sinal da hepatite. Isto quer dizer

188
7 Preleção VII

que a hepatite causou a icterı́cia? A doença é causa do sinal? Se


assim fosse, onde quer que ela estivesse presente, o sinal também
estaria presente. Se, às vezes está presente, às vezes não está, então
não basta a doença para causá-la. Há uma outra causa concomi-
tante. O mesmo sinal poderia estar numa outra doença. Então,
você não pode dizer que a doença é a causa do sinal. A patologia é
sempre a mesma coisa. A hepatite é sempre a mesma coisa. Isto é
um conjunto de esquemas genérico, prático, comum, apresentado
em casos diferentes. Com isso você constrói o conceito de uma
determinada patologia. Isto é uma teoria.
Por outro lado, há uma outra teoria que se desinteressa de tudo
isso, e estuda as constituições individuais. Então, a constituição
do indivı́duo é x ou y, e ela poderá se apresentar de maneira sã,
ou de maneira mórbida, em tais ou quais circunstâncias. Mas, tem
que haver uma terceira teoria que conexione os dois critérios e que
não seja nem uma, nem outra.
Não se precisa dizer que, na prática, as pessoas fazem essa fusão
sem estarem conscientes em o quê elas estão se baseando. Como
isto pode dar certo, eu não sei, mas o fato é que costuma dar
certo. Se você perguntar se macumba funciona, às vezes funci-
ona, mas também não sei por quê. Na prática cientı́fica, existe
uma faixa de fé, magia, fantástica. Isto funciona porque os fun-
damentos teóricos, embora não estejam conscientes na mente do
indivı́duo, eles existem, e eles estão disseminados no corpo da pro-
fissão médica, cientı́fica, de modo ...(?)... [ troca de fitas ] Entre-
tanto, quando falha, falha tudo ao mesmo tempo. O coeficiente
se segurança, por exemplo, é uma outra teoria de ordem proba-
bilı́stica. Como é que este coeficiente de segurança está conexi-
onado com estas outras três teorias? É muito raro que haja um
indivı́duo que esteja, de fato, consciente de todo esse conjunto de
nexos na hora de praticar. Esta é a grande diferença entre um
grande cientista e um pequeno cientista. Um sabe da complexi-

189
7 Preleção VII

dade da coisa toda, e por isso mesmo está aterrorizado. O outro


não está, e diz que se ele não sabe, alguém deve saber. E, além
disso, ainda existe a margem de segurança.
Assim, quanto mais o indivı́duo esteja consciente do funda-
mento teórico daquilo que ele está fazendo, mais claramente ele
percebe nexos, e distingue os nexos reais, dos imagináveis, e dos
prováveis.
Estamos falando de clı́nica médica. Imaginem na pesquisa pura.
Na clı́nica médica é inevitável que você ligue o piloto automático,
confiante de que haverá um colega que assinalará o erro, ou que o
paciente manifeste o seu erro de uma maneira não-letal, e você irá
corrigi-lo, se você quiser.
Vejam que entre qualquer ato de inteligência cientı́fica, médica,
e a teoria do fundamento, existe uma longa cadeia, e isto é muito
mais complicado do que parece, e que estas teorias ficam coloca-
das ali no fundo como uma retaguarda que está orientando o con-
junto, mas, de longe, sem aparecer. Porém, a quase totalidade dos
erros pode se explicar pela aplicação da teoria errada, e não por-
que o conjunto da ciência médica esteja errada. A ciência médica
está certa, mas como um conjunto, o qual é um saber potencial
que está depositado nos livros, nos disquetes, etc., e o fato é que
o paciente não vai consultar os livros, mas vai consultar um, ou
um grupo de determinados médicos. Se este saber todo não se
realiza efetivamente na mente daquele indivı́duo, não como co-
nhecimento teórico, e sim como fundamento teórico daquele nexo
que ele estabelece naquele momento, o paciente estará em apuros.
Portanto, o problema não é você ensinar um monte de coi-
sas ao médico, mas é preciso que você dê uma convicção para
que ele intelija as coisas corretamente na hora em que ele en-
xerga. Senão, ele vai confundir concomitância com causa, com
uma manifestação acidental, com um efeito necessário, e assim
por diante. Vejam, por exemplo, um programa de computador,

190
7 Preleção VII

que é um conjunto imenso de nexos que foram estabelecidos por


outras pessoas, em outras épocas, transformados em linguagem de
computador e registrados ali. Ou seja, é toda uma cadeia dedu-
tiva, a qual você só tem o produto final, e você nem tem idéia de
como tudo aquilo foi feito. Deste modo você está muito longe
da fundamentação. O livro foi um instrumento que proporcionou
progresso num certo sentido, e ignorância num outro sentido. Não
é pelo fato de que a coisa está escrita no livro que você não pre-
cisa sabê-la pessoalmente. Eu acredito no conhecimento portátil,
ou seja, aquele que está no indivı́duo, pronto para ser efetivado a
qualquer momento, onde houver necessidade. O que está no livro,
no computador, não é conhecimento. É um registro de conheci-
mentos. E é justamente no acúmulo do registro não-efetivado que
...(?) o indivı́duo. Eu acho que esse é o problema máximo da
educação. A capacidade de você absorver registros depende da
universalidade entre tudo o que não seja o conhecimento teórico.
Em suma, só interessa o conhecimento teórico. O resto vem com a
prática. A prática é infinitamente variada, segundo os casos. Não
adianta você guardar tudo uniformemente. Na hora em que você
uniformiza a prática e cria as rotinas, aı́ é que você introduz o bes-
teirol.
Qual é a diferença entre o saber teórico, normativo, saber
técnico, e saber prático? Se a educação não levar isto em conta,
tudo o que ela ensina, depois, vira pastiche. O sujeito achar que
o conhecimento técnico é melhor que o prático, ele é um louco.
Toda técnica é uniforme, e técnica só ensina a lidar com tipos de
problemas, e não com problemas especı́ficos. Portanto, a técnica
nada tem de prática. O que se resolve com a prática é porque não
tem técnica. A técnica se constitui sempre de preceitos gerais,
aplicáveis a tipos, a espécies de casos. Não existe uma técnica de
um caso em particular. Isto é precisamente a prática. A técnica
que você inventa na hora, é um saber prático. O que fundamenta o

191
7 Preleção VII

saber prático é o saber teórico, e não o saber técnico. Quanto mais


saber técnico você tem, mais você se confunde. O que interessa
é você ter um saber teórico profundo, e uma flexibilidade prática
total. A técnica você inventa na hora.
É claro que um pouco de técnica uniforme você precisa ter, mas
nunca confiar sempre nela. A tendência na medicina é você confiar
na uniformização técnica cada vez mais. O sujeito que não tem o
saber teórico, cada vez sabe improvisar menos.
[ intervalo da aula ]
Temos, então, uma hierarquia desse negócio todo:

Saber --> nexo --> fundamentos --> teoria.

Porém, não dá para mapear isso de uma maneira tão simples,
porque quando você chega a um nexo, qualquer tipo de ligação
que você estabeleça entre fatos é um nexo. Entretanto, a partir
do momento que você estabeleceu um nexo, por exemplo, “A ic-
terı́cia é um sinal da hepatite”, mas não indica necessariamente a
hepatite, você pergunta: “Por quê?” Qual é a diferença que você
estabelece entre esse nexo que existe, entre icterı́cia e hepatite, e
outro tipo de nexo que indicasse um efeito necessário da hepatite?
Qual é o nexo que você estabelece entre o traçado do eletrocar-
diograma e o estado do coração do paciente? O primeiro nexo é
que você supõe que o traçado acompanha a subida e a descida de
uma tensão elétrica, o que já não é muito exato. Daı́, as variações
da tensão elétrica refletiriam alterações no movimento cardı́aco,
e essas alterações refletiriam determinadas alterações sentidas no
próprio órgão. É toda uma cadeia de nexos. É um sinal muito in-
direto. E cada um desses nexos se fundamenta em alguma coisa
completamente diferente. Para um simples sinal, você precisa de
um conjunto de nexos baseados em fundamentações totalmente
diferentes.

192
7 Preleção VII

O motivo pelo qual você crê que o traçado num papel reflete
uma variação de potencial elétrico, e não uma outra coisa, é um.
Só isto já é um conjunto imenso de nexos. Quem te diz que
uma forma gráfica pode ser análoga ao ritmo do tempo? Durante
quanto tempo aquele coração bateu? Como é a medida, e como
fazer com que aquela medida seja precisa, e qual é o princı́pio da
analogia entre estas duas coisas? Na Música, por exemplo, existe
um nexo entre o traçado e o tempo, porque você determinou que
existe. Você convencionou. Mas, não é o que acontece com o
eletrocardiograma. Aquele traçado expressa um transcurso que já
aconteceu. Independe de você.
Por aı́ você vê que há uma série de nexos que depende de uma
fundamentação que vai, em última análise, se apoiar na teoria da
percepção humana. Tudo isto está pressuposto aı́. E se uma destas
teorias cair, cai o eletrocardiograma junto. É como a ponte Rio-
Niterói, onde a fundamentação, a base, está debaixo dágua, e você
passa por ela, porque você acredita que a base está lá, embora você
não saiba se isto é verdade.
Imaginem se vocês vão investigar isso na esfera da Psicanálise.
Um ato que você cometeu ao montar uma frase é interpretado
como um sinal de que você cometeu uma errônea associação de
idéias, o qual é interpretado como uma confusão entre duas esferas
desconectadas, o qual é interpretado como função de existência de
focos de preocupação estranhas ao assunto, a qual é interpretada
como um sinal de uma tensão remanescente de um outro aconteci-
mento, que não tem nada a ver com o assunto, o qual é interpretado
como um sinal de um conflito que aconteceu com o pai e a mãe,
quando você tinha quatro anos de idade. Como isso acontece?
Claro que tudo isto pode estar muito certo, mas não é assim, sem
mais nem menos, como se isso fosse uma coisa evidente.
A Ciência é um bloco totalmente sistemático, onde tudo está
apoiado em tudo. Não há espaços vazios. Por exemplo, no caso

193
7 Preleção VII

do eletrocardiograma, você está se fundando na eletricidade, na Fi-


siologia, na Fı́sica, etc. Ou seja, qualquer sujeito, partindo do ele-
trocardiograma, e remontando para trás, até os seus fundamentos,
vai ver que há esses fundamentos. Só que são fundamentos com-
plexos, indiretos. E, se ele tiver consciência disso, ele tem muito
mais critério para saber da aplicabilidade real daquela coisa. Se eu
sei por que uma coisa significa outra, eu posso saber com mais fa-
cilidade quando ela significa, realmente, ou quando não significa.
No caso da Psicanálise, um determinado objeto, um engano, um
equı́voco, a Psicanálise já interpreta como sendo um sinal disso
ou daquilo, sem saber toda a cadeia de nexos. Se soubesse, ele
tentaria, em primeiro lugar, explicar este lapso por qualquer ou-
tro motivo, e se não conseguisse, daı́ ele iria tentar a explicação
psicanalista.
Este é, precisamente, o princı́pio metodológico. Qualquer ato,
gesto, deve ser explicado por um intuito consciente. Se todas as
possibilidades de explicação por intuito consciente imediato, per-
tinente à situação falharem, lance a hipótese de que o sujeito está
mentindo conscientemente, está fingindo. Se isto ainda falhar,
lance a hipótese de que aquilo pode ser uma ação induzida por ter-
ceiros, e se isto falhar, daı́ você apela para o inconsciente. É mais
fácil você achar a situação imediata, a situação imediatamente an-
terior, a ação das pessoas, do que você achar o tal do inconsciente,
o tal do id. Se na primeira vez você já apela para o id, aı́ é muito
fácil. Isto porque eu já acho que há uma relação direta de uma
entidade chamada id, como se fosse uma outra pessoa, e que é o
verdadeiro autor dos meus atos, e eu sou um fantoche.
Este tipo de explicação mostra que o indivı́duo não tem a me-
nor idéia de qual é o fundamento real da própria explicação da
situação. Claro que ela tem um fundamento, mas como este fun-
damento é feito através de um complexo sistema de nexos, não é
o fundamento direto. E se não é direto, não pode ser aplicado em

194
7 Preleção VII

todos os casos.
O que Husserl diz aqui, que caracteriza a Ciência não é, exata-
mente, os vários saberes que estão ligados, mas que eles estão li-
gados através de nexos fundamentados que, por sua vez, se apóiam
em teorias, ou seja, em sistemas explicativos gerais. Quando você
distingue um nexo causal, de uma simples concomitância, como
no caso da icterı́cia, que seria causada pela hepatite, então você
está discutindo o que é um efeito direto de um determinado estado,
o que é um efeito indireto, e o que é uma fusão de duas correntes
causais.
Qual é a diferença exata entre um nexo causal e uma conco-
mitância? Hume já não dizia que não existe nexo causal nenhum,
que é tudo concomitante? Se é possı́vel tratar desta discussão
sem estar demente, significa que a noção de causa não é assim
tão óbvia. Ela parece óbvia porque nós estamos acostumados a
usá-la no dia-a-dia, e nós confiamos na autoridade da sociedade,
da camada letrada, que deve saber o que está falando. Da mesma
maneira que a criança que acredita que o colo da mãe é o lugar
mais seguro do mundo, e ela não sabe que a mãe dela é esqui-
zofrênica, e não sabe que ela está tramando jogá-la do alto de um
edifı́cio naquele momento! É a sensação de falsa segurança.
Assim, sempre que nós nos apoiamos nesse conceito costu-
meiro, nós estamos, em última análise, nos apoiando no caráter
sistêmico da Ciência. A Ciência é um conjunto indubitável e tudo
deve, em última análise, fazer sentido. Na maior parte dos ca-
sos, são tiros no escuro. Todo mundo sabe que a Ciência é um
conhecimento organizado. Entretanto, a enciclopédia não é um
conhecimento organizado? Se você organiza, por exemplo, pela
ordem alfabética, ele não está organizado? Se você organiza um
conhecimento pela sua ordem didática, do mais fácil para o mais
difı́cil, ele não está organizado? Se você organiza este conheci-
mento pela ordem de utilidade, ou seja, os que são de utilização

195
7 Preleção VII

mais freqüentes, também não está organizado? Só que nada disso
é Ciência.
A Ciência não é um saber organizado, mas é um conhecimento
organizado em função da sua fundamentação teórica. De qualquer
outra maneira não é Ciência. A história da Fı́sica não é ciência
fı́sica, é evidente. A sucessão das descobertas fı́sicas não está
organizada exatamente segundo a ordem da sua fundamentação,
porque você pode ter descoberto uma coisa, e ter descoberto a sua
fundamentação depois. A Ciência é uma organização hierárquica
onde a explicação do fundamento teorético ocupa a base, e as ou-
tras conexões vão se apoiando nesta base, até que você chega a po-
der estabelecer nexos entre os dados considerados isoladamente.
Prestem bem atenção que no conceito alquı́mico também nada
está separado. Uma ciência mágica que supusesse um hiato no
real, é uma autocontradição. Ao contrário, a magia pressupõe até
um número de nexos maior, mais estreito, do que a Ciência. A
única crı́tica que nós podemos fazer ao mundo mágico é que ele
é um sistema de nexos tão bem organizados, que é utópico. Não
existe uma explicação geral que dê tanto fundamento a tantas coi-
sas assim. É como se você dissesse que a magia é racional demais.
Nela, tudo está excessivamente explicado.
No fato de que a forma sistemática nos pareça a mais pura
encarnação da idéia do saber não se exterioriza meramente um
traço estético da nossa natureza.
Isto aqui é fundamental. O homem tem, por um lado, uma
espécie de ordem, de totalidade e harmonia. Nesse sentido, nós
poderı́amos dizer que a razão é como uma expressão do senso de
integridade do próprio organismo. Isso existe de fato.
Piaget estuda o surgimento das operações racionais do homem
como atos derivados de uma espécie de impulso de integridade e
de autoconservação do organismo psicofı́sico humano. Isto é o que
nós poderı́amos chamar de fenômeno estético. O estético é aquilo

196
7 Preleção VII

que enxerga as coisas sob a categoria da unidade, da harmonia, do


equilı́brio. Harmonia e equilı́brio são formas da unidade.
Existe um outro autor, que foi professor da USP, Etiénne Sou-
riau, cujo primeiro trabalho estabelece correspondência entre o
pensamento lógico e o que ele chama de “uma visão estilizada
das coisas”. A Lógica, para ele, é uma estilização do pensamento.
Neste sentido, o pensamento lógico e a organização cientı́fica do
Cosmos emanam do mesmo impulso pelo qual o homem produz
obras de arte, no sentido de unificar numa forma harmônica o fluxo
mais ou menos incoerente da experiência. É isso que Husserl se
refere quando ele fala que esse caráter sistemático da Ciência não
provém de um mero impulso estético, embora ela pudesse prover
também.
Quando você fala de um impulso estético, é no sentido de você
dar uma forma unitária ao fluxo da experiência. É por isso que
você faz arte. Por exemplo, quando você conta uma estória, quase
todas as estórias de todas as pessoas que você conhece, aconte-
cem concomitantemente a milhões de outras estórias, que não têm
nada a ver com o assunto, mas que estão ali cruzadas, formando
uma espécie de caos. Entretanto, você isola uma estória singular,
e a encara na sua forma apenas, separando- a de todos os elemen-
tos materiais que pudessem interferir no curso dos acontecimen-
tos. Você faz isso por um impulso estético, para encarar a forma
do acontecimento de uma maneira total, unitária, harmônica. Por
quê o homem faz isso? Piaget responde que é por um impulso
de autoconservação da forma do seu organismo. Isto quer dizer
que o impulso que leva você a organizar racionalmente, estetica-
mente, a experiência, é o mesmo impulso que faz você se defender,
por exemplo, de uma agressão. Ou seja, o caráter caótico da ex-
periência é uma agressão ao nosso organismo psicofı́sico, e nós
nos defendemos desta agressão organizando o todo, através desta
forma estética, lógica.

197
7 Preleção VII

Mais particularmente, Etiénne Souriau, estudou a analogia


quase perfeita entre o que é o impulso estético e o pensamento
lógico. Assim, este elemento existe, porém, ele existe no homem,
e ele pode ser uma das causas que impelem o homem a fazer
Ciência, e de uma forma, precisamente, sistemática. Porém, o
fato de que o homem tenha este impulso para a unidade, ou forma
sistemática, do conhecimento, não quer dizer que esta forma sis-
temática seja, de fato, a mais adequada para o conhecimento do
real.
O que Husserl está dizendo é que, independentemente do im-
pulso humano para o sistematismo lógico-estético, a forma sis-
temática é a ideal para o conhecimento do real. Portanto, diz ele,
se as ciências são idealmente organizadas em forma sistemática,
isto não deriva de um mero impulso estético nosso, mas deriva
da organização do próprio real. Se um outro ser, que tivesse uma
organização completamente diferente da humana, se quisesse ob-
ter um conhecimento, faria a mesma coisa, com ou sem impulso
estético. No nosso caso isto é uma feliz coincidência. Nós temos
este impulso estético e o real é organizado em esferas distintas, e
segundo nexos também organizados. E não é só uma coincidência
porque nós também fazemos parte do real.
O sistema não é invenção nossa, mas reside nas coisas; o reino
da verdade não é um caos desordenado; nele rege uma unidade de
leis; e por isto a investigação e a exposição das verdades deve ser
sistemática, deve refletir suas conexões sistemáticas e utilizá-las,
ao mesmo tempo, como escala do progresso, para poder penetrar
em regiões cada vez mais altas partindo do saber já dado ou obtido.
A ciência não pode prescindir dessa escala. A evidência
não é um acessório natural. Para que investigar relações de
fundamentação e construir provas, se somos partı́cipes da verdade
numa consciência imediata?
“A evidência não é um acessório natural” — não é tão natu-

198
7 Preleção VII

ral quanto respirar, andar, etc. Se ela fosse um acessório natu-


ral, estaria funcionando vinte e quatro horas por dia, e de tudo
o que você conhece, você teria um conhecimento imediatamente
evidente. Então, é óbvio que não acontece assim tão naturalmente.
E, sendo assim, daı́ surge a necessidade de investigar as relações
de fundamentação, e construir formas, ou seja, a evidência indi-
reta.
Mas, de fato, a evidência que impõe o selo de existente à
situação objetiva representada, ou a absurdidade, que lhe impõe
o de não-existente, só são imediatas num grupo de situações obje-
tivas primárias, relativamente muito limitado.
Somente para certas situações primárias que a evidência salta
aos olhos. Por exemplo, estar ou não estar aqui, agora. Uma coisa
ser ela mesma, ou não. Ou seja, a evidência marca a veracidade
de um situação objetiva. E a absurdidade, que é o contrário da
evidência, marca a não-existência.
Porém, na maior parte dos casos, a existência, ou a não-
existência, não estão patentes, e só podem ser verificadas através
de uma cadeia de nexos.
Há inumeráveis proposições verdadeiras, de cuja verdade só nos
apercebemos quando as “fundamentamos” metodicamente.
Existem muitas coisas que são verdadeiras, mas não sabemos
por quê são verdadeiras.
Este fato de que necessitemos de fundamentações não só torna
possı́veis e necessárias as ciências, mas, com as ciências, uma te-
oria da ciência, uma lógica.
Se este sistema de fundamentação é necessário, justamente por-
que nos falta a evidência, as fundamentações também não são
evidentes de inı́cio. Elas também são resultado de uma ou-
tra fundamentação, e assim por diante, até chegarmos em certas
evidências primárias.
Portanto, o estudo das fundamentações é também uma ciência,

199
7 Preleção VII

que Husserl chama de Lógica. Ele entende como Ciência, o sa-


ber fundamentado numa unidade teorética. É o saber organizado,
segundo a ordem das fundamentações teoréticas. E ele entende
como Lógica, a teoria da fundamentação, ou seja, a teoria da vali-
dade da Ciência. É a teoria que diz porque a Ciência é Ciência, ou
se ela não é Ciência de maneira alguma.
Assim, poderı́amos admitir tanto uma Lógica geral, que faça a
fundamentação em geral. Por exemplo, a definição de evidência
seria a mesma para toda ciência, porém, você poderia admi-
tir uma série de Lógicas especiais, conforme os objetos ma-
teriais e formais das várias ciências requeressem diferentes ti-
pos de fundamentações. Por exemplo, é fácil você ver que a
fundamentação é uma em Aritmética, e outra em Biologia. Na
Matemática não existe nenhuma fundamentação que dependa de
uma evidência sensı́vel, mas em Biologia existe.
Qual é a natureza de cada uma dessas fundamentações? Qual
é o seu alcance? Qual é a validade de cada caso? — e assim por
diante. Tudo isto faz parte de uma teoria especial da Ciência.
Se todas as ciências procedem metodicamente, então o es-
tudo comparativo desses instrumentos metódicos haverá de
proporcionar-nos os meios para estabelecer normas gerais.
Não só as normas gerais que valham para todas as ciências, mas
também as normas especiais ou locais, que valham para cada de-
terminada ciência.
Vamos fazer a seguinte hipótese: que o mundo seja um aglo-
merado caótico, do tipo epicuriano, onde os átomos se encontram
casualmente, e formam seres e coisas. E que, os átomos se encon-
trando fortuitamente, desde milhões de anos, conseguiram formar
em determinado planeta, um ser que tem um impulso estético.
Isto não é impossı́vel. E este ser tende a juntar todos os dados
da experiência, todas as informações que lhe chegam, como se
formassem uma unidade. É evidente que este ser é o que está mais

200
7 Preleção VII

enganado de todos, porque ele ignora o caos. Ele enxerga a ordem


e a unidade onde só existe caos e multiplicidade.
Millor Fernandes acredita nisto piamente. Ele segue a filosofia
de Epicuro, talvez sem saber quem seja Epicuro, mas tudo o que
ele fala, pensa e diz é baseado nisto. É a teoria epicurista: o ho-
mem forma uma unidade porque ele tem um impulso para tanto,
mas o mundo é um aglomerado caótico. Entretanto, algum de
vocês é capaz de dizer que o mundo não é um caos?
Há uma teoria metafı́sica, que diz que o mundo é uma ordem,
ou que o mundo é um caos. Essa discussão é complicada. Você
pode oferecer argumentos para determinada teoria, e também, para
outra. Entretanto, dá para perceber que, num caso, a Ciência pre-
tende retratar uma ordem no mundo, e no outro caso, ela implanta
uma ordem no mundo. Ela é uma expressão do desejo humano.
Essa idéia do caos, que parece maluca, ela é dominante em
vários meios. Eu não acredito que haja pessoas que pensem as-
sim, só para arranjar discussão à toa. Elas foram levadas a pensar
assim, talvez por experiências que tiveram. Eu acredito que esta é
uma teoria errada. Mas ela não é impensável.
Suponha que o mundo seja caótico, mas que há parcelas que
sejam organizadas, ou que funcionam como se existisse alguma
ordem. Ou seja, entre a forma total do caos e o que nós proje-
tamos como ordem, existe, às vezes, uma coincidência, que seja
suficiente para fundamentar uma ação racional humana. Existe
um enorme número de cientistas que pensa assim. Esta é uma das
verdades alternativas.
O próprio Ortega y Gasset pensava um pouco assim: aqui está
a realidade, e aqui está a teoria fı́sica. Esta teoria coincide com
a realidade em determinados pontos, e no resto ela é totalmente
inventada, imaginária. Se estes pontos coincidem com a aplicação
técnica, ou por testes de laboratórios, jamais saberemos se existe
erro aı́. O fato é que são erros que funcionam. Isto deriva da pers-

201
7 Preleção VII

pectiva do pragmatismo: uma teoria cientı́fica é verdadeira, não


quando ela expressa a ordem real dos fenômenos, mas quando ela
coincide com os fenômenos em determinados pontos, suficientes
para sustentar uma nação humana. Isto tudo terá que ser estudado
com muito cuidado, mais tarde.
Eu também acho que isto está errado, mas não é a absurdidade
total — é possı́vel. Nós nunca devemos pensar que quem não
pensa como nós está maluco. Muitas vezes é maluquice mesmo,
outras vezes é pura enganação, mas muitas vezes não é nada disso.
É uma hipótese viável. Hans Vahinger dizia: “Tudo se passa como
se fosse assim”. É o esquema do Ortega y Gasset.
À luz do Husserl, tudo isto cai maravilhosamente. Ele diz
que tudo isto é maluquice. Se existe um caso de demonstração
completa de alguma coisa, está aqui no texto de Husserl, de ma-
neira completa e exaustiva, sob todos os aspectos possı́veis e ima-
ginários. Não há nada que você possa dizer depois.
A idéia psicologista está no fundo de todas essas teorias. To-
das elas se baseiam na Psicologia, de uma maneira ou de outra.
Elas se baseiam na idéia de que a Lógica é um processo do pen-
samento humano. Se você retira esta viga de baixo da estrutura,
cai o pragmatismo, cai o epicurismo, cai tudo! Você vê que eles
são impossı́veis. Só que ele aborda isto sob um aspecto que vocês
ainda não tinham pensado. Como todas estas teorias exercem um
efeito paralisante na mente humana, removê- las é fazer um be-
nefı́cio, porque você vai investigando e, mais dia, menos dia, é
capaz de você levantar uma hipótese dessas. E você vai ficar o
resto da sua vida paralisado ali, e não vai saber sair, porque não é
fácil sair. Quando William James, por exemplo, propõe essa coisa,
não é para nos enganar não. Ele está a fim de descobrir a verdade,
chega a isso, e depois não sabe como sair, e diz: “É assim!”.
Existe hoje, na Sociologia, toda uma corrente dominante que
está presa ao psicologismo. E não sabe como sair dele. O texto de

202
7 Preleção VII

Husserl não Lógica, mas uma filosofia da Lógica, ou seja, depois


de ter aprendido a teoria do Husserl, você começa a filosofar sobre
ele mesmo. Ele é o seu primeiro assunto. Epicuro é muito impor-
tante na Fı́sica atual, e eu acho que ele e todos os seus discı́pulos
estão doidos da cabeça.
As condições do ensino, da prática social da Ciência são ad-
versas à idéia mesma de Ciência. Se existe uma classe cientı́fica,
que é formada de batalhões de pessoas, se as pesquisas têm que
se suceder, umas às outras, como coelhos que se proliferam, se é
preciso atender a todas as exigências de pesquisa obrigatória, tudo
isso é incompatı́vel com a idéia de Ciência mesma. Quem disse
que o saber organizado pode ser organizado com essa velocidade?
Para que fosse possı́vel progredir nessa velocidade e permanecer
organizados cientificamente, isso é utópico. Nós precisarı́amos de
ser mais que humanos.
O progresso acelerado da Ciência, como as pessoas acreditam
que existe, ele não apenas não existe, mas ele não poderia exis-
tir em nenhum planeta do universo. É uma balela. O conheci-
mento progride, mas não é assim. Vejam num século, quantas
descobertas em Ciência foram feitas? Uma, duas, e isso já é uma
grande coisa. As descobertas não saem assim, uma atrás da outra,
e quando saem assim, elas vão perdendo o seu caráter cientı́fico,
vão perdendo fundamentação. Entram num mecanismo entrópico,
ou seja, aumenta a quantidade e diminui a diferenciação vertical.
Tanto faz uma pesquisa chegar a esta conclusão, como à conclusão
oposta, porque ela está destinada, não a fornecer o conhecimento
sob forma cientı́fica, mas a sustentar a determinada prática social.
A organização social da Ciência é muito recente, ela se consti-
tui a partir do século passado, e a Ciência é muito antiga. A partir
do momento onde a produção cientı́fica se organizou, ela progre-
diu no sentido quantitativo, ou seja, tem muita gente ganhando
dinheiro com isso. Há verbas imensas sendo carreadas para este

203
7 Preleção VII

fim. Este progresso quantitativo da profissão, ele toma um rumo


que destrói o fundamento da própria Ciência, ou seja, ele cria um
tipo de classe cientı́fica que não pode ser cientı́fica em hipótese
alguma. No instante seguinte, se instala uma gigantesca confusão
onde chegam aquelas constatações céticas: “A Ciência não nos en-
sina a viver; não nos dá felicidade, etc.”, ou seja, toda uma série
de queixumes e lamúrias, vindo de uma certa parte da população,
aliado à quantidade imensa de fracassos da profissão cientı́fica, pa-
rece fornecer o argumento para o tipo de pensamento alternativo
do tipo neo-romântico, etc. Isto tudo está fracassando porque a
Ciência não é Ciência, e o negócio é tomar LSD, ficar doidão, e
aı́ é que nós vamos encontrar a verdade. Ou seja, um erro produ-
zido por um outro erro. E esse erro vem de que a Ciência, na sua
prática, espera que a vocação cientı́fica na mesma medida onde ela
progride quantitativamente e socialmente.
Esta contradição tem que ser resolvida de algum modo Ou terá
que haver uma mudança total da cultura da produção cientı́fica,
ou a Ciência acaba. Isto porque as idéias mais malucas, mais
bárbaras, começam a entrar na própria área da produção cientı́fica.
Na USP você tem seminário de esoterismo, macumba, ufologia,
duendes, etc., e eles acham que com isso vão superar os erros da
Ciência. Só que os erros não são da Ciência enquanto idéia pura.
Os erros são da profissão cientı́fica. Isto é o que nós estamos vendo
neste fim de século: uma espécie de suicı́dio da Ciência.
O livro “O Tao da Fı́sica”, por exemplo, não tem nem Fı́sica,
nem Tao! E, no entanto, fez um sucesso enorme na comuni-
dade cientı́fica. Virou uma espécie de bı́blia. Isto é uma pseudo-
revolução, um pseudo-progresso, na verdade é uma fuga.
A proposta do Husserl é ser mais cartesiano que o Descartes.
Ele tem um livro que medita sobre a proposição de Descartes, onde
ele vai mostrar as limitações da proposta cartesiana, e o que está
faltando para completá-la. Ele nem acabou de falar, e já estão

204
7 Preleção VII

querendo trocar por outra. As pessoas não entenderam o Husserl.


O que as pessoas querem é propor uma reforma da Ciência que
atenda aos anseios de felicidade dos indivı́duos. Isto é uma tre-
menda retórica. A proposta é encantatória, mas o fato é que não
funciona, de maneira alguma, em área alguma. Aliás, não há uma
única pesquisa cientı́fica concreta baseada nisto. O pensamento
sistêmico não sai disso aı́. O pensamento sistêmico é o sistema de
todos os nexos, do nexo universal da fundamentação da Ciência.
Não há nenhum conhecimento separado, e também não há esferas
dos fenômenos que estejam separadas.
Isto aqui tem raı́zes na ação humana, tem raı́zes na imaginação
e na percepção sensı́vel. Isto existe desde Aristóteles. O fato é que
a Ciência, a partir do século XIX, ela perde essa noção sistêmica
na mesma medida onde perde a raiz na idéia pura de Ciência. Daı́,
surgem pessoas oferecendo, não a cura desse mal, mas uma uto-
pia, que seria o holismo, a Nova Era, etc. A alquimia é muito mais
sistêmica do que isso. Quando você tem um pensamento muito
complexo, muito abrangente, as pessoas já te carimbam, por exem-
plo, se eu digo tudo isso, elas vão dizer que eu sou racionalista, que
eu sou contra o esoterismo, a magia, a alquimia, etc. Quando eu
falo de astrologia, elas dizem: “Esse aı́ é astrólogo...”. Elas te ca-
rimbam e ficam esperando que você vá defender as alternativas x,
y e z, e vá responder A, B, C e D.
À luz dos Quatro Discursos, o que eu estou fazendo aqui é a
idéia de uma filosofia integral da cultura humana, que abrange
esse aspecto da Ciência, do conhecimento imaginativo, abrange
a idéia da revelação do mundo, e se prolonga na idéia pura de
Ciência. Se você esperar para ouvir até esse ponto, você terá uma
idéia do conjunto. Mas, eu acredito que esse seja o conjunto, esse
seja o sistema, que nós poderı́amos dizer, tradicional, embora não
esteja expresso em parte alguma. Estou apenas tentando expres-
sar uma coisa que está aı́, implı́cita em todo desenvolvimento da

205
7 Preleção VII

cultura, e não estou negando nada, não estou afastando nada. No


momento em que falo pensamento sistemático, já está dito tudo.
Sistema quer dizer” onde se juntam todas as raı́zes”. Não é uma
idéia de holismo genérico, onde dá uma sensação de todo, de sen-
timento de todo. Para ter sentimento de todo, basta tomar LSD,
beber cachaça, etc. Espero que vocês me ajudem neste empreen-
dimento.

206
8 Preleção VIII
13 de janeiro de 1993

Vamos voltar um pouco atrás na questão da idéia pura de


Ciência. A idéia pura de Ciência define a direção de todos os
esforços intelectuais da humanidade, existentes a dois mil anos ou
mais. Todos que investigaram qualquer coisa, em princı́pio, esta-
vam norteados por essa idéia pura, no sentido do saber apodı́ctico,
indestrutı́vel. Mesmo quando o indivı́duo só acredita no conhe-
cimento precário, parcial, relativo, ainda assim ele está norteado
por essa idéia do saber apodı́ctico. Acontece que ele julga nega-
tivamente o saber positivo, ou seja, o saber efetivamente existente
recebe um julgamento negativo a partir desta comparação com o
saber apodı́ctico, possı́vel.
Partindo da idéia pura de Ciência, e vendo que a Ciência efe-
tivamente existe, o sujeito vê que a idéia que existe não atende a
estes requisitos, e nem poderia atender. Ao passo que outros acre-
ditam que se ela não atende a isso, ela poderá vir a atender algum
dia. De qualquer modo, o que ninguém questiona é a idéia pura de
Ciência. Esta idéia é composta do seguintes elementos:

1. Evidência: que se define por um saber, ou uma sentença,


que só pode ser negada mediante um duplo sentido. Esta se-
ria a definição técnica da evidência. Uma evidência é um
saber que só pode ser negado por uma frase cujo ato de
locução é uma negação do seu conteúdo. Se o seu conteúdo

207
8 Preleção VIII

é verdadeiro, ela não pode ser proferida, e se ela pode ser


proferida, é porque ele não é verdadeiro. Isto nada tem a ver
com contradição lógica.
2. Evidência indireta: ou prova; é a sentença que não é ime-
diatamente evidente em si mesma, ou seja, que pode ser ne-
gada sem duplo sentido. Então, ela não pode ser dita verda-
deira em si mesma, mas ela depende de uma outra anterior
que a fundamente, que a justifique, e que a garanta.
3. Porém, para que uma sentença possa garantir outra, é ne-
cessário que exista um nexo, e que este nexo seja, ele
mesmo, evidente, ou seja, não necessite de uma prova. Um
dos nexos evidentes é o nexo entre parte e todo, por exem-
plo, uma frase que você disse já está embutida na outra, re-
presenta apenas uma parte da outra, então, a veracidade da
maior contém a veracidade da menor, e a garante portanto.

Estas são as três condições teóricas.


Se a idéia pura de Ciência emprega uma evidência que não é
tão difı́cil em si mesma, por quê existe o erro, por quê existe a
falsidade, e por quê existe tanta discussão? Esta idéia pura de
Ciência já permite elucidar, de cara, em que consiste a pseudo-
ciência; em que consiste a falsidade. Se nós temos três condições
para que um saber seja apodı́ctico, devem haver três condições que
permitem que este saber seja falso. Para que um saber seja falso,
ele tem que atender uma das seguintes condições:

1. Falsa evidência: é quando você toma por inquestionável


uma coisa que é questionável. Quando você julga que uma
determinada sentença só poderia ser negada mediante um
duplo sentido quando na verdade ela poderia ser negada sem
duplo sentido algum. Dito de outro modo, é quando existe a

208
8 Preleção VIII

possibilidade da sua negação, porque a evidência não existe


a possibilidade real da sua negação. Toda negação de uma
evidência é uma negação fingida. Quando um indivı́duo
nega uma evidência, ele não está negando, de fato. O fato
dele negar já prova aquilo com o que ele está negando. Não
é o conteúdo da negação dele que prova a veracidade do
que ele nega, mas é o ato dele negar. Por isso, não é uma
contradição lógica, que é uma contradição interna do dis-
curso, ao passo que a negação, na negação da evidência, a
contradição é externa. Não é entre uma parte do discurso e
outra parte. É entre o discurso e a condição da sua pronun-
ciabilidade, ou seja, o discurso que negue a evidência não
pode ser pronunciado, a não ser que a evidência seja ver-
dadeira. Porém, nós podemos achar que uma determinada
sentença, uma determinada contradição, uma determinada
condição, atende a este requisito, quando na verdade ela não
atende.

2. Evidência indireta tomada como direta: ou seja, tomada


como princı́pio. É quando há uma sentença, uma convicção,
uma proposição, uma crença, que não é garantia de si
mesma, e que é tomada como se fosse uma evidência di-
reta, ou um princı́pio, de modo que até mesmo as evidências
diretas deveriam ser fundamentadas por elas. Isto aqui é o
mais grave que existe, porque até a falsa evidência pode ser
corrigida.

3. Falta de nexo: esta condição pode acontecer sem nenhum


dos erros anteriores. É o que se chama de erro de lógica.
Quando nós cometemos uma das muitas figuras do falso si-
logismo, ou seja, de uma coisa nós concluı́mos outra que,
logicamente, não se segue a ela. Esta é fácil de corrigir. Se

209
8 Preleção VIII

você entregar para um computador, ele corrige. Isto aqui é


a própria contradição.

A primeira condição, que é uma falsa evidência, é uma falsa


interpretação das convicções que nós tiramos da experiência. É
uma má observação, ou, uma observação parcial.
Vejam que, normalmente, os erros cientı́ficos que nós conhe-
cemos são todos atribuı́dos à primeira, ou à terceira, condições,
porém, a causa fundamental de erros, ao longo da História, vem
da segunda condição. Por exemplo, vamos supor que nós diga-
mos que as categorias da Lógica emanam da estrutura social (esta
é uma tese muito disseminada hoje em dia). Na medida em que há
uma estrutura social, há funções e instituições e, estas funções são
introjetadas e, daı́, com elas, você conserva o princı́pio de identi-
dade, o princı́pio de causa e efeito, etc. Ou seja, a Lógica é uma
transposição da estrutura social para o nı́vel do discurso. A per-
gunta é a seguinte: Qual é a prova que você tem disto? A prova
é que eu estudei tais e quais sociedades, e tenho aqui um pilha
de provas de que é assim. Ou seja, sua prova é por indução. A
indução é um dos meios de prova que existe em Lógica, mas é um
meio que tem valor probabilı́stico. Portanto, toda indução tem que
se fundamentar nos princı́pios lógicos. Se a sua prova atende a
alguma coisa é porque ela atende os princı́pios lógicos, entretanto,
se eles, por sua vez, nasceram do mesmo fato que você está estu-
dando, então, você entra num cı́rculo vicioso. A indução é tomada
como se fosse uma evidência inicial e, com base em algo que ob-
tive por indução, isto é, por um nexo, eu pretendo fundamentar
a própria evidência. Assim, para que eu pudesse provar a minha
tese, eu necessitaria de , como evidência, os princı́pios lógicos,
mas se eles nasceram dos mesmos fatos que estou estudando, eu
entro num cı́rculo vicioso.
Quase todos os antropólogos do mundo inteiro pensam assim.

210
8 Preleção VIII

O que prova que a Antropologia é uma pseudo-ciência, embora,


não em tudo. Se eu digo: o princı́pio de identidade nasce da ex-
periência repetida, ou seja, o homem aprende o fundamento do
princı́pio de identidade através da experiência. Mas, como eu vou
saber se é a mesma experiência? Se eu tenho experiências repeti-
das, elas podem me levar a uma conclusão, justamente, porque eu
tenho o princı́pio de identidade. Se eu não tivesse, eu não chegaria
a conclusão alguma. Então eu tomei um nexo como fundamento
de uma evidência.
Isto aqui é a pedra-de-toque para você nunca mais ficar assus-
tado com nenhuma pseudo-ciência. Se você aplicar isto aqui com
bastante cuidado, você vê que praticamente noventa por cento do
que se toma como cientı́fico, como provável, não tem fundamento
algum. Isto é a base de um erro que, se ele se torna convincente, é
porque o sujeito acrescentou o elemento retórico. A retórica não é
um erro. As pessoas a usam com um sentido pejorativo, mas ela,
em si mesma, não é pejorativa.
Existem uma série de outras condições, que o saber precisa,
e que são práticas. E existem outros tantos erros relativos às
condições práticas também. Para que um ser humano possa ter
um saber apodı́ctico, além das três condições teóricas, ele precisa
ter mais alguma coisa, que são as condições práticas.

1. Repetibilidade: se eu não tenho condição de repetir duas


vezes o mesmo ato intuitivo, o mesmo conteúdo essencial,
em duas circunstâncias diferentes, qualquer conhecimento
se torna impossı́vel. Inclusive, para que eu negasse a possi-
bilidade desse conhecimento, eu também precisaria repetir
o mesmo ato intuitivo.

2. Registro: registro na memória biológica, que conserva


o esquema simplificado do conteúdo do ato intuitivo, na

211
8 Preleção VIII

ausência do ato intuitivo. Quando você não está intuindo


nada, quando você está intuindo outra coisa, o conteúdo da
intuição anterior se conserva, de algum modo, para que você
reconheça. Ou seja, no ato intuitivo, quando ele se repete,
não há apenas um conhecimento de algo, mas há um reco-
nhecimento, no sentido de que você sabe que a coisa conhe-
cida agora, é a mesma que foi conhecida antes.

3. Transmissibilidade: se as duas condições anteriores exis-


tem é porque existe um esquema transmissı́vel de um mo-
mento a outro momento. É aquilo que eu conservo do pri-
meiro ato intuitivo, não no seu conteúdo inteiro, mas apenas
uma parte suficiente para me permitir a repetição do ato. Se
eu posso conservar um registro simplificado, de momento
a momento, o que me impede de transmitir esse registro?
Toda dificuldade de transmissão de conhecimento é de or-
dem prática, e não, teórica. Por exemplo, a deficiência de
linguagem: a pessoa fala outra lı́ngua; a burrice do interlo-
cutor; a falha de memória; diferença de códigos; diferença
de sensibilidade entre uma pessoa e outra, etc. Tudo isso são
dificuldades práticas, que podem variar conforme os sujei-
tos envolvidos. Assim, o indivı́duo que disser que o conhe-
cimento essencial é intransmissı́vel, é a mesma coisa que
ele dizer que esse conhecimento que ele acabou de trans-
mitir não é essencial. Se a intransmissibilidade do conhe-
cimento essencial não é essencial, ela é acidental. Se ela
é acidental, isto significa que, essencialmente, ele pode ser
transmitido e que, acidentalmente, não pode. Mesmo que
você receba uma revelação, ela é transmissı́vel. O máximo
que a pessoa poderia dizer é que o conhecimento é essen-
cialmente intransmissı́vel, mas que, acidentalmente, ela re-
cebeu uma transmissão. Mas você também poderia dizer: o

212
8 Preleção VIII

que me impede que, acidentalmente, eu também receba? A


transmissibilidade não é acidental no conhecimento. Ela é
essencial. Sem ela não existe conhecimento algum. Existe
apenas a potência do conhecimento, que é o simples ato in-
tuitivo. Nesse sentido, todo conhecimento é um reconheci-
mento. Se você não reconhece, é o mesmo que não conhe-
cer. Assim, existe também a possibilidade de conhecimento
falso, através de falsas condições práticas.

a) Falsa repetição: quando você acredita que uma coisa


que está sendo intuı́da agora, é uma mesma que foi
intuı́da em outra ocasião que não esta. Por exemplo,
uma falsa recordação, um erro de memória.
b) Registro falso: pode ser um documento falso, um tes-
temunho falso, um registro perdido, etc.
c) Erro de transmissão: por exemplo, quando você fala
uma coisa e o sujeito entende outra.

A totalidade da história dos erros está contida aqui nestas


condições.

Quadro resumido das possibilidades do saber verdadeiro e d

Condições teóricas e práticas

Saber verdadeiro Saber falso

Condições teóricas

213
8 Preleção VIII

1. Evidência 1. Falsa evidência

2. Evidência indireta 2. Substituição da evidência


indireta à evidência diret

3. Nexo evidente 3. Falso nexo ou ilogismo

Condições práticas

4. Repetibilidade 4. Falsa repetição; erro de m

5. Registro 5. Erro de registro

6. Transmissibilidade 6. Erro de transmissão

Assim, por quê existe tanto erro? Existe porque o indivı́duo


quer, porque se não quisesse, simplesmente, aplicaria estes
critérios, e no caso de não poder tirar a dúvida quanto ao que vai
dizer, simplesmente deveria dizer: “Não sei!”.
O fato é que, os homens de Ciência, se por um lado são nortea-
dos pelo ideal de Ciência pura, por outro lado são seres humanos
também, e têm uma série de outros interesses além do ideal de
Ciência pura: vaidade, preconceito, atmosfera de bajulação profis-
sional, desejo intenso de provar determinada tese que ele ama, e
assim por diante.
Quando uma pessoa, em criança, na adolescência, ela é criada
dentro de uma fé religiosa, e perde essa fé, é muito raro o indivı́duo
que mantém a questão religiosa em suspenso. Na maioria dos ca-
sos, ele dirigirá o seu esforço cientı́fico no sentido de destruir a
religião que ele abandonou, e em um por cento dos casos ele man-
terá a questão religiosa em suspenso. Max Weber é um exemplo

214
8 Preleção VIII

do último caso. Nem todo indivı́duo que é religioso, é militante na


sua religião, e tente destruı́-la no seu conteúdo cientı́fico. Entre-
tanto, noventa e nove por cento dos ateus, são ateus militantes. O
desejo de destruir os fundamentos da religião que foi abandonada,
torce completamente o esforço cientı́fico da pessoa. Se você aban-
donou uma religião, não tem mais fé, não significa que você saiba
que aquilo é falso. Não ter fé é uma coisa, mas você não pode ter
fé no contrário. Há uma distância imensa entre você não ter fé,
não acreditar na Bı́blia, e você acreditar na negação de cada uma
daquelas frases. Se você não acredita que Deus criou o mundo em
sete dias, isso não significa que você acredita que Ele criou em oito
dias. O fato de você ter perdido a credibilidade numa determinada
afirmação, não implica que você tenha uma outra para substituı́-
la. Você não pode provar a descrença. Uma descrença não é uma
tese cientı́fica. você simplesmente não acredita. Se a fé é um ao
voluntário, você acredita se quiser ou não. Se não existe a prova
integral da fé, também não existe a prova integral do contrário.
O caso do judeu, por exemplo, é peculiar. Um sujeito que larga
a fé, em geral, ataca a sua Igreja. O judeu que se torna ateu, ataca a
religião dos outros. Por um motivo muito simples: o judeu, como
minoria, não pode perder o apoio da sua comunidade. O Judaı́smo
não é só uma religião, mas também uma comunidade organizada
economicamente. Se ele ataca o Judaı́smo, ele perde o apoio da co-
munidade judaica, e ele terá que contar com o apoio dos católicos,
protestantes, etc.
Eu sou muito mais desconfiado dos ideólogos ateus do que dos
ideólogos religiosos, porque você vê sempre o desejo do sujeito
provar alguma coisa que derrubaria completamente, no entender
dele, os fundamentos daquela religião que ele abandonou. Mas,
se você abandonou aquilo, por quê não vai estudar outra coisa?
Por quê você não deixa em suspenso esta questão? Se você teve
um ato voluntário de abandono, por quê você não deixa os outros

215
8 Preleção VIII

fazerem um ato voluntário de adesão? Max Weber foi um dos que


manteve uma linha cientı́fica estritamente correta. Ele não tinha fé
em coisa alguma, mas não enchia o saco de ninguém.
Assim, não existe um sujeito mais devoto do que o ateu. Em
geral, o abandono da religião vem sempre cheio de ressentimentos.
Um exemplo caracterı́stico é o do fundador da Sociologia, ...(?).
Ele é um ex-judeu, e como tal, ele tem que puxar a coisa para um
lado que seja fundamentalmente anti-religioso. Ele não é capaz de
se colocar num outro plano.
Você poderia perguntar: Aristóteles tinha fé em quê? Ele
também não tinha fé em nada. E nem por isso existe um intuito
religioso, nem anti-religioso. Ele adota o caminho filosófico. Se
você adota o caminho da Ciência, isso não deixa de ser, de algum
modo, uma forma de religião, e ela deveria te bastar.
Voltando ao assunto aqui, a condição fundamental que cria a
pseudo-ciência é quando uma evidência indireta é tomada como
fundamento de outras evidências. Por exemplo, o sujeito que
pretendia fundamentar o princı́pio de identidade numa noção de
signo. O matemático Gotrieb Freg (?), pretendia fazer isso. Um
signo é uma coisa que representa outra coisa, e que não é essa
coisa. Isto é para mostrar que o mundo da Ciência não é formado
de pessoas puras, que estão lá investigando a verdade, etc. Há um
monte de pessoas que pode agir com os motivos mais indecorosos,
e disfarçam bem, como qualquer outro domı́nio da ação humana.
Isto se torna uma tendência mais dominante na medida onde
a comunidade cientı́fica aumenta, onde existe mais padronização
da atividade cientı́fica, onde existe um exército maior de pes-
soas se dedicando a isso, uma fiscalização menor, e onde existe
a departamentalização (cada um fica escondido da fiscalização pe-
los indivı́duos da outra ciência). Por exemplo, em São Paulo, um
aluno de Economia, me disse que na primeira aula da faculdade,
lhe ensinaram que a Economia é uma ciência natural. Como ele

216
8 Preleção VIII

jamais vai sair da faculdade de Economia para olhar aquilo por


um outro lado, como ele jamais vai entrar numa faculdade de Bi-
ologia, se ele não compara a Biologia com a Economia, ele pode
passar o resto da vida acreditando que ela é uma ciência natural.
Ele nunca viu uma ciência natural. Se te disserem que o elefante é
um peixe, sem você jamais ter visto um peixe, você acredita. As-
sim, a lei da oferta e da procura é uma lei natural, da natureza. Ou
seja, a lei da oferta e da procura passa a funcionar como se fosse
uma espécie de equilı́brio ecológico, quando não é assim. Esta lei
jamais vigorou em parte alguma do mundo.
Essa idéia da Economia como ciência natural aparece quando a
burguesia, em ascensão, procura obter uma liberalização que, an-
tes, não tinha. Então, ela diz que a sua atividade não precisa ser
regrada por ninguém, porque a natureza era a regra. É uma idéia
meramente ideológica, pois se fosse realmente uma lei natural,
tudo já estaria funcionando séculos antes. Mas, quem reivindica
essa liberalidade econômica? Só quem está interessado nessa ati-
vidade econômica, e não quer ser atrapalhado por um Estado, ou
por uma Igreja. Quem advoga em favor do mercado diz que ele,
por si só, se ajeita. Claro! Deixa eu fazer o que eu quiser que, au-
tomaticamente, tudo se ajeita! É a idéia do PC Farias: o dinheiro
que ele me roubar, quando ele comprar alguma coisa, voltará para
o mercado, e depois de alguns milênios, voltará para o meu bolso...
Assim, para um estudante de dezoito anos de idade que ouve,
no primeiro dia de aula, que a Economia é uma ciência natural,
como ele vai dizer que não é? Quando ele se interessar em saber
se isto é verdade ou não, ele já estará com cinqüenta anos e já não
adianta mais.
Do mesmo modo, se você faz faculdade de Direito, Filosofia,
etc., pode ter certeza que há um monte de idéias como essa na sua
cabeça. Isto porque, nunca, as pessoas das várias faculdades se
reuniram para ver se o que ensinaram na sua, sustenta, em parte, o

217
8 Preleção VIII

que ensinaram na minha. Vocês veriam que sobraria muito pouco.


Se todas elas são ciências, é porque devem atender a determina-
dos critérios comuns a qualquer ciência. Então, vamos examinar
a Ciência à luz da teoria da Ciência. E, o conceito fundamental
da teoria da Ciência é a idéia mesma do conhecimento apodı́ctico.
Portanto, o que não atender a isso, ou é um conhecimento par-
cial, secundário, que depende de outros para ser fundamentado,
ou então é falso. Assim, onde existir uma evidência indireta, to-
mada como evidência direta, isso é imperdoável. Isto se chama
vı́cio redibitório. É o que não tem jeito de ser consertado. é um
contrato de má-fé, impossı́vel de ser cumprido, e que tem que ser
anulado.
Daı́ pode-se ver que o edifı́cio da Ciência tem muito menos an-
dares do que você imagina. O progresso da Ciência existe, mas
ele é muito menos do que a propaganda afirma. O que avança é a
tecnologia. Uma só descoberta cientı́fica dá margem a milhões de
avanços tecnológicos. Por exemplo, quando Leibniz desenvolveu
o sistema binário, não parou de ter conseqüências até hoje. O com-
putador, por exemplo, é um sistema binário; o resto é eletrônica.
Não há tantas descobertas cientı́ficas. Há aplicações dessas desco-
bertas. O reflexo condicionado, por exemplo, é uma realidade.
Mas, vejam tudo o que se tirou do reflexo condicionado desde
então. A descoberta genética é outro exemplo.
Assim, para cada descoberta cientı́fica, há milhares de hipóteses
interessantes, e também milhares de erros. No entanto, não pode-
mos contar a proliferação de hipóteses como progresso. Também
não podemos contar a proliferação de aplicações tecnológicas
como progresso cientı́fico.
Hoje em dia, cresce muito o know-how e não o know-what.
Sabe-se muito como fazer, mas o que você sabe continua a mesma
coisa. Assim, esses conhecimentos do progresso da tecnologia são
baseados em mudanças acidentais, periféricas, que para o usuário

218
8 Preleção VIII

da coisa vão fazer uma diferença brutal, mas que não mudam a
essência do objeto. Por exemplo, um carro com pneu careca, e ou-
tro com pneu novo, não faz uma diferença enorme? Mas, em quê
difere cientificamente um carro do outro? Nada, há apenas um
diferença prática, mas, não teórica, de natureza (por exemplo, um
triângulo é diferente de um elefante). A diferença cientı́fica que
interessa é justamente a diferença teórica. Na prática, às vezes,
é até melhor você não saber a teoria da coisa. Aliás, na prática,
tudo é mais fácil que na teoria, porque na prática você conta com
a acidentalidade, com a sorte. As coisas podem se resolver sem
que você tenha a menor idéia. Entretanto, se você quer a solução
teórica perfeita, nesse caso, demora um pouco mais. Se você
não consegue resolver o seu problema em particular, como você
quer resolvê-lo em geral? A importância prática, e a importância
teórica, são exatamente inversas. Um problema tem importância
teórica para você quando ele não tem importância prática urgente,
porque senão não dá tempo de saber a teoria. Nesse sentido fı́sico,
filosofar é não-viver, e viver é não-filosofar. Se eu estou padecendo
do problema pessoalmente, eu sou o último que tem interesse em
teorizar esse problema. E, se eu vou teorizar, é porque aquele pro-
blema não é um problema meu, urgente. É um problema que eu
sinto, por uma identificação, ou às vezes por uma compaixão.

219
9 Preleção IX
14 de janeiro de 1993

Numa prova de História do vestibular da UNICAMP, oito


questões são relativas ao Brasil e a acontecimentos atuais. O resto
fica distribuı́do à Grécia, Ásia, Inglaterra do século XII, e só. Das
oito questões, há uma, que embora seja sobre a história do Bra-
sil, sobre Tiradentes, ela é feita de modo a evocar uma problema
presente que é o plebiscito entre República e Monarquia.
A desculpa que o sujeito tem sobre isso é muito simples: a
História não deve ser uma ciência fóssil, que vive do passado, e
como disse Benedito Croce, toda história, é a história do presente.
Acontece que se é assim, a história do presente não é mais pre-
sente do que a história do passado. Essa é a sutileza. Se o in-
divı́duo não é capaz de considerar perfeitamente atual o que acon-
tecia na Grécia, no século IV, ele não tem o sentido histórico. Se
a proximidade da data, lhe dá ainda uma ilusão de centralidade,
ou de importância maior, o sujeito não está entendendo absoluta-
mente nada do que é História.
Em segundo lugar, o fato do acontecimento presente parecer
muito importante, não quer dizer que ele seja efetivamente impor-
tante historicamente. Isto porque no conjunto todo das conexões,
o fato que hoje parece algo transcendental, vai se anular perfeita-
mente. Basta você estudar as coisas que aconteceram, por exem-
plo, a trinta anos atrás, e você perceberá que a perspectiva do que
o acontecimento deixou, às vezes, mostra que ela era bem menos

220
9 Preleção IX

importante do que ele parecia ser na época. Às vezes, mostra que
o importante não era nada daquilo que você estava imaginando
naquele momento.
Discute-se hoje o parlamentarismo, e o pessoal se esquece que
ele já existiu, e também foi tentado com todas essas promessas
de resolver os problemas do paı́s, a crise entre o legislativo e o
executivo, etc. A História mostra que aquilo ficou totalmente sem
efeito.
Do mesmo modo, a famosa polı́tica neo-liberal do Collor, que
a dois anos atrás foi celebrada como se fosse a grande virada
histórica do Brasil, e hoje nós vemos que não deu em nada. Do
mesmo modo que eu lhes asseguro, a retirada do Collor, também
será um nada. Historicamente, nada influirá.
Nessa mesma prova da UNICAMP, há uma pergunta relativa à
polı́tica econômica do perı́odo da ditadura, mencionando que ela
era conduzida pelo ministro Delfim Neto, e formulada de forma
tal que, o aluno terá que se posicionar contra, de alguma maneira.
Eu era, evidentemente, contra essa polı́tica econômica, na época;
continuo sendo contra hoje, mas eu acho que você obrigar o aluno
a se posicionar contra um ato de um indivı́duo que é polı́tico, em
pleno exercı́cio do seu mandato, é uma interferência nos aconteci-
mentos presentes. Pelo simples fato do sujeito estar vivo, significa
que a história dele ainda não acabou, e que o que você fala dele
hoje, influenciará os acontecimentos. Mesmo nas épocas de maior
luta ideológica, jamais ocorreu a ninguém, usar o vestibular para
“pichar” um sujeito em particular, vivo e atuante. Um paı́s onde
acontece isso, é um paı́s onde vale tudo. O pior é que num vestibu-
lar, o aluno não a mı́nima condição de discutir a pergunta. Ele está
quase que implorando para ser aprovado. Ele está totalmente inde-
feso quanto a isso. Ele tem que aceitar a jogada nos termos em que
lhe foram propostos, senão ele não passa no vestibular. Normal-
mente, qualquer propagandista, de qualquer ideologia, teria pudor

221
9 Preleção IX

de fazer uma coisa dessas. No Brasil as pessoas não têm mais esse
pudor. E são os mesmos que falam da Ética. Eu acho que a própria
preocupação com a Ética mostra um sintoma de uma mente cul-
pada. O Brasil está carregando culpas que ele desconhece, e que
todos estão precisando de um tipo de expiação. E para expiação,
tanto serve o Presidente do paı́s, quanto o Guilherme de Pádua.
Num congresso de Psicologia, foi apresentado um perfil psi-
cológico, difamatório, do Collor. Isto é uma atitude criminosa.
Você não pode expor um perfil psicológico de um sujeito vivo,
em público, sem a autorização dele. Não existe perfil psicológico
que possa qualificar moralmente um sujeito. Isso é contra todos
os princı́pios de qualquer ciência. E não importa que seja contra
o Collor, o Guilherme de Pádua, etc., todos eles não valem nada
mesmo, mas mesmo que fosse com o satanás, o drácula, o Hi-
tler, tanto faz, está errado. Estas pessoas podem se sujar porque já
estão sujas. Entretanto, indivı́duos que pretendem passar por auto-
ridades cientı́ficas, por guias da opinião pública, essas têm que ter
um pouco mais de compostura, e se recusar a fazer, e falar, certas
coisas.
Esses indı́cios de perturbação da inteligência, me parecem
muito graves, do que os acontecimentos de ordem fı́sica, por
exemplo, aproveitar o assassinato da Daniela Perez para retomar
a tese sobre a pena de morte, num momento desses... Se há um
momento em que não se deve discutir a pena de morte é justa-
mente agora , porque mesmo que a pena de morte fosse aprovada,
o Guilherme de Pádua não poderia ser enquadrado nela porque a
lei seria posterior ao julgamento dele. Isto é oportunismo estúpido.
Assim como no tempo do Collor, uma coisa esquisita que acon-
teceu, que foi o pessoal de esquerda fazer uma aliança com o pes-
soal mais direitista do paı́s, em torno da idéia do moralismo, hoje,
está acontecendo algo parecido entre o pessoal do teatro e o Ama-
ral Netto: estão todos pregando a pena de morte.

222
9 Preleção IX

Tudo isso são sintomas, os quais nós temos que observar, apren-
der a racionar fora do esquema. Para fazer isso, é necessário
que você adquira um mundo próprio, ou seja, você ter uma visão
própria do que você não está enxergando, e as imagens que lhe
são projetadas pelos outros, não te influenciem. Se você não vê as
coisas com os seus próprios olhos, aquilo que está sendo oferecido
não existe para você. Criar esse mundo próprio, para cada um, é o
objetivo da educação. Educação vem do latim ex-ducere, ou seja,
levar para fora. Para fora do ovo, que simboliza toda a estrutura
de valores, hábitos, proibições, leis, de gostos , que você herda do
seu ambiente familiar e que funciona como uma casca protetora
até que você esteja apto a andar com seus próprios pés. Uma das
finalidades da educação é quebrar a casca do ovo para que você
possa sair andando. Esse é um dos sentidos que pode ser interpre-
tado o duplo nascimento: o homem duas vezes nascido — ...(?)
Mukta.
No simbolismo hindu é associado a uma ave. a ave nasce duas
vezes: primeiro quando bota o ovo, e segundo, quando ela quebra
a casca do ovo. Este segundo nascimento é feito através da própria
educação, que funciona como uma espécie de chocadeira, que vai
aquecê-lo, para que você cresça e deseje quebrar a casca. Quem
quebra a casca é a própria ave. Se a educação não intervém no
tempo devido, o ovo chocado apodrece.
O fenômeno atual, que se chama adolescência ...(?) é um si-
nal de um fracasso na educação, na medida em que ela se torna
apenas um meio de aquisição de ofı́cios, ela não serve para li-
bertar o indivı́duo do seu meio familiar, do seu meio de origem,
ao contrário, ele o prende ainda mais a ele. O indivı́duo acredita
ingenuamente que a simples aquisição de um ofı́cio, ou de um em-
prego, vai libertá-lo do meio familiar, quando evidentemente isso
seria o efeito sem a causa. O que liberta você do meio familiar é
quando você consegue um mundo interior maior do que aquele do

223
9 Preleção IX

meio familiar. Mesmo que você continue fisicamente ligado a ele,


você estará livre.
Se, ao invés de você conquistar um mundo interior maior, você
pretende apenas realizar um ofı́cio, acreditando que ter o seu
próprio dinheiro, te libertará da famı́lia, você está louco. Você
pode ganhar dinheiro, morar em outro lugar, que você estará sem-
pre circunscrito a aquele ambiente de valores. O pinto quebra a
casca do ovo no momento em que ele está forte para quebrá- la.
Esta força é o próprio conteúdo da alma, o conteúdo da psique
individual que exige um território maior, e não apenas outro. Se
o mundo das preocupações, dos objetivos familiares, ainda lhe é
suficiente, você continua querendo as mesmas coisas; você quer
uma casa e seu pai também queria, ou seja, você simplesmente
está repetindo. É como se fosse uma extensão do mesmo mundo.
Você não está vivendo uma vida própria, não está suficientemente
individualizado.
Evidentemente, seria utópico que eu, sozinho, aqui neste curso,
tentasse acreditar conseguir, por mim mesmo, suprir toda a falta
de educação, e chocar todos em dois anos, para que vocês saiam
voando. Este curso constitui um sinal do que poderia ser uma
educação, e só não é por causa das dificuldades de tempo (es-
casso). A educação é uma influência maciça, que age sobre você
diariamente, várias horas por dia, e que se sobrepõe à influência da
famı́lia, e que é mais forte do que a influência da famı́lia no plano
do passado.
Você tem um futuro que te puxa diariamente, e é evidente que
em quatro aulas por mês eu não posso fazer isso. Isto aqui é mais
um cardápio do que o alimento. É mais um indı́cio do que poderia
ser uma verdadeira educação, do que a realização dessa educação.
Nunca esqueçam disso.
O fato disso não ser possı́vel não deixa de ser vantajoso, sob
certos aspectos, porque é possı́vel que o indivı́duo se liberte do

224
9 Preleção IX

meio familiar tornando-se subserviente ao meio escolar. Este sub-


terfúgio, para nós, está excluı́do. Aqui, o indivı́duo vai sozinho, ou
não vai a parte alguma. O fato de que as pessoas, freqüentemente,
necessitem de apoio uns dos outros, e recebam este apoio, em parte
é bom, porque às vezes você não agüenta a pressão da vida, mas
por outro lado, isso não pode virar um vı́cio. Está na hora de por
na cabeça que você está sozinho, e que nós nem podemos chocá-lo
completamente.
6. Possibilidade e justificação de uma lógica como teoria da
ciência.
A ciência refere-se ao saber. Não que ele seja uma soma ou te-
cido de atos de saber. Só em forma de obras escritas tem ela uma
existência própria, ainda que cheia de relações com o homem e
suas atividades intelectuais. Ela representa uma série de dispositi-
vos externos, nascidos de atos de saber e que podem converter-se
de novo em atos semelhantes, de inumeráveis indivı́duos.
A Ciência parte de um ato de saber, se torna um registro, o qual
tem que conter a possibilidade de uma repetição futura, senão ele
deixa de ser um saber, e passa a ser um enigma.
A nós basta-nos que a ciência implique ou deva implicar certas
condições prévias para a produção de atos de saber, cuja realização
pelo homem “normal” possa considerar-se como um fim acessı́vel.
Em princı́pio, a Ciência deveria ser um conjunto de dispositi-
vos de registros, acessı́vel a um homem normal, de modo que, ao
ter acesso a estes registros, ele pudesse repetir os atos intuitivos
pertinentes.
Neste sentido a ciência aponta ao saber.
Esta é a relação entre a Ciência e o saber: o saber só se dá no
momento do ato de saber, mas o que nós chamamos de Ciência é
também um fenômeno social, uma instituição social. É a coleção
de registros, e dos atos que visam a manutenção, o aumento, e a
decifração destes registros. E a relação deste conjunto denomi-

225
9 Preleção IX

nado Ciência, com o saber, é uma relação como o da potência ao


ato, ou seja, a Ciência se justifica na medida onde ela representa
a potência para um ato de saber. Se não existir a possibilidade da
atualização, não é mais Ciência.
Husserl não perguntou isso, mas eu pergunto: será que pelo
próprio tamanho do registro ele já não deixou de ter alguma
relação possı́vel com o saber? O simples fato de ser grande não
quer dizer nada, porque é grande em relação à capacidade desse ou
aquele, mas sempre poderia surgir, um dia, um indivı́duo capaz de
abarcar tudo aquilo. Não é que ela seja praticamente impossı́vel
de se transformar em saber. Ela é teoricamente impossı́vel. Há
um impedimento teórico, absoluto, de que esse conjunto de regis-
tros venha a se tornar um ato de saber, mesmo supondo-se uma
mente sobre-humana capaz de abarcar o conjunto de informações,
ela não tiraria daı́ conclusão alguma. Se fosse só pelo volume,
ele mostraria uma impossibilidade prática. Se nós imaginássemos
uma espécie de super-homem intelectual, ele seria capaz de abar-
car tudo isso, porém, se o registro é caótico, existe uma impossi-
bilidade de você transformar aquilo em um ato de saber. Faça a
seguinte hipótese: pegue todos os livros da Biblioteca Nacional;
existe um impedimento prático de você ler todos eles. Porém, se
nós pegarmos todas as páginas, cortá-las, e misturarmos as letras,
o impedimento não será prático, será teórico, porque o resultado
será impossı́vel de se ler.
No momento, onde a acumulação de atos de saber adquire, ela
mesma, uma caracterı́stica caótica, no sentido em que uma parte
desmente a outra, em que não há linguagem comum, não há co-
nexão, em que um saber é incomunicável de uma ciência para a
outra, não é possı́vel encontrar relação alguma entre determina-
das pesquisas e outras pesquisas. E isso não acontece só entre as
ciências, mas dentro de uma mesma ciência. Assim, em que me-
dida isso tem alguma relação com o saber? Talvez esta pergunta,

226
9 Preleção IX

no tempo de Husserl, fosse ainda prematura, mas hoje em dia já


não é mais.
Na minha opinião, qualquer trabalho cientı́fico, para que ele pu-
desse ser incluı́do no anuário de uma universidade, ele precisaria
passar por uma peneira muito mais profunda. Não apenas pelos
especialistas da área, mas pelos especialistas das áreas contı́guas.
Pode ser que um indivı́duo, pesquisando algo à luz da Economia,
chegue a uma conclusão que, do ponto-de-vista da Sociologia, ou
da Psicologia, essa conclusão seria um absurdo, e que já está des-
mentida de antemão. Se as coisas fossem para ser feitas de ma-
neira séria, era para ser assim. O problema estaria resolvido.
De fato, não é possı́vel que a Ciência progrida pelos simples
fato de ter mais gente se dedicando a ela. O número de cientistas
que se coloca em atividade numa determinada ciência é relevante
até certo ponto. Entretanto, a partir dali a situação se inverte. Você
precisa ter um número mı́nimo, sem o qual não dá para funcionar
o intercâmbio cientı́fico. À medida que vai crescendo a comuni-
dade cientı́fica, cresce o intercâmbio de idéias, e a coisa frutifica,
como foi no Renascimento, com a criação das grandes academias
cientı́ficas, universidades, etc. Porém, quando o crescimento quan-
titativo da camada cientı́fica ultrapassa um certo limite, ele já não
representa mais um progresso, mas sim um problema.
O acesso às profissões cientı́ficas deveria ser barrado, e só deve-
ria ser aberto a pessoas que tenham condições excepcionais. Ha-
veria necessidade de uma elitização, porque a maior parte das pes-
soas que estão indo para a profissão cientı́fica, não têm vocação
cientı́fica. Elas querem é um emprego. O homem de Ciência tem
que ter uma série de qualidades, principalmente morais, sem as
quais ele não pode exercer a profissão. Um exemplo recente é o
sujeito que descobriu a AIDS, e suspeita-se que um roubou a pes-
quisa do outro — isso é um escândalo! Quando Darwin lançou a
origem das espécies, teve um outro sujeito, na Austrália, que tinha

227
9 Preleção IX

lançado a mesma idéia, e Darwin reconheceu! Vejam a diferença


de um verdadeiro homem de Ciência.
Em algumas ciências, um indivı́duo sozinho pode fazê-las pro-
gredir, como por exemplo na Matemática pura, ou na Fı́sica
teórica. No entanto, em outras, você precisa de mais gente, só que
até um certo ponto. O crescimento quantitativo é bom enquanto
ele favorece o intercâmbio, mas a partir do momento em que ele
começa a criar um impedimento...
E não é só o problema do volume, mas da qualidade, e do nı́vel
das informações também. Essas informações serão colocadas em
planos onde a comparação seja possı́vel. A informação pode ser
heterogênea, uma não ter nada a ver com a outra, e você não tem
como comparar, não tem como tirar uma sı́ntese. Aı́, começa a
atrapalhar.
Isto também repercute no problema da terminologia. Quando
as pessoas não se entendem no sentido das palavras que usam, não
é apenas porque eles não combinaram quanto ao sentido das pala-
vras, mas porque eles estão olhando para coisas diferentes. Toda
confusão de palavras tem uma outra confusão pior por trás. A con-
fusão de palavras é, no fundo, uma confusão de coisas. No Bra-
sil, por exemplo, as pessoas não respeitam a linguagem. Se você
combinar significados, convencionais e uniformes, para algumas
palavras, pode ser que um monte de coisas que estavam designa-
das equivocadamente pelas mesmas palavras, fiquem sem palavras
que as designem. E como o acordo versa somente sobre as pala-
vras, os objetos serão retirados do consenso. Quando existe uma
confusão terminológica muito grande, você pode ter certeza que
o objeto daquela ciência é muito equı́voco, e ficam todos olhando
para vários lados da mesma questão.
O nı́vel intelectual da pesquisa cientı́fica está caindo vertigino-
samente. A pesquisa médica, por exemplo, está tão padronizada
que o sujeito, usando aqueles procedimentos uniformes, acredita

228
9 Preleção IX

que ele está observando alguma coisa. Acontece que ele não está,
porque dos fatos envolvidos, ele está apenas selecionando certos
aspectos que correspondem ao modelo padronizado da pesquisa,
e desde que haja uma aparência de uniformidade da hipótese, dos
materiais, dos métodos, etc., e do resultado, ele acredita que aquilo
está certo. Mais ainda, hoje em dia, se chama de pesquisa médica
o seguinte: eu dei um remédio para quinze pessoas e elas ficaram
boas, logo... Não há nisso um trabalho de inteligência. É a simples
repetição de uma rotina.
É claro que o mundo cientı́fico, em geral, está tão bem organi-
zado até um certo ponto, que a pesquisa rotineira acabava funcio-
nando, mas quando você, pela pesquisa rotineira, acaba ocupando
novas áreas, aı́ você começa a fazer erros um atrás do outro. A
grande parte dos fracassos da profissão médica, que o pessoal do
movimento alternativo atribui ao fato da Medicina cientı́fica ra-
cionalizar as coisas, vem justamente pelo fato de que ela não é
cientı́fica absolutamente, e ela é completamente racional. Se fosse
cientı́fica mesmo, funcionaria. Não existe mais diferença entre a
pesquisa cientı́fica e a observação empı́rica mais rudimentar. Uma
hipótese cientı́fica tem que ser fundamentada logicamente mesmo.
Os sujeitos fazem uma hipótese qualquer, puramente empı́rica,
por exemplo, eu faço a hipótese de que martelada na cabeça cura
bicho-de-pé. Por quê? Ah!, porque sim! Eu não vou discutir teo-
ria, eu não tenho tempo, porque eu sou um homem de Ciência! Eu
dou martelada na cabeça de quinze pessoas; oito curaram, logo,
está provado cientificamente. Aı́ você faz o cálculo estatı́stico da
probabilidade daquilo acontecer. Só que a estatı́stica não significa
nada, nesse caso, porque nem a hipótese significa nada. A precisão
estatı́stica que se usa entra no fim. A estatı́stica serve para você
avaliar a significância de um resultado em face de uma média já
conhecida anteriormente. Porém, isso não vai introduzir diferença
nenhuma entre um enfoque cientı́fico e uma simples observação

229
9 Preleção IX

empı́rica. A diferença de empı́rico para o cientı́fico, é o funda-


mento da hipótese. Ou seja, por quê investigar essa hipótese e não
outra? Eu trabalhei para uma revista médica por quatro anos, e
nunca vi um sujeito que tivesse consciência disso.
Há um livro chamado “Métodos da Pesquisa Cientı́fica”; os su-
jeitos confundem método da pesquisa cientı́fica com a técnica da
pesquisa. Hoje em dia já estão confundindo a técnica da redação
com a pesquisa cientı́fica. Como se pode dizer que isso seja um
progresso? É por isso que o pessoal da medicina alternativa diz
que a pesquisa cientı́fica atual é um embuste, mas não por ela ser
cientı́fica.
Isto tudo é para vocês verem como a relação entre Ciência e
saber, no sentido em que Husserl está falando, não é uma relação
aberta e, sim, uma relação indireta e problemática. Eu penso que
as coisas que são causadas pela desonestidade não são tão graves.
Se o sujeito é um corrupto, que recebe dinheiro de um laboratório
para inventar um monte de mentiras para promover os seus pro-
dutos, isso não é tão grave. O grave é quando os vı́cios mentais
criados por essas pessoas são adotados uniformemente por todas
as pessoas honestas, que não estão ganhando nada com isso, e
com a maior das boas intenções, acabam achando que o certo é
isso. Há uma grande diferença entre você vender 900 gramas de
açúcar como se fosse 1 quilo, e você alterar a balança, de 1 quilo
para 900 gramas. Aı́, não será só um saco que você vai vender
por 900 gramas, serão todos. O errado vira norma e não tem mais
jeito de consertar. Eu nunca acho que a corrupção, em si mesma,
seja uma coisa grave. O grave é quando todas as distorções criadas
pela corrupção acabam virando um modelo, uma norma.
Eu não acho grave quando se diz que a classe polı́tica é cor-
rupta. Eu acho grave é quando o povo inteiro é corrupto. Leiam
“A História dos Doze Césares”, e vocês verão que o próprio PC
Farias é uma pessoa da mais elevada dignidade, porque houve um

230
9 Preleção IX

progresso moral da classe dirigente. Não há um polı́tico do século


XX, nem mesmo Hitler, que chegasse aos pés dos césares. Júlio
César se prostituiu carnalmente a um sujeito para obter a sua pri-
meira nomeação — começou assim a carreira dele. E daı́ para
cima: emprestar a mulher para outro, entregar as filhas, as irmãs,
tudo isso era normal naquela época. O próprio Hitler jamais me-
xeu com a mulher do próximo. Quando disseram para ele que
havia um sujeito da assessoria dele que transava com criancinhas,
ele ficou indignado. Ou seja, por mais louco que ele fosse, ele
já havia adquirido um padrão que estava muito acima dos doze
césares.
Só que o problema não é esse mas, sim, quando o povo começa a
raciocinar de maneira totalmente errada. E, sobretudo, os intelec-
tuais não entravam nesse esquema. Havia sempre uma liderança
intelectual capaz de dizer não, às vezes em prejuı́zo próprio, como
é o caso de Cı́cero: sem armas, poder, ele ofereceu uma oposição
férrea, e acabou morrendo por isso mesmo. Sempre houve quem
fosse capaz de dizer não a este mundo corrupto. Hoje em dia,
isso está se tornando uma raridade. Está se criando toda uma falsa
camada intelectual de modo a que você não tenha mais diferença
qualitativa entre o que fala um Cı́cero e o que fala um legitimador
de discursos contratado.
A educação nas escolas, por um lado, ao invés delas tentarem
fornecer uma medida de valor mais universal, mais intemporal,
ao contrário, elas entram na atualidade e assumem inteiramente o
padrão de valores da atualidade, o qual é promovido pela própria
indústria editorial, e pelos meios de comunicação. Então, nesse
caso, não tem mais jeito.
Tudo o que dissemos até aqui é para ver a relação entre o que
o Husserl chama de saber e Ciência, onde ele usa a Ciência no
sentido não só dos atos de saber, mas no sentido do conjunto dos
atos, registros, etc., ou seja, no sentido do saber atual, efetivo, e

231
9 Preleção IX

potencial. Assim, nesse sentido, a Ciência tem com o saber uma


relação problemática, ambı́gua. Porém, daı́ para diante o que ele
irá falar, se referirá à Ciência, no sentido de ...(?)
[ fim da fita ]
Pois bem, no saber possuı́mos a verdade. No saber efetivo,
possuı́mo-lo como objeto de um juı́zo justo.
O saber é o saber da verdade; é o saber cujo conteúdo é verda-
deiro. O ato do saber se manifesta internamente e externamente,
conforme um juı́zo justo. Um juı́zo justo é um juı́zo que afirma
que aquilo que é, é, ou, aquilo que não é, não é. A forma do saber
é uma sentença, a qual pode até mesmo ser implı́cita. No mo-
mento em que você vê esta parede, e constata que ela é branca,
existe aı́ um juı́zo implı́cito. Você não formula este juı́zo, “a pa-
rede é branca”; mas no fato de você ver a brancura da parede, e
reconhecê-la, o conteúdo deste saber se expressa num juı́zo, “a
parede é branca”, o qual é justo.
A tudo o que você sabe, corresponde um juı́zo, uma sentença,
e se você não o expressa em juı́zo, pelo menos, o juı́zo está
implı́cito. Não existe nenhuma forma de saber que não seja um
juı́zo. Isto acontece porque, psicologicamente falando, o fluxo da
nossa atividade cognoscitiva, às vezes, é tão rápido que nós não ex-
pressamos claramente os juı́zos que contêm as nossas convicções
e observações. Mas os juı́zos estão lá, implı́citos.
Mas isto só não basta. É necessário, ademais, a evidência, a
luminosa certeza de que aquilo que reconhecemos é, ou de que
aquilo que rechaçamos não é;
O quê é a Ciência? A Ciência é um saber que contém uma
espécie de uma verdade sob a forma de um juı́zo justo, mas não
basta só isso. É necessário que você tenha a evidência da justeza
do juı́zo.
Pode acontecer que você, ao fazer um juı́zo que seja verdadeiro,
mas cuja evidência você não possui, por exemplo, quando você

232
9 Preleção IX

fala um frase que coincide de ser verdadeira, mas que você não tem
a evidência, ou a prova daquilo. Ou seja, a Ciência se caracteriza,
não só por ser um saber verdadeiro, que se expressa num juı́zo
justo, mas por ser um saber que possui o fundamento dessa justeza
num evidência. Uma frase que é verdadeira, mas da qual você não
possua a evidência, se é verdadeira por acaso, ou por sorte, não é
Ciência de maneira alguma.
certeza que é preciso distinguir da convicção cega, da opinião
vaga, por resoluta que seja.
E por válida que seja. Se temos uma opinião que é verdadeira,
mas cuja prova, cuja evidência, não possuı́mos, isto está fora do
âmbito da Ciência.
A linguagem corrente, porém, não se atém a esse conceito rigo-
roso do saber. Chamamos também ato de saber, por exemplo, o
juı́zo que vem enlaçado com a clara recordação de haver pronun-
ciado anteriormente um juı́zo de idêntico conteúdo, acompanhado
de evidência (“Sei que o teorema de Pitágoras é verdadeiro, mas
esqueci a demonstração”).
Normalmente, não precisamos ter a evidência atual. Se houve
já, anteriormente, um juı́zo de idêntico conteúdo, acompanhado
de evidência, e eu o repito, isto também é um saber que pode ser
aceito como cientı́fico.
Deste modo tomamos o conceito de saber num sentido mais
amplo.
A nota mais perfeita da justeza é a evidência, que é para nós
como que uma consciência imediata da verdade mesma. Mas
na imensa maioria dos casos carecemos deste conhecimento ab-
soluto, e em seu lugar serve-nos a evidência da probabilidade.
A evidência da probabilidade de uma situação A não funda a
evidência de sua verdade (mas funda a evidência da verdade da
probabilidade); mas funda aquelas valorações comparativas e evi-
dentes, pelas quais logramos distinguir as hipóteses e opiniões

233
9 Preleção IX

razoáveis das irrazoáveis. Todo autêntico conhecimento repousa,


pois, em última instância, na evidência.
Mesmo no caso do raciocı́nio de probabilidades, eles também
são fundados numa evidência, que é a evidência da própria proba-
bilidade.
Não obstante, subsiste uma duplicidade no conceito de saber.
Saber, no mais estrito sentido da palavra, é evidência de que certa
situação objetiva existe ou não existe. De acordo com isto, a
evidência de que certa situação objetiva é provável é um saber
no sentido mais estrito (rigoroso) no tocante à probabilidade; mas,
no tocante à existência da situação objetiva mesma, é um saber
em sentido mais amplo (vago). Neste último caso fala-se de um
saber ora maior, ora menor, e se considera o saber em sentido es-
trito como o limite ideal e absolutamente fixo a que em sua série
ascendente se aproximam assintoticamente as probabilidades.
Mas o conceito de ciência exige mais do que mero saber. É ne-
cessário algo mais: conexão sistemática em sentido teorético; e
isto implica a fundamentação do saber e o enlace e ordem perti-
nentes na sucessão das fundamentações.
Esquema mostrando como Husserl fundamenta as ciências

1. Saber

2. Verdade

3. Expressa num juı́zo justo

4. Com evidência (dos fundamentos da justeza)

5. Pode ser:

a) amplo
b) estrito

234
9 Preleção IX

6. Conexão entre os saberes (juı́zos)


7. Enlace e ordem na sucessão dos fundamentos
8. Unidade sistemática:
a) dos conhecimentos
b) dos fundamentos que sustentam os conhecimentos
A Ciência não é conhecimento organizado. É a organização
do próprio conhecimento. Tudo isso é um variação em torno de
evidência direta e evidência indireta. Apenas detalhamos a idéia.
A essência da ciência implica, pois, a unidade do nexo das
fundamentações, em que alcançam unidade sistemática não só os
distintos conhecimentos, mas também as fundamentações mesmas
e, com estas, os complexos superiores de fundamentações, a que
chamamos teorias.
Nós podemos ter um tipo de conhecimento que organize sis-
tematicamente os conhecimentos, mas que não estejam fundados
numa unidade sistêmica de fundamentação. Por exemplo, o caso
da Daniela Perez. Digamos que eu seja o delegado. Eu tenho a
fotografia do local, o relatório das testemunhas, os testes feitos
pela Polı́cia Técnica, o relatório dos policiais que investigaram o
crime, e a reconstituição. Os fundamentos da veracidade de cada
um desses elementos são diferentes. Formam eles, por acaso, uma
unidade sistêmica ou não? Se a testemunha diz que viu o fulano
lá no local do crime, daı́ eu faço um teste de visibilidade no local.
O fundamento da veracidade do testemunho não é o mesmo fun-
damento da veracidade do resultado do teste, o qual se baseia em
toda uma concepção teórica sobre a relação entre a luz e a visibi-
lidade, e este fundamento teórico é uma ciência inteira. Se você
retirasse a ciência da Ótica, acabou o teste. No entanto, eu não pre-
ciso da ciência da Ótica para julgar o depoimento da testemunha.

235
9 Preleção IX

Eu preciso de um outro fundamento. Se eu digo que posso julgar


pela cara da testemunha, pelo tom de voz, etc., podemos ver que
esses fundamentos estão desnivelados, e eles não formam conexão
sistêmica. Mas, por quê eles não formam, e não poderiam formar
uma conexão sistêmica? Porque uma investigação policial não é
uma ciência, é uma técnica. Uma técnica junta conhecimentos he-
terogêneos, que estão conectados entre si. Ou seja, as razões que
você tem para crer numa parte da investigação são diferentes das
razões que você tem para crer numa outra parte. Por isso mesmo é
que a investigação policial não pode ser uma ciência.
Do mesmo modo, a clı́nica médica não é uma ciência, é uma
técnica. Por exemplo, um médico, na clı́nica, ele pode levar em
conta o tom de voz do paciente e, ao mesmo tempo, ele também
leva em conta um exame de laboratório. Você tem aı́ um dado
subjetivo e um dado objetivo, e que você não pode dispensar nem
um nem outro, portanto, aquilo não é redutı́vel a uma ciência.
A Administração de Empresas também não pode ser uma
ciência, ela é uma técnica, porque ela implica conhecimentos cuja
credibilidade é determinada por fatores completamente diferentes
e desnivelados. Se pudéssemos reduzir todos esses elementos a
um único sistema de fundamentações, fundado num princı́pio, ou
num grupo de princı́pios coerentes entre si, terı́amos uma ciência
completa.
Em Biologia, todas as razões que você tem para acreditar que as
coisas se passam de tal ou qual modo, estão referidas a uma única
teoria, que fundamenta um único método. A técnica é uma uni-
dade sistemática dos conhecimentos, sem a unidade sistemática
dos fundamentos. Tudo o que é unificado, reunido, o é para al-
guma coisa, e por alguma coisa. Por isso estamos todos reunidos
aqui, agora. Os conhecimentos estão reunidos na técnica e existe
uma finalidade. Numa ciência, os conhecimentos estão reunidos
em função da unidade de um objeto em si mesmo. É uma unidade

236
9 Preleção IX

cerrada em si mesma, como diz Husserl. Na técnica, qualquer co-


nhecimento, referente ao que quer que seja, mas que seja útil para
o fim que você tem em vista, pode entrar na técnica. Mesmo que
eles sejam de fundamentos completamente diferentes, e que não
tenham fundamento algum.
Em Matemática, o critério experimental vale? O método indu-
tivo vale em Matemática? Claro que não! A base da Matemática
é dedutiva. A demonstração de que o método funciona é dife-
rente da aplicação do método. É a diferença do que seria o estudo
matemático da indução, e o estudo indutivo da Matemática. Em
Matemática pura, é evidente que a indução não serve de prova, em-
bora, no aprendizado da Matemática, você use a indução. Numa
técnica você pode usar elementos indutivos, dedutivos, o que qui-
ser, contanto que sirva para o mesmo fim. A técnica unifica os
seus conhecimentos por fora, para além da natureza do objeto, e
tendo em vista um fim humano. A técnica coere o conhecimento,
só não coere o fundamento. É como se você implantasse naquele
objeto uma finalidade, que não está nele e que ele, por si mesmo,
não poderia determinar.
Vejam, por exemplo, a História como ciência. Ela é muito
recente. A História começa a ser ciência no momento que ela
começa a ordenar, não os acontecimentos que ela narra, mas, sim,
quando ela começa a ordenar as razões da credibilidade. Por
exemplo, você tem um documento escrito, e tem um monumento.
Como você interpreta o documento e o monumento, e qual o nı́vel
de credibilidade que você deve dar a cada um? A História se torna
ciência no momento que ela tenta fundamentar as suas afirmações,
uma por uma, e também criar um nexo entre as fundamentações.
Assim, qual é o valor relativo de um documento escrito ou de um
monumento, ou de uma moeda, ou de uma vestimenta? Para a
ciência histórica, tudo isso é documento e, em princı́pio, existe
um conjunto de fundamentos que se desdobram, em leque, para a

237
9 Preleção IX

avaliação de todos esses tipos de documentos, e é o nexo unificado


entre esses fundamentos que dá o caráter cientı́fico da História. E,
não, a simples organização dos fatos. Essa organização poderia
ser acidental, poderia ser externa, técnica, qualquer coisa.
A Ciência não é conhecimento organizado, mas é a organização
do próprio conhecimento, e do fundamento desses conhecimen-
tos. Este texto do Husserl é o primeiro onde vocês podem ver
uma explicação do que é Ciência, de uma maneira tão simples, tão
evidente, tão brilhante, e que expresse uma coisa que todos têm
na cabeça, e que na prática o homem de ciência pratica tudo isso,
mas que não tinha sido dito antes. vocês podem pegar este texto
e aplicá-lo nesse ou naquele caso, e verão que funciona sempre.
Por exemplo, identifique casos onde há o erro da evidência indi-
reta passar como princı́pio. Ao aprenderem isso tudo que está no
texto, colocarem isso tudo na cabeça, eu acho que vocês cravarão
um pilar nas suas personalidades intelectuais. Existem outros pi-
lares, e este é um deles. É por isso que eu acho uma bobagem
alguém não crer no poder do conhecimento humano.

238
10 Preleção X
15 de janeiro de 1993

A essência da ciência implica, pois, a unidade do nexo das


fundamentações, em que alcançam unidade sistemática não só os
distintos conhecimentos, mas também as fundamentações mesmas
e, com estas, os complexos superiores de fundamentações, a que
chamamos teorias.
Isso seria as fundamentações de fundamentações. O exemplo
da investigação policial, dado anteriormente, é particularmente
frutı́fero, porque você pode, nele, ir remontando desde uma multi-
plicidade até uma unidade possı́vel.
O delegado dispõe de testemunhas e depoimentos para investi-
gar o crime. Por outro lado, ele dispõe de documentos escritos,
cartas, papéis que estivessem de posse da vı́tima, etc. Ele tem
também exames feitos no local, a perı́cia, e tem alguns testes que,
não se referindo diretamente ao que aconteceu, podem servir para
a sua avaliação como, por exemplo, o teste de visibilidade.
Qual é o fundamento da credibilidade de cada um desses ele-
mentos? Nós vemos que estes fundamentos são desnivelados, ou
seja, um tem mais credibilidade que o outro, mas os motivos da
credibilidade são totalmente divergentes. Você não acredita numa
perı́cia pelas mesmas razões que você acredita num depoimento.
Se vocês tentarem definir essas razões de credibilidade, e busca-
rem o fundamento da veracidade de cada uma dessas coisas, vocês
encontrarão várias ciências envolvidas. Muito mais do que vocês

239
10 Preleção X

imaginam. E vocês encontrarão os motivos pelos quais eu acho


que todos os delegados de polı́cia deveriam ser demitidos, porque
eles deveriam dominar, pelo menos, umas cinqüenta ciências.
Assim, em quê se fundamenta a crença num depoimento de tes-
temunha? Por exemplo, a coerência com os fatos, pode ser avali-
ada psicologicamente? Não. como você poderia pegar a coerência
interna se você não tivesse uma correta interpretação do que o su-
jeito está dizendo, levando-se em conta todas nuanças da lingua-
gem pessoal dele, a linguagem do grupo social, etc.? Isso se des-
dobraria, basicamente, no aspecto sociológico, e no aspecto psi-
cológico, que seria a coerência externa: coerência com os outros
depoimentos, testemunhos, com os fatos observados diretamente,
com os resultados de testes e perı́cias, etc. Assim, que condição
tem um delegado de entender um assunto dessa complexidade? Se
levarmos em conta que, depois do inquérito policial, ainda há a
interferência do juiz, o qual ainda tem que compreender a menta-
lidade do delegado, os hábitos da Polı́cia, a estrutura do inquérito
policial, e a coisa se complica mais ainda.
Vamos supor que o delegado tenha todas as condições de en-
tender a complexidade do seu ofı́cio, e que ele quer fazer o me-
lhor possı́vel. As coisas que são derivadas da ignorância indivi-
dual, da inépcia, e da corrupção, são acidentais e não podem ser
levadas em conta na nossa análise. Nós temos que partir da me-
lhor hipótese possı́vel, porque se você for partir, não sob o aspecto
ideal, mas do aspecto real, então, o quê um delegado precisa saber
para conduzir o inquérito? Nesse caso, ele não precisaria saber
coisa alguma, nem precisaria ler o inquérito, porque não haveria
problema algum, estaria tudo resolvido. Mas estamos partindo da
melhor hipótese possı́vel.
Quando confrontamos os testemunhos com os fatos, tudo isso
tem a ver com tecnologia da História. Porém, qual é o princı́pio
de confiabilidade do teste de visibilidade? Ele não tem um fun-

240
10 Preleção X

damento único. Ele é uma relação de conhecimentos de Ótica e


de Fisiologia. E, estes, por sua vez, se fundamentam num método
cientı́fico, estabelecido por Claude Bernard (?). Se você acredita
nesse método cientı́fico, então adeus teste de visibilidade. Supo-
nha que o teste desse como resultado o fato de ser quase impossı́vel
que alguém consiga enxergar naquelas condições, e a testemunha
insistisse em dizer que viu — como se sai dessa? A Fisiologia res-
ponde esta questão? A Ótica responde? A Psicologia responde?
Como fica a situação? Entrega-se a Deus?
Eu acho que no fundo é isso mesmo. Eu acho que o sistema
judiciário faz justiça por sorteio. Não é possı́vel que eles errem na
totalidade dos casos. No infinito, acaba tudo em 50% e 50%. Ou
seja, entre os inocentes que eles condenam, e os culpados que eles
absolvem, há também os inocentes que são absolvidos, e os culpa-
dos que são condenados. Isto porque quando o inquérito chega a
um ponto desses, ele entra numa regra retórica. A retórica é a psi-
cologia do discurso, e essa regra diz o seguinte: Não é verossı́mil
que o inverossı́mil nunca aconteça (Aristóteles). Ou seja, o inve-
rossı́mil acontece, de vez em quando, e pode ser que você esteja
dentro de um desses casos.
Porém, isto aqui não explica, apenas abre uma possibilidade.
Daı́, você teria que partir para novas verificações. Como fazer
isso? Você teria que testar novamente os testemunhos, por outros
meios, não teóricos, porque o teste avalia apenas a possibilidade
teórica, logo, geral. E não aquele testemunho em particular. Por-
tanto, se você não consegue resolver o caso geral, você tem que
averiguar mais particularmente aquele caso para ver se, por inve-
rossı́mil que fosse ele, ainda assim, poderia ter acontecido. Você
teria que repetir tudo isso a esse detalhe em particular. Por exem-
plo, você teria que avaliar talvez, a possibilidade de uma coin-
cidência, de alguém, por acaso, ter iluminado a área, etc. Você
teria que avaliar, sair do terreno da regra, das leis que definem a

241
10 Preleção X

visibilidade em geral, e você teria que entrar no terreno da aci-


dentalidade. É claro que os conhecimentos de Fisiologia, Ótica,
História, Lingüı́stica, e da Retórica, eles não poderiam ser coeri-
dos num fundamento único. Seria uma multiplicidade de funda-
mentos. Assim, cada uma das partes teria que ser julgada com
critérios diferentes. E a única chance que esse negócio tem de
dar certo, é de que o indivı́duo que procede à aplicação da técnica,
possua, ele mesmo, cada um dessas conhecimentos. Essa é a única
garantia.
Quando você tem uma ciência organizada, às vezes, você não
precisa conhecer o conjunto. Você tem o fundamento central, e
aquilo abrevia o trabalho. Mas, se se trata de conhecimentos he-
terogêneos, portanto, que têm fundamentações diferentes, eles só
se unificam no indivı́duo que detêm a totalidade daqueles conhe-
cimentos.
Assim, o delegado teria que possuir nele, sintetizado, como
sı́ntese prática, e não, teórica, todo esse conjunto de conheci-
mentos e seus respectivos fundamentos. Entretanto, nós esta-
mos aqui fazendo uma teoria da investigação policial? Sim, es-
tamos investigando teoricamente o quid est — o quê é? —
e é por isso que isso se chama um complexo superior de
fundamentações. Quando você pega um bolo de conhecimentos
e suas respectivas fundamentações, e procura unificar tudo aquilo
numa fundamentação geral, você está fazendo uma teoria, seja de
uma ciência, ou de uma técnica. Só que eu acho que as pessoas en-
volvidas na questão, jamais pensaram numa teoria da investigação
policial porque, se pensassem, teriam desistido da profissão. Ou
teriam decidido continuar nela, para exercê-la de maneira inepta.
Na prática, às vezes, eles acertam, porque não é verossı́mil que
eles errem sempre. Mesmo que o sistema judiciário seja total-
mente corrupto, é impossı́vel que ele cometa injustiça na totali-
dade dos casos. O juiz pode ser corrompido pela parte inocente:

242
10 Preleção X

o sujeito está inocente, e vê que não tem chance de provar a sua
inocência, daı́ ele compra o juiz, que então o absolve, só que pelos
motivos errados. Também, se você não tem provas suficientes para
incriminar o culpado, você poderia comprar o juiz, para que ele o
condene. É possı́vel que tudo isso aconteça.
Nas faculdades de Direito, hábitos de retórica são tão arraigados
nos estudantes que, depois de formados, é difı́cil que um advogado
pense de forma diferente. Não adianta você dar esses conhecimen-
tos para o delegado, se ele não tem o arcabouço teórico que mostre
a ele a necessidade absoluta desses fundamentos. Um delegado é
uma autoridade terminal, não há ninguém por trás dele para in-
vestigar o que ele está fazendo. Mesmo quando vai para a justiça,
o juiz não vai levar integralmente a sério o inquérito, mas vai se
basear nele. Ele já vai receber a coisa toda já dirigida num certo
sentido, mesmo que ele tenha que revogar tudo aquilo. A linha
de investigação de um juiz já está pré-determinada. Pior ainda,
é que pela lei brasileira, o juiz não pode mandar investigar nada,
a não ser dentro daquilo que as partes em conflito tenham colo-
cado. O juiz não pode levantar um terceiro ponto-de-vista, mesmo
que ele saiba que exista. Quem propõe, quem tem a iniciativa na
investigação é, de fato, o delegado. Só que o resultado do inquérito
não tem validade, nem para absolver, nem para condenar alguém.
No Brasil, indiciado e inquérito, já querem dizer a mesma coisa
que condenado. Isto graças a uma nuança criada pela nossa im-
prensa. Se o sujeito for processado, então nem se fala!
Ora, o sujeito ter mil processos, e estar absolvidos em todos,
significa que ele está legalmente inocente. O que importa é o pro-
nunciamento oficial, porque o que não é oficial tem validade sub-
jetiva para quem diz. Assim, a sociedade como um todo, só pode
admitir aquilo que a própria sociedade verificou através do órgãos
constituı́dos exatamente para isso. Se a absolvição de nada vale,
de que vale a condenação? Essa mentalidade está profundamente

243
10 Preleção X

arraigada no Brasil, e precisa ser reiterada das cabeças. Por quê


a condenação representa a culpa, e a absolvição não representa a
inocência? Porque a idéia mesma de lei não está na cabeça das
pessoas. Estado de direito é isso: condenado, condenado; absol-
vido, absolvido. Essa é a regra do jogo. Eu também quero isso
para mim! Só se deve considerar o sujeito como culpado quando
a sentença é do tipo transitado em julgado, ou seja, não tem mais
condição de apelação. Daı́, fim.
Você pode dizer que o sistema judiciário é corrupto. Eu digo
que tanto faz. Não faz a menor diferença. Se a sentença num sis-
tema judiciário corrupto não vale, como você vai sanear o próprio
sistema? Imaginem que todos os juizes sejam corruptos. Então, de
agora em diante nós não vamos mais obedecer às sentenças deles.
Neste caso, então, é que não tem mais conserto a corrupção. O fato
de um juiz ser corrupto é um problema grave, justamente porque
a sentença dele vale. Se não valesse nada, tanto faz. Entretanto,
se você não respeita a sentença de um juiz, que diferença faz ele
ser corrupto ou não? Para sanear um sistema judiciário, a primeira
coisa a ser feita é levar a sério a sentença de um juiz. Aceitar como
se fosse honesta. A única maneira de você punir um juiz corrupto,
é através de uma sentença de outro juiz. Ou, então, nós vamos ter
que fazer justiça com as próprias mãos.
Assim, o fato de você colocar em dúvida os resultados das
sentenças, principalmente no caso de absolvição, isso ajuda a cor-
romper o sistema judiciário. A sentença condenatória, essa é que
não deveria ser levada tão a sério, até que o sujeito seja realmente
condenado. O problema é que, aqui no Brasil, só o fato de você
ser indiciado num processo, já significa que você é o culpado. En-
tretanto, o brasileiro só pensa assim com relação aos outros. Se
for no caso dele, em particular, aı́ é o contrário.
Isto significa que o povo não tem educação polı́tica para viver
num estado de direito. Ele não aceita a regra do jogo. Ele aceita,

244
10 Preleção X

mas diz que é uma falsa regra, e ele irá cumprir uma outra re-
gra, que ele mesmo inventou. Assim, todo o sistema judiciário
vira uma superestrutura ideológica, uma espécie de corrente que
serve para bater na cabeça do adversário. Não é, de fato, uma
regra para ser cumprida. É uma espécie de inversão de todos
os princı́pios de direito. Aqui no Brasil, você vai a uma loja de
eletrodomésticos, você pede um crédito, e eles consideram você
um estelionatário, até prova em contrário. Essa idéia de que a
absolvição nada prova, mas que a condenação prova, é a inversão
total dos princı́pios jurı́dicos. Mesmo a condenação nada prova.
Punir o culpado não é tão importante. Fazer a justiça não é punir
o culpado. Só se deve punir o culpado quando não houver outro
jeito, outra solução. Os juristas romanos já diziam,”...(frase em la-
tim)...”, perfeita justiça, e a perfeita injustiça, ou seja, é para fazer
justiça quando não há outro jeito. Se der para resolver na base da
negociação, será melhor. Quem tem muita experiência disso são
os juizes de varas de famı́lia, que sentenciam alguma coisa, muito
a contragosto. Eles não se interessam em punir. Eles se interes-
sam em chegar a um acordo. Mesmo no caso de casos hediondos.
Isto porque se começa uma seqüência de condenações por crimes
hediondos, ...(?)
Uma vez, Bertrand Russerl escreveu um artigo sobre a China,
dizendo que o povo chinês havia dado um exemplo de amor pela
educação quando os professores, que não recebiam o salário a um
ano, entraram em greve e, em solidariedade, todo o povo da cidade
também havia entrado em greve, e isto foi considerado um sinal de
muito amor pela educação.
Ortega y Gasset escreveu uma carta dizendo: se ele acha
que para nós louvarmos o nosso amor pela educação, nós pre-
cisarı́amos começar por não pagar os professores e, em seguida,
fazer greve em favor deles.(?)
Qual é o raciocı́nio que está implı́cito aı́? A resposta que é dada

245
10 Preleção X

a uma irregularidade, ela também é uma irregularidade. O melhor


não é você fazer a segunda, mas o melhor é não ter tido nem a
primeira. Vamos supor que um sujeito tenha matado um parente
teu. O sujeito diz para você: você quer me por na cadeia, ou quer
10 milhões de dólares de indenização? Se optarmos pela cadeia,
ela não resultará em benefı́cio para ninguém. O desejo de fazer
justiça é dos mais perversos que existe. O cargo de juiz é algo que
uma pessoa deveria aceitar como um flagelo. Quando Cristo disse:
“Não julgueis para não ser julgado”, Ele quer dizer que não é para
você julgar nada. Há situações em que você é obrigado a julgar,
e daı́ você julga. Mas, se você não está moralmente obrigado a
fazer um julgamento, não o faça. Você não é a vı́tima, é apenas o
parente da vı́tima. O quê a vı́tima desejaria? Em primeiro lugar,
morto não fica satisfeito, nem insatisfeito. Essa estória de que “os
mortos clamam por vingança”, é para justificar um instinto mau
dos vivos. “Eu não sei o que é a morte. Como vou condenar
uma pessoa a uma coisa que eu não sei o que é?!” — disse uma
vez, ...(?). Este argumento dele é forte. A morte pode ser até
um benefı́cio. Só que há um outro argumento contrário que diz
que nós não queremos castigar, mas sim nos livrar desse sujeito.
Acontece que, quem tem que se livrar desse sujeito é a sociedade,
através de um juiz nomeado para isso, o qual terá que assumir essa
responsabilidade, se não houver outro jeito. O ideal é você tentar,
novamente, devolver esse sujeito à sociedade, de alguma maneira
integrado. Parece que todo mundo tem um apetite por julgar. De
onde vem esse desejo de julgar? Em parte por culpas acumuladas,
em parte ressentimento por não ter poder algum, e o sujeito está
louco par assumir um cargo que ele acha que é uma delı́cia.
Eu acho mais lı́cito a vingança pessoal, direta — um duelo. A
abolição dos duelos foi um dos maiores erros da humanidade. O
duelo é um jogo, e você aceita a regra do jogo: quem morrer,
morreu; quem viver, viveu. Se o sujeito não aceita a regra, então

246
10 Preleção X

ele tem que fazer alguma coisa: reparação, desculpas, indenização,


etc. Essa coisa de querer condenar, julgar, é de quem está muito
ressentido, porque o outro te fez um mal. Por quê ele fez isso?
Porque também estava ressentido, e assim por diante. O duelo era
um código, de uma outra época, onde a honra pessoal contava.
O fato de você não aceitar o duelo, equivalia a uma confissão de
culpa. Porém, essa confissão de culpa te livra da pena, embora
te desqualifique socialmente. No Brasil, o duelo foi considerado
ilegal com o advento da República. Na França, a ilegalidade do
duelo veio depois da Primeira Guerra Mundial.
O próprio aperfeiçoamento das leis no Estado moderno, a
instalação de um monopólio da punição e da recompensa, é uma
espécie de declaração de que o povo aceita isso, não tem o sentido
de honra. O estado democrático de direito é o regime da maioria
que não vale nada. Entra o Estado para arbitrar, porque as pessoas
não podem se arbitrar. Os contratos pessoais só são válidos dentro
de certos limites, que o Estado estabelece. A liberdade de contra-
tar não é total no Estado moderno, porque ele parte do princı́pio
de que existe um desnı́vel muito grande, e de que existe muita de-
sonestidade. O Estado moderno é feito, fundamentalmente, para
pessoas que são desonestas.
Numa tribo de ı́ndios não é necessário isso. Eles não precisam
de que um Estado tome conta deles. Numa tribo de ı́ndios o nı́vel
é mais ou menos o mesmo. O contrato pessoal vale alguma coisa.
Quanto mais você aperfeiçoa o Estado, isto é um sinal de que
a moralidade pública é muito baixa. A tendência do Estado inter-
ferir cada vez mais, é um sinal de que as pessoas não conseguem
governar a si mesmas. Se você deixa o sujeito sem fiscalização,
ele vai aprontar alguma coisa. O próprio povo pede para ser fisca-
lizado. Por isso que eu não acredito em progresso, nem em retro-
cesso. Quando uma coisa progride, outra estraga. Todo progresso
é relativo. Aperfeiçoar as leis e, ao mesmo tempo, fazer subir o

247
10 Preleção X

nı́vel de moralidade pública é algo quase contraditório. Um povo


moralmente elevado, pode viver sob um regime injusto e tirânico.
Aquilo não o corrompe. Aliás, isto aconteceu muitas vezes. Ve-
jam o povo judeu. Quantos milênios eles não viveram sob regimes
tirânicos, e nem por isso eles se roubavam uns aos outros. Mas,
é um povo pequeno. Se é com uma sociedade de massa, a coisa
complica.
A idéia de uma sociedade perfeita, a humanidade inteira per-
feita, ter um Estado perfeito, leis perfeitas, administração perfeita,
todo mundo é santo, o nı́vel de moralidade é altı́ssimo, tudo isso é
uma utopia. Quanto mais perfeito é o Estado, pior é o povo.
Um dos segredos dos americanos, é que o Estado, lá, funci-
ona muito menos do que se imagina. Por exemplo, para a entrada
de imigrantes ilegais, eles fecham os olhos quanto a isso. James
Bryce, era um diplomata inglês que, em seu livro “A Comunidade
Americana”, vai mostrando a formação do Estado americano, a
partir das comunidades independentes. Este é um fenômeno que
nunca havia ocorrido.
Aqui no Brasil, o Estado se forma anteriormente às comunida-
des. Nos Estados Unidos, as pessoas, acostumadas a tomarem as
suas decisões locais, no momento que fizeram sua independência,
havia uma forte corrente anarquista, que achava que não devia ha-
ver governo algum.
Eu acho que esse é um dos segredos dos Estados Unidos. Por
isso que a constituição deles é pequena, simples. É para não
complicar. É melhor deixar as coisas de maneira meio vaga,
onde cabe tudo, que depois nós resolvemos. Não existe uma
Constituição muito minuciosa, que tenha durado muito. Quem
faz uma Constituição muito grande, tem que fazer várias.
Outro fator que lhes permitiu ter essa frouxidão das leis do Es-
tado, é o rigorismo moral-religioso. É um moralismo atroz. Se o
sujeito cresce cheio de disciplinas, ele tem um impedimento inte-

248
10 Preleção X

rior. Então, não há necessidade de um impedimento exterior. Um


dos motivos do aumento de criminalidade, que ninguém fala, é a
crise religiosa, uma indefinição religiosa. Essa massa de pessoas
que sai da Igreja Católica e vai para outra religião, e depois vai
para outra, isso é, evidentemente, uma crise mental. Tudo se re-
sume naquela velha contradição de você desejar uma ordem, uma
ética social e, ao mesmo tempo, você nega o fundamento dela.
Esse é um dos dramas brasileiros. Não há ninguém aqui que
acredite em princı́pios éticos absolutos. São raros os casos de
pessoas que estão vinculados a uma religião em particular. Todo
mundo acredita em princı́pios convencionais, por isso, não tem
muito sentido você fazer um combate pela Ética. Tanto faz essa
ou aquela Ética.
Eu acho que a raiz disso é fundamentalmente intelectual, por-
que você não tem uma camada letrada capaz de educar a nação.
Ela mesma é a primeira que se deseduca. A idéia de que um de-
legado deva ser um homem de cultura, não existe hoje em dia. A
uns quarenta anos atrás, ainda havia essa idéia. Qualquer pessoa
de formação universitária era considerada de elite. Hoje, não. A
qualificação cultural diminuiu, mas ao mesmo tempo a responsa-
bilidade aumentou. A idéia da formação profissional é uma idéia
que entrou no tempo da ditadura militar, com o Jarbas Passari-
nho, que “atualizou” o nosso ensino universitário, transformando-
o em ensino profissional. A idéia de que a função da universi-
dade seria a de te dar uma profissão, e não uma cultura, faz com
que o sujeito vá pelo critério do mı́nimo indispensável, como num
concurso. Por exemplo, você entra num concurso para Fiscal de
Renda. Se você passa em primeiro lugar, você ganha um salário de
15 milhões, e se você passar em último lugar, você ganha o mesmo
salário. Então, qual é a vantagem em tirar o primeiro lugar?
[ Voltando à questão da fundamentação ]
Uma simples investigação policial se apóia em conhecimentos

249
10 Preleção X

de diversas procedências, cuja fundamentação é diferente. Não


havendo a possibilidade de coerir essas diversas fundamentações
numa teoria unificada, você teria que fazer uma espécie de teo-
ria da heterogeneidade, que é o que nós estamos fazendo aqui,
agora. E o único ponto onde tudo isso se unifica é na cabeça do
indivı́duo. Na cabeça do delegado existe uma sı́ntese de Fisiologia
com História, porque ele precisa desses dois conhecimentos para
poder julgar esse caso em particular.
Se, ao investigarmos tudo isso, nós descobrimos um funda-
mento comum a todos esses fundamentos, nós terı́amos uma teoria
unificada, e isso se constituiria numa ciência única. Seria possı́vel
você fazer uma teoria unificada da investigação policial? Ou seja,
um sistema axiomático, partindo de um núcleo de princı́pios, das
conseqüências de ordem fisiológica, psicológica, e lingüı́stica? Do
ponto-de-vista holı́stico, deve ser possı́vel, porque, partindo do ser
universal, tudo está esclarecido. Na prática, é claro que não acon-
tece isso. Por isso que eu acho que entre o plano metafı́sico e o
plano cientı́fico, existe um abismo. Há coisas que nós só consegui-
mos perceber metafisicamente, de maneira puramente teórica, sem
nenhuma tradução imediata. Não têm utilidade cientı́fica alguma.
No fato de que a forma sistemática nos pareça a mais pura
encarnação da idéia do saber não se exterioriza meramente um
traço estético da nossa natureza.
Por quê a Ciência tem que ser unificada? Argumento kantiano:
a realidade é heterogênea, variada, e não tem unidade alguma. En-
tretanto, o homem tem as suas formas a priori da inteligência, tem
a sua estrutura cognitiva, a qual tende a unificar tudo. O homem
dá uma forma unificada a aquilo que não tem.
Na verdade, o real não é o mundo. O real é um caos infinito de
possibilidades. Assim, se a Ciência tende a uma forma unificada, é
por causa de uma tendência nossa de unificá-la. Esta idéia kantiana
é aprofundada depois na idéia da razão como uma forma superior

250
10 Preleção X

do sentido de autoconservação.
A razão tende a unificar o nosso conhecimento, dar uma forma
unitária, sistemática e perseverante, no mesmo sentido em que o
organismo procura conservar a integridade da sua forma. Quando
o animal come alguma coisa, e rejeita partes, e assimila outras
partes, ele assimila o que é semelhante. Assimilar é tornar similar.
Uma parte do que ele comeu se transforma nele mesmo: o coelho
come alface, e o alface vira coelho (Jean Piaget). E o animal rejeita
o que não é assimilável. Ao assimilar, você está reiterando a forma
do seu organismo. O organismo cresce, na mesma medida em que
ele reitera essa integridade, senão ele morre.
A razão seria uma extrapolação, um abstrato mental, psi-
cológico, desse senso de autoconservação, e por isso mesmo,
as construções racionais conservam a sua integridade, e crescem
ao mesmo tempo. Um sistema dedutivo, axiomático, ele pode
se estender indefinidamente sem perder a unidade de sua forma.
Pergunta-se: a Ciência tende a uma forma sistemática só porque
o homem é assim, ou por algum outro motivo? Husserl responde
que não. Não é só por uma tendência humana à unidade que a
Ciência é unitária, mas porque o real, o objeto do conhecimento
também tem uma integridade. Mesmo que o homem não tivesse
essa tendência, ele teria que se adaptar, de alguma maneira.
Isto é uma posição claramente anti-kantiana. O mundo do co-
nhecimento é de unidades objetivamente distintas, que formam um
todo. Elas formam em si, ainda que você não conheça esse todo.
O sistema não é invenção nossa, mas reside nas coisas; o reino
da verdade não é um caos desordenado; nele rege uma unidade de
leis; e por isto a investigação e a exposição das verdades deve ser
sistemática, deve refletir suas conexões sistemáticas e utilizá-las,
ao mesmo tempo, como escala do progresso, para poder penetrar
em regiões cada vez mais altas partindo do saber já dado ou obtido.
A própria tendência humana à unidade é, de certo modo,

251
10 Preleção X

propı́cia ao conhecimento do real, que é ele também, um sistema.


É uma analogia. O homem entende o mundo, e o mundo entende
o homem. Essa é a teoria mais velha, clássica.
Porém, existem outras, como a teoria kantiana que diz que o
mundo é o caos, e só o homem tem a unidade; outra diz que o
mundo tem a unidade, e o homem é o caos; outra diz que os dois
são o caos, e que nada é possı́vel, etc.
A ciência não pode prescindir dessa escala. A evidência
não é um acessório natural. Para que investigar relações de
fundamentação e construir provas, se somos partı́cipes da verdade
numa consciência imediata?
Ou seja, se tudo pudesse ser conhecido por uma evidência ime-
diata, não haveria necessidade de uma escala de progresso. Não
haveria um conhecimento melhor ou pior; seriam todos melhores.
Mas, de fato, a evidência que impõe o selo de existente à
situação objetiva representada, ou a absurdidade, que lhe impõe
o de não existente, só são imediatas num grupo de situações obje-
tivas primárias, relativamente muito limitado.
Quais são os conhecimentos, ou situações objetivas primárias,
nos quais é possı́vel uma evidência imediata? Se você não fizer
uma demarcação dos setores onde é possı́vel uma evidência ime-
diata, você nunca vai distinguir perfeitamente o que é um conhe-
cimento firme, e o que é um conhecimento incerto.
Onde está o ponto de apoio arquimédico, o ponto firme, onde
o conhecimento pode se apoiar? Esta pergunta é absolutamente
obrigatória a qualquer indivı́duo que pretenda desenvolver uma
mentalidade intelectual. Ele tem que procurar por si mesmo. Não
importa se o ponto que você encontrar não vai coincidir perfeita-
mente com o dos outros. Geralmente eles não coincidem, mas se
somam, de alguma maneira. Esta busca do fundamento inicial, é
o que define mesmo o esforço filosófico.
Há inumeráveis proposições verdadeiras, de cuja verdade só nos

252
10 Preleção X

apercebemos quando as “fundamentamos” metodicamente.


Este fato de que necessitemos de fundamentações não só torna
possı́veis e necessárias as ciências, mas, com as ciências, uma
teoria da ciência, uma lógica. Se todas as ciências procedem
metodicamente, então o estudo comparativo desses instrumentos
metódicos haverá de proporcionar-nos os meios para estabelecer
normas gerais (às quais se constituirão a teoria das ciências).
7. Continuação. As três peculiaridades mais importantes das
fundamentações.
Elas têm, em primeiro lugar, o caráter de complexos fixos, no
que diz respeito ao seu conteúdo. Para chegar a certo conheci-
mento, não podemos escolher como pontos de partida quaisquer
conhecimentos dentre os imediatamente dados; nem nos é lı́cito
inserir no curso restante do pensamento, ou dele excluir, quaisquer
membros.
Você não chega a uma fundamentação de uma verdade, partindo
de qualquer ponto, de qualquer coisa. Não é partindo de qualquer
elemento do conhecimento que você chega ao seu fundamento.
Em segundo lugar, não há nenhum cego arbı́trio que tenha
amontoado múltiplas verdades P1 , P2 , · · · S, dispondo em seguida
o espı́rito humano de tal maneira que ele tenha de ligar irremedia-
velmente (ou em circunstâncias “normais”) o conhecimento de S
ao conhecimento de P2 .
Isto aqui é fundamental. Não existem verdades soltas que se-
jam agrupadas por uma simples necessidade, ou por uma simples
tendência dos seres humanos. As verdades, se são verdades, elas
têm entre si, uma determinada conexão que não há jeito de você
mudar. Por exemplo, suponha o silogismo: todo homem é mor-
tal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal. São duas verda-
des: é verdade que todo homem é mortal, e também é verdade
que Sócrates é mortal. Entre estas duas verdades existe uma certa
relação, que não é arbitrária, que nós não podemos inverter, e que

253
10 Preleção X

nós não poderı́amos enxertar uma terceira verdade qualquer nesse


raciocı́nio, porque existe uma relação de todo e causa, uma relação
de pertinência. Nós tendemos a ver isso com uma certa conexão
de modo que existisse uma verdade: P1 = todos os homens são
mortais; P2 = Sócrates também é mortal. A seqüência dela não
fomos nós que colocamos, pois existe uma relação intrı́nseca.
Isto não sucede em nenhum caso.
Vejam que ele não disse: geralmente; ele não disse: quase sem-
pre. Entre as verdades, só existe duas hipóteses: ou você não co-
nhece a relação entre elas, portanto, você não pode sequer saber se
são verdades, não pode saber se há fundamentação, ou ela tem uma
conexão necessária, um encadeamento inevitável, porque se não
houver encadeamento nenhum, se são verdades soltas, ou elas são
evidências primárias, que não necessitam de provas, ou então, a
prova, o fundamento delas está em alguma outra coisa, em alguma
outra verdade, com a qual ela tem uma relação necessária. Você
não pode sair combinando verdades umas com as outras, ao seu
bel prazer, porque para que possa haver combinação é necessário
que haja relação entre elas.
Nas conexões de fundamentação não reina a arbitrariedade e o
acaso, mas a razão e a ordem; e isto quer dizer: a lei reguladora.
Todas as fundamentações têm algo em comum, uma constituição
ı́ntima homogênea, que expressamos claramente na “forma do ra-
ciocı́nio”: todo A é B, X é A, logo X é B.
Todas e quaisquer fundamentações, de qualquer tipo, em qual-
quer domı́nio do conhecimento que exista, tem que ser desta
forma. Verifiquem isto. Sempre a relação entre todo e parte —
sempre. Mesmo quando você parte para o raciocı́nio mágico,
simbólico, analógico. Por exemplo, quando um astrólogo diz que
você é gago porque tem Saturno na Casa 3. O fundamento disso
é que todo aquele que tem Saturno na Casa 3 é gago; se você
também tem Saturno na Casa 3, então, você é uma parte deste con-

254
10 Preleção X

junto, logo, também é gago. É sempre assim. Isto é onipresente.


Nós só pensamos assim, e as verdades são sempre conectadas as-
sim, em todas as hipóteses possı́veis. Não há nenhuma exceção.
Sempre que você acredita em alguma coisa, é porque você acredita
que aquela coisa é parte de uma outra veracidade, mais vasta, que
é tomada como evidente.
Isto significa que para cada pequena coisa que você acredita ser
verdadeira, existe, por trás, uma lei geral. Você está sempre afir-
mando uma lei geral. Isto é a mesma coisa que dizer que não existe
jamais um conhecimento fundamentado no particular isolado. Ou
esse particular isolado é conhecido como uma evidência direta,
que não necessita de prova, então ele é fundamento de si mesmo,
ou se ela é fundada numa outra coisa, é porque ela é parte de um
todo, que é tomado como evidência.
A forma mesma que é denominada o silogismo, já está suben-
tendido toda e qualquer afirmação de fundamento de um conheci-
mento. Isso é para mostrar que não foi inventado, apenas foi dado
um nome, porque já estava lá, já era assim.
Mas não só estas duas fundamentações têm algo em comum,
mas também a têm outras incontáveis. E mais ainda. A forma de
raciocı́nio representa um conceito de classe, sob o qual recai a infi-
nita multidão de enlaces entre proposições, que têm a constituição
rigorosamente expressada nessa forma.
Este “Todo A é B, X é A, logo X é B” é um conceito de classe.
É uma classe de raciocı́nio. Não importa qual é o conteúdo do ra-
ciocı́nio. Todos e quaisquer raciocı́nios que pretendam ser uma
fundamentação, quaisquer que sejam os seus conteúdos, têm sem-
pre essa forma. Onde quer que haja uma fundamentação, você
vai encontrar um raciocı́nio com este formato. Expresso, ou inex-
presso, manifestado ou subentendido, mas sempre têm.
Mas ao mesmo tempo existe a lei a priori, segundo a qual toda
presumida fundamentação, que ocorra em conformidade com essa

255
10 Preleção X

forma, é realmente uma fundamentação correta, se partiu de pre-


missas justas.
Existe uma lei a priori e que dado um raciocı́nio desta forma, a
coisa fundamentada é verdadeira, se aquela fundamentação partiu
da premissa ...(?). Se o que você afirma de um todo é verdadeiro,
o que você afirma da parte fundada, também é verdadeiro.
É inerente ao curso das fundamentações uma certa forma,
que lhes é comum com outras inumeráveis fundamentações,
que permite justificar de um só golpe todas essas distintas
fundamentações. Não há nenhuma fundamentação isolada; eis
aqui o fato sumamente notável. Nenhuma enlaça conhecimentos
com conhecimentos sem que — seja no modo externo do enlace,
seja a um tempo neste e na estrutura interna das proposições — se
expresse um tipo determinado que, formulado em conceitos gerais,
conduz em seguida a uma lei geral.
Toda e qualquer fundamentação, sobre toda e qualquer coisa,
estará sempre referida a esta forma, e esta é a forma de uma lei
geral. Qualquer convicção que tenha sobre qualquer coisa, e que
você crê que é fundamentada, ali está expressando sempre uma lei
geral. Claro que, não explicitamente.
Isto pode ser um dos exercı́cios mais elucidativos que existe:
perceber a lei geral que está afirmada em cada frase das pessoas.
Se você vê o sujeito falando de uma certa maneira, procedendo
de uma certa maneira, e você capta a lei geral que ele afirma isso,
você saberá como ele irá proceder em outras circunstâncias simi-
lares. Se nós não obtemos essa generalização, então, teremos que
repetir a experiência muitas vezes e, às vezes, não tiramos con-
clusão alguma.
A incapacidade de aprender com a experiência é um dos sinais
da burrice. A rapidez em captar a experiência, portanto, a neces-
sidade de pouca experiência, é um sinal de inteligência. O su-
jeito que passa mil vezes pela mesma experiência, e não chega a

256
10 Preleção X

uma conclusão alguma, você diz que ele é, flagrantemente, burro.
Isto quer dizer que está na raiz de qualquer aprendizado, essa
generalização.
Em terceiro lugar, poderia crer-se possı́vel o pensamento de que
as formas de fundamentação dependem das esferas do conheci-
mento. Mas é patente que isto também não ocorre.
Não importando qual é a esfera do conhecimento a que se
refira, a fundamentação tem essa forma sempre. Se há uma
fundamentação, então existe sempre um recurso explı́cito, ou
implı́cito, a uma lei geral, tomada como certa, ou como evidência.
Não há nenhuma ciência em que não se apliquem leis a casos
singulares,
E não é concebı́vel um outro tipo de ciência. Hoje em dia, há
muita gente falando em ciências esotéricas, tradicionais, etc. A
diferença entre ela e as ciências ditas modernas não é essa; por
exemplo, para Astrologia, Alquimia, o princı́pio é exatamente o
mesmo. Isto quer dizer, sumariamente, que nenhum conhecimento
é irracional. Se eu falo que há um conhecimento ...(?) e inegável, é
porque ele não é irracional, mas ele é a-racional, é extra-racional.
Os princı́pios são, por assim dizer, pré- racionais. Seria irracional
se fosse fundamentar num mesmo esquema que não obedece a essa
forma do todo e parte, ou que a desmente. Isso, de fato, jamais
aconteceu.
isto é, em que não apareçam com freqüência raciocı́nios da
forma que nos serviu de exemplo. Mais ainda: todas as demais
espécies de raciocı́nios se prestam a ser generalizadas de tal modo,
a ser concebidas de maneira tão “pura”, que resultem livres de
toda relação essencial com uma esfera de conhecimentos concre-
tamente delimitada.
Ou seja, não há nenhuma espécie de raciocı́nio que se aplique
somente a um determinado setor da realidade. Você sempre vai
cair nas mesmas. É muito interessante você fazer a averiguação

257
10 Preleção X

disso em conhecimentos que se pretendem irracionais, supra-


racionais, porque você vai cair sempre na mesma coisa.
Resumindo, então, as três propriedades das fundamentações
são:
1) Você não pode partir de qualquer ponto para chegar numa
fundamentação;
2) Existe uma sucessão ordenada de fundamentações;
3) Elas sempre obedecem à forma do todo e parte.
8. Relação dessas peculiaridades com a possibilidade da ciência
e da teoria da ciência.
Se não fosse verdade fundamental que a todas as
fundamentações lhes é inerente uma certa “forma”, não pe-
culiar ao raciocı́nio presente hic et nunc, mas tı́pica para toda uma
classe de raciocı́nios,
Hic et nunc, quer dizer, aqui e agora. É o raciocı́nio que você
está fazendo concretamente, neste momento.
Só há raciocı́nios tı́picos. Não há raciocı́nios singulares. Todo
raciocı́nio é um esquema tı́pico. Existem milhões de outros ra-
ciocı́nios, numa série inesgotável de raciocı́nios semelhante à
mesma forma. Todos aplicáveis a inúmeras situações, e não há
repetição singular.
e que ao mesmo tempo a justeza de todos os raciocı́nios dessa
classe está garantida justamente por sua forma; se antes sucedesse
o contrário, não haveria ciência. Já não teria sentido falar de
método; todo progresso seria ao acaso. Já não seria possı́vel apre-
ender, de uma fundamentação dada, o mais mı́nimo com relação a
novas fundamentações futuras,
Todo conhecimento se esgotaria nele mesmo, e uma coisa, uma
vez provada, não provaria nada mais além daquilo. A possibili-
dade de extensão do conhecimento reside na inexistência de ra-
ciocı́nios singulares. É justamente porque a forma de raciocı́nio
é sempre a mesma em todos os casos que, de um conhecimento

258
10 Preleção X

em particular, você pode tirar algo para todos os casos. E assim a


Ciência pode se estender.
pois nenhuma fundamentação teria nada de exemplar para ne-
nhuma outra, nenhuma encarnaria em si um tipo. Não teria ne-
nhum sentido buscar uma prova para uma proposição previamente
dada.
Se cada vez que você faz um raciocı́nio, o fizesse de uma forma
totalmente diferente, a forma de um não valesse para o outro, então
como é que você vai buscar a forma que ele teria que ser? Seria o
caos total.
A verdade não é uma coisa que dê muito trabalho para encontrá-
la. O trabalho maior é admiti-la. Às vezes ela é tão patente que
você gostaria que fosse de um outro jeito; você gostaria de com-
plicar. Depois que você descobre que 2 + 2 = 4, você não precisa
repetir que é 4, mas, sim, você precisa parar de repetir, “e se for 5?
E se for 6?”
Quando você aprende algo, sabe intelectualmente, mas não con-
segue proceder de acordo com aquilo, na prática, então não tem
mais jeito. O fato é que a mente humana trabalha demais, não é
muito criativa, seu jogo de imaginação não pára, e às vezes ela
não se conforma que a verdade seja tão pobre. As pessoas, por
exemplo, gostariam que o passado tivesse sido de outro jeito. E
elas ficam imaginando como seria se fosse, e às vezes você ima-
gina tão bem, tão vividamente, que você se persuade. Só que toda
vez que você faz isso, você também cria, simultaneamente, uma
imagem contrária, então, cria uma agitação.
O mundo das imagens é o mundo dos contrários. É um cajado,
com duas cobras entrelaçadas. O movimento das cobras é o movi-
mento da mente em torno da verdade (cajado). O segredo da coisa
consiste, como no mito de Hércules, que nasce segurando duas
serpentes, uma de cada lado, não deixando que elas se afastem
demasiadamente.

259
10 Preleção X

O movimento da mente é inevitável. Pelo fato de você estar


vivo, a mente faz esse movimento sinuoso. Esse movimento é
a própria vida. Mas, é fundamental que a mente não se afaste
demasiado, e que seja balizado por uma reta, até que no ponto
onde existe uma verdade admitida, o movimento pára. É o ponto
de encontro das duas serpentes no cajado. Estas são as verdades
conquistadas.
Então, só existe um certo número de raciocı́nios, e é muito limi-
tado esse número. Existem 64 tipos de silogismos possı́veis, dos
quais 19 são probatórios, e os outros não são. Todos eles estão
dentro deste esquema de A = B, X = · · ·, e etc.
Como a buscarı́amos? Irı́amos contrastar todos os grupos
possı́veis de proposições, para ver se seriam utilizáveis como pre-
missas da proposição dada? O homem mais inteligente não teria
neste ponto a menor vantagem sobre o mais estúpido. Uma rica
fantasia, uma extensa memória, uma capacidade de atenção in-
tensa, etc. são belas coisas; mas só adquirem significação intelec-
tual num ser pensante, cujo fundamentar e descobrir tenha formas
submetidas a leis.
Ele quer dizer que, todas as faculdades cognoscitivas só con-
seguem ter alguma importância porque existe esta possibilidade
de uma fundamentação submetida a leis. Senão, elas não ser-
viriam para absolutamente nada. Por exemplo, um sujeito tem
uma memória extraordinária, guarda todos os fatos, e outro tem
uma memória pequena. O que um diz vale tanto quanto o ou-
tro. Estes fatores são puramente acidentais, externos. A qualidade
das faculdades que estejam em causa, nada tem a ver com a ve-
racidade do conhecimento produzido por elas. É perfeitamente
possı́vel que um imbecil completo, agindo segundo estas leis aqui,
acerte, onde o gênio erre. Um sujeito, por exemplo, um autista,
que faz operações aritméticas com incrı́vel rapidez, será que ele
tem a veracidade dos resultados? Não. No mesmo sentido que

260
10 Preleção X

uma máquina de calcular também não tem. Ele tem apenas a


repetição da forma que nós sabemos que é verdadeira. Quando
você programa uma calculadora, você a programa segundo esta
forma. E você a programa assim, porque esta forma é verdadeira.
Se você programar a calculadora da forma falsa, ela também irá
aplicar a forma falsa igualmente. Entretanto, nós podemos saber
que esta forma tem um valor fundamentante, e por isso mesmo a
usamos. Mas, o simples fato de você a usá-la, não significa que
você tenha consciência de sua veracidade. Essa consciência de
veracidade é do tipo intuição de evidência. Nós sabemos que o
que é válido para o todo, é válido para a parte, porque nós sabe-
mos que há identidade entre o todo e cada um, a qual se baseia
na identidade de cada um = cada um. Ou seja, nós conhece-
mos o princı́pio de identidade com evidência — e só por isso. Nós
podemos até não saber aplicar. Nós podemos errar, mas entre o in-
divı́duo pensante, capaz de reconhecer o princı́pio de identidade, e
outro, não-pensante, capaz de fazer o cálculo mais extenso, o pri-
meiro leva vantagem. As capacidades intelectuais não interessam.
Para o exercı́cio correto da vida intelectual não é preciso ser inteli-
gente, mas é preciso ter o senso de veracidade. É uma capacidade
inata do seu temperamento, e você pode tê-la ou não. Isaac New-
ton, por exemplo, não tinha capacidade de cálculo, mas ele tinha a
intuição da veracidade matemática. É só isso que interessa, o resto
é questão de força fı́sica. Só que fazer força na direção errada não
adianta absolutamente nada.
O pensador exercitado encontra provas mais facilmente do que
o não exercitado. Por quê? Porque os tipos de provas se gravaram
nele de um modo cada vez mais profundo, mediante uma variada
experiência.
Isto é fundamental, do ponto-de-vista prático. A fundamentação
é também um exercı́cio, um hábito da mente. Se a mente está con-
tinuamente buscando as fundamentações, ela acaba pegando quais

261
10 Preleção X

são os procedimentos esquemáticos que levam a isso, que fazem,


que se aplicam a cada caso, e quais não se aplicam. Ao passo
que, se a mente se dirige num outro sentido, ela vai encontrar os
esquemas necessários para fazer alguma outra coisa. Por exem-
plo, você pode ser um inventor de subterfúgios, ou seja, um men-
tiroso atroz. Você vai saber produzir as frases necessárias para
que tal ou qual coisa seja admitida por tal ou qual interlocutor,
no momento. E você pode desenvolver esta habilidade indefinida-
mente. É a mesma habilidade que você desenvolve quando pro-
cura a verdade em cada coisa. Você só vai procurar o que você
quer. Para isso, basta você entender que, no começo de uma vida
intelectual, você terá que tomar uma decisão: eu quero encon-
trar o fundamento verdadeiro, ou quero encontrar um subterfúgio,
uma justificação. A justificação seria o contrário do que é justo.
Você quer tornar justo; fazer com que seja justo, aquilo que não
é. Os esquemas retóricos, para esse fim, são inesgotáveis. O que
pode tornar uma coisa crı́vel para uma pessoa, depende da pessoa
que você está falando, depende da situação. Existe um esquema
para cada situação. você pode ser tão inventivo quanto queira. E,
quanto mais facilmente ele persuade, mais facilmente ele se per-
suade. Tanto que é muito raro você encontrar um grande retórico
que seja, ao mesmo tempo, um grande filósofo.
A filosofia de retórica é para uso prático. É um pouco de filoso-
fia que serve para o gasto, porque não é uma mente orientada para
a verdade. Existem determinadas formações, educações, univer-
sitárias que são para fazer retóricos como, por exemplo, o Direito.
Se você colocar na faculdade de Direito uma mente cientı́fica, de
fato, o aluno fica quinze anos no primeiro ano do curso.
Na verdade, em muitos aprendizados existe um elemento de
mistificação que é necessário para que o indivı́duo aceite aquilo
e siga adiante. Por exemplo, em qualquer ensaio técnico você tem
uma série de coisas que não estão fundamentadas, que poderiam

262
10 Preleção X

até ser falsas, mas que para você conseguir aquele resultado, você
vai precisar engolir desse ou daquele jeito. Se você decidir parar
e examinar aquela coisa, pode ser que você destrua aquela regra.
Isto tornaria a investigação da verdade uma força autônoma e, de
certo modo, hostil à ordem social. Por isso mesmo que Deus, sa-
bendo disso, colocou o amor à investigação da verdade em um
número muito pequeno de cérebros. Senão, seria um problema.
a maior parte das pessoas, de fato, têm que aceitar um monte de
mentiras, e continuar agindo como se aquilo fosse verdade, até
segunda ordem.
A mentira também é psicologicamente e socialmente ne-
cessária, até certo ponto. É o caso da verdade traumática. Vejam
o exemplo do ovo: o ovo é uma casca do indivı́duo. As mentiras
são uma casca para o indivı́duo. Enquanto a criança alcança o seu
desenvolvimento biológico natural, é necessário que ela seja pro-
tegida de verdades traumáticas. A verdade não é fisiologicamente
conveniente àquele indivı́duo, até um certo momento. Então, ele
tem que ser protegido daquilo, mas só até certo momento. Se essa
proteção continua, após o ser humano ter atingido o seu desenvol-
vimento biológico natural, ela se torna lesiva. Viver num mundo
de fantasias é muito bom para quem não tem que tomar decisão
própria. A criança pensa, com a única finalidade de alcançar uma
satisfação, para se manter num estado homeostásico, no qual ela
possa crescer e se desenvolver com critérios.
Para a criança só interessa o pensamento que faz bem a ela, e
não para o meio em geral. Por quê? Porque as decisões dela não
afetam ninguém. Mas, e o pai de famı́lia que tomar uma decisão,
que não reflete o real, mas que é apenas boa para ele? Não é me-
lhor você pensar que você é rico, do que você pensar que é pobre?
Sim, você se sente melhor. Porém, é bom continuar passando che-
que indevidamente com base no pensamento que você queria ser
rico? É claro que não!

263
10 Preleção X

O pensamento que é útil, organicamente, o é para um indivı́duo


porque é um pensamento egoı́sta, que visa a sua auto- proteção. Na
hora que esse pensamento começa a servir de base para decisões
que afetarão os outros, aı́ o compromisso dele não é mais de inte-
gridade fı́sica de um sujeito, mas com a integridade do meio. Neste
caso ele terá que obedecer à razão, à verdade. Porém, é claro que,
em qualquer sociedade, o número de pessoas que permanecem in-
fantis é muito grande, porque o número de pessoas que tomam
decisões é muito pequeno. A maior parte das pessoas nunca toma
decisões a respeito de quase nada. O sujeito pode continuar in-
fantil. Pode, e deve continuar infantil porque ele vive uma vida
miserável, uma vida quase que de escravo, e ele só pode encontrar
o reconforto no mundo da ilusão. Assim, é melhor que ele fique
mesmo na ilusão, porque se ele descobrisse a verdade, ou ele teria
que mudar de vida, o que seria muito difı́cil, ou ele sucumbiria sob
o impacto de uma verdade que ele não agüentaria.
Vejam, por exemplo, o problema das bombas atômicas, que du-
rou tantas décadas. Claro que haviam pessoas que tomavam de-
cisões relativas às armas atômicas, e essas pessoas ficavam apavo-
radas, porque tinham que saber a realidade daquele perigo e pensar
nele com realismo, para pode tomar decisões. Porém, a massa da
população tinha que viver baseada numa ilusão de que aquilo era
impossı́vel, quando de fato não era. Toda noite, antes de dormir,
eu verifico se o gás está fechado, se a porta está trancada, etc. E as
crianças pequenas? Elas não podem pensar nisso, porque senão fi-
cariam aterrorizadas. A criança pequena, para crescer, ela precisa
confiar que ela é indestrutı́vel. Ela pensa que se vier um mons-
tro ela dá um tiro de raio laser nele, ou aplica um golpe mortal
de karatê, etc. Ela precisa dessas mentiras para se sentir segura.
Entretanto, e o pai que pensasse assim?
O pensamento fantasista é fundamentalmente egoı́sta, que foge
do real, porque não assume a responsabilidade pelas decisões. Se

264
10 Preleção X

nós abandonamos o mundo dos pensamentos agradáveis, nós o


abandonamos por um amor aos nossos semelhantes. O mesmo
reconforto que a criança encontra naquele mundo ilusório de auto-
satisfação egoı́sta, é a satisfação que o pai encontra em se sacrificar
pelas crianças que ama. São duas formas da felicidade: uma é
egoı́sta, narcisista; a outra, altruı́sta, própria do adulto.
...(?) tem um frase linda que diz: “Ser sincero é morrer um
pouco”. Toda vez que você é sincero, que você fala a verdade, você
tem que matar mais uma ilusão. E você só agüenta isso se conse-
guir uma outra satisfação, num outro plano, que é a satisfação do
amor ao próximo, do amor à Deus, etc. Você vai reconquistando
no plano da universalidade, a felicidade que você traz no plano do
egoı́smo individual. Isto é a raiz da vida humana. O homem foi
feito para isso.
Por isso que eu ...(?) com pessoas adultas que buscam
satisfações de adolescentes, lambendo o próprio ego, dizendo “eu
quero isso!”, “eu preciso disso!” Você não precisa de nada! Você
precisa é de serviço, de encargo, de responsabilidade, de amor ao
próximo, para aprender a agüentar. O exemplo de Ghandi é de um
auto-sacrifı́cio total pelo próximo. Coisa de maluco! A felicidade
dele era a comunidade hindu viver em paz.
Quando eu vejo um sujeito que diz que precisa da roupa que ele
quer, da comidinha que ele quer, o empreguinho que ele quer, a
namoradinha que ele quer, o carrinho que ele quer, tudo para ele
não ficar tristinho, eu acho isso asqueroso! Tem que dizer como
Einstein: “A felicidade é um ideal ...(?) dos porcos”. você tem que
buscar a realização de um supremo valor que torna a vida humana
valiosa, independentemente de ir para cima ou para a morte. Neste
sentido, o sacrifı́cio é o único sentido da vida humana. Sacrifı́cio
é uma obra sacra, sagrada.
O sacrifı́cio é nessa direção, de largar o mundo da ilusão egoı́sta,
o mundo da auto-proteção, que é bom para as crianças, e encon-

265
10 Preleção X

trar satisfação em algo que transcenda a sua pessoa, que seria o


benefı́cio da humanidade, ou mesmo de um famı́lia. O homem
que se sacrifica pela sua famı́lia, já é um ser humano evoluı́do.
Para que um indivı́duo viva uma vida de auto-satisfação, é ne-
cessário que o protejam de suas fantasias infantis. O teste é o
seguinte: retirem o sujeito de dentro desse universo protegido, e
o jogue sozinho numa situação, e você vai ver que ele é menos
que um bebê. O homem tem que estar preparado para saber que
ele, individualmente, não pode ser nada. Ele só é alguma coisa em
função do valor que ele se dedica, pelo qual ele se mata. Curiosa-
mente, a negação da individualidade é que dá o único valor a ela.
O indivı́duo se mata por uma coisa universal, e daı́ ele encarna esse
universal. Só isso pode ser o fundamento da Ética, ou da Moral, o
resto é conversa fiada. Você vale aquilo que você é. A medida do
quanto você ama, é o quanto você se dá. Se o que você ama é um
carro importado, ou uma dose de cocaı́na, você vale isso.

266
11 Preleção XI
16 de janeiro de 1993

O pensador exercitado encontra provas mais facilmente do que


o não exercitado. Por quê? Porque os tipos de provas se gravaram
nele de um modo cada vez mais profundo, mediante uma variada
experiência. As qualidades de tato cientı́fico, intuição previdente e
adivinhação estão em relação com isto. Na natureza geral dos ob-
jetos da esfera correspondente radicam certas formas de conexões
objetivas, e estas determinam por sua vez peculiaridades tı́picas
em todas as formas de fundamentação preponderantes nessa es-
fera. Nisto reside a base das rápidas presunções cientı́ficas. Toda
prova, todo descobrimento repousa nas regularidades da forma.
Peguem um determinado domı́nio. Existem certos tipos de es-
quemas probatórios que sejam de uso corrente, que apareçam com
mais freqüência, de modo que, quando o caso se apresenta, você
logo percebe.
Em Ginecologia, por exemplo, me dê um esquema que tal coisa
indica tal outra, como, por exemplo, num diagnóstico diferencial.
Pode ser por eliminação, de modo que, quando você tiver quinhen-
tos diagnósticos diferenciais, você tenha esse esquema compara-
tivo.
Outra pergunta: o que leva você a fazer um diagnóstico dife-
renciado entre duas patologias, e não entre três, quatro, cinco ou
mil? Como você escolhe essas duas? Você escolhe essas duas por-
que você é um pensador exercitado, senão você teria que escolher

267
11 Preleção XI

várias.
O que Husserl está dizendo é que isso só é possı́vel porque os
esquemas de provas são sempre idênticos, no tempo, senão, não
seria possı́vel.
Se a forma regular torna possı́vel a existência das ciências, a
independência da forma com relação às distintas esferas do saber
torna possı́vel, de outro lado, uma teoria da ciência. Se não fosse
esta independência, haveria uma série de lógicas coordenadas en-
tre si, mas não haveria uma lógica geral.
O esquema que se usa no diagnóstico diferencial, é o mesmo
que se usa pelo delegado de polı́cia para fazer uma acareação. É
possı́vel uma lógica geral, porque esses esquemas são sempre os
mesmos.
9. Procedimentos metódicos das ciências: fundamentações e
dispositivos auxiliares para as fundamentações.
As fundamentações não esgotam o conceito de procedimento
metódico, embora tenham, uma significação central.
Todos os métodos cientı́ficos, que não tenham por si mes-
mos o caráter de verdadeiras fundamentações, ou são abreviações
e substitutivos das fundamentações, destinados a economizar
o pensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-
vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futuras
fundamentações.
Existem métodos cientı́ficos que não têm, por si mesmos,
caráter de fundamentação. Eles não servem de prova, mas servem,
ou para economizar raciocı́nio, para abreviar, como por exem-
plo, a estatı́stica, ou então, como dispositivo auxiliar que serve
para preparar, para facilitar, assegurar, tornar possı́vel as futu-
ras fundamentações. Por exemplo, classificações que você faz,
com vistas a tornar abarcável o terreno que você vai trabalhar. A
classificação pode ser até fictı́cia, que depois você conserta. Exis-
tem uma série de procedimentos que fazem parte do método, mas

268
11 Preleção XI

não têm caráter de fundamentação.


Um método cientı́fico consiste, fundamentalmente, nas
fundamentações. Estas devem ser as mesmas para todas as
ciências, ou devem obedecer aos mesmos esquemas. No entanto,
os dispositivos auxiliares podem ser infinitamente variados con-
forme os campos a que você recorre. É justamente porque tanta
gente confunde uma coisa com a outra que não se percebe a uni-
dade da teoria da ciência que está subjacente a todos os métodos.
A Estatı́stica tem que se fundamentar numa coisa que se chama
indução. A indução é um tipo de raciocı́nio no qual falta, justa-
mente, a premissa maior. Falta o todo, e você só tem a parte. To-
mando essa parte, você supõe qual é o todo, no qual ela se encaixa.
Se você tem uma premissa menor, e uma conseqüência a que ela
se refere, então, deve haver uma premissa maior. É uma suposição
de silogismo. O fundamento da indução, em última análise, é o
mesmo raciocı́nio entre todo e parte. A indução, por si mesma,
não é fundamento de nada, mas ela é um procedimento auxiliar.
A Estatı́stica é um procedimento auxiliar da indução. Assim,
a Estatı́stica, por si mesma, jamais poderia ter valor probatório.
Ela tem porque existe a indução, e a indução, por si mesma, nada
prova, porque ela depende da estrutura silogı́stica que ela suben-
tende. Daı́ que o grande metodologista Karl Popper, diz que não
existe indução nenhuma. só existe dedução.
A indução não faz parte da Lógica. A indução é um mero pro-
cedimento técnico, exterior à Lógica. Ela não é um método ci-
entı́fico, é apenas uma técnica auxiliar.
Assim, por exemplo, para referir-nos ao segundo grupo, é im-
portante requisito para a segurança das fundamentações que se ex-
pressem os pensamentos de um modo adequado, mediante signos
bem diferenciáveis e unı́vocos.
A terminologia adequada faz parte desses recursos e dispositi-
vos auxiliares.

269
11 Preleção XI

A linguagem, embora ninguém possa prescindir dela, é um ins-


trumento sumamente imperfeito. Na definição nominal vemos,
pois, um procedimento metódico auxiliar para a segurança das
fundamentações.
Isto é a definição nominal. Não sabendo o que é uma coisa,
você define o sentido em que vai utilizar uma determinada palavra,
mesmo que não exista um objeto correspondente. Uma coisa é
você dizer o que é algo; outra coisa é você dizer o sentido em que
vai usar a palavra.
Coisa semelhante sucede com a nomenclatura, o método de
classificação, etc.
Exemplos do primeiro grupo de métodos nos são oferecidos pe-
los métodos algorı́tmicos,
Algoritmo é um esquema de uma operação que pode ser repe-
tida indefinidamente, que pode ser cada vez mais complexa, mas
baseada sempre nesse mesmo modelo.
Se você acha um algoritmo que expresse uma seqüência com-
plexa de operações, você pode pular essa seqüência complexa,
usando somente o algoritmo. Por exemplo, quando você faz um
cálculo astrológico, você tem uma seqüência de operações pré-
determinadas. Você poderia reduzir aquilo a um algoritmo. Os
programas de cálculo do mapa astral são feitos assim.
Mas, tudo isso não valeria de nada se não tivesse a
fundamentação por trás. Por quê o algoritmo funciona? Não é
pelo mesmo princı́pio do todo e parte? Toda e qualquer operação
feita segundo aquele modo, obedecerá ao mesmo esquema. Então,
se em geral é assim, em cada um dos casos também será assim.
algoritmos, cuja função peculiar é poupar-nos a maior parte
possı́vel do verdadeiro trabalho dedutivo, mediante ordenações ar-
tificiais de operações mecânicas com sinais sensı́veis. Neste grupo
entram também os métodos literalmente mecânicos. Cada um des-
tes métodos representa uma soma de dispositivos, cuja seleção e

270
11 Preleção XI

ordem estão determinados por um complexo de fundamentações,


que prova em geral que um procedimento dessa forma, anda que
se realize de um modo cego, há de proporcionar necessariamente
um juı́zo particular objetivamente válido.
Não se pode esquecer que a seleção e a ordem desses métodos,
quais os que se aplicam, é determinado por um complexo de
fundamentações, que em última análise vai cair na noção de
evidência. Ou seja, se cair a evidência, cai tudo isso.
Entretanto, só existe evidência para o sujeito. Assim, se há o
sujeito cognoscente, não há evidência. Uma coisa não pode ser
evidente em si, mas uma coisa pode ser verdadeira em si. A
evidência não é um caráter inerente ao objeto. A evidência é o
tipo de relação que se estabelece entre a coisa e o sujeito cognos-
cente, de modo que se você retirar o sujeito, cai a evidência, caem
as fundamentações, caem os procedimentos de prova, etc.
A estrutura da Ciência é de tal maneira fundada na noção
de fundamentação, que por sua vez, está fundada na noção de
evidência, que a própria Lógica só vale se o enlace de uma
proposição com a outra for, ele mesmo, não um objeto de prova
lógica, porém uma evidência, como a do todo e parte.
Entretanto, acontece que o progresso dos meios auxiliares, pelo
tamanho do progresso que as novas gerações de cientistas, já edu-
cadas dentro de uma atmosfera criada por estes meios auxiliares,
mecânicos, que isso pareceu mudar a própria idéia do que fosse
Ciência, ou conhecimento. De modo que, hoje em dia, a noção
corrente de Ciência é a seguinte: partindo do princı́pio de que os
raciocı́nios lógicos e matemáticos, que dão à Ciência um caráter
cientı́fico, já estão todos unificados pelo uso de computadores, e
espalhados pelo mundo. Isto significa que passa a ser cientı́fico,
tudo aquilo que puder ser equacionado nos termos do que esses
computadores aceitem, e o resto que não puder ser colocado nessa
linguagem, é retirado como irrelevante. A cientificidade passa a

271
11 Preleção XI

poder ser medida mecanicamente, de acordo com programas pré-


determinados. Parte-se hoje, sem nenhuma necessidade de que um
sujeito consciente examine aquilo. Assim, o que é cientı́fico ou
não-cientı́fico, hoje em dia, é a adaptabilidade a um determinado
conjunto de programas.
Neste caso, não há mais o sujeito, não há mais a evidência, e
com isso, não há mais a distinção entre verdadeiro e falso. A
Ciência é julgada, não em termos da sua veracidade ou falsi-
dade, mas em termos de sua utilidade para o seu desempenho da
máquina total da pesquisa cientı́fica. É possı́vel você fazer uma
pesquisa cientı́fica sem nenhum cientista, mandá-la para uma uni-
versidade, ninguém vai ler a sua pesquisa, ela vai ser aprovada, vai
ser utilizada e vai ser repetida, sem quase que não haja nenhuma
interferência humana.
Neste caso, a própria distinção do prático e do teórico vai para
as cucuias, não importa mais. O que importa é que o conhecimento
teórico passa a valer, não em função da veracidade ou da falsidade,
mas em função da facilidade, maior ou menor, do que ele se en-
caixe dentro do todo da pesquisa cientı́fica atualmente em curso,
e é avaliado também segundo a sua capacidade de otimizar essa
máquina geral da pesquisa cientı́fica. Tudo isso sem a intervenção
humana. Tudo vira um imenso piloto automático.

272
12 Preleção XII
10 de fevereiro de 1993

Eric Weil disse em um dos seus livros que não é possı́vel você
apresentar os pensamentos de um filósofo com maior brevidade do
que ele mesmo apresentou.
Se fosse possı́vel isso, o próprio filósofo o teria feito. Você só
pode acrescentar alguma coisa a mais. Se você lê somente um
livro de Kant, e não a sua obra completa, você não vai ter nunca
uma idéia completa de seu pensamento.
9. Procedimentos metódicos das ciências: fundamentações e
dispositivos auxiliares para as fundamentações.
As fundamentações não esgotam o conceito de procedimento
metódico, embora tenham uma significação central.
Todos os métodos cientı́ficos, que não tenham por si mes-
mos o caráter de verdadeiras fundamentações, ou são abreviações
e substitutivos das fundamentações, destinados a encontrar o
pensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-
vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futuras
fundamentações.
Isto aqui é uma coisa que vocês podiam tomar como um
exercı́cio. Em qualquer discussão sobre método cientı́fico, ao
invés de se falar sobre as fundamentações (porque você deveria
acreditar que tal ou qual afirmação cientı́fica é verdadeira, quais
são os princı́pios e critérios de credibilidade da Ciência), ou se

273
12 Preleção XII

fala de substitutivos, abreviaturas, para economizar o pensamento,


ou se fala de dispositivos auxiliares.
Não é preciso dizer que a maior parte dos livros que atualmente
se publica no Brasil, que constituem o método cientı́fico, tratam
apenas de abreviações ou dispositivos auxiliares. Se confunde a
metodologia cientı́fica com a mera técnica de pesquisa cientı́fica.
A técnica que fundamenta os métodos. Os métodos, por sua vez,
tem que ter uma fundamentação na teoria da ciência, e daı́ você
tem a técnica. A técnica vai se constituir sempre das duas coi-
sas: método de economia de pensamento, ou então, dispositivos
auxiliares, que facilitam, asseguram, as futuras fundamentações.
Isto significa que o conceito de método cientı́fico está se tor-
nando, cada vez mais, uma espécie de receituário da pesquisa. Este
receituário pode, facilmente, ser formulado em linguagem de com-
putador, e nós chegamos ao ponto onde uma pesquisa cientı́fica
pode ser feita quase sem nenhuma participação da inteligência hu-
mana, e o resultado se devendo quase exclusivamente ao mérito
do autor do programa que está no computador. Como exemplo,
o famoso livro de Paul Kennedy, “Ascensão e Queda das Grandes
Potências”, o qual é uma obra do computador. A obra não foi feita
no, mas pelo computador. Ele colocou no programa um monte de
dados, e praticamente o relatório saiu pronto.
Em São Paulo, há um aluno meu, que trabalha na FIESP, e a
função dele é justificar cientificamente tudo o que a FIESP queira.
Ele disse que eles têm lá um monte de programas desse tipo, para
poder editar uma pesquisa cientı́fica em quinze minutos. Ele se
autodenomina um legitimador de discursos.
Essas técnicas estão muito avançadas hoje em dia. Por um lado,
abrevia o tempo da pesquisa cientı́fica. Por outro lado, isto abre
a toda uma pseudo-ciência, à vigarice. Por exemplo, há progra-
mas para montar a redação do relatório final. É uma fórmula do
relatório. É preciso estar ciente que isso não permite nenhuma

274
12 Preleção XII

descoberta efetiva mas, sim, permite uma espécie de retórica ci-


entı́fica que logo vai se constituir, creio eu, em 90% da produção
cientı́fica. Se for assim, você não precisa estudar mais nada. Ape-
nas informática. O resto, o conteúdo, somente uma pessoa precisa
estudar.
É claro que tudo isso examinado à luz da teoria da Ciência, nem
um por cento tem valor. Se você apertar o sujeito quanto às razões
da credibilidade, você não vai muito longe. O método cientı́fico
seria, para abreviar, a sugestão de uma seqüência de atos que, em
princı́pio, seriam favoráveis para você obter a resposta a determi-
nadas questões. Todo método é hipotético. O método não é um co-
nhecimento. O método é uma estratégia para você obter uma res-
posta a determinadas questões. Este método, por sua vez, tem que
se basear em algum princı́pio lógico que, por sua vez, se prolonga
num conjunto de técnicas que permite a sua realização material.
Todo método é baseado num conjunto de fundamentações refe-
rentes a uma determinada esfera do ser, da realidade. Se você não
conhece as razões pelas quais essa esfera foi recortada assim, e não
de outro modo, então o seu método não tem fundamento. Quem
diz que determinado assunto pode ser estudado, por tal ou qual
ângulo, pelo qual você deseja estudá-lo? O método, em si mesmo,
ele vai se basear sempre num determinado recorte, que seriam zo-
nas do ser. Essas zonas são definidas pelo qual o Husserl chama
de Ontologias Regionais. Se você não tem essas fundamentações,
você não pode tirar o método. O método é a maneira da desco-
berta, mas de uma descoberta que você não fez. Se você está pen-
sando num método, é porque você ainda não descobriu nada. É
como se o método fosse um plano. A fundamentação vem da On-
tologia Geral, da Ontologia Regional, depois sai o método, e daı́ a
técnica. Algumas ciências usam técnicas de outras ciências, que-
rendo colocar nelas, mas não tendo feito a ontologia regional.
A Ontologia é sempre uma resposta à pergunta: o quê é? Quid

275
12 Preleção XII

est? Sempre que você faz esta pergunta, você chega, às vezes, a
descobertas assombrosas, porque as coisas eram muito diferen-
tes do que vocês imaginaram. Entretanto, se você já parte de
uma determinada definição, determinados conceitos, convencio-
nais, habituais, costumeiros, e “bola” o seu método dali para di-
ante, o seu método também só terá valor consensual, ou hipotético.
Isso aı́ faz com que você possa chegar a determinadas descober-
tas que não deixam de ter validade, mas tem validade dentro de
um corpo de hipóteses tão vasto que para você acreditar nelas,
praticamente você precisaria conceder preliminarmente uma cre-
dibilidade a toda uma enciclopédia de informações. Ou seja, um
monte de pressupostos, mais aquele, mais aquele, etc., então, es-
sas descobertas seriam válidas. Se acontece desses pressupostos
serem compartilhados por toda uma comunidade humana, então
o erro não aparece. Se você parte de crenças comuns a respeito
da natureza de tal ou qual fenômeno, dentro daquela coletividade
não irá surgir dúvida alguma a respeito das conclusões a que você
chegou.
Porém, a inexistência de dúvidas numa determinada coletivi-
dade não quer dizer que as coisas criadas sejam realmente sólidas.
Não é um fundamento autônomo, com começo, meio e fim. É
um fundamento consensual, baseado na crença pública, numa de-
terminada hipótese. Por exemplo, em São Paulo, fizemos uma
investigação preliminar — quid est? –, sobre o dinheiro. O quê é
o dinheiro? Chegamos à conclusão que o dinheiro não é um con-
ceito econômico, mas sim um conceito jurı́dico. Se você abordá-lo
pelo lado econômico ele vai ficar cada vez mais enigmático. Em-
bora você possa calcular todo o comportamento dele, você jamais
sabe o que é, e a partir de um certo ponto, a ciência econômica
se transforma no que ela é hoje, um cálculo exato dos desvios das
suas próprias previsões. Nesse momento você começa a usar uma
técnica, um instrumental cada vez mais aprimorado, para estudar

276
12 Preleção XII

uma coisa cada vez mais obscura.


É justamente aı́ que entramos no que o Husserl chama de “crise
das ciências”. Elas só formam uma retórica. O pior é que, não ha-
vendo da classe cientı́fica uma consciência filosófica mais aguda,
eles não têm nenhuma má consciência. O sujeito, às vezes, não
sabe que é um charlatão. Um filósofo, quando “chuta” muito, ele
sabe que é um charlatão. O filósofo polonês Kolakowski disse que,
no século XX, nenhum filósofo esteve isento do sentimento de ser
um charlatão. Mas, na Ciência, nós não poderı́amos dizer a mesma
coisa. Raramente um homem de ciência tem esse senso agudo de
ser um charlatão, e no entanto, o sujeito, às vezes, é isso mesmo.
Para vocês que, um dia, estudaram essa ou aquele ciência em
particular, deveriam estudá-la novamente, a partir dessa velha per-
gunta — quid est? –, porque aı́ vocês verão que as coisas serão
diferentes, porque o que vocês sabem, de fato, é bem menos. Em-
bora sempre sobre uma margem de realidade, cuja natureza você
desconhece, e suas implicações vocês também ignorem, mas que,
até certo ponto, podem ser manipuladas, usadas. Por exemplo,
saiu no jornal a notı́cia de um computador que obedece às or-
dens do seu pensamento, sem precisar de bater as teclas. Hoje,
ele consegue escrever à razão de dois, três caracteres por minuto.
Se você procurar pela técnica que eles utilizaram para isso, verá
que é apenas o aprimoramento da eletroencefalografia. Cientifica-
mente isso não é nada. É o mesmo princı́pio. Este tipo de desco-
berta te joga um pouco de areia nos olhos. Você acha que é uma
coisa fantástica, e que é algo novo, quando não é. O princı́pio
é o mesmo. É só continuar aprimorando que o computador vai
conseguir escrever fluentemente.
O conceito público que se tem sobre a Ciência é o de que ela
tem um domı́nio extraordinário sobre a realidade das coisas. Não
é bem isso. Na maior parte dos casos, são determinadas operações
que você conhece e, geralmente, dentro de linhas de avanços

277
12 Preleção XII

tecnológicos muito bem determinadas. São sempre as mesmas.


Mesmo o avanço tecnológico, para ser algo diferente, é muito raro.
Vejam o caso dos supercondutores, que seriam uma coisa nova. Já
provaram que não é tão fácil assim. Entretanto, o público vê a
classe cientı́fica como se fosse uma casta sacerdotal encarregada
de conhecer o mundo, e dizer para todos como o mundo é. Eles
detêm o poder da visão, como a classe guerreira deteria o poder
da ação. Qualquer camada intelectual sempre exerce essa função.
Como essa função, hoje em dia, parece caber à elite universitária,
é natural que o povo lhe atribua todas as caracterı́sticas, e todos os
poderes, que uma tribo de ı́ndios atribui ao seu pajé, e os povos
antigos atribuı́am aos seus profetas. Lamentavelmente, não é bem
assim.
Para resumir: temos, fundamentação, método e técnica. Temos
a teoria da Ciência em geral, a teoria da Ciência em particular, ba-
seada na sua Ontologia Regional, depois temos o método, e depois
temos a técnica. Depois você tem a Ciência propriamente dita,
posteriormente os resultados que, com tudo isso, ainda podem ser
decepcionantes.
O problema é que, quando os métodos algoritmos passam a ser
a própria essência da coisa, dá a impressão que a Ciência é uma
mágica que produz resultados do nada. Acontece que não existem
atalhos. Tudo você tem que melhorar, começando sempre pela
pergunta, Quid est?
Assim, por exemplo, para referir-nos ao segundo grupo, é im-
portante requisito para a segurança das fundamentações que se ex-
pressem os pensamentos de um modo adequado, mediante signos
bem diferenciáveis e unı́vocos. A linguagem, embora ninguém
possa prescindir dela, é um instrumento sumamente imperfeito.
Na definição nominal vemos, pois, um procedimento metódico au-
xiliar para a segurança das fundamentações.
Coisa semelhante sucede com a nomenclatura, o método da

278
12 Preleção XII

classificação, etc.
Tudo isso são esquemas para economizar pensamentos. Porém,
essa economia é duvidosa. Há seqüências inteiras de pensamento
que, teoricamente, você poderia entregar para um computador fa-
zer, e ele, de fato, o fará, de acordo com um linha pré-determinada.
Acontece que me parece que o avanço real da Ciência não é feito
exatamente assim. Em primeiro lugar, o computador não opera in-
tencionalmente. Ele não sabe para o que ele está pensando tudo
aquilo. Mesmo que você tenha mil alternativas, ele só irá ope-
rar dentro de certas linhas pré-determinadas. É como se você não
estivesse ali para observar. É um procedimento amplamente in-
consciente. Isso pode ajudar, e pode atrapalhar.
Exemplos do primeiro grupo de métodos nos são oferecidos
pelos métodos algorı́tmicos, cuja função peculiar é poupar-nos a
maior parte possı́vel do verdadeiro trabalho intelectual dedutivo,
mediante ordenações artificiais de operações mecânicas com si-
nais sensı́veis. Cada um destes métodos representa uma soma
de dispositivos, cuja seleção e ordem estão determinados por um
complexo de fundamentações, que prova em geral que um procedi-
mento dessa forma, ainda que se realize de um modo cego, há de
proporcionar necessariamente um juı́zo particular objetivamente
válido.
Se você pega todos os programas de dedução que estão nos pro-
gramas de computador, tudo isso está baseado nos fundamentos
mesmos da Lógica. Qual é a diferença de você operar com eles, e
você ter uma convicção pessoal dos fundamentos da Lógica? Há
uma grande diferença. A própria facilidade que o indivı́duo realiza
a operação, não implicando da parte dele nenhum esforço pessoal,
pode fazer com que o indivı́duo, no fim, até duvide do resultado
da dedução, quando na verdade, está certı́ssimo.
Quem vai ter que concordar, ou discordar, desse padrão, no fim,
será o indivı́duo. Se você, partindo dos fundamentos da Lógica,

279
12 Preleção XII

faz uma dedução inteira, você obtém, no fim, uma certeza pessoal.
Se você entrega isso para o computador, que te dá o resultado no
final, você pode não ter aquele sentimento de certeza, aquela fir-
meza pessoal.
Mas basta de exemplos. Está claro que todo verdadeiro pro-
gresso do conhecimento se verifica nas fundamentações.
10. A idéia de teoria e a idéia de ciência como problemas de
teoria da ciência.
As fundamentações soltas ainda não constituem ciência. Esta
implica certa unidade no conjunto das fundamentações, certa
unidade na série gradual delas; e esta forma unitária tem uma
significação teleológica para alcançar o fim supremo do conheci-
mento, isto é, não a investigação de verdades soltas, mas do reino
da verdade, ou das regiões naturais em que este se divide.
Isto aqui é fundamental, porque toda a articulação que se possa
fazer de método cientı́fico, ela só se justifica em função de uma
determinada finalidade. Esta finalidade é nada mais do que a ne-
cessidade da verdade sobre determinada coisa; vai se fundamentar
no conceito da verdade e na idéia de um objetivo a alcançar. Este
objetivo, que é a idéia pura de Ciência mesma, se ele sai da sua
frente, então toda a operação cientı́fica fica totalmente sem sen-
tido. Você pode sempre se contentar em procurar a verdade den-
tro de certos parâmetros. Por exemplo, definindo como verdade
isso ou aquilo, e começamos a procurar a verdade dentro desses
parâmetros. Não se pode mais chamar isso de Ciência porque se
você se baseia em determinados parâmetros, mais ou menos con-
vencionais, você está ...(?) pensamento hipotético, onde se esses
parâmetros forem efetivos, então, tais ou quais estudos serão ver-
dadeiros. Mas, é próprio do pensamento cientı́fico exigir algo mais
do que a mera hipótese, do que a mera não- contradição.
A verdade descoberta dentro de certos parâmetros convencio-
nais, é sempre uma verdade lógica, ou seja, uma verdade que não

280
12 Preleção XII

implica contradição. Ora, uma coisa que não implica contradição


é uma mera hipótese. Para ser verdadeira é preciso algo mais que
a não-contradição. Toda e qualquer confiança dada a parâmetros
convencionais, ou pelo menos não-discutidos, arrisca transformar
todo o edifı́cio da Ciência num conjunto de hipóteses muito inte-
ressante, mas fundadas apenas na não- contradição interna. Por
exemplo, o pessoal da Lógica Matemática desenvolveu um sis-
tema dedutivo em tábuas completas de alternativas, com as quais,
de uma sentença, dada como verdadeira, tais outras se podem de-
duzir verdadeiramente ou não. Tudo isso é, de fato, automatizado,
mas todo o problema fica sendo sempre a primeira sentença que
você vai colocar lá.
Um computador não poderia jamais trabalhar fora do parâmetro
que você mesmo coloca. E esse parâmetro é que é o ponto de dis-
cussão. O resto, pelo simples fato de ser uma dedução automática,
não tem interesse em si mesmo.
A questão fundamental da Ciência é: o quê ela investigar, e por
quê ela vai investigar? E, por quê investigar isso e não aquilo?
Não é tanto o como investigar. Todas as decisões cientı́ficas fun-
damentais estão colocadas antes do problema do método. Dentro
de muitas ciências você vê o contrário: é um conjunto de procedi-
mentos muito exatos, para proceder às investigações, e uma quase
ausência de discussão dos conceitos básicos. Por exemplo, nós vi-
mos isso com relação ao caso anterior do dinheiro. Havia muitos
economistas na discussão, e ninguém sabia o que era dinheiro. Ja-
mais haviam pensado nisso. Confundiram dinheiro com riqueza,
com valores, com bens, com moeda.
A missão da teoria da ciência deverá ser, portanto, tratar das
ciências como unidades sistemáticas, ou, dito de outro modo, da-
quilo que as caracteriza formalmente como ciências, daquilo que
determina sua recı́proca limitação e sua interna divisão em esfe-
ras, em teorias relativamente cerradas, de suas espécies ou formas

281
12 Preleção XII

essenciais, etc.
Este problema aqui é gravı́ssimo. A divisão da Ciência deve
corresponder, em princı́pio, à divisão do ser em esferas, de modo
que você possa estar seguro de que um determinado tema, que
está delimitado de tal maneira, a investigação de um outro tema,
vizinho, não interferirá em nada no andamento das investigações
que você faça.
Nós podemos estar seguros de que as descobertas psicanalı́ticas
não afetem em absolutamente nada as descobertas em Geometria
Descritiva. Isto porque são esferas do ser, realmente independen-
tes. Este é o verdadeiro problema. Por exemplo, desta discussão
do dinheiro, chegamos à conclusão de que a Economia, entendida
como uma ciência autônoma, em relação à ciência do Direito, é
uma coisa absurda. A Economia é uma divisão da ciência jurı́dica.
O exame da questão do dinheiro nos leva, fatalmente, a isso.
Que esta pergunta, simplesmente, não tenha sido feita, se ex-
plica pelo fato de que os indivı́duos sempre tomaram o dinheiro
como uma definição normal. O que se chama de dinheiro dentro
deste contexto? É como se eles falassem, não em dinheiro, mas em
“dinheiros”. Existem fenômenos diferentes chamados de dinheiro
aqui e acolá. Aqui, o pessoal está chamando de ...(?) Isto não
chega a ser uma definição nominal, mas poderia ser uma definição
iniciativa, definitiva, que indica mais ou menos onde está, e como
reconhecer um objeto quando ele se apresenta.
Mas, não diz o que é este fenômeno, em todos os casos. So-
bretudo, não indica o seu parentesco, a sua semelhança, e sua
diferença com outras coisas que levam o mesmo nome, em outros
contextos.
A própria idéia de que uma coisa como o dinheiro, possa ser ob-
jeto de um conceito geral, é uma coisa que para o economista nos
parecia estranho porque ele responderá sempre assim: o dinheiro
varia conforme a sociedade, conforme a época, etc. É como se

282
12 Preleção XII

dissesse que este é um fenômeno que só tem acidentes, só tem
propriedades, ele não tem essência. O que é uma absurdidade,
porque se a coisa chega a ter propriedades, se chegam a acontecer
acidentes, é porque algo ela é. O nada não sofre nenhum acidente.
Se nós perguntarmos o quê é o dinheiro, não neste contexto, mas
se buscarmos assim, algo que se denomina dinheiro, e dado o qual,
dele decorre, necessariamente, todas as propriedades reconhecidas
a isto que chamamos de dinheiro, desde que o mundo é mundo, nós
haverı́amos de encontrar alguma coisa.
A conclusão final será de que, o que se chama dinheiro, tem to-
das as propriedades que tem, realmente, e não só nominalmente,
pelo fato de que o dinheiro não é nada mais do que um direito.
Isto jamais foi dito em toda história da Economia. Se você parte
do princı́pio de que o dinheiro é uma unidade de conta usado em
determinado comércio, nós perguntarı́amos: mas como que uma
unidade de conta poderia ter a propriedade produtiva que o di-
nheiro tem? Todos sabem que dinheiro rende dinheiro. Uma sim-
ples unidade de conta não pode ter esta propriedade, portanto, esta
definição está errada.
Mais ainda: o poder de ser desejado, ser ambicionado pelos ho-
mens, isto também é uma propriedade do dinheiro. Se ele é apenas
uma unidade de conta, um sı́mbolo de um valor, então terı́amos
que dizer que a humanidade, ao desejar dinheiro, estaria comple-
tamente louca, porque ela deseja um sı́mbolo. A moeda é desejada
não por um fetichismo, mas é desejada porque ela lhe corresponde
a um direito real, assegurada por uma autoridade. O sujeito que
deseja dinheiro, ele não está desejando um sı́mbolo, o que ele quer
é um direito.
O dinheiro é uma abstração em relação aos bens, e o crédito é
uma abstração em relação ao dinheiro. Tanto o crédito, quanto o
dinheiro, você pode resumir num conceito único, que é um direito.
Em Direito, a definição de dinheiro é uma quantidade determinada

283
12 Preleção XII

de bens indeterminados. Mas, não haveria dinheiro em hipótese al-


guma, a não ser que haja uma autoridade que garanta ao possuidor
do dinheiro, seja em forma de moeda, de madeira, de cheque, nota
promissória, de uma quantidade abstrata marcada num cartão, não
importa. Todas as formas de dinheiro são sempre um direito que
é assegurado por uma autoridade. Se não houver uma autoridade
co-autora, que obrigue você entregar uma determinada quantidade
de bens em troca de uma determinada quantidade de dinheiro, o
dinheiro não vale rigorosamente nada.
O aspecto simbólico é irrelevante. O aspecto de unidade de
conta também é irrelevante, porque você não precisa fazer as con-
tas em dinheiro. Você pode fazer as contas em qualquer outra uni-
dade. O único aspecto relevante é o jurı́dico. O dinheiro se baseia
numa autoridade, a qual tem um poder coercitivo. Este é o único
conceito de dinheiro que se possa admitir como cientı́fico.
Rasgar dinheiro, por exemplo, é um crime porque você está
contestando a autoridade que garante aquele dinheiro. Se fosse
um sı́mbolo, você poderia rasgá-lo à vontade, porque não faria
diferença alguma. O próprio Karl Marx, de tanto entender disso,
ele foi obrigado a explicar a cobiça do dinheiro pelo lado demen-
cial, pelo lado fetichista. Isto é a mesma coisa que dizer que toda a
humanidade desejando dinheiro, são todos uns loucos. O primeiro
que percebeu essa demência foi Marx.
O dinheiro, por ser um direito a uma quantidade de bens quali-
tativamente indeterminados, ele tem uma propriedade a mais que
os outros não têm, que é a sua conversibilidade universal. Ele é o
único bem que pode ser trocado imediatamente por qualquer um, e
os outros não, só podem ser trocados por bens determinados. você
pode trocar dinheiro por dinheiro, trocar dinheiro por crédito, que
é uma espécie de direito a um dinheiro, e assim por diante.
É errado dizer que o dinheiro é um bem, porque ele não chega
a ser um bem, porque se ele fosse um bem, ele teria um valor

284
12 Preleção XII

de uso. Dinheiro não tem valor de uso (a não ser como papel
higiênico...), ele só tem valor de troca. Nós poderı́amos dizer que
as moedas cunhadas em ouro são uma espécie de equı́voco, porque
seria como se fosse uma pompa da autoridade, seria por motivos
simbólicos. Se fizermos uma moeda de plástico, com um valor
facial, e uma assinatura, o que vale é a assinatura, e não o material
plástico. Por isso a moeda de ouro foi um equı́voco, na medida
onde se você tem uma coisa com valor de uso, pode ser que num
determinado momento, o valor de uso seja maior que o direito que
aquela moeda lhe assegura. Então, a autoridade se desmoraliza, e
ela já não é mais dinheiro.
Em suma, o dinheiro não é nada mais do que um direito. O
direito tem que ser provado de alguma maneira, então, você tem
uma moeda, um papel, ou um sinal material que ateste este di-
reito como, por exemplo, um contrato. O dinheiro é um direito, e
a moeda é um documento que atesta este direito. Ou seja, é um
conceito inteiramente jurı́dico, e não econômico em si. O surgi-
mento do dinheiro é um dos fatos da progressiva introdução de
uma ordem jurı́dica na esfera econômica.
O Direito é uma coisa que se alastra. Existe cada vez mais
intervenção do Direito em todos os domı́nios da vida. Isto é uma
das poucas constantes que existem na história do mundo. Cada
vez que o Direito se alastra, significa que a autoridade vai colo-
cando seu dedo em cada vez mais domı́nios da vida. O advento do
dinheiro é um passo importantı́ssimo desse progressivo fenômeno
que o Miguel Reale chama de “jurispação da vida”, ou seja, o Di-
reito vai ordenando, moldando a vida.
Assim, sendo uma realidade de ordem fundamentalmente
jurı́dica, não tem como você explicá-la fora do fenômeno do po-
der, e que a autoridade sem poder é nada. Você resolveria a coisa
inteira na base da Polı́tica e do Direito.
Eu dou um doce para quem conseguir me apresentar um con-

285
12 Preleção XII

ceito puramente econômico do dinheiro. Um conceito sem inter-


ferência de ordem jurı́dica, e que não seja meramente nominal,
indicativo, e sim, um conceito do qual decorram todas as propri-
edades reais do dinheiro. Entre os quais, o primeiro deles é o seu
famoso poder produtivo.
Na Idade Média se achava que o dinheiro não tinha poder pro-
dutivo, porque para eles o dinheiro era um sı́mbolo, e o que tinha o
poder produtivo eram os bens. Eles se esqueceram que o dinheiro
é, quaisquer bens, e por isso mesmo é melhor você ter dinheiro do
que ter bens. O dinheiro é abstrato em relação aos bens conside-
rados. Mais tarde, é melhor você ter crédito do que ter dinheiro,
porque o crédito é o dinheiro do dinheiro. O crédito é mais abs-
trato, portanto, mais abrangente. E é por isso mesmo que ele tem o
poder de produzir. Mais vale Cr$ 10,00 do que Cr$ 10,00 de bana-
nas, porque as bananas só poderão ser trocadas por quem necessite
de bananas.
A universalização do crédito (cartão de crédito) é um outro
passo, fundamental, nessa “jurispação” da atividade econômica.
Ou seja, você não precisa nem mostrar o comprovante. O crédito
já te é dado por conta de um documento que está arquivado em
algum lugar, do qual você não tem cópia. Mais tarde será possı́vel
você ter isso sem cartão de crédito, por exemplo, pelo toque da sua
mão numa máquina que o reconheça.
O dinheiro tem toda a caracterı́stica do direito, que é uma bilate-
ralidade, ou seja, o direito de um corresponde a uma obrigação do
outro, e esse direito, e essa obrigação são garantidas por uma auto-
ridade mediadora. A inflação, por exemplo, é ou não é uma propri-
edade do dinheiro? Claro que é! A inflação não pode ser explicada
por um acidente. Ela é uma propriedade pela simples razão de que
a autoridade que garante o funcionamento daquilo, que garante a
ordem jurı́dica, e portanto, o valor do dinheiro, ela também toma
parte na atividade econômica. Ela também compra, vende, toma

286
12 Preleção XII

emprestado, etc. Só não existiria inflação na hipótese de você ter


uma autoridade que estivesse fora e acima da atividade econômica.
Mas como ela participa da atividade econômica, tão logo ela esteja
endividada, ela mudará o valor do dinheiro. Até o Banco Central
precisa de dinheiro para pagar os funcionários, conta de luz, etc.
Para isso não acontecer teria que existir um banco abstrato, que
tenha uma não- sede, que empregue não-funcionários, etc. Se o
Banco Central participa da atividade econômica, ele não pode ser
um árbitro totalmente isento. Isto significa que, a partir da hora
que existe o dinheiro, a inflação decorrerá disso, quase que ne-
cessariamente. A possibilidade de existir inflação é muito maior
do que a de não existir. A não ser que a autoridade seja absoluta,
ou seja, a autoridade seja proprietária de todos os bens colocados
dentro do seu território. Neste caso, ela estará acima da atividade
econômica, porque ela desenvolverá dentro dos domı́nios da auto-
ridade. Então, a situação é a seguinte: ou a tirania absoluta, ou a
inflação.
Por outro lado, nós sabemos que a inflação decorrerá sempre
do endividamento da autoridade, ou da cobiça (ela pode não estar
endividada, mas pode querer sempre mais). Assim, o endivida-
mento da autoridade é a única causa da inflação. Todas as outras
causas são acidentais. O endividamento da autoridade significa
que ela não tem bens suficientes para arcar com seus compromis-
sos. Isto significa que a autoridade é ilegı́tima, que não tem po-
der de fato para se sustentar. Se tivesse, ele, automaticamente, se
traduziria em bens. Por exemplo, seria o caso do antigo Estado
soviético: seria um Estado ilegı́timo porque tudo é dele, inclusive
o pensamento das pessoas. Fora disto, a autoridade terá sempre
um coeficiente de ilegitimidade. Não pode existir uma autoridade
totalmente ilegı́tima, que seria aquela que tem o poder integral de
fazer tudo o que quer. Ou seja, a falta de poder é a ilegitimidade.
Um governo legı́timo é aquele que é efetivamente obedecido. A

287
12 Preleção XII

obediência é prova de legitimidade. Se o povo aceita, quem está


no poder, fica.
Então, sempre haverá um coeficiente de ilegitimidade, que cor-
responderá a um coeficiente de inflação. Se a inflação é alta, é
porque o governo tem pouco poder, e ele terá que governar na
base do truque, da mentira. Por outro lado, não é preciso dizer que
a sociedade estruturada assim, está toda montada na mentira. Se o
Estado vive do seu próprio endividamento para com a sociedade,
nós serı́amos, teoricamente, credores de um governo que pode nos
por na cadeia a qualquer momento. Sendo uma sociedade mon-
tada na mentira, não é possı́vel que nada dentro da sociedade seja
claro, definido. Por isso que as grandes crises inflacionárias cor-
respondem a grandes crises psicológicas, são épocas de loucura.
Vide a Alemanha entre as duas guerras. Foi a época onde surgiu o
cinema expressionista, O Vampiro de Dusserldorf, etc. O povo só
pensava em demônios, vampiros, etc.
O fenômeno da inflação, que é tão enigmático, pode ser simples-
mente deduzido como uma propriedade, partindo-se do conceito
de dinheiro. Assim, depois de ter comida, roupa e moradia, é me-
lhor ter dinheiro do que ter bens. O capitalista quer um acréscimo
de dinheiro, que corresponda a um acréscimo de poder efetivo.
Nada mais normal e são na humanidade do que querer isto. No
entanto, se você perguntar por quê querem tanto, aı́ nós teremos
que transmutar a pergunta: por quê o homem quer poder? Neste
caso, saı́mos da Economia e entramos na Psicologia Polı́tica. Já é
um outro problema.
Eu falei tudo isto aqui por causa do problema da divisão de es-
feras relativamente cerradas. Algumas pessoas sustentam que a
partir da psicologia animal você pode esclarecer a psicologia hu-
mana. Ao contrário, eu acho que é mais capaz de você explicar o
animal, a partir do homem. O homem pode ser tão animal quanto
o rato, mas o rato não pode ser tão gente quanto o homem.

288
12 Preleção XII

Nas ciências ditas humanas, a partir do próprio conceito de


ciências humanas, quase todos os conceitos são transposições. Por
quê? Porque as pessoas não fazem a questão principal: quid est? A
própria herança cultural, as descobertas de um geração são trans-
postas para uma outra, são tomadas como um ponto de partida, e
aceitas como resultados convencionados.
Na discussão que tivemos sobre o dinheiro, em São Paulo, foi
quase impossı́vel evitar que as pessoas discutissem a questão a
partir das noções dadas, ou por Karl Marx, ou por Adam Smith,
etc. O sujeito não responde o que é dinheiro. Ele responde o que
Karl Marx, ou Adam Smith, disseram a respeito do dinheiro. Ou
seja, quanto mais o sujeito estuda, mais burro fica, porque ele não
consegue fazer a pergunta básica.
Esta é a proposta do Husserl: voltar às coisas mesmas. É
claro que você não vai abolir essa herança cultural, mas você
vai tentar descobrir o fenômeno, a coisa tal qual ela representa,
e não a sucessão de interpretações que foi feita em cima dela. As
interpretações também têm lá o seu valor, mas elas só adquirem
um valor a partir do momento que você tem um fenômeno. O quê
adianta eu saber o que Karl Marx fala sobre o assunto, se eu não
sei o que é dinheiro? Ademais, Karl Marx também não disse o que
é...
O quê você acha da opinião de Aristóteles sobre PTLX?
Aristóteles pode ter dito algo sobre PTLX, eu posso ter estudado
a opinião dele, discorrer sobre ela, mas eu não sei o que ele está
falando. Se você soubesse o que é PTLX, o conceito obtido por
você mesmo esclareceria e te daria critérios de avaliação para você
saber o significado, o valor relativo das opiniões de Aristóteles.
Vejam, por exemplo, as opiniões que as pessoas têm sobre alguém
que você desconhece; é mais ou menos isso.
Por isso mesmo a abordagem histórica da Filosofia é um pro-
blema gravı́ssimo. Se você não ataca o conceito mesmo, você vai

289
12 Preleção XII

ter uma sucessão de opiniões sobre assuntos desconhecidos.


Estas distinções que nós estamos fazendo aqui, agora, com
relação aos vários campos de conhecimento e da sua separação,
mais ou menos relativos, nós deverı́amos exercitar isso o tempo
todo. Senão fica aquela coisa de ginástica pela TV, onde o instru-
tor não sabe se os alunos que estão assistindo ao programa estão
realmente fazendo a ginástica. A parte prática deste curso é to-
talmente feita por vocês. Por isso, não é um ensino propriamente
dito, pois não há um acompanhamento do aprendizado do aluno.
Uma coisa que seria interessante de mostrar para vocês, seria
aqueles 150 internatos que existem nos Estados Unidos, onde há
uma forma de ensino mais integrada, mais global. Entretanto, eu
acho que este curso aqui, sua forma pedagógica, é melhor, prin-
cipalmente no aspecto teórico, porque o conceito que eles dão lá
é da educação liberal, que é um conceito muito bonito, mas pu-
ramente pedagógico, sem um embasamento filosófico firme. Ele
não tem unidade teórica. Ele foi feito na base do pragmatismo,
da experiência acumulada, que tanto pode dar certo, como pode
dar errado. Muitas vezes a educação liberal se perde naquela coisa
vaga de cultura geral, onde você dá uma “palhinha” de cada as-
sunto, aprende umas opiniões aqui e ali, e você vira uma espécie
de diletante. Neste erro nós não caı́mos.
Porém, isso que estamos aprendendo é só uma teoria, uma
hipótese. Não sei se vocês vão dar uma continuidade para isso,
mas eu estou fazendo a minha parte. Eu faço o que tem que ser
feito, e pouco me importa se vai dar certo ou errado. O homem
põe, e Deus dispõe.
A força deste curso é a sua unidade, embora isso ainda seja sua
fraqueza, porque esta unidade ainda está apenas na minha cabeça.
Seria preciso que algumas outras pessoas fossem capazes de captar
a unidade profunda deste curso, fundada na Teoria dos Quatro Dis-
cursos, com todas as suas implicações morais, psicológicas, etc., e

290
12 Preleção XII

decidissem tocar este trabalho adiante. Isto ainda não aconteceu,


mas por enquanto vocês podem ter uma idéia do estado de coisas,
a partir dessas entrevistas que nós estamos fazendo. Por aı́ vocês
podem ter uma idéia de quanto a formação dos indivı́duos não é
propriamente uma formação. Na verdade, ela é disforme.
Dificilmente você encontra uma pessoa que tenha alguma
colocação filosófica clara perante o mundo. Uma colocação
autônoma, que venha dele mesmo, e por isso mesmo a nossa cul-
tura é derivada, subdesenvolvida, é um efeito de uma outra cultura.
Durante mais de cem anos se acreditou que a cultura nacional se-
ria autônoma, caso ela lidasse com os nossos temas, com os nos-
sos problemas e adquirisse um caráter local. Esse é o grande erro.
Uma cultura não é autônoma por tratar de problemas locais. Ela é
autônoma quando é capaz de partir dos problemas desde a sua raiz.
Quando ela tem uma colocação, fundamentalmente dela, perante
os problemas básicos. A autonomia deve ser vista quase em ter-
mos de auto-suficiência, no sentido de que se nós desconhecemos
tal ou qual resposta dada por um filósofo alemão, ou grego, a tal
ou qual problema, isso não nos fará falta porque nós já pensamos
nesse problema também.
A nossa cultura toda pega os problemas já muito elaborados.
Nós sempre estamos trabalhando a partir de palavras, frases, pos-
turas prontas, e não através de um enfrentamento direto do pro-
blema. Vocês verão que todos os nossos intelectuais já fazem
um discurso a partir de uma certa empostação que ele recebeu
de uma cultura estrangeira, tomada no ponto atual do seu de-
senvolvimento, quando a verdadeira autonomia seria conseguida
quando você pegasse esse material estrangeiro, não a partir do seu
ponto atual, mas do seu ponto de partida. De fato, não interessa
tanto você acompanhar a produção cultural e a evolução das idéias
agora, quanto você enfrentar os problemas pela sua própria conta.
Percorrer o caminho por sua própria conta. Daı́ vemos a tremenda

291
12 Preleção XII

importância da obra de Mário Ferreira dos Santos. Ele é o único


pensador brasileiro, irredutı́vel a qualquer hipótese. Não que ele
trate de problemas nacionais, mas de problemas eternos. Por isso
mesmo ele é uma fonte rica, e talvez por isso mesmo ele é recu-
sado, porque só consegue entrar no debate cultural brasileiro se
as pessoas conseguem identificar o que for corrente, ou estiver na
moda. O certo seria dizer que só existiu, em toda a história bra-
sileira, um único filósofo, que é o Mário Ferreira. O resto são
filosofantes, que pegam certos temas que estão em discussão, e
acompanham nos termos que já estão colocados. Quando, na ver-
dade, é próprio da Filosofia recusar todos os temas que já estejam
em discussão, e recomeçar tudo de novo. Refazer o caminho é a
essência da Filosofia.
A Filosofia é uma atividade individual, na qual o indivı́duo en-
frenta o problema diretamente, num plano de universalidade, sem
a mediação do geral.
É justamente onde a herança cultural da sociedade não socorre
o indivı́duo, é ali que começa a Filosofia. Se a herança cultural já
traz todos os problemas resolvidos, então não há necessidade de
se filosofar. Ninguém vai filosofar sobre o que não precisa.
Isto também acontece com os outros departamentos. Vejam, por
exemplo, a literatura brasileira. Se você pensar bem, ela começa
e acaba com Machado de Assis, que é o único que você pode di-
zer que é uma fonte. Os outros são, de certa maneira, um pro-
longamento. Não há nenhum autor ficcional, do mundo, onde
tudo o que acontece no livro, seja uma perfeita simulação. Esta
simulação da linguagem, onde não interessa sequer saber se é ver-
dadeira ou falsa, isso foi Machado de Assis quem inventou. De-
pois outros tiveram a mesma idéia, mas o próprio Pirandello, que
trata da simulação, a estética dele não é simulada. Ele é um au-
tor naturalista escrevendo sobre personagens simulados. Aquelas
coisas vivas são simuladas mediante uma técnica naturalista. Mas

292
12 Preleção XII

Machado de Assis, não. A falsidade era uma essência não só psi-
cológica dos personagens, mas a essência da própria estética de
Machado de Assis.
Pegue um livro de Robert Schweitz (?) e ele vai explicar como
que isso se tornou possı́vel. Era preciso uma condição social muito
particular para permitir o surgimento de uma estética dessas. E
como só aqui foi possı́vel essa condição social, Machado de Assis
é um autor que desorienta os leitores estrangeiros, porque é tanta
ambigüidade que fica difı́cil eles compreenderem isso.
Saiu há pouco uma tese, um livro, que prolonga a história da Ca-
pitu, onde ela, com cem anos de idade, conta a sua própria história,
e ela confessa que transou mesmo com o tal de Escobar. Mas, aı́
perdeu a graça, porque o interessante é você ficar sem saber se
aconteceu ou não a transa. Mas, tudo funciona como se fosse.
Essa é a essência do Brasil.
Tudo isso aı́ para dizer que ninguém poderia nos inspirar mais
a isso do que o próprio Husserl, por exemplo, sacar as coisas di-
retamente. Você não pode mudar toda uma tradição que está atrás
de você, mas você a coloca entre parênteses. Você não endossa.
Entretanto, aqui no Brasil, o sujeito com vinte anos de idade já
aderiu a alguma coisa. O sujeito acaba de entrar para uma escola
de Psicologia, e ele já é junguiano, reichiano, freudiano, etc., e fica
nisso o resto da vida. Há pessoas que fizeram toda uma carreira
baseado na idéia de ser representante de, por exemplo, Jung, ou
Reich. Se você não adotasse uma linha única, as pessoas ficam de-
sorientadas, e não sabendo o que fazer com você, então não fazem
nada. É exatamente o que fizeram com o Mário Ferreira.

293
13 Preleção XIII
11 de fevereiro de 1993

Cabe subordinar igualmente este tecido sistemático de


fundamentações ao conceito de método, e atribuir portanto à te-
oria da ciência a missão de tratar não somente dos métodos que
se apresentam nas ciências, mas também daqueles que se cha-
mam ciências; não só distinguir as fundamentações válidas das
não válidas, mas também as teorias e as ciências válidas das
não válidas. Esta missão não é independente da anterior, pois a
investigação das ciências como unidades sistemáticas não é con-
cebı́vel sem a prévia investigação das fundamentações.
Quando você fala de ciências válidas e não-válidas, um exemplo
de uma ciência não-válida seria uma que tivesse ...(?) a respeito,
por exemplo, do conceito da Economia. A Economia como ciência
natural, evidentemente, não é válida. Ela pode ser alguma outra
coisa, não uma ciência natural. Uma proposta assim seria total-
mente inviável, porque não existe o objeto correspondente. Então,
você teria que situá-la numa outra relação com outras ciências.
Seria, em parte, uma ciência normativa, em parte uma ciência
histórica.
11. A lógica ou teoria da ciência como disciplina normativa e
como arte.
Uma ciência é verdadeiramente ciência, um método é verdadei-
ramente método, se é conforme ao fim a que tende. A lógica as-
pira a investigar o que constitui a idéia de ciência, para poder saber

294
13 Preleção XIII

se as ciências empiricamente dadas respondem à sua idéia, e até


que ponto. A lógica renuncia ao método comparativo da ciência
histórica, que trata de compreender as ciências como produtos
concretos da cultura das distintas épocas, por suas peculiaridades e
generalidades tı́picas, e explicá-las segundo as circunstâncias dos
tempos. A essência da ciência normativa consiste em fundamentar
proposições gerais em que, com relação a uma medida fundamen-
tal normativa — uma idéia ou fim supremo –, são indicadas de-
terminadas notas, cuja posse garante a acomodação à referida me-
dida. Isto não significa que a ciência normativa deva dar necessa-
riamente critérios gerais; assim como a terapêutica não indica sin-
tomas universais, nenhuma disciplina normativa dá critérios uni-
versais. O que a teoria da ciência em particular pode dar-nos são
critérios especiais.
Quando a norma fundamental é ou pode chegar a ser um fim,
brota da disciplina normativa uma arte. A teoria da ciência se
converte em arte da ciência.
12. Definições da lógica inspirada nesta concepção.
Definições como: arte de julgar, de raciocinar, do conheci-
mento, arte de pensar (lart de penser) são equı́vocas. O fim da
arte em questão não é propriamente o pensamento, nem o conhe-
cimento, mas aquilo para que o pensamento mesmo é um meio.
Mais se acerca da verdade a definição de Schleiermacher, ao
dizer que é a arte do conhecimento cientı́fico.
Se você definisse a Lógica como arte, ou técnica do conheci-
mento cientı́fico, você está pressupondo um determinado fim para
um conhecimento cientı́fico para cuja consecução essa arte daria as
normas. Esta definição seria incompleta porque haveria uma falta;
você incumbiria a própria Lógica de definir o que é conhecimento
cientı́fico, e o que não é conhecimento cientı́fico. Você incumbe
a ela também determinar o fim. Por isso que Husserl propõe esta
definição da Lógica como teoria da Ciência. Ela seria uma ciência

295
13 Preleção XIII

da Ciência, que vai determinar os caracteres do que seja o conhe-


cimento cientı́fico como fim, como meta a ser alcançada, e em
seguida verificar os meios pelos quais se pode alcançar isso.
É importante o que ele diz aqui, que não interessa para a Lógica
as ciências efetivamente existentes, encaradas do ponto de vista
histórico como realidades porque, por um lado, ela é uma ciência
pura, que investiga a idéia de Ciência, e por outro lado, é uma
arte ou técnica do conhecimento cientı́fico considerado em geral,
ou seja, independentemente das suas realizações, e das realizações
que historicamente tenham alcançado nessa ou naquela época. A
idéia de que a Ciência é tudo o que trata do corpóreo, isso poderia
ser admitido até como uma realidade histórica.
Durante uma fase houve uma certa tendência implı́cita, na co-
munidade cientı́fica, a só admitir como Ciência, por exemplo, a
Fı́sica, ou a Quı́mica, e todas as outras como pseudo-ciências. Isto
aconteceu durante uma certa fase; nunca chega a ser uma idéia do-
minante em toda a comunidade cientı́fica, e é apenas um evento
histórico que não tem nada a ver com a idéia de Ciência. No
século passado, mal se formou essa tendência, já estavam se for-
mando as ciências sociais, as ciências humanas. Isso aı́ é fazer
uma tendência pequena, de uma manifestação local, histórica, a
própria idéia de Ciência. Também, isso é confundir a expressão
matematizável com o que é corpóreo — não tem nada a ver. Hoje
em dia, você não pode nem dizer que a Fı́sica lida com o corpóreo.
Temos, hoje, o neutrino, que é uma partı́cula que é capaz de atra-
vessar dois buracos ao mesmo tempo...
A idéia de Ciência é aquela que está aqui no texto de Husserl.
Qualquer coisa que atenda a isto aqui, em mais ou em menos,
participa, em mais ou em menos, do caráter de Ciência. Seja As-
trologia, seja Profecia, etc.
Vejam que não existe nenhum conhecimento de ordem religi-
osa que não pretenda possuir um pouco desse caráter de Ciência.

296
13 Preleção XIII

Isto é fácil de ver quando todas as religiões argumentam em causa


própria na base de uma veracidade que atenderia a esses requisitos
da evidência. Uma revelação é uma evidenciação, tornar evidente
o que você não via antes, o que você passa a ver a partir de um
certo momento. É muito difı́cil você dizer que para Moisés, no
alto do Monte Sinai, que o conhecimento ali adquirido não fosse
evidente. Ele teria um problema de transmissibilidade, mas não
lhe faltaria a evidência, pelo menos para quem estava lá.
Não seria impossı́vel você imaginar a hipótese de que você,
através de uma técnica, permitisse o acesso de um indivı́duo a
determinadas vivências que lhe dariam uma evidência que os ou-
tros não têm. Tudo isso você precisaria deixar em aberto. Ou
levamos a sério a idéia de Ciência, e não tentamos usá-la, nos es-
condendo atrás dela, e defendendo concepções que no fundo são a
preferência do indivı́duo, ou ela só serve para jogar pedra nela, que
é o que muitos fazem. A alternativa é deixar em aberto a questão
de quais as ciências que realizam, e quais as que não realizam;
quais as que podem, e quais as que não podem. Mesmo o fato de
uma determinada ciência jamais ter historicamente chegado a rea-
lizar esses requisitos, não quer dizer que ela não seja uma ciência.
Quer dizer apenas que no decorrer do tempo, e nas condições reais
que se desenvolveu aquele estudo, não se chegou a realizar.
Enquanto não houver uma demonstração de uma impossibili-
dade intrı́nseca, você não pode negar o caráter de uma ciência.
Você pode dizer apenas que a coisa é duvidosa. Ainda não se
pode dizer que, por exemplo, a Ufologia seja uma ciência. O
único problema é a definição do objeto, pois UFO é um objeto
não-identificado, e que voa. Você parte de uma definição negativa.
A Ufologia tem uma contradição intrı́nseca, pois ela supõe uma
classe de objetos, não-identificados, que no entanto, tem certas
propriedades em comum — é uma auto-contradição. Por exem-
plo, a Ufologia não pode pressupor a origem desses objetos. Se

297
13 Preleção XIII

eles são não-identificados você não sabe rigorosamente o que é.


você apenas pressupõe uma origem extraterrestre. Se você diz que
é uma nave interplanetária, como você diz que é não-identificado?
Está perfeitamente identificado. Boa parte desses conceitos de
não-identificados existe justamente no sentido de atender a uma
espécie de objetividade privativa. Como é que você alcança um
conhecimento objetivo? Uma vez definido certos requisitos do co-
nhecimento cientı́fico, alguns indivı́duos acharam que para você
alcançar uma objetividade cientı́fica passaram a se privar de certos
pressupostos subjetivos. Isso é o que eu chamo de objetividade
privativa. É o não-envolvimento do indivı́duo.
A partir da Renascença, surge a idéia de que os objetos apre-
sentam certos caracteres que só podem ser percebidos subjetiva-
mente, como por exemplo a cor, a forma. Mas há outros que
não dependem do indivı́duo, que podem ser vistos de maneira in-
dependente, por exemplo, a extensão, o volume, etc. Caracteres
primários seriam aqueles mensuráveis objetivamente independen-
temente da sua percepção de indivı́duo concreto. Os outros carac-
teres seriam secundários, como a cor. Isto sugeriu a idéia de que
só seria objeto real do conhecimento cientı́fico aquilo que pudesse
ser medido independentemente de um sujeito com percepção con-
creta. A partir daı́ se desenvolve o que eu chamo de objetividade
privativa, ou seja, você apagando uma parte dos caracteres de um
objeto, o resto que sobra é objetivo. Por exemplo, suponha uma
sala. Nesta sala há partes que só podem ser vistas por determi-
nados indivı́duos desde a posição que eles estão. E há partes que
podem ser vistas por todos ao mesmo tempo. A primeira parte
nós vamos chamar de subjetiva, e a segunda, de objetiva. Reduza
esta sala à parte que todos vêem ao mesmo tempo, e o resultado
não se parecerá absolutamente com esta sala. Isto é objetividade
privativa.
Em Fı́sica se acreditava que o volume, o peso, etc., não de-

298
13 Preleção XIII

penderiam do indivı́duo, e que todos veriam a mesma coisa. No


entanto, a recepção à cor depende de um determinada estrutura
do indivı́duo. Um daltônico, por exemplo, vê diferente. Mas se
para conseguir objetividade bastasse isso seria muito fácil. Além
do mais, os objetos assim descritos ficariam muito diferentes dos
objetos de percepção. Para isso, nós terı́amos que supor que por
trás do mundo perceptı́vel, existe um outro mundo, que é com-
posto apenas das qualidades matemáticas dos seres, e que este é o
verdadeiro mundo objetivo. Mas a seleção dessas qualidades ma-
temáticas é abstrativa. Esta abstração não se faz sozinha. Alguém
tem que fazer. Então, foi você quem selecionou. Do conjunto
que você percebeu, você separou uma metade, que por ser mate-
matizável, não tem sentido você dizer que ela é mais real, mais
objetiva do que a outra. Seria o caso de perguntar: uma cadeira
é uma cadeira, ou é um feixe de átomos? Parece uma cadeira,
mas no fundo é um aglomerado de átomos. No entanto, você pode
inverter o raciocı́nio e dizer que isso é, na verdade, um feixe de
átomos, mas parece como se fosse uma cadeira. Acontece que
um feixe de átomos poderia ser observado independentemente do
uso que você faz e do significado que você atribui ao feixe, mas
a cadeira, não. Quem diz que uma escala é mais válida do que a
outra? É o non-sense completo. E mais, além de ser um feixe de
átomos, eles não estão agrupados de uma maneira qualquer, por-
que se uma cadeira é um feixe de átomos, um elefante também é.
A diferença que existe e que caracteriza o objeto não é se ele é
composto de átomos, partı́culas, mas a forma como eles se agru-
pam. De modo que, a noção de que a visão fı́sica do mundo como
composto de partı́culas que se atribui um movimento, ela teria, por
conseqüência, abolir a diferença entre as formas dos objetos e so-
brar somente a matéria de que eles são compostos. O quê seria
o mundo se fosse apenas composto de partı́culas em movimentos
e que elas não se agrupassem em formas reconhecidas? Não se

299
13 Preleção XIII

pareceria em nada com este mundo! Isto seria a mesma coisa que
dizer que o José é de fato um monte de carbonos, mas acontece
que esse monte de carbonos se agrupou de tal maneira, e com tais
propriedades, que deu num negócio que nós chamamos de José.
Os objetos não têm a sua forma individual determinada pelo fato
de serem compostos de partı́culas, mas por alguma outra coisa.
O mundo das realidades fı́sicas é um mundo abstrativo, que está
colocado, por assim dizer, por baixo deste mundo como a sua
matéria. Também, para mim, é óbvio que não existe nem um único
objeto no mundo que possa ser inteiramente caracterizado apenas
por suas propriedades fı́sicas — não é possı́vel. Como você dis-
tinguiria fisicamente, por exemplo, um jacaré de uma lagartixa?
Será que o jacaré não tem algumas outras propriedades? Será que
é por causa do tamanho? Se existisse uma lagartixa de três metros
de comprimento, ela deveria subir nas paredes do mesmo jeito. O
conjunto das propriedades fı́sicas, quı́micas, de uma determinada
substância não chega a constituir essa mesma substância, indivi-
dual, real, concreta. Mas chega a constituir, por exemplo, uma
espécie. Os objetos que a Fı́sica estuda são classes, não objetos
reais. Ela estuda classes, distinguidas apenas por suas proprieda-
des fı́sicas. Se são classes, são entidades lógicas, e não entes reais.
No fundo, isso é uma espécie de platonismo, você dizer que as
classes são mais reais que os indivı́duos que as compõe. Todo o
mundo da Fı́sica moderna é muito embuı́do da idéia platônica de
encontrar por trás da realidade sensı́vel, uma outra que seria a ver-
dadeira realidade, composta apenas de combinações matemáticas.
Isto seria um platonismo intra-mundano. Ao invés de colocar as
idéias puras no céu, as colocam aqui mesmo, e consideram mais
reais do que os entes fisicamente considerados.
A idéia de dizer, por exemplo, que o sistema de Copérnico é
mais verdadeiro que o sistema de Ptolomeu, na verdade é mais
uma questão de mudança de escala. Copérnico disse que a Terra

300
13 Preleção XIII

gira em torno do Sol, mas se você observar desde um outro ponto


de vista, você vê que também não é a Terra que gira em torno do
Sol. Ambos descrevem um determinado movimento que tem como
pólo a estrela Vega, e que dá a impressão que a Terra gira em torno
do Sol, se você considerar apenas os dois. Assim, visto da escala
da percepção normal humana, o Sol gira em torno da Terra. Visto
da escala do sistema solar exclusivamente, a Terra gira em torno
do Sol. Visto de uma outra escala, nenhum gira em torno do outro,
mas apenas dá a impressão.
Isto é um jogo de perspectivas. Conforme a posição em que
você esteja, muda a perspectiva e você vê um movimento dife-
rente. Para você dizer que o movimento da Terra em torno do Sol
é um movimento absoluto, só se você isolar apenas o sistema solar.
Como existem milhares de objetos se movendo uns em relação aos
outros, a descrição de um movimento absoluto é impossı́vel. O
movimento absoluto só existe geometricamente; fisicamente não
pode existir. Por exemplo, eu posso fazer um cı́rculo aqui, e vocês
acham que é circular na medida onde vocês tomam esta sala e este
quadro-negro como ponto fixo de referência. Mas a Terra não está
girando? Enquanto eu faço este cı́rculo, ele já virou um cone.
Você pode fazer uma experiência simples: você está num trem
e uma lâmpada cai do teto. Qual o movimento que a lâmpada faz?
Visto de dentro do trem, ela faz um movimento vertical. Visto de
fora do trem, ela faz um movimento curvilı́neo. Acontece que,
enquanto isso, a Terra girou e o movimento fica meio espiralado.
Além da Terra girar em torno do seu eixo, ela também gira em
torno do Sol, então o movimento torna-se mais complexo. Isso
sem considerarmos que o sistema solar também girou em torno da
estrela Vega, e assim por diante, sem fim.
Então, qualquer ponto de vista é igualmente válido dentro dos
limites que ele mesmo estabelece. A única coisa que não é possı́vel
é a troca dos objetos entre si. Mesmo as noções de para cima, para

301
13 Preleção XIII

baixo, para o lado, etc., só são válidas se você fixar um ponto, um
Norte. Dentro do movimento conhecido da esfera celeste, você
coloca lá um ponto que se move menos do que os outros e você
o chama de Norte. Entretanto, se você colocar esse conjunto de
uma perspectiva um pouco maior, você também verá que aquele
ponto também não é imóvel. Neste sentido, o sistema ptolomaico
é uma descrição absolutamente perfeita do movimento que o Sol
faz em cima das nossas cabeças. Inclusive a medição nele é rigoro-
samente válida. Tanto que, não só em Astrologia, mas também em
Náutica se utiliza o sistema ptolomaico, que é muito mais simples.
Se fosse calcular heliocentricamente seria a maior complicação.
Então, o ponto de vista geocêntrico é tão válido quanto o he-
liocêntrico, jupteriocêntrico, etc. Qualquer ponto pode ser tomado
como centro. No entanto, até hoje se dá a impressão de que quando
veio sistema de Copérnico se descerrou o véu da ilusão, e nós
percebemos a realidade. É como o sujeito que está no cinema e
faz a grande descoberta: “Ah!, estão todos enganados! Os ato-
res não estão lá na tela! Eles estão, de fato, naquela máquina
lá em cima!!...”, e ele acha que descobriu a realidade, a verdade.
Cada vez que você descerra o véu da ilusão, você tem um snap-
ping (estalar de dedos), você tem uma mudança total do quadro de
percepção, a qual te leva a outra ilusão.
A estrutura real do mundo só pode ser inteligı́vel, só pode ser
captada por uma espécie de inteligência pura, capaz de raciocinar
dentro da relatividade total. Capaz de conceber a relatividade total
dos movimentos do mundo em relação a uma espécie de Norte,
não-fı́sico, em relação ao absoluto não-fı́sico. Quando Einstein
toma como parâmetro a velocidade da luz, todos os movimentos
que se passam aqui são relativos. O único que permanece cons-
tante é a velocidade da luz, e portanto pode ser tomada como ab-
soluta. No entanto, isto é válido provisoriamente. Não como uma
verdadeira teoria cronológica. Einstein só inventou um novo sis-

302
13 Preleção XIII

tema de medição, no qual você pega um determinado parâmetro,


que é provisório e mais ou menos convencional, mas que parte de
determinado campo, permanecendo igual porque suas variações
não interessam, e mede todas as suas variações em relação a elas
— é só isso.
Mas, se você disser que a velocidade da luz é constante em to-
das as direções, e portanto é um absoluto, então você teria que
dizer que ela não é uma velocidade. Ela seria uma outra coisa,
porque toda velocidade é relativa. Se você quiser encontrar um
parâmetro absoluto que não possa ser medido por nenhum outro
parâmetro, então ele tem que ser de ordem não-fı́sica. Você pode-
ria fazer uma suposição ideal, por exemplo, o pensamento divino,
que está simultaneamente em todos os lugares, e que nós não po-
demos captar de maneira alguma. A partir desta suposição ideal
de um absoluto permanente, constante, você mediria todo o resto
com ele. Acontece que para muitas pessoas, esta transposição para
um ponto de vista ideal, as deixa sufocadas. Sentem que estão per-
dendo o pé. O famoso salto abstrativo de que falava Hegel, é um
salto para um abismo. A maioria cai ali. As pessoas querem um
parâmetro fı́sico.
Há duas saı́das: uma delas é você procurar uma espécie de ab-
soluto fı́sico, que você poderia considerar a Terra. A Terra é fixa,
e o resto todo se move. Entretanto, vem um outro e diz que a Terra
também se move, e a única coisa fixa é a velocidade da luz. Mas
ele também está enganado.
Não é possı́vel você fazer nenhuma Fı́sica sem você partir de al-
guns parâmetros metafı́sicos. A Fı́sica também está cheia de Me-
tafı́sica. Não há saı́da. você fica medindo uma coisa em relação
à mesma coisa, e nunca sai disso. Por exemplo, quando as pes-
soas discutem sobre o buraco negro e que o universo é finito. E
o que tem depois desse universo? É o não-universo? É o nada,
totalmente desprovido de quaisquer propriedades? Esse nada, é

303
13 Preleção XIII

um nada espacial? Ora, dizer espaço vazio, implica que há um


espaço! Eles descrevem o universo dotado de certas propriedades,
e quando terminam essas propriedades, eles dizem que é o nada!
Será que eles acharão outras propriedades lá?
O universo pode ser finito, mas não fisicamente. O universo fisi-
camente finito é uma contradição de termos. Onde quer que exista
espaço, há um universo, ainda que nada aconteça lá dentro. Ao fa-
lar de finitude do universo, você pode falar em dois finitudes: uma
delas no sentido fı́sico, que é onde termina o mundo das propri-
edades fı́sicas conhecidas, e para lá você vai ter um espaço onde
não há essas propriedades fı́sicas. Se você chamar de universo
apenas o campo determinado pelas propriedades fı́sicas conheci-
das, você dirá que o universo termina ali. Mas, e a parte faltante
do espaço vazio, você vai chamar do quê? Para mim é universo
também. Não é metafı́sico. O mero fato de ser um espaço vazio
não o torna metafı́sico. Não é por ele ser um espaço vazio que
ele deixa de ser uma realidade fı́sica, porque você ainda o define
fisicamente pela mera aplicação de certas propriedades. Então, ele
não é não-fı́sico, ele não é supra-fı́sico. Ele é, por assim dizer, um
extra-universo, e o único conceito que se tem dele é a privação de
certas propriedades. Se o universo está em expansão, ele tem que
ter espaço para tal.
O problema, na verdade, é que as pessoas estão doidas para ver
Deus, fisicamente. No fundo, você pode ter uma cultura cientı́fica
imensa e não entender que ela toda se baseia em dois ou três con-
ceitos que podem, perfeitamente, permanecer incontidos (?). Se
você diz que o universo é a totalidade daquilo que pode ser fisi-
camente distinto, ou pela presença de certas propriedades, ou pela
sua ausência, então ele não termina fisicamente. você poderia con-
ceber um término, mas não no sentido fı́sico. Por exemplo, Deus
teria certas propriedades que vão além de todas as propriedades do
universo. Então, Ele pode fazer e desfazer desse universo. Outras

304
13 Preleção XIII

pessoas chegam à conclusão de que esse universo, fisicamente re-


conhecido, é apenas um de uma série. Ele pode acabar e surgirem
outros. O conjunto desses universos e mais o espaço onde eles se
manifestam, isso é o que chamamos de universo mesmo. Isso tudo
é o mundo. É claro que não é o absoluto.
No fim, a coisa vai se basear numa filosofia muito capenga. Se
você aplica os métodos mais exatos, de observações, de medições,
etc., resulta num fim que é uma fantasia matematicamente calcu-
lada. Metafisicamente não tem valor nenhum. Se existem dez
milhões, ou dez bilhões de universos, que diferença faz?
Então, isso aı́ é um monte de vı́cios que surgem nas ciências
a partir da Renascença, motivados pelo desejo de encontrar uma
espécie de absoluto material, que no fundo é o impulso de ver
Deus fisicamente. É um esoterismo de muito baixo nı́vel. Toda a
ciência da Renascença, ela mesma não percebe a base retórica das
suas argumentações. Por exemplo, para você tornar o sistema de
Copérnico mais crı́vel do que o sistema de Ptolomeu, você tem que
fazer com que as pessoas imaginem o mundo de outra maneira.
Então, é uma mudança imaginativa. Você vende um quadro que
parece ser mais verdadeiro. É uma argumentação retórica.
O fato é o seguinte: o primeiro quadro de referência é imagina-
tivo, e o segundo também. E qualquer outro quadro de referência
será imaginativo. Toda visão de um mundo que possa se expressar
sob um quadro imaginativo, ela será sempre relativa, provisória, e
nenhuma é mais real do que a outra. Se você vê este mundo como
um cenário no qual tudo é lindo, todos são deuses, cheios de fadas,
duendes, etc., e outra pessoa vê isto aqui como um inferno, cheio
de diabos, todos sofrendo, etc., a diferença é retórica. Duas visões
subjetivas como estas não podem competir em termos de veraci-
dade, porque elas não estão colocadas no plano do verdadeiro e do
falso, mas no plano do verossı́mil. Para um garoto de ginásio, hoje
em dia, a visão do mundo como partı́culas em movimento parece

305
13 Preleção XIII

mais verossı́mil do que a visão do universo cheio de deuses. En-


tretanto, a própria facilidade que as pessoas, hoje, passam de uma
visão dessas para a outra, mostra que nenhuma delas é verdadeira.
É o sujeito que de dia é fı́sico, e à noite é pai-de-santo. A única
coisa que os dois têm em comum é que eles fumam charuto...
Isto é o problema do snapping, que é o termo que os psicólogos
têm utilizado para a hipnose, para mudança de percepção que você
sofre quando faz certas experiências psicológicas. Por exemplo,
você entra para o Santo Daime, bebe o lı́quido, dez, quinze vezes, e
de repente dá o snapping, e todo o sue quadro de percepção muda.
Muda o referencial todo. Pelo impacto da experiência você pode
ter a impressão de que você saiu da ilusão para a realidade, mas
você saiu de uma ilusão para outra ilusão. Você tem um insight
especial. É o caso de você descobrir que a lâmpada acende, não
porque tem uma forma de energia lá dentro, mas porque há um
monte de anõeszinhos lá dentro.
Sempre que você tem um insight, você tem uma impressão da
realidade. É a coisa mais enganosa que existe. O mundo dos sen-
tidos e da imaginação jamais podem se situar na realidade por-
que ele só lida com a possibilidade. Entretanto, uma possibilidade
pode disputar com outra, em termos de verossimilhança, ou seja,
você quer que aquilo seja real. Você se identifica com uma visão, e
não com a outra. É uma diferença entre duas imagens poéticas, su-
blinhadas retoricamente. Portanto, se você teve o impacto de uma
experiência, você já está fazendo o papel de trouxa. Isto porque es-
tas faculdades não estão aı́ para nos dizer o que é a realidade, mas
apenas para criar um quadro das possibilidades, dentro do qual
você, intelectualmente, aos poucos, vai recortando o que é real.
Qualquer visão que você tenha, qualquer impacto sensorial em
você, ele não é acompanhado do sinal do real ou do irreal. O nosso
aparato perceptivo não pode dizer o que é real ou irreal. Não existe
diferença sensı́vel entre o que é real ou irreal. Entre a imagem

306
13 Preleção XIII

imaginada, e a imagem vista, você estabelece uma distinção que é


puramente intelectual, e que é recortada pelo costume apenas. O
decisivo para escolher entre as duas imagens, ou será o costume,
ou será uma diferença de impacto, ou terá que ser um critério inte-
lectualmente válido, que considera que todas as imagens valem a
mesma coisa. Por exemplo, a visão animista do mundo vale tanto
quanto a visão cientı́fica porque são apenas visões. Para saber o
que é real, você vai ter que explicar como é que pode existir um
mundo que seja composto de partı́culas atômicas, ou subatômicas,
em movimento, e dentro do qual existem certos tipos de seres, ao
qual esse mesmo universo aparece sob a forma de deuses, fadas,
etc. Isto porque o fato é que essas duas coisas acontecem, e entre
essas duas imagens você não pode criar um elo imaginário, porque
seria abstrato demais. Essas duas visões são discordantes demais,
imaginativamente falando. Só a inteligência pura é capaz de criar
um elo, uma seqüência de explicações que juntem a possibilidade
dessas duas visões.
Acontece que num tempo onde as pessoas acreditam já na visão
do mundo composto de partı́culas, elas ainda acreditam, de certo
modo, no mundo animista. E só entendem o segundo em relação
ao primeiro. O mundo de partı́culas só existe dialeticamente como
negação do anterior. Por exemplo, o sujeito que, durante o dia
acredita num mundo de partı́culas, quando ele sonha, ele acredita
num mundo cheio de deuses. Se você suprimir a capacidade dele
sonhar com os deuses, tente ensinar Fı́sica para ele... Se você apa-
gasse o mundo imaginativo, o mundo racional também não funci-
onaria. Como diz o Crocce (?), “o homem só é um animal lógico
porque ele é também um animal fantástico”. Ele só tem lógica
porque ele tem fantasia.
Será que somente o homem é assim, e que a realidade em torno é
completamente diferente? Se você suprimir o pensamento mágico,
some também o pensamento lógico. Imaginem a cabeça humana

307
13 Preleção XIII

com dois andares, um com o pensamento lógico, e o outro com o


pensamento mágico, sendo que o pensamento lógico está no an-
dar superior porque o cérebro também tem camadas (hipotálamo,
córtex, etc.). Se tirar o hipotálamo, o córtex, será que ele vai fun-
cionar melhor?
Você tem também o mundo. Se esse mundo funciona de acordo
com a visão mágica, ou seja, quem diz que a verdade é a visão
mágica ou é a visão lógica? Será que o mundo também não tem
dois andares? O homem tem um pensamento mágico, simbólico,
no andar de baixo, e em cima tem o pensamento lógico, o qual só
se desenvolve depois e em função do primeiro. Se tudo der certo
no primeiro, fica tudo igual. Se não der certo, o sujeito fica doido.
Se a imaginação desordenar, o sujeito fica maluco. O pensamento
lógico só funciona se estiver colocado ordenadamente sobre o pen-
samento mágico, através da intermediação da vontade, que é a uni-
dade da personalidade.
Então, você tem o sujeito humano e o objeto. Se esse sujeito
humano funciona em dois andares, será que é possı́vel que dentro
desse universo, que nós chamamos de objeto, exista um ser cuja
estrutura perceptiva não tenha nada que ver com o universo? Ou
seja, o homem é uma exceção? Isso me parece inviável. Isto signi-
fica que o universo em torno também não pode ser abrangido por
nenhuma dessas visões, mas que tem que existir nele uma parte
que funcione segundo um determinismo lógico-matemático, uma
parte que funcione através de conversões absurdas de realidade e
de irrealidade, e assim por diante, que seria a parte mágica, e uma
parte que depende da vontade, da interferência humana, onde o
homem está colocado, não só como observador, mas como peça,
ele também funciona dentro desse universo.
Isto explica porque os debates sobre determinismo e indetermi-
nismo nunca chegam a uma conclusão. Nem podem chegar. O
mundo tem uma parte que funciona de maneira determinista, e

308
13 Preleção XIII

outra que funciona indeterministicamente. Uma parece com uma


máquina, e outra se parece com um sonho. Mas, o mundo é assim
mesmo, e o homem também é assim.
Também nos parece que na articulação desse mundo, o homem
tem um certo papel e que, de certo modo, a visão cientı́fica tem
falhado na medida onde ela não leva em conta o papel ativo desse
homem na construção do mundo. Você acha que um ser como o
homem poderia subsistir num universo totalmente mágico, como
se tudo funcionasse por magia, vivesse dentro de um sonho onde
um hipopótamo, de repente, virasse uma borboleta, e depois a
borboleta virasse uma fada, etc.; o homem não conseguiria vi-
ver dois dias assim. Por outro lado, o homem poderia viver den-
tro de um universo rigorosamente lógico, que funcionasse como
uma máquina? Também não! O homem subsiste dentro disso por-
que ele também é parecido com o universo. Isto é o princı́pio
antrópico. O universo é constituı́do de tal maneira que, lá dentro,
há um lugar onde o homem possa viver. Ou seja, a existência do
universo é compatı́vel com a existência do homem. Isto significa
que nenhuma descrição lógico-matemático do universo vai poder
esgotá-lo sem ela chegar no ponto onde as coisas parecem estar
funcionando na base da arbitragem, que é onde a Fı́sica chegou.
Você vai pelo determinismo universal até um certo ponto, e de re-
pente tudo fica confuso: daqui para frente é indeterminı́stico, e
mais lá para frente é o caos! É sempre assim. Mas, você também
não é assim?
As pessoas dizem que estes são dois mundo que se excluem.
Mas, eles não se excluem; eles estão costurados, só que a costura
é você! Esse negócio de colocar o homem no centro do universo,
isso eu acredito mesmo. O homem está no centro do universo, não
no sentido de estar no centro geográfico, mas ele está colocado,
por assim dizer, como um eixo, não somente cognitivo, mas, creio
eu, que seria possı́vel a prova completa desse princı́pio antrópico.

309
13 Preleção XIII

O universo tem as propriedades do homem.


Vamos dizer que você descubra uma verdade num campo pu-
ramente cientı́fico. O quê significa uma verdade cientı́fica cuja
contrapartida moral você não conheça? Se eu desconheço total-
mente as conseqüências que uma determinada verdade cientı́fica
tem para mim, eu só a conheço parcialmente.
11. A lógica ou teoria da ciência como disciplina normativa e
como arte.
Uma ciência é verdadeiramente ciência, um método é verdadei-
ramente método, se é conforme ao fim a que tende. A lógica as-
pira a investigar o que constitui a idéia de ciência, para poder saber
se as ciências empiricamente dadas respondem à sua idéia, e até
que ponto. A lógica renuncia ao método comparativo da ciência
histórica, que trata de compreender as ciências como produtos
concretos da cultura das distintas épocas, por suas peculiaridades e
generalidades tı́picas, e explicá-las segundo as circunstâncias dos
tempos.
Nós podemos dar um exemplo: no tempo de Aristóteles não ha-
via muita distinção entre o que seria uma observação cientı́fica e
uma observação empı́rica. Ou seja, uma observação comum e cor-
rente, feitas em condições mais ou menos fortuitas, era admitida
pelo próprio Aristóteles como um fonte mais ou menos fidedigna.
Observações que ele mesmo tinha feito até ali eram computadas
como dados significativos.
Mais tarde, só se passa a aceitar como observação cientı́fica as
observações feitas em determinadas condições. Com isso, alguma
coisa se ganha, alguma coisa se perde. Se ganha, por exemplo,
em exatidão, certeza, dentro do campo observado, e se perde na
relação entre o conhecimento assim adquirido e a experiência co-
mum, corrente, dos homens.
Esses dois tipos de Ciência — ciência aristotélica e ciência re-
nascentista –, as diferenças entre elas são explicadas historica-

310
13 Preleção XIII

mente. Conforme o modo de pensar da época, os vários conhe-


cimentos que se tinha, você pode, a partir daı́, explicar porque
a Ciência tomou esse rumo na Grécia e na Europa renascentista,
mas esse não é um assunto da Lógica. Ela não está interessada
em referir os modos de ciência ao panorama cultural histórico da
época. Ela está apenas interessada em julgar se essa ou aquela
ciência atende a essa finalidade expressa no ideal do conhecimento
cientı́fico.
Em que medida nós podemos dizer, por exemplo, que a ciência
renascentista atende em mais ou em menos esse ideal do que a
ciência aristotélica? Nós podemos dizer que hoje se acredita cor-
rentemente que a ciência renascentista é mais cientı́fica, de certo
modo. Isso se levarmos em conta como parâmetro para avaliação
dessas duas coisas apenas a exatidão e a confiabilidade dos dados
colhidos.
Por outro lado, nós também poderı́amos fazer a objeção de que
a experimentação cientı́fica é feita de um quadro de referência que
é muito diferente do que o Husserl chamava de o mundo da vida
— Lebenswelt –, que é o mundo da experiência comum e cor-
rente, em parte mais artificial, mais inventado, hipotético e que,
por isso mesmo, se após feitas as observações, tiradas as con-
clusões, não houver um princı́pio de correção, de relativização do
resultado obtido de modo a reenquadrá-lo dentro do Lebenswelt,
então a Ciência acaba criando um outro mundo, que se superpõe ao
mundo da experiência, e que às vezes pretende substitui-lo. Com
isto, ela escapa do próprio ideal de Ciência.
Mas, o que interessa não é a causa histórica, o por quê que tudo
isso aconteceu. A Lógica tem que ver apenas essas duas modali-
dades de ciência em função de um ideal. Ver o que uma atende,
o que a outra atende ou deixa de atender. Em suma, a Lógica vai
estabelecer o que é Ciência, em seguida, a partir desse modelo,
desse padrão, julgar a cientificidade das várias ciências.

311
13 Preleção XIII

Muitas vezes a consideração do aspecto histórico obscurece o


problema. Por quê? Porque existe uma espécie de ideologia do
progresso, onde se acredita que o que vem depois tem necessa-
riamente que ser melhor. Então, se passamos daquele tipo de
observação a esse, é porque vimos as deficiências do modo de
observação anterior. Isso é verdade, mas no momento onde vimos
as deficiências do modo anterior, e inventamos um novo modo,
ainda não vimos as deficiências desse novo modo. Elas só apare-
cerão com o tempo.
As distorções do modo de observação renascentista só se torna-
ram claras no século XX. No fim do século XVIII, Kant tomava a
nova ciência fı́sica, de Newton, como se fosse uma verdade pura
e final, como a ciência pura e modelar. Isto porque as deficiências
ainda não tinham aparecido. Na hora que elas começam a apa-
recer, elas são de dois tipos: primeiro, elas se referem à escala
onde foram feitas as observações. Na medida onde você começa
a imaginar a possibilidade de observações feitas noutra escala e
começa a desenvolver aparelhos com uma observação mais fina, é
evidente que essas novas observações vão te dar um quadro muito
diferente do que você tinha na Mecânica Clássica. Na hora que
você vê que os princı́pios da Mecânica Clássica não se aplicam
a realidades fı́sicas menores, infinitesimais, ou então não se apli-
cam numa escala universal, macroscopicamente, aı́ você vê que
aquelas observações tinham sido feitas dentro de um quadro muito
limitado.
Não é impossı́vel ver aqui as novas observações feitas a partir
desse novo progresso, desse novo aprimoramento da observação
cientı́fica, voltem a coincidir com algumas coisas constatadas no
tempo da ciência aristotélica. Aquilo que tinha sido aparente-
mente superado, retorna. Por isso é que todo progresso da Ciência
é muito relativo. É um progresso que pode, amanhã, se revelar
como uma perda. Mas uma perda no qual você sempre leva al-

312
13 Preleção XIII

guma vantagem. Ninguém pode negar a perfeição do quadro todo


da Mecânica Clássica dentro de um certo quadro de referência que,
por um lado é macroscópico, ou seja, é referido ainda à percepção
comum, humana apenas, desprovida das chamadas qualidades se-
cundárias, por exemplo, cor, forma, etc.
O mundo ...(?) é o mundo que seria observado por um ser hu-
mano, do tamanho de um ser humano normal, mas que somente
percebesse as qualidades matematizáveis e padronizadas. É claro
que um ser humano assim não existe. Seria o mundo ideal. Mas
toda ciência sempre observa somente o mundo ideal, e essa é exa-
tamente a força dela, e a sua fraqueza, porque se as descobertas
cientı́ficas não são de novo referidas ao ser que as produziu, que
é o ser humano, se não são reenquadradas no mundo da vida —
Lebenswelt –, então elas ficam sem sentido. Ela acaba inventando
um outro mundo que compete com o mundo da experiência, e que
pretende às vezes ser mais real do que ele, mas no qual você não
pode viver, não pode atuar de maneira alguma. Você pode pro-
var que tal ou qual sistema de observação, dentro de tais ou quais
parâmetros, pode produzir frutos. Mas, você não tem nenhuma
prova de que os outros também não poderiam fazer o mesmo, ou
poderiam fazer melhor.
Nós podemos dizer que, hoje, a própria expansão da educação,
ela permite o acesso a educação de pessoas cada vez menos ca-
pacitadas. Cada vez é preciso ser menos inteligente para ser um
cientista. Se você pegar os cientistas da Renascença — Galileu,
Newton, Descartes, etc. –, você vê que monstros eram eles, e a
comunidade cientı́fica inteira era constituı́da de pessoas mais ou
menos desse nı́vel. Só que era uma comunidade pequena. Hoje
é exatamente o contrário. Vejam, por exemplo, nos Estados Uni-
dos, onde estabeleceram uma lei, no qual tinham que haver uma
taxa de alunos negros nas escolas. Então, você tinha que aprovar
os sujeitos necessariamente. Claro que isso foi feito para aten-

313
13 Preleção XIII

der a um problema extra-cientı́fico, de ordem social, e de fato o


resolve, mas em grave prejuı́zo para a qualidade da ciência re-
sultante. Aqui no Brasil, por exemplo, quando o ministro Jarbas
Passarinho fez uma reforma universitária, para abrir uma univer-
sidade a cada esquina para atender uma reivindicação dos chama-
dos excedentes, que eram aprovados no vestibular, mas fora da
classificação por falta de vagas. Teoricamente eles tinham um di-
reito a uma vaga universitária, mas a quem incumbia a obrigação
de dar uma vaga a ele? Então, o sujeito ficava sem ensino, e isso
criou uma situação delicada, com passeatas, greves, etc. Daı́, para
resolver a questão, abriram um monte de vagas. Mas o que isso
tinha a ver com a atividade própria da universidade? Nada. Qual
a diferença entre um movimento para obter vagas numa universi-
dade, e um movimento para obter vagas num hotel? Na verdade,
são direitos idênticos. É um aspecto em que a organização cha-
mada universidade coincide com qualquer outra organização. A
universidade sofre essa reivindicação, não enquanto universidade,
mas enquanto instituição pública. Ou seja, pelo gênero, e não pela
espécie. Portanto, o atendimento à resolução do problema, nada
tem a ver também com a especificidade da ocupação universitária.
Porém, o ensino é uma atividade muito peculiar, onde a questão
decisiva não é dar o ensino, mas sim que o sujeito o receba. Di-
zer que ele tem direito à educação é uma espécie de contradição,
no meu entender. A educação nunca pode ser um direito, porque
ela não depende de um outro indivı́duo. A educação depende de
mim. A educação é uma decisão, e não um direito. Por exemplo,
dizer que você tem direito de ser corajoso, tem direito à coragem,
é um non-sense, porque você será corajoso se você quiser. O su-
jeito ativo do processo educativo não é o professor, mas o próprio
aluno. A educação não pode ser colocada nem como um dever,
mas como uma opção livre. Quando você a coloca como um di-
reito, o sujeito, por ter acesso àquele meio, ele acredita que está

314
13 Preleção XIII

obtendo a educação. Isso desvia todo o problema.


O quê é a educação? É o indivı́duo adquirir, para ele, o conheci-
mento, o domı́nio de certas coisas. Não tem sentido, é ilógico você
colocar isto na esfera do direito. Isto tem que ser colocado na es-
fera da capacidade da vontade. Não cabe a ninguém reconhecer o
seu direito à educação, aos meios da educação. Ademais, os meios
também são muito variáveis. Quanto custa a educação de um in-
divı́duo? A minha educação, por exemplo, não custou muito. Ela
custou algum tempo, geralmente fora das horas de trabalho, e os
livros que comprei. Não custou mais do que isso. Quanto custa a
formação de um desses filósofos que sai todo ano das faculdades?
Você precisa de prédios, bibliotecas, funcionários, equipamentos,
etc., e se você divide pelo número de alunos, veja o custo que sai.
Entretanto, é próprio da sociedade democrática colocar as coi-
sas em termos de direito. Mas aı́ o problema não é de direito, mas
se a educação efetivamente se faz ou não. O máximo que um go-
verno pode dar é certos meios de acesso. Mas se ele dá acesso à
educação a um bando de gente, isso não garante que ele vá realizar
os fins da educação.
No meu entender, as verbas destinadas à educação são muito
mais do que suficientes. Não precisava tanto. Por outro lado,
ou a educação visa a produzir conhecimento, ou ela visa a asse-
gurar emprego para um bando de gente. Estas duas finalidades
estão muito misturadas. Se você perguntar para a grande maio-
ria dos estudantes universitários, que se fosse possı́vel ter acesso a
esse tipo de emprego sem nenhum estudo, agora, já, se eles que-
riam ou não? A grande maioria diria que sim. Isto significa que a
educação, o conhecimento, está se tornando um meio para um de-
terminado fim, que permanece individual, voltado para ele mesmo.
A educação não é dada para aquele indivı́duo em função de um
serviço social que ele vai prestar, mas em função do atendimento
de uma reivindicação unilateral, dele. É o caso, por exemplo, dos

315
13 Preleção XIII

médicos. Durante uma certa época, as pessoas que se formavam


em Medicina, tinham a consciência muito nı́tida de serem privile-
giados. Como se tivessem recebido um prêmio de loteria. Tinham
consciência de que aquilo custava um custo social, fora do co-
mum, e que portanto alguma coisa eles deveriam devolver. Mas
hoje isto não existe mais. O sujeitos acham que o governo montou
toda aquela máquina com a única finalidade de lhe dar um meio
de acesso a ele ganhar um dinheiro. O que é, evidentemente, um
suicı́dio da sociedade.
Isto transformou a discussão da educação numa confusão muito
grande. Dá acesso à educação não apenas a pessoas intelectual-
mente inqualificadas, mas como a pessoas que não tem a menor
idéia da responsabilidade inerente àquele trabalho. Em São Paulo
há a faculdade de Estudos Orientais, que é um depósito de pessoas
que não encontraram vagas nos outros cursos. Houve até um depu-
tado, que é um animal, o Gastone Righi, que fez uma análise do fe-
chamento desta faculdade da USP, porque ele achava que não ser-
via para nada. Acontece que toda a história do século XX, começa
na faculdade de Estudos Orientais. Tudo o que ocorreu no século
XX, você pode explicar a partir da entrada de uma influência ori-
ental, que vem da faculdade de Estudos Orientais, onde as pessoas
estudam o chinês, o árabe, etc., trazendo esse conhecimento para
cá. Por exemplo, como é que você teria a acupuntura se não fosse
a faculdade de Estudos Orientais? Foram os médicos que foram
lá traduzir os textos da acupuntura? Não, foram os lingüistas, os
orientalistas. E assim por diante. Então, esta faculdade, no mo-
mento, ela serve apenas para atender a uma reivindicação subjetiva
de determinados indivı́duos, como se eles fossem os mimados da
sociedade. Esses mesmos indivı́duos fazem greve quando o preço
do restaurante sobe 10 cruzeiros.
Para mim, o estudante não poderia fazer greve jamais, por mo-
tivo nenhum. Ele tem é que estudar. Será que ele não entende

316
13 Preleção XIII

tudo o que ele está recebendo de presente? Ele pensa que ele é o
quê? Um proletário explorado? É exatamente o contrário, ele é
um menino mimado, a quem a sociedade dá tudo de melhor. Tal-
vez, poderia existir uma espécie de greve ao contrário, que seria a
prestação de serviços gratuitos.
Pelo fato da universidade dar acesso a pessoas de muito baixo
nı́vel intelectual e moral, nem o mercado atenderá à reivindicação
delas. O sujeito que se formou em algo, não quer saber se aquilo
é socialmente útil, ou se a sociedade precisa daquilo. Ele quer é
saber de ter uma oportunidade para ele. A profissão universitária
que atualmente tem o mais alto salário inicial é a de advogado. Isto
resulta simplesmente do fato de que quando terminou o governo
dos militares, começou o governo dos bacharéis.
É claro que pessoas que estudaram por estes motivos, elas ad-
quirirão o conhecimento pelo mı́nimo indispensável para poder
parecer advogado, médico, engenheiro, etc. E para este mı́nimo,
é claro que os procedimentos algorı́tmicos são uma mão- na-roda,
uma verdadeira maravilha, porque vai pela lei do menor esforço.
Então, é claro que para a quase totalidade dessas pessoas, estes
procedimentos serão a quintessência daquele setor do conheci-
mento, e se apegarão àquilo como se fosse um verdadeiro fetiche,
porque se tirar aquilo, eles estão roubados.
Então, se me perguntarem se eu sou a favor da democratização
do ensino, eu respondo que, ao contrário, sou a favor da elitização,
porque o acesso é excessivo. A sociedade não tem meios de ali-
mentar essa gente toda. Por quê existe o desemprego nessas áreas?
Porque tem gente demais. Evidentemente, não há necessidade de
tanto advogado, filósofo, etc. Então, temos a sociedade inteira,
a começar pelos famintos, os proletários, todos trabalhando, para
que uma casta de privilegiados possa brincar com essas coisas.
A promoção desses processos simplificados, abreviados, à quin-
tessência da própria Ciência, é devido a isso. Quanto mais se pu-

317
13 Preleção XIII

der reduzir o trabalho a procedimentos algorı́tmicos melhor para


eles. Melhor porque num raciocı́nio econômico é uma redução
de tempo. Acontece que não existe, por exemplo, um médico ge-
ral. Cada médico é um indivı́duo. Ou ele sabe ou ele não sabe.
Então, você economiza o tempo de todos de maneira que ninguém
saiba de nada. A cadeira de Economia, por exemplo, houve uma
perda porque o sujeito ficou lá, anos estudando, você pagando, e
ele não sabe nada. a própria definição do objeto de ensino é o in-
divı́duo, e não a coletividade. Numa coletividade onde ninguém
quer aprender nada, onde nenhum indivı́duo saiba de nada, mas
que pela média, somando as várias ignorâncias, dê para obter a
nota mı́nima, isso é o fracasso total. O problema não é formar
médicos, mas saber se são médicos!
As idéias pseudo-cientı́ficas surgem devido a esses problemas.
O sujeito não foi lá para averiguar o que é, ele não refez o caminho,
nem está interessado nisso. Isto não é só culpa das autoridades,
mas é culpa de todo mundo. A culpa é de cada um. Lutar pelo
ensino melhor, é como você lutar pelo aumento do nı́vel da sua
moralidade. Você não tem que lutar por isso. Ela está em você; ou
você faz, ou você não faz.
Qualquer oportunidade de ensino poderia ser aproveitada inte-
gralmente. Então, seria o caso de perguntar, por exemplo, para
o sujeito que entra numa faculdade de Filosofia: suponha que os
professores fossem uma porcaria, fossem desinteressados, então,
por quê você não mata as aulas e vai para a biblioteca, requisita os
livros, e faz o seu curso? Se os professores não me dão, eu tenho o
aparato fı́sico à minha disposição. A má qualidade dos professores
não é desculpa. A má qualidade do ensino não justifica a má qua-
lidade do aprendizado. Suponha que você tenha um professor que
saiba muito pouco, que fale um monte de besteiras, mas você não
tem nem a curiosidade de saber por quê o que ele fala é besteira?
Se o professor disse que o Aristóteles é isso ou aquilo, mas você

318
13 Preleção XIII

acha que não, por quê você não vai ver o quê Aristóteles falou re-
almente? Mesmo o pior dos professores é uma oportunidade de
ensino.
Por quê isso acontece em termos de Brasil? Em primeiro lugar,
eu acho que o conhecimento não faz parte da vida brasileira. Você
saber as coisas, não é considera importante. Não é moeda cor-
rente. Eu acho, inclusive, que há elementos cultural-psicológicos
que são adversos a qualquer resultado. Por exemplo, a ênfase que
se dá para o sujeito passar de ano. O importante é passar, ou seja,
é nunca ter estado lá... Isto porque está todo mundo pobre, preci-
sando de emprego, acaba gerando esse tipo de raciocı́nio. Aqui no
Brasil, você querer saber as coisas, você acaba ficando mal visto.
O absurdo é que o paı́s é subdesenvolvido, cheio de dı́vidas, e se
dá ao luxo de oferecer faculdades a pessoas que não querem nada.
Muitos desses desvios filosóficos, que no mundo aparecem como
meramente potenciais e não chegam a se manifestar, aqui eles ad-
quirem corporalidade. Então, como é que você poderia fazer uma
elite cientı́fica, cultural, para fazer as coisas darem certo? Só se
for por mágica! O fato de você saber algo, qualquer coisa, já te
torna uma pessoa suspeita.
O que adianta não é dar verbas para a educação, mas fazer
mudança cultural mais profunda. Uma mudança nos hábitos psi-
cológicos da nação. No panteão dos heróis nacionais, quantos bra-
sileiros são cultuados pelo seu saber? Só Rui Barbosa. Mas, que
tipo de saber tinha o Rui Barbosa? Ele tinha um saber retórico
— só isso. Ou seja, não há um herói cultural. Assim, onde não
há heróis culturais, não há o ideal do sábio. Isto está totalmente
fora do repertório vital dos indivı́duos. É um escândalo, no sentido
bı́blico. O escândalo é um fato cuja constatação faz você perder a
fé na vontade divina. Realmente, o panorama cultural- psicológico
aqui é muito trágico. Este é o único problema real do Brasil.
Vejam, por exemplo, um pai de famı́lia, que está desempregado,

319
13 Preleção XIII

doente, é corno, os filhos fumam maconha, e além do mais ele está


louco. Então, como é que ele pode resolver tudo isso antes recu-
perar a sanidade? Não há jeito. Ponha a cabeça do sujeito no lugar
que ele conseguirá resolver tudo com sua própria capacidade: ele
dá uma prensa na mulher, ensina ao filho o que deve fazer, arranja
um trabalho, e as coisas começam a melhorar. Entretanto, com a
cabeça fora do lugar, desorientado, o desgaste é inevitável.
Vejam que qualquer problema simples, aqui no Brasil leva anos
e anos de debate. Em Curitiba é que eu vi até que ponto nas outras
cidades você gasta mão-de-obra à toa. Um único prefeito tinha
as idéias e as colocou em prática. Eu pergunto: quanto custou?
Quantas reuniões de alto nı́vel aconteceram? A reunião de alto
nı́vel era quando ele ia para casa à noite, pensava, e chegava a uma
conclusão. Pensando ou não pensando, o salário do prefeito será
o mesmo. Então, para resolver uma infinidade de coisas, basta
um sujeito pensando. Não precisa de um monte de gente e tanta
discussão. Acontece que lá em Curitiba, o prefeito pensava, e as
pessoas resolveram dar um voto de confiança nele. E o fato é que
ele governou Curitiba como um autocrata; na maioria dos casos,
nem o secretariado dele sabia o que ele estava fazendo. É melhor
do que um milhão de liberais obscurecidos, porque parte para a
democracia, todo mundo discute, falam o que querem, e no fim
não se resolve nada.
Então, isso tudo não é um problema de direito, de legislação,
é um problema cultural onde a estrutura de personalidade dos in-
divı́duos não é apta à solução dos problemas. Por exemplo, te arru-
mam um emprego numa firma que fabrique camisinhas. Então, ela
tem determinados problemas objetivos a resolver. Quanto tempo
você gasta, quanto dinheiro a firma gasta até que os seus execu-
tivos recém-admitidos tenham conseguido satisfazer todas as suas
necessidades objetivas, sentindo-se pertencendo, aprovados, etc.?
Acontecerão reuniões e reuniões, onde as pessoas falarão as coi-

320
13 Preleção XIII

sas, não porque isso seja pertinente à fabricação das camisinhas,


mas pertinente ao problema deles.
As pessoas te dão opinião, não porque têm algo a dizer, mas
porque elas têm uma dúvida sobre se elas têm capacidade para
aquilo, se elas serão aceitas naquele lugar, então elas ficarão tes-
tando. Embora isso já devesse ter sido testado aos quinze anos
de idade. Já devia estar resolvido. Isso é dinheiro jogado fora, o
tempo todo. Se você trouxe um problema e não dá para falar qual
é o problema, então o problema não existe. Se esse sistema fosse
adotado oficialmente, todo mundo ia ficar de boca calada para o
resto da vida. Entretanto, não se perderia tanto tempo.
Mas por quê é assim? Porque o que está em jogo não é o pro-
blema efetivo. O que está em jogo é a convivência humana. No
entanto, por quê a personalidade das pessoas é tão mole? Porque
não existem valores e ideais culturais que norteiem a formação de
uma sociedade forte. Se você não sabe a que modelo de conduta
você tem que atender, você nunca sabe se você está agradando ou
não. Em alguns lugares, eu creio que você tem isso. Quando se en-
tra para o Exército, tem lá um modelo de militar que nós tentamos
nos enquadrar rapidamente nele. Logo, logo você fica sabendo
se você serve para aquilo ou não. Tirando, talvez, o Exército e a
Igreja Católica, onde logo você fica sabendo se você serve para pa-
dre ou não, no resto não existe esse padrão. Um executivo de uma
grande indústria, por exemplo, que qualidades de conduta deveria
ter? Por exemplo, falar pouco e não perder tempo. A economia
de tempo é um traço absolutamente fundamental. Se o sujeito ti-
vesse esse valor muito claro em sua mente, na medida em que ele
atendesse a isso, ele estaria satisfeito, estaria seguro de si, não im-
portando com o que os outros pensem. Mas se ele mesmo não tem
esse parâmetro com o qual se julgar, ele depende do julgamento
alheio: saber se fulano gosta de mim, se os outros me aprovam,
etc. E, com isso, você perde alguns anos. Se o sujeito conseguiu

321
13 Preleção XIII

passar por toda essa barreira de questões subjetivas, no fim é que


ele vira presidente de uma empresa. Tudo isso é uma perda for-
midável.
Em relação à Ciência, o quê é você ser um cientista? O quê você
tem que atender? Que caracteres você tem que ter? Esses valores
não estão claros na sociedade, de maneira alguma. Qual é a função
de um filósofo? Tudo isso representa valores que são a fórmula de
vida, básica, que um educador — Sprangler — chama de faith: o
homem religioso, o homem teorético, o homem econômico, etc.,
ao todo, são seis. Cada um deles representa um conjunto de va-
lores que marca uma conduta ideal, à qual, se você entra na res-
pectiva carreira, você tem que atender. Se eu entro numa carreira
técnica, mas as minhas necessidades são outras, completamente
diferentes, por exemplo, eu gosto da intercomunicação humana,
de biologia, então você está no lugar errado. Esses valores fazem
parte da educação, e eu acho que isso o Estado deveria fazer. O
Estado deveria oferecer esses modelos. Ajudar a pessoa a se si-
tuar, já que a famı́lia não dá. O Estado aqui, sempre vem antes da
iniciativa social. É o que dá o primeiro lance, é o educador, o re-
formador, o legislador, então ele tem que assumir de verdade esse
papel.
Não é possı́vel você educar uma nação ao mesmo tempo em que
você vai fazer tudo do jeito que ela quer, e vai concordar que ela
fique do mesmo modo. Um educador está ali para transformar a
pessoa, isso é óbvio. A própria viabilidade do sistema democrático
aqui já era para ter sido questionado mil vezes. Toda hora caı́mos
numa ditadura, e não é à toa. Não é porque há uma meia dúzia
de homens maus. É porque você tenta pelo lado democrático, daı́
você elege o Fernando Collor, dá uma crise, e olha aı́ a ditadura
de novo. O problema é que quando você tem uma ditadura, as
pessoas não aproveitam esse perı́odo para fazer mudanças básicas.
O Getúlio Vargas ainda fez. Colocou alguns valores, mas muito

322
13 Preleção XIII

pouca coisa. Na época dos militares não aconteceu nada nessa


área.
Quando nós vemos a conseqüência disso na área da atividade
puramente intelectual, cientı́fica, filosófica, etc., aı́ se nem os exe-
cutivos das grandes empresas são capazes de serem formados,
imaginem formar filósofos... Imaginem o coeficiente de falsidade
que existe na conduta desses indivı́duos que tentam representar
um papel que ele desconhece, que nunca sabe se ele é um bom
médico, engenheiro, executivo, ou não. E, esses são papéis que
o indivı́duo precisa conferir pela resposta alheia, se ele aceita ou
não. Imaginem o papel de filósofo. Não há um sequer que me diga
se ele é ou não é. Então, ele está sozinho no espaço, tentando se
auto-definir. É uma espécie de coisa em si. A coisa é muito vaga.
Todo mundo vivendo com aquela sensação de falsidade, de vazio,
que vem por ele estar sempre vivendo um papel que ele não tem
certeza se ele é. Um papel que o dignificaria, que ele até gostaria
de ser, mas que ele não sabe exatamente como fazer. Então, ele
tem que perguntar para os outros: será que eu sou isso ou aquilo?
Esse é o problema psicológico-cultural de base que impede
qualquer educação. Quando você decidir por uma carreira não
é só você adquirir conhecimento, mas é você adquirir as condutas
respectivas. É claro que devem haver condutas que são essenci-
ais a determinadas profissões, e condutas que são mais ou menos
acidentais, com certos cacoetes mentais. Estes cacoetes podem
mudar de época para época. Em cada profissão você tem, não o
vocabulário técnico, mas o vocabulário social daquele meio, e que
não faz parte da estrutura da profissão. É apenas uma contingência
momentânea. Mas, quanto fosfato as pessoas gastam para adquirir
esse vocabulário? E esses trejeitos? Para que ele possa se sentir
um economista, um médico, etc. É um absurdo!
No fim de tudo, é para você poder imitar um papel, ao qual você
não tem certeza que você pertence. Então, quase todo mundo,

323
13 Preleção XIII

numa certa idade, se for um pouco honesto, vai ter que entender
que está no lugar errado. No fundo, quase todo mundo se sente
charlatão.
Nós aqui temos que pensar tudo isso, não na escala social. O
Brasil é uma coisa. Nós somos outra coisa. Tudo o que está sendo
dito aqui, tem que ser traduzido para o caso pessoal, e ver como
é que você corrige isso dentro da sua escala. Quando decidi ser
filósofo, eu pautei a minha conduta por essa linha. Se os outros
não entenderem o papel que estou representando, isso é problema
deles. Geralmente não entendem. Mas, pelo menos, eu não fico
“patinando no vazio”, eu sei o que eu estou fazendo. As pessoas
não precisam me entender. Eu estou me entendendo.
O fato é que cada um de vocês vai procurar ver quais são os
valores que determinam, que moldam a conduta, da prática da-
quela ciência, daquela arte, e se pautarem por isso. De modo
que, as pessoas que convivem com você, aos poucos venham a
saber o que você está fazendo ali, qual é o seu propósito real. Por
exemplo, médico, hoje em dia, ignora que você só trata de um in-
divı́duo. Isso faz parte da natureza da profissão médica. Não existe
terapêutica geral. Não é como, por exemplo, um engenheiro indus-
trial, que só vai resolver problemas de ordem geral. No entanto,
o médico não pode tratar de quinze pessoas ao mesmo tempo. A
Medicina é essencialmente clı́nica, o resto é acidental. As pessoas
fazem Medicina como se fosse uma coisa industrial, quando não
é. A divisão de trabalho na Medicina tem nı́veis intransponı́veis,
que em outras esferas isso não acontece. O problema é que as pes-
soas acreditam que essa divisão realmente existem. O especialista,
em princı́pio, é o médico que sabe algo mais de uma determinada
área. a Medicina é clı́nica. O termo clı́nica vem do grego kline,
que significa leito. Clinicar é você sentar no leito e ouvir, tratar,
o doente. As divisões de Engenharia, por exemplo, são radical-
mente distintas. O sujeito para ser Engenheiro Civil não precisa

324
13 Preleção XIII

saber absolutamente nada de Engenharia Naval. A única coisa em


comum são algumas matérias básicas. No entanto, Medicina e Ve-
terinária, são realmente diferentes, porque o objeto é diferente. a
especialização, as espécies, em Engenharia existem fisicamente,
mas em Medicina as especializações são apenas entes de razão. É
como se fosse uma especialização metafórica. A própria distinção
entre cirurgia e clı́nica já é motivo de discussão. Hoje, com os mi-
crocomputadores, qual é a impossibilidade que existe de que um
médico tenha, praticamente, a totalidade da informação médica no
seu consultório? Nada impede isso. O indivı́duo não pode saber
tudo, mas também não precisa ser uma biblioteca, basta ter um mi-
crocomputador. Isso amplia o raio de ação dele formidavelmente.

325
14 Preleção XIV
12 de fevereiro de 1993

[ Olavo deu uma parada nos comentários sobre Husserl, e dis-


cutiu o artigo de uma revista sobre a Quı́mica do Amor ]
Na medida onde a Igreja, no começo da Idade Média, estava
procurando educar, civilizar, de certo modo, disciplinar uma casta
guerreira, de origem pagã, percebendo que essas pessoas não eram
capazes de noções de tipo moral, direta, que era muito complexo
para elas, procurou ver se não podia, através do erotismo, dirigir
as ações desses indivı́duos no sentido benéfico.
Como eram pessoas altamente erotizadas, a Igreja tentou dirigir
os impulsos eróticos desses indivı́duos no sentido de uma mulher
inacessı́vel, para que o desejo dessa mulher inacessı́vel pudesse
formar uma espécie de base sensı́vel, para que eles pudessem che-
gar a compreender a aspiração pelo divino.
Neste perı́odo surge a Ética de Cavaleiros, que serve à sua dama,
que geralmente era a esposa do rei, ou do senhor feudal, à qual é
proibida para ele. Ele é incentivado, de certo modo, a se apaixonar
por ela justamente porque ela é inacessı́vel. Se ele transar com ela,
ele morre. Assim, todo o erotismo do indivı́duo é canalizado nesse
sentido, o que faz com que ele sofra, e sinta um fundo de nostalgia.
Essa nostalgia forma uma base sensı́vel para que essa gente pense
na nostalgia do paraı́so perdido, na nostalgia do divino, etc. Foi
uma espécie de truque psico-pedagógico inventado pela Igreja, e
que funcionou durante centenas de anos.

326
14 Preleção XIV

Quando acabou a Idade Média, acabaram os cavaleiros, os se-


nhores feudais, etc., e a burguesia, lendo aqueles livros, gos-
tou, também quis viver isso, e daı́ surge o amor romântico, na
concepção moderna, que é uma coisa totalmente fora do lugar,
porque o cavaleiro medieval, de certo modo, pagava com a sua
vida a aquisição dessa amante, que ele não tinha como prêmio
material. Se ele transasse com a mulher do rei, o prêmio era a
morte. Pior do que a morte, era a sua desqualificação como cava-
leiro, que é como aparece na estória de Sir Lancaster. Ele cai em
desgraça porque na medida onde ele segurou com as mãos aquela
que deveria permanecer como uma medida inatingı́vel, ele des-
faz a mágica. Então, sua vida perde o sentido. Ou seja, o amor
romântico é feito para não ser realizado. Daı́ é que surge o fato de
que em toda a civilização do Ocidente o culto do amor romântico
lembre o culto do adultério. Isto porque o amor romântico jamais
se realiza no casamento. Pode haver uma imagem de casamento
idealizado, que jamais se realiza, porque a estória termina quando
o sujeito se casa. É o tal “e foram felizes para sempre...”
Então, é evidente que esse complexo de emoções que se deno-
mina de amor romântico, isso é uma bela de uma balela, que você
já deveria ter jogado pela janela, e tentando dar ao amor algum
outro fundamento que poderia ser, por exemplo, ético.
Eu entendo o amor como um ato voluntário, e que deve ser man-
tido. A paixão é só um estopim, e que pode passar. Se você ama
uma pessoa, você é bom para ela quando você gosta dela, e quando
você não gosta também. Você vê isso, por exemplo, na relação
pais-filhos. Você só é bom para o teu filho quando ele te agrada?
Só quando ele é bonitinho, simpático? Quando ele se comporta de
maneira repulsiva, você também deve ser bom para ele. Então, um
fundamento ético seria mais interessante do que esse fundamento
onı́rico.
Se é uma fundamento bioquı́mico melhor ainda, porque ele não

327
14 Preleção XIV

toma o conceito de fatalidade. Eu me ligo a uma pessoa, não por-


que ela tenha tais ou quais qualidades excelsas, ela pode até nem
prestar, mas é bioquı́mico, é genético, é uma fatalidade, que no
fundo um conceito dos homens. As pessoas se apaixonam umas
pelas outras por uma fatalidade. Se nós falamos de fatalidade,
falamos de genética, no fundo estamos falando da mesma coisa:
você não tem controle sobre o destino, assim como você não tem
controle se for genético. Então, se aparecer um cientista que diz
ter descoberto um fundamento bioquı́mico do amor, melhor ainda.
Essa seria a minha reação pessoal.
Assim, a matéria que foi publicada na revista não é destinada a
mim, porque eles começam o texto dizendo que o mesmo será de-
cepcionante quanto ao que você pensa do amor, que seus sonhos
irão acabar, etc. No entanto, se a matéria conseguiu obter como
resposta esse sentimento de decepção, então a retórica funcionou.
E quando a retórica funciona significa que você, não gostando do
que está dito na matéria, você a lê exatamente com os olhos com
o que se premeditou que você lesse. Ou seja, o objetivo foi intei-
ramente cumprido.
A retórica é você colocar uma questão com um certo prisma,
dando duas alternativas, fingindo que defende uma delas, porque
daı́ você sabe que optarão pela outra. Você escapa disso se você
sair dessa discussão: “o problema não é esse. O problema é outro”.
É óbvio que não existe, para mim, e não poderia existir jamais
dentro de tudo aquilo que discute o assunto, um conflito entre o
mundo encantado da paixão romântica e o mundo desencantado
da bioquı́mica. Este conflito é uma colocação auto- contraditória
na medida onde, se você diz que um determinado fenômeno bi-
oquı́mico causa um complexo de emoções, então o fenômeno bi-
oquı́mico certamente não é inimigo desse complexo de emoções,
porque é justamente a sua causa. Então, por quê optar? Porque é
justamente a bioquı́mica que está fazendo a mágica. O problema

328
14 Preleção XIV

não existe. É a mesma coisa que um sujeito dá um tiro no outro,


e você diz: “Isto aqui não foi a morte do fulano, mas foi o assas-
sinato dele pelo sicrano”, ou seja, não foi a morte de um ser hu-
mano, foi um disparo que causou a interrupção do funcionamento
de um determinado organismo. E aı́ você fica muito decepcionado:
“Então foi só isso?”
Compreenderam como um jogo de palavras recria uma emoção
no leitor? E as palavras respondem exatamente do jeito que foi
premeditado pelo autor do texto. A imprensa, de um modo geral, é
letal porque ela está tão habituada a fazer isso, que ela mesma não
percebe; o próprio redator não percebe a eficácia da falsificação
que está fazendo. Ele está combinando uma informação cientı́fica
com um fundo de valores culturais, psicológicos, etc, e escreve
dessa ou daquela maneira porque sabe da reação. Ou seja, ele
sabe como o ouvinte vai ouvi-lo.
Pergunto eu: ele sabe a colocação real dos problemas indepen-
dentemente do auditório a que ele se dirige? Não, isso não chega
a ser colocado, porque se fosse colocado ele não conseguiria es-
crever essa matéria. Senão, teria que ser um sujeito maquiavélico.
Um sujeito que estivesse consciente de que ele está moldando uma
questão cientı́fica para provocar uma determinada reação, despro-
positada, ele teria uma má consciência, e não conseguiria exercer
essa profissão sem ter que se drogar todo dia. O que não repre-
senta a maior parte dos casos. As pessoas exercem a sua função
com boa consciência. Isto significa uma mente que está moldada
à retórica ainda. Ele pensa em função da reação psicológica de
um leitor, o qual também lê em função da intenção psicológica do
redator. Mas, e a quı́mica, e o amor, onde ficam nisso? Não ficam.
Não foram examinados em nenhum momento. De modo que você
consegue, ao dizer a causa de alguma coisa, fazer com que o leitor
se veja entre duas alternativas, entre a causa e a coisa. Isto acon-
tece, como podem ver, inclusive com a TIME, considerada uma

329
14 Preleção XIV

boa publicação.
Então é assim: todos nós, num primeiro momento, somos idi-
otas porque já somos treinados para isso. Entretanto, você tem
que reverter essa situação. Você tem que se perguntar por quê fi-
cou chocado com o texto. O jornalismo é uma forma moderna da
retórica. Ele é um modo de escrever que é modulado segundo uma
expectativa de uma determinada reação, que na cabeça do jorna-
lista, às vezes, é a única possı́vel. Ele identifica aquela reação da-
quele público, com as alternativas reais oferecidas pelo problema.
Mas, isso não deixa de ser uma mágica. O perfil dos leitores de
uma revista é um esquema, uma constelação de reações prováveis.
E essa constelação de reações é tida como se fosse uma expressão
completa das alternativas reais existentes em quase cada problema.
Por exemplo, se você discute a Igreja Católica, você tem que ver
o problema atual da Igreja Católica em termos de conservador e
progressista. Ou você é um, ou é outro, ou está em dúvida. Por-
tanto, todo noticiário será feito dentro dessa clave, de modo que
as reações padronizadas possı́veis são tidas como as categorias se-
gundo as quais aquele problema pode ser visto. Tipos de reações
psicológicas se transformam em categorias lógicas. Muitas des-
sas linhas equivalem a posições publicamente assumidas e outras
não, são atitudes mais ou menos inconscientes, habituais, como
por exemplo, esta em torno do amor. Todas as pessoas definem
o amor como se fosse uma coisa mágica, inexplicável, logo, se
dizemos que ele é algo bioquı́mico, elas vão ficar decepcionadas.
Portanto, vamos trabalhar dentro dessa linha: a Ciência desencan-
tou o amor! Uns irão gostar, outros não gostarão, e outros ficarão
em dúvida. A discussão toda vai ser em torno disso.
Mas você pode recusar esse jogo. Uma das finalidades desse
curso é fazer com que vocês atendam a isso: você só tomar parte
do jogo, você só permitir determinadas reações pró, contra, ou de
dúvida, em face de uma determinada alternativa, quando você con-

330
14 Preleção XIV

corda com a montagem da alternativa. Neste caso, por exemplo,


eu discordo frontalmente; esta alternativa não existe. Porque se
existe um fenômeno e uma causa, você vai optar entre o fenômeno
e a causa. Como é que a explicação do fenômeno bioquı́mico po-
deria desencantar a constelação de sentimentos mágicos que esta
mesma reação bioquı́mica, segundo a matéria, provoca? É querer
procurar chifre na cabeça de cavalo. Levantar uma questão inexis-
tente.
Neste caso, o jornalismo presta um desserviço à elucidação do
problema. Ele não está fazendo um serviço ao patrão dele, ele está
fazendo um serviço dele, porque o patrão não importa. Isto está
na estrutura mesma da atividade jornalı́stica, não importando em
qual é o ponto onde ela se apóia. Se fosse uma revista do Mi-
nistério Público seria a mesma coisa. O jornalismo é isso. Se ele
for além disso, ele entra na discussão dialética, e sai da farsa. E
as alternativas que ele vai ter que colocar não serão os conflitos
que ele vai expressar, e as alternativas que ele irá colocar não cor-
responderão mais às diferentes expectativas públicas em torno do
assunto. Ou seja, ele terá que colocar um problema de maneira
que não coincida com as reações espontâneas das pessoas. Isto
significa que as pessoas terão que fazer um esforço para entender
a alternativa. As pessoas teriam que estudar a questão, e o jorna-
lismo foi feito para quem não quer estudar a questão. A retórica
sempre supõe uma passividade da parte do auditório, o qual pode
optar entre as alternativas dadas. Mas ele não pode inventar uma
terceira alternativa. Vejam, por exemplo, o caso do plebiscito: te-
mos parlamentarismo, república, monarquia, ou presidencialismo.
Suponha que você não queira nenhuma dessas alternativas, e diga
que quer, por exemplo, um sistema oligárquico-anarquista. Só que
não há esta alternativa na cédula. Ou então, você pode ser contra o
plebiscito, mas também não terá esta alternativa. Um sujeito que
fosse, por exemplo, adepto do movimento separatista diria que o

331
14 Preleção XIV

plebiscito não é mais do que um truque de uma federação agoni-


zante para se preservar, encobrindo, disfarçando o fenômeno das
diferenças regionais, que clamam por uma separação.
Quem manda na opinião pública nunca é o chefe da corrente
de opinião dominante, mas é o que monta a alternativa. Isto é uma
regra universal. Quem ganha mais não é o time vencedor, é o dono
do estádio. Quem ganha mais entre o leão e o domador é o dono do
circo. Quem ganha mais não é o boxeador, mas o empresário dele
— é sempre assim. Portanto, sempre que uma pessoa te convida
a tomar partido, a te pedir uma opinião, pode começar a descon-
fiar que ele já está “batendo a tua carteira”, porque ele colocou
duas alternativas e as pessoas participarão dentro da clave que ele
determinou. Acontece que essa clave é meramente subjetiva, cor-
responde às atitudes possı́veis dos indivı́duos, e não aos aspectos
reais do problema. A alternativa não é essa. Portanto, pouco im-
porta se vai dar isso ou aquilo, o que importa é a manutenção do
quadro de referência. Todo discurso retórico funciona dentro de
um quadro de referência pré-fabricado, e não pode mudá-lo.
A retórica só serve para favorecer um partido ou outro, dentro
dos efetivamente existentes, dentro daqueles que estão presentes.
Portanto, o raciocı́nio retórico nada tem a ver com a natureza do
problema, como por exemplo, o racismo: você é contra ou a favor?
E se eu disser assim: o racismo é evidentemente uma ideologia ra-
cista, e o combate ao racismo também é uma ideologia racista.
Isso é como eu vejo. Por exemplo, o combate ao racismo pres-
supõe que determinadas raças têm o direito à afirmação de seus
valores raciais e culturais, tradicionais, e outras não. Na ideologia
do anti-racismo não é bonito o preto que afirma a sua identidade
de preto? E o branco que afirma a sua identidade de branco? Não
pode? Mas quem foi que inventou essa coisa toda? Foi o preto?
Não, foi o branco europeu. Com que propósito? Aonde quer che-
gar com isso? Isso é uma transformação do mundo numa etapa de

332
14 Preleção XIV

colonialismo imperial — portanto racista –, para uma nova forma


de colonialismo do tipo transnacional. Você não pode manter,
por exemplo, uma situação imperial sem uma dose de racismo.
Se você monta um escritório de administração inglesa na África,
como é que cem mil ingleses vão mandar em quarenta milhões
de africanos, sem os ingleses se considerarem uma raça superior?
Mesmo que eles não sejam, eles terão que dizer que são, senão
eles não agüentam. O antigo colonialismo implicava no racismo
quase que necessariamente. Porém, e se o que você quer não é
mais isso? Você não quer mais tomar conta do território e manter
lá uma administração colonial. Você quer que o próprio coloni-
zado faça a administração, explorem os seus próprios compatrio-
tas e te mandem o dinheiro. Quem te impede de fazer isso? O
anti-racismo foi feito, não para beneficiar as raças oprimidas, mas
apenas para acabar com os antigos impérios coloniais e favorecer
um novo tipo de imperialismo, puramente capitalista. Portanto,
eu sou contra o racismo, e sou contra o anti-racismo também. Eu
acho que esse problema não existe realmente. Ele é inteiramente
absurdo.
Por outro lado, você vê que a definição das várias raças é
ambı́gua. Na África do Sul, por exemplo, tinha banheiro para
branco e para preto. Mas se você era japonês você entrava no
banheiro de branco, e se você era chinês, tinha que entrar no ba-
nheiro de preto. Que raio de racismo é esse? O racismo sempre foi
um pretexto. Ele não é o ponto. A ideologia racista é tão aparente,
tão fraca, que nunca deve ser levada a sério, porque tem alguma
coisa por trás. O conflito de raças não existe há muitos anos. Con-
flitos de religiões, de nações, de cultura, de interesses econômicos,
de territórios, etc, tudo isso existe. Mas, e de raça? Isto é só um
nome que você dá para enganar as pessoas e fazer com que elas
optem pelas alternativas que você colocou. É tudo pura retórica.
Você dizer que uma raça é superior que as outras, é racismo ou

333
14 Preleção XIV

não é? O sionismo, por exemplo, é uma ideologia racista porque


os judeus se consideram o povo eleito. O judeu não é um povo
profético? O quê é um profeta? Não é um sujeito que manda nos
outros? Ele não representa a palavra de Deus? E todo mundo tem
que obedecer. O judeu tem que mandar no mundo. Está escrito
na Bı́blia. Então, se está na religião dele, ele tem que se propor a
mandar no mundo. Mas isso não pode porque é racismo. Então,
vamos proibir o judeu de praticar a sua religião. Mas isso não pode
porque é contra a liberdade de crença. Então não tem solução! Se
o judeu tem o direito de crer e praticar a sua religião, ele tem o
direito de acreditar que ele é um povo superior. Se ele tem esse
direito, o chinês, por exemplo, também tem esse direito. Eles po-
dem se achar o centro do mundo e que o resto é periferia. Então,
cada povo é um povo racista ao seu modo. Isto está na natureza
das coisas. Não tem como abolir isso aı́.
Então, essas são alternativas que se colocam, visando um de-
terminado resultado que pouco ou nada tem a ver com a questão
colocada. Se você examinar melhor as coisas, compreender bem a
Teoria dos Quatro Discursos, nunca mais você toma partido nesse
tipo de discussão. Dadas duas alternativas, você sempre vai procu-
rar mudar o quadro, a não ser que aquelas alternativas correspon-
dam à diferença real, atenderem aos aspectos reais do problema,
às alternativas objetivas. Se você vê crianças discutindo para sa-
ber, por exemplo, se elas devem brincar disso ou daquilo, quantas
vezes a mãe já não decidiu que elas não vão brincar de coisa al-
guma porque está na hora de tomar banho, de almoçar, etc. Ou
seja, eles estão totalmente fora do problema, estão optando entre
coisas inexistentes e que não serão levadas à prática. A maior parte
das discussões públicas é assim. Quando as pessoas acabavam de
optar, já mudou todo o quadro, e já não é mais aquilo que estavam
discutindo.
Certa vez me pediram para saber se eu era contra ou à favor do

334
14 Preleção XIV

divórcio. Eu disse que era contra, mas com a ressalva de que eu era
contra, porque eu era contra o casamento. Este tipo de reação pa-
radoxal vira, às vezes, uma defesa da integridade e da inteligência.
Convidado a optar entre absurdos, o melhor é embolar tudo. Se
isto tudo aqui que estou falando, não é ensinado na faculdade de
Jornalismo, que os princı́pios da retórica são a mãe do Jornalismo,
você nunca vai entender o seu jornalismo. Você nunca será capaz
de colocar os assuntos acima do nı́vel do Jornalismo.
Por outro lado, como as pesquisas cientı́ficas, as correntes ci-
entı́ficas, só adquirem um relevo maior na medida onde alcançam
a imprensa, isto significa que é isto que produz a verdadeira
tragédia, quando os padrões de pensamento exigidos na imprensa
retroagem sobre as pesquisas cientı́ficas. Um sujeito que pesquisa
e é uma autoridade em Teologia, ele não tem autoridade em tudo o
mais — Polı́tica, Sociologia, Economia, etc. A tragédia acontece
quando o Jornalismo, portanto a retórica, acaba tomando conta de
tudo. Acaba moldando a cabeça de todos. Esse é o maior pro-
blema.
A idéia de que existe aqui uma cultura cientı́fica e filosófica de
que o Jornalismo apenas difunde, sem alterar, e não determinar o
conteúdo do que fala, só aumentando o volume de sua voz, essa
idéia é radicalmente falsa. Os quadros de alternativa propostos
pelo Jornalismo acabam, a longo prazo, determinando o própria
condução da pesquisa cientı́fica. Por exemplo, na seleção de prio-
ridades: que chefe de departamento tem a coragem de colocar to-
das as verbas em uma pesquisa que não tenha a menor repercussão
pública? Então, aı́ a imprensa determina. Em São Paulo houve
aquele famoso artigo de um jornal, que disse que a USP estava
decadente porque estava publicando poucos trabalhos cientı́ficos.
Eles encostaram o reitor na parede, e o reitor foi sincero, dizendo
que eles publicavam poucas coisas porque eles descobriam pou-
cas coisas. Você não pode obrigar as pesquisas cientı́ficas a darem

335
14 Preleção XIV

certo, não é? Assim, o reitor foi sincero, e todo mundo o criticou.
Isso significa que a obrigação de publicar x textos, de tanto em
tanto tempo, haja descobertas ou não, foi adotado nas universida-
des.
O Jornalismo é isso: o jornal tem que sair todo dia, haja notı́cia
ou não. É como o número de páginas determinado pelo que
se chama de espelho publicitário. Se você tem anúncios para x
páginas, você vai ter que preencher aquelas páginas, mesmo que
não tenha acontecido nada. Você que faça cair um avião, ponha
uma bomba num prédio, ou como dizia o comentarista polı́tico
que escrevia uma coluna dele às 10 horas da manhã e, depois, ao
longo do dia, ele se esforçava para que tudo acontecesse do jeito
que ele havia escrito. O Jornalismo é um conjunto de técnicas,
nem sempre a serviço de um poder. O Jornalismo já tem um poder
implı́cito. O problema não é que o lado ruim seja o conflito. O
problema é: quem montou o conflito?
Quando falo de um poder que dirige isso, eu não estou me re-
ferindo à classe dominante de um paı́s. Estou me referindo a uma
mentalidade dominante de uma época, sobre a qual, pouquı́ssimas
pessoas ou grupos, tem um controle direto. Por exemplo, para per-
ceber isto aqui que estou falando, quantas pessoas no Brasil per-
cebem também? Devem ser uma três ou quatro pessoas, as quais
estão profundamente conscientes. E desses, um ou dois trabalham
para, por exemplo, o FMI ou coisa do gênero. Dirigem a coisa
nesse sentido, mas é muito fácil para eles porque não se conhece
outras alternativas.
A direção total dos debates que marcam uma época é, de certo
modo, dirigida por uma classe dominante, mas não por toda a
classe dominante. É só a elite da elite. A CIA deve ter algu-
mas pessoas que estudam exatamente isto: como se montam os
conflitos. Isto é uma retórica, e a retórica é, de certo modo, uma
parte da ciência polı́tica ligada à arte da guerra, à Polemologia.

336
14 Preleção XIV

A classe dominante inteira não sabe disso. Somente a nata da


classe dominante. Não é realmente um processo dirigido. Não
tem uma direção coletiva, e às vezes basta um sujeito para mon-
tar uma coisa dessas. Uma vez montada a situação, ninguém sai
de dentro, porque ninguém conhece o conjunto. Por isso que os
efeitos históricos têm resultados que nunca são os equivalentes do
conflito em jogo. Na última guerra mundial, de um lado você ti-
nha os Estados Unidos, França, Inglaterra e URSS; e do outro lado,
você tinha a Alemanha, Itália e o Japão. Quem ganhou a guerra?
Os aliados. Entretanto, o que era a Alemanha antes da guerra?
Um paı́s na miséria total, arrasado. O que é a Alemanha depois da
guerra? A maior potência européia. O que era a Inglaterra antes da
guerra? Uma grande potência colonial. O que é a Inglaterra depois
da guerra? Um paı́s de segunda classe, que depende dos Estados
Unidos. Este foi o resultado final. Hegel já dizia que a essência
de uma coisa é aquilo no qual ela se tornou no fim. Portanto, para
saber o que estava em jogo, você tem que ver quem ganhou o jogo.
Quem ganhou o jogo não foi a parte que estava jogando, mas uma
outra parte. Havia uma outra guerra por trás. A guerra entre o
capitalismo norte-americano de um lado, e de outro lado as an-
tigas potências coloniais, foi ganha pelos Estados Unidos, com a
aliança da URSS. Portanto, a URSS foi fortalecida nesse processo,
fortaleceu os Estados Unidos, colocou-o numa posição muito mais
elevada do que antes, e em seguida, a URSS foi deglutida por esse
processo. Há quinze anos que eu digo que o comunismo é uma
etapa da história do capitalismo. O sumiço da URSS faz parte do
processo. O que existe aı́ é um conflito entre a aristocracia e uma
nova classe de capitalistas. Esse capitalismo mandou nos Estados
Unidos, e também na URSS. Com que dinheiro se fez a revolução
soviética? Com o dinheiro americano. A verdadeira guerra era
entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Se esse conflito fosse feito
abertamente as pessoas ficariam chocadas. Então, dá-se uma volta

337
14 Preleção XIV

para se chegar lá. Vejam, por exemplo, uma biografia recente do


Churchill, que condena o Churchill porque o livro diz que a Ingla-
terra poderia ter evitado a guerra, ter feito a paz em separado com a
Alemanha e deixado Hitler e Stálin brigando entre si. Havia muita
gente na Inglaterra que era a favor disso. Foram todos chamados
de nazistas e postos na cadeia. Por exemplo, foram os ingleses
que fizeram primeiro bombardeio de população civil na Segunda
Guerra Mundial, porque haviam pessoas na Inglaterra que não su-
portavam a idéia de não haver guerra, da paz em separado. Na
verdade, eram agentes americanos infiltrados, conscientes ou in-
conscientes.
Vejam, por exemplo, a biografia de Lord Mountbatten; ele era
vice-rei da Índia, era um socialista, tinha simpatia pela URSS.
Então, como é que você dá para esse sujeito autoridade sobre o
império colonial, se não fosse só para destruir? Na hora de des-
truir ele é nomeado para destruir. De outro lado, na biografia de
Roosevelt, você vê a nı́tida simpatia dele pelo lado soviético, e
contra a Inglaterra. Então, a verdadeira briga era essa.
Entretanto, isso vai aparecendo aos poucos, à medida que as
décadas vão se passando, e você vai lendo só depoimentos, as
histórias, etc. No começo você se choca, mas depois você se con-
vence: a trama toda era para desmontar a Inglaterra, em benefı́cio
aparente de duas grandes potências — Estados Unidos e URSS –,
porém, em benefı́cio de uma só: os Estados Unidos. Será que essa
desmontagem da URSS, aconteceu sozinha, da noite para o dia?
Será que não há 50 anos de trabalho da CIA lá dentro? Como é
possı́vel que todos aqueles sujeitos que estavam lá na URSS, de re-
pente, não são mais comunistas? Eles já não eram a mais de vinte
anos! Você acha que o Gorbatchev mudou de idéia assim, num
estalar de dedos? Ou, ao contrário, ele sempre esteve consciente
do que fez?
Na verdade, a URSS foi implodida. Mas, como é que você faz

338
14 Preleção XIV

isso? Você vai, gradativamente, colocando gente sua lá dentro. E


isso já estava dentro do plano. O processo inteiro de desmantela-
mento da URSS foi totalmente conduzido pelos americanos. Com
isso, os americanos estão começando agora o maior imperialismo
que já se viu na história. Vejam que atualmente eles têm o único
grande serviço secreto que existe no mundo. O negócio dos Esta-
dos Unidos é ter os maiores Exército, Marinha, Aviação e serviço
secreto do mundo. O resto é conversa fiada. O Japão, por exem-
plo, não tem hoje Exército para tomar Hong-Kong, então não há
problema eles terem dinheiro. Se for preciso, os americanos vão
lá e tomam o dinheiro. Não há perigo amarelo algum.
Nos Estados Unidos existe hoje as noções de império e nação.
O império é feito para governar o mundo, e tem que arcar com a
responsabilidade do mundo. Por outro lado, eles são uma nação,
com um povo desigual, problemas internos, etc. Essas duas noções
vivem em eterno conflito desde que o Estados Unidos existe. O
imperialismo americano começou em 1820 com seu avanço sobre
o extremo-oriente. Essa refrega que existe entre o Estados Uni-
dos e o Japão é muito antiga, e foram os Estados Unidos quem
começou. Vejam que os planos de imperialismo foram discutidos
durante cem anos. Não é algo que simplesmente começou na Pri-
meira Guerra Mundial. É como se você dissesse: a nação não quer,
mas o império quer. Vejam que o império está realizado hoje, com
Bush. Eu li uma nota na revista TIME, do secretário de assun-
tos estratégicos, onde ele diz que a polı́tica do Bill Clinton será
prosseguir a linha do Bush, de intervenções americanas, apoiado
na ONU. Essa é a maior descoberta dos últimos tempos. É o im-
perialismo que todos querem. A Guerra do Golfo é um exemplo.
Bush esperou que todos pedissem pela intervenção armada dos Es-
tados Unidos. A última vez que o mundo pediu pela intervenção
dos Estados Unidos foi na Segunda Guerra Mundial, mesmo assim
por um motivo que parecia óbvio para todos. Os Estados Unidos,

339
14 Preleção XIV

ou tem um presidente que serve ao império, ou um que serve à


nação. É sempre assim. Bush, por exemplo, é um novo Roosevelt,
que projeta os Estados Unidos no mundo. No entanto, a nação
“queima” o Bush.
Tudo isso é em função da retórica. A retórica pega as alterna-
tivas que estão à sua disposição, das quais você pode estar de um
lado, ou pode estar do outro, ou você pode estar em dúvida, ou
pode estar neutro. Só há essas quatro alternativas. Dentro delas
é que a retórica irá trabalhar. Num julgamento, por exemplo, ou
o sujeito é inocente, ou é culpado. Você só tem essas duas al-
ternativas. Você pode, por exemplo, contestar a competência do
tribunal para julgar aquilo, ou então você questiona o fundamento
do próprio processo. Daı́ não tem processo. Se você chegou a
formar um júri é porque o processo foi aceito, já está em anda-
mento, e só tem essas alternativas. Então, o negócio não é optar
dentro do processo. É ver se você aceita o processo ou não. Todo
juiz, quando recebe uma petição, um processo, antes dele julgar
a matéria, ele vai julgar se o processo é procedente ou não. Do
mesmo modo, o leitor teria direito a esse julgamento preliminar.
O julgamento, não no conteúdo da questão, mas a questão em si.
Quem monta o conflito pode mais do que qualquer dos dois lados
do conflito. Isto, por definição.
Por isso que toda e qualquer reação — sem exceção –, a qual-
quer coisa lida na imprensa, se você quer realmente passar para
um plano onde você exerça a sua liberdade interior e real de jul-
gamento, e não apenas a liberdade formal, externa, você tem que
dar um passo atrás. Você deve se perguntar: será que eu quero
me posicionar em face dessa questão? Muitas vezes a alternativa
é colocada em torno de coisas absurdas, e de escolhas que são ine-
xistentes, e portanto irrelevantes. Por exemplo, você gosta mais
dos sentimentos amorosos, ou da causa bioquı́mica que causa es-
ses sentimentos? Você escolhe a bola ou a esfera? E assim por

340
14 Preleção XIV

diante.
O mundo da retórica, da Polı́tica, da História, da influência hu-
mana sobre o homem, esse mundo é feito de adesões e repulsas,
qual seja, decisões da vontade: a vontade pró, e a vontade con-
tra. A decisão de como montar o quadro não é tomada na esfera
da retórica. Ela requer uma visão maior do que a visão interna
do conflito. Assim, quem monta o conflito, não o monta retorica-
mente. E se você quer entender realmente o que está se passando,
você tem que transcender o quadro da opção retórica e se colocar
acima dela. Para se colocar acima, você tem uma série de pro-
cedimentos dialéticos. Nós vamos ensinar isso mais tarde, mas
também tem as próprias recomendações do senso comum. Entre
as quais, esta velha regra de que “pelos frutos os conhecereis”. Ou
seja, o vencedor não está necessariamente entre os partidos que
estavam em luta.
Por outro lado, hoje se sabe que existe o famoso geopolı́tico
Carl Ritter(?), que foi um dos grandes geógrafos da humanidade,
e Ritter delineou para Alemanha um projeto de três guerras mun-
diais, nas quais ela perderia todas, e cada vez que perdesse, sairia
mais rica. O plano de Ritter está sendo cumprido à risca. A ter-
ceira guerra planejada não envolveria diretamente a Alemanha; se
travava no Oriente Médio. Isto é um documento arquivado no Mu-
seu de Berlim. Está lá, é só ler. Eu não sei, de fato, até que ponto
esse trabalho do Ritter influenciou os fatos. Não sei em que me-
dida essa idéia pode ter sido causa de eventos. De qualquer modo,
os grandes conflitos que se travam na História, os reais conflitos,
nunca estão equacionados do jeito que parecem as guerras do dia.
Por trás da guerra, existe uma outra guerra, que é a que será efeti-
vamente vencida e que você só entende no fim. Você vê isso por
quem ganhou no fim. Isso é um critério infalı́vel, por isso mesmo
que o estudo da História contemporânea, a do dia, é muito difı́cil.
Por isso mesmo é que eu fiquei chocado com a estória do vesti-

341
14 Preleção XIV

bular de História da Universidade de Campinas, que só fazia per-


guntas sobre a História atual. Sobre esses eventos atuais nós não
podemos ter uma compreensão profunda, pelo fato de que eles não
desencadearam suas conseqüências, então nós não sabemos quem
esses acontecimentos são. Você precisaria esperar que o discurso
se complete para ver aonde quer chegar.
Eu só acredito numa História com um certo recuo de uns qua-
renta, ou cinqüenta anos, pelo menos. a Segunda Guerra Mun-
dial, hoje, já se pode ter uma certeza cientı́fica do que se tratou,
do que realmente estava em jogo. O que aconteceu depois disso
ainda vai demorar muito tempo. Você pode tentar articular a coisa
de alguma maneira e tomar uma posição, mas sempre provisória.
Vejam, por exemplo, o filme JFK, sobre o assassinato do Ken-
nedy, onde ao assistir o filme você fica horrorizado porque o com-
plexo industrial militar americano quer matar o jovem idealista,
democrático, etc. Todos colocam aquilo nestes termos. Não há no
mundo, ninguém que desaprove o Kennedy frontalmente. O fato é
que ele tinha um projeto de acabar com a CIA. Suponha que ele ti-
vesse acabado realmente. Desmonta-se a CIA: o quê iria acontecer
depois? Iam montar uma CPI, pior do que a que montaram para o
Collor. Iam acabar com o Kennedy. Seria pior do que morrer pre-
maturamente. Ele seria totalmente enlameado em sua reputação,
e ter a sua ação histórica totalmente apagada. Estas eram as ver-
dadeiras alternativas: ou nós o matamos, fisicamente, ou nós o
matamos, historicamente. Não há outra alternativa, tem que optar
por uma das duas. A terceira alternativa seria o suicı́dio nacional,
pois o paı́s desmonta o se serviço secreto e se mata. Desmon-
tar o serviço secreto é absolutamente impensável. Quem estava
realmente interessado em matar o Kennedy não era o complexo
industrial militar americano. Ele estava interessado, remotamente,
porque ele seria prejudicado a longo prazo. Mas a curto prazo o
prejuı́zo maior seria da CIA. O risco era imediato. O prejuı́zo para

342
14 Preleção XIV

o complexo industrial militar era uma hipótese mais a longo prazo.


A tese do filme está correta, foi uma conspiração e mataram o
sujeito. Até aı́ tudo bem. No entanto, as causas remotas são me-
ramente conjecturais, e elas são totalmente desnecessárias, porque
se eu sou o diretor da CIA, e vão desmontar o meu departamento,
tudo o que nós fizemos aqui para criar uma barragem contra o co-
munismo vai ser colocado em perigo, e além do mais nós vamos
perder o nosso emprego, e o que nós iremos fazer? Só sei fazer
isto aqui. Então eu tomo a iniciativa de matar o sujeito. O filme
vai longe demais na especulação das causas.
Uma coisa que realmente chama a atenção e que é a mais esqui-
sita de todas é a seguinte: o famoso relatório Warren, era de autoria
de um sujeito quase esquerdista. Warren foi um sujeito que mais
abriu a legislação americana para todas as reformas, todas as aber-
turas de direitos humanos, algumas até estapafúrdias. Então, como
é que esse sujeito, de repente, se transforma num defensor do com-
plexo industrial militar, e tenta ocultar a conspiração em torno do
assassinato? Um sujeito que durante setenta anos age num certo
sentido, nós esperamos que ele continue a agir da mesma forma.
Eu acho que esse é mais mistério do que o próprio assassinato. É
como se, de repente, você visse o Lula querendo impedir a todo
custo a investigação a respeito da corrupção do Quércia. Não seria
estranho? Até o fim Warren dizia que o assassinato foi feito por
um indivı́duo isolado, e que não havia conspiração alguma. Isso
é para vocês verem que não dá para ter o quadro inteiro de uma
situação histórica.
Eu acho que hoje em dia vale a pena estudar a Segunda Guerra
Mundial. As pessoas todas que estiveram lá já contaram a sua
história, e é impossı́vel supor uma conspiração universal da men-
tira, no qual todas as pessoas, de todos os lados, grandes e pe-
quenas, todos escondem a verdade. Sempre alguém conta a
história verdadeira. Essa estória de que a Inglaterra bombardeou a

343
14 Preleção XIV

população civil em primeiro lugar, ela é abafada, mas um dia um


sujeito conta a verdade, escreve um livro. Sempre a verdade acaba
aparecendo, mesmo que a longo prazo. O então Primeiro-Ministro
Chamberlain, que assinou o tratado de paz com os alemães, re-
conhecendo a invasão de parte da Tchecoslováquia, na época foi
considerado um “banana”. Hoje, se analisarmos bem, talvez não o
fosse realmente.
Eu sou contra qualquer conspiração sinistra, conspiratória, ma-
quiavélica, feita pelo Mal, ao longo da História. Na verdade é
simplesmente a fragilidade humana. As pessoas colocadas em al-
tas posições também são assim. Então, não precisa ninguém cons-
pirar. A própria somatória das várias burrices produz um resultado
desses. Ninguém pode dizer que está isento disso. Podemos dizer
que estamos isentos disso na medida em que você não tem a res-
ponsabilidade polı́tica, não tem o poder, para se poder examinar
as coisas mais ou menos de longe, com serenidade. Quando você
lê uma notı́cia dessas, não se trata de você ser contra a imprensa,
porque eles estão fazendo o serviço deles, que é a retórica, ou o
jornalismo. Então, eles agem como jornalistas, e você como estu-
dante de Filosofia. É o Dharma. É você cumprir com o seu dever,
que é intransferı́vel, diferente do dever do outro. O Dharma deles
é tocar lenha na fogueira, e o seu não é este, senão você se queima.
Certamente, o sujeito que escreveu tudo isso, não terá gastado
meses, ou anos, estudando o que você está estudando, que é a
diferença entre um discurso retórico e um discurso dialético. Ele
não tem sequer essa condição de fazer essa distinção, mas você
tem. É você quem tem a obrigação de não ser enganado, e não ele
de parar de escrever retoricamente. Posições polêmicas do tipo “A
imprensa é corrupta”, “conspiração comunista”, não é realmente o
nosso negócio, embora, às vezes, eu fale numa linguagem enfática,
que pareça estar jogando tomate, mas o intuito não é esse. O in-
tuito é puxar para cima e tentar ver as coisas de uma maneira séria,

344
14 Preleção XIV

de modo que quando você chega a tomar uma posição, não é mais
uma opção, mas é quase uma imposição dos fatos.
Um ideal filosófico seria você tomar todas as posições como
posições definitivas ditadas pela ordem real das coisas, e reduzir
ao mı́nimo as tomadas de posição subjetivas. Você não defenderá
que 2 + 2 = 4 pelos mesmos modos e pelas mesmas razões do su-
jeito que defende o Lula ou o Maluf. Você pode defender até mais
serenamente, mas com uma certeza muito mais embasada. Às ve-
zes você nem precisa defender, você apenas diz que 2 + 2 = 4;
se você não acredita, aja como 2 + 2 = 4. Você não precisa
persuadir as pessoas. É a diferença entre persuadir e convencer.
Por quê convencer não é vencer? Suadir, quer dizer você influen-
ciar, você empurrar. E o prefixo per, significa em volta. Quando
você persuade, você cerca o sujeito, você o domina. Convencer
é vencer juntos. Os dois admitem a mesma coisa. Numa batalha
dialética não há vencedor. Os dois estão procurando a verdade.
Portanto, na colaboração dialética não interessa quem está com a
tese certa, pois o que está com a tese errada também está ajudando.
Sempre alguma tese vai estar errada, outra vai estar certa, ou uma
combinação das duas, ou a exclusão das duas. O que interessa é o
resultado.
Na discussão dialética, por exemplo, é importante que você bus-
que, para uma tese que você não aceita, tantos argumentos quanto
você busca para a tese que você aceita. É preciso você aprender a
defender o contrário do que você acredita, senão não irá funcionar.
A dialética acontece fechando as alternativas, até que sobra uma
que não tem saı́da, e tem que ser por lá, goste você ou não.
Na retórica é o contrário; o que interessa é você puxar argu-
mentos decisivos em favor da sua tese, e esconder o argumento
contrário. Se for possı́vel não chegar a discuti-los, melhor ainda.
a nossa tese já é pressuposta, não como certa, porém como vence-
dora e como já aceita. Assim como, por exemplo, todos os candi-

345
14 Preleção XIV

datos a um cargo eletivo, todos se declaram confiantes na vitória,


embora as pesquisas de opinião lhe dêem 3% dos votos. Eles se
comportam como se já estivessem eleitos. Isso faz parte do jogo.
Aquele que conseguir representar o seu papel com suficiente fir-
meza, talvez consiga persuadir os outros. Você vota num sujeito
porque acha que ele já ganhou. Só que ele ganha justamente por-
que você votou nele. Você faz o efeito parecer a causa.
Por outro lado, abaixo da persuasão retórica, você ainda vai
encontrar procedimentos mais subterrâneos ainda. Esse negócio
de programação neurolinguı́stica, sai fora do campo da persuasão
porque ela nada tem a ver com o assunto. Ela é a criação de uma
disposição favorável. Quando um sujeito fala uma coisa da qual
você concorda, e expressa o seu sentimento ı́ntimo, você se sente
bem, não é? Por exemplo, quando falo mal do seu inimigo; ou
quando você se divorcia, e eu dou a maior força para a sua de-
cisão, etc. Você se sente bem e apoiado, mas por quê? Porque
o interlocutor concorda com você. Mas, e se houvesse um jeito
de fazer você já se sentir bem antes, independentemente do que o
interlocutor vai falar? Mesmo que o que o interlocutor fale seja
totalmente diferente do que você pensa, como você já se está se
sentindo bem, você pensa que é a mesma coisa que ele disse. Por
exemplo, se você chega para um sujeito católico e diz que Jesus
Cristo não é Deus. Ele jamais pode se sentir bem de ouvir isso, não
é? Ele só se sentirá bem se você confirmar a tese dele, criar uma
harmonia entre os dois. Concordância são os corações que batem
juntos, e discordância são os corações que batem descompassada-
mente, um em relação ao outro. A concordância cria um senti-
mento agradável. Sossega os corações. E se você conseguisse ob-
ter esse sossego independentemente do conteúdo eidético da tese
ser contrária ao que você pensa? Você aprovaria a tese contrária
como se fosse sua, sem perceber que existe uma discordância. Isto
já não é mais retórica, mas é sacanagem, e das grandes. É uma

346
14 Preleção XIV

forma de hipnose. Ele concorda com o contrário do que ele pensa


porque ele não percebe que é o contrário. É como se uma pes-
soa assinasse um contrato de aceitação de um cartão de crédito,
acreditando que esse documento que ele está assinando é uma re-
cisão de contrato. É claro que depois ele pode perceber, mas aı́
pode ser tarde. Na hora que você está assinando aquilo, você se
sente como você se sentiria caso estivesse fazendo exatamente o
que você quer. Você pode, por exemplo, fazer um sujeito apanhar
e sentir que bateu.
Isto não chega a ser uma persuasão retórica porque está total-
mente desligado de quaisquer opções conscientes. A retórica é
uma opção consciente dentro de um quadro pré-determinado, que
nem sempre é legitimo, mas você conhece as opções. A diferença
entre a retórica e a programação neurolinguı́stica é que, na retórica
você vota no Collor porque acredita que ele é o melhor, e na
programação neurolinguı́stica você vota no Collor acreditando que
está votando no Lula. Você enxerga Lula onde está escrito Collor.
Isto baixa cada vez mais o grau de liberdade de consciência. Na
retórica existe uma liberdade externa; não existe uma liberdade de
consciência, mas uma liberdade de expressão. Você dizer o que
quiser, é uma coisa; você ser capaz de pensar livremente, é outra.
Dentro da retórica ainda se resguarda a liberdade de expressão,
perdendo a liberdade de consciência. No caso da programação
neurolinguı́stica, hipnose, propaganda subliminar, etc, o que se
corta é a liberdade da própria consciência. Você enxerga errado.
Parece uma persuasão retórica aumentada, mas é completamente
diferente.
Entretanto, não faz sentido nós estudarmos essas distinções do
Husserl, todo o discurso lógico, se no dia-a-dia nós perdemos o
uso dessas distinções. Se você conhecer bem as propriedades dos
Quatro Discursos, você conhece bem as razões das suas adesões
ou repulsas. Um efeito prático que este curso devia ter seria este,

347
14 Preleção XIV

mas isto não depende de mim. Eu sou posso dar a teoria. O efeito
prático é você duvidar, não do que você lê, não da revista, não
se trata de você desconfiar deles, mas desconfiar de você mesmo.
Você achar que a imprensa toda é mentirosa não te liberta da in-
fluência da imprensa, ao contrário, noventa por cento dos artigos
já foram escritos na previsão, e na expectativa de serem lidos por
pessoas que duvidam da imprensa, e que por isso mesmo ficarão,
às vezes, um pouco desorientadas, sem saber se acreditam ou não,
não sabe o que fazer perante as alternativas. Não é tendo uma ati-
tude de distanciamento em relação aos órgãos de imprensa,ou ao
conteúdo do que está sendo lido, que você se libertará, mas você
tendo um distanciamento em relação à sua reação espontânea. É
através dela que eles te pegam. Por exemplo, quando você entra
no mato, para se prevenir contra picada de serpente você não põe
uma mordaça na boca de cada serpente, mas você põe uma bota
na sua perna. Já pensaram que trabalho enorme seria você ter que
fiscalizar a revista Veja, Time, Isto É, Manchete, etc? Fiscalize so-
mente a você! Se você estiver livre de você, da sua própria reação
retórico- emotiva num primeiro instante, você estará livre de todos
eles ao mesmo tempo, sem precisar pensar mal deles. Não se trata
de você se defender de cada inimigo em particular, mas você ze-
lar pela sua segurança em geral. O principal inimigo da liberdade
de consciência não é externo absolutamente. Não há quem possa,
desde fora, violar a sua liberdade de consciência, a não ser pelo
emprego da agressão fı́sica mais extrema. Mesmo assim há quem
resista a essas agressões fı́sicas.
Então, o seu inimigo é você mesmo, é a sua vontade de aderir
a alguma coisa que você gosta, de se sentir participante, é a von-
tade de dar palpite, de ter e manifestar opinião, vontade de exercer
a maldita da liberdade de expressão, em troca da perda da liber-
dade de consciência. É melhor você ficar quieto, guardar a tua
opinião para si, mas estar pensando livremente por dentro, do que

348
14 Preleção XIV

você abrir a boca, falar para as multidões e ser ouvido, sem ter li-
berdade de pensamento interno. Você tem um liberdade aparente,
mas perdeu a real.
O ideal da liberdade humana é consubstancial à própria
definição do ser humano. Se o ser humano não é livre, então ele é
apenas um bicho. Um cachorro está preso ao seu conjunto de re-
flexos condicionados, não porque alguém o condiciona, mas por-
que ele é apenas um cachorro. Ou seja, você só pode escravizá-lo
desde fora, tomando como base a escravidão interna dele. O in-
divı́duo que estivesse fundamentalmente decidido a não obedecer
um tirano, e que julgasse que a sua liberdade vale mais do que a
vida, ele morre mas não é escravizado.
Por isso que o propósito deste curso não é propriamente defen-
der contra a influência, o falatório da sociedade em torno, mas
contra você mesmo, de certo modo. Todos nós temos uma face
fraca, e esta face deseja ser amada, deseja se sentir protegida, de-
seja se sentir aceita, ela tem um monte de reivindicações afetivas,
que no seu próprio nı́vel são legı́timas até certo ponto. Porém,
elas são legı́timas quando elas buscam o atendimento real e con-
creto. Por exemplo, se eu desejo ser amado, eu tenho que procurar
uma pessoa que me ame. Para quê eu preciso entrar num partido
polı́tico? Para aderir a uma corrente de opinião, para me sentir
amado. Isto é um atendimento simbólico. É irreal, na verdade. Eu
não vou receber o feedback. Se eu torço por um time, eu lhe ga-
ranto que o time não torce por mim. Eu me sento amado porque eu
sou um igual, mas eu estou sendo um pateta, porque estou amando
sem ser amado.
As reivindicações afetivas devem ser atendidas no plano real
delas, que é o plano da interrelação pessoal. O próprio desejo
de opinar é um desejo de atrair atenção para você. Mas se você
quer atenção, por quê você não busca atenção realmente? você
tem certeza de que quando está opinando as pessoas estão pres-

349
14 Preleção XIV

tando atenção? Ou você é só mais um que está dando opinião? Os


desejos afetivos do homem devem ser atendidos da maneira mais
direta, simples e concreta. Desejo de carinho fı́sico deve ser aten-
dido com carinho fı́sico; desejo de atenção deve ser atendido com
a atenção de uma ou duas pessoas concretas, cujo olhar você possa
ver. Não a massa anônima que, de fato, não presta a atenção em
você concretamente, mas na imagem que ela fez de você, que pode
ser bem diferente de você. Sua mulher, seu pai, sua mãe, seus fi-
lhos, estes prestam atenção em você, e daı́ você fica satisfeito, e
não quer mais atenção, a não ser que você tenha algo real a dizer.
Não é a questão de prestar atenção em você, mas na coisa que está
sendo dita.
É por estes desejos que o sujeito é pego e puxado, como se
fosse por um cabestro, conduzido como se fosse o burro atrás da
cenoura. Também é assim que se jogam as pessoas umas contra
as outras. Eu me lembro quando li pela primeira vez um livro de
Astrologia, de Adolfo Weiss, a quadradura de Saturno com o Sol:
pessoa cruel, vingativa e desumana. Então, eu disse: “Ah! é por
isso que eu tenho sofrido desse jeito!...” O que você quer é uma
explicação, e a primeira que vem , que lhe pareça convincente,
você aceita. Por exemplo, dentro do tema do racismo, o sujeito que
é composto de várias raças, ele tem o direito de aderir a qualquer
uma delas livremente, ou ele tem o direito de ficar de fora de todas
elas, e exigir um tratamento diferenciado? Por quê ele deveria
ser carimbado como pertencente a essa ou aquela raça? Quem
quer isso são as duas raças, e não ele. você tem todo o direito
de permanecer fora e acima do debate racial. Ou, entrar nele se
quiser, sabendo que é uma opção arbitrária. Você não pertence
a uma raça, mas você apenas decidiu pertencer a ela, como você
adere a uma nacionalidade.
Se esse propósito prático-moral de atitude não é atendido, os
outros não serão. Não existe moral geral. Moral de visa à conduta

350
14 Preleção XIV

do indivı́duo. Só existe uma moral, que é a do indivı́duo para com


a sua própria consciência. O resto não existe. Não tem sentido
você tomar uma posição quanto ao que você acha que a sociedade
inteira deve fazer moralmente. A moral não foi feita para isso. Ela
foi feita para orientar a sua conduta. Você é contra a pornografia?
Afaste-se dela. Quanto ao seu filho pequeno, tenha autoridade
sobre ele para mantê-lo afastado dela. E quanto ao seu vizinho?
Sobre ele você não tem poder nenhum.
Nada pode ser imoral em si mesmo. Tudo é relativo a quem fez,
e por quê fez. A pessoa que necessita, de certo modo, de viver um
delı́rio transsexual para ela reconquistar um pouquinho de sentido
vital dentro de uma existência puramente mecânica e tediosa que
ela leva, a pessoa tem o direito absoluto a isso. Não se pode ser
contra uma coisa dessas. Não faz o menor sentido. O show da
Madonna, um strip-tease pornô, eu sou contra, e não vou lá, nem
que me paguem, e acho que as pessoas deveriam ser educadas para
elas nunca precisarem de ir a esses shows. É só isso. Mas, dizer
que esses shows são imorais...
Você pode até proibir, por eles serem inconvenientes, pertur-
barem a sociedade, mas não por eles serem imorais. Não existe
imoralidade intrı́nseca, até porque essa expressão é quase autocon-
traditória. Só é intrinsecamente imoral aquilo que viola a natureza
das coisas, ou a natureza humana. Aquilo que reduz o homem a
um bicho é intrinsecamente imoral. Aquilo que tira a sua liber-
dade de pensamento, de consciência, é intrinsecamente imoral. A
pornografia se torna imoral a partir do instante onde ela adquire
direitos e status. Eu não acho imoral um show pornográfico, mas
eu acho horrivelmente imoral quando o sujeito, que é garoto de
programa, por exemplo, dá entrevistas como se fosse um médico,
um fonoaudiólogo, ou filósofo, e todos acham que seja uma pro-
fissão respeitável. Isso se torna imoral porque viola a sua liberdade
de julgamento, confunde os dados. Na hora que você acha que o

351
14 Preleção XIV

sujeito, ao alugar o corpo para atender a fantasia de alguém, aos


quais, no fundo, ele detesta e despreza, tenha sua atividade clas-
sificada como uma profissão como outra qualquer, você apagou a
noção de profissão. Isto não é propriamente uma profissão, mas
uma outra coisa. Por exemplo, vamos supor que todas as pessoas
se dispusessem a fazer o que fazem os garotos de programa nas
suas respectivas camas, acabaria a profissão. Ela não é uma pro-
fissão porque ela não requer nenhuma habilidade e nenhum conhe-
cimento. Ela requer apenas uma capacidade orgástica, e às vezes
nem isso. Não tem sentido o sujeito ser pago para ele exercer uma
função puramente orgânica. Levar isto a sério, e tornar isto imoral,
é inverter a ordem do mundo. A base de todo e qualquer princı́pio
moral é a liberdade humana, exercida por um indivı́duo. Ou seja,
ele tentar julgar livremente as coisas.
Eu tenho que conseguir pensar por cima dos meus medos, dos
meus desejos, dos meus olhos, e eu tenho um direito humano fun-
damental, que é o direito à verdade objetiva. Isto é mais importante
do que o direito à expressão. É o tipo de moral que se dirige a cada
um, é você com você mesmo. Não há quem possa dizer para você,
de fora, para você o que é moral, o que é imoral. E eu acredito
que exista uma espécie de lei moral universal, mas ela só existe
para quem a conhece, e o conhecimento dela somente se revelará
na efetiva experiência interior: verdade conhecida, verdade obe-
decida. Esta moral se tornará obrigatória para você quando você a
enxergar. Antes disso você é uma criança.
Nós podemos te impedir de fazer certas coisas, não porque se-
jam imorais, mas sim porque nos incomoda. Neste caso, já não é
Moral, é Direito, é jurı́dico.
Para vocês, a partir do momento em que esses conceitos são
adquiridos, começa a se tornar uma espécie de obrigação progres-
siva. Estar consciente disso, e jamais cair dentro dessas armadi-
lhas. Claro que durante uns dez ou quinze anos você poderá cair,

352
14 Preleção XIV

mas a pergunta é: quero esta liberdade interior ou não? Esta li-
berdade interior é a liberdade em relação ao que os antigos cha-
mavam de “as paixões da alma”: medo, ódio, desejo, preconceito,
etc. Aos seus preconceitos, e não aos dos outros. Um preconceito
é um conceito feito antes do conhecimento da coisa. você nem
ouve o sujeito falar e você já o enquadra e fica contra. É terrı́vel
você viver preso a esse tipo de coisa.

353
15 Preleção XV
13 de fevereiro de 1993

Capı́tulo II
DISCIPLINAS TEORÉTICAS
COMO FUNDAMENTO DAS NORAMTIVAS
13. A discussão em torno ao caráter prático da lógica.
Uma lógica prática é um imprescindı́vel postulado de todas as
ciências. Kant mesmo adepto, por outro lado, da idéia de uma
lógica pura, falou de uma lógica aplicada.
A questão na verdade discutida em Kant diz respeito a se a
definição da lógica como uma arte toca ao seu caráter essencial.
O que se discute é se o ponto de vista prático é o único em que
se funda o direito da lógica a ser considerada uma disciplina ci-
entı́fica.
O essencial na concepção de Kant não consiste em negar o
caráter prático da lógica, mas em considerar possı́vel a lógica
como ciência plenamente autônoma, nova e puramente teorética,
com caráter de disciplina a priori e puramente demonstrativa.
Segundo a forma predominante da teoria contrária (à de Kant), a
redução da lógica ao seu conteúdo teorético conduz a proposições
psicológicas e eventualmente gramaticais, isto é, a pequenos seto-
res de ciências distintas e empı́ricas.
Vamos pegar um silogismo, por exemplo, “todo homem é mor-
tal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”, e vocês vão tentar

354
15 Preleção XV

averiguar qual é o princı́pio do tipo lógico, mas sobretudo do tipo


psicológico, sobre o qual você acredita na conclusão.
Seja o silogismo genérico: “Todo A é B; todo B é C; logo A
é C”. Nós estamos acostumados a raciocinar assim, logicamente,
não é? O que nós estamos querendo saber é se existe algum fun-
damento psicológico daquele resultado; se esse fundamento psi-
cológico tem alguma relação com a estrutura lógica do raciocı́nio.
Ou seja, nós estamos querendo ter a crença nesse silogismo do
ponto de vista lógico e do ponto de vista psicológico. Então você
tem que perguntar: por quê eu acredito nessa conclusão?
O que me impele a crer, e se a coisa que me impele a crer nisso é
igual, ou é a mesma coisa que o nexo lógico entre o todo e a parte?
Mas, o fundamento lógico dessa crença ainda não foi dado. Porém,
é esse fundamento lógico, para nós acreditarmos nele? Qual é a
freqüência de eventos psicológicos que se passam dentro de você
que te levam a admitir que aquilo que se passam com o todo, deve
se passar com a parte? Não quero saber o fundamento, mas qual é
a causa disso.
Uma primeira hipótese seria porque você precisa acreditar, por-
que você não tem escapatória. Você é levado por uma necessidade
externa. Porém, você diz que se não fosse assim você ficaria louco.
Mas o que te impede de ficar louco? Por quê você não pode ficar
louco? E por quê você é obrigado a reconhecer a necessidade ex-
terna? Por quê você não pode negar? Você pode efetivamente
negar, ou não pode? Você nunca fez nada que estivesse acima da
tua possibilidade real? Por exemplo, você nunca comprou algo
que você não pudesse pagar? Ou nunca tentou pegar um objeto
pesado, que tua força não aguentasse? Você nunca negou a tua
necessidade externa?
Se a sua crença numa conseqüência lógica fosse derivada da
constatação de uma necessidade externa, essa crença jamais se-
ria necessária, mas seria contingente. Você poderia acreditar ou

355
15 Preleção XV

não. O elo da necessidade lógica não poderia surgir da sua mente


pela experiência que você tem de uma necessidade externa. Em
geral, você entende a necessidade externa porque você já acre-
dita na necessidade lógica. Um indivı́duo é levado a crer na con-
seqüência lógica pela constatação de uma necessidade externa;
subentende-se de uma necessidade repetida, de uma experiência
repetida. Porém, nada te impede de proclamar como possı́vel
aquilo que a necessidade externa declara como impossı́vel.
A esta objeção você poderia dizer: eu realmente posso violar
a necessidade externa, mas não quero fazê-la porque eu quero
preservar a minha integridade fı́sica, a integridade do organismo.
Isto significa que eu tenho uma necessidade lógica impelido por
um senso de autoconservação. Toda idéia que nós temos sobre
qualquer conversa, sempre corresponde às teorias que já estão
em circulação. Mas, ainda poderı́amos perguntar: para que você
tem que manter a sua integridade? Não há pessoas que se auto-
destroem?
Então você vê que a conservação da integridade não é uma ne-
cessidade. Isto, em si, não é uma razão suficiente para você ad-
mitir a conseqüência lógica. Me parece que devem haver razões
mais fortes. Vamos ver primeiro as razões de ordem psicológica
para ver se por ela nós chegamos a alguma coisa.
Se você dissesse que você acredita na conseqüência lógica pela
constatação de uma necessidade externa, e que por outro lado você
admite a necessidade externa por um senso de auto-conservação,
veja onde você chegaria: o senso de auto- conservação está pre-
sente em umas pessoas e ausente em outras. Isto significa que o re-
conhecimento de uma necessidade externa estaria na dependência
de uma contingência pessoal. Em última análise, você acredita-
ria na lógica dependendo da contingência pessoal. Significa que
depende de uma mera casualidade. Por exemplo, uma criança
pequena tem um senso de auto-conservação extremamente defi-

356
15 Preleção XV

ciente. As crianças vivem fazendo coisas perigosas. Elas não têm


medo das coisas que deveriam ter. Ao passo que, no caso de um
animal, como disse São Tomás de Aquino, “a ovelha que jamais
viu um lobo, a primeira vez que vê, ela já sabe que ele não é coisa
boa”. Num animal você admitiria um instinto de auto-conservação
como uma coisa que funciona quase automaticamente. Mas, num
ser humano, não se trata de um instinto de auto-conservação, e
sim da transmissão de um ato cultural, de uma norma de auto-
conservação, de uma espécie de dever de auto-conservação. Isto
significa que você reprime na criança não só o que ela faz contra
os outros, mas também pelo que ela faz contra si mesma. Para
que a auto-conservação funcione é preciso que alguém ensine
esse negócio. Por exemplo, o mais elementar instinto de auto-
conservação nos impeliria a manter o nosso corpo limpo. Para
a criança tomar banho, na maior parte dos casos, você tem que
obrigá-la a tomar banho. Ás vezes, temos que forçar a criança a
comer!
Se o fundamento da crença na conseqüência lógica residisse
no reconhecimento da necessidade externa, ou experiência repe-
tida, e se a validade dessa experiência, por sua vez, dependesse de
uma mera contingência. Não pode ser por isso que você acredita
na conseqüência lógica. Deve ser por outra coisa. Se o próprio
senso de auto-conservação pode ser inculcado no ser humano pela
educação, sob a forma de um desejo de auto-conservação, quem
sabe a crença na conseqüência lógica também não é inculcada,
como uma espécie de desejo que você tem? Seria uma espécie
de condicionamento, para criar uma espécie de senso de dever, de
obrigação. Seria uma outra hipótese.
Então, a primeira hipótese é de que as categorias lógicas surgem
de experiências repetidas. Esta hipótese pode também ser refutada
da seguinte maneira: se você não tem idéia do princı́pio lógico,
como é que você sabe que duas experiências iguais, são iguais?

357
15 Preleção XV

Elas deverão se repetir quantas vezes? Ou você tem o senso da


identidade, previamente à experiência, ou então a experiência re-
petida não lhe parecerá repetida.
A segunda hipótese seria a do biologismo — a tese do Jean
Piaget. O senso de integridade lógica, no fundo, é o mesmo senso
de integridade do organismo.
O quê esses dois sensos têm algo a ver um com o outro? Mas
não que o senso de integridade fı́sica, de auto- conservação, possa
servir de fundamento lógico, ou psicológico, da crença na lógica.
Que ele não é um princı́pio lógico, é mais do que evidente, porque
a própria idéia de auto-conservação, no momento que você fala
auto, já supõe a relação todo-parte, porque eu sou um todo que
deseja conservar a integridade das minhas partes. Não quero, por
exemplo, perder as minhas memórias, os meus dedos, minhas per-
nas, etc. Por outro lado, se a auto-conservação não pode servir de
fundamento lógico da crença lógica, também não pode ser o seu
fundamento psicológico, pelo fato de que nesse caso o reconheci-
mento de uma necessidade dependeria de uma mera contingência.
A terceira hipótese seria sociológica. Não há propriamente um
instinto de auto-conservação que sirva de base à crença na lógica,
mas existe a transmissão cultural de um senso de obrigação de
auto-conservação. Um condicionamento que ensina o indivı́duo a
se defender. e assim esse ensinamento inculca na mente esse senso
de auto-conservação, e através dele o indivı́duo percebe a necessi-
dade externa, e ao admitir isso acaba admitindo a crença na lógica.
Para que a herança cultural pudesse fundamentar, ou ser causa, do
senso de integridade, e este, por sua vez, ser a causa da percepção
da necessidade externa, e esta ser a causa na crença da lógica, para
que toda essa cadeia fosse válida, é preciso que cada um dos seus
membros anteriores fosse válido. Se o senso de integridade não é
o fundamento na crença na lógica, então pouco importa de onde
vem esse senso. Se ele vem de um instinto, ou da sociedade, em

358
15 Preleção XV

qualquer desses casos, ele não poderia ser, por si mesmo, o funda-
mento da crença na lógica. Então, a teoria sociológica só complica
um pouco mais. Ela só acrescenta um elo causal a mais.
Vamos tentar uma outra hipótese: as estruturas lógicas estariam
na própria linguagem. Então, quando você aprende a falar, você
aprende as estruturas lógicas junto. E como você não consegue fa-
lar sem estrutura lógica... O que eu quero saber é, se você começou
a pensar logicamente porque aprendeu a lı́ngua, ou se aprendeu a
lı́ngua porque tinha um pensamento lógico? Se eu aprendi a lin-
guagem, me ensinaram a falar, então as frases têm uma estrutura
lógica (sujeito, predicado ,verbo, etc), e para poder continuar fa-
lando eu tenho que admitir a consequencialidade lógica. Então,
o comportamento lógico já existe anteriormente ao aprendizado
da linguagem. Se você tem capacidade de fazer uma coisa caber
dentro da outra, você tem a noção de todo e parte. Noção de ho-
meogêneo: em um prato de sopa, a primeira colherada é de sopa,
a segunda não pode ser de suco de laranja. A própria criança sabe
disso. Se ela não gosta de sopa, e você dá a primeira colherada,
ela não quer mais o resto do prato. E como isto é a própria lógica,
a teoria linguı́stica não pode ser também um fundamento à lógica.
Uma outra hipótese: os princı́pios lógicos entraram na sua
cabeça na hora que você aprendeu a significação. É a experiência
da Marie Hotin(?), que era cega, surda e muda, e aprendeu a se co-
municar aos 29 anos de idade. Até lá, vivia como um bicho: tinha
que ser alimentada, lavada, etc, e não tinha nenhuma comunicação
com ninguém. Até que um dia, a freira que tomava conta dela,
tirou a faca da mão da Marie, e esta ficou muito agitada, começou
a se debater por causa disso. Daı́ a freira fez um sinal na mão dela
esfregando no dorso da mão da menina, e a Marie fez o mesmo
sinal na mão da freira, e a freira entregou a faca. Então, toda a vez
que ela queria a faca ela fazia o mesmo sinal. Este foi o primeiro
signo que ela aprendeu. Foi o primeiro ato psicológico dela que

359
15 Preleção XV

se referia a um objeto externo. Apesar dela sentir os objetos, não


havia uma conexão entre a vida interior dela e estes objetos que a
cercavam. Esta conexão foi estabelecida por este signo.
Mas, voltando à questão, esta hipótese também pode ser refu-
tada porque ela não passa de uma nova forma da hipótese anterior
— a linguı́stica –, porque as significações pressupõem uma lógica.
Bom, a resposta para essa questão é: humanamente falando,
não há nenhum motivo para o sujeito acreditar na lógica! Pelo
menos até agora não parece haver motivo para acreditar. Se não há
nenhum motivo para acreditar, a crença na lógica não é necessária,
mas contingente. Pode acontecer, como pode não acontecer. Pode
acontecer de que 0,0000...000001% da população não acredite na
lógica. Mas, a maioria acredita.
Por outro lado, por quê essa maioria acredita? É por quê Deus
quis? Mesmo a hipótese teológica pode ser descartada. Se é uma
vontade de Deus, então não é uma vontade constante e absoluta,
porque Ele deixa algumas pessoas não acreditarem. Ou seja, nem
Deus nos tira dessa.
Há muitas crenças que podem ser explicadas; por exemplo, por
quê você acredita que o Sol sai todo dia? Porque, de fato, ele sai
todo dia há muito tempo, e nada indica que ele vá mudar este ciclo.
Por quê você acredita que se um cachorro vier te morder, o melhor
é você dar o fora? Porque o seu desejo de auto-conservação quer
ser atendido. Essas mesmas causas poderiam fundamentar ou-
tras crenças, particulares, mas a crença na validade dos princı́pios
lógicos, em geral, elas não poderiam fundamentar. Por outro lado,
todas essas outras crenças, de educação, auto-conservação, neces-
sidade externa, etc, que poderiam servir de fundamento, também
dependem da crença nos princı́pios lógicos.
Por quê o homem acredita, confia, em geral? Essa questão
poderia ser respondida sem a referência à questão dos princı́pios
lógicos? Será que a hierarquia de gênero e espécie não é um pouco

360
15 Preleção XV

enganosa? A crença dos princı́pios lógicos não é uma espécie de


crença; ela é uma crença diferente de todas as outras, porque ela
só serve para produzir mais(?). Não sei por quê o homem crê; só
sei que pelos princı́pios lógicos ele não ia acreditar nisso, nem dei-
xaria de acreditar. O princı́pio da negação e da afirmação já refuta
os princı́pios lógicos. Portanto, a pergunta sobre a crença jamais
poderia ser respondida sem isto aqui.
A classificação gramatical nos ilude porque nós usamos a
mesma palavra, por exemplo, crença no princı́pio lógico, e crença
em contos de carochinha, crença que o cheque que você recebeu
tem fundos; parece que são espécies de crenças, mas acontece que
é apenas a mesma palavra. Crença no princı́pio lógico é uma
coisa, e crença em contos da carochinha é outra. Inclusive, por-
que a própria lógica é um dos motivos de crença. Você acredita
numa coisa porque lhe parece lógico, não é? Então, é como se ela
fosse uma crença que serve de único fundamento a todas as outras
crenças — é impossı́vel. Dentre os vários fundamentos da possibi-
lidade da crença, um deles é a crença na aceitação dos princı́pios
lógicos. Mas, se nós perguntamos para quê o homem aceita os
princı́pios lógicos, nós vemos que não tem explicação humana, ou
mesmo divina. Será que isso já não é um resultado satisfatório?
Por quê isto nos inquieta?
O caso é que a investigação sobre a causa da aceitação dos
princı́pios lógicos não leva a parte alguma. Portanto, esta
investigação é non-sense. A pergunta não faz sentido. Precisamos
rejeitar a questão. Não é isso que nós chegamos no fim? Não há
causa. O ser humano acredita, quando quer acreditar. Uns acre-
ditam, outros não acreditam; uns acreditam de vez em quando,
outros acreditam sempre; uns acreditam profundamente, outros
acreditam superficialmente — não é assim? Na média, nós acre-
ditamos, e com uma certa regularidade. Então, não há uma causa,
mas se você deixasse de acreditar nisso, você se sentiria um idiota

361
15 Preleção XV

perfeito.
Por outro lado, se tudo o que o homem faz tivesse uma causa que
transcende a ele, ele jamais, por si mesmo, seria a causa de nada.
Por exemplo, você tem uma causa, que determina uma outra causa,
que determina uma outra causa, etc, e no meio dessa corrente você
tem um ente, que é um elo dessa corrente, e que também determina
outra causa, e assim por diante. Ora, se tudo o que está para diante
desse ente provém dele é causa dele, e se essas causas fossem
conseqüência de uma causa anterior a esse ser, isso é a mesma
coisa que dizer que esse ente não faz nada, ele é apenas um elo
lógico, um nexo lógico entre outras causas.
Então, esse ente não é um ser causal, ele nada causa; só é cau-
sado. Então, ele tem menos poder que, por exemplo, uma parede,
porque ela tem uma ação que lhe é própria, por exemplo, a ação
de resistir, pois ela se mantém no lugar. Mas, esse ser, supondo
que ele não causasse nada, e fosse apenas um elo, ele seria um elo
lógico. Seria preciso que ele fosse totalmente destituı́do de quais-
quer traços, propriedades, e portanto não é possı́vel que tudo o que
o homem faz tem uma causa fora dele. Aliás, isso não é possı́vel
com relação a nenhum ser realmente existente. Existir é poder ser
causa de alguma coisa.
Voltando à pergunta anterior: quando nós chegamos ao resul-
tado de que a crença nos princı́pios lógicos não tem causa, por
quê todos ficaram perplexos? É aquela piada: um sujeito com-
prou cinco burros numa feira. No meio do caminho, de volta para
casa, ele ficou cansado e montou em um dos burros. Quando ele
chegou em casa,chamou a mulher para ver os burros que ele ha-
via comprado. Ainda montado em um dos burros, ele contou cada
um deles e, surpreso, disse: “Eu comprei cinco burros, mas aqui
só tem quatro!”. E a mulher disse: “Engraçado, eu estou vendo
seis!”. A sensação de vazio ante uma coisa que não tem causa,
você sente a mesma emoção do sujeito que diz que comprou qua-

362
15 Preleção XV

tro burros. Então, o único ser que determina que você acredita em
princı́pios lógicos é você mesmo. Nada impede isso.
[ Houve o intervalo da aula e parte dos comentários que o Olavo
fez não foi gravado porque esqueceram o gravador desligado ]
Nesse caso, nós terı́amos um elo de necessidade entre o homem
e a crença na conseqüência lógica. E por isso nós poderı́amos
obrigar ao homem a crer na conseqüência lógica. Nesse caso,
que diferença haveria entre a sensação da persuasão racional e a
coerção?
Aı́ eu estou argumentando, por um lado: primeiro porque não
tem causa; em segundo lugar, isto não é possı́vel porque tudo o
que acontece com um ser tem uma causa fora dele, e é necessário
que ele seja causa de alguma coisa também. Ou seja, nem todos os
seres, sob todos os aspectos, podem estar encaixados na lei de um
determinismo universal, que os abrange completamente. Porque,
se acontecesse isso, todos os seres seriam inócuos, e somente as
causas operariam sobre eles. Não existiriam seres, mas somente
causas.
O primeiro argumento contra o determinismo universal seria
este: um determinismo tem que determinar seres. As causas têm
que atuar sobre seres que efetivamente existem. Porém, se esses
seres, por si mesmos, se reduzem às causas que atuam sobre eles,
então ele não existem funcionalmente, eles são nadas. E um ser
incapaz de qualquer ação sobre qualquer outro ser, também não
pode sofrer a ação do nada.
Esta é a segunda linha de argumento. Ou seja, se de um lado
não encontramos nenhuma causa para que o homem creia nos
princı́pios lógicos, e de outro lado, todo ser tem que ser capaz
de ser causa de alguma coisa, então talvez seja o homem mesmo a
causa. Talvez seja um ato dele, não causado por algo externo.
Em favor desta hipótese, ainda restam vários argumentos, dentre
os quais destaco o seguinte: se nós soubéssemos qual a causa da

363
15 Preleção XV

crença no princı́pio lógico, nós, produzindo a causa, poderı́amos


gerar o efeito mediante um elo de necessidade. Dada a causa,o
efeito se seguiria imediatamente. Ou seja, a persuasão lógica se
tornaria forçosa. Se assim fosse, que diferença haveria entre a
argumentação lógica e a coerção fı́sica? No entanto, quando você
adere a uma argumentação racional, você adere livremente, por-
que você aceitou os princı́pios lógicos dos elos de conseqüência. É
você quem aceita. Você não é forçado de fora. Tanto que, mesmo
diante de uma argumentação lógica, você pode ficar recalcitrante.
Às vezes alguém te dá uma demonstração mais completa e você,
mesmo assim, ainda não quer aquela conclusão. Mesmo enten-
dendo a conclusão você ainda pode não querer. Por exemplo, o
comprador conpı́scuo; ele compra mais do que pode pagar, em-
bora a soma do seu extrato bancário demonstre que não dá para
ele fazer isso. Ele está entendendo perfeitamente, no entanto, ele
nega. Ou seja, toda e qualquer argumentação racional é negável
pela vontade. Se a argumentação racional fosse acompanhada de
uma espécie de forçosidade fı́sica causal, isso não aconteceria ja-
mais.
Entretanto, isso seria mais absurdo ainda, porque se você pode
forçar o indivı́duo, para quê você vai argumentar? Então, a própria
existência da argumentação racional mostra que a sua aceitação
não é forçosa realmente. Ela pode ser forçosa, idealmente, no sen-
tido de que não há uma outra. Mas, mesmo nesse caso, o indivı́duo
pode inventar uma outra, pode supor. aliás, o que me obriga a op-
tar pelo resultado certo? Por quê eu não posso optar pelo resultado
errado? Você pode, e de fato muitas vezes na vida é isso que acon-
tece. Dito de outro modo, tudo leva a crer que a aceitação dos
princı́pios lógicos, e portanto da conseqüência lógica, é um ato li-
vre do ser humano. É um ato contingente, onde ele pode ou não
fazer.
Mas ainda há uma pergunta, meio maligna: por quê que a

364
15 Preleção XV

ausência de causa lhe dá a impressão de vazio, se quem está no


meio desse vazio é você mesmo? Não é um pouco o raciocı́nio
dos cinco burros? Ou seja, você não está vendo o que você não
está fazendo.
Uma concepção do mundo que começasse por abolir da
representação do mundo a pessoa daquele que está construindo
essa mesma representação, seria manifestamente falsa. É como
escrever uma estória que na sua conclusão negasse que a estória
foi escrita. É uma espécie de curto-circuito.
Por quê as pessoas, em geral, se espantam ante a necessidade
imperiosa de reconhecer a existência do sujeito? Por quê que uma
visão do mundo lhe pareceria mais real se ela começasse por abolir
a sua pessoa?
Existe uma confusão entre dois tipos de veracidade, ou de cre-
dibilidade, que é o seguinte: nós procuramos o conhecimento ob-
jetivo, e dizemos que ele é objetivo se a todas as pessoas as quais
esse conhecimento for mostrado, o verem da mesma maneira, e ad-
mitirem a veracidade desse conhecimento. Portanto, esse conhe-
cimento não depende da minha subjetividade. Ele não é causado
pela minha subjetividade. É a idéia de uma objetividade, como
conhecimento, que não é causado pela forma do ser singular.
A verdade deve aparecer intersubjetivamente e pode ser com-
partilhada por vários sujeitos. Porém, uma coisa é você dizer que
o conhecimento objetivo é aquele que independe do sujeito, nesse
sentido, e outra coisa é você dizer que só é conhecimento obje-
tivo aquele que não tem sujeito nenhum. O conhecimento objetivo
é aquele que independe deste ou daquele indivı́duo em particu-
lar, mas não de todo e qualquer sujeito. Senão, você oferece um
mundo que é como ele seria visto por um sujeito inexistente, e não
apenas como no outro caso, por um sujeito indeterminado. Na ver-
dade, não seria concebı́vel de maneira alguma, uma verdade intei-
ramente objetiva, sem o sujeito. Você tem que admitir, ao menos,

365
15 Preleção XV

um sujeito potencial. Por exemplo, vamos supor que existe um


mundo onde não há nenhum ser consciente, de espécie alguma,
capaz de captar nada. Em primeiro lugar, um mundo assim, ja-
mais existiu porque o mundo é uma coleção de seres articulados
entre si, que agem uns sobre os outros, e que, nesse sentido, são
subjetivos. Por exemplo, a chuva que cai sobre o solo está agindo
sobre o solo.
Alguma forma de troca, de câmbio, de interpretação, troca de
informações, entre sujeitos sempre existiu,porque senão, não exis-
tiria o mundo. Não é apenas uma coleção de seres, mas uma
coleção de acontecimentos. Ora, se existe acontecimento é porque
um ser age sobre o outro, e de uma maneira qualquer, um participa
do outro. O conhecimento não é, senão, uma das muitas maneiras
de participação. Portanto, se existe mundo, existe sujeito e objeto.
Existem, nesse sentido, um princı́pio de veracidade, na medida
onde há sujeitos e há objetos — não necessariamente sujeitos hu-
manos conscientes, isso não importa. Por exemplo, mesmo entre
os micro-organismos, eles podem se equivocar nas suas relações
com os outros. Existe o princı́pio de veracidade e erro. Todo e
qualquer conhecimento do tipo objetivo pode ser objetivo no sen-
tido de ser independente de um sujeito determinado, ou de um
grupo determinado de sujeitos, mas não de ser independente de
qualquer sujeito. Nós podemos conceber uma verdade absoluta
que é independente de qualquer sujeito, no sentido de que ele é
independente de quaisquer sujeitos individuais.
Quando você fala em verdade universal absoluta, o sujeito está
sempre supondo um sujeito universal absoluto que conhece essa
verdade. Mesmo nesse caso, seria um sujeito. Um mundo sem
sujeito não seria nem verdadeiro nem falso, porque o objeto em
si mesmo não é verdadeiro nem falso. Ele é uma potência de ve-
racidade, e uma potência de falsidade. Todo objeto tem um con-
junto de aparências que ele emite para os outros. Algumas dessas

366
15 Preleção XV

aparências são informações reais, e outras são informações falsas.


A possibilidade de ludibriar o outro, isto está contido em qualquer
sujeito. Mesmo, por exemplo, no mundo mineral. Uma pedra
tem uma determinada forma, e esta forma emite informações so-
bre a pedra. Então, todos os seres estão continuamente emitindo
informações sobre todos os seres, para todos os seres. Então, uma
certa relação que veio com o objeto, sempre existe, onde quer que
exista um mundo. A não ser que fosse um mundo de objetos sem
interação, mas daı́ não é um mundo.
O bicho que come uma folha é porque esta folha se parece com
uma outra folha que ele está habituado a comer, e ele morre enve-
nenado. Não acontece? Sim. Isto é um exemplo de conhecimento
equivocado. Ali existe um sujeito, uma interação, e uma possibi-
lidade de verdade e erro. Vejam, por exemplo, o mimetismo. Os
seres se enganam uns aos outros. O jogo da verdade e falsidade,
informação e contra-informação, é um mecanismo básico da natu-
reza.
Então, a idéia de um mundo totalmente objetivo, sem sujeito, é
uma idéia auto-contraditória. Só existe objeto em função de um
sujeito. Objeto tem que ser ob-jecto, aquele que está jogado na
frente; mas jogado na frente de alguma coisa. Este encontro, esta
interação, esta troca de informações, é isto que constitui o mundo.
Realmente, nós não podemos dizer que o mundo é apenas uma
coleção de objetos, mas de acontecimentos também, porque se
não acontece nada ali, ele não existe. O acontecimento pressupõe
um sujeito, causas em operação, efeitos que se seguem, portanto,
interação. E onde tem interação, você tem sujeito e objeto, seja da
ação, seja do conhecimento.
Ora, a ação não pode ser equivocada também? A ação não pode
visar um objeto errôneo, como no caso do mimetismo? Até as
plantas podem se equivocar. Uma planta não pode cometer um
erro cognitivo? Ela não pode receber uma informação falsa do

367
15 Preleção XV

ambiente? O girassol, por exemplo, segue o movimento do Sol,


mas se eu colocar uma luz muito forte perto dela, ela se enga-
nará e seguirá a luz. No reino mineral existem formações minerais
mórbidas errôneas. Elas são resultado de informações errôneas da
Terra. São terras defeituosas, mal-formadas. Por quê elas foram
mal-formadas? Porque elas receberam informações externas, que
são também informações. Algo que se mete na formação internas
delas.
A teoria da informação em Biologia, é um das coisas mais lindas
que foram descobertas no século XX. É um dos grandes avanços
da Ciência é a teoria teológica da informação. Ela nos mostra o
universo inteiro como composto de seres que estão em constante
troca de informações. Portanto, sempre existe um sujeito e um
objeto atuante, seja na esfera da ação propriamente dita, seja na
esfera puramente cognitiva, que é uma ação retida(?), que é uma
possibilidade de ação que não se realiza em parte alguma. É uma
ação potencial. Isto significa que todos os seres agem de alguma
maneira. Um ser que não tivesse nenhuma possibilidade de agir,
nem mesmo passivamente, sobre um outro (um ser que não tivesse
peso, por exemplo), ou seja, um ser que fosse totalmente destituı́do
da possibilidade de ação sobre um terceiro, também não poderia
receber a ação do primeiro. É possı́vel agir sobre um objeto porque
ele é alguma coisa, mas se ele é alguma coisa é porque ele emite
alguma informação e assim ele já está agindo. Portanto, todo ser,
por mais insignificante que seja, ele é um ser causal.
Vejam a famosa definição de Vronsk(?), filósofo polonês, “Ser
é ter a potência de engendrar efeitos”, e portanto sofrer efeitos
também. Isto é uma espécie de complemento da Biologia aris-
totélica, e aliás Aristóteles só não chegou a essa conclusão porque
morreu antes, porque se pensasse um pouco mais ele ia ter que
chegar a isso aı́. Isto significa que nenhum ser pode ser totalmente
explicado pelas causas que atuam sobre ele, porque as causas pres-

368
15 Preleção XV

supõem o ser dele. Aquele que não existe não pode sofrer a ação
de causa alguma. Então o que existe de estranho que o próprio
homem seja a causa de alguma coisa, sem que nada cause, através
dele, essa alguma coisa? Dito de outro modo, se até mesmo um
fundo de liberdade metafı́sica você encontra numa pedra, por quê
não deveria encontrar algum também no homem? Porque existe
essa expectativa de determinismo universal, da parte de pessoas
que, no entanto, conscientemente, não acreditam no determinismo
universal.
Se eu perguntar para vocês se acreditam no determinismo uni-
versal, na absoluta fatalidade, que tudo está escrito e pré- deter-
minado, nos seus mı́nimos detalhes, ou seja, existe a objetividade
absoluta, onde nenhum ser é causa de nada, e todos só sofrem
impacto, vocês dirão que não acreditam nisso. Mas, se não acredi-
tam nisso,por quê tiveram aquele sentimento de vazio na hora que
descobriram que a crença na lógica não tem causa? Não é contra-
ditório? Isto significa que você não acredita conscientemente no
determinismo, mas só aceita como conhecimento objetivo o que
for totalmente determinı́stico. Quando nós temos crenças absolu-
tamente incompatı́veis, ou seja, a mente ainda não está formada de
uma maneira lı́mpida, de maneira que ela possa arcar com todas
as conseqüências de suas crenças, então, uma espécie de determi-
nismo implı́cito está presente em todo nossa sociedade. Porque é
a imagem que se tem de que se funciona assim.
A Ciência está encarregada de nos dizer as leis subjetivas que
presidem o acontecer. Portanto, está encarregada de nos descre-
ver o determinismo. A própria Ciência efetivamente já desistiu
de fazer isso há muito tempo. a própria Ciência não acredita em
determinismo. Então, a imagem pública que se tem dela é de
uma espécie de retrato do determinismo universal, e só acredita-
mos numa coisa, encontrando uma explicação cientı́fica, quando
vemos que ela é totalmente independente de qualquer arbı́trio ou

369
15 Preleção XV

de qualquer liberdade. Embora, por outro lado, a própria Ciência


negue a possibilidade de um determinismo deste tipo. A própria
Ciência toda hora tem que fazer um acordo entre determinismo e
acaso, acaso e necessidade, acaso e probabilismo. A idéia de um
determinismo universal, além de ser absurda em si mesma, ela é
totalmente anti-humana. Ela é contra a liberdade de consciência,
contra a liberdade humana, ou seja, o homem nada cria, não é um
centro criador, mas apenas a vı́tima inerte de tudo o que se passa
em torno. Ninguém gosta de pensar nisso, a respeito de si mesmo,
não é?
Se as pessoas não gostam disso, ao contrário, na hora delas te-
rem uma sensação de vazio ao ser dito que não há causa, elas de-
veriam ficar contentes. Por quê existe uma sensação de incomodi-
dade? Essa sensação, não é sem razão; há um fundamento. Essa
sensação de incomodidade é porque na hora que você percebe que
você é a causa, você percebe que a responsabilidade é inteiramente
sua, que não há uma força externa, nem Deus, para dizer para você
o que você deve fazer. Daı́ essa sensação de vazio. Esse vazio é
um centro onde está você mesmo. Você está totalmente livre para
acreditar nisso ou naquilo, ou não acreditar. Apenas você tem o
hábito de crer que você crê. Não quer dizer que você creia sem-
pre, mas em geral você crê, você acredita que crê.
Isto significa que crença nos princı́pios lógicos não é para nós,
uma necessidade externa, e não é nem sequer uma conveniência
prática quando você a domina na sua totalidade, e daı́ você sabe
empregá-la, e daı́ ela serve. Uma lógica na qual você crê mas não
a domina, aquilo será um mal. No intuito de acertar, de pensar co-
erentemente, você pensa errado, e é aı́ que você se engana. Então,
o que tem isso de prático? A quase totalidade dos erros humanos
é feita por causa de uma lógica imperfeita. Essa lógica imper-
feita não é prática absolutamente, ela é totalmente imprática. Mas,
prefere-se essa lógica imperfeita do que lógica nenhuma. Dito de

370
15 Preleção XV

outro modo, para resumir, saltando um monte de etapas, para o


homem, a lógica não é uma necessidade externa, ela é um valor. é
um valor que ele prefere, pelo qual ele opta, e de certo modo, que
ele ama.
A educação pode reforçar essa opção, como pode destruı́-la. O
senso de auto-conservação pode falar em favor dessa opção, se ela
já tiver sido tomada, mas pode também falar contra ela. Por exem-
plo, num caso de lavagem cerebral, influência subliminar, e outros.
É o próprio senso de auto-conservação que faz você admitir o ab-
surdo. É para conservar a vida que você admite o ilogismo. Do
mesmo modo que uma necessidade externa pode te reforçar essa
crença no absurdo. Nenhum deles determina a crença. Ou pode
reforçá-la, ou pode atenuá-la, uma vez que ela já existe. E ela já
existe sem causa. Pior ainda, essa opção nunca é feita de uma vez
para sempre. Ela é feita e refeita continuamente. Se ela é livre,
mesmo as suas conseqüências não são fatais. Se você acreditou
na integridade lógica, nisso ou naquilo, você pode, em seguida,
ser completamente ilógico numa outra coisa. Você pode querer
ser lógico num monte de coisas, e absurdo numas tantas outras —
nada te impede.
Então, nós não poderı́amos pensar de uma maneira ilógica? Po-
derı́amos, e pensamos de fato, mas pelo ponto que nós chegamos
até aqui, nós entendemos que a crença nos princı́pios lógicos é
para o homem, um valor, um valor de um discurso coerente. Você
não é obrigado a manter um discurso coerente. Às vezes, um dis-
curso coerente pode ir contra os seus interesses, mas às vezes você
opta por esse valor.
Então, se essa adesão não tem uma causa que a coloca, e se ela é
uma ...(?) a um valor, nós poderı́amos perguntar que valor é esse,
qual o conteúdo desse valor? Aquilo que não tem causa, pode ter
motivo. Motivo é uma justificação interna. Mas, uma justificação
interna não causa um ato, apenas sublinha o valor desse ato, que

371
15 Preleção XV

no entanto pode ser feito ou não. Por exemplo, quando você vai
comprar algo, você pode argumentar pró e contra a compra, mas o
teu argumento não faz você comprar nem deixar de comprar. Você
decide livremente comprar ou não comprar, pesando os argumen-
tos, portanto, você não está determinado a comprar.
Então, poderı́amos perguntar: qual é o valor que o homem en-
cara nesse ideal de um discurso coerente? Que perspectivas ele lhe
abre, que a incoerência não lhe daria? Porém, veja o que disse o
Husserl nesse parágrafo que nós acabamos de ler: ou a lógica será
apenas uma técnica, portanto uma ciência prática,ou se for uma
ciência teórica, seu conteúdo terá de ser psicológico, gramatical,
sociológico, etc. Por isso mesmo que eu lhes perguntei se vocês
conseguirem encontrar um fundamento psicológico, sociológico,
da crença no princı́pio lógico. Eu estou preparando vocês para a
discussão que ele vai fazer do psicologismo.
O psicologismo é uma tendência filosófica dominante durante
mais de cem anos, e até hoje é muito influente subliminarmente,
segundo a qual a validade dos princı́pios lógicos advém de causas
psicológicas, gramaticais, sociológicas, etc. Dito de outro modo, a
lógica seria uma parte da Psicologia, Sociologia, etc. Por exemplo,
a escola sociológica, muito influente, fundada por Durkheimer, até
hoje acredita que as categorias lógicas provém da estrutura so-
cial interiorizada. Ou seja, ao assumir que existe uma analogia
entre as estruturas lógicas e as estruturas sociais, transforma-se
uma analogia numa explicação causal, em seguida transforma-se
a explicação causal numa fundamentação lógica. Isto está muito
destorcido.
Todo o conjunto de negações à lógica pura, Husserl chama de
psicologismo, que é aquele que vai remeter a causa e, implici-
tamente, a validade dos princı́pios lógicos a fatores extra-lógicos,
ou seja, a fatores reais. O que nós dissemos aqui era que não existe
nenhuma causa real, mas talvez possa haver uma causa ideal que

372
15 Preleção XV

seria um valor. Mas, um valor não chega a ser uma causa, ele é
apenas uma justificação. Ou seja, a validade dos princı́pios lógicos
não pode depender de nada real. Independe do real, eles têm que
ser válidos. Mesmo aqueles que distinguem o que é causa e o que
é fundamento, mesmo eles acabam misturando as coisas.
Eles não têm outra saı́da: ou eles vão para a lógica pura, que
é uma ciência meramente a priori, totalmente ideal, que fala das
relações e verdades possı́veis, e que não tem absolutamente nada
que ver, não tem nenhum fundamento, causa, na experiência real
humana, que não é causada por nada, é apenas um conjunto de
esquemas das relações e verdades possı́veis, encaradas como um
sistema ı́ntegro e coerente, a qual a adesão é feita somente pelo
livre arbı́trio humano; ou então, nós teremos que aderir a algumas
formas de psicologismo, que são todas estas que nós vimos aqui.
Não é preciso lembrar que o velho Kant, que era o grande adepto
da lógica pura, é também, de todos os filósofos do Ocidente, o
que mais enfatizou a idéia da liberdade humana. Kant era con-
tra — até — você provar que Deus existe. Ele dizia que a prova
objetiva da existência de Deus seria a suma blasfêmia, porque su-
primiria a liberdade humana. A existência de Deus não pode ser
matéria de ciência no sentido objetivo, porque se pudesse, você
seria obrigado a engolir esse Deus, como você tem que engolir
o real empı́rico. Então, Deus se relacionaria com os homens do
mesmo jeito que se relaciona com as pedras, porque Ele coloca
lá umas leis cosmológicas, e as pedras se movem de acordo com
isso. Então, não seria um Deus do homem, seria um Deus para
o homem. Esse mesmo indivı́duo que tanto enfatizou a liberdade
humana, é também o mesmo defensor da lógica pura.
Então, pegando a conexão entre essas duas coisas, por tudo o
que eu falei hoje, a adesão aos princı́pios lógicos puros é um ato
livre do ser humano, e nada pode obrigá-lo. Sendo um ato livre,
nunca é um ato definitivo, é uma opção reiterada. E se é assim, é

373
15 Preleção XV

porque existe então efetivamente a liberdade humana. E se existe


a liberdade humana, o conteúdo das crenças do homem jamais
está pré-determinado. Pode ser influenciado, ou reforçado pela
experiência, mas não totalmente determinado desde fora.
Então, a ênfase aqui é colocar no sujeito como indivı́duo cog-
noscente e livre. Porém, ele se defronta com um mundo que não
foi ele quem fez, e desse mundo faz parte o seu próprio corpo, e
grande parte de sua psique. Ou seja, a minha liberdade se defronta
com uma infinidade de determinações externas e internas. É uma
liberdade muito limitada, mas nem por isso mesmo real nos seus
próprios termos. O homem é um ser livre, mas que vive na miséria
e na sujeição parcial de suas determinações. Essa é a imagem do
homem, que tem Kant, e ao qual nesse aspecto, Husserl adere, e
que eu também estou aderindo aqui, formalmente. Ou seja, de que
o conhecimento no sentido lógico, a construção do mundo do co-
nhecimento coerente era uma livre opção do homem, que ele não
precisava fazer absolutamente, nem por motivos práticos, e que
pode ser até conveniente em certos momentos, ou inconveniente
em outros.
Sendo assim, um dos sentidos da educação seria a de reiterar
no homem essa escolha contı́nua pelo discurso coerente, que pode
ser compartilhado por todos os homens, uma vez que o entenda, e
que, admitindo os princı́pios lógicos, conforme ouviam o restante
do discurso. Essa opção é o que Eric Weil chama de “o contrário
da violência”. Então, o mundo da determinação externa seria o
mundo da violência, e o mundo da livre adesão aos princı́pios
lógicos e suas conseqüências, seria o mundo da Razão.

374
16 Preleção XVI
17 de março de 1993
(sem correção do Prof. Olavo de Carvalho)

Capı́tulo II
DISCIPLINAS TEORÉTICAS
COMO FUNDAMENTO DAS NORMATIVAS
13. A discussão em torno ao caráter prático da lógica.
Uma lógica prática é um imprescindı́vel postulado de todas as
ciências. Kant mesmo adepto, por outro lado, da idéia de uma
lógica pura, falou de uma lógica aplicada.
A questão na verdade discutida em Kant diz respeito a se a
definição da lógica como uma arte toca ao seu caráter essencial.
O que se discute é se o ponto de vista prático é o único em que
se funda o direito da lógica a ser considerada uma disciplina ci-
entı́fica.
O essencial na concepção de Kant não consiste em negar o
caráter prático da lógica, mas em considerar possı́vel a lógica
como ciência plenamente autônoma, nova e puramente teórica,
com caráter de disciplina a priori e puramente demonstrativa.
Segundo a forma predominante da teoria contrária (a de Kant), a
redução da lógica ao seu conteúdo teorético conduz a proposições
psicológicas e eventualmente gramaticais, isto é, a pequenos seto-
res de ciências distintas e empı́ricas.
Segundo essa idéia, a lógica seria constituı́da de uma série de
preceitos, normas e regras de ordem prática, cujo único conteúdo

375
16 Preleção XVI

teorético seriam as leis psicológicas que expressam o funciona-


mento do real através da mente.
É exatamente o contrário do que pretende o Kant que diz que
existe uma lógica que tem uma parte teórica própria. É uma teo-
ria lógica que nada tem a ver com a descrição ou as teorias psi-
cológicas sobre o funcionamento real do pensamento. A lógica,
segundo essa orientação do Kant, e que é a do próprio Husserl,
trataria das leis ideais do pensamento, e não das leis reais.
A dúvida aqui é: se a lógica é uma ciência teórica própria, ou se
ela é uma ciência prática, cujo único conteúdo teorético possı́vel
fosse a psicologia.
[Olavo dá um salto para a página 14 do texto]
A objeção de que se trata de uma restauração da lógica aris-
totélico-escolástico, sobre cujo escasso valor a história pronunciou
seu juı́zo, não deve inquietar-nos. Talvez a lógica antiga fosse so-
mente uma realização imperfeita e turva da idéia dessa lógica pura.
É também questionável se o desprezo pela lógica tradicional não é
uma injustificada repercussão das emoções do Renascimento, cu-
jos motivos já não podem tocar-nos hoje. A luta contra a ciência
escolástica foi, com freqüência, irrazoável, no fundo; dirigia-se
antes de tudo contra a lógica. Mas, o fato de que a lógica formal
tomasse o caráter de uma falsa
metodologia nas mãos dos escolásticos (sobretudo do perı́odo
de decadência) só prova que talvez faltasse a estes uma justa com-
preensão filosófica da ciência lógica e que por isto a utilização
prática da mesma seguia caminhos errados,
O que ele queria dizer com isso? Será que os escolásticos não
conheciam bem a lógica de Aristóteles? O que ele quer dizer com
“a justa compreensão filosófica”?
Qual é a diferença entre você conhecer a lógica e ter uma com-
preensão filosófica dessa mesma lógica? O que é a compreensão
filosófica de alguma coisa? Qual é a diferença entre a compre-

376
16 Preleção XVI

ensão de alguma coisa, e a compreensão filosófica? Você pode


fazer o conceito de alguma coisa relacionar-se com tudo o que
está em torno sem ser, propriamente, uma compreensão filosófica.
O que caracteriza profundamente a compreensão filosófica? O
conteúdo da Ciência lógica pode ser um só, tanto para o sujeito
que a compreende filosoficamente, quanto para o que não a com-
preende. Qual é a diferença?
O sujeito que não tem uma compreensão filosófica, não quer
dizer que ele não compreenda. Ele compreende de alguma ma-
neira, mas, não, filosoficamente. não tem nada a ver com a ori-
gem, ou com o conhecimento, porque ele está falando do modo
de compreensão. É um modo especı́fico de compreensão que nós
denominamos de filosófico.
P.e., vocês estão compreendendo a minha aula, até o momento?
Parece que sim, mas não é uma compreensão filosófica, necessa-
riamente. Aliás, vocês não podem ter nunca uma compreensão
filosófica de alguma coisa que você acabou de ouvir pela primeira
vez. Esta é a primeira caracterı́stica: a compreensão filosófica é re-
flexiva. não é a compreensão imediata. Mas, ainda tem mais uma
caracterı́stica. Vamos supor uma coisa que você conheça muito
bem, que você tenha estudado a vida inteira. O que é necessário
para que o conhecimento que você tem disso aı́ seja uma com-
preensão filosófica? Qual é o método filosófico por excelência?
É a dialética. E o que a dialética faz? Ela faz a contradição?
E se a coisa, aparentemente, não tem contradição em si, interna-
mente? compreensão interna, é compreensão lógica. Mas, podem
haver outros tipos de contradições, tão internas. A compreensão
filosófica compara com o ideal. Esta é a outra caracterı́stica.
Os escolásticos tinham uma compreensão filosófica, porque
eles eram filósofos, mas com relação à lógica, diz Husserl que
eles não tiveram. Eles aprofundaram a Ciência da Lógica en-
quanto Ciência, mas ainda falta um ponto fundamental. Segundo

377
16 Preleção XVI

Aristóteles o conhecimento começa com o quê? Ele começa com


o espanto!
Uma compreensão de qualquer coisa se torna filosófica a partir
do momento em que se tem uma compreensão da problemática
daquilo, em face de um determinado ideal. Tudo parece carente
de fundamento para uma compreensão filosófica.
O que caracteriza a compreensão filosófica não é a busca; a
busca é a tarefa filosófica. É uma compreensão de que aquele co-
nhecimento é insuficiente com relação aos seus fundamentos e que
aquele conhecimento não é o que ele pretende ser. Ou, ainda, a
consciência de uma defasagem da pretensão e a realidade, da pre-
tensão e os atos. Ter uma consciência de problematicidade e uma
consciência de contradição. Sempre que você se contente com um
discurso, ou possuir e utilizar um conhecimento, tem que fazer
essa ...(?)... filosófica. (Bryan Rice(?)), disse o seguinte: “há duas
maneiras simples de evitar todas as complicações dialéticas. Uma
é o procedimento fácil: não pensar. A outra, é uma via prudente:
não confessar, absolutamente. Os filósofos desprezam ambas es-
sas maneira e tratam de confessar suas contradições e viver através
delas e, desse modo, se for possı́vel, superá-las.”
É claro que essa não é a perspectiva de nenhum conheci-
mento, nem cientı́fico, nem prático, nem teórico, nem coisa al-
guma. Porque, qualquer conhecimento, é um conhecimento pré-
determinado. No momento em que você recorta o campo, você
já não questiona mais o próprio recorte. Isso é condição sine qua
non, senão você não vai conhecer nada.
Portanto, para ser Ciência significa deixar problemas de lado.
Existe um elemento de decisão e de convencionalidade, no recorte
do campo, e dos problemas de qualquer conhecimento cientı́fico
ou técnico.
Sendo assim, é inevitável que esses conhecimentos apresen-
tem contradições, ou com a experiência, ou consigo mesmos, ou

378
16 Preleção XVI

com um outro conhecimento. Porém, o indivı́duo que se dedica a


aquela Ciência em particular, para ele, essas contradições não
interessam. Ele segue em frente até que não seja mais possı́vel.
Até que ele não consiga obter mais conhecimento por aquela via.
Porém, no momento do recorte, quantas perguntas você não tem
que abandonar... Você fica com duas ou três perguntas. Então,
segue-se a investigação dessas duas ou três
perguntas, até que, mais à frente, nós percebemos que a
investigação não pode mais ir para frente, a não ser que se re-
torne a aquelas perguntas abandonadas. Acontece que isso pode
acontecer com um lapso de 100, 200, 300, 1000 ou 2000 anos, e
daı́, você já não lembra mais qual era a dúvida.
O ponto de vista cientı́fico é sempre linear, seguir em frente,
dentro de uma determinada linha de investigação, enquanto ela
lhe parecer profı́cua. É claro que a investigação cientı́fica re-
quer o abandono da crı́tica filosófica por algum tempo, proviso-
riamente, até que as contradições apareçam outra vez. Isso acon-
tece quando, p.e., partindo de determinadas definições, principal-
mente cientı́ficas, que você colocou no começo, você chegue a
conclusões que desmentem, fatalmente, esses mesmos princı́pios.
P.e., parta de um conceito fı́sico, de que matéria é uma coisa
que ocupa lugar no espaço. Partindo daı́, e desenvolvendo
investigações ao longo de séculos, você chega, no fim, a desco-
brir um tipo de coisa que não é nada além de matéria e que parece
não ocupar lugar nenhum, então, você tem um “abacaxi” nas suas
mãos.
Porém, a Ciência só percebe isso no fim, por absoluta impos-
sibilidade de prosseguir naquela direção. Mas, a compreensão fi-
losófica consistem em ver a possibilidade dessas contradições já
no começo, e na fixação dos princı́pios. Por isso não é errada
a imagem de que a investigação cientı́fica vai para a frente e a
investigação filosófica vai para trás. Ela vai no sentido do fun-

379
16 Preleção XVI

damento. Ao invés de aumentar o edifı́cio, ela aprofunda a sua


base. A fuga das contradições é uma condição sine qua non para
a ação prática. A ação prática é, ela mesma, a superação de uma
contradição em particular: a contradição entre a vontade humana,
e as condições estabelecidas. Qualquer ação prática é você fa-
zer alguma coisa que não existia antes. Mudar uma situação. Do
mesmo modo, a investigação cientı́fica é a superação de determi-
nadas contradições já definidas de antemão.
Portanto, o campo de contradições que existe, tanto no conhe-
cimento cientı́fico teorético, quanto no prático, é um campo já
delimitado, mais ou menos convencionalmente. Delimitado, ou
por efeito de uma exigência prática, ou de uma decisão humana.
Porém, a consciência filosófica consiste em buscar o fundamento
absoluto do conhecimento.
Portanto, nada está completamente fundamentado, nada é
suficientemente fundamentado. A consciência filosófica é a
consciência permanente das contradições. Do mesmo modo que
nós podemos dizer que existe um avanço cientı́fico quando o
número de respostas obtidas pelas investigações vai sendo aumen-
tado, a coleção de verdades adquiridas vai aumentando, nós pode-
mos dizer que houve um progresso filosófico quando foi limitado o
número de contradições possı́veis. Portanto, a Filosofia lida mais
com a possibilidade do conhecimento do que com o próprio co-
nhecimento. Tornar o conhecimento possı́vel, viável, e não propri-
amente realizável. Nesse sentido, nós vemos que os escolásticos
não tinham uma compreensão filosófica da Lógica, porque ela lhes
parecia um conhecimento que não tinha problema algum. Aliás,
essa idéia é a mesma que muitos tem até hoje.
Eu me lembro quando nós começamos a ler o Husserl, nessa
aula, e algumas pessoas ficaram espantadas de ver que a Ciência
da Lógica podia estar numa tal bagunça. Mas, ninguém sabe o
que,

380
16 Preleção XVI

com relação à Lógica, cada um fala uma coisa. Então, isso é


completamente ilógico e, lamentavelmente, é assim. O próprio
Kant, que é o inventor da Filosofia Crı́tica, o que ele diz logo no
começo da crı́tica em relação à Lógica? Que ela é uma Ciência
que chegou à sua perfeição, que ela está num caminho seguro, e
não tem mais nada que se mexer ali. Ou seja, passaram- se 100
anos entre a comunicação da crı́tica à razão pura, e isso
que Husserl escreve, para você ver que ...(?)... Onde não haveria
parecer mais contradição, onde parecia haver um ponto cientı́fico
delimitado corretamente, parecendo que sua delimitação corres-
pondia à realidade e, portanto, se houvesse algum progresso, esse
seria quantitativo, dentro da mesma linha de investigação, de re-
pente, você vê que todos os fundamentos parecem estar oscilantes.
Primeiro, você não sabe se isso é uma regra de conduta, que diz
o que você deve fazer, ou se é uma teoria que diz o que está, de
fato, acontecendo, então, você está perdido, não é?
Me parece que Husserl está muito certo quando diz que não
se tem uma compreensão filosófica da Lógica. Até que surgis-
sem esses debates, ninguém levantou o problema. O problema
surge quando John Stuart Mill lança a sua Lógica, na qual ele diz
que, as leis da Lógica tem um fundamento psicológico. Até então,
ninguém havia perguntado qual é o fundamento das leis da Lógica.
Nem mesmo Aristóteles. Ele apenas insinua que a Lógica é uma
espécie de Ontologia.
Então, ninguém percebeu esse problema porque ninguém tinha
uma compreensão filosófica daquilo. Dizer que uma coisa não tem
fundamento conhecido, não quer dizer que ela não funcione. Mui-
tas coisas que funcionam, na prática, você não sabe o fundamento.
A máquina a vapor é um exemplo disso. Ela funcionava, mas não
pelos motivos que seu inventor supunha. P.e., quantos aqui conhe-
cem, precisamente, a teoria da eletricidade? Por quê a luz acende
quando você aperta o botão? Ou seja, quantos, dos que sabem do

381
16 Preleção XVI

processo todo, sabem, a cada um dos conceitos que está usando,


qual é a realidade correspondente, e sabe a eficácia real desses
conceitos?
Na hora que você fala em elétrons, já complicou tudo. Elétron,
é um nome que você dá a um efeito de alguma coisa que você
desconhece. Para mim, elétron é um conceito como o de UFO. É
um efeito, um fenômeno, que acontece, e que você, não sabendo o
que é, você o designa com um nome.
Me parece que todos os conceitos da Fı́sica Atômica, do pri-
meiro até o último, são todos assim. A rigor, nem o fı́sico atômico
sabe direito o que esse negócio é.
Então, a teoria de que a eletricidade é um monte de anãozinhos
circulando dentro de um fio, me parece tão respeitável quanto
qualquer outra que me apresentem.
Se você espremer a teoria dos elétrons, você vai ver que os con-
ceitos de base, não correspondem a coisas reais. São nomes de
efeitos.
Você supor que exista uma força que você chama de eletrici-
dade. Essa força se manifesta sob várias formas: é essa força que
faz você tomar um choque elétrico; é essa força que produz um
raio; ela também está presente no seu corpo, etc. Ela tem muitas
manifestações, mas você não conhece a sua natureza.
Porém, você sabe em que condições ela se manifesta em al-
guns canais, e em que condições ela se manifesta em outros canais.
Então, você sabe dirigir, de certo modo, a produção do efeito, mas
você não sabe o que ela é.
Foi justamente tentando responder o que é essa eletricidade que
os cientistas chegaram à teoria atômica. Porém, antes da teoria
atômica, já não existiam máquinas movidas a eletricidade?
Então, você já havia chegado a um domı́nio do fenômeno que,
de certo modo, você não tinha a menor idéia dele. No momento
em que você diz que são átomos, e os elétrons saltam de órbita em

382
16 Preleção XVI

órbita, e vão colocando um cadeia de efeitos, na verdade, não


melhorou em nada. Isto, porque, eletricidade é o nome de um
conjunto de efeitos que você supunha ligados a uma causa única,
cuja natureza você desconhecia. Elétron é exatamente a mesma
coisa.
O que interessa é saber se aquilo corresponde a uma substância
determinada, a um ente determinado, ou se é um efeito, ao qual
você apenas dá um nome que o unificasse.
Isto é mais ou menos como a opinião pública. Ela é um ente,
uma coisa? não. Ela é uma manifestação de uma infinidade de
causas que você não consegue, nem de longe, delinear.
Elétrons, átomos, partı́culas sub-atômicas, são conceitos desse
tipo. não é como, p.e., em Fisiologia, o conceito de circulação
do sangue. você sabe exatamente o que é sangue. Você não é
perfeitamente capaz de distinguir sangue, de uma outra coisa?
Em Geometria, p.e., o quadrado é um conceito perfeitamente
delimitado. Ele não é um nome vago que você dá a uma
constelação de efeitos.
Então, nem todos os conceitos cientı́ficos são igualmente fun-
damentados. Mais ainda, para que as pesquisas prossigam e dêem
frutos, eles não precisam ser fundamentados.
Se você fosse esperar para ter todos os conceitos fundamenta-
dos, não teria nem iniciado as pesquisas. Então, todas as Ciências
caminham meio no claro, meio no escuro.
No instante em que você sabe o suficiente para dar um nome
unificado a uma constelação de fenômenos, que você denomina
eletricidade, claro que você subiu um grau no processo abstrativo.
Você já sabe que a causa que está por trás do raio, e do que se passa
no fio, é mais ou menos a mesma coisa. Você conseguiu unificar
os fenômenos num conceito comum, mas, você não sabe qual é
realmente a natureza desse conceito.
Vamos supor um outro exemplo: Várias pessoas aparecem mor-

383
16 Preleção XVI

tas nas mesmas circunstâncias. Eram todas moças jovens, e foram


degoladas. Então, você descobre que todos aqueles crimes foram
de autoria do mesmo assassino, só que você não sabe quem é ele.
É a mesma coisa.
Na Fı́sica Mecânica, você lida com coisas que você sabe o que
são. Entretanto, nenhuma Ciência tem jamais os seus conceitos
arrumadinhos. Se tivessem, então, acabou a Ciência, porque ela se
fechou dentro de um esquema explicativo final, e não precisa mais
investigar. Se ainda existe investigação em Fı́sica, Quı́mica, etc., é
justamente porque há muita coisa que não está clara.
A opinião popular imagina que todos os conceitos estão deter-
minados pelas Ciências, e que cada conceito corresponde a uma
realidade determinada. Se você fala em neutrino, um garoto de
ginásio acredita que o neutrino é uma coisa, é um ente.
Buraco negro, p.e., é um nome que você dá a uma coisa que
acontece. não é o nome de um lugar. Acreditar em neutrino, e
acreditar em duende, é mais ou menos a mesma coisa.
Você acredita que exista algum tipo de força que faça, p.e., as
plantas crescerem? Por quê a seiva sobe, contrariando a lei da
gravidade? Isto é o efeito de uma força. Essa força você denomina
de duende. O duende vai lá e puxa a seiva para cima. É exatamente
pelo mesmo processo que se inventa o conceito de elétron, e se
inventa o conceito de duende.
Toda explicação inicial é mágica. Se você dá um nome a
um ente, cuja presença você supõe por trás de um conjunto de
fenômenos, isso aı́ é, evidentemente, mágico. Mas, se não for as-
sim, a Ciência não vai para frente. Isso é exatamente como em
Álgebra: quando você não sabe o que é, você denomina de “x”, e
continua raciocinando.
Pode ser que esse x não seja um número, mas, p.e., uma
equação. Por trás daquele x, existem um monte de outros x que
você também desconhece.

384
16 Preleção XVI

O duende, nesse sentido, é um sinal algébrico também; é um


algo. Ou seja, algo faz a seiva da planta, subir. Partindo do
princı́pio de que não existe efeito sem causa, então, algo deve estar
puxando, ou empurrando, a seiva.
A única diferença entre conceito mágico e o conceito cientı́fico,
é que o conceito mágico é feito com a pretensão de ser terminal,
e o conceito cientı́fico é feito, propositalmente, como um sinal
algébrico para ser corrigido posteriormente.
A Ciência pode, mais tarde, trocar o conceito de elétron, por
um outro conceito melhor. Entretanto, a fantasia não pode trocar o
conceito de duende. Num mundo mitológico, quando você trocar
um conceito, cai tudo.
Acontece que o número de pessoas interessadas na solução dos
problemas práticos, já é muito pequeno. A maior parte prefere que
os outros resolvam os problemas práticos.
Então, há uma parte dos seres humanos que sabe que existem os
problemas práticos, p.e., nós precisamos comer, e a comida não se
faz sozinha, então, eu tenho que trabalhar em alimentos.
Dessa parte, há uma parte que se interessa também, não ape-
nas na solução prática, mas também, como é que se resolvem os
problemas práticos, em geral. Então, eles têm o interesse em pro-
blemas técnicos. Então, eles não apenas querem saber como eles
ganham dinheiro, mas, como se ganha dinheiro nessa sociedade.
O indivı́duo que está procurando um emprego, ele não está in-
teressado no problema econômico, em geral. Isto não é um pro-
blema técnico. É um problema exclusivamente prático, dele.
Desses que se interessam pelo problema técnico, há uma parte
menor que se interessa em que esse conhecimento tenha uma es-
trutura cientı́fica.
E, desses, tem uma parte, menor ainda, que se interessa que essa
estrutura cientı́fica seja fundamentada. No fundo, se resume a uma
meia dúzia que carrega tudo nas costas.

385
16 Preleção XVI

A Ciência tanto pode avançar indefinidamente, de descoberta,


em descoberta, quanto pode regredir, indefinidamente, na busca
de fundamentos. E esse movimento é uma espécie de pulsação.
A história da Ciência é uma pulsação. Ela vai para frente até que
chega a contradições insolúveis e, aı́, tem que voltar a investigar
os fundamentos, novamente.
A idéia que existia até uns 20 anos atrás de que as Ciências
se tornaram independentes da Filosofia, a partir da Renascença, é
uma idéia baseada num ciclo histórico que representa apenas uma
dessas pulsações.
Quando chegou ao nosso século, as Ciências encontraram
...(?)..., então, elas começaram a repor as questões fundamentais,
e voltaram para dentro da Filosofia.
[Foi feito o intervalo e a fita pulou uma parte da aula, porque o
gravador não foi ligado]
14. O conceito de uma ciência normativa. O princı́pio que lhe
dá unidade
Começamos por assentar uma proposição de que toda disciplina
normativa, e igualmente toda disciplina prática, repousa sobre uma
ou várias disciplinas teoréticas, na medida em que suas regras de-
vam possuir um conteúdo teorético.
A disciplina normativa, embora esteja subentendida na disci-
plina prática, não contém a prática.
P.e., em termos de julgamentos éticos-morais, quantas vezes
você não sabe o que é o certo e, no entanto, não consegue fazer
isso? Então, você tem a norma, mas não tem a técnica.
Consideremos o conceito de ciência normativa em sua relação
com o de ciência teorética. As leis da primeira expressam o que
deve ser; as da segunda, o que é. Pergunta-se: quê se quer dizer
com esse deve ser oposto ao puro e simples ser?
“Um guerreiro deve ser valente” significa mais propriamente:
só um guerreiro valente é um “bom” guerreiro. “Um homem deve

386
16 Preleção XVI

amar o próximo” quer dizer que quem não o faça não é um ho-
mem “bom”. Em todos estes casos fazemos com que a nossa
valoração positiva, a concessão de um predicado de valor positivo,
dependa do cumprimento de uma condição, cujo não cumprimento
traz consigo o predicado negativo correspondente.
Toda norma implica a idéia de um bem. Em princı́pio, qualquer
norma contém dentro de si a exclusão da norma contrária. Qual-
quer obrigação de fazer alguma coisa, é a obrigação de se abster
de fazer o contrário.
Os enunciados negativos do dever não devem interpretar-se
como negações dos afirmativos correspondentes. “Um guerreiro
não deve ser covarde” não significa que seja falso que um guer-
reiro deva ser covarde, mas que um guerreiro covarde é um mau
guerreiro.
Isto tem uma sutileza. “É falso que um guerreiro seja um co-
varde”, não é mais uma posição normativa; isto é uma proposição
teorética; isto se refere ao verdadeiro e falso. Portanto, uma
proposição normativa negativa, não implica a falsidade do seu
conteúdo. Implica apenas a negação da norma contrária.
“Um guerreiro deve ser valente” e, “Um guerreiro não deve ser
covarde”, como é que, daı́, você vai deduzir o que é um guerreiro?
É conseqüência lógico-formal disso que o dever e o não se ex-
cluam; e o mesmo cabe dizer do princı́pio de que os juı́zos sobre
um dever não implicam nenhuma afirmação sobre um ser corres-
pondente.
Ao estar enunciado um dever, desse dever, você nada pode de-
duzir quanto ao ser a que ele se refere.
Devemos incluir aqui além das proposições com “deve” ou “tem
de”, que dão na mesma também outras proposições como: “para
que um A seja um bom A, basta (ou não basta) que seja B”.
Então, só existem dois tipos de fórmulas de juı́zos normativos:
1) quando o juı́zo é construı́do com Deve, Tem de, Must, Soll,

387
16 Preleção XVI

Il faut, dort; tudo isso são formas da mesma idéia. Ou seja, a


necessidade de que uma determinada condição seja cumprida.
2) Para que tal coisa seja isto ou aquilo, basta que tal ou qual
condição seja cumprida. Aqui está incluı́da a idéia de suficiência.
Enquanto as proposições anteriores concerniam a condições ne-
cessárias, nestas se trata das condições suficientes. Outras expres-
sarão ao mesmo tempo condições necessárias e suficientes.
Com isto esgotamos as formas essenciais das proposições nor-
mativas. Vemos que toda proposição normativa supõe certa classe
de valoração (apreciação) num sentido determinado e com relação
a certa classe de objetos.
Um conjunto, um sistema de proposições, implica em, primeiro,
uma seleção de uma certa classe de objetos. Dessa classe você vai
ver quais são os valores que são pertinentes (bom, mau). Desses
valores é que você vai construir as proposições, das quais, umas
serão na base do necessário, e outras, na base do suficiente. Cada
um deles no sentido do positivo e negativo. Isto aqui é um sistema
normativo.
Cada classe de objetos admite um certo conjunto de valores que
são pertinentes, e há outros valores que são totalmente impertinen-
tes, que não tem nada que ver com aquilo.
P.e., vamos supor que se trate de comidas: as comidas pode-
riam ter um gosto agradável, e ter um gosto desagradável. Sob
um outro aspecto, considerá-las não enquanto alimento, mas, en-
quanto mercadoria, elas poderiam ser caras ou baratas. A comida
em si, enquanto comida, não é cara ou barata. Como mercado-
ria, sim. O que você determinaria como caro ou barato? Deve
haver um parâmetro qualquer. Na definição do valor, você teria
que estatuir um critério qualquer, que seria teorético. Ele mesmo
não faz parte do sistema normativo. O que é essencial é que você
tenha uma classe de objetos, um conjunto de valores que define
para o que aquele conjunto será considerado, bom ou mau, e que

388
16 Preleção XVI

você, em seguida, expresse esses valores, positivos ou negativos,


sob a forma de proposições, que digam quando você considerará
bom ou mau, tal ou qual objeto, no sentido que a palavra bom ou
mau adquire com relação aos valores pertinentes a essa classe de
objetos.
Inversamente, se, sobre a base de uma certa valoração geral, foi
estabelecido um par de predicados de valor para a classe corres-
pondente, fica estabelecida a possibilidade de pronunciar juı́zos
normativos.
Claro, se você define um determinado valor, e com relação a
esse desempenho, um máximo ou um mı́nimo, um bom ou um
mau, então, a partir daı́, você pode enunciar juı́zos normativos.
Conceito de juı́zo normativo: chama-se normativa toda
proposição que, com referência a uma valoração geral básica e
ao conteúdo do correspondente par de predicados de valor, de-
terminado por essa valoração, expressas quaisquer condições ne-
cessárias, suficientes, ou necessárias e suficientes, para a posse de
um dos referidos predicados. Uma vez que tenhamos chegado a
estabelecer uma distinção entre “bom” e “mau” em determinado
sentido e por isto em determinada esfera, interessa- nos natural-
mente averiguar quais circunstâncias, quais qualidades externas ou
internas garantem ou não a bondade ou a maldade no mencionado
sentido.
Ou seja, em que condições um determinado objeto será consi-
derado bom ou mau, naquele sentido. Em que condições, p.e.,
uma comida é admitida como saborosa, que um procedimento é
admitido como imoral, um quadro é admitido como belo ou feio,
etc.
Quando falamos de bom e mau costumamos distinguir também,
em valoração comparativa, o melhor e ótimo do pior e péssimo.
Portanto, todas essas proposições podem ser absolutas ou relati-
vas. Elas podem falar do bom e do mau, ou podem falar do melhor

389
16 Preleção XVI

e do pior.
Isto é a estrutura magna de qualquer sistema normativo que
exista no mundo. Desde os 10 Mandamentos, até o regulamento
do Flamengo, o regulamento das escolas, etc.
Suscitam-se, pois, análogas questões normativas com relação
aos predicados relativos de valor que com relação aos absolutos.
Que questões? Quais são as condições necessárias e quais são
as condições suficientes. Quando consideramos pior, ou quando
consideramos melhor.
A totalidade destas normas forma evidentemente um grupo cer-
rado, definido pela valoração fundamental. A proposição norma-
tiva, que exige em geral dos objetos da esfera em questão que
satisfaçam na maior medida possı́vel às notas constitutivas do pre-
dicado positivo de valor, ocupa uma posição preeminente e pode
designar-se como norma fundamental.
Se nós estivéssemos falando, p.e., sobre comida, o que signi-
fica o sabor agradável em sentido máximo? Como é que nós po-
derı́amos conceber o máximo de perfeição possı́vel, no sentido
gustativo? Isso seria chamado a norma fundamental.
A norma fundamental seria, simplesmente, a expressão em ter-
mos de proposição, do valor fundamental. Todo e qualquer sis-
tema normativo implica uma norma fundamental, mas não quer
dizer que essa norma fundamental esteja explı́cita.
Este papel é representado, por exemplo, pelo imperativo ca-
tegórico na ética de Kant; igualmente pelo princı́pio da “maior
felicidade possı́vel para o maior número” na dos utilitários (ou
pelo primeiro mandamento da Bı́blia).
O que é imperativo categórico? Kant disse: você deve agir de tal
maneira que qualquer outro ser humano, colocado na sua posição,
naquela situação determinada, estivesse moralmente obrigado a
agir do mesmo modo. Ou seja, uma ação, para o Kant, é boa,
quando ela obedece a um princı́pio de obrigação universal. ...(?)...

390
16 Preleção XVI

chama de a Ética Formal.


Ele não diz, p.e., “bom é você amar a Deus”, ou “bom é você
amar o próximo”, não é um princı́pio que indica um valor deter-
minado. É apenas um princı́pio formal. Ele não disse qual é o
conteúdo. Segundo o conteúdo do bem aplicado, a ação só é boa,
se ela obedecer a esse princı́pio da obrigatoriedade universal. Isso
é o que ele chama de imperativo categórico.
Todas as Éticas que surgiram, são ditas Éticas Materiais, porque
elas indicam um bem determinado.
P.e., Aristóteles toma como um bem determinado o cumpri-
mento da finalidade da vida humana: o ser humano é um bicho
que está colocado como um animal racional, e o objetivo dele é
evoluir no sentido da racionalidade do conhecimento. Portanto, a
vida tem
uma finalidade espiritual. Bom é o que concorre nesse sentido.
Mau é o que se opõe. Ele indicou um valor material, determinado.
Nós poderı́amos fazer um novo princı́pio ético qualquer, p.e.,
suponha uma ética socialista, comunista, onde a finalidade é você
realizar um processo histórico.
O homem é um ser essencialmente histórico, e está aı́ para fazer
história. A História consiste na sucessão das formas de dominação
dos meios de produção (comunidade primitiva — feudalismo —
capitalismo — socialismo). Então, bom é o que comporta o pro-
cesso histórico. Se você ajuda a fazer a Revolução, é bom, se não
ajuda, é mau.
Entre você tomar a evolução do homem no sentido de realizar-
se como cognoscente, como racional, ou você escolher o caminho
de definir o bem segundo a maior ou menor contribuição que um
determinado ato traga para a Revolução, essa é a diferença entre
dois valores, materiais. Material significa que é um valor que tem
um ponto determinado.
Kant não faz nada disso. Se perguntarmos para ele se se deve

391
16 Preleção XVI

fazer a Revolução, ou se você deve evoluir intelectualmente, ele


dirá: “não sei! Mas, eu sei que uma dessas coisas, ou a outra,
só será certa se qualquer outro ser humano colocado na mesma
situação tiver a obrigação de fazer exatamente o mesmo”.
A universalidade da obrigação é, em si mesma, a norma funda-
mental. Se o amor a Deus, p.e., exigir que o sujeito permaneça
burro, ele permanecerá burro. Se o exigir que ele evolua intelectu-
almente, ele assim o fará. Porque o valor é outro.
Se perguntarmos a Kant: devo amar a Deus sobre todas as coi-
sas? Ele diria: depende. Mas, depende do quê? Depende de se
qualquer outro ser humano colocado na mesma situação, também
devesse amar a Deus.
Ou é uma obrigação que serve para qualquer ser humano
naquela posição, ou não é obrigação. Ou seja, não existem
obrigações inerentes a uma individualidade concreta.
Só existe obrigação para o ser humano em geral. Tudo isso se
chama Ética Formal. não diz o que você deve fazer, mas uma
condição formal que a sua ação deve atender para poder ser boa.
Do mesmo modo, Husserl dá um outro exemplo do princı́pio da
ética utilitária, da ética de Jeremias Benton(?) que é o da maior
felicidade possı́vel para o maior número possı́vel de pessoas.
Você deve agir de maneira que, dos seus atos, resulte a maior fe-
licidade possı́vel para o maior número de pessoas. É um princı́pio
obviamente material. E é uma norma fundamental.
Se amar a Deus sobre todas as coisas ajudar para a felicidade do
maior número de pessoas, então, isso é bom, senão, é mau.
A norma fundamental indica o princı́pio (o valor fundamental)
com ajuste ao qual deve verificar-se toda normação, e por isto ela
não representa uma proposição normativa em sentido próprio. A
relação da norma fundamental com as proposições propriamente
normativas é análoga à que existe entre as chamadas definições da
série numérica e os teoremas aritméticos sobre relações numéricas

392
16 Preleção XVI

— fundados sempre naquelas. Cabe também designar a norma


fundamental como a “definição” do conceito do bem correspon-
dente, mas isto seria abandonar o conceito lógico habitual de
definição.
Se nós fossemos conceber um sistema normativo, como é que
nós farı́amos? Começarı́amos por assentar a norma fundamental?
Parece que sim, mas, a norma fundamental é o fundamento lógico
do sistema normativo, e não é a primeira coisa que você descobre.
A primeira coisa que se deve fazer é escolher qual é a classe de
objetos sobre a qual você vai legislar. Vamos escolher uma classe
de objetos bastante complicada, mas que é aquela de máximo inte-
resse, que são os procedimentos e comportamentos humanos. Nós
vamos conceber um sistema ético.
não é uma filosofia ética; não vamos fundamentar a Ética. Nós
não vamos ver se o nosso sistema é verdadeiro ou falso, fantástico
ou razoável. não é isso que nos interessa, agora.
Interessa somente duas coisas: ele tem que representar as
valorações que você efetivamente faz; ele tem que ser coerente.
Ou seja, ele tem que ser um sistema.
Para tanto, vamos proceder da seguinte maneira: primeiro, nós
temos que abarcar os campos dos objetos. Nós temos que saber
quais são os objetos. É o recorte do campo.
A maneira de recortar, para nós, vai ser muito fácil. Vamos
pegar num dicionário, de preferência, analógico, todos os nomes
de procedimentos e atitudes humanas, sobre os quais nós costu-
mamos emitir um juı́zo de valor. Todos os hábitos e qualidades
humanas sobre as quais nós costumamos emitir um juı́zo de valor.
P.e., a perseverança, a covardia, a generosidade, ou seja, o que se
costumava chamar de virtudes e vı́cios.
Isso vai levar alguns meses para vocês fazerem. Mas, isso vai
ser um grande passo para vocês entrarem na formação da mentali-
dade filosófica.

393
16 Preleção XVI

Vocês vão tentar acertar os pontos com relação à Ética. O que


vocês pensam mesmo com relação a esse objeto. Depois de você
dizer o que você pensa mesmo, daı́ você pode fazer a crı́tica do
que você mesmo pensa, mas, primeiro tem que dizer o que pensa,
tal como pensa. Para delimitar o campo, não o aumente além das
palavras que já estejam no dicionário. Também não precisa ser
completo no sentido exaustivo. Se faltar alguma coisa, você per-
ceberá mais tarde. O importante é que, com isso, você consiga
abarcar todos os valores e contra-valores que você costuma atri-
buir ao procedimento humano. P.e., você nunca acusou alguém
de ser covarde, mentiroso, desonesto, indeciso, etc.? Você emite
constantemente, juı́zos de valor, sobre si mesmo, e sobre os outros
(na verdade, mais sobre os outros...).
Esse exercı́cio vai introduzir clareza no seu juı́zo, a custa de um
pouco de esforço. não quer dizer que esses juı́zos serão certos,
mas dali em diante vocês não serão o non-sense completo.
Assim:
1) demarcar o campo: a classificação pode ser por ordem al-
fabética, como está no dicionário. O campo é constituı́do pelos
nomes das qualidades e defeitos correspondentes.
2) achar os contrários de cada nome. Uma mesma coisa pode
ter vários contrários em vários sentidos. Significa que, para cada
contrário, corresponde um sentido da palavra.
3) aı́, vocês vão começar a distinguir o que são os termos, e
quais são os conceitos que estão lá, implı́citos. Se ao mesmo termo
equivale 5 contrários, esse termo designa 5 conceitos. P.e., covar-
dia 1, covardia 2, covardia 3, covardia 4 e covardia 5.
4) depois, você vai tentar definir exatamente no sentido em que
você costuma aplicar essas palavras. não é para ver a definição
no dicionário, porque ele explica apenas o sentido de termos, e
nós não estamos nos referindo aos termos e, sim, aos conceitos
correspondentes, tais como você os entende. Com isso, você vai

394
16 Preleção XVI

chegar a um grupo mı́nimo, irredutı́vel, de conceitos.


5) finalmente, você vai expor esses conceitos sob forma de
proposições. p.e., um homem generoso deve fazer tal e tal ...
não interessa muito você julgar se as suas proposições são ver-
dadeiras ou falsas, o que interessa é que você consiga exprimir o
que você realmente considera.
É claro que, na maior parte dos casos, vai acontecer aquilo que
sempre acontece, que é quando você pergunta, p.e., o que é gene-
rosidade, ao invés de dar uma definição, você dá um exemplo.
6) depois de tudo isso, você vai descobrir qual é a norma funda-
mental que está por trás de cada proposição feita. A norma funda-
mental que está por trás do seu sistema ético.
não tem outro jeito de você consertar as suas opiniões, se você
não souber o que são essas opiniões.
Mais complicado que tudo isso, seria você corrigir as suas
opiniões, uma a uma. Se você captar a norma fundamental, ao
corrigi-la, você corrige o resto das suas opiniões. Clareza signi-
fica fazer menos juı́zos arbitrários, obscuros, totalmente subjeti-
vos. Porém, isso aqui vai ter uma conseqüência muito grave sobre
as suas cabeças: vocês vão entender o quanto é sério você fazer
um julgamento sobre um outro ser humano.
Daı́, vocês podem perguntar: por quê determinados procedi-
mentos que, em si mesmos, nada têm de errado, me irritam tanto?
E pro quê eu costumo atribuir esses comportamentos a deficiências
morais?
P.e., tudo aquilo que nos irrita, mas, automaticamente, emitimos
um juı́zo moral. Isso aı́ só é válido se você colocar como norma
fundamental o seguinte: tudo o que me irrita é mau; tudo o que me
agrada, é bom. Essa é ética de um garoto de 3 anos de idade.
Uma vez feito esse exercı́cio, ou você diz adeus à ética do garoto
de 3 anos, ou você faz um suicı́dio da sua inteligência para sempre,
e parte para o vale-tudo.

395
16 Preleção XVI

Inicialmente, a delimitação do campo deve ser exaustiva — o


máximo de palavras possı́vel. Porém, o sistema que você vai cons-
truir deve ser o contrário, deve ter o mı́nimo de conceitos possı́vel.
Dêem preferência, sobretudo, não a aqueles conceitos que
pareçam objetivamente importantes, mas, a aqueles que expressem
as opiniões que, habitualmente, vocês já emitem sobre as pessoas.
Com isso, as pessoas que se conhecem mais, às vezes, são mais
aptas a saber, para um outro indivı́duo, quais são as opiniões que
ele costuma ter. P.e., quando você abre a sua boca para criticar al-
guma pessoa, quais são os defeitos que com mais freqüência você
assinala, aqueles a que você é mais sensı́vel? O que importa é que
você se defina com relação a isso. P.e., se o fenômeno da covardia
não te chama a atenção, mexe menos com relação a você, então,
ele importa menos para o teu sistema real.
Só com isso aqui você já vai perceber um monte de
contradições, e vai ter que se ajustar com relação a si mesmo. Isso
aqui é quase um histórico da Psicanálise.
O exercı́cio tem que sair com uma definição das principais vir-
tudes, e vı́cios, tais como você as entende. P.e., consideremos a
luxúria. Você se impressiona por uma pessoa ser luxuriosa? Se,
não, esse conceito parece que está fora do seu sistema moral. Na
opinião corrente, ele seria moralmente neutro. Pelo menos, parece
que sim. Então, se não há opinião moral sobre isso, não interessa
você perder tempo nesse tópico.
P.e., a prudência, ou a imprudência. Prudência é uma virtude
importante, de acordo com certos sistemas éticos antigos. En-
tretanto, a imprudência, a pessoa agir de uma maneira que não
é sábia, insensata, você costuma considerar isso muito grave? Uns
sim, outros, não. Em geral, parece que uma conduta insensata está
fora de julgamento moral.
Para mim, pessoalmente, isso é muito grave. Eu estou habituado
a ferver de raiva, sempre que uma pessoa diz que fez uma coisa,

396
16 Preleção XVI

sem perceber. Fazer já é grave, e não perceber, é muito mais grave
ainda. Mas, isto é uma atitude minha. Eu não considero que a
ausência de intenção explı́cita seja desculpa para nada. Aliás, é
exatamente o contrário, porque qualquer coisa que você faz sem
intenção, é porque você faz por hábito. Ou seja, você fez sem
precisar pensar que ia fazer. Mas, essa é uma atitude ética que,
eu mesmo, pensando, cheguei, e que não é compartilhada pela
maioria das pessoas. A tendência natural do meio é dizer que você
fez sem querer!
Então, quer dizer, o sujeito que rouba por hábito é menos cul-
pado do que o que roubou uma vez só. Na verdade, é o sem querer,
querendo, ou seja, significa que eu não quero prestar atenção nesse
assunto. Eu não quero prestar atenção no seu pé que está na frente,
eu quero é ir pisando. Isto é uma má intenção, que se oculta sob
a fachada de uma ausência de qualquer intenção. Quando você
é acusado de alguma coisa qual é a sua tendência imediata? É
examinar para ver se você realmente fez aquilo? O reflexo é exa-
tamente o contrário: é tirar da reta, mediante uma negativa, onde
nós inventamos uma justificação.
A justificativa automática se baseia numa norma fundamental,
segundo ao qual, eu não posso errar. Se eu errei, ou é falso, na
verdade, não errei, ou é um erro aparente, que na verdade é um
acerto. São reflexos que você vê normalmente, no dia-a- dia.
Quando você terminar de fazer esse exame, você vai ver que
você está num meio social onde qualquer consciência moral é
quase proibida. E, daı́, você vai entender porque não existe Ética.
A exigência de que se exista uma Ética, é totalmente utópica.
Particularmente, eu acho muito engraçado que as pessoas quei-
ram que, especificamente, os polı́ticos deveriam ser mais honestos
que o resto da população. Normalmente, é o contrário.
Se você já está num meio onde a falta de conceitos éticos é total,
como é que os polı́ticos deveriam ser honestos? Se não existe o

397
16 Preleção XVI

hábito de você se julgar, e de se considerar culpado, quando está


culpado, se não existe o hábito de saber que existe culpa, erro,
então, sem dúvida, você não tem consciência moral nenhuma.
Hoje em dia, as pessoas estão muito angustiadas e, por isso,
elas não agüentam mais culpas, então, existe uma espécie de ne-
cessidade de se livrar de qualquer sentimento de culpa, e essa ne-
cessidade é totalmente contrária ao desenvolvimento de qualquer
consciência moral, porque se não existe culpa, não há moralidade
alguma.
Com isso, nós vemos que o problema ético na sociedade bra-
sileira é muito mais profundo do que a imprensa propaga. Eles
acham que se deve fazer uma campanha de moralidade, por meia
dúzia de pessoas na cadeia, etc. Colocar as pessoas na cadeia,
o punitivo, já não é mais uma Ciência normativa, e sim, uma
Ciência prática, que decorre de uma norma. Punir os culpados,
é uma decorrência de você ter ensinado uma determinada norma,
essa norma ter sido apreendida e, em seguida, haver uma violação.
Mas, e se a norma jamais for apreendida, e você começa a punir
os culpados?
O problema da imoralidade da administração pública, não é só
no Brasil, mas no Terceiro Mundo em geral, ela tem raı́zes muito
anteriores. Existem massas de indivı́duos que não tem a menor
idéia do que é ter uma culpa, e perderam isso de vista, há muito
tempo.
Num meio assim, a culpa quando não é aceita conscientemente,
e fica inconsciente, aı́, aumenta enormemente. Vira um monstro,
porque você está culpado de tudo o que aconteceu.
A idéia desse exercı́cio é a de que se nós conseguirmos fazer um
núcleo de pessoas que estejam muito conscientes de que o julga-
mento moral, por um lado, não é tão terrificante quanto as pessoas
imaginam, não é tão complicado, impossı́vel, mas que, por ou-
tro lado, é absolutamente impossı́vel você acertar sem uma noção

398
16 Preleção XVI

clara de culpa e inocência, bem e mal.


Eu acho que se houverem umas 10 pessoas que tenham essa
noção esclarecida, isso vai fazer um bem muito grande para a so-
ciedade em torno, mesmo sem abrir a boca.
É isso que eu estou convidando vocês, pela primeira vez na vida.
Vai começar com a simples exposição das idéias que vocês já te-
nham, sem importar se elas estão todas erradas. O que importa
é dizer o que você realmente pensa: “eu considero generoso um
homem que age assim e assado”; “para que seja generoso, basta
que..., ou basta que ...”, “eu considero covarde o sujeito que pro-
cede assim e assado”.
Depois, mais tarde, você vai fazer a crı́tica disso. Mas, primeiro
exponha essas proposições e depois você encontre a norma funda-
mental que está por trás delas.
A norma fundamental teria que responder à pergunta: o que é
um homem bom?
Mas, não é isso que você vai responder, agora, não. Do que você
expressou, você vai, retroativamente, entender o que você sempre
considerou como um homem bom.
Pode ser que você descubra que o seu conceito é muito estreito,
ou que você não tem conceito nenhum, ou que é um conceito mera-
mente empı́rico, ou que é um conceito subjetivo (bom, é o homem
que te ajuda; mal, é o homem que te atrapalha), mas algum você
vai ter.
não é necessário que o trabalho final, que será apresentado por
escrito, expresse integralmente a opinião de cada um. Cada um,
mesmo que a sua opinião não esteja ali contida no trabalho, ele já
sabe qual é. Você faz um trabalho para fora, e outro para dentro.
O trabalho para dentro é o que interessa.
O grupo serve apenas como referência para ele poder discutir
aquilo. Tentem reduzir a um mı́nimo possı́vel, partindo de uma
amostragem grande. Quanto mais rápido for feito esse trabalho,

399
16 Preleção XVI

melhor para vocês, mesmo que ele seja incompleto, deficiente; não
tem importância.
Você vai ver que existem muito mais vı́cios e virtudes do que
você costuma atribuir às pessoas. Mais ainda, você vai aprender
qual é o nome exato daquelas que você costuma atribuir. Muitas
não tem, sequer, nome.
Se na procura de nomes você passar por, p.e., preguiça, você
não percebe que aquilo é um termo moral, significa que para você,
não é. Então, não considerem.
Procurem só os termos que vocês considerem como morais e/ou
imorais.

400
17 Preleção XVII
18 de março de 1993

[Neste começo de aula, Olavo faz um esboço do exercı́cio]


Uma teoria que explica imperfeitamente um fenômeno, você diz
que ela é injusta ou parcial? Ela é parcial, pois não comete uma
injustiça. Existe uma parcialidade puramente intelectual, teórica,
mas não é uma injustiça teórica. Portanto, se referem a coisas
diferentes (imparcial e injusto).
Dificilmente você vai encontrar uma palavra que diga exata-
mente o que você quer dizer, no mesmo sentido que você exprime.
P.e., maleável, é um sujeito do tipo maria-vai-com-as- outras. Imo-
ral, p.e., é genérico demais.
Vamos procurar na memória, palavras que expressam idéias
afins ao conceito de qualidades e defeitos humanos. As conexões
entre essas palavras seriam altamente duvidosas porque as pala-
vras iriam ocorrer mais ou menos a esmo. não há uma conexão
lógica entre elas. Há apenas uma conexão de no uso habitual elas
são usadas mais ou menos dentro do mesmo contexto. Sejam per-
tinentes ou sejam impertinentes.
O dicionário analógico organiza as palavras mais ou menos as-
sim. Todas as palavras que, no uso corrente, são usadas em con-
textos parecidos. não quer dizer que haja realmente uma conexão
entre elas, ou que esse uso seja próprio mas, simplesmente, ele
está te dando o material bruto da linguagem.

401
17 Preleção XVII

É uma lista de palavras que só estão ligadas a um mesmo con-


ceito, por força do uso. É uma ligação meramente acidental. Se
você procurar uma lógica num dicionário analógico, você não vai
encontrar.
Analogia é uma gaveta da memória onde você coloca coisas que
pareceram semelhantes, às vezes, por coincidência fortuita, mas
que se continuar a ser usada no mesmo sentido consolida aquela
significação.
A lı́ngua se faz assim. Ela não é racional. Se ela já viesse
com todas as categorias arrumadas, as palavras classificadas com a
natureza dos objetos correspondentes, a lı́ngua seria, em si mesma,
um sistema filosófico.
Se a lı́ngua já te desse tudo pronto, você não teria nem que pen-
sar, é só falar que tudo dá certo. Na verdade, existe a Filosofia
justamente onde a linguagem não é assim.
Tanto que houveram filósofos que acreditavam que a Filosofia,
toda, pudesse se resumir a uma análise da linguagem, e a uma
espécie de limpeza da linguagem. Coisa que eu não concordo,
mas, não deixa de ter lá a sua razão.
[continuação dos exemplos]
Desobediência, em si, é defeito? No seu entender, por quê o
sujeito desobediente é mau? Desobediência é uma atitude com
relação a uma ordem. Então, se você não sabe qual é o conteúdo
dessa ordem, não dá para saber se a obediência é virtuosa, ou
maléfica.
A desobediência em si, não é uma atitude moral. A obediência
se funda numa atitude moral. A obediência é uma relação que se
estabelece entre o modo e um determinado comportamento moral
que se exige dele.
Então, nós estamos falando aqui de comportamentos que sejam
materiais, que tenham um conteúdo próprio. P.e., quando você diz
que o sujeito é negligente, não importa a que. A negligência, em si

402
17 Preleção XVII

mesma, está subentendida que é ruim. A desobediência já depende


do contexto.
Transgressão, p.e., é como desobediência, é um termo pura-
mente formal. Ela também não é, em si mesma, uma atitude moral.
Desrespeito, p.e., é uma nome de uma classe.
Irreverência: não é possı́vel se dizer que um sujeito é irreve-
rente, perante uma coisa, ante a qual não se espera reverência, não
é? Os outros diriam que ele é irreverente, mas ele não se conside-
raria.
A irreverência não é como a transgressão ou a desobediência
que são termos inteiramente formais. A irreverência tem algum
conteúdo que implica uma determinada atitude, perante algo que
se pretende digno de reverência.
Esse termo pode ser valorizado positivamente, ou negativa-
mente, porém, sempre que for valorizado positivamente, o próprio
indivı́duo que é irreverente, que invaloriza sobretudo, ele não con-
cordará que ele é irreverente.
P.e., o sujeito que faz uma sátira rı́gida de alguma instituição
pretensamente respeitável, os outros lhe dirão que ele é irreve-
rente, mas ele dirá que rir de uma coisa dessas não é irreverente.
Quando você diz que um sujeito é desobediente, ele pode con-
cordar com essa qualificação, quer ele aceite a desobediência
como má, porque aı́ ele acha que é boa. Mas, p.e., a ingratidão,
não.
Desobediência e transgressão são termos puramente formais,
que não implicam numa valoração, em si mesmas. Mas, a ingra-
tidão, não.
P.e., se você é acusado de desobediente a uma ordem, você pode
dizer que desobedeceu mesmo, porque você acha a ordem injusta.
Portanto, o mesmo termo pode ser usado no sentido positivo ou no
negativo.
Quando alguém te acusa de ingrato, você pode dizer que não

403
17 Preleção XVII

foi ingrato porque você acha que não deve nada a alguém. Ou
seja, você vai rejeitar o qualificativo de ingrato. No caso da deso-
bediência você aceita o termo, mas muda só a valoração.
Há muitos termos que são usados negativamente em geral, mas
que, em si mesmos, não implicam a valoração negativa. Então, são
termos formais, e a ingratidão não é um desses.
O que eu estou querendo saber é se a irreverência é um termo
formal, ou não. Me parece que não. Um termo formal não pode
ser colocado dentro da definição de virtude e vı́cio, porque ele não
é nem virtude, nem vı́cio; tanto podem ser positivos ou negativos,
dependendo do ponto de vista.
A ingratidão é uma situação definida. Você só pode ser ingrato
com quem te ajudou. O problema é que na maior parte dos casos,
usa-se o termo irreverência num sentido metafórico. É como se
usa no Brasil, o termo polêmico. Qualquer pessoa que fale algo
que você não goste você diz que é polêmico. Polêmico, é quando
você fala uma coisa que pode ser questionada e que pode dar a
maior confusão.
Irreverente, propriamente, seria um sujeito que, sabendo que
algo é digno de reverência, por isso mesmo, ele se levanta contra.
Seria como blasfemar.
Se eu não acredito em Deus, ou que Ele exista, o que quer que
eu fale dele não é blasfêmia. Se eu acredito, e estou zangado com
ele, e o xingo, aı́, neste caso, é uma blasfêmia. O ateu, p.e., não
pode fazer sacrilégio.
Da lista dos termos que vocês acham que sejam bons ou ruins,
os que sobrarem constituirão valores, positivos e negativos, que
terão que ser transformados em normas. Quanto menos sobrar,
melhor.
Ingratidão, é o não reconhecimento devido a um benfeitor. É o
não reconhecimento a um benefı́cio recebido.
O que caracteriza o ato da ingratidão? Quando nós podemos

404
17 Preleção XVII

dizer que um sujeito foi ingrato, ou não? Dito de outro modo,


nos termos do Husserl, qual é a condição necessária, a condição
suficiente, ou a condição necessária e suficiente, para nós dizermos
que um sujeito foi ingrato?
Aqui é que nós começamos a tratar em termos de normas.
Na definição que nós demos, a devolução ou a retribuição não
fazem parte dessa definição, mas apenas o reconhecimento. Isso
quer dizer que nós podemos baixar uma norma de que todo sujeito
que não retribui o benefı́cio recebido, é ingrato? não, porque a
retribuição não faz parte do conceito da ingratidão.
O reconhecimento é uma condição necessária, suficiente, ou ne-
cessária e suficiente, para nós dizermos se houve gratidão? Se não
dá para saber isso, então, nós temos que fazer uma sub-norma:
houve reconhecimento em tais ou quais casos, e não houve em tais
ou quais casos.
Vamos explicitar isso. A gratidão, por definição, é o reco-
nhecimento de um benefı́cio recebido. Transformando isso numa
sentença normativa, nós dirı́amos que houve gratidão sempre que
houve o reconhecimento de um benefı́cio recebido.
Sub-norma: quando houve reconhecimento de um benefı́cio re-
cebido? O que define o reconhecimento, e o não? Nunca aconte-
ceu, na vida, de vocês acharem que alguém foi ingrato com vocês,
ou com alguma outra pessoa? E o que caracterizou essa ingra-
tidão? A gratidão ou ingratidão não está no benfeitor, está em
quem recebeu o benefı́cio, portanto, o que o benfeitor pensa, não
interessa.
O conceito de gratidão pressupõe que houve um benefı́cio real,
não compensado com um benefı́cio pela devolução de um outro
benefı́cio. Vejam, então, quantas normas estão por trás disso tudo.
Para colocarmos a ingratidão aı́, nós terı́amos que colocar a be-
neficência como uma virtude, e se a beneficência não for uma vir-
tude, como a ingratidão poderia ser um vı́cio?

405
17 Preleção XVII

Normalmente, na vida prática, nós legislamos, baixamos nor-


mas, sobre aspectos de detalhes, sobre casos particulares, sem en-
tendermos as normas mais gerais que existem, nas quais isso se
assenta.
Um dos objetivos do exercı́cio é explicar as normas nas quais
vocês acreditam sem nunca se terem dado conta. Se a bene-
ficência, e a tua generosidade, não são uma virtude, então, a in-
gratidão, que é um não de um benefı́cio, não pode ser um vı́cio, de
maneira alguma.
Então, para colocar a palavra ingratidão como vı́cio, você tem
que por a generosidade como uma virtude. Qual é o contrário de
generosidade? Mesquinhez.
Se você tivesse definido generosidade e mesquinhez, para de-
pois você condenar a ingratidão, bastaria que você dissesse que
ela é uma mesquinhez.
Assim, você vai organizando os gêneros e as espécies. Se a
ingratidão é um tipo de mesquinhez, então, não precisa ter uma
norma explı́cita sobre ela; basta dizer que ela é mesquinhez. Sim-
plifica.
Assim, qual é a condição necessária e suficiente para você po-
der dizer que houve uma ingratidão? Veja nos casos concretos:
quando você atribuiu ingratidão a alguém, foi por quê? Qual era
o raciocı́nio que estava subentendido na sua condenação? Que
norma estava implı́cita quando você fez a condenação?
A ingratidão de tipo afetiva, é uma espécie, é uma particulari-
dade. estão compreendendo como na vida diária nós legislamos
sobre particularidades, sem perceber e, às vezes, sem admitir a
norma implı́cita que aquilo se baseia?
Mesmo entre pessoas onde não haja qualquer tipo de vı́nculo
afetivo, de nenhuma espécie, é evidente que pode haver ingratidão.
Então, o vı́nculo afetivo não é necessário para que exista uma
ingratidão. No entanto, todos lembram do vı́nculo afetivo. Isso

406
17 Preleção XVII

mostra que esse caso particular de ingratidão, afetiva, lhes chamou


a atenção. não é que ele aconteça com mais freqüência.
Quando você faz um sistema de normas morais, e pega somente
detalhes, particulares, então, é um sistema subjetivamente orien-
tado. É totalmente distorcido, onde você vai julgar os outros de
acordo com aquilo que te fere. Mas, e se o sistema subjetivo do
outro é completamente diferente?
Vou lhes dar um exemplo: eu tinha um amigo, que achava que
a coisa mais feia que um homem pode fazer é deixar uma mulher
desamparada, quando ela quer transar com ele. Ora, ele era um
“cavalheiro”... E, ele agia assim.
Então, eu lhe perguntei: e se fosse a mulher do próximo? Ele:
“Também!”. Ele usava o termo “fazer carinho”. Isso quer dizer
que ele achava que esse era um procedimento certo.
Ora, há algo realmente de errado em você desprezar aquela que
te deseja, não é? Porém, o sujeito era sensı́vel a essa maldade.
Vamos supor que ele encontrasse com alguém que pensasse exa-
tamente o contrário: que a coisa mais feia do mundo é você tran-
sar com uma mulher só porque ela quer transar contigo. E vamos
supor que um desses conhecesse a mulher do outro. O que iria
acontecer? Meu amigo diria: “Mas, eu transei com a sua mulher
porque ela queria, e eu não podia fazer uma maldade dessas, não
podia deixá-la desamparada. não seria humano...”. Ou seja, não
se pode negar que o sujeito percebeu algo que realmente é errado,
mas esse algo toca a ele. Entretanto, e se ele faz disso uma norma
universal? De fato, o princı́pio que ele cumpria, não vigora, por-
que qualquer julgamento que você faz, você sempre pretende que
seja universal.
De fato, todo mundo pratica o tal do imperativo categórico.
Todo mundo acha que qualquer outro, colocado naquela posição
dele, teria que fazer mais ou menos a mesma coisa, e é por isso
mesmo que ele faz.

407
17 Preleção XVII

Em geral, na vida prática, os nossos preceitos morais são todos


desse tipo: o particular, ampliado, generalizado até a universali-
dade, como norma.
Porém, esse particular, por sua vez, ele se fundamenta logi-
camente em outras normas que você desconhece. Quando você
aplica uma norma, e quando você aplica outra?
Se você pegar várias normas particulares, você vai ver que todas
elas se baseiam em algumas normas mais gerais. É a norma geral
que dá o critério de aplicação das normas particulares.
Então, vamos supor o princı́pio: jamais podemos deixar de fazer
carinho pelas mulheres interessadas. Qual é o fundamento disso?
Qual é a norma mais geral, da qual, essa é um caso particular?
Seria, p.e.: fazer o bem ao próximo.
Porém, se ele fizesse isso somente com as mulheres interes-
sadas, ele teria que deixar de cumprir essa mesma norma com
relação aos maridos das referidas mulheres.
Quando você sobe desde a norma particular até o seu funda-
mento mais geral, você vê como você está sendo inconseqüente
quase que o tempo todo. As discussões morais, as condenações,
os elogios, geralmente, são baseadas nesse tipo de aberração.
Graças a Deus, as pessoas, em geral, não têm autoridade sobre a
vida moral alheia, porque se tivessem, seria um Deus- nos-acuda!
E também, as opiniões morais das pessoas já não são ouvidas.
Porém, aqueles que pretendem levar uma vida intelectual, que
pretendem que sua opinião tenha uma autoridade, eles não po-
dem continuar assim. Você tem que ser mais responsável nas suas
opiniões, porque, se você julga o próximo com um determinado
critério, você tem que admitir que esse critério é válido também
para você.
Se você faz qualquer julgamento com uma determinada norma
particular, você tem que aceitar também a norma geral na qual
aquela se fundamenta.

408
17 Preleção XVII

E você também tem que aceitar que, em função dessa norma


geral, talvez aquela particular que você tem usado, não se aplique
naquele caso.
P.e., se você coloca uma ênfase afetiva na ingratidão, você cer-
tamente conseguirá, com a maior boa consciência, ser ingrato com
um monte de pessoas às quais você não está afetivamente ligado,
e não vai se sentir um ingrato.
Isso aqui já é uma crı́tica da norma.
Na hora que você vai tentar definir a norma relativa à ingra-
tidão, você cair num particular, então, você tem que remontar a
uma norma mais geral.
Se você conseguir fazer um sistema moral que chegue a 10 nor-
mas, e verificarmos se atrás dessas normas existem outras que as
fundamentam, nós já vamos corrigir um monte de critérios morais.
P.e., por quê a ênfase no afetivo? O afetivo parece mais importante.
Mas, o afetivo seu; o afeto do outro, você não sente?
Então você supõe que a ingratidão é pior se você é ingrato com
alguém que você gosta. E se você for ingrato com alguém que
gosta de você, sem que você goste dele? Você não sente a ingra-
tidão. E, essa é a definição mesma da ingratidão. E, duplamente
ingrato: você ingrato por não gostar de alguém que gosta de você,
e é ingrato por não reconhecer o benefı́cio que ele te fez, e, por
último, você é ingrato por não dizer que isso é ingratidão.
Isto quer dizer que, na vida diária, o que nós chamamos de
justiça é, precisamente, o que é injustiça. A ausência de clareza
sobre esses pontos é quase universal. A confusão é total.
Os 10 Mandamentos são uma fórmula de normas gerais. Eles
são princı́pios morais.
Se você pegar o primeiro mandamento: Amar a Deus sobre to-
das as coisas. O que é Deus? Quid est? não sabemos nem se Ele
existe. Porém, se existisse, Ele deveria ser algo bom. Mas, não
essa ou aquela coisa boa em particular. Então, você começa a ex-

409
17 Preleção XVII

plicitar essa norma, em normas mais concretas: o Bem universal


deve ser amado acima de todos os bens parciais, ou particulares.
Por outro lado, esse Deus, se existir, deve ser verdadeiro. Aliás,
se Ele não existe, Ele não é nem Deus. Então, você deve amar o
que é verdadeiro acima do que é falso.
A mais mı́nima aplicação de um desses critérios ao julgamento
de um ato qualquer já bastaria para corrigir os critérios desse ato.
P.e., se nós dizemos que o Bem universal deve ser preferido a qual-
quer bem particular, então, no caso da gratidão e ingratidão, você
teria que ver o que existe de intrinsecamente bom no ato do seu
benfeitor, e no seu. E, tanto um ato, quanto o outro ato, deveriam
ir no sentido do Bem.
P.e., a preferência pelo Bem. Você tem certeza que você prefere
o Bem? Se você não prefere o Bem, com que autoridade você
julga os outros?
Preferir o bem como norma moral, seria a norma fundamental
de qualquer código. Isto significa que, em qualquer caso, em qual-
quer situação em particular, por mais peculiar, esquisita, singular,
que seja, deve haver um lado, algo, que favoreça o Bem universal.
Bastaria você aplicar isto que você já corrige imediatamente. P.e.,
quando você deve ser grato? Sempre que a gratidão for um bem.
Quando que a gratidão é um mal? Em princı́pio, jamais. E se
você for grato a quem não te fez nenhum benefı́cio? Há algum mal
nisto? não. Digamos que seja neutro.
E se você for ingrato com quem te fez um benefı́cio? Aı́, isto é
mau!
E se você for grato com quem te fez um benefı́cio, com má
intenção? Em princı́pio, se é para aplicar o Primeiro Mandamento,
é ser grato sempre, por via das dúvidas.
Isto significa que nenhuma ingratidão se justifica jamais sob
pretexto algum.
Uma maneira simples de você construir um código moral seria

410
17 Preleção XVII

você pressupor os 10 Mandamentos, e interpretá-los ao seu modo,


não teologicamente, mas de acordo com o simples sentido lógico
que as frases tem e você deduzir dali.
Uma outra maneira seria você pegar as virtudes teologais da
Igreja católica (Fé, Esperança, Caridade, Fortaleza, Temperança,
Justiça, Prudência), e ver como você entende cada uma destas, mas
este método não seria bom porque eu não quero que vocês façam
um sistema perfeito.
Eu quero é que vocês percebam as lacunas que existem no sis-
tema moral de vocês. Estas lacunas são a de que vocês legislam
sobre o particular, sem legislar sobre o geral. Isto é o que se chama
de casuı́smo.
Sem ter um princı́pio determinado, você legisla para um deter-
minado caso, você faz uma lei que se aplica a um caso e isto é uma
distorção tremenda. Se você for legislar caso por caso, então, cada
passo é uma norma e não acaba mais. Isto também significa que
tudo o que você faça está certo.
Geralmente, as normas morais de uso corrente são todas
casuı́sticas. Então, não é possı́vel haver nenhuma justiça nisso,
nunca.
Qualquer sistema moral pressupõe uma estrutura lógica de-
dutı́vel que vai do geral para o particular. Ele pressupõe uma
estrutura coerente desde a norma fundamental. O que quer que
esteja desligado da norma fundamental não faz parte do sistema.
Se você legisla casuisticamente como que você iria remontar desde
estes múltiplos casos até a norma fundamental?
Se não existe uma norma fundamental, então não existe sistema
moral, e se não existe sistema moral você não tem nenhum jeito
de dizer se as normas do outro estão certas ou erradas. Então aca-
bou o diálogo e virou a lei do pega-prá-capar, é a lei do cão, do
mais forte. E é o que acaba vigorando. E mais, não é qualquer sis-
tema moral que é compatı́vel com qualquer outro. Aliás, o que um

411
17 Preleção XVII

sistema considera lı́cito e bom pode ser o que o outro considera


pior.
P.e., o sistema moral socialista de que tudo o que contribui para
a Revolução, para a libertação do proletariado, é bom. Eles ado-
taram esta norma e imediatamente começaram a agir de maneira
que pareceram inteiramente aberrantes e criminosos ao restante do
mundo. P.e., por quê manter os tratados internacionais, se rompê-
los pode ser melhor para a vitória do proletariado? Porque os trata-
dos foram feitos com base num sistema ético. O sujeito assinava o
tratado com base num sistema e cumpria outro. Isto é estelionato,
não é?
Do mesmo modo, nas relações humanas se você dá um signi-
ficado às suas normas e o outro dá outro significado eu vejo que
na nossa sociedade isto está ficando cada vez pior, porque se você
não tem a unidade mı́nima de um princı́pio moral a ser ensinado a
uma sociedade as pessoas vão acabar inventando algum código. E
acabam inventando mesmo.
Eu não sei de nenhum lugar nesse paı́s onde ninguém esteja fa-
zendo um único esforço para esclarecer isto, a não ser aqui. não sei
se isto vai dar algum resultado mas, eu acho bastante possı́vel que
se houver algumas pessoas que tenham alguma clareza nisso essa
clareza possa irradiar um pouco pelo meio. Mais dia, menos dia,
você acaba falando coisas óbvias e as pessoas acabam ouvindo.
Então, vocês vejam que no caso da ingratidão nós caı́mos
no casuı́smo. não conseguimos definir a norma da condição
necessária e suficiente da ingratidão ainda porque caı́mos no
casuı́smo do afetivo, mesmo sem mencionar que se você gosta de
uma pessoa e ela é ingrata com você, você acha que a ingratidão é
horrı́vel.
Porém, com relação à pessoa que você não gosta se você for
ingrato você não sente que foi. Portanto, o vı́nculo afetivo da gra-
tidão complica tudo.

412
17 Preleção XVII

Mas, a maneira normal e habitual de fazer um sistema nor-


mativo não é assim como nós estamos fazendo. É exatamente
o contrário. Primeiro você vai colocar a norma fundamental e
através de uma discussão dialética das normas existentes você fixa
essa norma fundamental como um princı́pio, nem que seja por
dedução.
Entretanto, o que eu estou querendo é achar uma espécie de in-
teligência que orienta as ações de cada um. O mais certo seria você
fazer este exercı́cio sozinho. Só que isto requer uma concentração
que, em geral, leva anos para você adquirir.
As pessoas não se examinam direito porque para isso elas pre-
cisariam de ficar às vezes 2 ou 3 horas seguindo o fio da meada
de intenções implı́citas, e para isso é necessário um esforço. Mon-
tar uma situação dialética exterior, através de um interlocutor, fica
mais fácil.
[voltando ao texto do Husserl, ele faz um retorno à página 17,
linha 63]
A totalidade destas normas forma evidentemente um grupo cer-
rado, definido pela valoração fundamental. A proposição norma-
tiva, que exige em geral dos objetos da esfera em questão que
satisfaçam na maior medida possı́vel às notas constitutivas do pre-
dicado positivo de valor, ocupa uma posição preeminente e pode
designar-se como norma fundamental. Este papel é represen-
tado, por exemplo, pelo imperativo categórico na ética de Kant;
igualmente pelo princı́pio da “maior felicidade possı́vel para o
maior número” na dos utilitários (ou pelo Primeiro Mandamento
da Bı́blia).
A norma fundamental indica o princı́pio (o valor fundamental)
com ajuste ao qual deve verificar-se toda normação, e por isto ela
não representa uma proposição normativa em sentido próprio. A
relação da norma fundamental com as proposições propriamente
normativas é análoga à que existe entre as chamadas definições

413
17 Preleção XVII

da série numérica e os teoremas aritméticos sobre as relações


numéricas — fundados sempre naquelas. Cabe também designar a
norma fundamental como a “a definição” do conceito do bem cor-
respondente, mas isto seria abandonar o conceito lógico habitual
de definição.
Se nos propomos a finalidade de investigar cientificamente,
com referência a uma “definição” desse tipo, a totalidade das
proposições normativas correspondentes, surgirá a idéia de uma
disciplina normativa.
A disciplina normativa seria construı́da fixando-se uma norma
fundamental e em seguida com referência a um valor que nessa
norma fundamental está expressado a tı́tulos máximos, você vai
achar as normas que estabelecem as condições necessárias e sufi-
cientes para usar nos tipos de atendimento desse requisito.
O que nós estamos fazendo aqui é exatamente o contrário. Nós
estamos tentando remontar desde certas valorações efetivamente
feitas na prática até algumas normas implı́citas.
Se fosse possı́vel você remontar até uma norma fundamental
implı́cita, então você teria esclarecido de fato a totalidade do certo
pensamento moral real. Só que você não vai achar essa norma
fundamental por uma razão muito simples: é porque ela não existe.
O tipo de julgamento moral que se faz na vida cotidiana geral-
mente deriva de um composto acidental de vários sistemas morais
diferentes, e você chegaria a várias normas morais contraditórias.
São sistemas morais superpostos.
Seria muito interessante se fosse possı́vel, na prática, você pegar
uma pessoa, que não fosse você mesma, e esclarecer totalmente,
norma por norma, implı́cita no comportamento dela até você che-
gar a essas normas fundamentais. Aı́ você teria demarcado cienti-
ficamente qual é a composição desse complexo de sistemas morais
que está na cabeça dessa pessoa.
É possı́vel você fazer essa análise, mas nunca de forma com-

414
17 Preleção XVII

pleta. Levaria meses para você examinar isso tudo.


Porém, como as pessoas geralmente não tem essa capacidade
reflexiva de comparar o seu comportamento num momento com
o de outro momento, as suas intenções de agora com as suas pa-
lavras de ontem, então a multiplicidade incongruente das normas
que fundamentam o seu comportamento acabam lhe escapando.
Isto não quer dizer que essa não possa ser responsabilizada por
isso. Ela pode e deve. Porém, na hora que você a responsabiliza,
apelando a ela a inclusão dessa ou daquela norma fundamental que
ela mesma afirma com seus atos, a pessoa simplesmente não reco-
nhece. A pessoa não reconhece a sua obediência a essas normas
fundamentais.
Quando nós denominamos, classificamos, certos comportamen-
tos morais como sendo, p.e., utilitários, pragmatistas, ou nos refe-
rimos a sistemas morais que a pessoa desconhece, ela simples-
mente não sabe do que você está falando.
O fato de você não saber o nome do sistema moral não quer
dizer nada. Você não precisa saber o nome de uma corrente de
idéias para você estar embarcado nela.
Por esta referência, ligação, que você estabelece entre o com-
portamento real, concreto, de detalhes, e esses sistemas, é aı́ que
você vai captar o sentido universal daqueles mandamentos.
Em suma, nós estamos aplicando aı́ o princı́pio Kanteano; nós
estamos julgando o sujeito com base em que ele acredita mas não
queira ser categórico porque, de fato, todo mundo acredita impli-
citamente. O imperativo categórico é menos do que o imperativo,
menos do que uma realidade psicológica fundamental.
Uma coisa estranha foi quando eu livro de Filosofia Polı́tica
do Eric Weil onde nas primeiras sentenças ele diz assim: ”Toda
Polı́tica é mundial. Qualquer corrente polı́tica nunca é só para
aquela situação ou para aquele local, ela tem sempre a afirmação
de uma proposta polı́tica mundial.

415
17 Preleção XVII

Eric Weil tem razão porque a proposta polı́tica é limitada no


tempo e no espaço; é uma limitação contingente. O sujeito não
adotaria essa ou aquela polı́tica se ele não achasse que aquilo é
bom para a humanidade em geral.
Na prática, ele talvez não consiga estender essa polı́tica além
de talvez Jacarepaguá, mas é uma limitação acidental. Do mesmo
modo, o preceito moral. Qualquer regra moral que esteja implı́cita
em qualquer ato, o indivı́duo ao agir assim está afirmando a uni-
versalidade daquilo. Caso ele pretenda ter alguma razão...
Também existe a possibilidade do sujeito negar a Razão e negar
a fundamentação dos seus próprios atos. É o sujeito que acha que
não deve satisfações a ninguém, faz as coisas porque quer, e a sua
vontade é lei. Então, só tem duas alternativas: ou o imperativo
categórico, ou a lei do cão.
Entretanto, adeptos assumidos, explı́citos, da lei do cão são
muito raros. Em geral todo mundo pretende ter razão de algum
modo, por mais absurdo que seja o que se faça. Na medida em
que você pretende ter razão, você está apelando a uma instância
universal.
P.e., no caso citado, se você sente a ingratidão da pessoa pela
qual você tinha afeto, mas não sente a ingratidão que você mesmo
faz por uma pessoa que você não tenha afeto, você está procla-
mando que esse comportamento é justo para qualquer um colo-
cado nessa situação. Porém, o fato é que se esse princı́pio fosse
adotado universalmente seria, de fato, um Deus-nos-acuda.
Portanto, existem princı́pios e normas que só continuam fun-
cionando enquanto são implı́citas e mais ou menos inconscientes,
porque se for conscientizado e declarado você vê que é um absurdo
na mesma hora.
Portanto, a inconsciência do fundamento moral do seu ato, às
vezes, é um condição para que esse ato possa ser realizado.
Toda disciplina normativa está, pois, univocamente caracteri-

416
17 Preleção XVII

zada por sua norma fundamental. Nas disciplinas teoréticas falta,


pelo contrário, esta referência central de todas as investigações a
uma valoração fundamental: a unidade de suas investigações e a
coordenação de seus conhecimentos estão determinadas exclusiva-
mente pelo interesse teorético, que se dirige à investigação daquilo
que se implica objetivamente (isto é, teoreticamente, por virtude
de leis imanentes aos objetos).
Imanentes aos objetos, e não colocadas por uma vontade hu-
mana. Porém, ainda aqui nós poderı́amos levantar a seguinte
questão: quem diz que o conhecimento deve ser objetivo? Quem
diz que o conhecimento deve ser verdadeiro? Isto também é uma
norma fundamental.
Por quê o conhecimento verdadeiro deveria ser preferı́vel a um
conhecimento falso? Por quê dizer a verdade é melhor do que
dizer a mentira? Vocês verão que no fundo de toda investigação
teorética existe uma opção normativa, para não dizer ética, fun-
damental, que é pelo princı́pio da veracidade o qual não é nada
diferente do que uma aplicação do Primeiro Mandamento: Amar
a Deus sobre todas as coisas. Se Deus é a verdade, então amar a
verdade acima de todas as coisas.
A Ciência mesma baseia nisso de modo que, embora na prática
a estrutura lógica dela não derive, em si mesma, de uma norma
fundamental o conceito de Ciência sim, se apóia numa norma fun-
damental. A estrutura interna da Ciência é determinada exclusiva-
mente pelos nexos, pelas ligações objetivas, imanentes ao próprio
objeto.
O apelo à lógica é um dos aspectos fundamentais do apego à
verdade. A lógica é a não, que é uma das formas fundamentais da
verdade. É o que você disse e o que você não disse. Num discurso
duplo isto não pode ser verdade.
Condenar a contradição em lógica é a mesma coisa que a
condenação da mentira na Ética, e a forma fundamental da mentira

417
17 Preleção XVII

é o discurso duplo simbolizado na serpente que tem lı́ngua dupla.


Porém, você não está realmente obrigado a esta condenação.
O sujeito, na verdade, é livre e se você quiser mentir o tempo
todo nada te impede. O fato é que você fica excluı́do da humani-
dade de algum modo. Mas, como a exclusão da humanidade, ao
contrário da lenda, não faz o seu nariz crescer, ou adquirir uma
aparência assustadora, diabólica, você continuará entre os seres
humanos, como se fosse um deles, e isso é que é o pior de tudo.
Se você pegar o supremo mentiroso, ele não parece mais men-
tiroso do que os outros, aliás, em geral, tem uma aparência inócua
e você só fica sabendo a posteriori; pior ainda, você fica sabendo
que ele falava mentira simplesmente porque ele foi derrotado. Se
o mentiroso vencesse, a maior parte das pessoas continuaria acre-
ditando.
Isto é uma das coisas mais assustadoras da vida: o fato de que
você não é obrigado a aderir à verdade.
Normalmente, as pessoas obedecem a aquilo que lhes foi en-
sinado. Na medida em que o que foi ensinado representa algum
valor efetivo, real, o sujeito continua mais ou menos dentro da
decência. Mas, isso são hábitos. Ninguém faz você mudar repen-
tinamente.
As pessoas que são educadas dentro de determinados princı́pios,
ficam muito apegadas a eles. Entretanto, isto também é ilusório.
P.e., na programação neurolinguı́stica, é o caso da tentação bem
colocada no momento exato:”Ninguém está vendo...
Ninguém vai saber...”. É tremendamente fácil. Pode-se puxar
o sujeito para baixo através de uma sucessão de sugestões. Há
pessoas que são treinadas para isso: como corromper os outros.
Nunca é de uma maneira que o sujeito pense que está sendo
corrompido. Geralmente, é na base de se isolar um ato da norma
que o fundamenta, como se não fizesse parte de um sistema de
encadeamento lógico e causal dos atos humanos, porque ninguém

418
17 Preleção XVII

está vendo então parece que não há conseqüências.


Mas, isto é uma ilusão cognoscitiva porque tudo está ligado,
tudo tem conseqüência evidentemente. Só não tem conseqüência
o que não é feito. Se é feito, o ato entra no sistema de causa e
efeito, quer você queira ou não.
A definição de uma atitude inconseqüente é você fingir que um
ato não tem conseqüência alguma. Você não enxerga, ou não quer
saber das conseqüências daquele ato.
Para que você torne o sujeito um inconseqüente basta você dizer
que ninguém saberá das conseqüências.
As experiências de liberdade de decisão, eu tive muito cedo, e
foi isso uma das coisas que me pôs no caminho da Filosofia. Como
eu não tinha uma autoridade, tinha que achar um fundamento.
Se você recebeu uma educação repressiva, então você continua
obedecendo sem pensar. A educação repressiva não garante nada,
aliás, é o contrário, está todo mundo solto, muito mais livre do que
você imagina. A sorte é que isso é para o lado bom, e é para o lado
mau também. O fato de que você está habituado ao mau também
torna compulsiva e obrigatória a prática do mau.

419
18 Preleção XVIII
19 de março de 1993

[ATENÇÃO!! A fita não gravou a parte inicial da aula. Como


não sabia que o gravador estava desligado, copiei apenas algumas
frases soltas. Seria interessante procurar no caderno de alguém
que tivesse anotado essa introdução na ı́ntegra pois ela contém
informações importantes. Transcreverei aqui, entre parênteses du-
plos, as frases que anotei incluindo um organograma que o Olavo
desenhou no quadro].
((Todo ato humano tem um conjunto de causas))
((As causas não precisam ser conhecidas pelo indivı́duo))
((A tradução psicológica das causas são os motivos))
((O motivo é uma parte e se expressa como um impulso de uma
necessidade))
((O motivo subentende uma intenção))
CAUSAS — JUı́ZO — MOTIVO (intenção) — PRETEXTO —
ATO
[Começa aqui a transcrição da fita]
Quando você decide fazer uma coisa é porque você aprova esta
coisa. Você aprova em nome de qualquer pretexto. Esse pretexto é
como você se explica as razões do seu ato. É a sua justificação. ‘As
vezes não precisa ser uma justificação expressa, pode ser implı́cita
mas está sempre presente.
Se você chega ao ponto de poder assinalar uma causa para o
comportamento de um sujeito, é porque você partindo do compor-

420
18 Preleção XVIII

tamento visı́vel que é o ato e da intenção manifesta deste ato, você


suporá que esta intenção manifesta corresponde ao pretexto, ou
seja, que a pessoa desejou agir exatamente do jeito que agiu. Por-
tanto, pelo menos esta parte da explicação do seu ato ela conhece,
e que é o pretexto que transparece no próprio ato. A partir daı́ você
tem que interpretar, ou seja, é por uma interpretação e não por uma
evidência direta que você chega ao conhecimento da causa.
Essa interpretação começa no ato, que é a parte mais superfi-
cial, mais visı́vel, daı́ você vai um grau mais abaixo e encontra um
pretexto, daı́ você vai julgar a veracidade do
pretexto. E conforme a sua maior ou menor (capacidade(?))
você diz que a intenção era realmente essa ou que havia uma outra
intenção, uma segunda intenção.
Existe uma intenção que foi alegada para si mesma, uma
intenção evidente, manifesta, mas poderá haver uma segunda
intenção não, oculta. Como é que você pode conhecer a intenção
oculta se você não entende nem a intenção manifesta, isto é, o
pretexto?
Então, como princı́pio de moralidade jamais julgue um ato se
você não conhece o pretexto dele. A não ser que o ato seja tão in-
trinsecamente mau que nenhum pretexto o justificasse. P.e., que
pretexto poderia justificar você estuprar uma garotinha de dois
anos? Por mais elegante que seja o pretexto, não vai convencer.
É um ato, que independente do pretexto e do motivo ele é em si,
ruim.
Então você sabe o que a pessoa fez (o ato). Quando eu te per-
gunto, por quê fizeram, você responde que foi, p.e., por inveja (a
causa). Eu pergunto: como é que elas explicaram isso para si mes-
mas? Se você diz que não sabe, então como é que você diz que
sabe que foi por inveja? Você só sabe do ato.
Para você saber a causa, ou seja, o ato foi causado por inveja
você precisaria saber o pretexto, saber que ele é falso, em função

421
18 Preleção XVIII

da situação daquele pretexto não precisaria justificar nem obje-


tivamente nem subjetivamente, então você faria a suposição da
existência de uma segunda intenção ou de um segundo motivo.
Somente assim você pode dizer que alguém agiu por inveja.
Quem age por inveja não tem a intenção explı́cita de agir por
inveja. A pessoa tem que ter um pretexto mais ou menos elegante.
Mesmo para você agir maquiavelicamente você tem que ter um
pretexto que fundamente o maquiavelismo. O próprio maquiave-
lismo não conduz o pretexto. Por quê Maquiavel recomenda agir
maquiavelicamente? Porque ele diz que a natureza da Polı́tica é
essa. Se você subiu ao poder com a ajuda de 10 pessoas, por quê
você deve derrubar essas 10 pessoas? Então, você tem que ter o
pretexto que fundamente esse ato maquiavélico.
Portanto, se você está sendo assim, você não está sendo mau.
Você está sendo simplesmente polı́tico, porque a natureza da
polı́tica é essa. Então, isto é o pretexto. Você está legitimando
o procedimento não em face de um preceito moral, mas em face
de uma constatação da realidade. A realidade exige que você aja
assim. Se você não agir assim você está errado. Então, é uma
alegação de necessidade. Geralmente as alegações, os pretextos,
são de dois tipos: necessidade ou moralidade. Só existem pretex-
tos deste tipo: agi assim porque precisava, ou, agi assim porque
era o certo. E ainda tem a terceira possibilidade do sujeito dizer
que não agiu assim, que o ato não foi dele. Ele pode dizer que fez
um ato, e você é quem viu um outro ato.
O pretexto geralmente é um só, mas os motivos são complexos.
A causa em si mesma não tem significado moral. P.e., o fato de
você sentir o impulso da inveja não quer dizer que você vá agir
como um invejoso. A causa não determina.
Toda ação humana só é humana porque ela não é inteiramente
determinada por causas, e sim por motivos. O juı́zo transforma a
causa em motivos, ou seja, ele legitima a causa.

422
18 Preleção XVIII

Todos nós temos os mesmos impulsos, p.e., de matar, roubar, de


transar com a mulher do próximo, etc., etc., assim como também
os impulsos generosos.
O inconsciente de todo mundo é mais ou menos igual, então não
precisa dizer que tal ou qual impulso, estar presente no subcons-
ciente do indivı́duo, não é um julgamento a respeito dele. Nunca
é. A motivação subconsciente nunca é motivo de julgamento por-
que ela é igual para todo mundo. É na medida em que através do
julgamento do indivı́duo as causas se transformam em motivos, é
que a coisa começa a ter uma significação moral.
P.e., por quê você roubou? Eu roubei porque eu tenho um ins-
tinto compulsivo de roubar. Ou seja, é a mesma coisa que di-
zer que ele roubou porque ele é um ladrão. Se isto fosse uma
explicação suficiente o sujeito deveria ser inocentado justamente
porque é ladrão. Entretanto, se o não roubar, ele deveria ser pu-
nido.
P.e., por quê você mentiu? Menti porque eu sou um hipócrita
consumado. Isto nem explica, nem justifica, aliás isto é uma tauto-
logia do tipo, bebo porque é lı́quido, ou, roubei porque sou ladrão.
Então, a causa não tem um significado moral.
Toda investigação a respeito da moralidade dos atos se baseia
nos princı́pios de que os seres humanos têm mais ou menos os
mesmos impulsos, em dose maior ou menor. Mesmo a quantidade
do impulso não vai ser o decisivo. não é o sujeito que tem o maior
impulso de roubar, que irá roubar. É aquele que admitiu o proce-
dimento do roubo.
Sem um juı́zo que racionalizasse de alguma maneira a causa,
esta causa não poderia se transformar numa conduta, porque toda
conduta humana é racional na escolha dos meios. O sujeito para
roubar, assaltar, tem que fazer um plano, um encadeamento de atos
perfeitamente racionais.
A causa, o impulso, se não passar pelo juı́zo não pode ser raci-

423
18 Preleção XVIII

onalizado. Se fosse assim, então só existiriam crimes impensados,


momentâneos, repentinos, ou seja, a pessoa em menos de 5 segun-
dos, roubou.
Então, a razão, de alguma maneira tem que aprovar, ou então ela
reprime e não se manifesta. É no juı́zo que a causa se transforma
num motivo, que pode ser claro, simples, complexo, obscuro, uno,
ou múltiplo.
Finalmente, este motivo é apresentado à própria consciência sob
a forma de um pretexto que pode ser uma expressão lı́mpida e
completa e exata dos motivos, ou pode ser um disfarce dos motivos
para que apareçam um ou dois motivos mas que os piores não
apareçam, ou que mostre um motivo parecido com o verdadeiro,
ou que faça uma metásbases exaloguenos.
P.e., por quê você comeu a mulher do seu vizinho? ’É porque
eu amo a humanidade...’
Ora, claro, se você não amasse a humanidade, você não ama-
ria um dos seus membros, que é a mulher do vizinho. Ou seja,
é uma transposição para um outro gênero. Isto é muito comum.
O indivı́duo alega um motivo que seria análogo, mas numa outra
esfera. Qualquer criança costuma fazer isso.
Um ato plenamente consciente é do tipo ’Fi-lo porque qui-lo’.
O pretexto expressa exatamente o motivo e o motivo expressa a
causa. Está tudo em linha. O julgamento de um ato assim não
implica nenhuma ambigüidade.
Se o indivı́duo rouba e diz que roubou porque quis roubar, por-
que gosta de roubar, então o julgamento do procedimento dele é o
julgamento apenas do conceito abstrato do ato. Se esse ato é abs-
tratamente considerado como mau, então o indivı́duo é culpado, é
venal.
Roubar, todo mundo sabe que é mau, porém existe uma série
de motivos, de pretextos, de causas que podem fazer com que o
roubo se torne uma coisa menos grave, um ato neutro, ou até que

424
18 Preleção XVIII

se torne um ato meritório. Porém, se o pretexto do indivı́duo, o seu


motivo e a sua causa foi apenas roubar enquanto tal, então qual é
a dificuldade de julgar o procedimento dele? A simples definição
do ato já é o julgamento.
Se o sujeito tem um objetor de consciência, p.e., eu sou Teste-
munho de Jeová, e não quero ir para a guerra porque a religião me
proı́be formalmente de servir o exército. Ele pode ir para a cadeia,
mas ninguém pode condená-lo moralmente, ao contrário, é apenas
uma condenação funcional:“nós vamos colocá-lo na cadeia para
não manchar a reputação do exército, mas não vamos falar mal de
você por causa disso”, ao contrário, o sujeito é respeitado.
Os 10 Mandamentos, p.e., se referem ao indivı́duo e não ao
Estado. Você não pode dizer que o Estado deve amar a Deus sobre
todas as coisas. Como é que o Estado vai amar o próximo como a
si mesmo? O Estado tem que amar outro Estado como se fosse ele
mesmo? Isto é o non-sense.
Claro que o Estado é composto de pessoas, mas dá para enten-
der que ele é uma unidade, que ele é responsável pelos seus atos
de alguma maneira. Então, não tem sentido aplicar os 10 Man-
damentos ao Estado. não se pode julgar o comportamento do Es-
tado pelos 10 Mandamentos assim como você não poderia julgar o
comportamento de um animal pelos 10 Mandamentos, porque eles
se dirigem ao indivı́duo humano, à alma humana.
No caso da guerra, o católico que segue os 10 Mandamentos
tem o dever de ignorar o mandamento “não matarás” quando o
Estado o convoca para uma guerra.
O pacifismo é uma posição que nenhuma religião do mundo
sustenta porque é um absurdo. O pacifismo seria a destruição de
qualquer comunidade. A comunidade tem o estrito dever de se
defender contra qualquer agressão. Se ela não fizer isto, estarão
todos lascados. Ela tem o direito de se defender e às vezes o direito
de atacar. P.e., o povo que não tem uma saı́da para o mar e precisa

425
18 Preleção XVIII

disto porque estão todos morrendo de fome, ele tem o dever de


invadir o território do vizinho e tomar uma saı́da para o mar.
Acontece que hoje em dia o sistema moral que os meios de
comunicação estão transmitindo é assim: é um julgamento muito
severo dos Estados e muito brando com os indivı́duos. Então,
começam a exigir que o Estado seja responsável por isso ou por
aquilo, e o indivı́duo não é responsável por nada. Sendo que por
definição o Estado é só titular de direitos e não de deveres. Por
isso que o Estado é soberano. O Estado não é um ente moral. O
Estado é como se fosse uma realidade fı́sica, econômica, portanto
o Estado só tem o dever de fazer o que ele puder fazer.
O Estado é como se fosse um orçamento doméstico. Você pode
dizer que o seu orçamento doméstico tem o dever de fazer isso ou
aquilo?
Quando você recebe uma ordem do Estado o autor do ato é ele.
Na guerra, quem mata não é o indivı́duo, e sim o Estado. Você
não é o autor do ato; você é o instrumento do ato. Que liberdade
você tem de não fazer isto? Você não tem liberdade de escolha
nenhuma. O que você pode é evocar o objetor de consciência e
posteriormente por causa disso ser fuzilado.
Para que nós impuséssemos um dever seria necessário que nós
colocássemos o heroı́smo como uma obrigação fundamental.
Você pode fazer um julgamento isolado: o Cristianismo diz que
não se deve matar, e os sujeitos vão para a guerra matar. Eu acho
isso errado.
Isso significa que o julgamento tem por norma fundamental que
os 10 Mandamentos deveriam servir para o Estado, o que é im-
possı́vel. Julgamentos morais isolados são a expressão de desejos,
emoções momentâneas. não têm sentido algum.
Normalmente, o nosso julgamento moral, tanto da sociedade
quanto dos seres humanos, é constituı́do de reações deste tipo.
Reações soltas, esporádicas, isoladas umas das outras, que na ver-

426
18 Preleção XVIII

dade não tem sentido moral algum. Só pode haver uma postura
moral quando é obediência a uma norma clara, uma norma obe-
decı́vel. P.e., você condenar as pessoas que matam na guerra por-
que o Cristianismo diz para não matar, esta não é uma norma obe-
decı́vel. Para que elas não matassem os seus inimigos na guerra
seria preciso que elas desobedecessem os seus superiores e daı́ os
superiores iriam desejar fuzilá-los. Das duas, uma: ou se deixa
fuzilar, ou então tem que matar os seus superiores.
Neste caso, o soldado estaria sendo mais cristão caso ele ma-
tasse o seu próprio sargento ao invés de matar os soldados do
exército adversário. Isto é absurdo!
Para não matar o sargento você teria que deixar que ele o ma-
tasse. Então, a obrigação número 1 do soldado cristão seria ser
morto pelo seu próprio sargento. Pareceria ser mais digno do que
ser morto pelo adversário. Isto também é absurdo!
Então, todo sistema moral tem por trás uma norma fundamen-
tal. Entretanto, você pode fazer milhares de julgamentos fundados
numa norma fundamental inteiramente absurda e incoerente com
outras normas fundamentais, então a sua mente vai ser um com-
posto de sistemas morais incongruentes.
Sistemas morais incongruentes não permitem uma discussão
moral séria. O seu próprio procedimento, o seu próprio julga-
mento não pode ser julgado, porque conforme o momento você
saca deste ou daquele código. não existe diálogo. Ninguém pode
reclamar do que você fala ou do que você faz e isso é a própria
violência.
O julgamento moral baseado no sentimento é apenas mais outro
que existe. O sentimento é egoı́sta, por definição.
No caso da guerra não faz parte da obrigação de um Estado
evitar sofrimento por um Estado inimigo. Isto é um requinte de
moralidade que a única nação que se preocupou com isto foi os
EUA.

427
18 Preleção XVIII

Em toda a História, se houve uma nação que refreasse o seu


instinto belicoso por qualquer motivo que fosse, foi os EUA. Prin-
cipalmente porque lá tudo o que você faz tem que dar satisfação
para a opinião pública — há os que gostam, os que não gostam —
e o Estado tem que ser refreado de alguma maneira. Os EUA são o
único Estado em toda a História que não usa todo o seu potencial
bélico em toda a sua plenitude.
Eu acho que qualquer sujeito da esquerda mundial, qualquer
sujeito que disser qualquer coisa contra os EUA, já não tem au-
toridade, de cara. Nenhum comunista tem o direito de falar nada
contra os EUA.
Você poderia, em nome de determinados princı́pios de ética
polı́tica e não moral, vigente na democracia americana, condenar
os EUA. Fora disso, não. E isso ninguém precisa fazer porque o
americano faz melhor que qualquer outro. não há quem fale mais
mal do seu Estado do que o americano, aliás, nós aprendemos com
eles.
Você vai condenar os EUA em nome de que princı́pio moral-
polı́tico? Dos vigentes no Brasil, ou da URSS, ou da China? não
pode, não é? Só se pode condenar segundo os princı́pios vigentes
nos EUA, é claro! Numa sociedade onde você tem meios, onde
você é capaz de criticar, de condenar e eventualmente amarrar as
mãos do Estado, certamente é a melhor sociedade que já foi inven-
tada. Nas competições entre os regimes polı́ticos, é preciso ser um
verdadeiro imbecil para achar que algum outro tipo de regime iria
acabar ganhando.
Quantas pessoas no mundo estavam sequiosas para viverem sob
um regime comunista? Eu acho que ninguém. Havia gente que-
rendo implantar o comunismo sempre supondo que quando se im-
plantasse o regime ele estaria na casta governista. Entretanto,
ninguém queria ser um simples cidadão. Então, não era preciso
ser muito esperto para ver que o movimento socialista, comunista,

428
18 Preleção XVIII

ia acabar logo. não é impressionante que o comunismo tenha aca-


bado, mas sim como ele tenha durado tanto.
Se você quiser desmontar o Estado americano, como fazer isto?
Em primeiro lugar, o que é o Estado americano? Ninguém sabe.
Qual é o sistema de poder? Ele é indescritı́vel. Ele é tão complexo
que ninguém domina aquela coisa. Ele não tem uma estrutura
definida. É como se fosse uma ameba, e você não pode desmontar
uma ameba. Se você desmontar um governo, você não desmonta
o Estado. Ele continua funcionando porque o Estado é a própria
sociedade.
Já o sistema de poder na URSS era a KGB. Tirando a KGB, cai
tudo. E nos EUA? E se tirar a CIA? Vai prejudicar internacional-
mente, mas por dentro vai continuar a mesma coisa.
O quê a CIA faz lá dentro? Alguém pode investigar a vida de
algum americano como a KGB fazia? não pode. Se você for tentar
descobrir se um sujeito é traficante de tóxicos, a imprensa pode
cair de pau em cima de você, o xerife pode não ser eleito por isso,
etc., etc.
Então, para você matar a nação americana, só se você matar
completamente o espı́rito do povo, mas isso leva séculos. Como
mudar os hábitos do povo? Mudando o eleitorado? O que importa
o eleitorado se 70% da nação não vota? A força da democracia é
a própria anarquia.
Na China comunista, p.e., eles estão tentando achar um pretexto
elegante para se tornarem capitalistas.
Vejam vocês o seguinte: o código de interesse do Estado se
sobrepõe a uma ética universal abstrata. O primeiro Estado do
mundo que foi construı́do em cima de uma ética universal abstrata
foi os EUA. Era para ter sido a França com a Revolução, mas
depois a Revolução desandou, veio Napoleão, a restauração, etc.,
e aı́ embaralhou tudo.
Mesmo nos EUA este conceito ainda demorou para ser imple-

429
18 Preleção XVIII

mentado. Na época da independência haviam duas correntes: uma


aristocrática que queria o estilo antigo de uma oligarquia domi-
nante, e havia quem queria a democracia radical. Até hoje os EUA
ainda não decidiram exatamente o que querem.
Então, reconhecer que a integridade do corpo e da psique hu-
mana é intocável, não interessando julgamento que você faça sobre
o outro, isto é um princı́pio abstrato. não é um princı́pio natural.
não é natural no homem ele perceber que um outro é igual.
O racismo, p.e., é uma coisa natural profundamente arraigado
no homem. Leva milênios para o homem entender que um outro
completamente diferente de você também é gente como ele. To-
dos os povos são racistas, por definição. Um filósofo pode tentar
explicar que isto não é assim, mas geralmente eles vão matar o
filósofo.
O racismo é biológico porque você tem medo do que é diferente.
Se é diferente em princı́pio é inimigo. É uma reação de medo. Ou
seja, por via das dúvidas...
Isto é para vocês terem idéia do caos moral que existe na cabeça
de cada um. Para consertar este caos tem que ir através desses
procedimentos, tentar construir uma filosofia moral para você.
Eu não sei qual vai ser o conteúdo dela. Você vai levar 30
anos para fazer e não sei qual conclusão você vai chegar, porém
se isso não for baseado numa norma fundamental explı́cita e não
tiver uma coerência, então simplesmente eu não posso te enqua-
drar, você não tem código, você não tem princı́pios. Você não está
comprometido com nenhuma norma fundamental, e portanto ele
não pode ser cobrado. Se as pessoas não têm princı́pios, então
evidentemente é o caos moral.
Então, quando lhe baterem a carteira você não tem nada que
reclamar. Você vai reclamar em nome do quê? Que autoridade
você tem?
Querer que suba o nı́vel moral da sociedade sem que suba o seu

430
18 Preleção XVIII

próprio, isto é totalmente impossı́vel. A sociedade não tem que ter


moral nenhuma, muito menos o Estado. O Estado é uma realidade
fı́sica do esquema de poder existente.
P.e., vamos supor que você tenha um homem forte e um homem
fraco. Evidentemente o homem forte tem mais poder sobre o fraco
por ser forte, e ele manda no fraco. Isto é o Estado.
O Estado é quem tem o poder, e não quem deveria ter o poder.
não se pode confundir o Estado com o conjunto de leis ou das
instituições, que podem ser totalmente falseadas como é o caso
brasileiro.
‘As vezes as leis e as instituições expressam a estrutura do po-
der, às vezes não. A lei pode estar na mão de um e o poder na mão
de outro. Como é que você poderia impor a uma situação real de
poder tal ou qual obrigação? não tem sentido.
Então, se vocês puderem sair destes quadros de debate e olhar
a situação um pouco mais de cima, vocês vão ver que tudo isto é
uma demência. A reforma moral começa assim.
Se você não tiver um certo número de pessoas que tenha um
princı́pio, e consigam julgar a coisa, se você não tiver 1, não ha-
verão 2, se não houverem 2, não haverão 3, e assim por diante.
não tem outro jeito, tem que ser 1 por 1.
Se as pessoas que têm os meios e a vocação para estudar isto,
não desenvolvem, então não tem jeito.
Você pode medir as possibilidades do paı́s por você mesmo. Se
a cabeça de um estudante de Filosofia está um caos moral, imagi-
nem na cabeça dos outros. Se o estudante de Filosofia não entende
que o Estado não é sujeito de obrigações morais, quem irá enten-
der? O PC Farias?
A obrigação fundamental de um estudante de Filosofia é ele ten-
tar se situar no que é real. Mas, ele é picado do gostinho próprio,
da violência.
A violência consiste sumariamente em você impor a sua von-

431
18 Preleção XVIII

tade no outro sem mais nem menos. A abdicação disto tem que
ser total e definitiva em todas as esferas de vida. Nunca mais na
sua vida você vai fazer do seu impulso uma norma válida. Nunca
mais você vai achar que só porque você está bravo com o sujeito
ele não presta. Ou seja, o seu sentimento vai perder autoridade
para sempre. Se não fizer isto a inteligência não vai avançar. você
tem que dizer assim: “O que eu gosto, ou deixo de gostar, não
interessa. Eu sou apenas mais um e igual a todo mundo. O meu
sentimento não vale mais do que o dos outros”. Isto não é o óbvio.
Ou você chega a uma esfera onde exista uma obrigação que
pode ser cobrada igualmente de todos e você fala em nome desta
obrigação, ou então você vai ter que impor o seu desejo. Então,
não existe o meio termo. É como disse Jesus Cristo: “Quem não
está comigo, está contra Mim”.
É claro que você pode ter o seu desejo, o seu impulso, os quais
poderão ser satisfeitos todas as vezes que os outros concordarem
com isso, e se não concordarem você vai ficar frustrado como todo
mundo ficaria.
Essa coisa sinuosa que evita as definições sérias durante a vida é
uma fuga da realidade, porque é conciliar o inconciliável. Se o su-
jeito adiar isto, a vida nunca começa. Então, você pode fazer o ato
inaugural que é desistir de fazer do seu desejo, do seu sentimento,
uma autoridade, para sempre. Seja ele qual for.
O seu desejo tem o direito de ser atendido sempre que alguém
queira atendê-lo, e fim. Se o outro não quiser, então acabou o seu
direito. A vida é assim.
Para isto significa você descer de uma montanha, desinflar um
balão que coloca o EU acima da humanidade, e entender que você
é só mais um, que não faz diferença alguma. Esta é a realidade.
O que é isto senão a tradução lógica do Mandamento “Amar ao
próximo, como a si mesmo”?
Também pode ser “Detestar o próximo, como a si mesmo”, não

432
18 Preleção XVIII

é? Você tem que julgar o outro com o mesmo padrão que você
usa para julgar a si mesmo, e vice-versa. Se você não fizer esta
tentativa você não sobe a esfera da Razão, jamais. Isto é um impe-
dimento moral básico.
Se eu sei que nós somos membros de uma mesma espécie que
não tem diferença essencial alguma, que enquanto seres viventes,
enquanto animais somos exatamente iguais, temos exatamente os
mesmos desejos, exatamente os mesmos impulsos de base com
uma pequena diferença quantitativa que é ridı́cula, desprezı́vel,
então não tem sentido você colocar você no centro e o outro na
periferia.
Esta é a famosa ilusão do ego que o Budismo diz que você tem
que perder. O ego existe, só que ele é só mais um.
E o sujeito que fala isto aqui que eu estou falando? Quando ele
fala isto ele está com uma autoridade total. Isto o Estado pode até
impor às pessoas, e de fato impõe. Um pouquinho de igualdade
civil existe porque os Estados impuseram, porque se largar o ser
humano solto ele suprime isto no dia seguinte.
O sujeito vai falar de igualdade civil para os outros, e a diferença
civil para ele.
Quem faz uma opção pela Razão diz adeus à violência. Um
sujeito santo não adquire mais direitos que os outros. Você pode
adquirir um mérito, mas não um direito.
P.e., o direito à satisfação dos seus desejos. Você ter direito à
roupa que você gosta, ao padrão de vida que você gosta, à mulher
que você quer, etc., etc., você acha que alguém tem este direito?
Nenhum desejo tem o direito de ser atendido, jamais. O desejo é
atendido porque alguém ...(?)...
Esta opção pela Razão deve se traduzir imediatamente numa
efusão de boa vontade para com o mundo.
A boa vontade significa você colaborar, não encher o saco, res-
peitar, etc., ou seja, o seu desejo cede ao desejo do outro, de boa

433
18 Preleção XVIII

vontade, em nome da paz, da ordem, e daı́ dá tudo certo, senão não
tem conserto.
Se não for assim só resta o Estado tirânico, e você entra no
Leviatã do (Hobbes(?)), onde você precisa de um Estado tirânico
porque os seres humanos são todos animais. Eles vivem em estado
de guerra perpétua, e a guerra só pára quando vem o chefão e
manda parar.
É como criança brigando. não há jeito de você fazer uma briga
de crianças parar se não for fazendo uma violência em cima de
ambos. Chega então uma violência maior que pára uma violência
menor. A rigor, existe tirania no mundo por causa disto.
Então, parta do princı́pio de que os seus julgamentos morais
estão errados. Se estão certos é por sorte, porque a quase totalidade
das vezes você estará equivocado.
Em primeiro lugar, o ato de julgar, em si já é errado. Por quê
você tem que ter uma opinião sobre o comportamento do outro? O
ato de julgar não é um direito seu.
Em geral você julga porque você quer manter um simulacro de
ordem cósmica baseado no princı́pio de que você é certo e o outro
é errado. Mas, isto é a própria desordem cósmica! Você só deve
julgar quando você é obrigado a fazê-lo, e dentro dos limites da
sua obrigação. P.e., um pai é obrigado a julgar o procedimento
do filho porque cabe a ele a educação do filho. Se o filho bate no
outro, ou rouba uma coisa, o pai tem que julgar, até que o filho
seja maior de idade. Bom, daı́, de fato, não é mais da conta dele.
Ele não precisa mais ter opinião nenhuma sobre o que o filho está
fazendo.
Se você é o gerente de uma firma você tem que julgar o pro-
cedimento dos empregados na medida em que ele afete a vida da
empresa, e só. Quando termina o expediente, acabou a necessi-
dade de julgamento.
O julgamento só é lı́cito se for obrigatório. Se você é juiz você

434
18 Preleção XVIII

tem que julgar, mas é por obrigação profissional.


Uma pessoa que te lesou, te prejudicou, você não tem nada que
julgar. Você tem o direito de se defender, às vezes até mesmo com
violência, mas não tem o direito de julgar. Mate-o, mas não pense
mal dele...
Então, em princı́pio, jamais julgar. Só julgue se for obrigado.
Se tiver que julgar, faça-o de forma limitada, julgue o ato e não a
pessoa. Você só pode julgar a pessoa quando ela morrer. Como
você vai saber se ela é boa ou má se ela não terminou o seu dis-
curso ainda? Isto só Deus pode fazer, e se Ele quiser...
Isto são normas universais que quando você aplicar nunca vai
errar. P.e., um professor pode julgar o quê num aluno? Ele pode
julgar o avanço dele no aprendizado, e fim. Mas, ele não pode
dizer que a pessoa que não avançou naquilo está errada ou que é
má, senão ele teria que dizer que ser aluno dele é uma obrigação.
Me dê uma única razão para o fato de que você tem que ficar sa-
tisfeito, e o outro tem que ficar insatisfeito. Por quê isto? O outro
acha justamente o contrário. Então, só se for decidindo no jogo,
no cara-ou-coroa.
O princı́pio é o de você não lutar pela sua satisfação. A
satisfação só é plena quando a coisa é dada de bom grado. P.e.,
o dinheiro que você ganha com muito esforço, em geral você sofre
para gastá-lo. Já o dinheiro que é ganho de bom grado você torra
com a maior satisfação.
Então, o seu desejo não é melhor que o meu desejo, assim como
a sua repugnância, etc., e isto não pode ser resolvido moralmente
mas somente pela superação do egoı́smo. É só um sentimento
superior que vence esses comportamentos, sem negá- los, sem
suprimi-los.
Vamos supor que você tenha preconceito de raça e ache que os
pretos são inferiores. Admitamos esta hipótese. Porém, se uma
raça é superior à outra isto não quer dizer que cada um dos in-

435
18 Preleção XVIII

divı́duos seja superior. E quem diz que você precisamente está


entre os superiores?
Mesmo admitindo teoricamente um preconceito de raça, ne-
nhum sujeito teria o direito de professar aquilo a ferro e fogo. É
a velha pergunta de (Jan Puissinger(?)): você já viu algum racista
demonstrar que a sua própria raça é inferior? não tem, não é?
O Egito, p.e., era preto, e escravizou meio mundo, tocou o chi-
cote no lombo de muita gente durante milênios. O que os judeus
sofreram na mão deles, todo mundo sabe. Depois os judeus se
vingaram deles vendendo escravos para os paı́ses coloniais, e aı́
a coisa se inverteu. É sempre assim. Então, o critério é sempre
o seguinte: pega o seu julgamento moral, aplica o imperativo ca-
tegórico, e vê o que dá. Se o seu critério disso for uma norma,
qual é o significado dos termos que estão expressando a minha
intenção.
Os direitos dos Testemunhos de Jeová, p.e., são baseados na
hipótese de que eles serão minoria, sempre, e de que jamais haverá
um Estado na mão deles. Neste sentido, eles se legitimam.
Os Testemunhos de Jeová dizem que existe um número deter-
minado de pessoas que serão salvas, que é de 144.000, e que eles
já tem membros demais, não pretendem se expandir indefinida-
mente, e não pretendem assumir um Estado. Eles são assumida-
mente uma minoria. Eles abdicam voluntariamente de qualquer
poder polı́tico. Com isso, eles adquirem um certo direito de se
comportarem como minoria de exceção, ou seja, eles não pregam
que todos deveriam agir como eles. É como fazem os judeus. A
norma judaica só se aplica a judeus, e eles vão ser sempre minoria.
Se você inventar uma religião universal que manda você boico-
tar o Estado, isto será uma monstruosidade. Isto é feito no mundo
islâmico.
Eles tiveram neste século um famoso teólogo chamado Said
(Kutuk(?)), que interpretando o Corão a ferro e fogo dizia que só

436
18 Preleção XVIII

existe uma lei para todos os seres humanos, e esta lei é o Corão.
Ou seja, o Estado que não esteja explicitamente baseado na
lei corânica é um Estado demonı́aco e que se coincide de um
muçulmano viver num Estado demonı́aco o dever primordial dele
é de destruir este Estado. É bem diferente das Testemunhas de
Jeová.
Os muçulmanos são 14 da população do planeta, espalhados por
quase todos os paı́ses. Se essa interpretação fosse levada à sério
teriam que cair todos os Estados do mundo.
Said Kutuk acabou morrendo enforcado por um governo
islâmico. Os fundamentalistas acham isto uma grande injustiça.
Mas, eu cortaria a cabeça deste sujeito, no ato. Por via das dúvidas
calaria a boca dele, na hora.
O fundamentalismo baseia-se fundamentalmente numa
interpretação polı́tica, literal, da idéia do Estado Islâmico.
Qualquer Estado que não seja explicitamente islâmico deve ser
destruı́do, ipso facto.
Said Kutuk coloca isto como uma obrigação que incumbe a cada
muçulmano em particular. Como um aspecto do (Jihad(?)).
A interpretação que se faz do Jihad é o seguinte: para o Jihad
ser decretado é preciso que toda a comunidade concorde. Isto é
o que está no Corão. Jihad significa esforço, mas o pessoal usa
como Guerra Santa. O Jihad é um esforço excepcional em prol do
mundo islâmico que justifica a matança e o martı́rio alheio, e de si
mesmo.
Então, teoricamente para se decretar a Guerra Santa é preciso
que a comunidade inteira aprove. Na verdade, qualquer um de-
clara Guerra Santa a qualquer hora.
A interpretação do Said Kutuk é que onde quer que haja um
Estado não há um Estado de Guerra Santa perpétua que não precisa
ser decretado explicitamente, ou seja, qualquer muçulmano que
esteja num paı́s não já está em estado de guerra

437
18 Preleção XVIII

santa, e tudo o que for permitido num estado de guerra você


deve fazer: sabotagem, terrorismo, traição, espionagem, etc, etc.
Tudo isto não só é legı́timo como é obrigatório. Então, é um Es-
tado fazendo uma perseguição a um indivı́duo que é habitante de
um outro Estado. Por quê você tem que condenar à morte um
súdito de um outro reino? É o non-sense completo.
Mas, na cabeça de Said Kutuk isto é legı́timo porque para ele só
existe um Estado que é o Estado Islâmico Mundial.
Esses indivı́duos legislam como se esse Estado Islâmico Mun-
dial fosse uma realidade hoje em dia. Isto significa que eles têm
jurisdição sobre a Casa Branca, p.e. Eles estão evidentemente lou-
cos!
Quando nós criticamos estas atitudes é no sentido de que você
faça o mesmo, senão não adianta nada. É mais um que está jo-
gando tomate e vai receber tomate em troca.
É fundamental que você se abstenha de julgar, a não ser que
seja obrigado a isso. O que você puder resolver na base de você
ceder num conflito de dever... Em primeiro lugar, você não tem
obrigação estrita de ceder, mas se você não ceder estão todos las-
cados.
Então, você tem o dever de colaborar com a ordem pública e em
nome dela você tem que ceder, tem que deixar passar em primeiro
lugar, tem que desligar o ar-condicionado ou deixá-lo ligado, você
tem que aceitar um monte de incomodidades baseado no princı́pio
de alguém te atenderá, como uma espécie de sorteio alguém acaba
fazendo o que você quer também.
É muito improvável que um indivı́duo venha a ser sempre ele
o prejudicado. Você vai precisar da boa-vontade, ou seja, querer
colaborar para que tudo dê sempre certo e ninguém te encha o
saco.
Como regra geral de conduta isto vem diretamente do princı́pio
da igualdade. Você pode dizer que não gosta de viado, de preto,

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18 Preleção XVIII

de padre, etc. Acontece que o sujeito é viado, acidentalmente, é


preto, acidentalmente, que ele pertence a este ou aquele grupo,
acidentalmente, e essencialmente é a mesma espécie sua.
Portanto, não é possı́vel que o julgamento que você faça so-
bre o acidente se sobreponha ao julgamento que você faz sobre a
essência. Ou seja, muito antes do sujeito ser viado, preto, padre,
comunista, judeu, etc., etc., ele é gente.
No conjunto da estrutura humana que diferença substancial faria
realmente o sujeito ser de uma determinada raça ou ter determina-
dos hábitos sexuais? Isto é irrelevante.
É claro que você pode julgar aquele detalhe em particular, mas
aquele detalhe não pode atingir de maneira alguma o julgamento
que você faz sobre o conjunto.
Por isso que eu acho que você pode inclusive nutrir um pre-
conceito contra um hábito de um sujeito, ou mesmo contra a raça
dele, e ao mesmo tempo tratar o sujeito de maneira muito respei-
tosa, elevada.
Pessoas que têm crenças totalmente diferentes, que jamais pos-
sam concordar como, p.e., um sujeito católico e o outro ateu.
Um pode não concordar com o outro, então o acordo não existe.
Porém, ser católico ou ateu é acidental. Ninguém era católico an-
tes de Jesus Cristo. Ou seja, é um julgamento sobre a parte de um
procedimento do sujeito. Uma parte pequena, na verdade.
Uma religião é uma constelação de crenças que abrange a tota-
lidade dos atos de um indivı́duo, mas e um hábito sexual? Ele se
refere a um setor limitado da vida de um indivı́duo e não faz sen-
tido você rejeitar a pessoa como um todo por causa de um acidente
desses.
Também, o mesmo se aplica ao preconceito racial. Uma pessoa
pode ser racista, mas ela não é o demônio, ela é gente também.
Na esfera de relação entre indivı́duos eu acho que isto pode ser
facilmente resolvido.

439
18 Preleção XVIII

Claro que você não pode esperar dos Estados e dos grupos soci-
ais um procedimento moral elevado como você pode esperar dos
indivı́duos, é evidente.
O Estado e a sociedade não tem obrigações morais. Esperar que
isto seja resolvido na esfera da legislação, isto é demência. Cada
lei que você fizesse sobre isto, você vai criar mais e mais injustiças.
não deve haver leis sobre estas coisas. Quanto mais detalhada é a
lei, pior ainda.
As pessoas sempre reivindicam que o Estado faça isso ou deve
fazer aquilo, mas nunca aparece alguém para perguntar: “E se o
Estado não cumprir, quem irá puni-lo?”. Ninguém pergunta isto.
Se você disser que o Governo — Presidente e Ministros — tem
que fazer isso ou aquilo, então você sabe quem tem que fazer e
sabe a quem punir.
No caso do menor abandonado, p.e., é o Estado, a sociedade e a
Famı́lia. O Estado não pode ser punido, a sociedade também não,
e a Famı́lia o menor não tem! Então, ele é um menor abandonado
mesmo. É o abandono oficial. É um cinismo inumano.
O que realmente me espanta é que entre as pessoas letradas in-
teressadas não apareça um para orientar a sociedade e dizer que
isso é inviável.
É claro que eu não tenho a esperança de que nós vamos mudar
esta coisa aqui. Eu tenho a esperança de que vocês cumpram a
sua obrigação apenas. Eu nunca tive nenhuma ambição de atuar
sobre a sociedade como um todo jamais. Aliás, eu acho a vocação
polı́tica um pouco ridı́cula. Para quem gosta é bom...
O simples fato de você na sua conduta colocar esses precei-
tos em execução, você começa mudar o mundo todo. Você cria
uma esfera de boa-vontade irredutı́vel. Isso, um filósofo tem a
obrigação de fazer porque se não fizer a sua cabeça vai parar de
funcionar. Se você tem a Razão, a Inteligência, então você trate
de ser inteligente e racional em primeiro lugar porque, aı́, elas te

440
18 Preleção XVIII

explicam o que você quer saber. A quase totalidade dos impedi-


mentos ...(?)... são impedimentos de ordem moral e psicológica.
O dom inato, o QI, isso não interessa.
Raciocinem no sentido que vocês viram no texto do Husserl
quando ele diz que a verdade forma um sistema coeso. Você não
pode querer uma verdade e jogar outra fora. Se você quer uma,
você quer a outra necessariamente. Você não pode querer uma
coisa sem querer as conseqüências dessa coisa.
Vamos supor que você queira descobrir a verdade sobre um de-
terminado aspecto do real. Mas, tem um outro aspecto do lado que
você não quer ver. Suponha que exista uma conexão intrı́nseca en-
tre essas duas coisas. Então, a verdade que você quer, você não vai
descobrir jamais. Por isso que você tem que abrir os olhos e dizer:
“Apareça o que aparecer, eu quero!”.
Ou seja, é ser dócil à verdade que apareça a você, que se mani-
festa com toda a sua complexidade. É um questão de você aceitar.
A verdade não precisa ser perseguida, ela precisa é ser aceita. Na
verdade a solução de quase todos os problemas de ordem filosófica
aparece sozinha, contanto que você deixe. Mas se você quer só
um pedaço quem disse que o pedaço pode vir sozinho. P.e., você
é contra a matança dos animais, mas comer um pernil você come,
não é?
Então, você não quer encarar essa realidade. Você quer viver
num mundo fictı́cio onde o pernil cai do céu, sem lesar nenhum
ser vivo. Você quer um pedaço da cadeia causal, mas você não
quer o que está antes, nem o que está depois, então isso é uma
atitude infantil. Eu acho fundamental essa abertura do coração
para o real como um todo. Como disse Hegel: ’Sem a coragem do
conhecimento você não vai descobrir nada”.
A natureza, p.e., é horrı́vel. As pessoas não pensam nisso. A
idéia que as pessoas têm hoje em dia é que a natureza é para-
disı́aca. Realmente, diante das cidades infernais que nós conse-

441
18 Preleção XVIII

guimos criar, a natureza é de fato um paraı́so. Só que as pessoas


esquecem que na História humana inteira o horror vinha da na-
tureza. Isso é falta de memória. Ou seja, você inventou um tipo
de ser humano, se fechou lá dentro e está com saudade de como
estava lá fora. É o caso de imagens onde você vê uma casa boni-
tinha, um ursinho panda brincando com uma criancinha, um leão
brincando com uma vaquinha, etc. Aı́ eu pergunto: “Quem vai
comer essa gente toda?!”.
É o caos dos versos do William Blake: “Uma mesma lei para o
tigre e o cavalo seria uma injustiça”. Porque eles têm obrigações
diferentes.
Então, o mundo só se conserva de pé pelo fato de que a opinião
da quase totalidade das pessoas é irrelevante e não tem o menor
peso na condução dos negócios públicos.
Num paı́s deste tipo foi feito um planejamento racional por meia
dúzia de empresas e grupos e eles continuam a fazer o que eles tem
que fazer independente do que você acha ou deixe de achar. Aliás,
você não sabe nem quem planejou. Se você quiser se vingar do
culpado, você não o acha em parte alguma.
Então, nós queremos achar, descobrir, não na duração deste
curso, mas na duração da sua vida, uma linha de conduta moral
que seja realmente boa, e isto vai te dar muito trabalho.
Se você quer acertar mesmo, fazer o que é certo, então você vai
ter que pensar, vai ter que começar a conjugar as suas opiniões, e
daı́ você entra no problema do Descartes que é a moral provisória,
ou seja, enquanto eu não chegar a uma conclusão o quê que eu
faço? Você faz como os outros mas colocando o seu procedimento
entre parênteses, ou seja, eu não sei se é bom ou se é mau. Entre-
tanto, tão logo você conheça, verdade conhecida é verdade obede-
cida.
O dia que você chegar a ter a sua primeira norma moral desco-
berta por um esforço próprio, aı́ você vai saber o que é autonomia

442
18 Preleção XVIII

de julgamento. Eu acho que é uma grande conquista, no sentido


que ela dá a você uma noção da dignidade humana, de como ser
livre.
A liberdade humana consiste somente numa coisa: em você po-
der agir segundo o elo de necessidade lógica do pensamento, e não
segundo o elo de necessidade causal externa. Ao invés de você se-
guir um encadeamento causal, você vai seguir um encadeamento
lógico.
Na hora que você descobrir isso, você descobriu a pista do
espı́rito. Nesse sentido, o homem passa a ser também um causador
de efeitos, caso contrário, ele passa a ser um mero elo dentro de
uma esfera de encadeamentos causais.
Então, na hora que você conhecer o primeiro ato livre, ou seja,
eu vou agir assim porque esta é a norma universal, e não você agir
assim ou assado porque o conjunto acidental de causas que te en-
volve, que é diferente das causas que envolve o outro, te impelem
nesse ou naquele sentido. Causas internas ou externas.
P.e., você pode ter, em determinado momento, um impulso de
você agredir ou de você fugir. Num momento você pode ter um,
e noutro momento você pode ter o outro. Entretanto, na hora em
que você nem agredir nem fugir porque você é impelido a isso
pelo seu impulso, mas você decidir livremente o que vai fazer em
função de uma norma, aı́ você está livre. Você não liga mais se
você tem o impulso de agredir ou de fugir porque você vai fazer o
que for fazer. O impulso começa a obedecer. Você cria o impulso,
cria o desejo, cria a motivação. Aı́ você sabe o que é liberdade,
e também responsabilidade, ou seja, tudo o que você faz é porque
“Fı́-lo porque qui-lo”. Daı́ ninguém tem culpa, nem o papai, nem a
mamãe, nem o Maluf, nem o código genético, mas fui eu mesmo.
Eu sou o autor dos meus atos. Aı́ você não precisa mais pedir
opinião a ninguém. Ninguém mais tem autoridade sobre você.
Acima da sua cabeça só tem Deus, mais ninguém.

443
18 Preleção XVIII

Mas isto tem que ser conquistado. Você passará a ter autoridade
integral. O homem foi feito para isso. Isso é uma constante da sa-
bedoria universal: cada homem está como se colocado no topo da
montanha cósmica. Ele está acima do cosmos. É uma espécie de
ligação direta com o universal. Mas ele só terá essa ligação direta
com o universal se ele não estiver escravo do particular. Então não
é preciso que ninguém me diga o que fazer, Deus me disse.
O mundo da fantasia, pela sua natureza, tem que ser absorvido.
não é uma opção, é uma absorção. Se o mundo lógico não está
completo, se ele não abarcar toda a sua experiência, sua visão do
mundo, sua filosofia, se ela for contraditória com a experiência,
então ela está falha.
Se a sua fantasia disse uma coisa e a sua lógica disse outra, então
a sua lógica descobriu a norma universal mas parece que você não
gosta dessa norma universal. Se você não gosta então você re-
almente não a conhece de maneira completa. É o conhecimento
parcial, puramente hipotético. Você não enxergou a evidência da-
quilo. Se você quer a evidência e ela lhe aparece, que objeção a
sua alma vai ter?
É a estória dos 7 dias da Criação: no sétimo dia, Deus viu que
era bom. Então, você aprova o real na sua totalidade, você vê que
é bom. Você não quer que ele seja de outro modo. A consciência
cósmica é exatamente isso. É você ter essa posição contemplativa
que aceita a realidade cósmica na sua totalidade, e faz de novo
para ver que é bom.
Uma maneira de você ficar fora desse conjunto é você achar que
você é sempre uma exceção. Você fica fora da ordem cósmica. Ela
não te afeta. O seu caso é sempre diferente.
Até você entender que você não é uma exceção, que você é
igualzinho aos outros e que existe mesmo uma lei cósmica para
todos, inclusive você, e que você aceita, ou não aceita.
Essa lei cósmica não pode ser vista por meios intuitivos. Ela

444
18 Preleção XVIII

é uma conquista da Razão. Você tem uma evidência que você


conquista no fim.
Como você vai fazer isto? Você vai partir do julgamento do
seu julgamento, explicitando cada julgamento, explicitando o sig-
nificado intelectual de cada termo que você usa no sentido de que
na hora que eu pensei nisso qual era o conteúdo real que eu es-
tava dando a essa idéia? não a definição que você encontra no
dicionário.
Quando você diz que acha que o sujeito agiu por inveja o que
você pensou exatamente como esta inveja? Você imaginou, p.e.,
uma espécie de conspiração de raças? Foi isto que você imaginou?
Então, você tem que conhecer o pretexto para saber se o ato foi
realmente mau. E se você não sabe então não interessa saber se o
ato foi mau, o que interessa é você se defender dele (o ato), não
é? P.e., se vem um sujeito, armado, te assaltar, interessa a você
saber se a famı́lia dele está passando fome, ou se o sujeito tem um
problema patológico? não! O que interessa é você se livrar dele o
mais rápido possı́vel. não lhe cabe julgar, mas agir.
Muitas vezes o julgamento, sobretudo o negativo, é um substi-
tutivo para a ação. Você não tem coragem de se defender e depois
fica alimentando um ressentimento errado. Você não vai deixar
que o sujeito suba em cima de você, mas isto não significa que
você vá julgá-lo.
Você se defender é inteiramente lı́cito, aliás é até obrigatório.
Eu não estou pregando uma conduta do tipo do Mahatma Ghandi,
de deixar o sujeito te esfolar vivo, porque se você se deixa esfolar,
se você vira um mártir, é difı́cil você na posição de mártir resistir
à tentação de fazer um discurso moralista dizendo que o sujeito é
um verdadeiro satanás, porque você vai desencadear um exército
de maus sentimentos contra o sujeito.
É difı́cil você virar um mártir sem ter o ressentimento. É a psi-
cologia da pseudo-santidade: “Ah! eu só apanho, eu sofro tanto...”

445
18 Preleção XVIII

O coração dele é ódio para tudo quanto é lado! Então é melhor


você dar umas três ou quatro porradas no sujeito, e não odiar
ninguém.
Então, tentem analisar o seu julgamento, em que ele se funda-
menta. Todo ato é aprovado pelo indivı́duo. Só tem dois motivos
de aprovação: ou por necessidade, ou por motivo moral, e daı́ você
acha o pretexto de cada ato.
Como você poderia explicar um ato por uma necessidade? O
que poderia tornar esse ato necessário para essa pessoa?
Vejam, eu sou recordista em matéria de sofrer traição, ou saca-
nagem de alguém. Mesmo assim, eu não emito nenhuma opinião
antes de haver pensado desta forma, para ver se de fato a justi-
ficativa apresentada poderia ter algum fundamento. Uma coisa é
você se defender, outra coisa é você julgar. O melhor é não julgar
porque você se defende antes que a coisa aconteça.
Se você conserva um ressentimento significa que a sua ação não
foi suficiente para resguardar a sua integridade. Algo você perdeu
ali. Pode ser o respeito por si mesmo, um pouco da felicidade, da
harmonia, da paz, mas você perdeu! Ou seja, a tua resposta não
esteve à altura da tua necessidade, você necessitará de um algo
mais.
Num conceito de um indivı́duo que diz que precisa se vingar,
ora, vá lá e se vingue logo! ‘As vezes o sujeito nem lembra bem
mais o por quê, mas também não interessa!
Se você decide não devolver a ofensa então você tem que per-
doar completamente. No entanto, você ficar se vingando psicolo-
gicamente, isto é o maior envenenador de mente que existe. Ou
você vai lá e dá uns cascudos na pessoa, ou esquece totalmente.
Encara aquilo com espı́rito esportivo: “Poxa, aquele cara puxou o
meu tapete e eu me ferrei!...”.
Perdoar é você doar de novo, é você completar na doação, per
significa completar em torno, ou seja, você vai amar o ofensor

446
18 Preleção XVIII

mais do que você amava antes. Se você não tiver força para isso,
então se não fizer nada você vai ficar morrendo de raiva e acaba
descontando nos outros. Então você devolve a ofensa mas sem o
julgamento moral. P.e., o cachorro te dá uma mordida; você faz a
condenação moral do cachorro? não, você dá uma paulada nele e
pronto! Ninguém fica com raiva de ninguém.
Na sociedade moderna, hoje dia, o Estado arrogou a si o mo-
nopólio da vingança. Hoje você não pode bater numa pessoa mas
você pode entrar com um processo que irá atormentar a pessoa por
anos. Eu acho isso uma injustiça porque você poderia resolver o
problema a nı́vel pessoal.
Você pode expor uma pessoa à execração pública, estragar a
vida dela, porque quando o Estado entra na estória, ele não entra
pouco. P.e., se um sujeito te agrediu fisicamente, você agride ele
de volta e esquece a confusão. Vamos supor que o sujeito te dá
um empurrão e te derruba. Daı́ você mete um processo no sujeito.
Você tem idéia quanto tempo leva um processo na justiça? Quanto
você vai gastar de advogado? Você sabe o que isso vai representar
de impedimento na vida dele? Então, é melhor você da um tiro no
sujeito do que levantar um processo.
Então, quanto mais você tenta legislar e fazer tudo certinho,
mais injustiça você faz.

447
19 Preleção XIX
20 de março de 1993

A distinção entre as Ciências teóricas, normativas e técnicas é


absolutamente intransponı́vel. Esses três tipos de Ciência corres-
pondem ao que Husserl chamaria de “esferas objetivamente cer-
radas da realidade”; esferas que não se confundem de maneira al-
guma.
Seria muito interessante vocês fazerem alguns exercı́cios, ado-
tar até como uma prática, de fazer esta distinção sistematicamente
com relação a todos os conhecimentos que lhes interessem, para
saber sempre se é teórico, normativo ou técnico.
Para isso, você vai partir naturalmente de qualquer julgamento
que você faça de qualquer coisa e ver, primeiro, quais são os ele-
mentos normativos que têm ali, qual é o sistema normativo que
está subentendido. P.e., você vai comprar um objeto qualquer,
uma garrafa térmica, um automóvel, uma roupa, e existe uma pre-
ferência. Onde existe uma preferência, tem uma norma implı́cita.
Claro que você pode ter vários tipos de preferência,
você pode ter vários motivos diferentes, condicionados a distin-
tos sistemas normativos que para você são válidos. P.e., o critério
da beleza, da utilidade, do preço, etc. não confundir esses vários
sistemas, os quais são independentes entre si. No caso de você
querer uma roupa que seja bonita, barata e prática você está usando
três critérios. Claro que nós já temos tanta prática de fazer isso que
não percebemos quando o raciocı́nio está encadeado. Na seleção

448
19 Preleção XIX

de uma simples roupa que você vai comprar você está jogando
com um aprendizado que levou a sua vida inteira. Você tem uma
idéia do caro e do barato de acordo com a extensão do seu bolso
e com o bolso médio, ou seja, você pode comparar o que é caro
ou barato para você com o que uma outra pessoa considere caro
ou barato. Isso não é um julgamento intuitivo, isso é uma dedução
implı́cita a qual você faz muito rapidamente e parece intuitiva.
Aliás, essa é uma distinção que as pessoas habitualmente não
sabem fazer. Todo julgamento que você está habituado a fazer,
que você faz com facilidade, você o faz rapidamente porque você
percorre uma cadeia dedutiva com a velocidade de um computador
e lhe parece intuitivo porque você não se lembra de haver pensado,
mas isso é falso.
O intuitivo seria somente aquilo que sem qualquer prática ante-
rior, e não só sem qualquer necessidade de pensamento mas sem
qualquer possibilidade de pensamento, você reconhece a coisa.
P.e., a presença de uma pessoa; se tem alguém presente ou au-
sente isto realmente você não precisa pensar. Isto é um dado. não
tem nenhum elemento construı́do. Porém, num raciocı́nio banal
como esse, se você vai comprar caro ou barato, você está jogando
com dados que você acumulou durante a vida inteira, com milhões
de comparações que você já fez. É como se já tivesse um programa
automatizado, um raciocı́nio automatizado que pode nos enganar
fazendo-se passar por intuição.
Isso é exatamente o que acontece com os astrólogos quando eles
interpretam o mapa. Eles acham que aquilo é intuitivo quando na
realidade é um sistema classificatório que eles dominam.
Em qualquer avaliação então, haverá um ou vários sistemas nor-
mativos em jogo. Você deve explicitar esses sistemas normativos
para eventualmente poder corrigi-los.
Suponhamos que fosse a compra de um carro. Suponhamos que
o carro esteja dentro da sua disponibilidade financeira e que você

449
19 Preleção XIX

fosse julgar apenas o carro em si mesmo. Caro ou barato depende


do bolso. Nenhum carro pode ser caro ou barato em si mesmo, só
em relação ao comprador.
Que qualidades se poderiam admitir num carro? Claro que essas
qualidades estariam em último caso vinculadas à definição mesma
do conceito de caro. Deste conceito você poderia tirar uma norma
fundamental no julgamento do carro.
Então, o que é um automóvel? Você pode não saber o que é mas
você sabe uma série de traços nos quais você reconhece a presença
dele. Então, você dá esses traços e a pessoa reconhece o que é, mas
com isso você não diz o que é.
O que move o automóvel? O motor. Que tipo de motor? ‘A
explosão. Então, é um veı́culo automotor, com um motor à ex-
plosão. No futuro poderemos ter outros tipos de propulsão, mas
por enquanto vamos considerar o que há no mercado.
O rendimento desse motor à explosão, p.e., é um fator que
você leva em conta, não é? P.e., quanto de combustı́vel ele con-
some? Veja que esse julgamento do rendimento decorre da própria
definição de automóvel.
Assim, a própria definição de automóvel sugere uma das nor-
mas de julgamento. Por quê sugere? Porque a idéia de rendimento
é inerente à idéia de motor. Motor é um engenho que produz de-
terminado trabalho.
Então, vejam o acerto do Husserl quando ele diz que quando
você coloca uma condição quando avalia qualquer coisa você está
dizendo que, um A só será um bom A se ele contiver também o
B. Esta é a fórmula, ou seja, um bom motor será um bom motor
se ele tiver um bom rendimento. Se o motor tiver um péssimo
rendimento ele não deixa de ser um motor mas ele não realiza ple-
namente a idéia de motor. Realiza imperfeitamente, de maneira
precária. É como se não chegasse a ser ele mesmo. P.e., se você
fizesse um motor que gastasse muito combustı́vel e realizasse um

450
19 Preleção XIX

trabalho com menos rendimento do que um organismo humano


ele não deixaria de ser um motor porque o princı́pio do motor es-
taria ali, mas a idéia mesma do motor contém uma implicação
teleológica, uma implicação de uma finalidade.
Por quê alguém faz um motor? Para que ele realize uma tarefa
melhor do que nós a realizarı́amos, é evidente. Se for para fazer
a mesma coisa que nós fazemos, com o mesmo rendimento, então
para quê fazer um motor? É como uma máquina de desentortar
banana.
Na idéia de qualquer invento existe um raciocı́nio teleológico,
ou seja, você inventa algo para um fim. Na hora que você inventou
isso você concebeu uma norma. A norma é: um invento só será
um bom invento se atender a uma determinada condição. Se ele
realizar a sua tarefa em tais ou quais nı́veis de aproveitamento.
Se você inventa um medicamento para gripe, p.e., e você vê que
tomando esse medicamento você cura da gripe numa semana e
sem tomá-la você cura em 7 dias, você considera isso um medica-
mento? Isso não é um invento, absolutamente. Na hora que você
tem essa norma subentendida no invento você tem apenas um con-
ceito ideal do invento. Essa norma não traz por si mesma nenhum
meio de realização prática daquele invento.
Suponha que você queira inventar um motor que realize uma ta-
refa mecânica, levantar peso, deslocar uma massa no espaço e você
tem idéia do princı́pio do motor que é queimar um combustı́vel
para realizar um trabalho. Então, a idéia do motor, ou a idéia de
qualquer outro invento supõe uma finalidade. Entretanto, não é
a finalidade em si que define o invento e sim uma certa maneira
mais rendosa ou mais prática de realizar esta finalidade do que as
maneiras já conhecidas. Ninguém vai fazer um invento para fazer
algo que você já faz perfeitamente bem. P.e., você inventar uma
máquina de andar que permita a um homem adulto andar a 5 km/h,
ou uma máquina de respirar. Tudo isso você já faz. Ninguém faz

451
19 Preleção XIX

um invento a não ser com a finalidade de interferir na natureza e


permitir que algo se faça ou de maneira mais fácil, ou da maneira
mais rendosa, etc. Portanto, a idéia dessa finalidade é inerente à
idéia de invento, de indústria, de técnica, etc. É claro que às vezes
podem acontecer desastres quando você inventa uma máquina que
faz pior do que você fazia antes, mas isso é um defeito, não faz
parte da definição.
Ora, onde você tem uma idéia de uma finalidade você já tem
uma norma que diz que esse invento só será bom se ele atender
essa finalidade numa determinada quantidade, senão não adianta.
Então, essa seria a norma fundamental para o julgamento da-
quele invento. Isto se aplica desde a invenção do estilingue até de
um foguete espacial.
Vamos supor um estilingue que tivesse a potencia de atirar uma
pedra exatamente à distância que um garoto de 3 anos de idade
atiraria. Ele não serviria para nada. O estilingue só serve se ele
conseguir atirar a pedra mais longe do que nós conseguimos atirar
sem o estilingue. Esta é a norma fundamental para o julgamento
ligada à própria natureza, finalidade, do invento.
Claro que só pode existir norma onde existir uma finalidade hu-
mana. Como é que nós poderı́amos julgar normativamente um
ente da natureza? É difı́cil, não é? Porque eles não são feitos para
uma finalidade determinada, eles têm uma pluralidade indetermi-
nada de finalidades.
P.e., que finalidade tem as formigas? Em ecologia quando você
define o papel desempenhado por uma determinada espécie dentro
do meio onde ela está, veja que este papel é enormemente com-
plicado. E essa finalidade, ela mesma, às vezes é útil, às vezes
é prejudicial ao meio. Então, como vai fixar exatamente a finali-
dade dela? Qual é a finalidade por que existem os hipopótamos?
Você pode falar de uma finalidade de formigas em relação a nós,
mas não da formiga em si. A formiga pode ser prejudicial, p.e., ao

452
19 Preleção XIX

plantador. A saúva comia os cafezais, mas não existiam os cafe-


zais, e foi você quem os pôs ali. A formiga pode ser um auxı́lio ou
um impedimento à ação humana. É esta ação que tem uma finali-
dade, e não a formiga. Então, você julga a formiga em relação a
uma finalidade tua.
Nós só podemos falar claramente de finalidade no caso da fina-
lidade humana. Só existe norma onde existe a ação humana, ou
um interesse humano, uma finalidade humana.
Claro que metafisicamente você poderia falar da finalidade do
cosmos mas, aı́, você está subentendendo um Deus que tem uma
intenção quase antropomórfica, um Deus que pensa como gente.
Mas, quer você acredite ou não em Deus a palavra finalidade não
pode ter o mesmo sentido quando aplicado a um ser humano e a
Deus.
Se Deus é eterno qual é a diferença entre a finalidade, a causa,
o meio? não tem. Na Bı́blia está escrito, Deus falou: “Faça-se luz.
E a luz se fez”. não é como nós que temos que assinalar uma fina-
lidade, depois vem a norma, depois os meios, etc., etc. ‘As vezes
dá certo, às vezes não, porque tem que ter a ação racional segundo
os fins. Então, nós poderı́amos falar de finalidade do cosmos, p.e.,
Deus inventou o cosmos com uma finalidade, mas a palavra fina-
lidade, aı́, está aplicada metaforicamente. Como nós não sabemos
exatamente o que corresponde a noção de finalidade na mente de
Deus, nós chamamos aquilo de finalidade. Então, podemos deixar
este caso de lado.
Então, na natureza não existe claramente uma finalidade para
cada ente. Existe uma multiplicidade indefinida e indefinı́vel de
finalidades. No mundo divino, supra-humano, a palavra finalidade
só se aplica metafisicamente, não é um conceito rigoroso. Então,
o que sobrou? Sobrou o humano.
Então, só existem disciplinas normativas aplicadas ao mundo
humano, que é o mundo das ações, intenções e finalidades huma-

453
19 Preleção XIX

nas, e podemos julgar, p.e., um automóvel porque ele é um invento


humano feito para uma determinada finalidade. Se o automóvel
brotasse em árvores nós só poderı́amos julgar a finalidade dele
para determinadas finalidades nossas.
O fato de que você se alimenta de maçãs, ou de feijão, não sig-
nifica que as maçãs e o feijão foram inventados com a finalidade
de alimentar você, ao contrário, você é quem tem por finalidade se
alimentar, e por isso feijão serve e pedra não serve.
Então, não se está julgando a finalidade inerente à própria coisa,
mas você está julgando a coisa como um meio ou um impedimento
para uma finalidade sua.
Então, qualquer invento humano pressupõe uma finalidade e
portanto pressupõe uma norma fundamental que julga o invento
alcançado conforme ele atenda em mais ou em menos essa finali-
dade.
Se você não tem essa idéia muito clara, como é que você po-
deria começar a construir um invento se você não tem a idéia da
finalidade e você também não tem a idéia da quantidade de rendi-
mento esperado? Na hora que você tem isso muito claro, ou seja,
você escolheu a finalidade e você tem mais ou menos uma idéia do
quanto o invento em questão deva atender a essa finalidade, você
não tem ainda esclarecido o como fazer isso. Então você começa
uma série de experimentos cujo sucesso ou fracasso será medido
justamente em relação à finalidade. A finalidade é uma régua, logo
é uma norma.
Então, essa é a diferença entre uma Ciência normativa e uma
Ciência prática. Dá para entender facilmente que toda e qualquer
Ciência prática, ou técnica, subentende uma norma.
A técnica é um conjunto de meios para fazer alguma coisa, mas,
que coisa? Se você vai aplicar uma técnica ao fazer alguma coisa é
porque essa coisa não está feita ainda, senão não precisa de técnica
nenhuma. Se essa coisa ainda vai ser feita, então você só tem dela

454
19 Preleção XIX

um conceito ideal, de uma finalidade. Se você tem um conceito


ideal você tem ali uma norma. Em função dessa norma é que você
julgará os efeitos obtidos pela aplicação da técnica.
Onde houver uma técnica, há uma finalidade subentendida e
uma norma que essa técnica deverá atender.
O fato de, na vida diária, nós aprendermos o conjunto de
técnicas que já vem com uma finalidade implı́cita claro que obs-
curece a nossa percepção disso. Obscurece, mas não abole.
Nós estamos acostumados a aplicar um monte de técnicas sem
nos explicitarmos qual é a finalidade daquilo, mas não quer dizer
que não tenha finalidade.
P.e., no Congresso de Astrologia em São Paulo, querem que
eu fale sobre a técnica de interpretação do horóscopo. Só
que ninguém lembrou de perguntar: Qual é a finalidade dessa
interpretação?
Se eu vou ler o horóscopo para ver se eu vou ganhar na lo-
teria daı́ decorre uma técnica. Se eu vou ler o horóscopo para
depois fundir as informações do horóscopo com informações psi-
cológicas, psiquiátricas, etc., e com a minha sapiência infusa, e dar
um conselho para o sujeito, então a técnica é outra, evidentemente,
e que não tem nada a ver com a anterior.
Então, é óbvio que não existe uma técnica de interpretação do
horóscopo, mas haverá tantas técnicas possı́veis quantos usos do
horóscopo se concebam.
Qualquer conhecimento técnico subentende um conhecimento
normativo porque a técnica é um conjunto de meios. Os meios
são, naturalmente, meios para um fim.
Então, como é que você vai saber se mediante a aplicação da
técnica o fim foi atingido ou não? Tem que haver uma norma que
está implı́cita, ou explı́cita, e que te diz se a finalidade requerida
foi atendida ou não.
É óbvio que nós só podemos julgar uma técnica à luz de um co-

455
19 Preleção XIX

nhecimento normativo. Qualquer ação humana, por mais simples


que seja, subentende uma técnica.
Portanto, onde existir uma técnica, ou mais amplamente, onde
existir uma ação humana existe um sistema normativo por trás.
Então , você se habituar a discernir isso aı́, a explicitar qual é
a finalidade da ação, quais são os meios técnicos postos em mo-
vimento para consecução dessa ação, qual é a finalidade suben-
tendida, e quais são as normas de julgamento dessa ação, você se
habituar a fazer isto, é um exercı́cio dos mais elucidativos.
A técnica é um conjunto de meios que tenham sido aprendidos
ou inventados, ou seja, você não pode dizer que, p.e., a respiração
é uma técnica, ou que a digestão é uma técnica, embora você possa
inventar técnicas para melhorar a respiração, ou a digestão, ou
eventualmente, para piorá-los. Mas, praticamente todas as ações
humanas, mesmo as mais simples, dependem de um conhecimento
que foi ensinado, transmitido, ou que você tenha inventado.
P.e., quando você aprendeu a andar. É muito difı́cil o sujeito que
aprende a andar inteiramente sozinho. Geralmente, o pai e a mãe
ajudam um pouco. P.e., para você comer. Comer parece simples,
mas quem diz que é natural se comer de faca e garfo? Quem diz
que você, se largado numa ilha deserta, criado entre os Papua da
Nova Guiné iria você mesmo conceber a faca e o garfo? Isto é
uma herança cultural.
Então, qualquer ação humana por simples que seja, a não ser
aquelas que sejam atos naturais, atos reflexos, incondicionais,
como respiração, digestão, subintendente uma técnica.
Isto, normalmente nós não levamos em consideração. A
distinção que nós fazemos na vida corrente entre o natural e o
cultural, é falha. As pessoas começam a chamar de natural tudo
aquilo que seja fácil e que não precisa mais pensar. Mas não quer
dizer que ele nunca teve que pensar.
P.e., para você sentir uma dor você não precisa pensar nem

456
19 Preleção XIX

nunca precisou. A dor não é comparativa. Isto significa que tan-


tas vezes quanto você tenha dor, em nenhuma delas você precisará
pensar nem recorrer a experiências passadas.
Existem coisas que você manifestamente precisa pensar. Para
resolver uma equação matemática você precisa pensar. Mas, tem
outras vezes que você não precisa pensar no momento porque você
já automatizou, mas não quer dizer que você nunca precisou pen-
sar antes. P.e., andar de bicicleta. Depois que você aprende você
não precisa pensar mais, mas para chegar a esse ponto de não pen-
sar você precisou pensar antes.
Se você começar a ver todos os atos que você faz na vida coti-
diana e todas as técnicas que estão implicadas nestes atos você vai
ver o imenso legado cultural que permita as noções mais simples
da vida.
O próprio conceito de café-da-manhã, será que desde que o ho-
mem existe ele come alguma coisa logo de manhã? Será que a
humanidade desde que ela existe sempre teve comida guardada na
véspera para comer no dia seguinte? Vejam quantos milênios ti-
veram que passar para que o homem lembrasse de guardar comida
para o dia seguinte. P.e., nós vemos que cachorro guarda comida
para o dia seguinte, mas gato não guarda. Eu imagino que deve
ter dado um trabalho imenso para o homem chegar a essa con-
clusão. Imaginem o primeiro homem que deu essa idéia, quanto
discussão não deve ter havido. Os outros não sabiam nem o que
era o dia seguinte. Hoje nós falamos isso em tom de brincadeira
mas a verdade é que o homem surgiu na face da Terra não sabendo
que devia guardar comida para o dia seguinte, aliás essa noção de
guardar algo para o amanhã ainda é difı́cil em hoje em dia para
muitas pessoas. P.e., você sabe guardar dinheiro para a semana
seguinte? Será que todo mundo sabe? Você sabe que existe nor-
mativamente essa necessidade, mas você não sabe tecnicamente.
Você sabe a norma que é melhor guardar para o dia seguinte, mas

457
19 Preleção XIX

como é que faz? Se você fizer uma pesquisa, perguntar o que


se investigou sobre isso, sobre a idéia de fazer provisões, você
vai ver que foi uma conquista dificı́lima para a civilização. É tão
difı́cil que não entrou ainda na cabeça de todos os seres humanos.
Aristóteles, p.e., escreveu um livro sobre a economia doméstica.
A economia doméstica é um dado fundamental da Antropologia,
mas a economia doméstica não nasceu pronta.
Quanto tempo o homem levou para catalogar, p.e., que o lugar
da roupa é no armário, que a faca e o garfo ficam na gaveta da
cozinha e não no banheiro, etc.
Todas essas coisas são subentendidas na cultura que nos cerca
e nos hábitos que nós adquirimos. Então, vejam a imensa quanti-
dade de saber normativo e técnico que está acumulado na cabeça
do mais burro dos habitantes do planeta, na presente geração.
Bastaria que na infância o indivı́duo fosse separado dessa cul-
tura, p.e., dos 6 meses de idade até um ano, ele não aprende mais
nada depois. Isto significa que o fluxo de introdução da cultura
tem que ser ininterrupto. Se interromper ele vira o menino- lobo.
A condição de homem não é uma condição humana. A nossa
estrutura biológica apenas predispõe a uma condição humana. pre-
dispõe, mas não impõe.
Nós temos um organismo apto a desenvolver a linguagem, as
técnicas, etc., mas a aptidão não é uma necessidade, ela não impõe
que você faça tudo isso realmente. Se você for temporariamente
privado dos meios de fazer tudo isso, daı́ você não consegue mais.
Para o homem conectar o ato sexual com a gravidez levou uma
enormidade de tempo. Hoje ainda, existem tribos primitivas que
ainda não tinham estabelecido essa condição.
Eu acho que quem se dedica ao desenvolvimento da
consciência, do conhecimento, deve estar sempre avisado de que
essas coisas não são naturais, de que existe um esforço humano
acumulado, para você nunca ter essa idéia de que a sua cabeça

458
19 Preleção XIX

sozinha vai pensar em alguma coisa. Você deve sempre saber


que você está lidando com um legado imenso da civilização até
hoje. Isso sem mencionar o conhecimento cientı́fico, intelectual,
erudição.
O sujeito que inventou de guardar comida para o dia seguinte
também foi um gênio. Imaginem a resistência interna que ele teve
que vencer a primeira vez que ele acordou com fome e não tinha
nada para comer; passou por isso várias vezes, daı́ ele tentava se
lembrar que tinha que fazer alguma coisa e a coisa lhe escapava, e
ele esquecia de fazer, daı́ ele guardou num dia, depois esquecia de
novo, como qualquer hábito que você pretende adquirir. Imaginem
o trabalho imenso que deve ter dado, e eu estou falando em 24
horas, e não em anos!
Para você começar a distinguir as estações do ano, criar expec-
tativas de que aquele ciclo vai se repetir, isso levou milênios!
Mas, o exemplo da comida é para um prazo de 24, até 12 horas.
Imaginem o sujeito que guardou comida, veio um outro sujeito e
a comeu, e quando ele acordou e não viu a comida ele não sabia
o que havia acontecido. Imaginem o desestı́mulo para ele! Imagi-
nem as várias tentativas e erros que foram necessárias para que o
homem conseguisse acertar isso.
Por outro lado nós podemos ver o quanto o suposto avanço da
civilização torna as pessoas burras porque elas não tem uma visão
real do mundo onde elas estão. Elas pensam que tudo brota em
árvores. Já está tudo pronto, é só pegar. Elas vêem o mundo como
um cineminha onde o cenário do mundo é esse que elas conhecem
e que tudo sempre tivesse sido assim, como se não tivesse que ter
tido a ação humana.
Quase tudo o que existe tem por base a intermediação da ação
humana; você não contata a natureza direto. Há muitos milênios
que não tem um contato com a natureza.
Há quem diga que o ı́ndio vive integrado na natureza, que tudo é

459
19 Preleção XIX

uma maravilha. Essas pessoas nunca conversaram com um ı́ndio,


porque ele tem terror da natureza. Elas pensam que o ı́ndio anda
no mato como você anda no centro da cidade.
Na verdade, o ı́ndio faz o cercado da taba e dali não sai, porque
além do cercado estão as trevas exteriores e lá ele não vai. Só
se for um profissional do ramo com experiência. Se uma criança
entrar na mata é o pânico na aldeia!
Um homem da nossa suposta civilização é capaz de deixar suas
crianças irem acampar na Floresta da Tijuca, mas o ı́ndio jamais
permitiria uma coisa dessas. Então, o ı́ndio está muito descon-
fortável na natureza.
É verdade que a presença do homem branco torna mais descon-
fortável ainda porque, além de jacaré, cobra, onça, ainda tem o
homem com suas máquinas diabólicas para ele enfrentar. Prova
de que essa estória de mato é perigoso mesmo... A presença do
branco é a presença de mais uma ameaça na floresta.
Então, o hábito nos torna indiferentes, imunes de certo modo
à percepção de coisas que são perfeitamente reais, e a principal
delas se chama acumulação das ações humanas.
Nós vivemos num mundo inteiramente inventado pelo homem
e sempre foi assim. não é que tenha sido inventado pela coletivi-
dade, isto é que é o mais estranho. Sempre houve um indivı́duo
que inventou pela primeira vez. não pode haver um invento cole-
tivo.
O arco e a flecha, p.e., não foi uma assembléia que inventou,
mas um único indivı́duo. O que acontece é que a geração se-
guinte não lembra mais quem inventou. Aliás, existe um estudo
absolutamente fascinante sobre este aspecto técnico entre os ma-
cacos. Desmond Morris, um antropólogo americano escreveu um
livro, “O macaco nu”, onde ele fala sobre este assunto. Também o
próprio livro do Lawrence, “O comportamento animal humano”.
Dá para você fazer uma analogia longı́nqua do que pode ter sido,

460
19 Preleção XIX

numa comunidade primitiva p.e., o papel do inventor, um macaco


que inventa alguma coisa.
Ele descobre que existem bananas num lugar onde eles não ti-
nham ido ainda. Isto é um caso verı́dico. Inicialmente, o macaco
que descobriu banana em outro lugar se desliga da tribo porque
ela o rejeita. Daı́, se ele consegue de alguma maneira comunicar o
invento, e se todos acreditam, daı́ ele se torna o chefe da tribo.
Deve ter sido assim com a comunidade humana também. O su-
jeito que inventou o estoque de alimentos deve, depois, ter virado
um sujeito muito importante. Mas até ele chegar lá, ele não deve
ter sido o primeiro, porque o primeiro deve ter sido assassinado,
no ato.
As pessoas deviam achar que ele estava roubando alimento. De-
pois, aos poucos, na “linguagem retórica” que eles tinham, ele ti-
nha que explicar que não foi essa a intenção, que o negócio era
outro, enfim, deve ter sido um problemão!
Então, todos esses inventos são frutos da ação humana, tinham
uma finalidade, uma norma implı́cita, e a norma não bastava para
gerar a técnica, os meios.
Desde o primeiro invento nós podemos perceber que se não
existe uma finalidade então não pode ter invento algum. Claro
que pode ser um invento acidental, como p.e., a penicilina. A
descoberta veio, na verdade, através de um erro. O sujeito estava
realizando uma determinada cultura de fungos e ela resultou num
erro. Daı́ descobriram que o fungo tinham tais ou quais virtudes.
Podem acontecer esses tipos de inventos acidentais, mas nós
estamos aqui falando de inventos feitos pela iniciativa humana.
Mesmo o invento acidental de nada serviria se não existisse a fina-
lidade anteriormente definida.
P.e., a idéia de encontrar algo que curasse a tuberculose, essa
finalidade já existia. Sabia-se que para a cura da tuberculose, a
substância teria que atender a tais ou quais requisitos. Então você

461
19 Preleção XIX

tinha a finalidade, portanto, a norma. Quando aconteceu o acidente


percebeu-se que ele atendia a aquela finalidade, e à norma. Mas, e
se não existisse a norma?
Então, você vê que a distinção entre conhecimento normativo
e conhecimento técnico é uma fatalidade do mundo real. Se não
há norma você também não vai saber os meios. Os meios podem
estar na tua frente mas você não sabe para o que eles servem.
Vamos ler um trecho de um livro de Samuel (Remington(?))
sobre a medicina, que exemplifica bem tudo o que estamos falando
aqui:
“A única e elevada missão do médico é de restabelecer a saúde
dos enfermos, que é o que se chama curar. O ideal mais elevado
de uma cura é restabelecer a saúde de maneira mais rápida, su-
ave e permanente, ou tirar e destruir toda enfermidade pelo cami-
nho mais curto, mais seguro e menos prejudicial, baseando-se em
princı́pios de fácil compreensão”.
Bem, isto é uma norma. Isto significa que quaisquer procedi-
mentos que atendam a isto aqui serão tidos como bons. Os que
não atenderem, não servem. Ele esclarece em seguida:
”Se o médico percebe com clareza o que é preciso curar nas en-
fermidades, ou seja, em cada caso patológico individual (conhe-
cimento da enfermidade), se percebe claramente o que existe de
curativo nos medicamentos, isto é, em cada medicamento em par-
ticular (conhecimento do poder medicinal) e se sabe como adaptar,
conforme a princı́pios perfeitamente definidos, o que há de cura-
tivo nos medicamentos ao que há de indubitavelmente mórbido
no paciente de modo que sobrevenha o restabelecimento, se sabe
também adaptar de maneira conveniente o medicamento mais
apropriado, segundo o seu modo de agir, ao caso que se apresente,
assim como também ao modo exato de preparação, e quantidade
requerida, e o perı́odo conveniente para repetir a dose, e se,
finalmente, conhece os obstáculos para o restabelecimento em

462
19 Preleção XIX

cada caso, e é apto para removê-lo, de modo que o referido resta-


belecimento seja permanente, então, terá compreendido a maneira
de curar judiciosa e racionalmente, e será um verdadeiro médico”.
Então, você tem a norma fundamental e o sistema normativo,
inteiro. Em seguida, ele vai descendo até cada caso individual, até
cada substância individual. Então, para cada substância também
haverá um critério normativo. Ele vai descendo do geral para o
particular, desde a norma fundamental até as normas mais particu-
larizadas, e até a sua aplicação, que também deve ser normativa.
Mas, como que faz? Dito de outro modo, materialmente, quais
são os meios? Tudo o que ele diz aqui ainda não tem nada de ho-
meopático. A homeopatia propriamente dita entrará, em seguida,
como técnica para realizar estas normas.
A produção de um exemplo completo, adequado, é sinal de que
a coisa foi compreendida. Será que todos estão em condição de
fornecer um exemplo como este, de um sistema normativo qual-
quer, que você use para qualquer coisa?
P.e., qualquer regulamento de qualquer coisa é um sistema nor-
mativo. Mas, eu queria um exemplo de um sistema normativo
implı́cito em atos banais da vida de uma pessoa. P.e., quando você
escolhe uma empregada doméstica.
Então, uma cultura é um sistema de normas que se ...(?)... com
as normas supremas de uma coletividade.
Por quê você consegue distinguir, p.e., a civilização e cultura
romana, da grega, da medieval, etc.? Porque tem um sistema de
valores e normas que se expressam em sı́mbolos e que são valores
e normas que estão realmente embutidos na vida diária.
P.e., faz parte da civilização medieval a idéia de um Deus oni-
potente que observa todos os seus atos e que, como diz a Bı́blia,
“sonda os (reis(?)) e corações”, ou seja, o olho de Deus está em
toda a parte. Isto significa que não existe comportamento moral-
mente neutro frente a Deus. Nenhum.

463
19 Preleção XIX

Então, a consciência de pecado é um dado da cultura medieval.


não quer dizer que as pessoas fossem boazinhas, ao contrário, tal-
vez pecassem muito mais do que hoje. Porém, nós podemos dizer
que durante quase 1 milênio não houve muita possibilidade que
um indivı́duo agisse sem ter a consciência de estar pecando.
A consciência de estar errado pervade a civilização medieval.
A idéia de que “aqui ninguém presta” é caracterı́stica da Idade
Média, e que para os gregos ou os romanos esta seria uma idéia
muito esquisita. Ela seria tida até como imoral.
No contexto grego você pensar mau de si mesmo seria uma baita
sacanagem, mas no contexto medieval era quase uma obrigação
rotineira. Então, p.e., as canções populares, os costumes, tudo su-
bentende a maldade do ser humano. A consciência de ser mau,
de que aqui todos são batedores de carteira, isso é um dado da
civilização medieval que vem de uma norma fundamental. não
importa a norma fundamental estar totalmente explı́cita, o que im-
porta é que ela seja realmente lida. Na prática, as pessoas agem
de acordo com aquilo, e é isso que marca uma cultura e que a
diferencia de uma outra.
Então, vamos dizer que a mesma função dessa consciência de
pecado da Idade Média, tinha a consciência civil. Um cidadão
romano, p.e., não esquecia que ele era romano nem um único mi-
nuto. Todos os atos estavam absolutamente referidos ao Estado,
à integridade do Estado e à manutenção da ordem pública. não
haviam atos que fossem neutros em relação ao Estado Romano.
Hoje em dia talvez você pudesse dizer que a consciência do
fator econômico envolvido pervade todos os atos da vida. Isto é
uma novidade porque cada ato humano está referido à Economia.
não há um ato que seja economicamente neutro.
A consciência de que cada ato vai afetar o seu estado
econômico, ou o alheio, isto é uma novidade, é uma caracterı́stica
desta cultura atual. Por aı́ nós vemos que a norma fundamental é,

464
19 Preleção XIX

de fato, o que define.


Acontece que, às vezes, a norma fundamental é difı́cil de ser
encontrada. Ela está tão embutida, ou antes, ela é tão óbvia que
não aparece, mas aparece depois por comparação.
Por isso que quando você passa da esfera dos usos e costumes
reais para a esfera da legislação, do Direito Positivo, você comete
erros ao tentar expressar essas normas. Você não expressa a que
está realmente vigente, mas uma outra, parecida.
Me parece que uma norma fundamental desta sociedade atual é
que não há ato economicamente neutro, mas no entanto nenhuma
lei diz isto explicitamente.
Os atos que forem economicamente neutros, ou são irrelevantes,
ou nocivos, e não deixa de haver até uma certa nocividade mesmo
você supor que você proceda, de fato, de uma maneira economi-
camente neutra. Como é que o ato vai ser interpretado no meio?
Como os outros irão interpretar? Vão, certamente, atribuir certas
motivações econômicas, positivas ou negativas, e isso vai causar
uma confusão enorme.
P.e., o fato de que esteja tão disseminada a idéia de que as pes-
soas não dão valor a aquilo pelo qual não pagaram. Do meu ponto
de vista esta é uma idéia das mais loucas que o ser humano po-
deria ter inventado. Para dar valor é preciso você antes pagar; é a
mesma coisa que dizer que nada tem valor, a não ser você mesmo.
Isto também pressupõe uma ética do tipo calvinista onde o fato
de você ganhar dinheiro é que prova o seu valor. Onde a posse
do dinheiro representa um valor pessoal. Porém, não qualquer
dinheiro, mas apenas pelo qual você lutou. Se você herdou, não
tem valor porque você não pagou nada por aquilo.
Então, é absolutamente que, no meio calvinista, todos sejam
pessoas que nasçam pobres e terminem ricos. Você não pode ser
herdeiro.
Então, todo herdeiro passa a ter consciência de culpa. Das duas,

465
19 Preleção XIX

uma: ou ele vai ter que recomeçar do zero, ou então o filho tem
que ter uma atitude purgativa, onde ele torrará todo o dinheiro
do pai para ele ficar pobre e daı́ recomeçar. Isto é uma verda-
deira demência! Por quê o pai trabalhou tanto se você teve que
recomeçar do zero?! Isto é uma loucura, mas está aı́ implı́cito nos
atos da sociedade.
Na medida em que o Brasil se encaixa na economia capitalista,
ele vai absorvendo esses valores de uma maneira muito rápida. O
que as outras nações levaram séculos para formar, o Brasil em 10
anos assimilou esse valor calvinista. Mudar de código em 10 anos
é de enlouquecer!
Isso tudo sem você contar as contradições internas ao próprio
código e que você tem que se adaptar a ele rapidamente, e mais
ainda, você conserva um pouco dos códigos anteriores, basta isso
para você explicar um pouco a salada que está aı́.
Tudo isso só para enfatizar a imensa importância que todos co-
nhecimentos, toda a esfera das humanidades, perceber, captar e
expressar sistemas normativos é a chave do negócio.
P.e., em História você explicar o que aconteceu, por quê em tal
época se fez isso ou aquilo, você só pode expressar isso em termos
de sistema de valores e normas que estavam ali implı́citos que ser-
viam, ou de motivo, ou de pretexto. P.e, o que D. João VI veio
fazer no Brasil? Como é que você vai explicar esta decisão de re-
tirar a sede do governo daqui para colocar lá? Qual é a explicação
real? Vir para o Brasil porque o Napoleão iria invadir o paı́s é a
causa, e não a motivação.
Por quê entre tantas coisas que eles poderiam fazer, eles esco-
lheram justamente esta? Este tipo de explicação histórica é dado
assim: aqui tem uma causa e se segue um efeito, logicamente,
mecânico, Napoleão vem vindo aı́ e nós temos que dar o fora.
Isso é um absurdo! Como se D. João VI fosse um equipamento
eletrônico que dada a causa, aperta o botão e pronto! Como se não

466
19 Preleção XIX

existissem alternativas.
Mas é evidente que haviam alternativas e que houve uma es-
colha. Uma escolha polı́tica, evidentemente. D. João VI não foi
obrigado a vir para o Brasil, mas ele achou conveniente, pesando
todos os prós e contras.
Em função de todo um sistema de normas, qual era a norma
fundamental da polı́tica portuguesa? Fazer guerra quando a In-
glaterra quiser. Esta é a norma fundamental. Se você não en-
tende que há esta norma implı́cita, você não entende nada do que
acontece. Ao contrário, os acontecimentos parecem ter uma ni-
tidez lógico-mecânica que só existe na escola. Isto não é uma
explicação histórica, mas uma mentira histórica.
Toda história que se ensina nos colégios e que vicia as pessoas
é uma sucessão de causas e efeitos lógico-óbvias, mecânica. Pa-
rece que ali ninguém pensava, agiam como fantoches, onde dada
uma causa o efeito se seguia automaticamente. É muito simplório,
ridı́culo. Tem que tirar isto da cabeça, apagar.
Cada ato histórico humano foi um ato humano, feito não só por
um sujeito mas por muitos. Seria preciso entender os valores e
normas de um monte de pessoas para você achar a realidade final
de atos.
Se estamos acostumados a raciocinar segundo esses esquemas,
então não teremos nunca uma visão real do que aconteceu.
não tem nada pior do que dizer que a História não pode estudar
só os fatos, mas as causas e os efeitos. Mas, como causa e efeito?!
Isto quem estuda é a Fı́sica! você tem que estudar as causas, os
motivos, os valores, as intenções, os pretextos, e os resultados fi-
nais.
Então, causa e efeito virou uma espécie de fetiche. Mas, dadas
as causas, precisava fazer a Revolução Francesa? não tinham essas
mesmas causas num outro lugar? Por quê não teve uma revolução
na Espanha, ou em Portugal? Ou seja, surgiram as causas, apertou

467
19 Preleção XIX

o botão, e apareceu a Revolução Francesa, a qual se fez por si


mesma. É a visão de como se fosse um teatrinho.
Este tipo de explicação você só usa para os exemplos históricos,
mas na sua vida você usa este tipo de explicação? As coisas acon-
tecem assim? Claro que não!
Então, é como se você dissesse: a explicação histórica é a
História do irreal, é o mundo de fantasia. O mundo real é o mundo
no qual eu vivo. O mundo de D. João VI não era real, Napoleão
não existiu, e só existe você.
Então, este tipo de ensino da História aprisiona o sujeito num
provincianismo onde ele acredita que só o mundo dele é que é real
e o mundo histórico é falso.
O ensino da História não é tão ruim assim no mundo. Eu cole-
ciono livros de ensino secundário do mundo e tenho uma idéia do
que acontece nessa área. P.e., um dos métodos mais correntes nos
EUA é você colocar o aluno no lugar do personagem e fazer com
que ele decida. Você dá todos os dados da situação e pede que ele
decida. Se você não fizer isso, você não visualiza por quê D. João
VI fez isso, ou D. Pedro II fez aquilo.
Estes esquemas que explicam o comportamento alheio no pas-
sado em função de causas óbvias e mecanicamente fatais, isso aı́ é
a maneira certa, infalı́vel, de você não entender nada.Também, as
ações dos outros sempre nos parecem mecânicas: por quê o sujeito
fez assim? E você, rápido: ele fez por isto!
Acontece que estas explicações só servem para os outros. As
minhas, não; são sempre enormemente complexas e profundas.
Será que há alguém aqui que saiba exatamente o que fazer a
cada momento? Que decida tudo sem problemas. Vocês nunca
ficam em dúvida, apavorados, desnorteados? Eu fico todo dia!
Então, só eu devo ser um imbecil!
Um certo estado de desnorteamento de precisar encontrar exa-
tamente esse rumo, essa norma, isto acontece o tempo todo. Ne-

468
19 Preleção XIX

nhuma ação é totalmente lı́quida e certa. Nenhuma ação tem uma


intencionalidade lógico-mecânica. E nós sabemos disso a respeito
de nós, mas com relação aos outros nós supomos que a mente de-
les é muito mais simples e funciona como um motor à explosão.
Isto é injusto e é falso. É um violação do Segundo Mandamento.
Nós temos que supor que a cabeça do outro é tão complexa quanto
a nossa, e dentro dele existe tanta ambigüidade quanto existe em
nós. Com isso você começa a se instalar no real, e também começa
a perder o medo do ser humano.
É como o psicodrama, onde você monta a situação para ver o
que você faz, e daı́ você não sabe o que fazer. P.e., suponha que
você é a sua mãe e então decida o que fazer. Aı́ você começa a ver
que a coisa começa a se encher de ambigüidades.
Este é o único sistema de compreensão que existe. Formalmente
falando, a compreensão se expressa através da explicitação de um
sistema de normas que rege a conduta.
Então, achar qual é realmente o sistema de normas, de normas
que serviram de pretextos, de normas que determinaram um mo-
tivo, é nisto que consiste o compreender uma ação alheia, e até a
sua mesma, porque você pode ter agido por motivos que não se
recorda.
O que é uma psicanálise? não é a descoberta de sistema de
normas já esquecidos que determinaram ações passadas? Você
vai escavar até achar a lógica embutida numa ação, ou num sen-
timento passado. P.e., a herança culposa. A partir do advento
do capitalismo toda herança se torna culposa, necessariamente.
Se você pegar o sistema de herança que havia no mundo pré-
capitalista, no mundo feudal, ou nos impérios antigos, era exa-
tamente o contrário. A herança dignificava o sujeito.
Se fosse explicar para Alexandre, O Grande, que o império dele
não valia nada porque não era ele que havia conquistado, mas foi
o pai, isso não entraria na cabeça dele. Primeiro porque não ha-

469
19 Preleção XIX

via ainda essa individualização tão grande, porque fazia parte da


estrutura de caráter o sujeito se entender como um prolongamento
do pai, e não como um indivı́duo que tem que começar tudo de
novo.
Na hora que inventar a tal de ética calvinista, onde você tem
que ganhar o seu próprio dinheiro, e só vale aquilo pelo qual você
pagou, então isto é incompatı́vel com o princı́pio de herança, por-
tanto isto é uma neurose pessoal, é uma contradição na sociedade.
O que é um conflito de gerações? É isso aı́.
Isto significa que o princı́pio de herança é um princı́pio que o
capitalismo conserva de uma sociedade anterior, mas que de certo
modo é incompatı́vel com ele.
Toda herança é injusta, em princı́pio. Na esfera psicológica o
princı́pio de herança é negado, mas na esfera jurı́dica ele é afir-
mado. Isto é uma neurose social, e o indivı́duo pode sofrer por
causa disto.
Eu acho que você se livra desses códigos na medida que você
conhece um outro. Se você não conhece as alternativas, não tem
jeito. Se você conhecer muitos outros, você pode fazer determina-
das opções fundamentais na sua vida que de certo modo te coloque
fora desses problemas.
Para mim, não há nada que me diga que um bem conquis-
tado com muito trabalho vale mais do que um bem adquirido por
herança, ou de presente. Aliás, eu tenho até dificuldade de enten-
der por quê é preciso se esforçar pelos bens.
Tanta gente que ganha na loteria e um mês depois está sem nada;
ele tinha que liquidar tudo, ter um comportamento purgativo. Qual
é a base? A base é que isto é imperecı́vel, porque não foi fruto do
trabalho.
Essa ética do trabalho, eu acho isso uma indecência, falso, e
isso é válido para um certo número de seres humanos. não pode
ser válido para todos. Além do que, é fundamental de que a ética

470
19 Preleção XIX

calvinista só exista no princı́pio da predestinação, que nega a graça


divina.
O princı́pio da graça divina diz o contrário, onde é melhor
aquilo que Deus deu de presente do que aquilo que você lutou
para conquistar.
A confiança na Providência, p.e., é um traço mais católico do
que protestante. O brasileiro tem uma espécie de confiança na Pro-
vidência, confiança na sorte, mas, ao mesmo tempo, está sendo,
nas últimas duas décadas imbuı́do de um princı́pio calvinista. Isto
vai dar confusão.
Ele está imbuı́do de um princı́pio calvinista e, ao mesmo tempo,
está fazendo macumba para Iemanjá fazer tal ou qual coisa. Vejam
só que salada que é isto!...
A cabeça do Collor, p.e., que só de pensar o conteúdo dela, eu
fico desesperado. Aquilo é um amálgama que não dá para psicana-
lisar. É preciso fazer uma verdadeira arqueologia das camadas de
civilização que estão ali misturadas. Tem um pouco de código si-
ciliano de famı́lia, um pouco de código maçônico, macumba, etc.
E ele expressa essa mistura toda.
Então, se qualquer ação subentende uma finalidade, portanto
uma norma, e esta norma não traz ainda os conhecimentos dos
meios, como seria o conhecimento dos meios? Como você pode-
ria obter o conhecimento dos meios se não supondo nesses meios
um poder causal que, uma vez posto em ação, vai desencadear exa-
tamente aquele efeito, segundo a norma? Isto é um conhecimento
teorético.
Então, da finalidade sai a norma; tanto a norma fundamental,
quanto o sistema normativo inteiro (implı́cito ou explı́cito).
Para realizar a finalidade nós precisamos de um meio que só
será meio se ele tiver o poder de causar exatamente aquela fina-
lidade objetivada. Então, o meio é uma causa. Esta causa é imi-
nentemente uma propriedade de certos objetos. Ora, o que é o

471
19 Preleção XIX

conhecimento de causa e propriedade? O conhecimento diz res-


peito ao quid est; dito de outro modo, o que é uma técnica? É um
ajuste de um conhecimento teórico a uma determinada finalidade
normativa. Com isso nós vemos que o conhecimento técnico não
é propriamente um conhecimento. Ele não tem um objeto próprio.
O conhecimento técnico é o conhecimento teorético que você
tem a respeito de tais ou quais objetos que tem determinadas pro-
priedades, e é o ajuste destas propriedades destes objetos a uma
finalidade pré-determinada.
Então, nós poderı́amos definir a técnica como o ajuste entre a
teoria e a norma. Dito de outro modo, é o ajuste entre o que você
sabe o que é, e o que você acha que deve ser. A transição entre o
ser real, a situação dada, e o dever ser, é a técnica.
Então, a técnica não é um novo conhecimento, mas uma relação
que você estabelece entre duas órbitas de conhecimento.
Por outro lado, na própria formação da norma, está implı́cito um
conhecimento teorético na base de que, se você não tem a menor
idéia do que uma coisa é, como é que você poderia ter uma idéia
do que ela deveria ser?!
P.e., você pode transformar uma vaca num bife. Mas, como você
poderia fazer isso se você não soubesse que a vaca é comestı́vel?
Então, o conhecimento teorético é o fundamental, ele está sub-
indicado em tudo, ele está sempre presente num conhecimento
normativo, num conhecimento técnico, e nele mesmo.
A rigor, nós podemos dizer que só existe um tipo de conheci-
mento que é o teorético. O normativo resulta de uma decisão livre,
humana. O normativo é um ato de vontade, e o técnico é um ajuste
entre o normativo e a sua vontade.

472
20 Preleção XX
14 de abril de 1993

[ Olavo retorna ao texto do Husserl. ]


Capı́tulo III
O PSICOLOGISMO, SEUS ARGUMENTOS E SUA
POSIÇÃO
FACE AOS CONTRA-ARGUMENTOS ATUAIS
17. A questão de se os fundamentos teoréticos essenciais da
lógica residem na psicologia.
Que Ciências teoréticas fornecem os fundamentos essenciais à
teoria da Ciência? É exato que as verdades teoréticas da lógica
tradicional e moderna têm seu lugar teorético dentro das Ciências
já estabelecidas?
Neste parágrafo ele resume a tese psicologista. Onde que está
pretendendo chegar Husserl com tudo isso? Vamos voltar um
pouco atrás e lembrar que no começo ele colocou um panorama
da situação da Ciência lógica, dizendo que haviam 3 correntes
básicas, uma corrente psicologista, uma corrente formalista, e uma
corrente metafı́sica. Disse também que depois de 2000 anos a
lógica era uma Ciência que não tinha muita clareza sobre a sua
própria natureza.
Ora, se é assim que a lógica havia se desenvolvido a partir de
Aristóteles exclusivamente no sentido da tecnologia, seria a tec-
nologia do discurso coerente, e essa tecnologia de fato está bas-
tante desenvolvida desde Aristóteles. A Lógica Formal é quase

473
20 Preleção XX

que suficiente para assegurar a coerência do discurso, mas a lógica


tal como entendia Aristóteles não devia ser apenas isto, não se
esqueçam que ele tinha um projeto de 2 lógicas, uma Lógica
chamada Formal, para assegurar a coerência do discurso, e uma
Lógica Material que seria Teoria do Conhecimento, a Teoria da
Ciência.
Esta Teoria da Ciência, tal como Aristóteles a desenvolveu, tem,
segundo Husserl, uma grave deficiência, que é a de que ela enfoca
apenas as categorias de objetos e os tipos de relações que podem
haver entre esses objetos.
Porém, ela não enfoca esse mesmo assunto desde o ponto
de vista do sujeito. Por quê ela deveria fazer? Porque a
fundamentação do conhecimento cientı́fico deveria oferecer uma
resposta suficiente às objeções da escola cética, isto é, da negação
da possibilidade do conhecimento.
Ora, toda negação da possibilidade do conhecimento, toda e
qualquer, ela sempre se baseia naquela sentença de Protágoras,
“O homem é a medida de todas as coisas”.
O quê quer dizer esta sentença? Quer dizer o seguinte: tudo o
que você conhece, absolutamente tudo o que você conhece, que
você pense, vê, sente, enxerga, etc, etc, é algo que você enxer-
gou, você sentiu, ou seja, é uma vivência psicológica sua, é uma
representação.
P.e., você está vendo este muro aqui? Mas você está vendo este
muro porque você tem olhos! Então, se não houvesse nenhuma
alteração nos seus olhos, você não veria muro algum. Então, só
existe conhecimento no sujeito.
Ora, se tudo o que você conhece é uma representação que
você faz, se o que você conhece é algo que se passa dentro de
você, como que você poderia comparar a representação de uma
coisa com a coisa mesmo? você só poderia representar numa
representação da coisa em uma outra representação da coisa.

474
20 Preleção XX

Se você só compara representações com representações, ora,


nesse sentido, você falar qualquer coisa a respeito do objeto tal
como é em si mesmo é um segundo non-sense. Você nada sabe
do objeto como é em si mesmo. Este é o problema colocado pelo
ceticismo filosófico.
Ora, a este problema o quê responde Aristóteles? Nada! Ele não
falou nada. Toda a Lógica de Aristóteles não diz nada a respeito
disto, ela diz respeito apenas à coerência do discurso.
Quer dizer, o problema central da Teoria do Conhecimento, que
é uma possibilidade do conhecimento verdadeiro e portanto o pro-
blema da objeção cética, simplesmente é passado por alto.
Então, é por isso mesmo que Husserl diz que as Ciências que
nascem da Lógica de Aristóteles, que são praticamente todas as
Ciências que existem até hoje, Biologia, Psicologia, História Na-
tural, Polı́tica, etc, todas essas Ciências, ele chama de Ciências
dogmáticas, que são Ciências que partem da afirmação de um
mundo real, partem da afirmação de que nossas representações
mais ou menos correspondem ao mundo real, sem fazer previ-
amente um exame da objeção cética e sem oferecer a ela uma
resposta que ofereça, para fundar o conhecimento, um ponto de
partida de absoluta segurança. De modo que é isto que explica
Husserl, a sobrevivência da objeção cética ao longo do tempo.
Também que ela retorna de tempos em tempos, quando você
corta a cabeça dela, ela volta, você corta e ela volta, você corta e
ela volta, então, por quê isto acontece?
Isto acontece porque de fato esta objeção nunca foi respondida,
porque ela parece maluca, não é? Ela evidentemente é um jogo de
palavras, você sabe que existe algo de falso nessa expressão. Nós
todos sabemos que de fato o conhecimento funciona, não só nós
sabemos disso como nós vivemos com base nesse pressuposto.
Você não acredita que existe um mundo exterior? Todo mundo
acredita que existe um mundo exterior e que você o conhece, e usa

475
20 Preleção XX

o sentimento dele para poder viver dentro dele. Todo mundo vive
com base nisso e não poderia viver com base na crença cética um
único minuto.
Então é como se a crença cética fosse uma armadilha, um jogo
de palavras, do qual você não sabe sair. Você não tem resposta
para a objeção cética, no entanto, você continua vivendo como se
essa objeção não existisse, ad hoc, você dá uma resposta na esfera
prática, você prova o movimento, andando, mas você não tem o
fundamento teórico do conhecimento.
Isso é a mesma coisa que dizer que não existe o conhecimento
teórico, só existe o conhecimento prático, e que todas as Ciências,
no fim das contas, só terão fundamento prático.
Daı́ é que vai surgir, 2000 anos depois, a idéia do pragma-
tismo, que A prova da verdade da Ciência não está na esfera da
verdade propriamente dita mas na sua praticidade, que a Ciência
se demonstra verdadeira quando ela consegue produzir certas
transformações e fim de papo!
Mas isso aı́ é sair do Leão e chegar até o (cão(?)), quer dizer, a
Ciência surge da pretensão de um conhecimento objetivo e, passa-
dos 2000 anos, elas reconhecem que elas não são nada mais do que
uma espécie de convencionalismo que funciona. Era assim que a
coisa estava mais ou menos no tempo de Husserl, e para quem não
estudou Husserl profundamente, está assim até hoje.
Ou seja, a confiança que as pessoas têm na Ciência na esfera
prática, a essa confiança não corresponde uma correspondente fir-
meza teórica. Então você vai ver que no fundo a crença que você
tem na Ciência é uma crença do tipo dogmática, “É sim porque
sim!”
É sim porque funciona, mas esse funcionar também pode ser
uma mera impressão de que funciona mesmo porque são apenas
representações suas. Então, nesse sentido, não existiria propria-
mente nenhum conhecimento teórico, só existem idéias.

476
20 Preleção XX

A técnica lhe fazer uma série de coisas, mas de fato não te dão o
conhecimento de nada. O resultado final disto é que a Ciência aca-
bará sendo reduzida apenas a uma simples técnica, como Ciência
normativo- técnica, ela baixa normas, estabelece convenções, e faz
as coisas funcionarem de algum modo, mas você não tem propria-
mente conhecimento de nada.
O nosso mundo atual, a sociedade atual, o funcionamento de
tudo, depende da Ciência evidentemente. Toda tecnologia de-
pende da Ciência, e nós dependemos da tecnologia 24 horas por
dia.
Então, nós colocamos toda a nossa confiança na eficácia de uma
tecnologia que se funda numa Ciência cujos fundamentos nós des-
conhecemos completamente e que de fato ela não os têm.
Isso aı́ é um contraste muito grande entre a confiança cada vez
maior que nós conferimos à Ciência e a consciência que nós temos
de que ela não tem fundamento, e de que ela é só apenas uma
tecnologia. Tudo isso vem do fato de que a objeção cética jamais
foi enfrentada seriamente.
Diz Husserl que a primeira tentativa de enfrentar isso foi feita
por Descartes, com a idéia do cogito. Descartes foi o primeiro
que tentou encontrar o ponto arquimédico, o ponto firme do qual
pudesse sustentar a construção do mundo do conhecimento.
A segunda tentativa teria sido feita por Kant, o qual na ver-
dade acaba por fim dando razão ao adversário, porque Kant foi
dizer que só existe um conhecimento mais ou menos na esfera
do fenômeno, ou na esfera do puro formalismo, ou nós conhece-
mos puras relações lógicas, que não existem na verdade, ou nós
conhecemos a idéia de fenômeno, mas nunca a objetividade pro-
priamente dirigida à coisa em si.
Ora, a objeção cética, diz Husserl, consiste em última análise
em dizer que tudo aquilo que você conhece lhe aparece de certa
maneira, p.e., você tem percepções sensı́veis, porém as percepções

477
20 Preleção XX

sensı́veis nunca são iguais, Você supor as pessoas que você está
acostumado a ver, mas, cada vez que você as vê estavam num lugar
diferente. Então, estavam vestidas e aparentemente não estavam
fazendo as mesmas coisas. Se você somar tudo o que você viu
nelas, você não compõe elas. Soma todas as visões que tem de
uma pessoa, não basta para formar uma pessoa inteira. Então você
supõe que esses seres têm uma unidade e que essa unidade está
por trás de todas as percepções que você teve delas. Essa unidade
é que seria a realidade mesma.
Ora, a realidade é precisamente tudo o que você não conhece, e
o que você conhece é precisamente o que não é realidade. Este é o
ponto da objeção cética.
As coisas só nos são conhecidas à medida que nos aparece, mas
o que nos aparece não são as coisas, são apenas aspectos das coi-
sas.
Para nós só o que aparece é o que não conhecemos, agora, veja
que nós sempre supomos por trás dos vários aspectos dos vários
aparecimentos, das várias manifestações, supomos uma unidade
mas não a conhecemos. Essa unidade é que é a tal da “coisa em
si”.
Quer dizer, 2000 anos de Filosofia não bastaram para resolver
esse problema. Mas não é que não bastaram, na verdade eles tenta-
ram resolver, talvez baseado na idéia de que não dava tempo, p.e.,
Aristóteles estava tão ocupado em desenvolver as Ciências que não
parou para pensar no problema do fundamento das Ciências.
[ Zé: não existe a “coisa em si”, ou não é possı́vel conhecer a
“coisa em si”? ]
Ou uma coisa, ou outra. Ou o objeto propriamente falando nem
sequer existe, e o mundo é apenas uma sucessão de aparências sem
nenhuma consistência em si, ou então se essa objetividade existe
ela não nos é cognoscı́vel e nós só conhecemos apenas aparências.
Então é por isso mesmo que o homem é que deturpa as coisas,

478
20 Preleção XX

você é que dá a medida do que existe para você.


Esta impressão de subjetivismo total é também uma impressão
universal, não há quem não tenha tido esta impressão alguma vez
na vida. Tanto que nós mesmos podemos, na vida diária, osci-
lar entre uma posição dogmática e uma posição cética, p.e., nós
confiamos na Ciência, na tecnologia, etc, etc, mas num outro mo-
mento você pode dizer que cada um tem a sua verdade, sem você
notar que entre a confiança que você concede às Ciências e o
subjetivismo ao que você adere em outro momento, existe uma
contradição total.
[ Stella: quando ele questiona a “coisa em si”, ele questiona
que exista uma unidade por trás de uma representação ou que não
exista nada por trás da representação? ]
Eu estou falando que tem as duas possibilidades.
[ Stella: porque pelo menos em comunicação você não pode re-
presentar algo, tem que ter um representando, tem que ter o objeto
sobre o qual você cria a representação. ]
Tá bom, é o que você supõe, mas esse objeto você conhece
porque você fez uma construção mental, ele nunca apareceu na tua
frente. A unidade do objeto jamais aparece, só aparecem pedaços.
Nós sabemos que a objeção cética é falsa, nós sabemos prin-
cipalmente porque nós não podemos viver com base nela. Ela é
absurda porque se você aderisse completamente a ela você não
poderia viver um único minuto. Mas você não tem uma resposta
no campo teórico, você tem uma resposta prática que é, “Ah, deixa
as perguntas prá lá e vamos tocar as Ciências prá frente!”, como
fez Aristóteles.
Eu digo, mas uma resposta prática não é uma resposta, é mudar
de assunto. Se o sujeito te fez uma objeção teórica e você pratica
uma outra coisa, isso não é responder, isso é sumariamente mudar
de assunto.
Porque a Filosofia mudou de assunto ao longo de 2000 anos a

479
20 Preleção XX

objeção cética continua aı́ e parece que ela é tão eterna quanto à
própria Filosofia e quanto a própria Ciência, e o fundo de dúvida
permanece.
Isto quer dizer que todo o mundo do conhecimento que foi cons-
truı́do por 2000 anos ainda tem esse ponto preso, ele tem uma
espécie de pecado original, esta marca, esta cicatriz que não foi
apagada até hoje.
Então, o velho problema do fundamento absoluto do conheci-
mento teve que ser recolocado, e na verdade só quem recolocou
mesmo foi o próprio Husserl. Mesmo Descartes, ele se detém
muito pouco nesse assunto, as verdadeiras experiências de Des-
cartes eram pelas Ciências fı́sicas. Ele faz aquele mergulho, num
exame introspectivo, para encontrar o fundamento absoluto e em
seguida trata de fazer outra coisa, exatamente como Aristóteles.
Descartes passou a vida estudando a Fisiologia, a Fı́sica, Ótica,
etc, que era o que verdadeiramente o interessava. Então, o pro-
blema do fundamento do conhecimento que ele trata no livro
“Meditações Metafı́sicas” é uma introdução ao saber, é só uma
introdução.
É claro que ele lança um dos fundamentos importantes, mas ele
não leva esse problema até o fim. Na hora que ele encontra a teoria
do cogito — cogito ergo sum — ele se dá por satisfeito e vai cuidar
de outra coisa.
Mas o cogito ergo sum se é um princı́pio à resposta, ele não é
uma resposta extensiva. Tanto é insuficiente que nós poderı́amos
perguntar, “Do Eu que você descobriu com certeza absoluta — o
Eu existe absolutamente sem dúvida — como é que você faz para
deste Eu, fundamentar o mundo?”
Se o Eu é fundamento, é seguro, então certamente você pode
ter conhecimento do Eu, mas em quê o conhecimento do Eu fun-
damenta as coisas? Como é que faz Descartes? Ele apela para
Deus!

480
20 Preleção XX

Deus tem o conhecimento de mim e dentro de mim eu vejo que


eu tenho o conhecimento do mundo. Para ele supor que tudo isso
é (por engano(?)) ele precisaria supor que existe um Deus mau
que está jogando imagens na minha cara, não sou eu que estou
produzindo essas imagens, alguém está produzindo, eu vejo p.e.
que a representação sensı́vel é factı́vel, não fui eu que produziu,
ela veio a mim. Então é alguém que está pondo, então só se for
um gênio mau, um ser maligno. Ora, a teoria do gênio maligno é
absurda, moralmente absurda, então eu rejeito!
Então, isso aı́ não é uma resposta, é uma apelação. Uma coisa é
você encontrar o fundamento absoluto, outra coisa é você encon-
trar apenas uma justificação suficiente. Justificação suficiente já
existe desde o tempo de Aristóteles.
A justificação suficiente é, “Ah!, eu não vou perder tempo com
uma objeção idiota que me paralisaria! Vamos fazer a Ciência e
não vamos nos preocupar com esses impecilhos de céticos, que são
uns chatos de galocha! Vamos deixar essa masturbação mental e
vamos cuidar do que interessa!”
É uma justificação suficiente no seu próprio plano, porém é uma
resposta na esfera prática, e não um fundamento teórico, muito
menos um fundamento teórico absoluto e inabalável!
Então, seria preciso encontrar o fundamento absoluto que ta-
passe a boca dos céticos definitivamente, que tornasse ilegı́tima te-
oricamente a pergunta, porque senão as Ciências continuam cres-
cendo mas sempre com esse câncer.
O enfrentamento da questão cética é uma raridade na História,
ninguém enfrentou isso cara-a-cara. O primeiro que enfrentou é
Husserl, e os outros não enfrentaram porque, ou achavam que não
valia a pena, como Aristóteles que, baseado no senso comum, na
sanidade, achava que se fosse perder tempo com isso não ia sair
dali, ia passar a vida inteira, ou como Hegel, que dizia que você fi-
car tratando desse assunto é como você ficar diante de uma piscina

481
20 Preleção XX

raciocinando uma possibilidade de nadar — se é possı́vel, se não


é possı́vel — o melhor que você tem que fazer é entrar na água e
ver se dá.
Hegel tinha um horror dessa discussão da possibilidade do co-
nhecimento, e Kant falava que era uma questão crı́tica. Hegel,
“Que questão crı́tica uma pinóia! Vamos tratar do que interessa
...”, quer dizer, de fato precisa de pessoas mais sãs porque a
objeção cética é coisa de louco e tratar dela também é coisa de
louco. Quanto eu deveria conceder às objeções de um maluco?
Eu digo, nenhum, a não ser que as objeções comecem realmente a
atrapalhar.
[ Stella: de fato, o ceticismo entranhou, proliferou ...]
Proliferou, entranhou, e hoje ele está corroendo a Ciência desde
dentro.
[ Stella: o Husserl não é doido ...]
Não, ele não está fazendo isso por doideira! Ninguém quis per-
der tempo com esta questão porque não precisava, mas agora pre-
cisa. Dava para tocar o bonde do jeito que estava.
[ Stella: esse psicologismo não é um tipo de ceticismo? ]
Esse é que é o ponto, o psicologismo não se apresenta como um
ceticismo, mas ele conduz necessariamente ao ceticismo, como
conseqüência.
O próprio desenvolvimento das Ciências acaba por fornecer ba-
ses para o ceticismo. Então a Ciência se come pelo rabo! E é
por isso que a objeção cética agora precisa ser levada a sério, quer
dizer, antes era problema de maluco, agora não é mais.
Então, você passou por cima da objeção cética, esqueceu, va-
mos esquecer essa porcaria e vamos desenvolver a Ciência. Acon-
tece que chega lá para diante o desenvolvimento da Ciência acaba,
ele mesmo, reforçando a objeção cética.
[ Fátima: eu não entendi por quê o psicologismo conduz ao
ceticismo. ]

482
20 Preleção XX

Se o fundamento do conhecimento que a Lógica, a qual funda-


menta as Ciências, tem um fundamento psicológico, então é um
fundamento empı́rico, que advém da experiência. Mas qual é o
fundamento da validade da experiência? Se o fundamento da va-
lidade da experiência advém da própria experiência então não tem
fundamento algum.
P.e., como é que eu sei que a experiência dá conhecimento?
Que o conhecimento da experiência é válido? É por experiência.
Para dizer isto seria preciso que o conhecimento por experiência
já tivesse validade antes.
Então a experiência não pode ser o fundamento da validade da
experiência, tem que ser um outro fundamento, mas que funda-
mento é esse? É lógico. Mas qual é o fundamento lógico? É a psi-
cologia. Ora, o psicologismo é uma Ciência de experiência, então
fecha o cı́rculo e volta sempre ao mesmo ponto, a experiência é a
base da sua crença na validade do conhecimento de experiência.
Se é assim, voltamos à objeção cética que diz que tudo o que
você conhece, você conhece por experiência. Ora, a experiência é
sua, a experiência é o que se passa dentro de você, portanto você
só conhece o que está na sua cabeça mesmo!
O conhecimento vem da experiência, e a experiência se passa
no Eu, então se se passa no Eu, ela é sempre subjetiva.
[ Troca de fitas. Uma parte dos comentários se perdeu. ]
Então, nós precisamos validar a experiência, então nós tentamos
validar por um outro lado, pela lógica, mas qual é o fundamento
da lógica? É a própria experiência, daı́ voltamos aqui ao subjetivo.
Ou a lógica tem um fundamento absoluto que vale independen-
temente da experiência, é prévio à experiência, ou você não sai do
subjetivismo jamais.
Agora, se você disser assim, “Ah!, mas a Lógica é uma Ciência
Normativa, é uma técnica.” Eu digo, mas essa técnica se funda-
menta em quais conhecimentos teóricos? “Ah!, são conhecimen-

483
20 Preleção XX

tos teóricos a respeito do pensar humano”. Então são fundamentos


psicológicos e a psicologia obtém os conhecimentos de onde? Da
experiência. Então voltou, não tem jeito!
Quer dizer, o próprio desenvolvimento da Ciência acabou recri-
ando dentro da âmbito cientı́fico a objeção cética que tinha sido
deixada de lado de fora! A Ciência voltou as costas aos céticos e
foi tratar de obter conhecimentos. Seria assim como Hegel, “Eu
não vou mais me perguntar pela possibilidade de nadar, eu vou
entrar dentro d’água”, e aı́ continuou nadando.
Então, praticamente todas as Ciências, na hora que elas
começaram a se desenvolver no século XIX, todas elas fundamen-
taram isto aqui, o psicologismo.
Enquanto a Ciência está no âmbito da natureza está tudo bem,
porque você não se preocupava pelo fundamento do conheci-
mento, mas você se preocupava em produzir conhecimento, de-
senvolver a Fı́sica, Biologia, etc, etc. Mas na hora que você se
voltou para o mundo das Ciências Humanas, aı́ o negócio piorou
de novo.
Quer dizer, as Ciências Humanas são profundamente céticas, e
na medida em que são céticas, elas são uma negação de si mesmas,
porque elas afirmam um conhecimento que se funda na hipótese da
impossibilidade do conhecimento..
Claro que existe a refutação lógica do ceticismo, mas a
refutação lógica é uma coisa, fundamentar a possibilidade do co-
nhecimento é outra.
Quando o cético diz para você, “O conhecimento é impossı́vel”,
você pode responder para ele, “Mas este conhecimento também é
impossı́vel!”. Se você sabe que todo conhecimento é impossı́vel,
então você sabe alguma coisa!
Então, dá para compreender que o ceticismo é auto-
contraditório, mas refutar o ceticismo logicamente é uma coisa,
porém o que importa não é a resposta negativa, não é só a refutação

484
20 Preleção XX

do ceticismo, é a fundamentação absoluta do conhecimento, da


objetividade do conhecimento.
O máximo que você pode dizer é, “Olha, entre o ceticismo e
o dogmatismo houve um empate.” Você não consegue derrubar o
outro, e o outro também não consegue derrubar o um.
Eu digo, mas é claro que o empate não basta! O cético vem e
refuta o que você está fazendo e prova que aquilo não tem funda-
mento absoluto, e você prova para ele que a objeção dele também
não tem fundamento. Então fica o debate exclusivamente na esfera
dos argumentos lógicos, quer dizer, não há argumentos lógicos
suficientes para um lado e não há argumentos lógicos suficientes
para o outro, eu digo, e daı́? Isso não resolve o problema absolu-
tamente.
O que resolveria o problema absolutamente seria você encon-
trar um fundamento efetivo e inabalável da objetividade do co-
nhecendo de modo que a objeção cética não apenas pudesse ser
refutada logicamente mas que ela fosse invalidada absolutamente.
Uma coisa é você dizer que o sujeito não tem argumentos, ou
que a tese dele leva a resultados contraditórios, outra coisa é você
dizer que a tese dele é absolutamente impossı́vel sob qualquer as-
pecto. Mais ainda, não se trata tanto de refutar o contrário, mas
provar uma coisa, e você refutar o seu contrário, a diferença é
muito grande.
Então, tudo o que nós conhecemos, nós conhecemos por uma
evidência. Se você não tem evidência você pode obter uma prova,
porém a prova pode ser contestada, p.e., de uma mesma evidência
podem haver várias provas, dessas provas cada uma está sujeita a
quantas objeções? Um número indefinido.
Cada prova pode ser objeto de muitas objeções e essas objeções
por sua vez seriam objeto de refutações. Agora, derrubada uma
objeção, pode surgir outra, e outra, e outra, e isso não acaba
mais. Mas, se existir uma evidência inicial inegável, então qual-

485
20 Preleção XX

quer objeção já é repelida.


Lembram que eu já lhes disse que evidência é um conhecimento
que só pode ser refutado por uma sentença de duplo sentido? Por-
tanto, no ato de emitir a sentença, a objeção já está refutada. Não
é que ela é refutada, ela é impossı́vel, você não pode formular.
Uma evidência é um juı́zo para o qual não existe negação unı́voca.
É a mesma coisa que dizer, não é possı́vel negar. Não é que não
se pode provar a negação, não se pode formular a negação. Ela é
informulável, a negação é indizı́vel.
Então, se eu encontrar uma prova evidente, uma demonstração
evidente, do fundamento absoluto do conhecimento, a objeção
cética, daı́ para diante, estaria inviabilizada definitivamente.
Por enquanto nós temos apenas a refutação de argumentos
céticos, mas podem surgir novos argumentos céticos sob novas
formas. Você derruba uma objeção e aparece outra, e outra, e ou-
tra, indefinidamente. O próprio psicologismo é uma versão nova
do ceticismo, não é?
No nosso século, quando surgem, p.e., as teorias todas do es-
truturalismo, do funcionalismo, etc, etc, tudo isso aı́ é uma nova
forma de ceticismo, e para refutar cada um deles vai resultar em
mais trabalho, mais trabalho, mais trabalho, então seria muito mais
certo se refutasse a coisa na base, e não precisasse mais disso.
Então, a proposta do Husserl vai ser encontrar esse fundamento
absoluto do conhecimento.
Ora, ele acredita que o fundamento está lá mesmo aonde se di-
rige a objeção cética.
Ele diz que se a objeção cética consiste em dizer que todo co-
nhecimento é algo que se dá no sujeito, algo que ocorre no sujeito,
ou seja, na consciência, então é na consciência mesma que deve
estar o próprio fundamento, porque neste ponto a objeção cética
tem a sua parte de veracidade.
É evidente que tudo o que é conhecido, é conhecido por um su-

486
20 Preleção XX

jeito, até aı́ ninguém pode negar que eles tenham razão. Apenas
com base nesta observação eles diziam que se tudo é conhecido
por um sujeito, nada é conhecido para além do sujeito, que o su-
jeito só se conhece a si mesmo, e portanto o conhecimento não
tem objeto. Portanto, entre o conhecimento falso e o conhecendo
verdadeiro não vai existir diferença alguma.
Porém, o ponto de partida da objeção é verdadeiro, o conheci-
mento está no sujeito mesmo, porque tudo o que eu conheço é uma
aparência, é algo que aparece a mim.
Então, a pergunta fundamental da Fenomenologia é como se
fosse a Ciência do aparecer, fenômeno é a coisa aparecida. Será
que no modo de aparecer ante à consciência já não existem os
traços distintos do verdadeiro e falso?
Como que as coisas me aparecem? Uma fantasia aparece
do mesmo jeito que uma percepção sensı́vel? A percepção
sensı́vel aparece do mesmo jeito que uma construção lógica? Uma
evidência aparece do mesmo jeito que uma probabilidade? Como
é o modo de aparecimento? O quê eu percebo exatamente quando
eu percebo isto aqui? Quando eu percebo uma coisa como ver-
dadeira, esta percepção da coisa como verdadeira não é essencial-
mente distinta da percepção de mera probabilidade? É ali que tem
que ser (procurado(?)) o objeto.
Longe de tentar tirar a questão de dentro da consciência e apelar
a uma suposta “coisa em si”, que está fora da consciência, Hus-
serl acha que é na própria consciência que se tem que encontrar o
fundamento da objetividade. Porque toda tentativa de você dizer
que o conhecimento objetivo é aquele que tem um objeto fora da
consciência vai esbarrar sempre na mesma objeção.
Então, deve existir uma consciência de veracidade que é es-
pecificamente distinta de outras formas de consciência. Esta
consciência de veracidade é o que ele chamava de evidência.
Quando você compara uma percepção sua com o objeto da

487
20 Preleção XX

percepção, você somente está comparando uma percepção com


outra percepção, fecha a questão toda dentro do cı́rculo da
consciência.
Então, eu tenho aqui uma imagem de uma vaca; como é que eu
vou saber se a imagem de vaca corresponde à vaca? Comparando
com a vaca. Mas esta vaca com a qual você está comparando é
uma imagem de outra imagem! Então parece que não sai disso.
Quando chega no Kant, ele diz que de fato a “coisa em si” é
incognoscı́vel, nós só conhecemos fenômenos. Ora, se nós co-
nhecemos apenas os fenômenos, e fora dos fenômenos nós só co-
nhecemos formas a priori, que são formas internas nossas, que é
a forma da nossa lógica, essas formas não têm matéria, elas não
se referem a nada. Então nós conhecemos esquemas mentais nos-
sos e conhecemos aparências dos fenômenos. Então parece que o
mundo virou uma fantasmagoria.
A resposta do Husserl é o seguinte, “Olha, a objetividade está
dentro da própria consciência. Se ela existe em algum lugar, tem
que estar lá mesmo.” E uma das primeiras verificações dele é o
seguinte: é que toda consciência é sempre consciência de alguma
coisa, não existe consciência relativa. Ter consciência é ter uma
intenção dirigida a algo. Não interessa se esse algo está fora ou
se está dentro, mas tem um algo que não é a própria consciência.
A consciência é uma intenção, mas ela só se torna consciente na
hora que tem um algo, se não tem nada, a consciência ...(?)...
Então, nesta maneira de você ver consciência é que deve estar a
diferença fundamental entre o verdadeiro e o falso. Ora, para isto é
necessário desenvolver uma parte da lógica que não foi desenvol-
vida por Aristóteles, e esta parte da lógica é que nós chamarı́amos
de Fenomenologia, que é a Ciência das modalidades de apareci-
mento das coisas ao sujeito.
Então ele diz, p.e., se existem as categorias lógicas, tipos de ob-
jetos, se existem tipos de relações entre objetos, do mesmo modo

488
20 Preleção XX

deveriam existir tipos de aparecimentos, tipos de consciência.


Agora, isto não dá para ser estudado psicologicamente, parece
um assunto psicológico mas não é psicológico, não é? Dá para
entender a distinção entre isso e a psicologia?
Entre os diversos tipos de consciência, eu posso estudar isto
psicologicamente? Bom, qualquer estudo psicológico eu já pres-
suponho a própria consciência. Então, o fundamento do conheci-
mento não vai ser obtido por nenhuma ciência em particular por-
que todas elas já pressupõem uma consciência. O fundamento só
pode ser encontrado numa espécie de consciência imediata que a
consciência tem de si mesma.
Porém, que consciência imediata existe de si mesma, se toda
consciência é consciência de algo? Como é que você pode ter
consciência da consciência? Você só pode ter consciência de que
teve consciência de algo. você nunca vai poder pegar a consciência
por objeto, você nunca vai poder ter consciência da consciência
do mesmo jeito que você tem consciência de objeto. E no entanto
você tem consciência de que tem consciência.
Bom, aı́ já tem uma dupla modalidade de aparecimento: a ma-
neira de a consciência aparecer ante si mesma não é a mesma ma-
neira pela qual um objeto qualquer aparece na minha frente.
[ Stella: é uma consciência reflexiva, não é? ]
Não é somente reflexiva, é algo mais. Para você captar a idéia de
consciência da consciência, em primeiro instante você tem que ter
uma consciência de ordem reflexiva, quer dizer, é aquele negócio,
eu sei e sei que sei. Se eu não sei que sei, não sei absolutamente
nada.
Até aı́ é somente uma reflexão, porém você imagine que você
captasse todas as modalidades de consciência que você tem, ou to-
das as modalidades de consciência possı́veis, do mesmo modo que
em lógica você pega todas as modalidades de objetos possı́veis.
Então, você tem as categorias, o que quer que você capte é, ou

489
20 Preleção XX

substância, ou qualidade, ou quantidade, etc, etc, isto pelo lado do


objeto.
Imagine que você pegasse as categorias subjetivas, modalidades
de aparecimento, e que você conseguisse cercar todas; desde de
que ponto de vista você poderia captar todas estas? Onde estaria
você? Isto se chama Consciência Transcendental.
Consciência Transcendental é a consciência que abarca todas as
modalidades de consciência.
Então ele diz que a vantagem que nos dá a objeção cética é que
ela nos obriga a captar o ponto de vista transcendental. O ponto de
vista transcendental coloca entre parênteses toda a universalidade
dos objetos conhecidos, e toda a universalidade das operações de
consciência, ela coloca entre parênteses e olha tudo isso.
Ora, prestem bem atenção, se não existisse Consciência Trans-
cendental a objeção cética seria impossı́vel. A objeção cética não
se refere a tudo o que você conhece? E a todas as modalidades do
conhecer?
Se ela pode ser formulada quer dizer que a consciência pode se
colocar acima e fora de todos os seus objetos e de todas as suas
operações.
Isto aqui é medular; se eu posso colocar em dúvida a totalidade
dos objetos conhecidos e a totalidade dos modos de conhecimento
é porque eu posso me colocar fora e acima do mundo dos objetos e
do mundo da própria consciência, abarcá-lo como um todo a partir
de cada, e o quê é isso? Isto chama-se Consciência Transcenden-
tal. Isto é a coisa mais importante do mundo!
[ Olavo faz um desenho esquemático no quadro, e vai
explicando-o. ]
Olha, aqui você tem o objeto, e aqui você tem a consciência;
em seguida você tem uma consciência reflexiva, que abarca a
consciência e o objeto.
Daı́ você percebe que você tem vários objetos, e que você tem

490
20 Preleção XX

várias maneiras de consciência, e em seguida, você percebe que


você tem várias maneiras de consciência reflexiva; você pega
o repertório delas e coloca tudo em dúvida, porque você tem
Consciência Transcendental.
A possibilidade da objeção cética fundamenta-se na existência
da Consciência Transcendental.
Agora, como é que o cético vai fazer a sua objeção? Faça a sua
objeção sem a Consciência Transcendental! Faça!?
(Desenho esquemático feito pelo Olavo)

+----------------------------+
| CONSCIÊNCIA TRANSCENDENTAL |
+----------------------------+
|
| +---- YANG
|
+---------------------------------------------------------
| +--------+ +-------------+ +-----------------------
| | OBJETO | | CONSCIÊNCIA | | CONSCIÊNCIA REFLEXIVA
| +--------+ +-------------+ +-----------------------
| | | |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | | |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | | |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
| +-----+ +--------+ +----------------+

491
20 Preleção XX

+---------------------------------------------------------

Ou o cético diz que a objeção dele abarca todo o conhecimento


possı́vel e portanto ela é válida em si, ou ele diz que ela só abarca
uma parte e portanto ela não é válida.
Se ele diz que ela abarca todo o conhecimento possı́vel e todas
as modalidades de consciência, então é porque tem Consciência
Transcendental.
A objeção cética, para ela ser possı́vel, isto subentende que é
possı́vel você colocar todos os objetos de conhecimento, todas as
modalidades de consciência, todas as modalidades de consciência
reflexiva, tudo em dúvida.
Você está fazendo um juı́zo a respeito da totalidade dos objetos,
da totalidade dos modos de consciência, e da totalidade dos modos
de consciência reflexiva. Isso aı́ é a Consciência Transcendental!
Agora, se o sujeito disser, “Não existe Consciência Transcen-
dental nenhuma!”, eu digo, bom, então não pode abarcar a totali-
dade e então a sua objeção não abarca todos os modos possı́veis.
Se não abarca, ela não é válida para sempre!
Agora, consciência reflexiva pode ser consciência subjetiva,
mas a Consciência Transcendental não pode, porque ela se refere a
todas as modalidades de objetos possı́veis, a todas as modalidades
de consciência possı́veis, e a todas as modalidades de consciência
reflexı́veis possı́veis; ela não é individual. Ela transcende o próprio
indivı́duo.
Ou seja, se eu sou capaz de uma Consciência Transcendental,
eu sou capaz de uma universalidade, que transcende da própria
consciência individual.
Eis-me aı́ fora da prisão da consciência subjetiva!
Se você fechou todos os objetos possı́veis dos sistemas e ca-
tegorias, fechou todas as formas de consciência possı́veis, e de

492
20 Preleção XX

consciência reflexivas, então não sobrou mais nada!


Ou seja, você questionou tudo em todas as coisas, está tudo
entre parênteses. Se você fez isso é porque você pode! Se você
pode quer dizer que a sua consciência abarca a universalidade do
possı́vel, abarca e ainda fica por cima! E se ela abarca e ainda fica
acima, como é que ela está presa dentro de uma prisão subjetiva?
Isto independe da sua subjetividade!
Em suma, a objeção cética é o próprio fundamento do conheci-
mento objetivo! Isto é a prova.
Dito de outro modo, a objeção cética se surpreende a si mesma
como uma negação de evidência porque a possibilidade da sua
emissão repousa na falsidade do seu conteúdo.
A objeção cética só pode ser formulada como falsa, porque para
formulá-la é necessária a Consciência Transcendental, que a des-
mente e ao seu conteúdo. Afirma a possibilidade mas desmente
a realidade, desmente a veracidade, ou seja, posso ter a objeção
cética porque sei que ela é falsa. Se eu não soubesse que ela é
falsa eu não poderia formulá-la.
Então, o cético apela para Deus mas ele fica fora disso porque
nós estamos aqui na esfera do subjetivo humano, e lá em cima tem
Deus que garante.
Daı́ Husserl diz,“ Que Deus que nada, isso aı́ é o EU transcen-
dental”, porque é a universalidade da consciência humana, não é
uma questão subjetiva mais. Isto não é Deus ainda, mas isto é o
modo; isto é Cristo, não é Deus.
Quer dizer, Descartes apelou direto para Deus, eu digo, bom,
não deixa de estar certo, mas isso aı́ é muito pouco para ser Deus
ainda, tem uma etapa intermediária aı́, não é?
Isto se chama o EU transcendental, é a Consciência Transcen-
dental, que é a consciência universal, que é uma só em todas. você
subiu lá, já está no plano do universal e não desce mais, mas isto
é o Cristo propriamente dito, isto é o Logos. Você pode formular

493
20 Preleção XX

a objeção cética porque você tem o tipo de consciência que se su-


perpõe a todos os objetos, a todas as modalidades de consciência e
a todas as modalidades de consciência reflexiva, desde o ponto de
vista da universalidade total! É só por isso que você pode formu-
lar esta objeção, senão você estaria preso dentro do conhecimento
que tem! E você não está!
P.e., se eu posso duvidar de tudo aquilo que enxergo é porque
existe algo em mim que transcende o que enxergo. Eu me coloco
fora e acima, e julgo.
Mas eu não me coloco só fora do que eu enxergo, eu me coloco
acima do que eu escuto, do que eu sinto, do que eu penso, do
que eu imagino, do que eu raciocino, me coloco fora da própria
evidência, fecho aquilo tudo e me coloco fora, e coloco tudo entre
parênteses.
Então, existe algo no homem que não é humano mais. Não
depende da sua individualidade. Este é o universal que está em
você e do qual você não pode escapar.
Isto quer dizer que é a própria possibilidade de duvidar da tota-
lidade do conhecimento que prova a universalidade da consciência
humana. Portanto, quando a consciência humana fala, é com
consciência total!
Quem sabe disto aqui, se você sabe conscientizar este negócio,
você nunca mais vai ser o mesmo. Agora, chegou o Cristo e disse
assim, “Vós sois Deus.”, então tome cuidado com essa coisa ...
Você não pode negar que você sabe, portanto toda vez que
começar a dúvida sobre isto ou sobre aquilo, você sabe que você
pode levar a dúvida até o fim, e você sabe que você pode somar
esta dúvida numa infinidade de outras dúvidas. Você sabe que a
sua dúvida pode abarcar a totalidade dos objetos possı́veis, das
formas de consciência possı́veis e das formas de consciência re-
flexiva possı́veis, e pode abarcar o mundo todo do conhecimento
e do conhecido; você sabe que você pode fazer isto e só não faz

494
20 Preleção XX

porque tem preguiça. E você sabe que você pode fazer isto porque
você tem a tal de Consciência Transcendental, que transcende não
só a esfera dos conhecimentos mas do conhecimento humano em
geral, toda essa cultura, toda essa Ciência, toda a História, tudo o
que aconteceu, toda a esfera da existência. Agora, você sabe que
tem algo em você que está fora da existência ...
Se você começa a ter dúvidas e você se apega a crenças para
escapar da dúvida, então você é apenas um dogmático que está
discutindo com o cético, quer dizer, você ainda está dentro da es-
fera das dúvidas individuais humanas.
Se você levar a dúvida até o fim você vai ter que chegar, olha,
duvidei tudo, neguei tudo, sobrou o quê? Duvidei até o fim, já
botei o Deus de Descartes entre parênteses também, nós podemos
fazer a suspeita de que Deus é um gênio mau, até isso você coloca
em dúvida, você coloca o universo inteiro e mais o que está para
fora do universo, o infinito, o próprio Deus, você colocou tudo; eu
digo, bom, tudo isso para quê?
Para que você tenha a Consciência Transcendental. Agora, você
não se lembra dela, se você (não invade ali(?)) você não poderia
fazer a dúvida nela.
Isto aqui é para vocês entenderem que tipo de coisa é o homem.
O ser humano de fato é um prodı́gio, é uma coisa inexplicável.
Deus fez um negócio ...(?)... totalmente sub-utilizado.
Quem perceber isto aqui vai falar, “Mas o homem é isso aı́?!”,
essa horda de pessoas achando que dá mesmo para elas viverem
uma vida centrada nos seus interesses pessoais; a vida não dá.
Você não pode se identificar com a sua pessoa, não dá para você
se identificar com ela.
Agora, pare para pensar o seguinte: se você tem isto aqui, e
no entanto você vira as costa para isto e vai tratar apenas da sua
vida pessoal, eu digo, uai!, você virou as costas para aquilo que te
sustenta!

495
20 Preleção XX

A partir daı́ a sua Consciência Transcendental opera contra


você, e isto é a mesma coisa que dizer que você está apostando
numa coisa que é mais forte do que o universo inteiro, apostando
contra, e você já perdeu, faça o que você quiser você está con-
denado a esse (mundo(?)), de maneira que a concentração do in-
divı́duo na esfera da sua vida pessoal, sem esse tipo de interesse
aqui, é o mesmo que se chama de pecado contra o Espı́rito Santo,
é o único pecado que não é perdoado nesse mundo ...(?)...
Na hora que o sujeito entrou nisto ele colocou tudo contra ele,
é pior do que bandido, estuprador, pior do que tudo! Ele se colo-
cou realmente fora do universal, então se você se coloca fora do
universal, não tem lugar para você. Você está operando contra o
maquinário universal inteiro. O seu sofrimento a partir daı́ é justo,
merecido, e até brando. E este aqui é o grande pecado humano, a
recusa da universalidade. Na verdade é o único.
Existe uma diferença entre o ignorante que nunca ouviu falar, e
que acredita que de fato o mundo das suas percepções, sentimen-
tos, etc, o limita completamente e que é ali mesmo que ele tem
que cuidar e é só aquilo que existe, e o outro que tendo ouvido fa-
lar não quer saber, “Ah!, está grande demais para mim.” Eu digo,
bom, você recusou a oferta divina, e daı́ você está lascado mesmo,
daı́ você não tem mais saı́da.
É isto que Cristo se refere a aqueles que “Tendo conhecido, o
Cristo não recusará.”
Se você entender que você tem a Consciência Transcendental,
intelectualmente falando, você é maior do que o mundo inteiro, e é
por isso mesmo que nenhum conhecimento lhe parece suficiente-
mente fundamentado. Eu digo, mas não é fundamentado, o único
que é fundamentado é a Consciência Transcendental.
A totalidade da Ciência, da cultura, tudo isso é fichinha para o
homem. É claro que não existe propriamente dito uma consciência
da Consciência Transcendental, a Consciência Transcendental da

496
20 Preleção XX

Consciência Transcendental, isto seria um absurdo, porque a


Consciência Transcendental faz uma única operação, que consiste
em colocar tudo entre parênteses, ela não tem outro conteúdo a não
ser o todo questionável. Ela só pode ter, na verdade, consciência
dela mesma.
A partir daı́, se a Consciência Transcendental é rejeitada, ela
se transforma numa sombra, mas é uma sombra do tamanho do
mundo, maior do que o mundo talvez, isto aı́ é o diabo propria-
mente dito.
Então, esse conhecimento de elevada responsabilidade, é aı́ que
você percebe até onde chega a potência intelectual humana, é
monstruosa, descomunal mesmo, a qual contrasta com a fragili-
dade da substância individual.
Por um lado você tem essa possibilidade de subir a uma di-
mensão na qual você coloca tudo entre parênteses, e que é maior
do que o mundo; de outro lado, você tem uma memória frágil,
sensações enganosas, sentimentos desencontrados, etc, mas o ho-
mem é exatamente essa dualidade. Essa dualidade não tem uma
saı́da, é lá em cima mesmo, para baixo não tem, aqui não tem!
[ Glória: eu acho que a Consciência Transcendental não tem
uma permanência, ela lhe escapa ... ]
Não, você é que escapa a ela. O que quer que você fale que não
leve em conta a Consciência Transcendental, babau! “Ah!, mas eu
me esqueci, eu não me coloquei no ponto de vista da Consciência
Transcendental.”, então é falso, não importa o que você disse. O
que quer que você fale, pense, etc, etc, sem levar em conta que
a suprema realidade chama-se consciência e que você sabe disto,
você já entrou no falso, você esqueceu quem você é. Se você es-
queceu quem você é, então, todo saber, todo conhecimento que
você tem vai perder o fundamento na mesma hora.
A Consciência Transcendental você não pode se livrar dela,
você pode apenas esquecê-la, mas esquecê-la é esquecer tudo. P.e.,

497
20 Preleção XX

se você se dedica a expandir os seus conhecimentos, ou a con-


quistar poderes, ganhar dinheiro, eu digo, mas que raio de poder
você tem? Se você não sabe nem sequer quem você é?! Quem é
que está agindo? você está fazendo tudo dentro de um piloto au-
tomático, você não tem poder algum, somente desde este ponto de
vista (Consciência Transcendental) você pode ter poder.
Então, o conhecimento é divino, e se você está ali, bom, então
eu estou admitindo que sou Deus porque eu sou Deus. Nos mo-
mentos onde eu não me coloco na posição divina, eu me tornei im-
potente, e de fato o homem só pode viver nesta alternância entre
um conhecimento divino, um poder divino, e a total impotência!
No momento em que você está considerado numa total im-
potência, você está no YIN — do I Ching —, este é o YANG e
o YIN (ver no desenho esquemático que o Olavo fez no quadro).
Perder a Consciência Transcendental é como se você fosse um
bichinho que não decide nada, não sabe porra nenhuma, não res-
ponde nem mesmo pelo que faz, e que depende de certo modo de
uma ajuda divina. Num outro momento, quando você se colocou
aqui em cima, você é a ajuda divina que desce para o mundo. Só
tem essas duas mãos que fazia Cristo na Santa Ceia, uma mão para
cima e outra para baixo, uma recebe e a outra dá.
O I Ching não diz que o (homem-eternidade(?)) será eterno?
Quando ele dá no YIN, na parte fraca, ele é apenas o indivı́duo
humano, frágil, burro, cético, então ele tem que pedir pelo amor
de Deus. No instante que ele tem a clareza do espı́rito, a clareza
da totalidade, da Consciência Transcendental, então, ao contrário,
ele dá. Na mão esquerda e na mão direita; uma é passiva e a outra
é ativa.
Isto quer dizer que, ou se coloca dentro deste plano, ou fique
quietinho no seu canto ...
Você não sabe em quê você sabe 24 horas por dia, aliás, são só
poucos minutos, porque a maior parte você está dormindo mesmo.

498
20 Preleção XX

Então, na hora em que você está dormindo você está um pouco


descuidando da sua vida pessoal, mas você sabe que você está
cuidando da sua vida de maneira impotente. ‘As vezes você sabe
que você precisa de um socorro divino, senão não vai dar nada
certo, você sabe que você não tem poder nenhum, você não está
enxergando nada!
Então, vejam, esta subida, isto aqui é a subida do Monte Sinai.
Claro que quanto mais tempo der para você ficar lá, ou quando
você desce, Moisés desce do monte Sinai para quê? Para retornar
a vida dele aqui do mesmo jeito? Não, ele desce para mandar,
“Agora faz assim”, agora que tem o poder aqui, como no I Ching,
agora que o homem está com o bastão, você sai dando porrada,
quer dizer, você manda, e em primeiro lugar você manda em você;
você sabe o que quer fazer, faz o que quer, e então agora nós temos
que entrar para o passivo.
Do passivo você não se coloca do ponto de vista transcendental,
mas se coloca num ponto de vista reflexivo que vai ter que receber
do mundo da cultura, da religião, da moral, da Filosofia, etc, os
ensinamentos que você precisa para você poder se virar na vida.
E mais, quando você se coloca do ponto de vista transcendental
a cultura inteira está colocada entre parênteses, ninguém pode te
ajudar, não precisa de ajuda.
Esta permanente subida e descida, isto aı́ é a vida humana. É
como o Apocalipse, “Eu vejo o céu aberto e os anjos subindo e
descendo.” Com isto é bom vocês saberem que a Fenomenologia
é uma escola iniciática, embora não pareça. Sob o aspecto do
tecnicismo técnico- matemático é uma escola iniciática.
Então, quer dizer, faça você o que quiser, você está fazendo
por concessão da Consciência Transcendental. É de lá que sai
a força para você fazer qualquer coisa, é apenas uma concessão
temporária. Quando você está recebendo conhecimento, você está
vendo a sua Consciência Transcendental como se fosse desde fora,

499
20 Preleção XX

sabendo por espelhismo, você não está centrado nela, você está
colocado embaixo e está recebendo.
[ Olavo desenha um esquema no quadro e faz comentários sobre
ele. ]
+----------------------------+
| CONSCIENCIA TRANSCENDENTAL |
+----------------------------+
|
+--------+
| FORMAS |
+--------+
|
+-----------------------+
| CONSCIENCIA REFLEXIVA |
+-----------------------+
| | |
|
+--------+ | +--------+
| OBJETO --|-- SUJEITO |
+--------+ | +--------+
|
|
+----------------+
| Objeção Cética |
+----------------+
Então, temos o OBJETO e o SUJEITO; existe a CONSCIEN-
CIA REFLEXIVA; da consciência reflexiva pode surgir a Objeção
Cética; é a reflexão sobre a relação Sujeito — Objeto que produz
a objeção cética.
Porém, se você não se contenta com a objeção cética e con-
tinua, você chega à idéia das FORMAS de objeto, das formas

500
20 Preleção XX

de consciência possı́veis paralelamente às formas de objeto, for-


mando então o conjunto das possibilidades cognitivas humanas.
Daı́ você pode voltar para a objeção cética e colocar tudo em
dúvida, tudo entre parênteses, mas na hora que você fez isso você
alcançou justamente por aı́ a Consciência Transcendental.
Porém, a Consciência Transcendental só é alcançada na hora
que houve o domı́nio das formas totais do conhecimento, que pres-
supõe uma espécie de universalidade do seu conhecimento..
É claro que não podemos subir a uma Consciência Transcen-
dental desde a simples consciência do objeto, que é a consciência
ingênua de todos os dias, desde uma simples consciência reflexiva
filosófica, comum, e nem mesmo desde a simples objeção cética.
A partir da hora que o indivı́duo tomou consciência que existe
Consciência Transcendental, o esforço dele deve ser de completar,
a todo instante e com a maior brevidade possı́vel, a universalidade
do seu conhecimento, conhecer tudo, dominar o mundo da cultura
na sua inteireza, para poder colocá-lo entre parênteses e reencon-
trar a Consciência Transcendental.
É claro que se você chega aı́, a objeção cética nada mais pode
porque você a inibe, mas admitiu a possibilidade dela. Mas é pre-
ciso que essa possibilidade advenha da própria falsidade, ela só é
possı́vel porque ela é falsa, e só é possı́vel enquanto falsa.
Se a Consciência Transcendental pode tudo em dúvida, não só o
mundo conhecido mas o mundo possı́vel, é porque ela transcende
tudo isso, porque ela tem a universalidade e por isso ela impera
sobre o objetivo-subjetivo. E ela sabe o que é o objetivo-subjetivo.
Pelo menos ela sabe que pode converter um no outro e o outro no
um. De certo modo ela fica a seu lado entre o mundo objetivo e o
mundo subjetivo.
A ...(?)... busca as formas, o que deve ...(?)... a universalidade
do conhecimento e do conhecı́vel, a universalidade do conhecido
da universalidade do conhecimento, a universalidade organizada,

501
20 Preleção XX

a totalidade organizada, ou seja, cultura.


Adquire quando a cultura em seguida é colocada entre
parênteses. Quer dizer, o ponto de vista da Consciência Trans-
cendental é uma espécie de um árbitro universal, é o único ponto
de vista desde o qual as questões podem ser resolvidas, abaixo
disto todas as questões são debatidas.
Quando você alcança o plano de conhecer o domı́nio do fun-
damento absoluto, você sabe que esse fundamento é a própria
Consciência Transcendental. você jamais procurará um funda-
mento do conhecimento fora do sujeito, porque ele não está fora,
está acima do sujeito, ele não está nessa relação horizontal entre o
sujeito e o objeto, ele está para cima.
Nesse sentido Descartes tinha razão, o árbitro entre o sujeito e
o objeto é Deus, mas continua um Deus ...(?)..., não é o Deus-Pai,
mas é o Deus-Filho, é uma maneira de dizer essa coisa, porque é
o Deus-humano.
Mas Deus-humano é o que ele chama de o homem universal,
que é o homem indivı́duo humano enquanto detentor da totalidade
da possibilidade da espécie humana, e não enquanto detentor ape-
nas de suas possibilidades pessoais, quer dizer, não é enquanto
Olavo, enquanto Alexandre, enquanto Denise, enquanto Lúcia,
mas enquanto gente.
Nesse sentido, a sentença de Protágoras, interpretada numa
clave superior, é verdadeira, “O homem é a medida de todas as
coisas”, mas não o homem enquanto indivı́duo singular, porque aı́
você cai na objeção cética, mas o homem enquanto homem uni-
versal, que é de fato a medida do universo, daı́ aqueles famosos
sı́mbolos do pentagrama, aquele desenho de Leonardo da Vinci,
como o homem medida de todas as coisas, quer dizer, este homem
que nós estamos vendo é o homem grande e não o pequeno, o
homem universal e não o individual.
O individual é apenas um objeto na verdade, ele é um objeto e é

502
20 Preleção XX

sujeito ao mesmo tempo, ele está sempre dividido entre a sua ob-
jetividade e a sua subjetividade, entre aquilo que ele é e aquilo que
ele sabe, sendo que você é um monte de coisas que você mesmo
não sabe.
Você escapa disto aqui subindo para a consciência reflexiva, a
totalidade das formas da consciência reflexiva e a totalidade da
cultura.
[ João: existe ainda algum cético? ]
Tem um monte! Existe uma forma pós-Husserliana de ceti-
cismo que é uma espécie de ceticismo de desespero total, que é
uma recusa ativa de um sujeito que escreveu um livro, “A Tirania
do Logos”, que está muito em moda na França... porque isto aqui
(livro do Husserl) é a cruz mesmo.
Se você não gosta disto, bom, então você tem que lutar contra
a tirania do Logos, então não tem consciência reflexiva, então não
tem universalidade, não conhece coisı́ssima nenhuma, nem mesmo
a objeção cética você pode fazer.
Então, só o que lhe resta é você arrancar o seu próprio cérebro,
pegar os miolos de dentro do crânio e passá-lo numa máquina de
moer carne e dar para o gato comer; se o gato ainda quiser comer
uma porcaria dessas ... Você caiu para o infra- animal, é diabólico
mesmo, está abaixo de gente, um bicho superaria.
O quê você acha de um sujeito que faz uma máquina de
suicı́dio? Tem a máquina e o manual do suicida!
Veja, se a inteligência não pode mais ter universalidade, não
pode sequer fazer a objeção cética, mas no entanto você não gos-
tou do Logos, rejeitou completamente, não sobrou nada, nem ce-
ticismo mais, você não pode nem falar contra, então só me resta
falar o non-sense.
Mas se refere o jus sperneandi, o direito de espernear, você pode
ficar louco, pode meter uma bala na cabeça, pode fazer o que você
quiser, mas eu acho mesmo que a Consciência Transcendental é

503
20 Preleção XX

o Juı́zo Final, na hora que você chegou ali daı́ não tem mais para
onde ir.
Quer dizer que esse é o ponto final que às vezes separa real-
mente o carneiro dos bodes. Agora, se você tentou atender esses
bodes, eu digo, você não vai poder sequer se disfarçar travestido
de um disfarce de filósofo cético porque nem isso você pode ser
mais. Não dá nem para você falar contra, é horrı́vel, não é?
Se o sujeito está imbuı́do de má-vontade, eu digo, vai ser muito
difı́cil você encontrar um setor onde você possa expandir a sua má-
vontade, não tem lugar nem para ela.
É por isso que na filosofia francesa o impacto da Fenomenologia
foi tal que pegou lá uns caras e esmigalhou com o cérebro deles,
acabou.
O indivı́duo que está imbuı́do de uma má-vontade contra o ho-
mem, contra o conhecimento humano, e no entanto ele pode ter
interesse em Filosofia, então ele vai, vai, vai, estuda bastante, até
que ele chega ao Husserl e vê que dá para dominar essa coisa. Se
na hora que você domina você não gosta, então só lhe resta ficar
doidinho.
Eu acho mesmo que a Fenomenologia é uma mensagem divina,
é um poder divino isso aı́. Quem entra por ali não sai mais, não sai
porque este é o caminho para cima, para cima e para o todo. Para
fora do todo não tem nada.
Então, isso não é uma coisa que você possa explicar facilmente
a um recém-chegado, precisa de uma série de condições, de uma
caminhada toda para você poder chegar ao ponto de dizer tudo o
que eu disse hoje.
Então, primeiro assegurar que o indivı́duo tem a boa-vontade do
conhecimento, se tiver má-vontade não tem jeito, nenhum canal,
nenhuma saı́da por onde ele possa ainda terminar. É uma espécie
de Juı́zo Final mesmo.
Se o sujeito diz, “Mas a verdade não existe!”, mas isso aı́ é a

504
20 Preleção XX

objeção cética. Conforme você faz a objeção cética você já se


colocou acima da totalidade do conhecido e do conhecı́vel, e isso
aı́ é exatamente a Consciência Transcendental, você se colocou
fora e acima, agora você é o juiz!
É isso mesmo, é o que nós estamos dizendo, o homem é de fato
a medida de todas as coisas, não o indivı́duo humano porque ele
não pode fazer essa objeção. O indivı́duo humano vive dentro da
paz da objeção cética.
Presta bem atenção que no plano da vida empı́rica, da vida
prática, não há objeção cética; se houver o sujeito é internado na
mesma hora.
P.e., você faz a objeção cética de que você está aqui nesse mo-
mento, e acredita nela. Eu digo, bom, evidentemente as pessoas
não conseguiriam mais se comunicar com você e daı́ só lhe resta a
lobotomia mesmo.
Então, no plano da vida prática, do indivı́duo empı́rico, não há
objeção cética, ninguém faz. Só existe no plano da vida teórica.
Se você subiu ao plano da vida teórica e conseguiu formular a
objeção cética, ou você vai formulá-la de brincadeira e só para
alguns setores determinados, ou você vai formulá-la a sério e para
tudo.
Se você formulá-la a sério e para tudo, já está resolvido o pro-
blema. A sua consciência se colocou fora e acima, portanto ela
não é consciência individual mais, é Consciência Transcendental,
e se ela é Consciência Transcendental é consciência do legislador
cósmico.
Se não há objeção cética não chega à Consciência Transcenden-
tal jamais, você chegará (perseguido(?)) por um capeta do (tama-
nho de um boi(?)), aliás é para isso que existe mesmo o capeta,
que fez a objeção cética para te expulsar para algum lugar onde
você come, onde você engole.
É como essas estórias de fada onde tem um monstro que vem

505
20 Preleção XX

para lutar com o prı́ncipe, o prı́ncipe vai ser destruı́do e na verdade


é o próprio monstro que vai ajudar.
Não tem no filme, “Estória sem Fim”? É graças à perseguição
do monstro quando ele vai para num lugar ...(?)... e ele encontra a
saı́da daquilo.
Agora, se chegar lá na hora e disser, “eu não quero”, então agora
você é o monstro, e o monstro não tem lugar para ele, não tem
descanso, dia e noite, é uma coisa medonha.
[ Stella: mas, p.e., dentro da religião em geral as pessoas são
dogmáticas ... ]
Mas a religião é brincadeira, você não sabe? A religião é um
(montão(?)) de estorinhas de fada que, já que você não vai en-
tender, então você imita e faz aquela estorinha de fada igualzinho,
supondo-se que algum dia você entenda.
A religião faz parte, vamos dizer, do folclore. Folclore são esto-
rinhas que, para que não fossem perdidas, são transmitidas a uma
massa de ignorantes que repetissem servilmente, é uma espécie de
memória, a religião popular é memória de certos simbolismos, e
só.
“Ah!, mas por quê as pessoas estão indo, fazendo ritos, etc...”,
mas para o povo não esquecer, estão cumprindo um papel muito
importante, para um dia chegar alguém que entenda; eles não estão
entendendo, nem precisa entender, nem querem entender. Eles
estão num completo YIN, os indivı́duos estão inocentes, preste
atenção! Eles não enchem o saco e fazem o que lhes mandam,
então tá ótimo!
É uma vida animal, mas é um animalzinho inocente, que
não amola. Então, o homem só tem duas saı́das disso, a to-
tal obediência, ou a Consciência Transcendental. Tudo o mais é
encheção de saco!
O Corão diz que o diabo é perseguido pela direita, pela es-
querda, pela frente, e por trás, não diz nem por cima e nem por

506
20 Preleção XX

baixo.
Por cima não porque você conta com a Consciência Transcen-
dental; por baixo não porque daı́ você entrou na obediência hu-
milde, isso aı́ o cara já é ignorante mesmo, é o néscio. Você não
questiona nada, você acredita, você tem a fé ingênua e você obe-
dece e faz o que lhe mandam.
Você nunca questiona coisa nenhuma, não consegue juntar duas
idéias para poder questionar, você não percebe nem que existe ob-
jeto, nem que existe sujeito, você está na simples obediência ro-
tineira, secular, mas isso é somente por total ignorância; e você
começou a aprender certas coisas, já começou a ter dúvidas, você
já saiu disso. Então, agora você não mais pode ter ...(?)..., ou para
cima, ou você vai para baixo meio manco.
Então, a proposta para a via intelectual, a via de estudos, é isto
aqui. É a atribuição da totalidade essencial das formas, a qual ele
podendo exprimi-la permanecerá insatisfatória, eu digo, você vai
ter um algo mais, mas esse algo mais só você mesmo pode dar, a
cultura não pode te dar.
Na verdade, a sua subida e descida, entre consciência reflexiva
e objeção cética, ela passará a ser entre as formas e a Consciência
Transcendental. você saiu do mundo da dúvida, você está entre
conhecimento e consciência.
Quando eu falei subida e descida inicialmente era entre
consciência reflexiva e objeção cética. Você está preso nessa cruz,
sujeito-objeto, consciência reflexiva-objeção cética.
Então, tem hora onde você vivencia os seus próprios estados,
experiência sensı́vel, etc; tem hora que você está absorvido no
mundo das formas; tem hora onde você tem a consciência refle-
xiva, p.e., quando você vem a esta aula e absorve o que foi repro-
duzido, etc, etc; e tem hora que você cai na objeção cética, você
cai no negativismo total. A vida é isto aqui, é este sobe-e-desce.
Uma vez que você captou isto aqui, Consciência Transcenden-

507
20 Preleção XX

tal, você não vai ficar lá evidentemente, você vai descer para o
mundo das formas, que é o conhecimento humano.
Então, a subida e descida não desce mais até a objeção cética,
a objeção cética já está engolida, você chutou ela para cima, ela
virou Consciência Transcendental.
Então, a sua subida e descida é entre o mundo da cultura humana
e o mundo evidente do gênio. você continua tendo um sobe-e-
desce mas é numa outra escala. Neste mundo aqui, acabou, você
já não tem mais.
[ Alexandre: quando o sujeito chega a esse patamar da
Consciência Transcendental é aı́ que ele se torna o causador de
efeitos na vida.. ]
Se quiser. É aı́ que o sujeito escolhe se ele vai ser um sábio, ou
se se retira do mundo. Ou se ele vai para o mundo para ser o trans-
formador do mundo. Isto aqui você tem o resto da sua vida para
você se decidir. ...(?)... esperou 50 anos para resolver o assunto,
não tem nenhuma urgência nisso, você pode passar muitos anos
com esta dúvida.
É o problema Hamletiano, o quê é mais brusco? você se referir
na sua certeza ı́ntima como você enfrenta o erro inicial. Hamlet é
permanentemente ...(?)... e está na fase da indecisão, não encon-
trou a sua vocação final ainda. Hamlet não está errado, ele está
no certo nas duas hipóteses, o protótipo do homem bom, correto,
indivisı́vel porque entende tudo.
Claro que nós podemos interpretar num sentido aqui para baixo,
dizendo que Hamlet é um indeciso. Mas, eu digo, indeciso no
plano da ação, preste bem atenção! No plano da prática ele era
muito indeciso, ele está é quanto ao (uno global(?)) das coisas,
portanto não se trata de um problema de indecisão psicológica, e
sim de decisão espiritual.
Então, isto quer dizer que se tomar uma consciência desse tipo
de proposta o teu esforço tem que ser daqui para cá, subir da

508
20 Preleção XX

consciência reflexiva ao mundo das formas, abarcar o mundo do


conhecimento possı́vel, mas abarcar sinteticamente, não extensi-
vamente. O sentido do estudo, do esforço é este, em obter a totali-
dade das formas.
[ Alexandre: a Consciência Transcendental, ela se faz quando
você absorve uma forma dessas, não é? ]
Não. É na primeira vez que você dá uma fechada em tudo e
coloca em dúvida. É quando a dúvida cética, pela primeira vez,
abarca a totalidade das formas conhecidas, ou seja, você chegou a
ter o conjunto suficientemente estruturado, um conhecimento que
permite você entender o problema das formas da consciência, uma
auto-consciência reflexiva extensa, organizadinha, e você coloca
ainda a dúvida nisso tudo. Aı́ você chega à Consciência Transcen-
dental. Tem que ter o conhecimento para ter a dúvida.
Então, isto aqui é um vedanta já aprimorado por conhecimentos
de lógica, matemática, etc, etc, modernos; é o vedanta moderno.

509
21 Preleção XXI
17 de abril de 1993

[ Olavo pediu para o Alexandre fazer um breve resumo da aula


anterior e, depois, Olavo fez um breve comentário sobre a forma
de se colocar uma explicação, antes de continuar o assunto da aula.
]
Quando o sujeito for explicar qualquer coisa para qualquer pes-
soa, o primeiro negócio é você montar um cenário onde apareça o
conflito. Você precisa dramatizar a questão.
Primeiro, qual é o problema? É quem contra quem? Senão as
pessoas te escutam e não entendem nada. Se você dá a relação
chapada você não entende. É contra os princı́pios da mente hu-
mana.
Qualquer relato que não tenha o elemento dúvida, o elemento
dialético, o elemento conflito, a mente humana não capta de que
se trata.
O ser humano é conflitivo por natureza, onde não tem conflito a
gente não entende, e geralmente quando eu peço para o aluno re-
sumir a aula, ou expor qualquer coisa, as pessoas procuram expor
de uma maneira chapada: tem isso, depois isso, depois isso, de-
pois isso, daı́ o resultado é que eu entendo que o indivı́duo captou
a estrutura do que eu falei, mas quem ouvir não vai entender abso-
lutamente nada. É outra linguagem, totalmente ambı́gua e ...(?)...
A questão que está em jogo aı́ é o seguinte, ele menciona nesse
capı́tulo III que nós começamos a estudar ontem, ele vai discutir o

510
21 Preleção XXI

psicologismo.
O psicologismo é a teoria de que o fundamento teórico da lógica
é de ordem psicológica, ou seja, a lógica é uma Ciência, ou arte,
uma técnica portanto, do pensamento coerente.
Esta técnica se basearia nas leis naturais do pensamento. Então,
a forma do pensamento correto, do pensamento coerente, seria
uma dentre todas as formas do pensamento natural.
O pensamento, quer correto, quer incorreto, ele se dá através
de juı́zos, conceitos, proposições, etc, etc, os quais são fenômenos
psicológicos. Ora, quem é que trata dos fenômenos psicológicos?
É a psicologia.
Então, o fundamento teorético da lógica seria, em última
análise, a psicologia, que estuda as leis do pensamento. Isso é
a teoria psicologista.
Daı́, eu fiz um parênteses e decidi retornar, falar uma coisa na
qual Husserl não toca neste livro inteiro, que é o problema da
dúvida cética, porque ele deixará claro, não só neste capı́tulo como
ao longo de todo o livro, que o psicologismo é uma forma de ceti-
cismo. Isso aı́ eu estou adiantando o que ele vai falar mais tarde.
Com relação ao ceticismo mesmo ele nada fala no livro, só men-
ciona que o psicologismo é uma forma de ceticismo.
É uma forma de ceticismo porque a psicologia é uma Ciência de
experiência, é uma Ciência dos fatos, ela observa, e por indução
vai tentando tirar dali as leis do pensamento.
Como Ciência experimental ela se baseia no pressuposto de que
a experiência é uma fonte de conhecimento, e de que a indução é
um processo válido.
Ora, a validade da experiência e a validade da indução são leis
lógicas, não são? De onde a lógica tirou essas leis? Caso o fun-
damento da lógica seja psicológico, a lógica só pode ter usado o
mesmo procedimento que a psicologia usaria, p.e., o procedimento
experimental.

511
21 Preleção XXI

Então, quer dizer que foi da experiência que a lógica concluiu


que a experiência dá o conhecimento, e foi fazendo indução que
ela descobriu que a indução vale. A idéia é uma impossibilidade
manifesta, não é?
Se você consegue tirar conhecimento da experiência é porque
você sabe que a experiência dá conhecimento. Você não pode-
ria aprender isso pela própria experiência. Na prática você pode,
mas você não pode fundamentar isto aqui com base na própria ex-
periência. a experiência não pode ser o fundamento cognitivo do
valor da própria experiência.
Resultado: se fôssemos pela linha psicologista, o conhecimento
não teria fundamento algum, nós ı́amos cair na dúvida cética.
Ou seja, por um lado nós terı́amos uma Ciência experimental,
que poderia ser inclusive uma Ciência muito desenvolvida, mas de
outro lado nós terı́amos uma dúvida a respeito dos fundamentos
desta Ciência, e de fato, é o que acontece na prática, porque o
psicologismo é uma atitude que está muito embutida na cabeça de
todo mundo.
Muitas idéias que foram desenvolvidas no século XIX foram
injetadas na opinião e estão aı́ até hoje. As pessoas pensam que é
natural pensar assim. Embora no século XIX fossem idéias novas,
hoje elas são idéias velhas, são tradicionais, e as pessoas acredi-
tam nisso como antigamente se acreditava no Evangelho ou coisa
assim.
Então, esse fundo de dúvida cética está implicado na própria
cultura contemporânea, e um dos fundamentos dele é o próprio
psicologismo, seria uma das forças que dão consistência e durabi-
lidade à dúvida cética.
Então, já que o Husserl está procurando nisso, eu decidi retornar
a uma coisa que ele fala num outro livro, que ele mesmo não tinha
descoberto ainda no tempo desta obra aqui, já que ele iria concluir
mais tarde, e que diz respeito à função da dúvida cética.

512
21 Preleção XXI

Ele pergunta por quê a dúvida cética durou tanto tempo. Uma
idéia que é totalmente estúpida não poderia ter durado 2000 anos.
Seria uma espécie de doença. Então, se durou 2000 anos alguma
utilidade deve ter. Qual é a utilidade?
Husserl constata que essa dúvida cética jamais foi respondida
seriamente. Por quê? Porque ela é uma dúvida paralisante, é uma
dúvida que, se levada a sério no campo da prática, resultaria na
paralisia geral do conhecimento, na paralisia geral das Ciências,
e como os filósofos tiveram sempre interessados em desenvolver
as Ciências, os vários conhecimentos, não esperaram até que a
dúvida cética estivesse resolvida.
Dito de outro modo, para falar como Hegel, eles não ficaram à
beira da piscina tentando provar teoricamente a possibilidade de
nadar, eles entraram na água e começaram a nadar.
Isso quer dizer que eles reagiram de acordo com o (são(?)) en-
tendimento humano, de acordo com o entendimento comum.
Nós sabemos pela prática que o conhecimento existe, sabemos
que o conhecimento é possı́vel de algum modo, tanto que acredi-
tamos ter algum conhecimento.
Ora, mas a fé na eficácia do conhecimento não é a mesma coisa
que uma certeza teorética do fundamento absoluto desse conheci-
mento.
Então, a Ciência foi se desenvolvendo com fundamentos por
assim se dizer, pragmáticos, p.e., Aristóteles parte de um pressu-
posto de que a observação ensina alguma coisa e começa a ob-
servar, coletar dados e anotar o que vai encontrando, e assim ele
funda a Biologia, a Psicologia, a História, etc, etc.
Essas Ciências que surgem a partir da lógica de Aristóteles,
e que são quase todas as Ciências que nós temos hoje, Husserl
chama de Ciências Dogmáticas, no sentido kanteano da palavra
dogmático.
Dogmático é um saber que não se questiona criticamente sobre

513
21 Preleção XXI

o seu próprio fundamento, mas que afirma esse fundamento e toca


em frente, esteja ele certo ou errado nesta convicção.
Então, tem o conhecimento cujo último fundamento é
pragmático, você não sabe qual é o fundamento do conhecimento,
você sabe apenas que está funcionando. Isso aı́ praticamente
abarca todo o desenvolvimento cientı́fico da humanidade desde
Aristóteles até Husserl; todo mundo agiu assim, ninguém fez o
enfrentamento profundo e sério da dúvida cética.
Não fizeram, em parte porque achavam que ela era louca, que
era um jogo de palavras, e em parte porque achavam que bastava
refutar a dúvida cética nos seus próprios termos, isto é, refutaram
logicamente, na base de que se um sujeito diz que nada é possı́vel
conhecer nós podemos responder que ele não conhece então nem
sequer isso mesmo que ele acaba de dizer, e com isso nós tapamos
a boca dele.
Isso é uma refutação lógica da objeção cética mas, ora, entre
uma refutação lógica e a descoberta de um fundamento absoluto
do conhecimento do conhecimento existe uma distância abissal.
Você sabe refutar o adversário, mas você não sabe oferecer um
fundamento absoluto da sua própria condição, então, resultado:
deu empate.
Se deu empate a objeção cética continua. Quer dizer, ele é refu-
tado logicamente mas ele sempre poderá apelar para o subterfúgio
e dizer que o que foi refutado foi apenas a forma da sua objeção,
mas que não é impossı́vel amanhã ou depois encontrar uma prova
de que o conhecimento é inválido.
Quer dizer, a dúvida cética aparece como um truque verbal e a
sua refutação aparece como um outro truque verbal, um truque
lógico. Mas esse truque lógico foi suficiente para apaziguar a
consciência dos cientistas e para todo mundo achar que a partir
daı́ podia começar raciocinando pragmaticamente e desenvolver a
Ciência sem se preocupar com o que o cético diria ou deixaria de

514
21 Preleção XXI

dizer.
Porém, isso aı́ é uma coisa que Husserl não diz mas que
eu também estou acrescentando, havia uma espécie de má
consciência no fundo das Ciências de que o fundamento das
Ciências então era meramente pragmático.
Quando chegou no século XIX surge então o pragmatismo as-
sumido, mais ou menos no mesmo tempo em que se desenvolveu
a doutrina psicologista, vai surgindo essa filosofia pragmática, e o
pragmatismo é uma teoria segundo a qual o fundamento do conhe-
cimento cientı́fico é a mera prática, é o proveito prático, a prova
prática, então o conhecimento que se revela útil e capaz de produ-
zir determinados efeitos é tido como conhecimento verdadeiro, e
isso basta para os fins da Ciência.
Charles Pierce, que hoje é um filósofo que está muito em moda,
e que é o pai do pragmatismo, ele diz que o sentido de um conceito
está unicamente nas conseqüências práticas que dele decorram.
Porque um conceito, como ele diz, é um plano de ação, se você
pensa que um quadrado tem 4 lados isso não quer dizer nada mais
senão que quando você desenhar um quadrado você o fará com 4
lados.
De fato, todo conceito tem esse lado pragmático, quer dizer,
para fins de estudo e de avanço das pesquisas basta você saber que
quando você vai fazer um quadrado ele tem que ter 4 lados.
Agora, se você perguntar, “Mas o quadrado em si tem 4 lados?”,
essa pergunta para a esfera da Ciência não tem sentido. Isso quer
dizer que a Ciência foi abandonando, primeira implicitamente, de-
pois explicitamente, a questão dos seus próprios fundamentos, até
chegar ao ponto de que, com o pragmatismo, a questão dos funda-
mentos é abandonada explicitamente.
O pragmatismo já declarará que os fundamentos ontológicos do
conhecimento é uma questão que não tem sentido, que o que inte-
ressa é fazer Ciência e para isso nós nos orientamos pelo sentido

515
21 Preleção XXI

prático dos conceitos, e fim de papo, isso é o que basta!


Quer dizer que o pragmatismo de certo modo leva às últimas
conseqüências e transforma numa posição teorética aquilo que foi
uma omissão de Aristóteles. Quer dizer que a Ciência aristotélica é
pragmática também nesse sentido, só que pragmática por omissão,
é um pragmatismo enrustido.
Então, do pragmatismo enrustido de Aristóteles, até o pragma-
tismo assumido de Pierce, isso é a longa história de um abandono
da questão dos fundamentos da Ciência.
Se Aristóteles abandona a questão dos fundamentos absolu-
tos do conhecimento e começa a desenvolver a Ciência por
observação, indução, etc, etc, ele está procedendo pragmatica-
mente. Ele não questiona a questão dos fundamentos mas ele
age como se aquilo já estivesse totalmente fundamentado, então
por isso que eu digo que Aristóteles, neste sentido, era pragma-
tista enrustido, e todo mundo foi pragmatista enrustido ao longo
da História.
[ Stella: mas a gente nem pode dizer uma coisa dessas porque
se os manuscritos estavam partidos ... ]
Você pode dizer porque não é possı́vel que no restante tivesse
algo totalmente contraditório com aquela parte que você conhece,
nada deixaria prever. O problema no aristotelismo é usar muita
imaginação para achar que esse problema da dúvida cética, o en-
frentamento da dúvida cética, foi uma coisa que ele raciocinou
seriamente.
Todas as menções que ele faz a isso são menções interpretativas
e ele, como todo filósofo do mundo até René Descartes, se dá por
satisfeito com a refutação lógica da dúvida cética.
Então, é mais ou menos na seguinte base: a dúvida cética é
um esquema lógico que pretende provar a impossibilidade do co-
nhecimento, mas enquanto esquema lógico ela é falha, ela é auto-
contraditória. Então, nem podemos provar o fundamento do co-

516
21 Preleção XXI

nhecimento, nem o cético pode provar a validade da dúvida cética.


Ora, então como pelo senso comum é mais cômodo, é mais
saudável você acreditar na possibilidade do conhecimento do que
na dúvida cética, e se logicamente estão mais ou menos empa-
tados, então tudo inclina você a acreditar na possibilidade das
Ciências, e é assim que o senso comum raciocina, e é assim
que todo mundo raciocina, e é assim que se desenvolveram as
Ciências, e se fôssemos esperar para resolver a dúvida cética pro-
vavelmente estarı́amos lá até hoje.
Então, todo mundo procedeu na base do “provável movimento
andante”. ou de provar a natação, nadando, como dizia Hegel.
quer dizer, ao invés de você discutir se é possı́vel flutuar na água
ou não você, catapimba!, pula dentro d‘água e vai!
Então isso é uma prova de experiência, e não um fundamento
absoluto, porque na Ciência nós poderı́amos dizer, bom, desta vez
você boiou, de fato você tem boiado até hoje, mas não garante que
amanhã ou depois você continuará boiando.
Então, essa Ciência funciona mas não há um fundamento abso-
luto que prove que ela deva funcionar. Então esse fundamento
não tem validade teórica, é um fundamento prático, portanto
pragmático.
Então quer dizer que Aristóteles foi um pragmatista enrustido
e todo mundo foi um pragmatista enrustido porque o ser humano
é um pragmatista enrustido. Na vida prática você espera para ter
certeza absoluta das coisas? Nunca você espera! Você vai tocando
o bonde.
Então, o que aconteceu foi que assim se desenvolveram as
Ciências, porém, a partir de um certo momento o próprio desenvol-
vimento das Ciências pareceu começar a dar fundamento à dúvida
cética.
P.e., no psicologismo, quando se desenvolve a psicologia mo-
derna e os teóricos da lógica acreditam encontrar na psicologia os

517
21 Preleção XXI

fundamentos da lógica. O quê eles fazem? Eles tiram qualquer


fundamento de qualquer Ciência. Isso já não é mais pragmatismo.
É diferente você proceder como se não fosse necessário ter um
fundamento absoluto para as Ciências funcionarem, e de outro
lado, você negar a existência de fundamentos. Quer dizer, com
o psicologismo, que é um fruto do desenvolvimento da Ciência,
nós chegamos a um ceticismo e não a um pragmatismo.
[ Stella: é isso que o Husserl chama de “a crise das Ciências”
quando elas não questionam ... ]
Não, a crise das Ciências não é quando elas não mais ques-
tionam, porque eles nunca questionaram. A crise das Ciências é
quando elas ficam realmente sem fundamento, elas se tornam auto-
contraditórias, se tornam absurdas, porque eles mesmos provam a
sua falta de fundamento, como p.e. no psicologismo.
Você, partindo do psicologismo, ou você levando o pragma-
tismo às últimas conseqüências você chega à prova de que a
Ciência é um contra-senso total e que tudo ali é convenção, é como
se fosse uma vasta fantasia.
Isso não é a mesma coisa que um mero pragmatismo
pragmático; se o pragmatismo é elevado à condição de teoria de
validade universal ele já é um princı́pio.
Uma coisa é você dizer, p.e., como Pierce, que o sentido dos
conceitos é o uso prático que a gente tira dele, e outra coisa é você
dizer que um conceito não tem nenhum outro sentido além dos
usos práticos que você faz dele.
P.e., o conceito de quadrado é aquilo que permite que você de-
senhe um quadrado corretamente, não é suficiente esta definição
para o uso que você faz deste conceito no futuro? É claro!
Então, nesse sentido o conceito é de fato um plano de ação, quer
dizer, toda vez que a ação tiver adequada a esse tipo de propósito
você diz que este conceito está correto.
P.e., tem o conceito de cavalo, e a diferença de cavalo e gato;

518
21 Preleção XXI

então, se você não monta o gato, mas monta o cavalo, então o seu
conceito está certo! Quer dizer que a prova do conceito é ação
prática que se desenvolve com base nele; se esta ação funciona,
faz sentido, então o conceito faz sentido.
Porém, acontece que esse pessoal vai mais longe e diz o se-
guinte: o conceito não tem sentido algum além do uso prático, eu
digo, ôpa!, aı́ complicou!
Quer dizer que tudo o que eu sei entre a diferença entre cavalo
e gato é que eu não devo montar no gato. E não interessa saber se
esta diferença é objetiva, se está no cavalo ou está no gato, ou se
é apenas uma convenção útil que eu determinei. Então aı́ você cai
novamente no non-sense.
Então, a partir do psicologismo e do pragmatismo teórico, não o
pragmatismo pragmático, você vai chegar numa série de situações
que representam uma negação da possibilidade da Ciência e já
não apenas a um desinteresse pelo problema do fundamento. Aı́
é a negação dos fundamentos mesmo. As próprias descobertas
cientı́ficas vão produzindo efeitos que negam a possibilidade da
mesma Ciência.
[ Stella: eles não se dão conta?... ]
Claro que se dão conta! Isso aı́ é que nem aquele juiz de Cam-
pinas, que eu vi uma vez interrogando uma testemunha e disse,
“Eu sei que a senhora está mentindo, mas, Ah! eu não sou pago
para isso, fica assim mesmo, diz aı́ o que a senhora acha e eu anoto
aqui.”
É assim que o cientista leva as coisas, “Eu sei que isso tá mal
arrumado, mas, Ah!, que se dane! Isso não é problema meu!”;
ele dá uma solução pragmática. Só que com isso o nego continua
fazendo pesquisa e tirando conclusão sem ter fundamento algum.
Isso aı́ se transfere para a própria lógica; eu acho que a lógica
nunca esteve tão desenvolvida quanto hoje. Depois que inventa-
ram a tal da lógica matemática, você faz lá uma seqüência dedutiva

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21 Preleção XXI

com todos os [passos, tudo certinho, sem nenhum erro, você raci-
ocina perfeitamente, de fato como um computador, só que você
não sabe se isso tem nenhum fundamento. Se não tem nenhum
fundamento, que diferença faz raciocinar logicamente, ou não?
Vejam o quê que aconteceu que muitos homens de Ciência
começaram a ter interesse por negócios mágicos! Eles, “Ah!, va-
mos experimentar de outro modo ...”, p.e., o livro do Paul Feyra-
bend, que se chama “Contra o Método”; é um livro cético, e que
é um dos livros mais famosos em Metodologia que tem aparecido,
e ele diz, “Olha, o método cientı́fico é tão bom quanto qualquer
outro, é tudo mais ou menos uma questão de convenção. A gente
pode usar um raciocı́nio mágico- analógico, mágico- simbólico,
pode usar o cientı́fico, o que funcionar tá bom!”
Agora, o problema é o seguinte: qual é o critério desse “funci-
onar”? Como é que você sabe se funcionou? E tudo o que esse
sujeito fala contra o método cientı́fico é tudo sério.
Agora, quando você pergunta, o quê você propõe no lugar?
Bom, aı́ o cara é mais louco que os adversários dele. Então os
caras da metodologia são simplesmente terroristas, eles querem
estourar tudo logo de vez.
[ João: e ele é o quê? ]
De formação ele é um matemático, astrônomo, coisa assim.
E ele, p.e., mostra a importância do argumento retórico dentro
da Ciência. Ele diz, “Ah!, se funcionar ...”, usa um argumento
retórico.
Ele está muito na moda entre os caras que são contra o raciona-
lismo universitário. Ele não aceita nada e aceita tudo, vale tudo.
Claro que isto é bom do ponto de vista de você quebrar o exclu-
sivismo dos caras que idolatram o método cientı́fico, o método de
Claude Bernard, e acham que só existe aquilo lá.
Essa tradição que vai de Bacon até Claude Bernard também é
uma loucura porque ela acredita que tudo aquilo que você não pu-

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21 Preleção XXI

der provar por aquele método, não existe, o que botaria eles numa
situação difı́cil porque pelo método cientı́fico não se pode provar
nem que eles existem.
Você não pode, pelo método cientı́fico, provar que você existe,
não tem nenhum jeito, porque você é um caso singular, e você não
admitir a validade da intuição no equilı́brio individual, então você
não pode provar nem mesmo que você existe, então para quê vai
servir a estatı́stica, a indução, etc, etc? Como é que você pode
fazer indução se não tem fato? Como é que você pode conhecer o
fato se não for pela intuição?
Então, existe todo um cientificismo exclusivista que é tão ...(?)...
que não vale a pena discutir, porém, as objeções que se levantam
contra ele às vezes são mais desastrosas ainda porque o sujeito
destrói aquele pouquinho que tem ali no método cientı́fico e ele
não tem nada para por no lugar.
O Bernard é um defensor da Astrologia, ele acha que a Astro-
logia vale. As crı́ticas que ele faz às rejeições da Astrologia são
muito pertinentes porque ele mostra que tudo o que os cientistas
têm oposto à Astrologia é tudo logicamente inválido e que na ver-
dade qualquer restrição que a Ciência coloque a qualquer tipo de
conhecimento, todas essas restrições são inválidas.
De fato são inválidas, bom, mas então, agora, como é que a
gente faz? Ele não sabe, e como a gente também não sabe então,
por enquanto, a gente vai usando um pouco de tudo! O quê é isso
aı́? É uma solução pragmática.
Pragmática é quando você não tem a solução teórica você dá
uma solução prática! P.e., quando você “cola” numa prova, o quê
é isso? É uma solução pragmática; você não sabe mas você copia
o que o outro escreveu, você não sabe o por quê, você não tem o
fundamento, você não sabe fazer aquele raciocı́nio, mas funciona
como se fosse verdade. Isto é pragmatismo!
Isto quer dizer que com o psicologismo, pragmatismo, etc, etc,

521
21 Preleção XXI

sem falar de todas essas idéias mais modernas tipo, Tao da Fı́sica,
etc, que no tempo do Husserl não tinham ainda, mas cujo advento
ele já previa, com tudo isso aı́ você vê que a Ciência não tem mais
validade do que a profecia do Chico Xavier, não tem mesmo.
Não há nenhum meio de você oferecer um fundamento pelo qual
você afirma a maior validade teorética de um desses conhecimen-
tos em relação ao outro, então é tudo uma questão de prática!
Ora, a prática depende do que a maioria das pessoas fazem, quer
dizer que se a maioria das pessoas acreditar em Ciência, ótimo, se
a maioria das pessoas acreditar no Chico Xavier, quem sobrevive
é o Chico Xavier.
Então você cai no relativismo total, e o relativismo é o ceticismo
propriamente dito. Se tudo é igual, tudo vale a mesma porcaria,
isto é, nada! É o cambalatio, é o vale-tudo.
Se todo conhecimento se equivale então não existe mais uma
diferença de fundamento entre os conhecimentos mais válidos ou
menos válidos, não tem jeito de você estabelecer, então vale tudo.
Ora, como a sociedade, p.e., americana está acostumada a acre-
ditar na Ciência então a Ciência tem prestı́gio, mas se amanhã a
maioria mudar e decidir acreditar em algo do tipo Chico Xavier,
uai!, não existe modo de você opor uma barreira.
P.e., por quê esse negócio de bruxaria, feitiçaria, está tudo en-
trando nas universidades? Porque elas sabem que elas não têm
autoridade cientı́fica suficiente para barrar essas coisas! Claro que
tem uns sujeitos de estilo antigo que não gostam disso, mas esses
também não podem oferecer senão um argumento de gosto.
Isto é que é a crise das Ciências, isso aı́ significa que a idéia de
Ciência acabou! E o que quer que sirva para produzir um efeito,
vale!
É claro que na prova pragmática os cientistas-feiticeiros vão
acabar perdendo, e no fundo a esperança do pragmatista é, “Deixa
eles falarem o que quiserem, deixa eles lecionarem bruxaria aqui

522
21 Preleção XXI

dentro que no fim o que vai funcionar é a nossa Ciência, e não a


magia deles. Eles se desmoralizarão a si mesmos.”; eu digo, mas
isso aı́ é fazer de novo o que Aristóteles fez com a objeção cética!
É desmoralizá-la, e não oferecer um fundamento absoluto.
Então, a dúvida cética continua a existir através dos tempos e
periodicamente ela se fortalece, adquire uma autoridade fora do
comum. Então, diz o Husserl que o único sujeito antes dele que
se preocupou com o problema dos fundamentos absolutos do co-
nhecimento foi Descartes, que quando põe a estória da dúvida
metódica, ele em primeiro lugar admitiu que todos os conheci-
mentos são duvidosos, todos, todos, todos, ou seja, ele aceitou a
parcela de veracidade da dúvida cética, e não fugiu dela, não a
recusou na porta.
Aristóteles recusou na porta, ele diz, “Não, essa objeção é ab-
surda, ela é auto-contraditória logicamente!”, e tendo rejeitado
a dúvida na porta ele se recusa a examinar se os conhecimen-
tos que ele possui são fundamentados ou não. Não totalmente,
é claro, porque alguma questão do fundamento do conhecimento
ele aborda, mas ele não vai até a raiz do problema.
Ora, o quê faz Descartes? Ele admite a dúvida cética sobre to-
dos os conhecimentos, mas ele chega num ponto onde ele percebe
que não é possı́vel prosseguir a dúvida porque na hora que você
tem a dúvida você não tem dúvida de que tem dúvida.
Isto quer dizer que existe por baixo de toda negação cética a
afirmação de um sujeito que nega, portanto o sujeito cognoscente
é inquestionável. Então esta foi a descoberta de Descartes, porém
parou por aı́.
Se você perguntar, uma vez que você provou que o sujeito existe
como é que você faz para daı́ provar que o mundo existe, e que o
conhecimento que você tem do mundo é objetivo? Aı́ Descartes
apela para Deus, ele diz, “O sujeito existe certamente; está pro-
vado.”

523
21 Preleção XXI

Mas esse mesmo sujeito tem a idéia de um Deus, e para ele su-
por que todos os conhecimentos que ele tem, percepções sensı́veis,
memórias, etc, estejam todos errados, isso só seria possı́vel se um
gênio maligno, se um Deus malvado, tivesse colocado todas es-
sas impressões, percepções, nele para enganá-lo, e essa hipótese é
absurda, então eu rejeito.
Então, o sujeito em última análise volta para o mesmo negócio
aristotélico que é a prova do absurdo da tese contrária, e não a
prova positiva da sua própria tese!
Quer dizer que volta à rejeição liminar, Aristóteles rejeitava pre-
liminarmente, e Descartes rejeita liminarmente; preliminarmente é
antes de chegar na porta. Descartes rejeita na porta, e rejeita por-
que para aceitar esse cosmos nós precisarı́amos acreditar no gênio
mau, no gênio maligno. E a hipótese do gênio maligno é assusta-
dora e moralmente absurda, inaceitável. Então, Descartes ataca a
questão mas um pouco foge dela também.
Husserl então, preocupado com a crise das Ciências, isto é, com
a penetração do absurdo dentro da esfera da própria Ciência, e
com a sobrevivência e o fortalecimento da dúvida cética, diz que
tem que dar um basta final, ou seja, não basta refutar logicamente
o ceticismo porque se você refuta uma forma de ceticismo, pode
surgir outra, e outra, e outra, e nós vamos ter que ficar o tempo todo
fazendo truques lógicos para refutar os truques lógicos céticos.
Então, ele diz, e essa é a grande descoberta, que a própria
objeção cética fornece esta prova. Então, ele, fundando a
contribuição de Descartes à parte de validade que existe na dúvida
cética, e admitindo esta dúvida como uma dúvida filosoficamente
válida, ele chega à conclusão do seguinte, que se a consciência
cósmica negar a totalidade dos seus conteúdos é porque ela trans-
cende esses mesmos conteúdos.
Ora, é ...(?)... a idéia de objetivo e subjetivo, é um conteúdo
da consciência, p.e., o cético diz, “Todos os seus conhecimentos

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21 Preleção XXI

são inválidos porque eles são subjetivos e não alcançam o mundo


objetivo”, mas, eu digo, quem foi que delimitou o objetivo e o
subjetivo? Foi a própria consciência.
Quer dizer, a consciência transcende a totalidade dos objetos co-
nhecidos, a totalidade das formas de consciência, p.e., sensações,
memória, pensamento, sentimento, etc, etc, e ela transcende o con-
junto das formas reflexivas da própria consciência.
Quer dizer que eu posso colocar em dúvida, entre parênteses, e
posso negar ou afirmar tudo o que eu sei a respeito de tudo, todas
as formas que eu tenho de saber, o que quer que seja, e todas as
formas que eu tenho de refletir sobre o que eu sei.
Ora, isso aı́ abrange, de longe, a distinção entre subjetivo e ob-
jetivo, até mesmo entre verdadeiro e falso. A consciência estabe-
lece o que é verdadeiro e falso a partir de um dado absolutamente
verdadeiro que ela tem, que é ela mesma. De modo que, para o
conhecimento ser objetivo ele não precisa transcender a esfera da
consciência, porque a esfera da consciência transcende o objetivo
e o subjetivo. É isso que ele chama de Consciência Transcenden-
tal.
Então, esse ponto Descartes não tinha chegado, e isso aı́ não é
uma refutação lógica da objeção cética, é uma absorção da objeção
cética dentro do campo da Consciência Transcendental.
Ora, talvez seja interessante saber que essa tese da Consciência
Transcendental já tinha sido enunciada antes de Husserl por Tolu-
biovsky, filósofo russo, muito antes. Mas Tolubiovsky fala a coisa
como um velho crente e não fundamenta a coisa, mas a idéia cen-
tral tinha sido dada por Tolubiovsky na hora em que ele diz que
o que caracteriza o homem não é a faculdade de pensar, nem se-
quer de conhecer, é a capacidade de julgar e poder dizer sim ou
não à totalidade dos seus conhecimentos. Ou seja, a idéia de um
verdadeiro e falso absoluto.
Não é a capacidade de pensar, a capacidade de conhecer, não é

525
21 Preleção XXI

a fala, mas é essa capacidade transcendental, ou seja, a capacidade


de abarcar tudo aquilo que ela conhece e de julgar isso na sua
totalidade! Dito em última análise, é a capacidade para a dúvida
cética!
Isto é coerente com a definição que Aristóteles dá para a inte-
ligência. Isto é coerente com tudo o que a Filosofia disse ao longo
dos tempos. Mas isso aı́ é uma coisa que todo mundo sempre
soube e se Aristóteles sabia disso por quê ele não ofereceu isso
como resposta à dúvida cética?
Porque ele não tinha percebido a conexão entre uma questão e
outra. Quer dizer, tava na cara de Aristóteles, não é? A definição
que ele dá da inteligência seria suficiente para responder à dúvida
cética, claro!
Então, por quê ele não respondeu? Porque ele ofereceu outra
resposta. Por quê ele respondeu simplesmente no plano lógico?
Porque ele não deu importância a aquela objeção. Porque ele
achou que o importante da inteligência é a capacidade para o co-
nhecimento positivo! Ele não se preocupou com o negativo. Por-
tanto esta é uma descoberta nova sim! E é feita nessas 3 etapas,
Descartes-Tolubiovsky-Husserl.
Quer dizer que a grande capacidade humana, no fundo, é a ca-
pacidade para a dúvida cética. Agora essa capacidade só existe na
medida em que essa dúvida é falsa.
Dito de outro modo, é a capacidade para o falso, que o animal
não tem. O homem tem capacidade para a dúvida cética na medida
em que essa dúvida é falsa.
Hegel, p.e., disse que o que define o homem é a negatividade.
Mas se Hegel sabia disso por quê ele não virou a negatividade
contra a dúvida cética? Por quê ele não respondeu assim à dúvida
cética? Por quê ele disse, “Não vou perder tempo com essas bo-
bagem?” Porque ele não percebeu a relação que tinha, ninguém
percebeu! Ninguém percebeu o valor da dúvida cética.

526
21 Preleção XXI

Então, a suprema capacidade humana é a capacidade para o


falso, mas essa capacidade só pode existir se o falso for falso, e
se você sabe que o falso é falso.
Dito de outro modo, é o que já está na Bı́blia, “Um homem pode
dizer não ao próprio Deus”. Quer dizer, é uma descoberta nova e
está inteiramente dentro da linha da tradição.
Depois que você descobre você percebe também que aquilo é
coerente com tudo o mais, e se é coerente com tudo o mais por
quê que os caras não perceberam antes? Porque estavam ligados
em outra coisa. A coisa pode estar na sua cara, você mesmo dá a
premissa maior e a premissa menor, e você não tira conseqüências!
Isso aı́ acontece o tempo todo.
É válido você questionar o conhecimento, claro que é! É válido
você questionar tudo. Só que você só pode fazer isso unicamente
porque você sabe que isso é falso! Você não pode conceber o
nada? Você pode, justamente por que o nada não é nada.
Então, essa Consciência Transcendental é ela a instância
inegável, você não pode negá-la de jeito nenhum, a dúvida cética
não pode alcançá-la. Ao contrário, a dúvida cética a afirma. Toda
vez que você expressar a dúvida cética você está afirmando a
Consciência Transcendental na mesma hora.
Portanto, ela em si mesma não pode ser abarcada, ora, mas a
Consciência Transcendental não é apenas o Eu subjetivo, como
diz Descartes, é algo mais, é um legislador, porque ela é que limi-
tou o objetivo, o subjetivo, o verdadeiro, o falso, etc, etc; tudo o
que a consciência atribui como veracidade, ou como falsidade, ela
atribui buscado na sua própria veracidade, ou na falsidade da sua
própria auto-negação.
Quando eu digo que um conhecimento é objetivo eu digo que
não fui eu quem criou esse objeto, e eu sei que não foi eu quem
criou porque eu tenho Consciência Transcendental, eu sei o que
eu fiz e o que eu não fiz. Eu sei que eu não poderia nem oferecer

527
21 Preleção XXI

aquele objeto, naquelas condições. Isto aqui é o fundamento da


Fenomenologia, ela começa a partir daqui.
A Fenomenologia mostrará a partir daı́ as modalidades de
consciência, modalidades de fenômeno, modalidades de apareci-
mento dos objetos perante você. E a distinção dessa modalidade é
suficiente para você saber o que é objetivo e o que é subjetivo.
P.e., qualquer objeto do mundo fı́sico jamais aparece por todos
os lados ao mesmo tempo. Porém, cada lado que você percebe
sempre pressupõe uma infinidade de outros, que podem continuar
sendo percebidos sucessivamente de modo indefinido.
Isso aı́ não se aplica absolutamente a objetos imaginários. Ima-
ginariamente você pode conceber uma mesa que tem um lado só,
ou seja, os objetos imaginários têm uma propriedade a mais que
os objetos sensı́veis não têm.
Você pode conceber uma superfı́cie pintada, p.e., uma superfı́cie
branca, não é? Agora, conceba uma superfı́cie pintada, inexis-
tente, que tenha só a cor. Como é que a cor tem extensão? Você
tem mentalmente o conceito de cor, independente da extensão, não
é? Mas você sabe que isso aı́ foi você que inventou, não sabe? Mas
você sabe que o inventou como impossı́vel.
Na hora que você pensa “cor sem extensão”, você inventou isso
sem nenhuma pretensão de que isso existisse, aliás, você inventou
já declarando para você mesmo que isso não existe!
Na hora que você falar “cor sem extensão” é a mesma coisa
que você falar que o conhecimento é impossı́vel. É válido, mas
é falso, quer dizer, a cor sem extensão evidentemente, ou é um
truque mental, um puro esquema mental, ou é uma falsidade. E
você o inventou como tal. Isto quer dizer que faz parte da estrutura
da consciência uma consciência absoluta de verdadeiro e falso, do
qual você não pode escapar um único momento.
[ Troca de fitas. Uma parte dos comentários se perdeu. ]
A Consciência Transcendental não é dialética mais; dentro dela

528
21 Preleção XXI

não existe dialética. A objeção cética, na hora que você a percebeu


como falsa, você percebeu que ela é apenas um produto da sua
liberdade, então não tem mais dialética.
[ Stella: mas você precisou da dialética para chegar lá ... ]
Claro, mas a exigência da dialética é de ordem prática, e não
teórica. Não precisa de dialética porque ele pensa por negação,
habitualmente. Mas você pensa por negação apenas naquilo que
você não sabe, para você descobrir é simplesmente por negação,
mas como é que você descobriu? Porque foi que você descobriu
os fundamentos da Geometria você consegue por lógica apenas.
Acabou a dialética, não tem dialética mais alguma.
Então, na esfera da Consciência Transcendental não existe
dialética. A dialética supõe que você conceda direitos iguais,
porém, se você já descobriu que tudo é falso e foi você mesmo
que inventou, então acabou a dialética, daı́ para diante é somente
lógica, aliás, não é nem lógica, aı́ é somente intuição imediata.
A Consciência Transcendental sabe tudo de certa maneira por-
que por um lado ela só conhece a si mesma, por outro lado ela sabe
que todos os conceitos, todas as percepções, todos os esquemas de
verdadeiro e falso, são colocados por ela mesma, que ela trans-
cende qualquer realidade e qualquer experiência, e que ela não se
identifica com o subjetivo, presta bem atenção, porque facilmente
você poderia dizer, “Mas isso é uma forma de idealismo subjetivo,
e que a única realidade é a consciência, não existe mundo, não
existe objeto, não existe nada, nada, nada...”
Bom, a Consciência Transcendental não é subjetiva, ela coloca
o subjetivo no objetivo, e a distinção dela do subjetivo e objetivo
é a consciência que ela tem de um ato criado por ela e um dado
recebido.
Dito de outro modo, um objeto imaginário é acompanhado da
consciência de que ele foi imaginado. No fundo, isso é igualzinho
ao senso comum. Quando o nego tá fazendo um raciocı́nio que

529
21 Preleção XXI

escapa da realidade, você diz, “Isso aı́ foi você quem inventou!
Você está inventando!”, não é assim?
Então, para você saber se o negócio é objetivo ou subjetivo é
só perguntar quem foi que inventou. Quer dizer que a noção de
objetivo é a noção de um dado.
Dito de outro modo, é a diferença ente o dado e o construı́do, o
dado e o colocado. Onde está esta distinção? No dentro e no fora?
Não, as duas estão dentro da Consciência Transcendental. Então,
é claro que a esfera da consciência abarca infinitamente o mundo
dos objetos e você não pode definir como objetivo aquilo que está
fora da consciência; objetivo é o traço, é uma caracterı́stica de
alguns dados da própria consciência.
[ Stella: eu não estou vendo a relação entre conhecedor e co-
nhecido? ]
Não é bem isso, aı́ escapamos da relação entre conhecedor e
conhecido. Escapa completamente. Aı́ mudou tudo. Não existe
nada fora da Consciência Transcendental. O sujeito empı́rico, na
verdade ele não conhece nada.
Se você chegou na esfera da Consciência Transcendental, não
existe mais esse tipo de diferença entre o sujeito e o objeto que
você está acostumado a ver no dia-a-dia. o objeto passa a ser um
dado de consciência, você não tem que sair da consciência para
examinar, não existe este encontro, você tem que perguntar onde
que está isso aı́ dentro da consciência. Onde, por quê lado ele
aparece?
Objetividade é uma modalidade de aparecimento ante à
consciência. Agora, você só vai se perguntar por um objeto se
ele aparece à consciência; se ele não apareceu você não pergunta
nada.
Se ele apareceu à consciência ele já é conhecido, somente o que
falta é perguntar por onde ele apareceu, mas isso não é perguntar
mais sobre o objeto e sim perguntar sobre a própria consciência.

530
21 Preleção XXI

Portanto, a noção do conhecimento como uma relação sujeito-


objeto tem que ser abandonada nesta esfera.
Então, não se trata mais de uma relação sujeito-objeto num in-
divı́duo colocado ante um objeto, mas de um sujeito empı́rico co-
locado dentro de um sujeito transcendental.
O conhecimento não é mais o encontro com o objeto, mas é
um recuo desde o nosso sujeito empı́rico, que é o sujeito de todos
os dias, até a esfera da Consciência Transcendental, onde estão
dados todos os objetos. Dito de outro modo, todo conhecimento é
um auto-conhecimento da Consciência Transcendental. Somente
a Consciência Transcendental conhece, e ela conhece conhecendo
o todo.
Então você tem a esfera do realismo ingênuo onde existe o ob-
jeto; você tem depois a esfera da dúvida cética onde só o que
existe é o sujeito preso dentro de si mesmo e incapaz de conhe-
cimento; você tem a esfera do sujeito reflexivo, é o cartesianismo,
etc; e você tem a sua Consciência Transcendental que na verdade
não é um prolongamento desse sujeito reflexivo mas é uma coisa
que abarca isso tudo e que nós podemos referir isto aqui ao que
eu chamo uma tripla intuição. Tripla intuição tem um sujeito,
tem objeto, e tem uma relação, mas tudo isso está abarcado pela
Consciência Transcendental.
Então você pode (conceber o nada(?)) por Consciência Trans-
cendental, ou meio luminoso, ou a unidade da tripla intuição, e a
maneira de expor em linguagem lógica, da percepção, é simples-
mente as duas idéias.
Na hora que você percebe a luz, a luz onde está? A luz está
no objeto? Claro, ela é um objeto, está pertinente. “Ah!, mas
ao mesmo tempo é uma percepção sua. Ela está no sujeito.”, ao
mesmo tempo ela é uma relação entre sujeito e objeto.
Mas ela é só isso? Não, ela é a própria condição de possibilidade
da relação, ela monta o cenário dentro do qual se dá essa relação.

531
21 Preleção XXI

Então, no fim só existe ela!


Então, como dizia Goethe, “O olho percebe a luz porque ele é
da mesma natureza da luz”. É claro que a partir daı́ não se pode
mais definir o conhecimento como uma relação sujeito-objeto. A
relação sujeito-objeto só vale no plano empı́rico, mas a finalidade
do processo cognitivo é ultrapassar o plano empı́rico, e na hora
que você ultrapassa você vê que a “relação” só existia no plano
empı́rico, o qual é provisório e é mais metafórico do que real. Na
realidade ninguém jamais encontrou um objeto fora de si mesmo.
Se eu conheço um objeto é porque, ou ele foi dado à minha
percepção, ou está na minha imaginação, ou foi pensado por mim,
então só pode estar sempre em mim!
Esta seria a dúvida cética, tudo o que você conhece está dentro
de você mesmo, então é subjetivo. Errado. Está dentro de mim
mesmo, porém não está como subjetivo, está dado como objetivo.
Se para um conhecimento ser objetivo ele precisasse transcen-
der a consciência seria a mesma coisa que dizer que ele só poderia
ser objetivo se ele fosse inconsciente.
Então nós temos conhecimentos conscientes porém puramente
subjetivos e inválidos, e temos conhecimentos válidos e objetivos
porém todos inconscientes. Veja se isto aqui não está na raiz da
idolatria do inconsciente? Como se o inconsciente fosse profun-
damente sábio, como pretende Jung.
Ora, o quê é esse inconsciente? É uma sombra da Consciência
Transcendental. Você não tendo que elevar à noção de Consciência
Transcendental, mas você sabendo que existe algo que está para lá
do objetivo e do subjetivo, você chama de inconsciente.
Hartman já chamava de inconsciente. é um super...(?)..., mas
onde está esse super...(?)...? É você mesmo seu idiota! É a estória
dos burros, claro! O sujeito comprou 5 burros, mas ele só vê 4!
Eu digo, ué, eu estou vendo 6!
Quer dizer que a noção de um conhecimento objetivo não foi

532
21 Preleção XXI

posto pelo sujeito empı́rico, é uma noção que vem de dentro da


própria consciência, a qual abarca sujeito-objeto.
Você não poderia conhecer um único se você não conhecesse o
meio luminoso dentro do qual existe o sujeito empı́rico e o objeto
empı́rico. Você não poderia ter, p.e., a noção do que é experiência.
Quer dizer, a Consciência Transcendental é a condição de pos-
sibilidade de tudo isso, e ela está subentendida na primeira palavra
que uma criança fala, na primeira percepção que um recém- nas-
cido tem, ele já tem Consciência Transcendental, é evidente. Por
quê?
Porque ela não existe nele empiricamente, ela existe essencial-
mente. Ela não se desenvolve, nem deixa de se desenvolver, ela é
a própria estrutura do ser humano. Se ele é gente é nessa estrutura
que está a Consciência Transcendental. Ela é a própria condição
humana. Portanto, só quem conhece o universal no homem, é o
homem universal, o sujeito empı́rico não conhece nada, só quem
conhece é a Consciência Transcendental.
Então você vê que isso está concorde com São Tomás de
Aquino, com Aristóteles, com o vedanta, com o budismo, con-
corde com tudo, e ao mesmo tempo até aqui quase ninguém tinha
percebido.
Veja, no vedanta a dúvida cética está, de certo modo, incor-
porada. O vedanta trabalha a dúvida cética, porém não está co-
locado em termos de uma definição rigorosa, está colocado com
uma nomenclatura um pouco mitológica. Se tivesse colocado nes-
tes termos, eu digo, bom, então todo mundo entendia o vedanta
na primeira. Se tem tanta dúvida é porque lá tem esse resı́duo mi-
tológico e esse conhecimento está lá, apertado, comprimido, está
tudo lá.
Como também está na definição de inteligência do Aristóteles,
claro que está, mas quando Aristóteles diz, “A inteligência é mais
verdadeira do que a Ciência.”, o quê ele está dizendo? Isto aqui.

533
21 Preleção XXI

Então, por quê os caras nunca quiseram enfrentar isto? Porque a


dúvida cética é uma coisa pentelha, é uma coisa doente. A dúvida
cética está colocada aı́ com a mesma função que está colocado o
capeta. Ela vai te perseguir para que você peça socorro a Deus!
18. A demonstração da tese psicologista.
Defina-se a arte lógica como se queira, sempre encontraremos
atividades ou produtos psı́quicos como seu objeto de regulação
prática. E, assim como em geral a elaboração técnica de uma
matéria supõe o conhecimento de suas propriedades, assim ocor-
rerá também com uma matéria psicológica.
De que se fala continuamente na lógica? Dos conceitos, juı́zos,
deduções, induções, definições, classificações, etc. — - tudo psi-
cologia, se bem que selecionada e ordenada desde os pontos de
vista normativos e práticos.
É ou não é verdade que se nós definirmos a lógica como uma
técnica do pensamento coerente os atos que serão dirigidos por
essa técnica são atos psicológicos, atos psı́quicos?
É ou não é verdade que os atos, todos, que serão dirigidos por
essa técnica são atos psı́quicos? São atos psı́quicos ou não são atos
psı́quicos? Você fazer um conceito, fazer um juı́zo, desencadear
proposições, você pensar, pensar é psı́quico ou não é psı́quico? É
psı́quico, então até aı́ não temos o que objetar.
19. Os argumentos habituais do partido contrário, e sua solução
por parte dos psicologistas.
A parte contrária crê poder fundar a rigorosa distinção de am-
bas as disciplinas no caráter normativo da lógica. A psicologia
— diz-se — considera o pensamento tal como ele é; a lógica, tal
como deve ser. Assim, lemos nas lições de lógica de Kant: ”Al-
guns lógicos antepõem à lógica princı́pios psicológicos. Mas é tão
absurdo como deduzir a moral desde a vida. Se tomássemos os
princı́pios à psicologia, só verı́amos como acontece o pensamento,
sob condições subjetivas; isto só nos conduziria a leis meramente

534
21 Preleção XXI

contingentes. Pois bem, a lógica não se pergunta por regras con-


tingentes, mas necessárias; não se pergunta como pensamos, mas
como devemos pensar — o que encontramos em nós, prescindindo
de toda psicologia.
Em muitos tratados de lógica você não vai encontrar esta
distinção entre o ponto de vista lógico e o ponto de vista psi-
cológico. É uma distinção que, vamos dizer, para fins práticos
ela basta.
Se disser, a diferença entre o ponto de vista lógico e o ponto de
vista psicológico é que o ponto de vista psicológico estuda o pen-
samento como ele efetivamente se dá no sujeito concreto, ao passo
que a lógica procura um pensamento correto, porém, isso aı́ der-
ruba o argumento psicologista? Não fundamenta de fato, porque
de fato nós podemos pensar de maneira incoerente ou de maneira
coerente, mas nos dois casos é pensamento; continua sendo psi-
cológico.
[ Alexandre: nós podemos caracterizar o pensamento ideal
como que engloba todas essas possibilidades e abarcando a
questão do psicologismo? ]
Claro, é a tese da lógica pura. Quer dizer que se não existe uma
Ciência do pensamento ideal que abarque inclusive os princı́pios
da psicologia, então a própria psicologia não tem fundamento, e
nenhuma Ciência ...(?)..., este é o ponto final da estória, que abar-
que o psicologismo.
De qualquer maneira nós vamos seguir por partes. Eu já anun-
ciei com antecipação aonde nós vamos chegar, mas vamos ver
como é que ele chega.
A lógica deve ensinar-nos o reto uso do entendimento, isto é, o
uso concordante consigo mesmo.”Herbert toma posição análoga.
P.e., o uso concordante consigo mesmo; ora, o psicologista pode
objetar, “Se a lógica estuda o uso do pensamento que é concor-
dante do próprio pensamento isso significa que ela ensinará o uso

535
21 Preleção XXI

natural do pensamento. Sempre que o pensamento seguir o seu


curso natural ele estará sendo implicitamente correto.” Nós não
poderı́amos pensar assim? Daı́ estarı́amos indo a favor do psico-
logismo até esse momento, só que mais adiante nós vamos ver se
o pensamento correto corresponde ao pensamento natural.
Os lógicos psicologistas respondem: o uso necessário do enten-
dimento é uso do entendimento. O pensamento tal como deve ser
é apenas um caso especial do pensamento tal como é.
Claro, porque significa que dentre muitas formas de pensamento
tem algumas que ele chama de correto, mas elas são pensamento
também. Por enquanto nós não saı́mos de dentro da esfera do
psicologismo.
Não há nenhuma coisa que possamos pensar ou que possa ser
objeto do nosso conhecimento, tal como ela é, prescindindo da
forma em que havemos de pensá-la; quem compara seu pensa-
mento sobre as coisas com as coisas mesmas, só consegue, de fato,
medir seu pensamento contingente, influenciado pelo hábito, pela
tradição, pelas inclinações e aversões, com a régua daquele pensa-
mento que, livre de tais influências, não obedece a outra voz senão
a de suas próprias leis.
Então, voltamos aı́ à idéia do pensamento lógico, do pensa-
mento correto como sendo o pensamento natural. Existiria o pen-
samento natural, que é o pensamento correto, e existe um outro
pensamento que é influenciado pelo preconceito, pelo hábito, pe-
las influências externas, etc, etc, e que se desviaria do curso natu-
ral. Essa seria a tese psicologista.
Então, neste sentido, o estudo do pensamento correto seria o es-
tudo de uma e de outras formas de pensamento possı́veis. Neste
sentido seria um capı́tulo importante da lógica, segundo os psico-
logistas, descobrir de onde veio o erro.
P.e., na lógica de Bacon — Bacon seria um psicologista avant-
la- lettre, quer dizer, não havia essa discussão do psicologismo,

536
21 Preleção XXI

mas ele já era um psicologista — ele dedica muito espaço à dis-
cussão dos preconceitos, que ele chama de “ı́dolo”.
Então, ele fala dos ı́dolos do foro, ı́dolos do teatro, ı́dolos da
(raça(?)) pública, que são idéias prontas que você recebe desde
fora. Do mesmo modo, na lógica de Pierce, uma boa parte, muita
atenção é dada ao problema de como se produzem os erros pela
força do hábito, do preconceito, do temor, etc, etc.
Então, quer dizer que os estudos das causas psicológicas, so-
ciológicas, históricas, etc, etc, do erro, começam a fazer parte da
lógica.
Se existe um pensamento natural, que é o pensamento concor-
dante consigo mesmo, e um pensamento não-natural, que é um
pensamento patológico, que é influenciado por outras coisas que
não são ele mesmo, então é evidente que o estudo do erro deve ser
empreendido desde o ponto de vista psicológico e isto faria parte
da Ciência da lógica.
A linha de objeção que Husserl vai seguir mais tarde é que a
psicologia só pode estudar os atos do pensamento, portanto ela
pode estudar o modo pelo qual se produz o erro.
Porém, qual é o conteúdo desse pensamento natural? Como é
que nós podemos saber o quê é um pensamento natural não apenas
na sua naturalidade, isto é, dizer que pensamento natural é aquilo
que é concordante com as suas próprias regras, mas em que con-
siste precisamente esse pensamento natural?
Para saber que um pensamento é natural e o outro é artificial
eu já preciso ter definido a norma do pensamento correto. Para
poder estabelecer a distinção entre o natural e o não-natural eu já
precisaria saber o que é o pensamento correto.
E como eu poderia saber a lei do pensamento correto estudando
apenas os pensamentos que existem? Dentre os muitos pensamen-
tos que você pensa, você sabe que uns são naturais e outros não
são, mas qual é a definição? E como encontrá-la pelo estudo do

537
21 Preleção XXI

pensamento efetivamente pensado?


Dito de outro modo, o erro no pensamento é tão natural quanto
a verdade. Claro que você pode, metaforicamente, proceder como
o pessoal do movimento ecológico, holı́stico, etc, e dizer que a
doença não é natural, o que é natural é a saúde.
Mas essa natureza é definida não como a natureza efetivamente
existente, e sim como uma natureza ideal. Quer dizer que, ideal-
mente o homem natural não tem doença, mas o homem que nós
conhecemos na natureza, tem doença!
Então, a natureza da qual está excluı́do o erro e a doença não é a
natureza que nós conhecemos na experiência, é uma outra natureza
que foi inventada, e que não pode ser conhecida por experiência.
Então, do mesmo modo que a saúde e a doença são ambos
fenômenos naturais, o acerto e o erro também são fenômenos na-
turais do pensamento.
Quando o sujeito fica doente é através de leis naturais, ele não
viola as leis naturais, obviamente. Se se violasse as leis naturais,
então a doença não poderia ser compreendida de maneira alguma.
Se você não pode compreender a doença a partir da Quı́mica, Fi-
siologia, Biologia, então não dá nem para saber se o sujeito está
doente.
[Troca de fitas. Uma parte dos comentários se perdeu. ]
Quer dizer, em todos os casos você está apelando a um modelo
ideal, e você vai dizer que é natural. Isso é o mesmo erro que o
pessoal do movimento alternativo comete quando diz que o ho-
mem fica doente por causas anaturais, inaturais, ou anti- naturais,
e que a doença não é natural.
Você está supondo uma natureza ideal, mas essa natureza ideal
não se encontra na natureza, encontra-se só na sua mente, você é
que inventa.
É o duplo sentido da palavra natureza, é a natureza no sentido do
mundo natural que está a nossa volta, o mundo da natureza fı́sica,

538
21 Preleção XXI

e a natureza como essência. Quando eles dizem que o homem não


fica doente por natureza é a mesma coisa que dizer que o homem
não é essencialmente doente.
Quando você fala, p.e., a natureza desta coisa; a natureza do
processo cognitivo, é a essência do processo cognitivo; a natureza
do homem, é a essência do homem; e por outro lado, quando você
fala, os animais da natureza, você não está falando dos animais da
essência, você está falando dos animais do mundo fı́sico.
Quando o indivı́duo diz que não existe doença natural, ele está
jogando com o duplo sentido da palavra, ele quer dizer que não
existe doença essencial, a doença é acidental.
Porém, a natureza fı́sica que nos rodeia é cheia de acidentes. Se
você suprimir a acidentalidade da natureza e sobrar só a essência
da natureza, ela não vai se parecer nada deste mundo fı́sico, ela é
um conjunto de formas abstratas.
Esta essência da natureza evidentemente não é conhecida por
meios da experiência da natureza, porque a experiência se dá no
meio da acidentalidade, mas se dá por uma distinção que você
opera.
Do mesmo modo, entre o pensamento certo e o pensamento er-
rado, ambos são naturais porque ambos acontecem de fato na ex-
periência. E como é que você sabe que um está certo e o outro está
errado? O psicologismo só poderá responder, “Por experiência.”
Mas a experiência te dá justamente misturado o erro e o acerto,
e vai dar sempre, então aı́ caı́mos num cı́rculo vicioso, na impossi-
bilidade de definir o que é o pensamento correto a partir do pensa-
mento que a gente vai definir, mesmo porque nós só conseguimos
pensar de fato na medida em que queremos fazer um pensamento
certo.
Quer dizer, quando você vai resolver um problema de ma-
temática você quer ou não quer encontrar um resultado verda-
deiro? Quer, mas você não o encontrou ainda, então você já está

539
21 Preleção XXI

pensando, o seu pensamento natural, quer dizer, o pensamento efe-


tivamente pensado já é feito em vista de um ideal que não aconte-
ceu ainda porque não é objeto de experiência.
Isso aı́ seria você definir o Norte-Sul-Leste-Oeste a partir dos
caminhos efetivamente percorridos pelo homem, você demarcar
todas as direções por onde o sujeito andou e daı́, bem, encontra aı́ o
Norte-Sul-Leste-Oeste. Isto escapa do problema completamente.
Quer dizer, o naturalismo psicológico, o psicologismo lógico, ele
é uma impossibilidade pura e simples.
Portanto, das duas, uma, ou existem leis ideais do pensamento
que são totalmente independentes do acontecer psicológico, ou
então não dá sequer para a gente entender as leis do acontecer
psicológico.
P.e., por quê é tão importante vencer esse psicologismo? Porque
o psicologismo é uma forma larvada de ceticismo, é uma forma
larvada de relativismo o qual, em última análise, é ceticismo.
Mesmo que o defensor da teoria psicologista não seja pessoal-
mente cético, é apenas porque ele não percebeu que a conclusão
lógica do pensamento dele é o ceticismo.
P.e., se nós aderirmos à tese da escola fundada por Emille De-
ocart, que depois foi seguida por Marcel Mauss, um autor que
esteve muito na moda na nossa história de Ciências Sociais, e que
vai dizer que o pensamento lógico é uma cópia feita a partir das
instituições sociais, quer dizer, é uma projeção das instituições so-
ciais, e isto teria que pressupor que o sujeito é capaz de imitar
as instituições sociais perfeitamente coerente sem ter lógica ne-
nhuma.
Primeiro você constrói uma ordem social, daı́, baseado nela,
você desenvolve essa tecnologia da lógica, etc, etc, mas como
que você desenvolveu essa tecnologia através das instituições sem
lógica nenhuma? É a loucura total!
[ Alexandre: é essa a teoria que orienta os antropólogos? ]

540
21 Preleção XXI

Muitos antropólogos; é uma teoria muito importante entre os


antropólogos.
[ Stella: mas não é um pensamento “esquizo” porque o sujeito
corta metade da história, não é? ]
Totalmente “esquizo”, mas baseado na idéia de você remeter
os acontecimentos da esfera ideal a acontecimentos da esfera real,
explicar o ideal pelo real, sempre.
É um medão que dá de você ter que subir à Consciência Trans-
cendental. Você quer encontrar os fundamentos materiais, é claro.
O quê é o materialismo histórico senão uma tentativa de fazer isso,
dizer, “Ah!, temos que encontrar uma explicação aqui em baixo
porque lá em cima eu não agüento!”
Então você tem que explicar o abrangente, a forma , pelos ele-
mentos. Quando você vai explicar o ideal pelo real você vai ter
que desdobrar em elementos, porque o fato é o seguinte, a forma
do conjunto você sempre conhece idealmente, e o real você só co-
nhece por pedaços e por elementos.
P.e., uma pessoa que eu conheço, eu vi vários atos dela, eu
nunca vi a pessoa inteira. A unidade da pessoa eu só posso con-
ceber como uma totalidade ideal que está para além da minha ex-
periência. No mı́nimo, no mı́nimo, mesmo que eu conhecesse tudo
eu só conheceria por fora, eu não estou dentro da cabeça dela.
Então, ou eu conheço essa forma ideal, parte que é a priori,
e a partir dela eu monto numa totalidade todas as partes da ex-
periência, ou então, partindo dos elementos eu não posso construir
essa totalidade jamais.
P.e., como é que eu sei que um pessoa é uma e não é duas?
Como é que eu sei que cada vez que entra a Heloı́sa aqui, é a
mesma Heloı́sa? Tomando os vários pedaços de Heloı́sa eu não
poderia chegar numa.
Então, supõe-se uma unidade ideal; uai!, daı́ você acaba vendo
o seguinte, que a unidade do mundo real não é conhecida por ex-

541
21 Preleção XXI

periência. Como é que você sabe que existe o mundo? Como


é que você sabe que cada dia que você acorda você não está num
outro mundo completamente diferente? Como é que você sabe que
existe a própria unidade da sua pessoa? Nada disso pode ser co-
nhecido por experiência, nem muito menos juntando por indução.
Então, de onde você tirou isso? Ou você vai ter que dizer que é
uma forma a priori, como fazia o Kant, e dizia que é assim porque
é assim, que tem a forma a priori porque tem a forma a priori, e em
última análise todo o mundo do conhecimento vai estar baseado
num misterioso “a priorismo”, quer dizer, eu nasci com a idéia de
que cada coisa é aquela coisa, eu não sei por quê me botaram isso
na cabeça e eu não consigo escapar dessa porcaria — essa é uma
hipótese.
A outra hipótese é o seguinte, abandona as formas a priori e fica
só com os elementos de experiência, daı́ você fragmenta o mundo
num caos incompreensı́vel.
A terceira hipótese é a Consciência Transcendental; só tem esta.
Eu percebo a unidade da Consciência Transcendental como uma
necessidade absoluta. Não é que aquilo me foi posto desde fora, eu
percebo! E eu percebo por uma intuição evidente! Na Consciência
Transcendental já está dado a unidade do mundo.
[ Stella: mas o “a priorismo” kanteano no mı́nimo já está na
consciência reflexiva, não é? ]
Claro, ele está nas formas de consciência reflexiva, mas o que
ele chama de transcendental não é muito transcendental, não. Kant
apenas indica na direção da Consciência Transcendental.
Ele chama de transcendental uma atitude na qual não é o sim-
plesmente o reflexivo, o transcendental é aquilo que foi o ato de
conhecimento como seu sujeito, como seu objeto. Então, abran-
gendo não este ou aquele ato, e sim a totalidade do ato.
Mas isto para Kant é como se fosse um ideal, ele não diz pro-
priamente o que é essa Consciência Transcendental, ele só diz,

542
21 Preleção XXI

“Talvez lá para cima, é que lá tem umas formas a priori”, mas es-
sas formas a priori não são conhecidas por uma evidência direta,
elas são deduzidas retrospectivamente.
No Kant fica quase um ...(?)..., assim como um imperativo ca-
tegórico, isto é, eu tenho que agir de acordo com uma regra univer-
salmente válida; mas vocês poderiam perguntar, “Por quê?” Daı́
responde o Kant, “Porque ela é um imperativo categórico”. Por
quê é um imperativo categórico? Porque ele ordena imperativa-
mente categoricamente ...
Então, caı́mos no mesmo Descartes, é um ato de fé, porque antes
das formas a priori do entendimento você tem as formas a priori
da sensibilidade, e por quê são essas e não outras?
[ Stella: ele pode não fundamentar, mas ele prova a existência
dessas normas. ]
Ele prova, mas ele faz uma dedução. De fato ele oferece uma
prova de que elas existem, mas ele não discute por quê isso é assim
ou outra coisa. De fato, não tem nenhum motivo.
Se essas provas estão apenas em nós, subjetivamente, e não são
determinadas por nada além de nós enquanto sujeito, elas são uma
puta arbitrariedade.
[ Stella: mas você não arbitra a forma de seu corpo... ]
A forma de seu corpo é um dado externo. A forma não se de-
fine no espaço e tempo? Então, quem é que dá essa forma ao nosso
próprio corpo? São as formas a priori. As formas a priori deter-
minam as formas sobre a qual nós conhecemos o nosso próprio
corpo, e qual é a forma que o corpo tem efetivamente? Não pode-
mos saber porque isto é uma coisa em si.
Não tem meios de você confundir consciência reflexiva, tendo
formas a priori quanto queira, com Consciência Transcendental.
‘A Consciência Transcendental só se chega pela negação absoluta
de todo conhecimento; só se chega realmente pelo caminho do
corte cartesiano levado muito além do que Descartes levou.

543
21 Preleção XXI

Descartes chega até o ego cogito e se contenta com a idéia de


que ele existe. Portanto, a dúvida para ele, preste bem atenção,
quando ele diz, “Eu não posso duvidar de que duvido”, ele ime-
diatamente diz, “A dúvida é um pensamento, portanto enquanto
estou pensando que existo, eu sei que existo”; preste bem atenção,
ele se interessa pela dúvida na medida em que a dúvida é um pen-
samento, e não na medida em que é uma dúvida.
O que Descartes descobre é essa propriedade humana de ter
consciência do seu próprio pensamento, ele tem consciência ime-
diata e absoluta do seu próprio pensamento, e não na capacidade
de duvidar desse pensamento.
Ele pega a dúvida como uma espécie de um gênero, o gênero
Pensa-mento, o conteúdo do que ele aqui em cima é um negócio
chamado Pensa-mento.
Ora, o interessante aqui não é que haja um pensamento mas que
haja dúvida mesmo! É como se Descartes tivesse empregado a
dúvida apenas para provar que pensa.
Mas, o próprio da Consciência Transcendental não é apenas ter
consciência do fundamento absoluto da sua própria existência, não
é somente isso, mas também a própria capacidade de duvidar.
Descartes usa a dúvida para chegar até o ego, esse ego trans-
cendental. Qual é o conteúdo do ego transcendental, segundo ele?
Pensa-mento.
Agora, Husserl faz a mesma caminhada e chega lá no ego trans-
cendental e diz, qual é o conteúdo do ego transcendental? Em
primeiro lugar, a própria dúvida, a negação universal, e não o
pensamento em geral. É a própria dúvida, a própria negação é
o conhecimento fundamental dessa Consciência Transcendental, e
ela é transcendental justa-mente por causa disso, porque nega o
conteúdo.
[ Guilherme faz uma pergunta inaudı́vel. ]
No sentido cartesiano é isso; no sentido de Husserl não é bem

544
21 Preleção XXI

isso.
No sentido cartesiano a dúvida é um limite, você não pode pas-
sar para trás dela, e a dúvida é uma forma de pensamento, então
eu não posso duvidar de que penso na hora que penso, portanto
eu tenho um conhecimento firme, absoluto e inabalável de que eu
mesmo existo.
Se eu mesmo existo, eu posso, com base no fundamento da mi-
nha própria existência, fundamentar a existência das outras coisas.
Este é o projeto cartesiano, fundar a certeza de todas as Ciências a
partir da certeza da existência do ego.
Mas o Husserl é um pouco diferente. Ele não usa a certeza do
ego como fundamento lógico para, com base nela, dedutivamente
fundar as outras Ciências, não é nada disso. Ele vai encontrar as
outras Ciências dentro da consciência mesmo.
Descartes chega no miolo do ego e logo larga ele para trás para
voltar para o mundo dos objetos.
Husserl diz, “Não, está tudo aqui, é aqui mesmo. Você não vai
usar esse ego só como premissa para fundamentar o conhecimento
externo objetivo”, porque Descartes precisa na verdade de duas
premissas, uma é o ego, e a outra é Deus.
Então, se o ego existe dentro disso, então existe o mundo que
Deus mostra ao ego. Neste sentido o ego é o começo de uma ca-
deia dedutiva que vai ser a cadeia dedutiva de todas as Ciências,
que tem na existência do ego e na existência de Deus as suas pre-
missas fundamentais.
Agora, o que Husserl vai fazer não é começar aqui uma
dedução, ele não vai fazer dedução nenhuma, porque a dedução
levaria para fora da consciência, para o mundo dos objetos.
O que Husserl vai fazer é uma descrição do que está dentro da
Consciência Transcendental, não tem dedução, a Fenomenologia
nada deduz, a Fenomenologia é uma Ciência puramente descritiva.
Toda Ciência dedutiva não interessa mais a Husserl, ele se de-

545
21 Preleção XXI

sinteressou da Ciência dedutiva com 18 anos de idade. eu acho


que ele compreendeu toda a Matemática e falou, “Não quero mais
dedução, tchau!”
Porque a dedução parte de uma realidade para chegar numa
possibilidade, parte das coisas dadas para chegar nas conclusões,
“Não é isso que eu quero, as conclusões são meramente hi-
potéticas, são meramente objetos de prova. Eu quero as coisas
mesmas! Eu não quero demonstração, eu quero mostração!”
Então, quando chegou no miolo do ego, que é a Consciência
Transcendental, ele vai dizer, “Ah!, bom, eu que descobri a
Consciência Transcendental, fundamento aqui o conhecimento, e
saio em busca do conhecimento; não, porque o conhecimento está
aqui mesmo!”
É por isso que eu dizia que ele levou a sério a descoberta carte-
siana mais do que o próprio Descartes, porque Descartes tão logo
descobre o ego, ele volta para os objetos.
Na verdade, o ego foi apenas um instrumento que ele usou para
provar a existência do mundo objetivo e a prosperidade da Ciência
objetiva fora da estrutura do ego, tanto que a ponte do ego do
mundo é o quê? Deus; o qual não está dentro do ego, está acima
dele.
Quer dizer que descartes vê o ego como alguém que sente,
pensa, vê imagens, etc, etc, e Deus como um emissor dessas ima-
gens do pensa-mento. E ele diz, “Deus não mente, portanto tudo
isto que eu estou vendo é verdade. Se eu tenho a veracidade do
ego, eu tenho a veracidade dos seus conteúdos, logo eu não pre-
ciso mais me preocupar com o ego, eu posso voltar para fora para
estudar Fı́sica, Botânica, etc, etc.”
Então ele desenvolve a Ciência da consciência, ele descobre a
pista da Consciência Transcendental, porém tendo descoberto a
pista ele volta para as Ciências do objeto, não vai desenvolver as
Ciências transcendentais, que seriam as Ciências das modalidades

546
21 Preleção XXI

de aparecimento dos objetos dentro da própria consciência, e isto


é propriamente a Fenomenologia, é a Ciência do aparecer.
O externo não existe mais, o externo é apenas uma divisão esta-
belecida dentro da própria Consciência Transcendental. Apenas a
Consciência Transcendental estabelece que certos objetos são ex-
ternos ao corpo, o externo dá o sujeito empı́rico, nunca o externo
usa ela. O mundo empı́rico fica fora do sujeito empı́rico.
Portanto para o sujeito empı́rico existe o externo, mas essa
distinção entre o interno e o externo, sujeito e objeto, foi dada
aqui na Consciência Transcendental. Portanto ela não precisa sair
de si para encontrar um objeto fora dela, um objeto fora dela não
existe, porque ela já colocou entre parênteses o mundo, o real todo,
até o possı́vel, ela é soberana em relação a tudo isso, ela está fora
e acima de tudo isso, ela é de certo modo um mediador entre o
verdadeiro e o falso.
Se você disser, para fora do real existe aqui a Consciência
Transcendental e depois disso só existe a falsidade, ou seja , a
Consciência Transcendental é colocada nos confins da falsidade, e
na verdade está na fronteira, porque o principal dom dela é o dom
de falsidade, é o dom da dı́vida e o dom da falsidade, é o dom do
negativo.
Se ela colocar o falso como verdadeiro o quê aconteceu? Ela
perdeu a sua principal capacidade que é de conceber o falso. Ela
se aprisionou de certa forma dentro de uma falsidade tomada como
verdadeira.
Então, o dom da falsidade, o dom da mentira, o dom do nega-
tivo, só vale enquanto o negativo for negativo, o falso for falso,
e a mentira for mentira. Se a mentira for tomada como verdade
acabou o dom do falso, perdeu a sua liberdade.
Ou seja, é como se um homem tivesse o momento de liberdade
de optar entre o verdadeiro e o falso, mas ele só conserva essa
liberdade se ele optar pelo verdadeiro. Optar pelo falso é optar

547
21 Preleção XXI

pelo fim da mesma liberdade de opção.


Este é o motivo pelo qual seria auto-contraditório para a
condição humana você alcançar a certeza universal de tudo. Você
não pode ter certeza universal de tudo porque isto seria o fim do
falso.
Isto é a mesma coisa que dizer que o homem não é um ser inte-
gralmente verdadeiro; existe um resı́duo de falsidade nele o qual o
define como homem precisamente, e não como Deus. E o máximo
que ele pode se aproximar da verdade absoluta é a consciência de
que a falsidade é uma simples opção, senão seria um Deus, porque
Deus não tem a opção do falso.
Se você disser que o homem pode fazer uma coisa que o próprio
Deus não pode, é verdade. É como se Ele dissesse, “Eu não posso
mentir, então vai você e mente lá no meu lugar ...”
Mas o capeta também não pode dizer a verdade, a não ser em
função de uma falsidade. O capeta não tem liberdade alguma, não
tem liberdade nenhuma, nenhuma, nenhuma, é uma necessidade
absoluta.
Quer dizer que a Consciência Transcendental não vai servir
como fundamento da Ciência no sentido dedutivo, como premissa,
como fez Descartes. Ela não é só o fundamento e a premissa, ela
é a sede do conhecimento verdadeiro, é lá mesmo que está. Esta é
a primeira diferença entre Descartes e Husserl.
Segunda diferença: Husserl não prossegue dedutivamente, mas
descritivamente; ele não usa a consciência como premissa para
raciocinar a partir dela, mas ele quer saber o quê está dentro da
consciência. O que quer que se apresente à Consciência Transcen-
dental é automaticamente verdadeiro.
E em terceiro lugar, ele coloca como propriedade fundamen-
tal da Consciência Transcendental, não a certeza de sua própria
existência, como Descartes, e sim a possibilidade de negar tudo o
mais.

548
21 Preleção XXI

Apenas a certeza da própria existência não bastaria para que ela


transcendesse o mundo de certo modo, apenas ele daria o ponto
de apoio, o ponto arquimédico. Mas o ponto arquimédico, de
certo modo, está apoiado em alguma coisa, ao passo que essa
Consciência Transcendental não está apoiada em nada.
De certo modo o mundo está dentro dela, por isso mesmo ela
não pode servir para uma consciência individual. O individual só
existe no plano do sujeito empı́rico. Então nós podemos dizer,
“mas essa é a consciência humana universal”.
Não existe mais 4 discursos aı́, não existe discurso aı́. Isto é
intuição intelectual pura, não tem discurso nenhum, e portanto
muito menos tem 4. Aı́ você tem a verdade mesma, não são
simplesmente modalidades de presença. É a quinta função que
o Crocce diz que não existe.
[ Troca de fitas. Uma parte dos comentários se perdeu. ]
Então, são quatro funções, e ele disse ...(?)... do espı́rito que não
existe a não ser nessas quatro. Não existe uma quinta instância que
você pode chamar de espı́rito. Husserl no entanto, diz que de fato
isto aqui é a única coisa que existe.
Então, isto aqui representará uma passagem de nı́vel de um
conhecimento propedêutico, que seria a teoria dos 4 discursos,
o trivium, o quadrivium, a estética, etc, etc, para a Filosofia
propriamente dita; é daqui que ela começa. Ciência Filosófica,
na definição de Husserl, é a Ciência de fundamentos absolutos,
Ciência de certeza absoluta, aı́ não tem dialética, não tem discurso.
Tem na aparência, no modus exponendi, no modo de você falar,
engana a quem está fora.
Então, toda essa imensa preparação através dos 4 discursos, le-
vando ao domı́nio da lógica, da poética, retórica, dialética, etc,
etc, tudo isso é um organum, é um instrumento, é uma pro-
pedêutica. Até no começo eu chamava a teoria dos 4 discursos
de Propedêutica Geral.

549
21 Preleção XXI

Então, tudo isso é a propedêutica, e onde começa a Filosofia?


Ela começa a partir daqui. Veja, a finalidade dela não é a des-
coberta da Consciência Transcendental, mas é a descoberta dos
conteúdos das Ciências transcendentais, aı́ sim, aı́ é o mundo do
conhecimento em toda a sua infinita riqueza. Realmente é uma
passagem de nı́vel, não o fim, mas é o começo, a fundação.
[ Stella: e onde que vive a lógica? Na Consciência Transcen-
dental? ]
A lógica é uma doação da Consciência Transcendental. a lógica
é uma pálida imagem da unidade da Consciência Transcendental,
a qual é a unidade do real como um todo. Daı́ não tem mais nem
lógica, aı́ é só descritivo, é tudo intuitivo daı́ para diante, isso é
tudo intuitivo, é tudo imediato, certo e evidente.
Então, quer dizer que a conquista da intuição intelectual é o
começo da Filosofia, daı́ é que começa, a Filosofia vai de intuição
em intuição, aı́ não acaba mais, é um mundo infinito da riqueza.
É como se você dissesse, é uma reconquista do estado adâmico;
nesse sentido, toda a estrutura do ...(?)... é como se fosse uma
iniciação dos pequenos mistérios, e daqui para diante começam os
grandes mistérios. Então, aı́ não há mais busca do conhecimento,
isto é o que se chama “o estado contemplativo”, é o estado de
evidência.
Então, a única forma real que eu conheço da ascese espiritual
que eleva a vida até essa restauração do estado adâmico, a única
que eu conheço é essa, é a única que eu sei que funciona, o resto é
simbólico, o resto representa mas não faz.
Se você decifrar o sı́mbolo, etc, mas se falar, “qual é o sentido
do sı́mbolo?”, o sentido do sı́mbolo é isto aqui, porque isto aqui
não se trata de uma alusão mitológica, são operações reais! Se
você disser, “É a conquista do estado de evidência? É um estado
falso, você não pensa mais”. Você não precisa pensar para ter
evidência uma atrás da outra, porque o pensamento absoluto da

550
21 Preleção XXI

lógica é uma doação da Consciência Transcendental, que pode a


qualquer momento ir para baixo ou para cima. É o sobe-e-desce.
Isto aqui é a Filosofia no seu intuito original, e o começo real-
mente do estudo filosófico começa aı́.
Então, nós podemos a partir deste momento nos colocar a
questão da essência de alguma coisa e ver como essa essência se
manifesta para nós, como que ela aparece, e qual é a forma que ela
mostra, e você vai fazer a descrição dessa essência.
Quando o próprio Husserl faz, p.e., eu estudo a Fenomenologia
da consciência de tempo, ele vai explicar como a consciência de
tempo aparece para você. Não é mais uma investigação, é uma
descrição, o conhecimento já está lá, ele apenas vai descrever, vai
transpor numa linguagem conceptual os conteúdos que estão ma-
nifestos à consciência.
Quando Max Scheller faz a Fenomenologia da simpatia; o quê
acontece quando existe uma simpatia entre duas pessoas? Ou uma
empatia, como preferem dizer outros; o quê é isso?
Você pode fazer a Fenomenologia de qualquer coisa, até de
coisa insignificante, portanto qualquer conteúdo de consciência
pode ser descrito fenomenologicamente.
É claro que o estudo fenomenológico não esgota o objeto, es-
gota apenas a sua essência. Porém, conhecida uma essência nada
impede que haja outras infinitas formas de manifestação existen-
cial.
Quer dizer que o estudo das essências é o estudo do sentido
originário de algo que está presente à consciência, mas não é tudo
o que está acontecendo fisicamente.
Quer dizer, isto aqui é, depois de muitos séculos, a restauração
daquela famosa subida platônica ao mundo das essências. É o
estudo do sentido originário de cada presença ante a consciência
no seguinte sentido, p.e., você pode construir um triângulo, eu
posso te dar uma explicação geométrica de como se constrói um

551
21 Preleção XXI

triângulo, mas o fato é que você sabe o que é triângulo antes de


saber construı́-lo geometricamente, você só pode aprender a cons-
truı́-lo geometricamente se você souber o que é triângulo.
Então existe uma diferença entre a definição geométrica de
triângulo e a exposição da sua essência originária, a qual funda-
menta a consciência geométrica.
Então, você pode, p.e., expor o conceito biológico de ser vivo,
mas esse conceito biológico é apenas um esquema que lhe per-
mite distinguir, porém, esse conceito biológico se fundamenta por
experiência originária do ser vivo, que é o sentido do ser vivo.
Então, uma coisa é você oferecer a definição biológica do ser
vivo, e outra coisa é você oferecer a essência fenomenológica.
Isto significa que todos os conhecimentos de quaisquer Ciências
subentendem uma infinidade de essências fenomenológicas que
estão ali de modo mais ou menos inconscientes. Embaixo do co-
nhecimento cientı́fico existe um fundamento fenomenológico que
é, vamos dizer, o mundo verdadeiro e que ele (Husserl) chama o
“mundo da vida”, o Lebenswelt, que é onde as coisas realmente
aparecem.
A Ciência transcendental não tem nada a ver com nenhuma
das outras Ciências que existem, não tem nada que ver nem com
lógica; a lógica é apenas uma extensão dessa própria Fenome-
nologia, porque como é que você faz lógica? Você faz pela
classificação dos tipos de objetos possı́veis. Onde que lhe aparece
a possibilidade dos objetos? Na própria Consciência Transcenden-
tal. Onde que lhe aparecem as possibilidades de proposições, de
juı́zos e de enlaces verdadeiros e falsos entre juı́zos? Na própria
consciência.
Então, por isso que a Fenomenologia é o mundo real, é o único
que tem algo ...(?)..., o resto são todos mundos parcialmente in-
ventados para servir a esta ou aquela Ciência.
P.e., o homem biológico é um recorte que você faz dentro de

552
21 Preleção XXI

uma unidade de sentido que chama homem e você sabe perfei-


tamente o que é. É o homem no sentido antropológico? Não, é
o homem no sentido fenomenológico, é o homem no sentido em
que eu sei que você é homem e que esta parede não é. É um saber
prévio a qualquer outro saber. Tudo o que você sabe se fundamenta
nisso. Na verdade, toda nossa relação real com o mundo da vida
se fundamenta nisso, é como se fosse uma vasta fenomenologia
inconsciente.
Quando você desenvolve um estudo cientı́fico sobre isto ou
aquilo você confunde, porque você começa a duvidar do senso
comum, que explica as idéias habituais, e junto com elas você co-
loca em dúvida também o sentido originário que aquilo tinha para
a consciência, e aı́ o saber cientı́fico vira uma ignorância, e esta é
a raiz da crise das Ciências.
P.e., eu parto de uma vivência ordinária que diz que existe um
ser chamado homem e que esse ser é fundamentalmente igual a
mim. eu nunca questionei isso aı́, isso é um dado da própria
Consciência Transcendental, a identidade do gênero humano é um
dado da Consciência Transcendental; você só questiona isso muito
mais tarde, e questiona quando surgem confusão e erro.
P.e., te aparece um tipo de homem esquisito — a primeira vez
que o preto viu o branco e o branco viu o preto — você fica
em dúvida, mas é uma dúvida que vem de uma determinada ex-
periência mental. Se a partir dessa dúvida você coloca em questão
as suas idéias habituais sobre a natureza humana mas junto com
elas você questiona as vivências originárias de humanidade na
qual se baseia todas essas diferenças, aı́ você não sabe mais o que
é homem e jamais saberá.
A Ciência tem o direito de questionar o senso comum, quer
dizer, o hábito de pensar, mas na hora onde ela questiona as
vivências originárias da consciência, ela questiona o própria
consciência, então daı́ ela vira uma cegueira, daı́ ela não entende

553
21 Preleção XXI

mais nada. Daı́ quanto mais você estuda, mais burro fica. Você
cria um artificialismo cientı́fico que quanto mais investiga, mais
leva só a contra-senso, a contra-senso, a contra-senso, porque isto
seria a negação da própria Consciência Transcendental, a qual é
(invencı́vel(?)), a qual não acontece de fato, só acontece hipoteti-
camente.
Quando nós vemos que a Consciência Transcendental nega a to-
talidade dos conhecimentos, ela não nega hipoteticamente não, ela
nega de fato. Presta bem atenção, a dúvida universal que ela apre-
senta ela é realizada de fato, e nesse sentido é que é uma prática
ascética.
Descartes explica muitas vezes, isto que ele fez não foi brin-
cadeira e nem uma suposição, mas uma experiência efetivamente
vivida. E isto é que é importante.
Então você levar a consciência, de recuo em recuo, de questio-
namento em questionamento, até a negação de tudo, colocar tudo
entre parênteses, como diz Husserl, é uma coisa que deve ser feita
efetivamente, e somente aı́ é que aparece a Consciência Transcen-
dental em toda a sua ilimitada liberdade, mas em toda a sua inca-
pacidade de se negar a si mesma, porque qualquer negação que ela
faça é mais uma prova dela mesma. Quanto mais ela negar, mais
ela afirma.
É como dizia São Paulo Apóstolo de Deus, “Quanto mais o blas-
femo, mais o louvo”; quanto mais dúvida, mais certeza vai ter da
Consciência Transcendental, então aı́ ela se encontrou, e não pode
se perder mais, em hipótese alguma.
É claro que toda suposta negação da Consciência Transcenden-
tal, que é o fundamento da objetividade do conhecimento, ela não
se realiza efetivamente, é uma dúvida fingida, como p.e. essa
dúvida psicologista.
O psicologista está colocando em dúvida a possibilidade do co-
nhecimento, mas no fundo está afirmando o conhecimento. Ele é

554
21 Preleção XXI

o cético que se ignora, ele não assume o ceticismo, porque se ele


assumir ele acabaria por (se deter(?)) na mesma hora.
Então, só ceticismo parcial é que é ruim, o total resolve o pro-
blema. Sempre que você vai levar a dúvida cética até o fim você
chegou à Consciência Transcendental, a não ser que você seja
muito burro.
O indivı́duo capaz de fazer a negação total de tudo, ele chegando
à culminação de um processo vedantismo, porque na hora que ele
nega o infinito, ele afirma o infinito. Ele afirmou a sua própria
infinitude.
Então, o quê existe de destrutivo? Nada, é exatamente o
contrário, isso é um fundamento do fundamento. Portanto, a
dúvida cética só é maligna quando o bicho é ...(?)...
Enquanto você acredita que há uma possibilidade dela ser ver-
dadeira você tem medo dela, mas na hora que você a aceitou in-
teiramente, e ver que ela somente existe enquanto falsidade, en-
quanto possibilidade do falso, e que você não pode abdicar desta
possibilidade, aı́ você está na Consciência Transcendental. Então,
a conquista da Consciência Transcendental é a finalidade da pro-
pedêutica.
[ Marcelo: isto é uma iluminação? ]
Mas é claro que isto é uma iluminação! Não pode ser mais
luminoso do que isto, não dá! Não há Light que chegue para isto
aqui ...
Então, o objetivo de todo este estudo aqui é ver aqui na fase
...(?)... através das formas da cultura, as formas do saber efetiva-
mente ...(?)...
Eu conquisto tudo isto e coloco em dúvida, isto é, relativiza a
...(?)... Na hora que você relativiza você vê ...(?)... a Consciência
Transcendental que está fundamentando e ao mesmo tempo limi-
tando.
Então, saber que este processo, que nesta aula foi conhecido

555
21 Preleção XXI

apenas como esquema possı́vel, se transforma na realidade da


vida, esta é a educação filosófica, é a propedêutica filosófica. Se
é um persuadir, bom, então aı́ começa o conhecimento filosófico e
não a educação filosófica.
Essas Ciências filosóficas que são as Ciências de fundamento
absoluto; o quê é Ciência sem esse fundamento absoluto? É a
Fenomenologia das várias espécies do ser, dos vários âmbitos do
ser, das várias formas de aparecimento, p.e., o conhecimento do
quê que é o homem, o quê que é o sentimento do homem, o quê
que é o mundo da natureza, o quê que é o mundo histórico, o quê
que é tudo o que lhe aparece na frente!
[ Alexandre: seria a definição exata da ontologia regional? ]
É a ontologia geral e regional. Mas note bem que ela não é
uma ontologia formal no sentido em que a lógica é uma ontologia
formal, é uma ontologia material mesmo.
Enquanto você está falando de objetos possı́veis, você está
falando de lógica, mas aqui você não está falando de coisas
possı́veis, você está falando de uma outra esfera.
Claro que isto aqui vai ter que esperar mais um pouco, não é? É
um projeto, a educação filosófica deve levar a isto se não houver
percalços no caminho. Se o nego disser, “Não, mas eu sou apenas
um bichinho, eu quero a minha mãe!”, pode acontecer, mas isto
quando acontece é muito grave, presta atenção, ouçam o que lhes
digo: o sujeito que ouviu este apelo e não atendeu, ele está lascado
... Ele cortou a cabeça, ele nunca mais vai entender nada, nada,
nada, por isso que a gente espera um pouco para falar isto aqui, tem
que esperar um pouco porque senão seria um verdadeiro estupro
mental.
Você chegar na primeira e dizer, “Olha, isto aqui é uma coisa
que você não pode dizer não”; não, espera, aı́ o nego vem uma
vez, vem outra, fica aı́ dois anos, se ele quiser muito bem, ele quis,
porque senão, primeiro o sujeito pode pensar que eu estou doido!

556
21 Preleção XXI

Então, isto aqui não se propõe evidentemente a qualquer ser


humano que não tenha recebido a devida preparação para entender
mais ou menos do que se trata.
O apelo da Consciência Transcendental não pode ser rejeitado
porque senão é a danação da inteligência mesmo, senão ela acaba
de vez, e se você rejeita isso aı́ então adeus identidade pessoal,
adeus tudo. Dá um “snap” aı́ e você vira 15 pessoas diferen-
tes; claro que você vai ser o último a saber, mas as pessoas que
estão em volta notarão alguma diferença. Claro, os loucos são os
últimos a saber que estão loucos.
Quer dizer, o homem não tem outra saı́da, esse é o caminho da
humanidade, e de fato a humanidade segue este caminho. Todo
mundo segue, querendo ou não, porque na prática todo mundo
acredita na unidade do mundo, na unidade de sentido do mundo,
na unidade dos seres com que convive.
Você não acredita que cada pessoa é uma pessoa? Você não
acredita que a sua mãe é a sua mãe, seu pai é seu pai, sua avó
é sua avó, que eu sou eu? Na prática todo mundo acredita nisto
aqui, apenas o filósofo é um sujeito que vai estar consciente que o
fundamento disto aqui é isto que ele chama de Consciência Trans-
cendental. É só esta a diferença.
Então, é como se o filósofo fosse um pouco mais velho, viveu a
coisa suficiente para poder refletir sobre ela e tomar consciência.
Agora, se depois de tomar consciência, ele rejeita, ele está rejei-
tando não somente esta consciência, ele está rejeitando tudo o que
ele fez antes, ele está rejeitando tudo na sua vida, está jogando
tudo pela janela.
Na hora que você descobre o fundamento de tudo que você fez,
que você acreditou, etc, etc, e aı́ você não quer mais, então você
não quer o fundamento, você não quer aquilo que está construı́do
em cima dele.
Esta rejeição é rara, mas acontece de vez em quando. Alguns

557
21 Preleção XXI

desses filósofos franceses da atualidade são todos assim, eles, “eu


recebo aqui e daı́ não (tiro(?)) mais; não é possı́vel que as coisas
sejam reais, verdadeiras; esse negócio de verdade é muito grande”.
Cada um tem a Consciência Transcendental que precisa. Você
vai para o mundo do possı́vel e daı́ você volta para o mundo das
coisas, o mundo empı́rico. Só quando o mundo empı́rico vira uma
confusão total, que nem virou do século passado para cá, é que
você precisa de fato retornar até a Consciência Transcendental e
dizer, “Ah!, agora nós precisamos construir tudo de novo!”
A crise radical do conhecimento, a crise radical da identidade
do homem, a crise radical de todo o conhecimento, é só agora que
aconteceu, isso nunca aconteceu em toda a História. Um mundo
onde está todo mundo apavorado, ninguém mais tem certeza de
coisa nenhuma, tá todo mundo doidinho, isto é de fato uma novi-
dade na História.
Então, conforme o mal é que se dá o remédio. E este remédio é
muito forte para uma outra época. Então isto aqui é como se fosse
uma revelação divina, é uma via iniciática que se abre, “Vocês
perderam aqui o fio da meada, perderam o contato, perderam a
ligação lá em cima, então vamos abrir aqui um outra ligação antes
que vocês fiquem todos doidos”.
Esta possibilidade de fato se abriu, — não por coincidência —,
a obra de Husserl começa em 1910 e está sendo publicada até hoje.
Tem muito livro que não saiu ainda.
Quer dizer que isto só será plenamente absorvido na esfera da
cultura ao longo de 3, ou 4, 5 séculos. É um remédio para uma
civilização, e não para um indivı́duo, portanto não tem pressa. E é
uma coisa que é feita, só que vai mudar a História do mundo.
Então, isto aqui poderá dar a um certo número de pessoas, uma
espécie de visão universal translúcida, transparente, e se houver
um número suficiente de pessoas assim, a humanidade não se per-
derá de tudo porque, em última análise, aqueles caras seguram.

558
21 Preleção XXI

Quanto mais louco fica, tem uma meia dúzia que sabe mais o
que está se passando e que na hora H você tem que dar o remédio.
Não precisa ser muita gente.
A Fenomenologia é uma espécie de reordenação do cosmos cul-
tural, e não precisa ter um grande número de pessoas empenhadas
nisto, mas precisa ter algumas em cada século para a coisa não
desandar completamente.
A ação disto aqui já se fez sentir beneficamente em muitas es-
feras da vida, em muitas, muitas, muitas. P.e., vejam a própria
tranqüilidade com que os homens encaram hoje instituições dife-
rentes, culturas diferentes, religiões diferentes, é um certo senso de
unidade que permite que você veja tudo isso sem você ficar apavo-
rado com a multiplicidade. A própria convivência com o falso; se
você chegou até aqui, você tem familiaridade com o falso, senão
não ia mais para frente.
Este aspecto ...(?)..., absurdo, do mundo contemporâneo, ele ad-
quire uma nova ordem com isto aqui. Tendo a possibilidade de
uma nova ordem você não fica mais apavorado, você perde o sen-
tido de revolta com o absurdo histórico que nós vivemos e ao invés
de ficar revoltado você, bom, eu acho que dá para fazer alguma
coisa, dá para ir consertando um pouquinho.
A autoridade da influência da Fenomenologia no século XX é
tão grande que ele está ...(?)..., todo mundo passou por isto aqui.
Porém, eu acho que essa influência ainda é parcial no sentido de
que ela não acabou de dizer ainda tudo o que tinha de dizer.
P.e., esta coisa que eu falei da dúvida cética é um texto que só
saiu em 1978, quer dizer, é como se você dissesse, até 1978 eu
não sabia nem para quê que Husserl estava falando tudo aquilo.
O plano só foi explicado em 1978, depois eu comprei um livro
que saiu em 1987, chamado “A Terra não se move”, que é um
conjunto de anotações que ele fez ...[ Troca de fitas. Uma parte
dos comentários se perdeu. ]

559
21 Preleção XXI

Então, num mundo que as Ciências pretendem mostrar para as


pessoas que todo mundo vive num mundo falso, que o mundo ver-
dadeiro é um mundo que só teria átomos, partı́culas sub-atômicas,
buraco negro, e só pode ser conhecido matematicamente, isto é um
mundo horroroso!
Daı́ Husserl vai dizer que tudo isso aı́ que vocês falaram de bu-
raco negro, etc, etc, se fundamenta na Consciência Transcenden-
tal, a qual, por sua vez, contém o sentido originário das coisas
que vocês dizem, o qual é exatamente igual ao de qualquer joão-
ninguém, porque se você tirar de baixo a mentalidade do joão-
ninguém, cai a Ciência junto.
Portanto, a Ciência não pode contestar a consciência humana.
É como se dissesse, a inteligência é mais verdadeira que a
Ciência. Você vê que a inteligência do homem da padaria aı́, ou a
Consciência Transcendental dele, é mais verdadeira do que todas
a Ciência fı́sica do século XX. Já é melhor, não é?

560
22 Preleção XXII
21 de maio de 1993

19. Os argumentos habituais do partido contrário, e sua solução


por parte dos psicologistas.
A parte contrária crê poder fundar a rigorosa distinção de am-
bas as disciplinas no caráter normativo da lógica. A Psicologia —
diz-se — considera o pensamento tal como é; a lógica, tal como
deve ser. Assim, lemos nas lições de lógica de Kant: “Alguns
lógicos antepõem à lógica princı́pios psicológicos. Mas é tão ab-
surdo como deduzir a moral desde a vida.
O quê Kant quis dizer que seria absurdo deduzir a moral desde a
vida? Se você, vendo a vida como ela realmente é, como ela funci-
ona, conseguiria deduzir daı́ princı́pios morais? O quê você acha?
Que não é possı́vel nós já sabemos, mas por quê? Da observação
de que um fato não é assim, nós podemos deduzir alguma norma
com relação a ele? Do fato, pode-se deduzir a norma (segundo
Kant), e por quê não? Do fato de que habitualmente as pessoas
não matam as suas mães, pode-se deduzir que não se deve matar a
mãe? Por quê existe essa incomensurabilidade do fato e do valor,
segundo Kant? O valor deveria imperar necessariamente sobre to-
dos os casos. As situações, de fato, são contingentes — podem ou
não acontecer. Será que é isto? Exemplo de um fato que já im-
plica um valor: quantos pés você tem? Dois. Este fato impõe que
você não deva cortar nenhum deles. Como é que você vai dizer se
um sujeito tem saúde ou não se você não definir a saúde como um

561
22 Preleção XXII

valor? A saúde é um valor ou é um fato? É um fato e é um valor.


A existência é um fato ou é um valor? Os dois ao mesmo tempo.
De qualquer modo, Kant raciocina aqui com base na idéia de
que juı́zo de realidade é uma coisa e juı́zo de valor é outra. Por
exemplo, por quê você aceita que 2 + 2 = 4, e por quê você não
aceita que 2 + 2 = 5? Será que um desses resultados não é melhor
do que o outro? Você poderia conceber o resultado verdadeiro
e o resultado falso, independentemente do valor verdadeiro? Se
você retira a idéia de que o verdadeiro é preferı́vel ao falso, o quê
significa o verdadeiro? Não significa absolutamente nada. Então,
real é um valor.
Tudo o que ele fala aqui ele parte do princı́pio de que juı́zo de
valor é uma coisa e juı́zo de realidade é outra. Por isso ele diz que
não se pode deduzir a moral desde a vida. Por isso não se poderia,
da Psicologia, deduzir uma lógica, porque a Psicologia lida com
fatos e a Lógica lida com valores, com normas. Norma significa
valor. Esse é o raciocı́nio dele.
Se tomássemos os princı́pios à Psicologia, só verı́amos como
acontece o pensamento, sob condições subjetivas; isto só nos con-
duziria a leis meramente contingentes. Pois bem, a lógica não se
pergunta por regras contingentes, mas necessárias; não se pergunta
como pensamos, mas como devemos pensar — o que encontramos
em nós, prescindindo de toda Psicologia. A lógica deve ensinar-
nos o reto uso do entendimento, isto é, o uso concordante consigo
mesmo. Herbert toma posição análoga.
A partir do estudo do pensamento tal como ele ocorre nas
condições reais, nós virı́amos a saber, segundo Kant, quais são
as leis de outros pensamentos coerentes.
Os lógicos psicologistas respondem: o uso necessário do enten-
dimento é uso do entendimento. O pensamento tal como deve ser
é apenas um caso especial do pensamento tal como é.
O pensamento correto está para o pensamento em geral, assim

562
22 Preleção XXII

como a espécie está para o gênero.


Não há nenhuma coisa que possamos pensar ou que possa ser
objeto do nosso conhecimento, tal como ela é, prescindindo da
forma em que havemos de pensá-la; quem compara seu pensa-
mento sobre as coisas com as coisas mesmas, só consegue, de fato,
medir seu pensamento contingente, influenciado pelo hábito, pela
tradição, pelas inclinações e aversões, com a régua daquele pensa-
mento que, livre de tais influências, não obedece a outra voz senão
a de suas próprias leis.
Então, há o pensamento que obedece às tensões orgânicas, às
determinações da psique, etc, e há o pensamento que obedece so-
mente às exigências de sua própria coerência.
Quando você está comparando um pensamento com a coisa,
com a realidade, você está comparando o pensamento fisiológico
com o pensamento lógico. Você está comparando pensamento
com pensamento.
Tanto a lógica quanto a psicologia investigam as leis das
operações do pensamento; mas “lei” significa para ambas algo to-
talmente distinto. O problema da psicologia é investigar as leis da
conexão real dos processos de consciência entre si. Lei significa
aqui uma fórmula sintética do enlace necessário e sem exceção na
coexistência e na sucessão. A conexão é causal. Mas a missão da
lógica é de ı́ndole totalmente distinta. A lógica não pergunta pelas
origens e conseqüências causais das operações intelectuais, mas
sim pela verdade de seu conteúdo.
Então, por quê em determinado momento você pensou tal ou
qual coisa? Porque a direção que vai tomando o seu pensamento é
determinada por mudanças que se dão na sua psique: por alguma
associação de idéias, por alguma percepção que você teve de fora,
por sua abstração, etc.
A conexão psicológica entre um pensamento e outro é dada
por uma causa que intervém e muda o curso do seu pensamento.

563
22 Preleção XXII

Porém, quando nós falamos em conexão lógica, não é a isso que


nós estamos nos referindo. Quando um pensamento contém um
outro como conseqüência lógica, a conexão entre o primeiro e o
segundo pensamento não é determinada por nenhuma causa que
tenha intervido na cabeça do sujeito pensante. É o caso do si-
logismo. Tanto que o curso dos seus pensamentos pode se des-
viar da conclusão do silogismo, levado por alguma causa. Num
caso existe uma causa real que determina que depois de um pen-
samento apareça outro, e noutro caso temos apenas um pensa-
mento que está contido no outro como uma parte está contida
num todo. Como é o caso do silogismo. Não se trata de uma
sucessão temporal. Não é que, primeiro, todo homem é mortal,
depois Sócrates é homem, depois Sócrates é mortal. Tudo isso é
simultâneo. Porém, elas não são pensadas simultaneamente, mas
pensadas em sucessão. E a sucessão pode ser alterada por uma
causa psicológica qualquer, por exemplo, a distração.
É assim que se faz uma discussão dialética. É assim que você
acaba achando alguma verdade, se houver alguma para ser achada.
É interessante notar que Husserl começou como psicologista.
Uma conseqüência lógica está contida no seu antecedente, não
no sentido temporal. Não é que todo homem é mortal, em se-
guida Sócrates se transforma em homem, e em seguida Sócrates
se transforma em mortal. Elas estão contidas umas nas outras por
uma relação de implicação, como um conjunto maior contém o
conjunto menor. Isto é implicação lógica. Entretanto, o curso real
do pensamento não é assim. Um pensamento se segue ao outro
em função de alguma causa e não por uma implicação, não por es-
tar contida na outra, mas por ação de alguma causa que intervém
no curso do pensamento e muda o seu curso no sentido temporal.
Primeiro você pensa uma coisa, e depois você pensa outra.
Os juı́zos justos e os falsos, os inteligı́veis e os cegos vão e
vêm segundo as leis naturais. Mas estas conexões naturais não in-

564
22 Preleção XXII

teressam ao lógico; este busca as conexões ideais, as quais nem


sempre se realizam, senão excepcionalmente. Seu objetivo não é
uma Fı́sica, mas uma ética do pensamento. com razão sublinha
Sigwart que na consideração psicológica do pensamento não de-
sempenha “a antı́tese do verdadeiro e do falso nenhum papel ...,
como tampouco é psicológica a antı́tese do bom e do mau nas
ações humanas”.
Com semelhantes meias tintas — responderiam os psicologis-
tas — não podemos nos dar por contentes. Como poderia buscar
as conexões ideais sem estudar as naturais? “A questão do que
se deve fazer é redutı́vel sempre à questão do que se tem que fa-
zer para alcançar um objetivo determinado.” A lógica se comporta
com relação à psicologia como a parte com o todo. Seu objetivo
principal é, antes de tudo, assentar proposições desta forma: assim
precisamente e não de outro modo têm de conformar-se, ordenar-
se e conectar-se as operações intelectuais para que os juı́zos re-
sultantes apresentem o caráter da evidência, do conhecimento no
sentido estrito da palavra.
Entre muitas outras possibilidades de que o curso do pensa-
mento siga essa ou aquela ordem de sucessão existe uma que é o
encadeamento necessário para que se chegue a um resultado certo.
Ou seja, voltamos ao caso anterior, o pensamento certo é apenas
mais um caso do pensamento em geral.
(ver no texto do Husserl a continuação)
um resultado causal de certos antecedentes.
O argumento seguinte também não é suficiente para enfraquecer
o partido psicologista. A lógica não pode apoiar-se sobre a psi-
cologia, como tampouco sobre nenhuma outra ciência, pois toda
ciência só existe como tal pela sua harmonia com as regras da
lógica e supõe precisamente a validez destas regras.
Por quê a psicologia é uma ciência? Não é porque ela obedece
a certas regras lógicas? Então, como é que essas regras lógicas

565
22 Preleção XXII

poderiam se apoiar nos próprios resultados da psicologia? Forma


um cı́rculo vicioso.
A parte contrária responderá: esta argumentação não pode ser
correta, pelo simples fato de que teria como conseqüência a impos-
sibilidade da lógica pura. Dizer que a lógica pura enquanto ciência
precisa proceder logicamente é o mesmo que girar em cı́rculo.
A própria Lógica poderia ser fundamento de si mesma?
Mas vejamos mais detidamente em que consistiria esse cı́rculo.
Se uma ciência supõe a validez de certas regras, isto pode signi-
ficar que estas regras são premissas de suas demonstrações; mas
pode significar também que são regras conforme as quais a ciência
tem de proceder para ser ciência. O argumento confunde ambas as
coisas: para ele é o mesmo inferir segundo as leis lógicas e inferir
das leis lógicas. Mas o cı́rculo só existiria se se inferisse das leis
lógicas.
Ou seja, as leis lógicas num caso são como premissas, e noutro
caso somente como regra de operação, que partindo de alguma ou-
tra premissa demonstra sua própria validez. Isso é possı́vel. Ten-
tem vocês mesmos supor qual o caminho para chegar ao desenlace
dessa coisa. Nós paramos num ponto onde parece que os dois ar-
gumentos são equilibrados.
A partir daqui se você quiser fundamentar a lógica pura, você
procederia como? Isso já está insinuado no último parágrafo. Nós
vimos ontem que existe uma forma de pensamento que é mais ou
menos espontânea ao ser humano, e que buscava uma espécie de
equilı́brio interno, e que tão logo ele encontra, ficava satisfeito. É
uma espécie de impulso lógico que o ser humano tem.
Porém, por quê isto aqui falhava? Por quê quando você lança
uma pergunta o cérebro já responde com uma combinação de pa-
lavras que de certo modo acalma você, e evita a pergunta? Por quê
nós fugimos da contradição? É uma necessidade de equilı́brio in-
terno, não é? Ou seja, você quer montar um esquema de palavras

566
22 Preleção XXII

que feche o esquema para você não ter que pensar mais naquilo,
para você tirar o desconforto da contradição. Mas, vamos supor
que estamos analisando o comportamento humano: e se esse com-
portamento é contraditório? O quê você fez? Na hora que você
achou a resposta, é onde você foi parar mais longe do problema,
não é?
Então, o primeiro procedimento para nós evitarmos isso é se ad-
mitir a hipótese de que o problema não tenha solução. Ou seja, é
matar essa idéia de que tudo tem solução. Pode ser que Deus saiba
a solução, mas eu não sei. Não se trata de matar a hipótese de
que haja uma solução, mas matar a hipótese de que todo problema
tenha uma solução de fácil alcance. Isto aqui é um dos preconcei-
tos mais anti-filosóficos que existe, o de que tudo tem que ter uma
solução, e pior ainda, eu sei sempre a solução, e não há problema
que formulado para mim eu não consiga soltar uma resposta. En-
quanto vocês tiverem esse impulso, vocês não vão conseguir co-
locar filosoficamente um problema. E esse impulso é muito arrai-
gado. Por quê? Porque aı́ o impulso parte do equilı́brio biológico.
E para alcançar a esfera do pensamento filosófico esse equilı́brio
tem que ser rompido, para você alcançar um outro equilı́brio de-
pois. Este tipo de equilı́brio que nós alcançamos através destas
respostas é um equilı́brio pragmático, que é o equilı́brio da vida
prática. Acontece que esse equilı́brio da vida prática não vale para
a vida teórica. Ou seja, como é que nós resolvemos os proble-
mas na vida prática? Resolvemos emitindo(?) quase todos os
problemas. Todo mundo sabe que se você for se preocupar com
tudo você fica doido. Mas acontece que isso só vigora para a vida
prática; para a vida teórica, cientı́fica, isso não vale. Ou seja, os
fins que você busca na vida prática não são adaptáveis para a vida
da inteligência. Enquanto a sua inteligência estiver regrada pelos
fins do seu equilı́brio psico-fı́sico ela não está apta a captar o ob-
jeto tal como ele é em si mesmo. Se o seu pensamento funciona

567
22 Preleção XXII

apenas como um órgão da sua psique, ele funciona como membro


da sua homeostase e qualquer desequilı́brio ele procura restaurar o
equilı́brio imediatamente. Enquanto você estiver pensando assim,
o seu único objeto de pensamento será você mesmo. Só rompendo
essa unidade do sujeito é que entra o objeto. Esse é um grande
salto que se precisa dar, e esse salto não se faz sem crise.
Então, vejam que na nossa vida prática nosso pensamento não se
dirige a captar a verdade sobre objeto nenhum, mas ao contrário,
ele se dirige a evitar o objeto, evitar o estranho, evitar o outro.
Ele se dirige como um princı́pio para manter a homogeneidade da
minha psique. E é claro que na vida prática você tem que conti-
nuar assim, senão você fica esquizofrênico. Porém, quando nós
entramos numa faixa de um pensamento filosófico, cientı́fico, aı́
não é lı́cito mais você implantar nessa outra faixa os critérios do
seu interesse pessoal, orgânico, por mais legı́timo que ele seja na
sua própria esfera. Isso seria a mesma coisa que dizer, “eu levan-
tei tal teoria porque ela me faz bem”. Claro que na vida prática,
não dando tempo para você resolver objetivamente os problemas,
então você orienta o conjunto de pensamentos da maneira que lhe
faça bem. Pode ser que no próximo ano e meio você não con-
siga resolver nenhum dos problemas que atualmente você tem,
mas convém que você pense assim? Não. Na verdade você não
sabe se vai poder resolver os problemas. Ou seja, não sabendo se
é possı́vel a derrota ou a vitória, convém que você esteja convicto
da vitória, porque não há possibilidade de resolução.
Mas, suponhamos que nós fizéssemos uma resolução teórica
mesmo. Neste caso, a derrota e a vitória teriam que ser conside-
radas como hipóteses igualmente defensáveis, e você ficaria divi-
dido até que a realidade nos dissesse, e não a sua homogeneidade
interna. Isso significa que a conquista do pensamento objetivo é
um sacrifı́cio da alma. Você vai chegar à vitória, mas é evidente
que essa vitória vai lhe custar o seu desequilı́brio naquele ponto.

568
22 Preleção XXII

Não quer dizer que no restante da sua vida prática você deva se de-
sequilibrar. Você só cairá nisso aı́ se você cair na burrada de você
levantar todas as questões filosóficas ao mesmo tempo. Neste caso
toda a sua vida prática vai ficar afetada. Você vai ficar catatônico.
Não é isso que estamos recomendando. Eu só estou dizendo que
não existe nenhuma possibilidade de pensamento objetivo no mo-
mento que o indivı́duo evita este sacrifı́cio.
Portanto, você pode ver que quaisquer discussões em geral são
apenas auto-expressões de pessoas que estão discutindo para man-
ter a sua homogeneidade. É como uma luta de organismos onde os
objetos, as idéias que se discutem estão ali apenas como pretextos.
Trata-se de uma vitória de uma psique sobre uma outra psique, e
não de uma tese sobre outra tese. É uma luta psicológica, como as
que nós vemos nos congressos, nos debates de TV, nas discussões
de botequim, discussão de marido e mulher, onde uma psique vai
sair inteira e a outra vai sair despedaçada, ou as duas vão ter que
entrar num acordo. Mas, e o objeto em discussão? Ele nem mesmo
comparece na discussão. Isto porque a condição preliminar para
cumprir a objetividade não foi cumprida. E essa condição é um
sacrifı́cio do ego.
Em termos astrológicos, na vida prática, nós somos conduzi-
dos marcianamente, reativamente, no sentido de defender a nossa
integridade contra a invasão do objeto, contra a invasão do dado.
Nós rejeitamos o dado. Nós só o aceitamos quando ele se coloca
na nossa frente de uma maneira intransponı́vel. Quando ele é um
muro intransponı́vel você aceita o fato consumado.
Normalmente nós não queremos pensar naquilo que a situação
nos impõe, mas nós queremos pensar naquilo que o nosso or-
ganismo exige. A vida prática consiste em perseverar nesse es-
tado de homogeneidade e fazer com que o mundo circundante ad-
quira uma forma harmônica com o nosso desejo e com a nossa
inclinação. Por exemplo, há uma cena de um romance de Thomas

569
22 Preleção XXII

Mann, onde ele entra no quarto do filho dele e o quarto está numa
tal bagunça que ele vê ali a própria confusão européia. Ele po-
deria passar dias descrevendo a bagunça que ele não iria ajeitá-la.
Na vida prática isso seria uma demência. O quê você faz na vida
prática? Você, instantaneamente, impõe ao meio um equilı́brio
similar ao teu equilı́brio interno. Você molda de acordo com a
sua conveniência. Você não pergunta o que ele é. Quanto me-
nos tempo você pensar naquilo melhor para você. Porém, na vida
teórica não é possı́vel isso porque ela trata de assuntos que estão
acima da intervenção dos indivı́duos. Assuntos onde a nossa von-
tade não tem arbı́trio e a única coisa a ser feita é olhar e dizer as
coisas como elas são. Por exemplo, se um astrônomo quiser medir
a posição de uma estrela, ele não vai deslocar a estrela daqui para
lá, ele não pode empurrá-la. Portanto, só lhe resta medir com exa-
tidão e dizer que ela está onde está, e não onde você desejaria que
ela estivesse — - “Assim é”. Portanto, o espı́rito da objetividade
se desenvolve quando nós estudamos aquelas coisas nas quais nós
não podemos impedir de maneira alguma. Por isso mesmo que
Platão dizia que a Astronomia era o estudo por excelência para o
desenvolvimento da inteligência teorética, porque você não pode
mexer nas estrelas.
Suponhamos que todo pensamento lógico estivesse submetido
às leis psicológicas. E que fosse possı́vel das leis que regem esse
organismo humano você tirar daı́ as leis que devem reger este ou
aquele objeto de conhecimento. Isto seria dizer que da psicologia
humana você deduz o mundo. É esta a verdadeira impossibilidade
da tese psicologista. Ou seja, se não existe na Lógica um elemento
qualquer que seja totalmente independente do sujeito cognoscente,
então não haverá Lógica alguma. Não haveria esta passagem para
a objetividade. Não haveria este salto para a objetividade. O objeto
não teria poder algum. Isto também não quer dizer que o fato dos
fundamentos da Lógica estarem colocados fora do funcionamento

570
22 Preleção XXII

psı́quico humano eles estejam colocados fora da consciência hu-


mana. Não significa que a consciência tenha que transcender os
seus próprios limites, porque a consciência teria que atingir algo
que está fora da consciência e isto também seria algo contraditório.
Se a verdade está fora da consciência, então só é verdade o que eu
não sei. Isto significa que na própria consciência humana tem que
estar presente o próprio fundamento do conhecimento. Porém, de
tal maneira que essa consciência não possa se mover livremente
para onde ela quer, de acordo com as leis do equilı́brio orgânico
do sujeito. Tem que haver algo que de dentro da consciência lhe
impõe algo que ela não possa negar.
O importante é enfatizar essa idéia da ruptura. Como é que nós
podemos operar essa ruptura de modo que não seja lesivo à psico-
logia do indivı́duo? O simples fato de você refrear as palavras que
lhe ocorrem livremente não adianta nada. Você refreia umas, mas
aparecem outras. E elas vão continuar aparecendo de qualquer ma-
neira. Nós só vamos ter que fazer uma espécie de distinção entre o
pensar e o saber. Nós vamos ter que continuar pensando, mas sem
acrescentar crença. Ou seja, o pensamento vai ter que ficar mais
leve. Na verdade, até um pouco mais lúdico. Não validá-lo ne-
cessariamente. Deixe-o passar. Você não tem que estacionar nele
como resposta.
Uma outra sugestão é a seguinte: se você foi capaz de inventar
uma resposta, invente outra. Porque a resposta aparece tão natu-
ralmente que se você inventou uma, você pode inventar duas. E
quando você inventa outra você vê que uma contradiz a outra. Na
verdade, não é para você parar esse fluxo do pensamento, mas até
acelerá-lo. Na mesmo medida em que você já não leva à sério o seu
próprio pensamento, já que lhe ocorreu uma resposta com tanta fa-
cilidade, então invente outra já que você é tão inventivo. Daı́ você
inventa quinze, e aı́ você diz que não acredita em nenhuma delas.
A segunda providência é entender o seguinte: se aquilo que é

571
22 Preleção XXII

objetivo, e o que é real é aquilo que não é constituı́do por mim, é


aquilo sobre o qual eu não tenho poder — por exemplo, 2 + 2 = 4.
A maneira de você se aproximar da idéia de objetividade é, ao
invés de você montar os seus pensamentos como soluções, você
montá-los como problemas insolúveis. Você está mais próximo
da realidade quando você formula uma contradição insolúvel do
que quando você dá à luz a uma dessas soluções miraculosas. Por
exemplo, eu conheço melhor uma pessoa quando eu vejo nela dois
aspectos que eu não consigo unificar de maneira alguma, do que
quando eu a explico com uma frase sumária. Se eu digo que a Rita
é assim ou assado, o quê eu fiz? Eu nem falei sobre a Rita. Eu ape-
nas amansei o meu movimento interior, acalmei. E se eu montar a
Rita como uma contradição e como um problema? Aı́ o persona-
gem começou a adquirir vida. Não é isso que faz um romancista?
Algum romancista reduz o seu personagem em algo “chapado”?
Se o personagem agisse de maneira totalmente coerente, o ro-
mance acabaria nas primeiras páginas. Agindo assim você foge do
problema. Você não chega sequer a formulá-lo. Se você começar a
descrever uma pessoa, não em termos desses traços sumários, mas
em termos das questões, dos problemas e das contradições, você
acaba articulando um certo número de contradições.
Vamos supor que você montou umas dez contradições. Daı́ você
acaba vendo relações entre essas contradições e que algumas se re-
petem. Daı́ você tira as que se repetem e vai soltar um núcleo. Daı́
você conheceu a pessoa. Você formulou o problema. Você não
tinha a solução, mas você está mais próximo da realidade. Montar
a contradição é a maneira de você dar ao objeto uma consistência
que não depende da sua mente. você monta de tal maneira que
a sua própria mente fica impotente dentro daquilo. É essa falta
de autonomia da mente perante o objeto que garante a objetivi-
dade dele. Vamos supor que todos aqui na classe começassem a
se comportar exatamente do jeito que eu imagino: eu imagino que

572
22 Preleção XXII

o Marcelo sai voando, e na mesma hora ele sai voando. Como é


que vocês iam distinguir se vocês são personagens de sonho ou se
são personagens reais, se vocês me obedecessem integralmente?
É justamente porque vocês não me obedecem, justamente porque
vocês fazem outra coisa que eu não estava esperando, que eu sei
que existe. Existir é resistir. Assim como 2 + 2 = 4. O teorema
de Pitágoras não faz do jeito que eu quero. Ele faz do jeito que ele
quer. Por isso que eu sei que ele existe. Se ele fizesse exatamente
do jeito que eu quero, então eu estou inventando.
Portanto, a vida teorética começa quando você inverte essa ma-
neira de pensar, começa quando você perde a onipotência perante
o objeto. Só se pode filosofar quando o problema não é imediato,
quando você aprende a montar o que você sabe a respeito do ob-
jeto sob a forma de contradições, e não de explicações. É claro
que você não vai começar a fazer isto a respeito de tudo, porque
senão a sua vida prática vai parar. Quando nós começamos este
curso, nós sempre falamos sobre a vida civil. Se você transpor-
tar essas coisas para a esfera do conubis et commercio, vai parar
tudo. Se você precisa de uma solução imediata, você não vai colo-
car teoricamente o problema, e você nem vai exigir que a sua ação
seja fundada numa verdade universal. Não dá tempo. Primeiro
você vai resolver, depois você vai ver se essa solução foi univer-
salmente válida ou não. Então, na esfera da vida prática isso não
vale. Só valeria se você fosse Deus, porque Deus teria tempo de
colocar teoricamente todas as perguntas, ter todas as respostas e
agir. Mas para nós não dá. Para chegar a uma conclusão com
relação a uma única questão você pode levar, às vezes, um ano.
É claro que você não pode deixar tudo entre parênteses até você
resolver as questões filosóficas fundamentais, daı́ o famoso pro-
blema da moral provisória que falava Descartes. Toda e qualquer
meditação filosófica sempre tem que se apoiar numa espécie de
moral provisória. Os costumes que você vai seguir de acordo com

573
22 Preleção XXII

o uso costumeiro do meio em que você está, até que tenha obtido
uma solução melhor. Você obedece à sociedade, mas você não va-
lida intelectualmente as leis e costumes. Você segue até segunda
ordem. A hora que você tiver certeza de que aquele costume está
errado você pára. Como na maior parte dos casos nós não vamos
ter certeza alguma, então na maior parte dos casos nós vamos con-
tinuar dançando conforme a música, fazendo o que nos mandam
fazer porque nós não saberı́amos as alternativas. Porém, é claro
que isto se torna extremamente difı́cil numa época onde todas as
normas e princı́pios são questionados. Não tem moral provisória
que agüente! Então, o quê acontece com a inteligência? Vai para
as cucuias. Você não pode se apoiar numa rotina para pensar. Você
é obrigado a pensar sobre os problemas da vida prática o tempo
todo. Se você não sabe, você emburrece, você não vai resolver
nenhum problema da vida prática e muito menos na vida teórica.
Então, os movimentos de contestação, etc, etc, às vezes atingem
os objetivos proclamados, às vezes não atingem, porém este ob-
jetivo aqui atinge sempre. Se não há consenso nenhum a respeito
de valores, nem uso de critérios nenhum na vida prática, tudo se
tornou problemático. Você não sabe mais o que é certo e o que é
errado, e tudo dá discussão. Agora, se você começa a discutir so-
bre tudo, a vida prática pára, e os problemas mais simples acabam
ficando insolúveis. Então, às vezes os movimentos de contestação
são inimigos da injustiça, porém eles sempre são inimigos da in-
teligência — sempre. Às vezes você problematiza as coisas que
o melhor seria não pensar, é melhor deixar a vida prática correr
do jeito que ela é, para só interferir onde você tem certeza de uma
solução melhor. Porém, quanto mais problemas práticos você le-
vantar, menos você vai resolver, e menos você vai descobrir com
a esfera do pensamento teórico.
[ intervalo ]
Então, esta questão do psicologismo, esta questão teórica, está

574
22 Preleção XXII

profundamente ligada a esta questão prática que nós estamos dis-


cutindo aqui. Uma coisa é você discutir a possibilidade do co-
nhecimento cientı́fico, objetivo, em geral, e abstratamente falando.
Outra coisa é você discutir a mesma questão com relação a um in-
divı́duo concreto e a você mesmo em particular.
A fundamentação da possibilidade teórica do conhecimento não
fundamenta de maneira alguma a sua possibilidade de conheci-
mento. A questão filosófica, se o conhecimento é possı́vel ou se
é impossı́vel, na verdade ela é secundária em relação a essa outra
questão pessoal de ordem prática. Não interessa saber se o ho-
mem em geral é capaz de conhecer, mas que eu mesmo sou capaz
de conhecer e que condições eu deveria desenvolver para este fim,
ou seja, caso o homem seja capaz de um conhecimento objetivo,
é necessário que essa questão seja colocada em condições, por
assim dizer, ótimas. Quais são as melhores condições possı́veis
nas quais nós poderemos discutir a possibilidade do conhecimento
nas quais faria sentido nós discutirmos a possibilidade do conhe-
cimento. Vejam que quando Kant coloca a famosa questão crı́tica
que se o conhecimento é viável ou não, ele não está se referindo,
por exemplo, a um sujeito que está internado num hospital, com
42 graus de febre. Ele está perguntando se o homem são, norma,
tendo toda a cultura à disposição, se aı́ ele é capaz de conhecer.
Mesmo aı́ ele ainda pode ficar em dúvida, não é?
Portanto, eu acho que faz parte do currı́culo da própria Filo-
sofia você desenvolver condições pessoais ótimas para o conhe-
cimento. Estas condições pessoais não se referem a habitação,
saúde, vestuário, etc, etc, porque já está mais do que provado
que isso aı́ é indiferente, tanto o sujeito bem alimentado quanto
o mal alimentado podem conhecer bem, portanto não se trata de
condições materiais, mas de algumas condições internas que é ne-
cessário cumprir. E uma delas é esta: se você não der este salto
com direção ao conhecimento objetivo, então o conhecimento se

575
22 Preleção XXII

não for impossı́vel, será pelo menos muito difı́cil.


A questão da possibilidade do conhecimento pressupõe que haja
uma séria intenção de conhecer, e por estas observações que nós
fizemos hoje eu acho que é fácil vocês perceberem que na maior
parte dos casos nós não queremos conhecer absolutamente. A ob-
jetividade não significa você colocar a emoção entre parênteses.
Não é esse o problema. Ela não tem nada a ver. Ela é outro de-
partamento. O problema é saber qual emoção. O que eu estou
falando é um problema interno da inteligência, e ele não tem nada
muito que ver com a emoção não. É a própria inteligência que
busca o seu estado de equilı́brio. O próprio impulso lógico do ser
humano é um obstáculo ao conhecimento, porque esse impulso
lógico tem que ver com a idéia de autoconservação, de integridade
do organismo. Então, este mesmo impulso que nos faz buscar o
conhecimento, é este mesmo que impede você de obter o conheci-
mento. Você se satisfaz com aquilo que restaure com o sentimento
de homogeneidade, restaura a sua tranqüilidade.
São Tomás de Aquino dizia, “A certeza é o repouso da inte-
ligência”, porém, prestem bem atenção, nem tudo que é repouso
da inteligência é uma verdade certa. A certeza é apenas um sen-
timento, é a sensação interna de certeza. Mesmo quando você
encontra isto não quer dizer que você esteja na verdade. Talvez
para você encontrar a verdade você tenha que romper este estado
interno. A garantia única que existe da objetividade é de que o
objeto seja de fato o objeto e não uma invenção tua. Portanto, no
objeto interessa precisamente aquilo que nele resiste a nós, aquilo
que nós não poderı́amos inventar e moldar de jeito nenhum, por-
tanto, os aspectos mais dificultosos do objeto são os mais interes-
santes, e não os mais fáceis.
Vamos supor que se trata de conhecer um ser humano; aquilo
que eu não compreendo nele é justamente a parte mais interessante
porque garante que ele não foi inventado por mim, senão eu com-

576
22 Preleção XXII

preenderia tudo. Aquilo que eu compreendo facilmente, me dis-


pensa de continuar pensando no assunto, e se eu não continuo pen-
sando, jamais saberei se aquilo é da maneira que eu concebi ou se
ele é de alguma outra maneira que me escapa. Vejam que quando
começamos a estudar, as idéias nos ocorrem facilmente, mas isso
não significa absolutamente nada, tanto pode ajudar quanto pode
atrapalhar. Também, esse problema da emoção, você colocar ou
tirar a emoção, a emoção é alheia, esse é um problema interno da
inteligência. É a inteligência mesma que tende à homogeneidade,
e ela mesma que tem de romper a homogeneidade para permitir
o ingresso do novo objeto. Com emoção ou sem emoção vai dar
na mesma. É quase um problema fı́sico, quase que fisiológico,
e não emocional, porque este estado de homeostase é um quadro
fisiológico.
Então, basta tomar consciência disso: na maior parte dos casos
eu não estou querendo saber da verdade de maneira alguma por-
que não dá tempo. E não estou errado de prosseguir assim porque
não dá tempo mesmo. você vai ter que selecionar quais são os
problemas que você vai ter que pensar, e quais que você vai agir
segundo o costume, e é aı́ que a coisa complica porque não há
mais costume. Então todas as condutas, as situações, estão proble-
matizadas. No dia-a-dia cada ser humano aparece com cinqüenta
dilemas morais que fariam arrepiar o próprio Aristóteles. Você
pega os problemas que você levanta diariamente, de convivência
com o seu marido, de educação do seu filho, do que você vai fazer
com a vida, etc, etc, e em cada um você coloca um monte de per-
plexidades morais que para resolver uma delas levaria uma vida.
Resultado: a sua cabeça vai ficar assoberbada, você vai pensar,
pensar, e não vai resolver nada, e não terá colocado seriamente um
único problema.
As épocas de muita efervescência social, polı́tica, etc, não são
épocas de grande profundidade filosófica. É, se esta aceleração

577
22 Preleção XXII

dos acontecimentos permite uma folguinha. E é porque sempre


há pessoas que mesmo dentro da maior confusão, conseguem des-
prezar, não fazem questão de acertar nisso ou naquilo, porque está
todo mundo errando, então elas erram junto. E também não estão
fazendo questão de ter razão na maior parte dos casos. Não dá para
saber se você está com a razão ou não na maior parte dos casos.
Vejam, quanto mais problemas práticos você pensar, mais você
cai na multiplicidade, então, você pensar realmente nos seus pro-
blemas práticos, eles são tantos hoje em dia que você vai se afo-
gar. Porém você pode concentrar a atenção em determinados pro-
blemas que sejam essenciais para a sociedade em que você vive.
E aı́ talvez você possa resolver alguma coisa, contanto que você
vá empurrando com a barriga os problemas práticos, caso você
não tenha conseguido encostá-los de alguma maneira. Por isto
que o certo com relação à toda esfera da vida civil é você encon-
trar uma estabilidade psicológica com relação à ...(?) o mais cedo
possı́vel. Esta estabilidade não significa uma situação estável, por-
que se você procura uma situação externa estável, cada vez que ela
ficar instável você vai ter que pensar nela de novo, daı́ você vai fi-
car pensando nisto o resto da vida. Na sociedade atual só tem dois
jeitos de você ter estabilidade: primeiro, você precisa ser tão rico
que você não precise pensar nisto. O segundo é você consentir
em não pensar nisto mesmo que você fique pobre. Só tem esses
dois jeitos; qualquer outro é dispersão. Quer dizer, é você ter um
mı́nimo de atenção e sempre empurrar com a barriga — sempre,
sempre, sempre.
Existe um terceiro: é você virar um gênio prático; o sujeito
ser um gênio e aparecem soluções miraculosas na cabeça dele.
Mas ele é muito raro, porque justamente esse não tem problemas
práticos, tem soluções práticas. Eu, para dizer a verdade, nunca
vi nem um. Eu vi um sujeito que era um gênio deste tipo. Era
um cara que com 15 anos de idade havia montado uma fábrica, e

578
22 Preleção XXII

sustentava a famı́lia. Ele começou a montar uma fabriquinha de


pastas para gráfica com 13 anos de idade. Com 15 anos ele era um
capitalista, resolvia todos os problemas. Lamentavelmente esse
sujeito morreu num acidente automobilı́stico. Esse cara não tinha
problemas, ao contrário, aquilo o divertia imensamente, era uma
prova do poder dele, ele não problematizava.
Mas, em geral, se os problemas práticos todos se oferecem sob a
forma de problemas você já está liquidado; preste atenção, quando
problematizou, montou como um enigma e como uma impossibi-
lidade, já está lascado. Montou como contradição, dançou.
Ouçam este conselho: quando surge uma contradição na sua
vida prática, desvie a atenção. A vida prática é a estória que funci-
ona enquanto você é um sujeito ativo. No entanto, a sua coerência
interna consegue se expandir para fora sem ...(?). A hora que a
vida prática se apresenta a você como contradição é porque você
já está paralisado. Então, o negócio é virar as costas e ir para o
outro lado, ou seja, você só tratar dos problemas que são fáceis.
Se não dá para responder, você fuja. É mais forte do que você.
Um exemplo: quando você perde mais dinheiro do que você pode
ganhar pelos próximos dez anos. Se você pensar nisto mais do que
um minuto é porque você é muito burro. Você já sabe quanto você
perde, você já sabe quanto você vai ganhar, já sabe que você não
sabe como ganhar mais dinheiro, então, entrega para Deus..., mas
isto é o óbvio!
Vejam, o que deve se apresentar a vocês sob a forma de aporias,
são problemas da esfera teórica. Aporias práticas são inventadas
pelo demônio, e qualquer aporia às vezes já é uma vida para você
resolver. Então, quando um problema prático se apresenta a você
sob a forma de uma aporia é porque você já foi derrotado.
Justamente a caracterı́stica fundamental da vida prática, da
práxis, é esta coisa inelutável, nela o que foi não volta mais.
Aquilo que está acontecido, não desacontece. Mas no mundo

579
22 Preleção XXII

teórico, sim, porque o mundo teórico já é o mundo das possibi-


lidades permanentes. Então, do mesmo modo que nós transpo-
mos critérios da vida prática para a vida teórica indevidamente,
nós também fazemos o contrário, no sentido de que se aparecem
problemas práticos insolúveis é porque os problemas foram mon-
tados sob a forma de uma aporı́stica, ou seja, uma contradição
invencı́vel. Quando isto acontece, isto sim, na vida prática quer
dizer derrota. Quando você não tem para onde ir, não vá para
lugar nenhum. Esta é a verdade. Ah! e se encontrar a solução
teórica? Quando encontrar a solução teórica será tarde demais,
então você já perdeu. E se já perdeu não adianta pensar. Os pro-
blemas práticos só valem a pena pensar naqueles que são fáceis,
naqueles que o seu talento te ajuda a resolver, naqueles que você
já tem ...(?) para fazer. Se você não tem, ou você pede para ou-
tra pessoa, ou você se dá por derrotado. As pessoas às vezes não
entendem que a vida prática é contingência, é variabilidade, é in-
finidade de situações possı́veis, você nunca está preparado para a
vida. Só um perfeito imbecil é que deve estar preparado...
A suprema lição da experiência da vida é esta: fuja! Apareceu
o problema, fuja! É só você raciocinar o que quer dizer a palavra
prática: prática vem do grego práxis, ou seja, praxe, o que é cos-
tumeiro; nós sabemos resolver os problemas que são costumeiros,
rotineiros, que já foram resolvidos mil vezes. Quando aparece um
problema radicalmente novo, ou a solução te aparece rápido, ou
quando ela aparecer será tarde. Então a prática é o domı́nio onde
você mostra o seu poder quando você não tem. Quando não tem,
não tem! Há um monte de problemas que nós sabemos resolver,
não é? Então, aı́ é o que você chama de problema, e aı́ você faz,
você age, constrói, cria. Bastou aparecer um problema para você
já saber que não vai ter solução. Claro, quando o problema for
equacionado, tudo bem; mas quando você vê, tenta uma vez, tenta
duas, etc, etc, e fechou, é porque fechou, é porque você se chocou

580
22 Preleção XXII

com a necessidade exterior, com o fato. O fato é aquilo que está


feito, aquilo que não volta atrás. Você já perdeu.
Agora, por quê as pessoas não fazem isto? Por quê as aporias
práticas têm um poder hipnótico? Na hora que você pára hipnoti-
zado por um problema, aı́ você está mais do que derrotado, aı́ você
está acabado mesmo, você está invadido por uma obsessão. Então,
a pessoa só fala naquele problema, só pensa naquele problema, e
se ela está assim isto é sinal de que ela não vai resolver. Tem que
esquecer, vá dormir! Só tem dois jeitos de você não se preocupar
mais com um problema, é você ganhar ou perder. Se você ganhou,
acabou o problema, e se você perdeu, também acabou, você já está
derrotado, a luta já acabou. Então, é não forçar demais porque isso
aı́ consome a sua inteligência. Isto faz parte da própria natureza
da prática.
Uma boa distinção entre a esfera da teoria e a esfera da prática,
eu acho que é uma condição para você poder raciocinar direito
...(?). O número de pessoas que você vê teorizando os problemas
práticos, o dia inteiro, não te dá sossego, não é? Por exemplo, você
já viu pessoas descreverem doenças que elas têm, nos detalhes?
Doença é assim, ou você cura, ou você esquece, não é? Agora,
pensar sobre doença, isso é o fim da picada! Esse problema do
stress é exatamente isto, é você ficar forçando alguma coisa que
não vai dar. Isto é o problema do querer e do poder. Se você não
pode realmente nada, então... Leonardo da Vinci dizia, “Quem
não pode o que quer, que queira o que pode”. Há pessoas que têm
uma vida muito complicada. Eu mesmo sou uma delas. Eu tenho
um milhão de problemas para resolver, mas meu Deus do céu, se
eu for tentar realmente resolver os problemas ...(?). Agora, há coi-
sas que você tem a obrigação de pensar. São aquelas coisas nas
quais resultará efetivamente um benefı́cio para você, para a sua
famı́lia, para os seus amigos, para o mundo em geral, essas sim,
e não aquelas que te atormentam. Quem disse que o teu tormento

581
22 Preleção XXII

é útil? Às vezes acontece de você estar atormentado por um pro-


blema e a solução dele ser muito útil, mas em geral não é assim.
Você se atormenta muito por uma coisa cuja solução beneficiaria
um número muito pequeno de pessoas ou até um aspecto muito
pequeno de você mesmo. Então é uma questão de você ter res-
peito pelo pensamento e saber que você tem uma energia psı́quica
inesgotável e tem que aplicar muito bem aquilo.
práxis é prática. Aquilo que você tem prática você sabe fazer,
aquilo que você não tem, você não sabe. Pior ainda, o ensino
prático é um dos mais difı́ceis de transmitir porque precisa de
muito tempo, precisa praticar. Então, quando surgem os proble-
mas você não tem a menor prática, então você não tem solução
prática. Pode ser que você encontre a solução teórica, só que você
não precisa mais, a não ser que você tenha a felicidade de encon-
trar uma pessoa que saiba a solução daquilo, daı́ ela resolve para
você. Mas isto geralmente não acontece. Eu estou falando isto
porque todo brasileiro tem muito complexo em solucionar os pro-
blemas práticos. Mas, não é para ter complexo nenhum, a culpa
não é nossa, são os outros que criaram os problemas para nós, não
fomos nós.
Quanta gente que você vê que tem um baita complexo de culpa
porque não tem dinheiro para comprar não-sei-o-quê que o filho
quer. O culpado é quem meteu na cabeça do filho que ele precisa
ter aquilo! Isso é uma sacanagem, você é uma vı́tima, você não
pode se sentir culpado. O cara toda hora inventa mais um ...(?),
cada vez mais caro, e as crianças sentem aquilo como uma ne-
cessidade, mas o quê que é isso!!... Se você educar direitinho as
crianças elas não vão nem ficar precisando daquilo.
Então, aparece no seu consultório médico um problema simples,
que você já viu mil vezes, você usa o seu saber prático que resolve.
Agora, vamos supor que surge um caso inédito, uma doença nova.
Ia dar tempo de você pesquisar a solução daquilo? você ia pesqui-

582
22 Preleção XXII

sar a solução, encontrar uma solução teórica, apostar, para depois


curar o cara? Quando você fizer isto o cara já está morto!
A prática e a teoria são mundos quase incomunicáveis. A teoria
e o saber teórico são muito úteis para a humanidade. Você ajuda
a comunidade, ajuda a você, ajuda a todo mundo, você não tem
que ter o saber prático. Quando você tem, você usa, quando não
tem, você perdeu. Eu encontrei muito poucas pessoas que tinham
uma sabedoria prática vasta. Dr. Müller(?) era uma delas; era um
solucionador de problemas práticos; era incrı́vel a quantidade de
conhecimentos práticos que o homem tinha, mas ele tinha vivido
vinte vidas numa só. Então, quase toda situação que você apresen-
tava para ele, ele já conhecia porque ele já tinha visto. Se era um
negócio novo, ele não se metia, ele falava, “Não sei, isso aı́ eu não
sei, eu não posso te ajudar...”
Agora, por quê o sujeito não pode aceitar a derrota jamais? Por
quê ele tem que sair vencedor em tudo? Aı́, é aquele problema do
Fernando Pessoa, “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, só
eu!” Só eu apanho, só eu perco, só eu sou um idiota perfeito, os
outros estão sempre certos...

583
23 Preleção XXIII
22 de maio de 1993

[ Olavo faz uma breve repetição da aula anterior ]


A tendência de permanecer num estado de equilı́brio mostra
um predomı́nio da assimilação. Assimilação quer dizer, tornar
similar, ou seja, dos dados apreendidos eu conservo aqui o que
é similar ao que eu já tenho. Prestem bem atenção, eu já te-
nho certas estruturas, certos esquemas montados, e do dado que
eu conservo somente aquilo que é coerente com o dos esquemas,
então isto se chama assimilação. Você conserva o similar e des-
preza o diferente. Você conserva o homogêneo e despreza o he-
terogêneo. Então, nesse caso, pode haver uma assimilação sem a
acomodação, isto é, sem a geração de novos esquemas que permi-
tam, não a adaptação do objeto a você, mas a adaptação de você
ao objeto.
Ora, a assimilação sem a acomodação é o que nós chamamos
sı́mbolos. Quando você produz um sı́mbolo, ele é suficiente para
que você, partindo de um dado, se refira a outro. Mas acontece
que desse outro você só sabe aquilo que é similar ao sı́mbolo, você
não leva em conta a diferença. Acomodação seria você fazer um
novo esquema que você ainda não tem para você dar conta de um
heterogêneo.
Enquanto nós estamos falando de assimilação, nós estamos fa-
zendo generalizações de esquemas que nós já temos, ou seja, as
regras e os esquemas que você já tem são suficientes para ir abar-

584
23 Preleção XXIII

cando todos os novos dados. Só na hora que a generalização falha


é que você tem que fazer uma acomodação. Você tem que gerar
uma nova lei, um novo princı́pio. Por exemplo, nessas cadeias de
analogia que você faz em Astrologia, quando você associa o ouro
ao Leão, o Leão ao Sol, e assim por diante, o que você está vendo
entre esses vários seres? Somente o similar. A diferença não im-
porta, ou seja, você tendo um desses dados é suficiente para que
você por mera generalização atribua esquemas e ele comporta o
outro também. No mesmo esquema que cabe o outro, cabe o Leão.
Agora, qual é a diferença entre o ouro e o Leão? Não é partindo
das mesmas qualidades que tornam o ouro, leonino, ou tornam o
Leão, áureo, que você vai perceber a diferença entre eles.
Então, o pensamento simbólico é a primeira e mais elementar
expressão da razão. Por isso que o sujeito que diz que o pensa-
mento simbólico não ...(?) o pensamento racional do outro, sim-
plesmente não sabe o que fala, porque o pensamento simbólico é
a própria razão na sua primeira e mais elementar operação que é
essa de assimilação.
Na verdade, o que te obriga a uma acomodação é a faculdade
contrária, intuitiva, que te chama para um dado diferente e te
obriga a gerar novos esquemas e a perceber diferenças entre es-
ses dados e os anteriores. É claro que a razão seja a faculdade de
estabilização do conhecimento, e a intuição seja a faculdade da sua
ampliação. Note bem, se você deixar a razão funcionando por si
ela só faz assimilação. Como ela é uma faculdade de estabilização,
estabilizou, ela pára. É somente a entrada de novos dados incom-
patı́veis que força o processo de acomodação. Quer dizer, se dei-
xasse, estava todo mundo pensando simbolicamente até hoje. E se-
ria racional. O simbolismo é uma forma de generalização. Quando
você agrupa vários seres sob o mesmo sı́mbolo, o quê você fez?
Você generalizou. O quê é isso? É a razão. Os esquemas de
acomodação e assimilação são de Piaget, só que esta explicação

585
23 Preleção XXIII

que eu estou dando é outra coisa. A idéia de que a razão funciona


por um processo de equilı́brio orgânico é dele. O que não quer
dizer que o equilı́brio orgânico basta para explicar a razão, mas
ela seria uma forma, a razão é uma espécie de equilı́brio orgânico.
A própria idéia do pensamento simbólico já é a própria razão em
operação, e se deixar que a razão funcione exclusivamente pela sua
própria dinâmica ela vai parar por aı́ mesmo. Se isso aı́ basta para
estabilizar o organismo, para ela está bem, está feito o serviço.
Mas acontece que você cresce, você percebe, você toma nota
de outros fatos, e você sente a necessidade de criar novos esque-
mas, então você obriga a razão a funcionar da mesma maneira, a
funcionar e a gerar novos esquemas e é isso aı́ que você chama de
acomodação. Os termos assimilação e acomodação são um pouco
enganosos porque dá a impressão que assimilação é acomodação.
O mais certo seria dizer, assimilação e adaptação. A assimilação é
a acomodação dos dados aos velhos esquemas, então seria melhor
chamá-lo de adaptação. Adaptação seria a faculdade de gerar no-
vos esquemas, baseados nos dados, e não nos esquemas anteriores.
Isto quer dizer que normalmente todos os nossos pensamen-
tos só têm valor simbólico. Os nossos pensamentos do dia-a-
dia só têm valor simbólico. Nós nos orientamos no dia-a-dia
com base no pensamento simbólico, que mostra apenas a nossa
coerência interna e nada diz sobre os dados em si mesmos. En-
quanto você está agindo segundo as suas vias costumeiras é evi-
dente que não existe acomodação no sentido piagetiano, isto é ape-
nas assimilação. Você está usando os mesmos esquemas, isso aı́ te
basta.
Então, até aı́ nós só podemos dizer que o seu pensamento tem
um valor simbólico. Na hora que você produz um sı́mbolo da
situação, isso aı́ te acalma. Claro, se você não tem nem sı́mbolo,
então o dado fica heterogêneo, o dado é estranho às estruturas já
montadas da psique. Ela produz o sı́mbolo do jeito que você as-

586
23 Preleção XXIII

similou, então ele se parece semelhante a outros dados anteriores.


Agora, que validade tem isso? É uma validade simbólica apenas.
Você encontrou um meio de simbolizar o fato, isto é, de encaixá-lo
dentro dos esquemas simbólicos já existentes. Vejam que isso aı́
sossega a alma. Se o sujeito já sabe o nome da coisa ele pensa que
já sabe o que é — por quê? Porque ele assimilou, porque aquilo
existe dentro do vocabulário dele e portanto não é coisa nova. Por
exemplo, o UFO você não sabe o que é, mas você já tem o nome,
então é UFO, e pronto! Então, justo na hora que você tem aquela
tranqüilidade de que você sabe o que se passa, eu digo, bom, aı́ é
que você está mais ignorante. Se você não tem esquema nenhum,
não tem nome para a coisa, você fica aterrorizado; produzindo
sı́mbolos, já integrou a um esquema anterior, o fato lhe parece se-
melhante a outros anteriores e você fica sossegado. Então, o nome
já é um sı́mbolo.
Quando você diz “homens primitivos”, isto é um esquema.
Quem diz que o ı́ndio é primitivo? Por quê o ı́ndio não poderia
ser um povo muito antigo e decadente? É exatamente o contrário
do primitivo. Você sabe? É claro que não sabe. Então basta dizer
que são homens primitivos que está tudo explicado, então sosse-
gou. O que você fez foi uma analogia, “no tempo do meu bisavô
podia ser que nós andássemos assim, todos pelados”, então você
fez uma analogia de proporção. “Entre esse ı́ndio na sua fase e eu
na minha fase”, você fez uma analogia de proporção. Isto te sos-
sega, acalma, e te dá a impressão que você sabe, mas é justamente
aı́ que você está mais ignorante, porque você só sabe do fato aquilo
que você já sabia a respeito de fatos anteriores, e você não tem a
menor condição de verificar se isto é assim mesmo.
Prestem bem atenção, a impressão de comodidade, de estabili-
dade da mente, que te dá o sentimento habitual de certeza, este é
o mais enganoso que há. A calma impede a procura da verdade.
É como se você negasse a novidade das diferenças de um fato,

587
23 Preleção XXIII

você nega o heterogêneo. Apaga o que tem de heterogêneo e con-


serva só o homogêneo, ou seja, você viu no fato uma imagem de
você mesmo. Você está em pleno solepcismo, você só fala de você
mesmo. Acreditando que fala do fato, está falando de você, e isso
mesmo é que é o idiota. Idios quer dizer eu mesmo. O sujeito
só conhece ele mesmo. O quê é um idiota? É um sujeito incapaz
de transcender o cı́rculo da assimilação, o cı́rculo da homogenei-
dade. Quer dizer que o idiota jamais ficará perturbado diante de
um fato novo porque ele não vai nem perceber que aconteceu um
fato novo. Para o idiota tudo o que ele vê é uma auto-imagem
dele mesmo, isto é, daquilo que ele já sabe dele mesmo, ou seja, é
um sujeito que não percebe coisas novas nem sequer em si mesmo
porque senão ele teria que perceber o outro nele.
Quanto mais a firmeza, a tranqüilidade, mais ou menos impen-
sada com que o sujeito fala de um assunto, mais você pode ter cer-
teza de que ele ignora o negócio completamente. Quando surge a
discussão, ela é uma espécie de defesa da homogeneidade. O su-
jeito discute porque não quer ficar num estado de insegurança, ele
discute com o outro porque ele não quer discutir consigo mesmo.
Ele persevera na sua posição. Então, cada um fala a sua opinião,
expressa a sua opinião, e não admite a entrada da outra opinião.
Ele não cogita da outra opinião como uma possibilidade real, ou
seja, “Eu não admito pensar como você nem por um minuto”,
então se eu não admito, a sua opinião de fato não entrou e eu
perseverei na minha dentro do cı́rculo da minha homogeneidade.
Por outro lado, se eu admitir a sua opinião como uma possibili-
dade, eu vou ter que pensar como você pelo menos durante algum
tempo, e pode ser que eu fazendo isto, entre no meu circuito al-
guma idéia que me é totalmente estranha, e eu vou ficar inseguro
naturalmente, então eu vou ter que gerar um novo esquema e vou
ter uma trabalheira enorme. Pode ser até que essa trabalheira volte
a restaurar a minha opinião anterior, porém já aumentada. Por

588
23 Preleção XXIII

exemplo, eu posso perseverar na minha opinião, mas há que ter


assimilado, por assim dizer, a do outro.
Você pode, a partir daı́, observar as discussões de botequim, os
debates de televisão, e você vê que geralmente as opiniões são
impermeáveis umas às outras. O fato do sujeito ser educado não
tem nada que ver com isso. Existe uma maneira grosseira e uma
maneira polida de você se tornar impermeável, mas em geral não
existe nenhum intercâmbio de idéias, e portanto não é uma dis-
cussão que verse sobre os objetos, mas ela versa exclusivamente
sobre as pessoas. Então, não é errado dizer que é uma discussão
de idiotas, onde não pode sair nada. Quando um fala o outro não
ouve. Não existe uma unidade lógica nessa discussão, existe ape-
nas uma unidade espacial, ou seja, as pessoas estão nos mesmos
lugares. É assim, mas com rarı́ssimas exceções!
Ouvir ou não ouvir é uma questão de educação, mas mesmo
supondo que ouça com a maior atenção, o problema não é esse,
você teria que pensar a opinião do outro. Agora, se você já refuta
a opinião, aı́ dançou... Mas é claro que o contexto corrente da dis-
cussão é exatamente isto, quer dizer, você supõe que de várias pes-
soas falando, cada uma colocando a sua posição, vai ser possı́vel
alguém tirar uma média. Você supõe que existe um árbitro capaz
de dialetizar tudo, capaz de assimilar todas as opiniões e de criar
uma terceira que faça a sı́ntese, mas o fato é que isso aı́ não existe,
porque a coisa é colocada de tal maneira que as pessoas possam
aderir a uma corrente ou a outra corrente. Então não existe de fato
a dialética.
Discussão dialética é pensar junto. Pensar junto é usar o cérebro
do outro como se fosse o seu mesmo, quer dizer, você encarrega
o outro de fazer o antagonismo. Ao invés de você ter que falar
o sim e o não, você fala o sim e o outro fala o não, só para te
poupar trabalho. Isto é que seria uma discussão dialética. Isto
quer dizer que a parte negativa está dentro do conjunto do seu

589
23 Preleção XXIII

pensamento. No fim, quando você chegar a uma conclusão, ou


não chegar a conclusão alguma, você tem certeza que abarcou as
várias possibilidades e por isso mesmo que você está dentro do
que se chama probabilidade razoável. Porém, se ficarmos cada um
só na auto-expressão, nós estamos dentro da esfera do verossı́mil,
ou seja, aquilo me parece verdadeiro. Essa sensação de estabili-
dade e de concordância consigo mesmo, é isso que faz você ter
a verossimilhança. A verossimilhança lhe basta, ela convence a
você. A verossimilhança é uma impressão de veracidade, é um
sentimento de veracidade, e é justamente isso aı́ que você sente
quando diz que concorda ou discorda.
Quando você fala probabilidade razoável, daı́ você já passou
para um outro plano, que é um plano de obrigatoriedade, isto é,
qualquer pessoa que examine essa mesma questão, com esses da-
dos e com esses vários aspectos, terá que chegar à mesma pro-
babilidade, como se fosse um cálculo matemático, então tem um
valor normativo. Não é que isso me parece verdadeiro, é que
isso tem realmente uma probabilidade razoável maior do que a
série contrária, e que assim se demonstrará a qualquer pessoa que
examine a coisa levando em conta esses mesmos dados, portanto
já não é mais uma opinião. É o que nós chamarı́amos de uma
opinião fundamentada. Porém, para chegar a isto é absolutamente
necessário que você admita as várias possibilidades opostas como
igualmente razoáveis. Partindo do princı́pio de que todas podem
ser, nós vamos somar — ou diminuir — para ver o que dá no fim.
Esse conjunto de operações que compara, que estabelece as várias
contraposições de opiniões e de argumentos, e que vai ver não só a
consistência de cada um, mas as conseqüências possı́veis dele —
comparar as conseqüências de um com as conseqüências de outro,
comparar os fundamentos de um com os fundamentos de outros
— é isso aı́ que é dialética.
Claro que é impossı́vel fazer isso se você não tem paciência

590
23 Preleção XXIII

com uma das opiniões. Se uma das opiniões te choca, se ela te é


desagradável, então é evidente que você não vai conceder a ela a
mesma atenção que você concedeu a outra, então o resultado do
cálculo está impossibilitado. Quando você faz ginástica, o movi-
mento da ginástica não tem uma contradição? Você não força um
músculo contra o outro, um músculo contra a gravidade, você não
faz isto? E se você não forçar? Então não tem ginástica nenhuma,
você ficou na posição de estabilidade. Quando você faz ginástica,
você só vai reencontrar a posição cômoda no fim, acrescido de
um bem-estar maior, mas isso depois de um esforço. De qualquer
modo, nós podemos dizer que a dialética é uma ginástica da mente
que permite uma ...(?)(troca de fitas)
Aqui Husserl está concedendo às duas hipóteses igual peso, até
chegar a uma arbitragem final que eu acredito que ele vá chegar
aqui, e vai passar a uma questão por uma impossibilidade, quer di-
zer, a tese psicologista vai se defrontar com uma impossibilidade
de prosseguir adiante. De fato, a dialética vai se parecer com um
cálculo, vai se parecer com um jogo de xadrez, com uma progres-
siva eliminação de possibilidades.
É muitı́ssimo raro você ver alguém hoje em dia fazendo isto
aqui a respeito de qualquer questão. Se você quer saber, eu nunca
vi. Já vi milhões de discussões sobre milhões de assuntos, e eu
nunca vi ninguém fazer isto aqui: pegar um lado, pegar o outro,
somar, com uma certa higiene...
[ Olavo retorna ao texto do Husserl propondo um retorno ao
20 ]
20. Um vazio na demonstração da tese psicologista.
Com estas e outras semelhantes argumentações, os anti-
psicologistas aparecem inegavelmente em situação desvantajosa.
Há, contudo uma coisa que deveria excitar a admiração filosófica:
o fato de que tenha existido e continue existindo uma discussão.
Se tudo fosse realmente plano e claro como asseguram os psicolo-

591
23 Preleção XXIII

gistas, esta situação não seria muito compreensı́vel. A verdade não


estará uma vez mais sendo cortada ao meio? Não terá encontrado,
cada uma das partes, um bom fragmento de verdade, mostrando-se
incapaz para delimitá-lo com rigor conceptual?
Se cada uma tivesse uma visão clara exatamente do que é ...(?)
encontrou, seria fácil você perceber uma relação entre uma e outra.
Se não está dando para fazer é porque nenhuma das duas sabe o
que está falando.
Tomemos a questão anteriormente colocada sobre os fundamen-
tos teoréticos essenciais da lógica normativa. Estaria realmente
resolvida pela argumentação dos psicologistas? Quanto a isto, as-
sinalamos em seguida um ponto débil. O argumento demonstra
somente que a psicologia é co-participante na fundação da lógica.
Mas isto não significa que ela seja o fundamento essencial. Fica
aberta a possibilidade de que outra ciência também contribua à
fundação. Aqui pode ser o lugar daquela “lógica pura”, que deve
ter uma existência independente de toda psicologia.
A propósito disto aqui, vejam o que nós falamos ontem sobre
fato e norma. Primeiro nós vimos a negação kanteana de que existe
uma passagem do fato à norma. Eu digo que essa negação não tem
cabimento porque existem fatos que por si mesmos demandam a
norma. Nós demos o exemplo do fato de você ter dois pés, e este
fato requer uma norma de que você não deve se privar de nenhum
deles; do fato de que você tem uma cabeça, se requer a norma de
que você não deva cortá-la; do fato de que você tenha dois olhos,
você deve deduzir a norma de que você não deve furar nenhum dos
dois, e assim por diante.
Portanto, existe uma passagem do fato à norma, mas existe um
outro lado: o fato pode exigir a norma, mas ele pode fundamentar
a norma por si mesmo? Nós podemos entender que existem fatos
que exigem a norma e que não podem sequer serem concebidos
como fatos independente da norma. Isto quer dizer que o real tem

592
23 Preleção XXIII

por si mesmo um conteúdo normativo, até aı́ tudo bem, o velho


Kant estava errado. Porém, o fato pode ser, por si, o fundamento
da norma?
Segundo Kant, fato e norma não se interpenetram, mas nós aqui
dizemos que existem fatos que não podem sequer ser concebidos
como fatos se você não atribuir um valor a eles, portanto tem uma
norma implı́cita, mas isto não quer dizer que o fato seja ele mesmo
o fundamento da norma. Por exemplo, se um homem furasse os
próprios olhos, poderia ser fundamentado se você conseguir de-
monstrar o valor da cegueira. Então, do fato de você ter olhos se
deduz que aquilo que existe deve perseverar na existência, por-
tanto os olhos devem continuar a enxergar — pronto! Agora, que
a visão seja preferı́vel à cegueira, isto é uma norma que não se
deduz da pura e simples existência de olhos, porque você preci-
saria levar em conta também a existência da cegueira, a qual não
está mencionada na existência de olhos. Então, a norma tem uma
relação entre a visão e a cegueira e não uma mera decorrência da
visão em si mesmo.
Ora, uma relação entre uma coisa e outra não pode ser deduzida
na mera existência de uma só delas. Por exemplo, quando você
diz que é preferı́vel fazer o bem ao mal, isso aı́ não decorre da
mera existência de bens, mas da possibilidade de um bem e de um
mal. Então é uma comparação; essa norma é comparativa. Como
você não pode fazer uma comparação entre duas coisas onde você
só tem uma, então a existência de uma não pode, por si mesma,
fundar uma norma de referência. Portanto, o fato pode requerer
uma norma, quer dizer, com base no fato você pode entender que
deve existir uma norma, mas ele por si não fundamenta a norma.
Toda norma estabelece uma relação, toda e qualquer norma.
Qual é a fórmula lógica de uma norma? “Para que A seja um
bom B é necessário C”, ou, “para que A seja um bom B basta
que...”, só tem estas duas fórmulas, então você tem que ter A e B.

593
23 Preleção XXIII

Então, da mera existência de A nós não poderı́amos estabelecer se


ela é um B, ou um C, ou um D.
Ora, o que ele está dizendo aqui, ele quer dizer que os fatos psi-
cológicos observados demandam uma existência de uma lógica,
mas não quer dizer que a fundamentem. Então, quando um psi-
cologista diz que o pensamento lógico é apenas um caso em es-
pecial do pensamento que existe, ele está dizendo o seguinte: se
existe o pensamento, então deve existir dentro das possibilidades
do pensamento, então deve existir dentro das possibilidades do
pensamento, um que seja o pensamento certo, ou o pensamento
lógico. Claro, isto é requerido pela própria existência do pen-
samento. Pelo fato de que existe o pensamento, devemos poder
admitir que existe como possibilidade um pensamento lógico, ou
seja, dito de outro modo, da existência do pensamento nós não po-
demos excluir a existência de um pensamento lógico. Então, eis
aı́ um fato que requer uma norma. Mas, requerer é uma coisa, e
fundamentar é outra muito diferente.
Capı́tulo 4
CONSEQUÊNCIAS EMPIRISTAS DO PSICOLOGISMO
21. Notificação de duas conseqüências empiristas da posição
psicologista e sua refutação.
Situemo-nos, por um momento, no terreno da lógica psicolo-
gista, admitindo que os fundamentos teoréticos essenciais dos pre-
ceitos da lógica residem na psicologia. Qualquer que seja o modo
que se defina esta disciplina, há unanimidade em torno do con-
ceito de que a psicologia carece, até aqui, de leis autênticas e,
portanto, exatas, e que as proposições são somente generalizações
da experiência, enunciados de aproximadas regularidades na coe-
xistência ou nas sucessões dos fatos.
Bastaria isto aqui para parar a tese psicologista, porque de um
lado a Psicologia é uma ciência, portanto ela tem um fundamento
lógico; de outro lado ela não conseguiu ainda criar nenhuma lei

594
23 Preleção XXIII

psicológica exata. Isto quer dizer que ela não tem o fundamento
da sua própria cientificidade.
Se a Lógica tem um fundamento psicológico, e ao mesmo
tempo a Psicologia é uma ciência, então é absolutamente ne-
cessário que a Psicologia, para ser ciência, já possua esse funda-
mento. E que fundamentos são esses? Na leis psicológicas. Como
não existem ainda as leis psicológicas, então aı́ caı́mos numa im-
possibilidade. Se ela é uma ciência não é o seu próprio funda-
mento, e se ela é seu próprio fundamento, ela não é ciência. Dos
fatos psicológicos deverı́amos poder deduzir leis que fundassem
retroativamente a própria Psicologia, então essa hipótese é um
pouco esquisita mas ainda assim poderı́amos admiti- la... Porém,
o fato é que essas leis não foram induzidas ainda, e a Psicologia
já se oferece como ciência. Então, ela afirma sua própria cientifi-
cidade com base em leis que ela não encontrou ainda mas que ela
vai encontrar no futuro!?!... Aqui nós chegamos de fato à impos-
sibilidade absoluta.
Quer dizer que todo argumento psicologista pressupõe que a
Psicologia já existe, já encontrou os fundamentos da Lógica e por
isso mesmo ela pode afirmar que ela mesma é ciência, mas o fato
é que ela não encontrou ainda. Se o fundamento da Lógica é psi-
cológico, quer dizer, reside em leis que foram tiradas por indução
da observação dos fatos psicológicos, e se por outro lado a Psico-
logia já é uma ciência, isso significa que a Psicologia já observou
esses fatos, já induziu deles as leis, e já fundamentou a sua própria
cientificidade, mas o fato é que a Psicologia não encontrou ne-
nhuma lei exata ainda a respeito do fundamento da mente. Se ela
não encontrou ainda, então não pode ser ciência ainda. Então,
como é que ela proclama a sua cientificidade com base nas leis
que ela pretende encontrar no futuro? Bom, aı́ o negócio fedeu,
não é? Aqui o psicologismo como tese filosófica foi refutado de
uma vez para sempre. Nunca mais ninguém insistiu nessa tese, o

595
23 Preleção XXIII

que não quer dizer que não tenham continuado a praticá-la...


De fato, a discussão sobre o psicologismo como teoria morreu,
porém como prática ele não morreu não. Ele continua a ser prati-
cado sem ser discutido e sem tentar provar a sua própria validade.
E isso aı́ é uma sacanagem!
Então, esse tema sai da discussão filosófica, ou seja, que o
fundamento da Lógica é psicológico ninguém mais tentou fun-
damentar contra a hipótese da Lógica pura. A discussão Lógica
pura/Lógica psicológica nunca mais aconteceu, apagou.
Porém, de certo modo, o tiro saiu pela culatra porque uma vez
morta a discussão, o psicologismo continua a ser praticado, ape-
nas sem tentar um confronto com a idéia da Lógica pura. Cada um
foi para a sua casa, e cada um continua praticando o que achava
sem tentar confrontar com a tese do outro. Então, por exemplo,
em toda a Sociologia, em toda a Antropologia contemporânea, vi-
gora a Psicologia, só que sem discussão com a hipótese da Lógica
pura. E também na cabeça de todo mundo a opinião é generali-
zada. Com esse psicologismo praticado sem confronto, ele pode
até passar como uma verdade absoluta, porque não tem contrário.
Foi adotado aı́ no que o Lidell Hart chamaria de “ação indireta”,
ou seja, ao invés de confrontar com a hipótese da Lógica pura,
nós vamos aqui praticando o psicologismo como quem não quer
nada... comendo pelas beiradas...
Então, basta isto aqui para vocês entenderem que quase toda
ciência social do século XX, todinha ela somada não vale absolu-
tamente nada, ela não é ciência de maneira alguma: Sociologia é
empulhação, Psicologia é empulhação, Economia é empulhação,
tudo, tudo, tudo... não sobra quase nada porque quase tudo está
baseado em conceitos impossı́veis. Por quê nenhum sociólogo
consegue oferecer sequer uma definição de Sociologia? Por quê
nenhum psicólogo consegue oferecer uma definição de Psicolo-
gia? E assim por diante, nenhum antropólogo oferece a definição

596
23 Preleção XXIII

de Antropologia, nem mesmo isso, e no entanto continuam prati-


cando...
O pessoal da ciência exata têm toda a razão de ver essas coi-
sas como pseudo-ciências. O pessoal da Fı́sica, da Matemática,
tem toda razão de torcer o nariz diante disso, porque é sacanagem
mesmo. Não é uma necessidade, ou seja, não é preciso que es-
sas áreas sejam pseudo-ciências, mas que de fato elas são, são!
Por quê? Porque elas se baseiam numa hipótese que já de an-
temão se demonstra inviável. Por exemplo, essa escola desse Mar-
cel Mauss, que é um antropólogo de maior influência no Brasil, e
ele vai tentar mostrar de como que as categorias da Lógica saem
de uma transposição das instituições sociais. Ele é louco! Com-
pletamente doido! Não há necessidade de discutir esta hipótese.
Não há o que ele queria dizer que existe uma analogia entre as ca-
tegorias da Lógica que vão sendo descobertas, aliás, esta analogia
existe necessariamente, porém você dizer que uma coisa funda-
menta a outra, cest le fin de la piquée... E todo mundo acredita
nisso. E isso se não partir para a interpretação psicanalı́stica que
diz que as categorias da Lógica estão no superego, que foi o papai
que impôs a você, que isso é uma tirania... Quanta gente já disse
que as categorias da Lógica saem da gramática. Mesmo histori-
camente a primeira formulação de gramática grega é posterior; a
gramática grega começa a se formar no século I A.C., ou seja, dois
séculos depois de Aristóteles! Vejam, inclusive a gramática não é
uma coisa necessária. Você pode ter uma lı́ngua com regras gra-
maticais mais ou menos implı́citas durante séculos. a gramática
hebraica surge no século IX da nossa era. Não havia gramática he-
braica, no entanto os indivı́duos já falavam hebraico. Agora, você
dizer que sai da gramática é uma coisa, dizer que sai da linguagem
é outra. Também você poderia dizer que sai da linguagem, mas
mesmo isso é errado.
Então, a última novidade seria você dizer que a lei da identidade

597
23 Preleção XXIII

sai da idéia de significação. Como é que você vai fazer o primeiro


signo se você não tem a identidade? A idéia de princı́pios lógicos
ideais é uma idéia que para muitos caras das ciências humanas é
repugnante, eles não gostam, eles odeiam. Eles querem provar que
a vida social é tudo, e que tudo surge no curso da multidão(?), no
curso da conubis et commercio.
Outro dia eu estava lendo Piaget, e ele disse que o princı́pio de
identidade não pode ser universal por causa da seguinte coisa: se
você pega sete bolinhas, mostra para um garoto de cinco anos e
pergunta quantas têm, ele diz que são sete. Daı́ você dispõe as
bolinhas com um espacejamento maior e pergunta quantas são, e
ele diz que são nove. Então, diz Piaget, “É o mesmo princı́pio de
identidade, ou é outro princı́pio? Então deve ser universal, porque
ele surgirá do aprendizado”. Isto aqui é uma asneira atroz! Ele diz
que o garoto não reconhece a identidade. O garoto não conhece
é a distinção entre quantidade contı́nua e quantidade discreta, se-
parado, descontı́nuo. Mas, eu pergunto, o quê isso tem que ver
com o princı́pio de identidade? Isso tem que ver com a forma da
quantidade. Ele descobriu que existe uma relação entre as ...(?) e
o desenvolvimento biológico, porém daı́ ele confunde causa com
fundamento, como todo psicologista. Ele ...(?) porque você vai
descobrindo certas coisas no curso da evolução psicológica, é que
você vai ter um fundamento da coisa.
Então ele não sabe o que é Lógica, porque no caso aqui o quê
aconteceu? O garoto confundiu a quantidade discreta com a quan-
tidade contı́nua, ou seja, ele não consegue conceber as bolinhas
apenas como um conjunto matemático, concebe as bolinhas como
uma figura concreta no espaço, e não distingue entre a figura con-
creta e o conjunto matemático abstrato. É somente isso, porém ele
sabe que é o mesmo. O próprio Piaget se trai quando ele diz que o
garoto vê o conjunto como se fosse um elástico; sim, o elástico se
esticou, ele não é outro. Então, é o mesmo conjunto que cresceu,

598
23 Preleção XXIII

magicamente. Porém, se o garoto não tivesse a identidade, como


é que ele poderia falar desta soma, deste aumento ou diminuição?
Aumento e diminuição é uma coisa que só pode acontecer a aquilo
que é idêntico. Se aqui eu pego um conjunto de sete e lá eu pego
um conjunto de nove, não é este conjunto que cresceu, é outro con-
junto apenas. Por quê isso? É o ódio do princı́pio de identidade,
ele não quer...
A idéia de que esses princı́pios, uma vez descobertos, eles va-
liam de uma vez para sempre, é uma idéia que parece muito re-
pugnante a certas pessoas que querem provar que a dois mil anos
atrás as pessoas só podiam pensar de maneira tosca, e de que é
necessário que a evolução da Ciência recoloque outros fundamen-
tos completamente diferentes. a própria Ciência moderna, no dia
que ela faz uma pequena descoberta, ela se permite contestar o
próprio fundamento que permite a sua existência. Agora, por quê
querem fazer isto? Por um motivo muito simples, é o problema da
autoridade da comunidade cientı́fica.
Vejam, Aristóteles está morto, Platão está morto, Plotino está
morto, e não podem se defender e não têm interesse ...(?), mas
esta camada cientı́fica tem o interesse. Quer dizer, você se coloca
fora da fiscalização da História, e você é o fiscal da História. É
uma verdade que se coloca acima de todos os interesses. Isto é
corporativismo, interesse de classe.
[ Troca de fitas — uma parte dos comentários se perdeu ]
Também, se você rompe com todo esse clima de tradição, o quê
lhe resta senão perguntar à presente geração de cientistas qual é a
verdade?
Isto quer dizer que toda e qualquer atividade especulativo-
cientı́fica que se coloque fora dos quadros admitidos por uma certa
fatia de acadêmicos é toda tomada como ilegı́tima, imediatamente.
Então, no fundo, é só interesse de classe. E em nome desse inte-
resse de classe começam a aparecer as coisas do Georg Cantor, do

599
23 Preleção XXIII

Piaget, e mais uma série de outras absurdidades desse tipo.


Por outro lado, como essas coisas são faladas para pessoas cujos
mestres são esses mesmos, ninguém sai desse circuito, ninguém
examina essa coisa de fora. Quer dizer, essa bobajada toda tem
um poder..., esse Marcel Maus, no Brasil, falou, é a mesma coisa
que o Papa ter falado...
Você imagina a Sociologia como uma ciência incapaz de definir
o seu próprio objeto? E ela agora passa a ser o fundamento da
Lógica?! As pessoas esquecem que ser o fundamento da Lógica
seria o mesmo que ser o fundamento da Matemática, porque há
identidade perfeita entre a Aritmética elementar e a Lógica. Então,
é só você trocar a palavra Lógica pela palavra Matemática que
você vê o absurdo que esses caras estão falando. Quer dizer que
o fundamento da Matemática deve ser encontrado na Sociologia,
a qual é incapaz de formar uma única lei! Quer dizer que se 2 +
2 são 4 isso dependerá de uma verificação sociológica?! Como
o sociólogo não estuda Matemática, e está pouco interessado nos
fundamentos da Matemática, ele pode dizer essas coisas com a
maior cara-de-pau.
Tão logo assumimos a tarefa de formular de um modo adequado
seu sentido empiricamente legı́timo, as chamadas leis psicológicas
perdem o caráter de leis. Desta suposição resultam conseqüências
muito graves para os lógicos psicologistas:
1) Sobre bases teoréticas vagas só podem fundar-se regras va-
gas. Se as leis psicológicas carecem de exatidão, o mesmo deve
suceder aos preceitos da lógica. Mas justamente as chamadas leis
lógicas em sentido estrito — os “princı́pios” lógicos, as leis da si-
logı́stica, as leis das muitas formas de raciocı́nio, etc –, são de uma
exatidão absoluta.
A inesgotável multidão das leis matemáticas puras, também en-
tra na esfera das leis lógicas exatas.
2) Nenhuma lei natural é cognoscı́vel a priori — pelo simples

600
23 Preleção XXIII

fato de que são deduzidas da experiência –, nem demonstrável com


evidência intelectiva. O único caminho para demonstrar e justifi-
car uma lei semelhante é a indução. Mas a indução não demonstra
a validez da lei. Ela demonstra somente a probabilidade mais ou
menos alta desta validez.
Portanto, se for por este raciocı́nio, 2 + 2 tem uma elevada pos-
sibilidade de dar 4. Se você começar a raciocinar como Marcel
Mauss, você chega a isso aı́, onde que segundo tudo o que os es-
tudos sociológicos vêm indicando até aqui, 2 + 2 muito prova-
velmente dará 4. Agora, o quê significa uma probabilidade não-
quantificável e o quê significaria o quantificável sem a exatidão da
teoria matemática, eu também não sei. Se você não pode quanti-
ficar a possibilidade, o quê ela significa? Nada. Não por uma im-
possibilidade prática, mas porque a probabilidade não poderia por
sua vez ser quantificada segundo uma quantificação meramente
provável, onde 2 significa mais ou menos 2.
Então, chega uma hora que você tem que chegar na exatidão.
Com base numa matemática exata você faz uma quantificação da
probabilidade. A probabilidade se sustenta na própria Matemática,
ao qual é pressuposta como medida da probabilidade. Então, o quê
significaria uma indução que não se fundamentasse na exatidão da
Matemática? Até para você dizer que uma determinada probabi-
lidade é imprecisa, por exemplo, aqui temos uma probabilidade
entre 32,5% e 93,5%, até para você poder dizer isto é preciso que
32,5 seja 32,5 e 93,5 seja 93,5!
Por conseguinte, também as leis psicológicas deveriam ter, sem
exceção, o traço de meras probabilidades. Nada parece mais pa-
tente, por outro lado, que o fato de que as leis “lógicas puras” são
todas válidas a priori.
Mas talvez nossas leis lógicas sejam somente “aproximações”
das leis do pensamento verdadeiramente válidas, ainda que ine-
xeqüı́veis para nós. Em se tratando de leis naturais, considerando-

601
23 Preleção XXIII

se seriamente e com razão tais possibilidades, ainda que a lei


da gravidade seja considerada hoje como uma lei absolutamente
válida. Sabemos a priori que há infinitas leis que podem e devem
dar o mesmo resultado que a lei da gravitação de Newton, reco-
mendada tão- somente por sua particular simplicidade;
Você pega determinados dados, faz determinados cálculos e
chega a uma descrição aproximativa suficiente. Quer dizer, ao
lado dessas leis poderiam haver uma infinidade de outras que dão
também o resultado suficiente. Então, dentro do resultado sufi-
ciente você escolhe o que lhe pareça o mais viável no sentido
prático, e isso é o máximo que uma ciência de indução pode che-
gar. Há uma descrição suficiente de um esquema, o conjunto de
fatos, que poderia ser montado e explicado de outras maneiras
também.
sabemos que já a simples busca de uma única lei verdadeira se-
ria insensata, dada a inexatidão das observações. Esta é a situação
nas ciências exatas de fatos. Mas de modo nenhum na lógica.
O que naquelas é uma possibilidade justificada, nesta se converte
num absurdo patente. Temos, com efeito, intelecção não da mera
probabilidade das leis lógicas, mas de sua veracidade.
Veracidade na qual se assenta a probabilidade e sem a qual você
não poderia pegar probabilidade alguma.
Por conseguinte, as expressões como “esferas de inexatidão”,
“meras aproximações”, e outras semelhantes, perdem aqui seu
possı́vel sentido. Mas aquilo que a fundamentação psicológica
tem como conseqüência é absurdo, ela mesma é absurda.
Contra a verdade mesma que apreendemos com intelecção, não
pode prevalecer a mais poderosa argumentação psicologista: a
probabilidade não pode lutar contra a verdade, nem a presunção
contra a intelecção.
Mesmo porque, a probabilidade também pode ser verdadeira ou
falsa, e se há possibilidade de um cálculo falso de probabilidade

602
23 Preleção XXIII

é porque existe a probabilidade do cálculo verdadeiro. Então, a


noção de probabilidade se fundamenta na noção de veracidade, por
exemplo, eu não poderia retroativamente fundamentá-la, e mesmo
que pudesse nós terı́amos uma pequeno problema: as chamadas
leis probabilı́sticas da Psicologia, se encarregadas de fundamentar
a Lógica, não foram descobertas ainda, e no entanto é nessas leis
que se fundamenta a cientificidade da própria Psicologia encarre-
gada de fundamentar a Lógica — - isto é alucinante! Então, aı́
acabou, dançou! Não tem nenhuma possibilidade porque aı́ você
chegou, vamos dizer, numa luta da veracidade contra a probabi-
lidade. O que não quer dizer que a questão esteja inteiramente
resolvida, ainda faltam alguns pequenos detalhes que ele verá para
diante.
[ intervalo da aula ]
Na medida em que ele foi remontando desde a questão imediata,
que é a questão que se a Lógica tem um fundamento psicológico,
ele foi convertendo esta questão até que ela chegasse num domı́nio
onde é possı́vel você obter uma evidência imediata, ou seja, ele
transfere a discussão ao plano dos próprios princı́pios lógicos.
Então, na hora onde você vai confrontar uma evidência primária
com a simples probabilidade,a evidência primária ganha eviden-
temente, e é assim mesmo que você vai chegar à arbitragem
de quaisquer questões. É preciso remontar desde a questão tal
como está até os seus princı́pios lógicos correspondentes, quer
dizer, o quê que está em questão, logicamente falando. Prestem
bem atenção, qualquer questão tem solução quando você pode
transferi-la para o mundo dos princı́pios lógicos mesmos. Somente
aı́ que tem solução.
Você pode fazer com qualquer questão, para isso você tem que
saber quais são os princı́pios que estão pressupostos na formulação
do problema, e isso mesmo é que é o difı́cil. Na hora que você per-
cebe quais são os princı́pios que estão em jogo a solução pratica-

603
23 Preleção XXIII

mente é imediata. É como numa equação. O quê é uma equação?


Você vai reduzir uma fórmula complexa a uma identidade simples.
Remontar o complexo até o princı́pio. Por exemplo, vamos pegar
a questão do “telefone do além”, as pessoas que gravam as vozes
dos mortos.
Então vamos supor o seguinte, o problema não está no fato, é um
dado sensı́vel, você liga o gravador e aparece lá uma voz. Agora,
o quê é essa voz? Qual é a possibilidade que tem de ser a voz de
uma pessoa morta? Que princı́pios nós precisarı́amos admitir para
que ali possa ter a voz de um morto, para você poder resolver essa
situação, para você poder dizer que isso é a voz de uma morto, ou
isso é a voz de alguma outra coisa?
Essas questões são as mais difı́ceis de você colocar logicamente,
e por isso mesmo que as pessoas gostam de produzir esse tipo de
fenômeno porque vai criar uma série de impossibilidades dentro
da ... (Olavo não terminou a frase)(?)
[ Aluno: você não poderia inverter a pergunta? Como é que
você sabe que é a voz de um morto? Prove! ]
Não, isso aı́ é um truque lógico, é erı́stica. Erı́stica é você fazer
um truque lógico do qual o outro não pode sair. Claro que num
debate de TV você apela para a erı́stica, tapa a boca do sujeito e
pronto, mas este não é o problema, não é isto que nós estamos
querendo aqui. A erı́stica também é uma maneira de você sim-
plesmente perseverar na sua comodidade, ou seja, você não quer
pensar no problema.
Vejam, eu estou tentando passar para vocês o que é a idéia de
uma investigação dialética autêntica, mas isto é muito raro. Nós,
na condição deste curso, dificilmente teremos a oportunidade de
desenvolver essa prática, mas pelo menos a imagem do que é,
isto eu quero transmitir. Mesmo essa imagem é difı́cil de trans-
mitir porque, por exemplo, a simples argumentação, a facilidade
de argumentação, a facilidade de tapar a boca do outro, isto passa

604
23 Preleção XXIII

como se fosse uma investigação dialética e não é. Isto é erı́stica,


que é uma pseudo-dialética, que visa apenas a uma finalidade de
dizer um absurdo, contanto que o absurdo seja irrespondı́vel no
momento.
Isto quer dizer que faz parte desta sociedade, nas convicções que
estão profundamente arraigadas nesta sociedade, a idéia de que o
pensamento só serve para discurso, porque nunca viram o pensa-
mento usado a não ser para discurso. Então, você chega a uma
perfeita resolução cientı́fica de um problema, isso não parece ao
público ter mais validade do que uma argumentação erı́stica qual-
quer, o sujeito não distingue, não capta a diferença. O fato de ser
irrespondı́vel só tem valor erı́stico. O problema não é você che-
gar no irrespondı́vel, é você chegar no absolutamente impensável.
Agora, você tampar a boca do seu adversário no momento não
quer dizer nada, só quer dizer que houve um adversário mais in-
teligente. É claro que a demonstração dialética também tem valor
erı́stico, mas a argumentação erı́stica não tem valor dialético.
Nós temos que supor, primeiro, que a discussão não é com ou-
tra pessoa, mas com você mesmo. Se for com outra pessoa, é com
outra pessoa que você não está a fim de vencer. A dialética é entre
pessoas que estão a fim de discutir a verdade, e que usam o pensa-
mento como um instrumento para chegar lá. Isto quer dizer para
você investigar qualquer coisa a partir daı́, contanto que você qui-
sesse realmente, então por quê nós não podemos admitir que seja
realmente a voz de um morto? Pode, por quê não? Então vamos
admitir essa hipótese e vamos ver que pressupostos ela deveria ter
e ver se isso aı́ existe uma possibilidade ou se a coisa é impossı́vel
em si mesma.
Eu acho que uma primeira coisa que você deveria levar em
consideração é que essa voz é uma expressão individualizada,
você está pressupondo que a voz é uma expressão individuali-
zada. Nós terı́amos que perguntar em seguida se é possı́vel uma

605
23 Preleção XXIII

expressão individualizada parcial. Prestem bem atenção, um in-


divı́duo humano que está vivo neste planeta atua simultaneamente
num montão de esferas, ele tem uma vida subjetiva, tem uma vida
social, tem uma vida emocional, vida biológica, e tudo isso aı́
entrelaçado e inseparável. Você não pode existir abstratamente,
por exemplo, a minha identidade social não pode atuar indepen-
dentemente do substrato fı́sico. O substrato fı́sico não existe um
único minuto sem ser socialmente, então a partir da hora que você
nasce você é filho de alguém, é irmão de alguém, é neto de alguém,
você tem uma identidade e tudo isso é inseparável, e é justamente
essa inseparabilidade que marca a sua individualidade.
Ora, se o morto pode falar com uma voz individualizada no gra-
vador significa que ele tem uma individualidade distinta, e essa
individualidade não pode ser abstrata, ela deve ser concreta. Isso
quer dizer que ele deve atuar numa infinidade de outras esfe-
ras também. A situação de morto ou de vivo seria apenas uma
diferença que nós terı́amos que admitir de forma de corporalidade,
e aliás é a teoria que está sendo defendida, as pessoas que dizem
que isso é voz de morto você vê que o cara passou para uma outra
forma de corporalidade. Não precisa discutir fisicamente a coisa.
Qualquer forma de corporalidade que seja nós temos que admi-
tir, mesmo que seja uma corporalidade sutil, que se o indivı́duo
conserva a sua individualidade, ela é concreta e não abstrata, ou
seja, as suas várias expressões não são separáveis. Eu não posso
atuar com a minha voz independentemente, por exemplo, da mi-
nha presença social, se eu falo eu falo desde um determinado pa-
pel social. Ora, se existe uma outra forma de corporalidade deve
existir uma outra forma de temporalidade, uma outra forma de es-
pacialidade, uma outra forma de historicidade, uma outra forma
de socialidade, etc, etc, e você tem que supor tudo isso.
Portanto, você deve supor o seguinte: se um morto fala é porque
ele existe com uma outra forma de corporalidade numa outra es-

606
23 Preleção XXIII

fera onde existem todos modos. Se um morto pode falar com uma
voz individualizada você tem que supor que existem todas as ou-
tras dimensões intrı́nsecas na individualidade. Ora, isso não seria
possı́vel exceto num mundo de individualidades distintas. Então
nós devemos supor que o mundo dos mortos é um mundo que tem
uma outra forma de corporalidade no qual todos conservam as suas
individualidades.
De outro lado, ele falar é uma ação que transcorre no tempo, a
gravação dura um tempo x, ou seja, ele falou durante o tempo que
transcorreu a gravação. Isto significa que ele é capaz de atuar exa-
tamente dentro da mesma faixa de temporalidade que nós, não é
assim? Então, nós temos que supor que existe um outro mundo in-
corporal, com uma outra forma de corporalidade, onde é possı́vel
atuar dentro da nossa faixa de corporalidade, onde você falando
quinze minutos no gravador, aparecem quinze minutos de fita, por-
que senão você teria que supor não uma capacidade a mais do
morto, mas uma capacidade a mais do gravador, que é a de gra-
var um minuto e aparecer quinze; só que isso contradiz não as leis
da Fı́sica do outro mundo, mas as leis da Fı́sica deste mundo que
é o do próprio gravador. então, aı́ já não seria uma capacidade
do morto e sim uma capacidade do gravador, e aı́ é absurdo! Se
um minuto de gravação é quinze minutos de audição, isso já não
é uma capacidade do morto, é do próprio gravador. Nada impede
que o gravador, ficando como está, e tendo apenas o programa que
tem, um outro ser de uma outra esfera o influencie. Mas para que
o gravador seja influenciado, para que ele possa ser objeto desta
ação, ele sofre esta ação dentro da estrutura e do modo de ser que
é dele. Ele não desenvolve uma outra capacidade, é o morto que
tem a capacidade de gravar nele. Porém, para que um gravador,
tendo gravado um minuto, tocasse quinze, aı́ se trata de uma ca-
pacidade do próprio gravador — por quê? Porque depois que o
morto gravou, o gravador continua tocando...

607
23 Preleção XXIII

Então você teria que supor uma capacidade extraordinária não


da parte do falecido, mas da parte do gravador, então isso aı́ nós
podemos excluir. Portanto, é absolutamente necessário que se o
gravador tocou quinze minutos, o falecido tenha falado durante
quinze minutos.
O fato é evidente que acontece, mas nós não estamos discutindo
o fato; eu quero saber o quê é esse fato, e se essa hipótese de que é
um morto que está falando, se ela é viável. Nós alegarmos as leis
da Fı́sica, não chega, porque nós estamos supondo que ele vive
numa outra forma de corporalidade que não obedece a estas leis
aqui.
Esses casos que vocês estão falando são experiências mais res-
tritivas, teriam menos valor probatório que esses casos alega-
dos pelos analistas. Então nós estamos averiguando a pior das
hipóteses, vamos dizer que o fato esteja amplamente comprovado,
tudo certinho, mesmo assim nós terı́amos que supor tudo isso, que
existe uma outra forma de vida que num outro tipo de corpora-
lidade tem a mesma temporalidade. Se fosse um cruzamento de
formas de temporalidades não obedeceria à desta fita, aı́ acontece-
ria a outra hipótese de você gravar um minuto e aparecer quinze
minutos. Daı́, esta ação não estaria limitada a estes parâmetros
de temporalidade que você tem aqui. Por exemplo, você pode su-
por que Deus fala um segundo e a voz Dele ressoa por milênios,
porque aı́ Ele não tem satisfações a dar ao nosso esquema de tem-
poralidade, mas Deus não fala através de gravadores. Este é que é
o ponto, o intermediário é o gravador, ele está rigidamente enca-
deado a esta temporalidade, se ele grava quinze minutos, ele toca
quinze minutos.
Então estamos supondo que é a mesma relação de velocidade
que o tempo do gravador é o mesmo aqui e lá, mas o quê é este
tempo? É uma velocidade, que é uma relação entre espaço e
tempo. Ora, que outra forma de corporalidade é essa onde existe a

608
23 Preleção XXIII

mesma relação entre tempo e espaço que existe aqui?


Então chegamos a um dificuldade: para que o morto falasse é
necessário que ele exista em um outro mundo onde se conserva
toda a individualidade concreta de cada um, com todo o tecido
de relações que ela implica com outras individualidades e ainda
seria necessário que existisse uma relação espaço-tempo, porém
se ele fala e grava com a mesma velocidade... Se o gravador roda
uma hora, o falecido fala uma hora; se ele rodou quinze minutos,
o falecido fala quinze minutos; ou seja, o tempo de gravação é o
mesmo tempo de audição, porque senão não faria diferença você
ligar o gravador ou não. Gravador desligado também gravaria.
Vejam todo o encadeamento de exigências: é necessário que o
tempo de audição seja igual ao tempo de gravação, porque senão
não faria diferença ligar o gravador ou deixá-lo desligado. Se é ne-
cessário ligar o gravador e que ele gire, ele gira na velocidade que
ele tem, e ele toca na velocidade que ele tem. Ora, essa velocidade
é uma relação espaço-tempo; de outro lado, nós vimos que para
um morto falar numa individualidade concreta num mundo con-
creto onde existem as outras individualidades, porque senão não
seria um morto, quem fala seria a voz de um morto sem o morto.
O morto não existe sozinho, ele existe num mundo de mortos onde
existe um conjunto de relações entre individualidades concretas, e
onde existe um determinado espaço-tempo.
Porém, nós vimos que o morto atua dentro do nosso espaço-
tempo, aı́ você tem uma contradição da braba, porque então sig-
nifica que a relação cronotópica — espaço-tempo — do mundo
do morto parece ser a mesma daqui, então não é outro mundo, é
este daqui! Nós não acabamos de dizer que um morto consiste
numa outra forma de corporalidade que não esta? E se você disser
que ele existe com esta, então ele está submetido às mesmas leis
fı́sicas, etc, etc, e daı́ bastava o argumento, “morto não tem gar-
ganta, então, morto não fala!” Se o morto existe nesta forma de

609
23 Preleção XXIII

espaço e tempo aqui, então vigoram as leis fı́sicas conhecidas, sem


garganta não dá para falar. Eu rejeitei este argumento porque os
adeptos das vozes dos mortos proclamam que o morto existe numa
outra faixa de corporalidade na qual não vigoram essas leis fı́sicas.
Porém, se não vigoram essas leis, como é que ele atua dentro da
nossa espacialidade e dentro da mesma relação espaço-tempo? O
mesmo tempo em que ele entra em sintonia, ele está rigorosamente
encadeado a essas leis — é ilógico! Isso aı́ desmente os próprios
princı́pios colocados pelo adepto da coisa que diz que é uma ou-
tra temporalidade. Pode haver uma dimensão que abarca a outra
sim, e você teria uma outra temporalidade mais ampla na qual está
contida esta, tudo bem, só que no instante em que você age nesta,
você está submetido a esta.
Prestem bem atenção, é assim como, por exemplo, o homem
existe dentro de uma esfera que chama Cultura, que abarca a na-
tureza terrestre, mas quando você está agindo fisicamente você
está naquele momento submetido às leis da Fı́sica, ou seja, não é
possı́vel uma ação dentro de uma determinada esfera que perma-
nece totalmente à margem das leis dessa própria esfera. Eu supus
a interpenetração, é exatamente isso que eu estou falando, existe
esta interpenetração, então isso quer dizer que no instante que
aquele morto fala, durante aqueles quinze minutos de gravação,
ele está submetido às leis daqui, então cadê esse morto? Você não
pode atuar numa determinada esfera permanecendo totalmente
fora dela. Ele não poderia atuar completamente como um in-
divı́duo sem ter as demais caracterı́sticas fı́sicas que se concretam
num indivı́duo. Um indivı́duo não pode ter uma voz separada de
todo o resto.
Então, partimos da idéia de que o morto é individualizado, ou
seja, eu aceitei as premissas do adepto da teoria de que um morto
existe numa outra forma de corporalidade, não submetida às leis da
Fı́sica terrestre, e que está subentendida aı́ a hipótese de que uma

610
23 Preleção XXIII

dimensão abarca a outra. Porém, nós vemos que para que o morto
pudesse atuar individualizadamente, ele precisaria existir como in-
dividualidade concreta — não existe individualidade abstrata. Mas
você pode dizer que o princı́pio lógico aqui não importa, então, se
não existe princı́pio lógico a diferença entre morto e não-morto é
impossı́vel de distinguir, a diferença de um indivı́duo para o outro
é impossı́vel distinguir, então tanto faz você dizer isso ou aquilo,
tanto faz quem falou, como ter falado ou não falado. Isto significa
que a idéia de que o morto falou subentende os princı́pios lógicos.
Não é possı́vel você afirmar que o morto gravou com uma voz
sem você, no mesmo instante, afirmar a validade dos princı́pios
lógicos.
Agora, o que você questionou é que os princı́pios da Fı́sica ter-
restre tenham, vamos dizer, poder sobre esse morto. Então ele vive
numa outra esfera de corporalidade na qual a Fı́sica terrestre não
age, apenas ele é quem age dentro da nossa esfera sem que esta aja
nele. Mas aı́ é que está o problema!
[ Aluno: se não é a voz do morto, é a voz do quê? ]
Mas é aı́ que termina a minha argumentação; é a voz de alguma
outra coisa. Por quê vocês querem uma solução? Para acomodar.
Mas, nós temos que ir por partes. Até aqui nós só podemos dizer
que é a voz de alguma outra coisa, mas do falecido não é.
Vamos fazer uma outra hipótese: que fosse a voz atuando sepa-
radamente, sem individualidade. Eu digo que isso é muito factı́vel!
Isso é mais possı́vel do que você dizer que é o fulano de tal quem
está falando. Esta é a hipótese que se chama “o resı́duo psı́quico”,
que não tem nada que ver com o indivı́duo mas como se fosse
um pedaço dele que sobrou, assim como pode sobrar o cheiro do
falecido.
A hipótese de ser um resı́duo psı́quico é mais viável porque o
próprio fenômeno da incorporação já sugere que não é uma indi-
vidualidade inteira, mas que é uma parte da individualidade que

611
23 Preleção XXIII

toma uma parte da outra. Ou seja, é uma individualidade que não


tem o seu próprio corpo. Se ela não tem o próprio corpo, então
ela não pode ter as outras coisas todas que decorrem da posse do
corpo.
Aı́ surge um pequeno problema: como é que um indivı́duo sem
corpo poderia agir sobre outro corpo? Por exemplo, me lembro a
primeira vez que eu vi uma coisa dessas, de uma mulher que incor-
porou um caboclo e o caboclo veio falar comigo. Eu insistia em
chamar o preto velho de senhora e ele ficava ofendidı́ssimo... Ve-
jam, o falecido pode até usar um corpo de uma pessoa de um outro
sexo. Isso quer dizer que o sexo é indiferente. Mas se é indiferente,
por quê te ofende se eu o chamar de senhora? Ou seja, ele é indi-
ferente mas ele sabe o que diz, e ele ainda tem as mesmas susceti-
bilidades terrestres. Então, você não está falando com uma pessoa
inteira, pode ser um pedaço de fato... a hipótese de um pedaço
é mais viável, não quer dizer que tenha provado, mas existe uma
possibilidade lógica porque a outra é impossı́vel. Existe a possi-
bilidade da comunicação à distância, mas não pode existir a pos-
sibilidade de comunicação acústica na ausência do corpo. Então,
os mortos se trairiam na hora que eles falassem com o gravador.
Quando eles estivessem falando só para nós você poderia admitir
um canal psı́quico, mas na hora que eles falam com o gravador
não, o gravador não é médium!...
Então, nós temos que pegar a questão, a proposta, a tese, e ver
em que pressupostos lógicos ela se fundamenta — não pressupos-
tos cientı́ficos. Qualquer pressuposto cientı́fico pode ser posto em
dúvida a qualquer momento; qualquer lei fı́sica é provisória, mas
princı́pio lógico, não.
Agora, essas questões são bravı́ssimas, não é? Por exemplo,
quando você fala em regressão de memórias, regredir a sua vida
em vidas passadas; você está pressupondo que um indivı́duo tem
uma individualidade que se prolonga para trás de si mesmo, e você

612
23 Preleção XXIII

está supondo que esse indivı́duo que você é agora pode consci-
entizar o que se passou a mil anos atrás, vivenciando as mes-
mas experiências com o nı́vel de consciência que ele tem agora
para informação posterior. Mas, se isto é possı́vel, por quê não
é possı́vel a projeção da memória para adiante? Não há nenhum
motivo. Se a individualidade não está presa ao espaço temporal
no qual ela vive agora, então ela não está presa nem para adi-
ante, nem para trás. Quer dizer que se a minha consciência de
agora pode reviver fisicamente experiências que eu tive antes de
ter corpo, experiências que eu tive entre duas encarnações, sig-
nifica que essa consciência está completamente acima de todo o
quadro espaço-temporal de agora, e se ela está acima do quadro
espaço-temporal para trás não há nenhum motivo para que não es-
teja para frente. É absurdo! Então, se terei vidas futuras eu posso
ver o dia de amanhã. Se não existe nenhum limite temporal à
consciência, prestem bem atenção, é uma ausência de limite não
apenas no sentido lógico mas no sentido fı́sico, quer dizer que o
posso experimentar fisicamente experiências que não aconteceram
ainda. Eu digo, qual é a diferença delas acontecerem e não aconte-
cerem? Então, amanhã eu vou dar uma martelada no dedo, mas eu
já posso ter a experiência agora. Eu posso ter a experiência visı́vel
sem a experiência tátil, não tenho dor. Mas por quê não pode ser o
contrário? Ter a dor, sem a experiência visı́vel — me dê uma única
razão. Não tem sentido algum. Portanto, tudo aquilo que você está
revivendo como vidas passadas são apenas vidas possı́veis, vidas
que eu poderia ter vivido, coisas que poderiam ter me acontecido.
Veja, se eu saio deste fio espaço-tempo que me prende, então
não existe diferença entre o atual e o possı́vel, prestem bem
atenção. Por exemplo, você pode cair da escada daqui a pouco,
não é? É perfeitamente possı́vel. Qual é a diferença entre isso ser
possı́vel e isso ser real? Esta diferença não é espaço-temporal?
Quer dizer que dentro das condições espaço-temporal dali é que a

613
23 Preleção XXIII

sua queda foi desencadeada. Por isso mesmo é que você diz que
ela não é apenas uma possibilidade mas que ela se efetivou. Se
efetivou onde? No espaço-tempo. Se eu suprimo o espaço-tempo
não existe realidade, dá para entender? Só existe possibilidade
abstrata. Então eu vejo todas as minhas vidas, mas essas vidas
não foram vividas, elas são apenas vidas possı́veis, naturalmente
compatı́veis, análogas e harmônicas para a minha personalidade.
Então é ficção. Claro que é uma ficção que contém muito ensi-
namento sobre você porque você vê tudo o que poderia ter sido.
Vamos supor que você conseguisse abarcar um bom continente das
suas vidas possı́veis, você compreenderia o esquema das suas pos-
sibilidades, mas dizer que você realmente viveu, ah!, isso é o fim
da picada! O quê quer dizer esse “realmente”?
Aparece alguma coisa, aparece o mundo da analogia, o mundo
dos esquemas de vidas que seriam compatı́veis com você, que ape-
nas você os está completando com imagens. Porém, se você trans-
cender os limites do espaço-tempo da consciência, então não tem
sentido em você falar de realidade, porque a realidade é o espaço-
tempo. De modo que a diferença entre uma coisa ter acontecido e
não ter acontecido, e ela ser apenas possı́vel, é que ela ser apenas
possı́vel não inclui a referência espaço-tempo. Se existir o espaço-
tempo ela acontece ou não acontece. Por exemplo, pode baixar um
elefante celeste aqui e agora? Pode. Vamos aguardar o tempo. Ele
baixou? Não. Então nós sabemos que é uma possibilidade, apenas
uma possibilidade abstrata. Se ele tivesse baixado não seria mais
uma possibilidade porque ele entrou no espaço-tempo. Então, se
você ao mesmo tempo suspender o espaço-tempo e contar vidas
reais, eu digo, aı́ já não dá!
Outra coisa: hoje nós sabemos que a memória humana, a
imaginação humana não é capaz de distinguir entre o efetivo e o
possı́vel. A própria hipnose demonstra isso. Quando o sujeito diz,
olha, fiz hipnose e você regrediu. Bom, se eu faço hipnose e digo

614
23 Preleção XXIII

que o seu braço está queimado, ele aparece queimado. Encosto o


dedo e digo que encostei o cigarro e você fica queimado como se
eu tivesse encostado o cigarro. Isto quer dizer que a sua memória
e imaginação, que continuam alertas durante a hipnose, não distin-
guem entre o efetivo e o possı́vel. Mas elas não distinguem entre
o efetivo e o possı́vel no presente, muito menos no passado. Por-
tanto, se você não distingue agora entre o que aconteceu e o que
apenas foi narrado, no passado também não.
Ora, qualquer hipnose do tipo que faz regressão de memória já
está mentindo neste ato, ou ele não sabe o que é hipnose. Se a
regressão é sob hipnose, então não há distinção entre o real e o
possı́vel no presente. Qualquer hipnólogo sabe disso aı́. Quando
ele se refere ao passado ele estaria se referindo à realidade e não
apenas ao meramente possı́vel. O hipnólogo tem obrigação de sa-
ber disso. Por exemplo, eu fecho os olhos e vejo que estou num
avião e o avião está caindo, isto em 1943, na Segunda Guerra Mun-
dial. Eu estava lá lutando na guerra e o avião caiu. Se eu vejo isso
nitidamente na regressão hipnótica, isso pode significar ou que eu
vivi realmente isso, ou que eu tive alguma sensação que se ex-
prime perfeitamente bem com essa imagem da queda do avião,
por exemplo, eu posso ter caı́do da cama em 1948. E essa é a fa-
mosa descoberta do Dr. William Sargent(?), que é um hipnólogo,
e a recordação de um evento traumático que provoca a descarga,
a catarse e a ab-reação(?) que nem sempre é a recordação de um
evento acontecido mas ele é apenas um análogo. Às vezes, sol-
dados da infantaria que tinham recordado estarem caindo de um
avião, e ele dizia, “Não, você não caiu do avião! Foi uma bomba
que explodiu do seu lado! Você não caiu de avião nenhum, você ja-
mais esteve lá, você é soldado de infantaria!...”; pode ser do avião
caindo em cima dele, isto é outra coisa.
Então, acontecia isto, aviador que sonhava que o navio es-
tava afundando, ou seja, é um análogo que expressa uma emoção

615
23 Preleção XXIII

real, e não o acontecimento real. Mesmo porque, se fosse uma


recordação real, ela teria que obedecer à mesma espaço- tempo-
ralidade do acontecimento, ou seja, para você recordar um acon-
tecimento que durou meia hora você teria que recordar durante
meia hora. Claro que isso não existe porque a memória sintetiza.
Se ela sintetiza, ela abstrai, e na hora que ela abstrai a imagem
não é exatamente o que foi; quer dizer que a imaginação que você
guarda nunca corresponde exatamente ao complexo de sensações
que você teve mas apenas a um resumo dos pontos que lhe pa-
recem significativos porque sintonizam com todo o resto. Ora, se
você pode aumentar ou diminuir recordações, também pode mudar
e produzir um análogo; por exemplo, um cachorro que te mordeu
quando você era pequeno e você recorda nitidamente de um touro
querendo te chifrar.
Você não conversa(?) a memória literal de nada do que te acon-
teceu, a memória trabalha, é ativa, ela não é um registro passivo,
ou seja, primeiro ela seleciona, separa, e eu digo, ora, se você se
recorda dos eventos traumáticos, por quê você não se recorda dos
eventos inócuos? Dias e dias e não aconteceu porra nenhuma! Isto
quer dizer que uma parte das suas recordações vai ser mais ou me-
nos o que de fato se passou, e a outra parte que parece igualmente
verossı́mil não aconteceu mas poderia ter acontecido também e
assim essas duas partes são indiscernı́veis desde dentro. Quer di-
zer que analisando aquelas imagens você não saberia quais são
verdadeiras ou falsas, você teria que referir a um outro tipo de re-
gistro. Esse é o famoso episódio do Jean Piaget, que lembrava
que ele, quando pequenininho, saindo com a empregada, eles se-
rem assaltados, e ele via o ladrão pegando o revólver, a empregada
gritando, ele via tudo isso e daı́, quando adulto, ele encontrou essa
mulher que tinha sido a empregada, e ele perguntou, “Você se lem-
bra daquela vez que nós fomos passear e fomos assaltados?”, e ela
começou a rir, “Nós não fomos assaltados! Eu fui é encontrar com

616
23 Preleção XXIII

o meu namorado e chegando em casa eu inventei essa estória para


contar para a sua mãe!” Então, aquilo que era uma recordação
auditiva se transformou numa recordação vivida, sem nenhuma
diferença de uma recordação real. Analisando a recordação dele,
se ele descrevesse a cena do ladrão, etc, etc, você não saberia se
ela é verdadeira ou não, você ...(?) um outro registro, porque ela
é igualmente verossı́mil, a real é igualzinha à imaginada, porque
para a imaginação só existe imagem. O conceito de real surge de
uma avaliação crı́tica que você faz posteriormente.
Ora, você não pode ter recordações que sejam reais e ao mesmo
tempo que falseiem a situação? Isso não acontece? Por exem-
plo, quando você tem uma determinada emoção e você interpreta
a situação em função da emoção. Quando você encontra uma pes-
soa que é muito sua amiga, etc, e o sujeito está muito preocupado
e ele faz pensar em você. Você pensa que ele tem algo contra
você e você sente isso. A recordação será real e a interpretação é
completamente falsa. Portanto, o que você sente do que você vê
não indica nada, nada, nada, a respeito do que aconteceu, porque
a veracidade ou falsidade não está no nı́vel da imagem ou do sen-
timento. O juı́zo sobre a realidade, sobre veracidade ou falsidade
não pode ser feito só com base na imagem. Isto é muito simples,
por exemplo, se eu te mostro aqui um desenho de uma pessoa, esse
desenho está verdadeiro ou falso? O quê você vai me responder?
Eu digo, “Eu não sei, eu nunca vi essa pessoa...”, não é? Então,
você precisaria comparar um registro com um outro registro para
poder fazer a crı́tica.
Uma imagem ou um complexo de imagens, coerentes, analisado
em si mesmo não é nem verdadeiro nem falso, é óbvio! Agora, por
exemplo, se um soldado de infantaria sonha que ele está caindo de
uma avião, que o avião dele foi bombardeado e ele recorda isso,
bom, como é que eu vou saber se é verdadeiro ou falso se eu não
tenho o registro, a folha de registro dele que diz lá que ele é de

617
23 Preleção XXIII

infantaria? Eu, comparando um registro com um outro, digo, ora,


se isso conservou da memória dele, pode ter sido conservado na
memória do Exército também de algum modo. Então eu vou lá no
arquivo, que é a memória do Exército, e vejo que esse soldado é
da infantaria e jamais esteve num avião, e aı́ eu digo que é falsa,
mas a própria imagem é fechada em si mesma, não tem por onde
você pegar a imagem e dizer que ela é verdadeira ou falsa, porque
toda imagem é imagem de alguma coisa.
Aqui, como na dialética, é o confronto que te dá a veracidade
ou falsidade, é o confronto dos vários registros, e a referência dos
registros aos princı́pios lógicos. A noção que nós temos de veraci-
dade esta intimamente ligada à noção de coerência no mundo, que
forma um mundo só. Nós vivemos todos dentro do mesmo mundo.
A própria unidade do ser é o que fundamenta a própria noção de
verdade. Se eu estou aqui falando dentro de um determinado uni-
verso, e você está num outro onde vigoram outras leis, bom, então
nunca vai dar para você verificar se o que eu falei é verdadeiro ou
falso.
Isto quer dizer que a noção de veracidade ...(?) coesão do real
são todos a mesma noção. Então é confrontado um registro com
um outro registro e vendo a coesão ou falta de coesão deles é que
você pode ter uma noção mais aproximada ou menos aproximada
e dizer se ela é verdadeira ou falsa. Por exemplo, experimente
conferir as suas recordações de infância com as recordações de
outras pessoas que estavam ali presentes; você vai ver que é di-
ferente com que outras pessoas observam, ou seja, coisas que lhe
pareceram enormemente grandes, para outras são enormemente
pequenas. Você já experimentou visitar a casa onde você morou
na sua infância e você vê como ela encolheu? Eu me lembro de ter
caı́do de um cavalo quando eu era criança, e o cavalo — olha! —
não acabava mais. Devia ser um pangaré ridı́culo, mas visto daqui
de baixo ele era muito grande. Agora, qual dessas duas imagens

618
23 Preleção XXIII

era verdadeira? Somente a comparação das duas é que vai ressal-


tar. Eu não posso dizer que a minha de agora é verdadeira e aquela
era falsa. Aquela era a que eu tinha em função do meu tamanho,
agora eu tenho um outro tamanho, então você reconstrói o sistema
em outras proporções e esse sistema é verdadeiro, não a imagem
em si mesma.
Então, se você fecha os olhos e vê você caindo num vulcão,
como é que nós vamos saber se essa imagem era verdadeira ou
falsa? Nós precisamos confrontar com o fato de que você está
aqui, mas como você caiu num vulcão e se eu estou vendo você
aqui agora? Se você tivesse caı́do lá você estaria torradinho!...
Mas, e se eu não tenho essa outra imagem de você aqui e agora,
como é que eu vou conferir? Quer dizer, a veracidade tem sem-
pre esse confronto. Se não tem confronto com a possibilidade do
real você não pode saber se aquilo ocorreu. Assim, na hora que
o sujeito fala assim, “O morto falou”, ele já sugere o confronto aı́
porque ele já estabeleceu uma relação, não é a imagem solta, ele
estabeleceu uma relação entre dois planos, então isso aı́ permite
uma discussão.
As imagens recordadas sob hipnose, em si mesmas, não dá para
você saber se elas são verdadeiras ou falsas. Uma imagem é ver-
dadeira ou falsa em relação a um determinado objeto do qual você
tenha outras imagens de modo que você possa conferir. Por exem-
plo, para um desenho ser fidedigno ou não é preciso que nós tenha-
mos uma outra imagem sua, não é? Um sujeito faz o desenho do
Marcelo, e eu digo — êpa! –, mas eu já vi o Marcelo um montão
de vezes, ou seja, eu tenho cinqüenta imagens com as quais eu
posso conferir essa e vejo que não bate. Você precisaria ter outras
imagens que você pesasse o valor respectivo de uma em face da
outra e da outra em face de uma, para você chegar, vamos dizer, a
uma probabilidade razoável. No caso da regressão por memória,
nós podemos confrontar a alegação da regressão, que é feita pelo

619
23 Preleção XXIII

hipnólogo, com a alegação feita pela mesmo hipnólogo e que a


falsa queimadura produz uma lesão real. É ele mesmo quem diz
as duas coisas. Mas se você pode produzir lesões fı́sicas através da
palavra, através da indução, por quê você não pode produzir falsas
recordações? É muito mais fácil...
Então, isso quer dizer que qualquer hipnólogo que afirme acre-
ditar na realidade histórica das narrativas obtidas sob regressão,
ele está mentindo, ou então ele tem dois cérebros, um que é ca-
paz de produzir lesões através da palavra, e outro que ao produzir
recordações não influencia o paciente de jeito nenhum e só cons-
tata a realidade da narrativa.
Em muitas das questões você pode chegar a uma certeza sobre
a possibilidade e a impossibilidade. Quando você vê possibilidade
então não vale a pena investigar por aı́. O que não quer dizer que,
você, fechando a possibilidade, ela saiba o que é, então a pergunta
da Heloı́sa, “Bom, mas se não é isto, o quê é?”, eu digo, eu também
não sei, mas eu sei que na hora que você exclui uma possibilidade,
eu já teria feito uma grande economia; por exemplo, um sujeito
que chega numa universidade com uma proposta de investigação
do impossı́vel você já diz não, verba para isso não sai. Poderia
servir para isso. Não precisa de investigação cientı́fica para isso,
basta o conceito mesmo da coisa.
Agora, tudo isso não pode se feito com espı́rito erı́stico, porque
senão você já rejeita a coisa na primeira, “Ah!, é absurdo!”, mas
absurdo por quê? Por quê eu não posso tentar pensar o absurdo
para ver se ele é absurdo mesmo? Às vezes não é! O sujeito pode
vir com uma teoria estapafúrdia e você vê que ela tem fundamento.
Então o negócio é admitir até mesmo a possibilidade que um morto
fale a um gravador para ver se essa possibilidade se fundamenta ou
não.
O melhor argumento do mundo seria você não ter opinião sobre
nada. Apaga tudo, eu vou fazer tudo de novo. Agora, numa es-

620
23 Preleção XXIII

fera prática, não é? Dito de outro modo, você não vai ter opinião
sobre nada que não é da sua conta. Nada que você não possa de-
cidir pessoalmente você vai ter opinião, até segunda ordem. Sobre
aquilo que você pode decidir, sobre orçamento doméstico, sobre a
educação do seu filho, então você continua tendo opinião; agora,
saber se os mortos falam ou não, para quê ter opinião?

621
24 Preleção XXIV
16 de junho de 1993

[ intervalo. Olavo retorna ao texto do Husserl ]


Todo este texto do Husserl parte do princı́pio de que existe uma
crença na veracidade da Ciência, que existe o conhecimento da
verdade.
Se é assim, a questão da natureza da Lógica significa que ela
consiste em esclarecer qual é a natureza desse conhecimento da
verdade, quer dizer, por quê o pensamento lógico permite atingir a
verdade? E uma das respostas que existem aı́ será chamada a res-
posta psicologista, onde o pensamento atinge a verdade quando ele
funciona de acordo com certas leis, que são leis que determinam o
curso real do pensamento.
Existe um conjunto de leis psicológicas que definem as
condições do pensamento verdadeiro. É como se dissesse, um
pensamento para ser verdadeiro precisa ser pensado de tal ou qual
maneira, ou segundo uma determinada ordem, ou segundo uma
determinada seqüência causal. Essa hipótese psicologista é justa-
mente isto aqui que nós estamos investigando com este texto.
22. As leis do pensamento como supostas leis naturais que cau-
sam o pensamento racional em atuação isolada
O próprio tı́tulo do parágrafo é muito interessante. Se nós
pudéssemos descobrir quais são as condições que causam o pen-
samento verdadeiro nós poderı́amos dominar o pensamento verda-
deiro como nós dominamos qualquer outro processo natural, p.e.,

622
24 Preleção XXIV

quando nós sabemos as condições em que se dá tal ou qual reação


quı́mica e por isso, conhecendo as condições em que se dá tal ou
qual reação quı́mica e por isso, conhecendo as causas nós podemos
produzir essa reação quı́mica.
Se a veracidade do pensamento dependesse de leis naturais,
então nós poderı́amos provocar o pensamento verdadeiro colo-
cando em ação as causas naturais que o produzem. Vejam que
conseqüência terrı́vel, não é? Seria muito fácil, na verdade.
Ora, mas as leis naturais, ou elas funcionam de maneira abso-
luta, ou de maneira probabilı́stica. Então vamos supor que fosse
de maneira probabilı́stica. Isso significa que nós poderı́amos de
antemão calcular a probabilidade do acerto em qualquer questão
que se colocasse.
P.e., nós pegamos aqui um grupo de 30 pessoas, colocamos es-
sas leis naturais em ação e elas encontrarão a verdade com x% de
probabilidade. Porém, se eu posso fazer esse cálculo agora, eu
posso fazer esse cálculo com relação a quaisquer outras questões
futuras.
Isso quer dizer que eu já poderia até mesmo conhecer a proba-
bilidade do conhecimento da verdade em qualquer questão que eu
ignoro completamente. Dá para perceber que isso é um absurdo,
não é?
Nós vamos ver, não a conseqüência, mas a própria estrutura
lógica da proposta. Vamos lá.
Este é também o momento de tomar posição frente a uma difun-
dida concepção das leis lógicas, que define o reto pensar por sua
acomodação a certas leis do pensamento. Sendo as leis do pen-
samento leis naturais que caracterizam a ı́ndole própria do nosso
espı́rito, a essência da acomodação, que define o reto pensar, re-
sidiria na atuação pura (ou não alterada por nenhum outro influxo
psı́quico como o hábito, as inclinações, a tradição) das ditas leis.
Isto é, existiria um pensar lógico do pensar natural. Tudo seria

623
24 Preleção XXIV

uma questão de deixar o pensamento seguir o seu curso natural.


Não cortar esse curso natural. O raciocı́nio lógico, a seqüência
dedutiva, seria por si mesma uma lei natural. O pensamento se
não for alterado por fatores externos ele segue esse curso natural.
Exporemos somente uma dentre as graves conseqüências desta
teoria. As leis do pensamento, consideradas como leis causais só
poderiam aparecer na forma de probabilidade.
Claro, se fosse leis naturais. Mas nós só conhecemos leis natu-
rais por indução, porque nós vemos que certas seqüências de acon-
tecimentos se dão de acordo com uma certa ordem e uma certa
conexão, num número significativo de casos, e daı́ nós induzimos
uma lei.
Então, toda lei natural é uma expressão de uma probabilidade
delimitada dentro de um campo, ou seja, dentro desse campo a
probabilidade que tal ou qual coisa aconteça é x. Não existe
nenhuma lei natural que possa ser dita absoluta. Nenhuma, ne-
nhuma!
Ela está delimitada, primeiro por um determinado campo, e se-
gundo, está limitado por exceções — todos os campos se interpe-
netram de algum modo — e não existe nenhuma lei natural que
seja inflexı́vel como leis matemáticas, porque embora sejam ex-
pressas matematicamente elas têm que ser expressas sob a forma
de probabilidade, que é uma espécie de incerteza limitada.
Se as leis da Lógica fossem leis naturais do pensamento elas te-
riam que ter sido obtidas por indução, e sendo obtidas por indução
seriam expressadas probabilisticamente.
De acordo com isto, não se poderia julgar com certeza sobre a
retidão de nenhuma afirmação; pois se as formas de toda retidão
são meramente prováveis, elas imprimirão necessariamente a todo
conhecimento o selo da mera probabilidade.
Estarı́amos, pois, ante o probabilismo mais extremo. A mesma
afirmação de que todo saber é meramente provável, seria só pro-

624
24 Preleção XXIV

vavelmente válida; e assim ad infinitum. Como cada novo passo


rebaixo um tanto o grau de probabilidade do anterior, deverı́amos
inquietar-nos seriamente com o valor de todo conhecimento. Por
isso, podemos esperar que o grau de probabilidade das séries infi-
nitas tenha a todo momento o caráter das “séries fundamentais” de
Cantor, de tal modo que o valor limite definitivo seja um número
real ¿ 0.
Essa é a única coisa que daria para você saber, que o número que
expressa a probabilidade do conhecimento é apenas um número
maior que 0, ou seja, não é zero.
Você tem aqui uma verdade, mas essa é provável, ora, essa pro-
babilidade depende de que uma outra seja verdade. Essa outra,
por sua vez, é verdade com uma probabilidade ainda menor, e ou-
tra com uma probabilidade menor, menor, menor, então, no fundo,
no fundo, vai sobrar algo, esse algo o máximo que nós sabemos é
que não é zero, mas pode ser assim, p.e., 0,00000...001
Supondo, ainda, que não existisse esta dificuldade, poderı́amos
perguntar: quando, onde, como foi provado que os atos justos do
pensamento brotaram da atuação pura destas leis?
Esse aı́ ainda é um outro problema. É que essas famosas leis
naturais do pensamento simplesmente não são conhecidas, não se
encontrou nenhuma até hoje. A conexão de causa e efeito que
marcaria o caráter de leis naturais, ela nunca foi encontrada.
P.e., quem é que diz o quê que nos permite dizer o quê que
causa o pensamento lógico? Se as leis naturais do pensamento são
as próprias leis lógicas, nós poderı́amos perguntar, “Mas, por quê
um sujeito raciocina logicamente e outro não?”; não podem ser as
próprias leis lógicas que determinam isso. Portanto, o funciona-
mento das ditas leis naturais, que seriam as leis da Lógica, teriam
que ser explicadas por outras leis, e essas leis ainda não foram
encontradas!?
Onde estão as análises descritivas e genéticas que nos autorizem

625
24 Preleção XXIV

a explicar os fenômenos do pensamento por duas classes de leis


naturais, de um lado, as que determinem exclusivamente o curso
daqueles processos causais que fazem surgir o pensamento lógico,
de outro, as que determinem o pensamento a-lógico?
Algumas confusões fáceis de cometer parecem ter aberto o ca-
minho a estes erros psicologistas. Em primeiro lugar, confundem
as leis lógicas com os juı́zos (no sentido de ato de julgar), isto
é, confundem as leis como “conteúdos dos juı́zos” com os juı́zos
mesmos. Estes últimos são acontecimentos reais, que têm suas
causas e efeitos.
P.e., quando você afirma um princı́pio de identidade, “Uma
coisa é igual a ela mesma”. a identidade de uma coisa com ela
mesma é o conteúdo do juı́zo, mas e o ato pelo qual você comete
esse juı́zo mesmo? Quem causou foi o princı́pio de identidade?
Você diz que A = A, e aı́ eu pergunto, “Mas, por quê que você
nesse momento intuiu e falou que A = A? Foi o fato de ser A
igual a A que causou isso?” Não pode ser, porque antes de você
falar, A já era igual a A. E amanhã ele vai continuar sendo, e nem
por isso você vai ficar falando isso o tempo todo, portanto, o ato
que teria que ser explicado por alguma outra causa que não tem
nada a ver com o conteúdo do juı́zo.
Ora, se você supõe que as leis lógicas são leis causais do pen-
samento, você está supondo que é o conteúdo delas que provoca o
fato do juı́zo.
O fato de A ser igual a A faz com que você pense que A = A,
determina que você nesse ou naquele momento pense que A = A
e não pense em qualquer outra coisa. você teria que pensar nisso o
tempo todo, não poderia pensar em mais nada! Você não poderia
parar de pensar nos princı́pios lógicos o tempo todo!
Veja como teorias filosóficas que parecem verossı́meis, quando
você vai examinar, você vê que é uma aberração, uma absurdi-
dade tão grande, e espanta ver que alguém tivesse podido chegar a

626
24 Preleção XXIV

pensar nisso, e no entanto chegaram!


Se você não interpreta isso como um princı́pio psicológico, uma
lei natural do pensamento, pareceria até uma coisa razoável em
primeira instância, porque se você não aceita mais o princı́pio me-
tafı́sico da identidade você tem que achar uma outra explicação.
Você vai procurar nas Ciências nas quais você acredita, as Ciências
Naturais, e aı́ você pega lá a Psicologia e diz que se não é me-
tafı́sico, deve ser psicológico.
Isso pareceu muito razoável numa época onde as Ciências Na-
turais apareciam como um modelo do conhecimento verdadeiro.
Porém, esse cientificismo do século XIX já morreu, mas estão
açoitando um cavalo morto. O cientificismo morreu, mas o psi-
cologismo continua vivo. Ele já está refutado enquanto teoria ci-
entı́fica, mas enquanto hábito mental, enquanto ideologia, ele está
vivo.
Portanto, nunca é demais nós vendermos esta coisa aqui; talvez
o psicologismo seja o maior dos males do mundo moderno, porque
ele está na base de tudo quanto é erro. Quase parte de tudo o que
você vê, você lê, está a influência do psicologismo. Tudo é você
remeter a causas psicológicas como se elas fossem a explicação da
própria realidade.
Mas se se confunde a lei com o ato de julgar, ou seja, o ideal
com o real, a lei aparece como uma potência determinante do
curso de nosso pensamento. Com facilidade muito compreensı́vel,
acrescenta-se, então, uma segunda confusão, a confusão entre a
lei como membro do processo causal e a lei como regra deste pro-
cesso.
Aı́, de fato, já é outra confusão, porque há um processo causal
do pensamento que fez com que num certo momento você descu-
bra uma lei, mas acontece que essa lei é ela mesma a regra que
estrutura esse mesmo processo.
Então você teria uma lei que determina para a psique humana

627
24 Preleção XXIV

a fatalidade da descoberta dessa lei. Você tem uma lei causal que
provoca um determinado curso de pensamento o qual inclui como
uma de suas etapas a descoberta dessa mesma lei. A resposta é o
seguinte, “Então, a descoberta dessa lei é fatal!”. Seria impossı́vel
que alguém não a descobrisse.
Se a lei é a regra do processo causal, e ao mesmo tempo ela é um
dos membros, se é ela que determina o conjunto do movimento do
pensar e esse conjunto do movimento do pensar inclui como uma
de suas etapas a descoberta dessa mesma lei, então essa descoberta
é sempre fatal, ela está fada a ocorrer.
Isso é uma absurdidade, porque é claro que você pode fazer
um pensamento lógico sobre milhões de assuntos que não são a
Lógica. P.e., se você começar a fazer um raciocı́nio lógico sobre
Geometria, você continua raciocinando sobre figuras geométricas
indefinidamente, e você nunca vai retornar isso aı́ para descobrir
qual é a regra da estrutura lógica porque o assunto não é esse.
No caso da Lógica é a regra que estrutura o processo, mas ela
não é um assunto do processo, ela é a forma e não um dos elemen-
tos do processo. É como se todo pensamento fosse um pensamento
sobre a Lógica, e não apenas um pensamento lógico.
Imaginemos um homem ideal no qual todo pensar transcorra
como exigem as leis lógicas. O fato de que transcorra assim, terá
naturalmente sua explicação em certas leis psicológicas, que regu-
larão de certo modo o curso das vivências psı́quicas. As leis cau-
sais, segundo as quais o pensamento transcorre necessariamente de
tal modo que possa justificar-se segundo as leis normais da lógica,
não são de modo algum o mesmo que estas normas. O exemplo
da máquina de calcular esclarece por completo a diferença. Nada
colocará as leis aritméticas no lugar das mecânicas para explicar
fisicamente o movimento da máquina.
O cara está confundindo o “hardware” com o “software”. Ele
está confundindo o problema com o equipamento. Hoje em dia é

628
24 Preleção XXIV

fácil de você ver isso, não é?


Mexer com computador qualquer moleque sabe, mas quantos
moleques não lidam com computador e não acreditam no psico-
logismo? Acreditar em psicologismo é a mesma coisa que dizer
que um programa de computador, por si mesmo, faz o computador
funcionar. Ele está confundindo informática com eletrônica!
O psicologismo é um programa abstrato, você não tem equipa-
mento, você não tem tela, não tem disco rı́gido, não tem disquete,
não tem tomada, não tem eletricidade, não tem nada; é um pro-
grama que funciona no ar, isso seria o psicologismo! É o pro-
grama que faz o computador funcionar! O programa, além de ser
um conjunto de enlaces lógicos, ele é dotado de energia!
Os lógicos psicologistas desconhecem as essenciais e eternas
diferenças entre a lei ideal e a lei real, entre a regularidade nor-
mativa e a regularidade causal, entre a necessidade lógica e a real.
Não há gradação capaz de estabelecer termos médios entre o ideal
e o real.
Claro que isso dito assim a gente vê que é de uma evidência
atroz. O problema é você reconhecer isso quando você está raci-
ocinando psicologisticamente. Você vê que é uma coisa errada, é
como aquele cara que diz que, “eu sei que eu preciso parar de be-
ber, mas eu não consigo, por isso mesmo eu vou beber para aliviar
o sofrimento por não conseguir parar de beber...”, e assim vai.
Isto aqui é um vı́cio atroz, é pior do que bebida, cocaı́na, tudo
o que você possa imaginar. O vı́cio do psicologismo talvez esteja
até por trás do vı́cio da embriaguez...
Toda a demência contemporânea se (imanenta(?)) nisto aqui,
porque um pensamento, que é um fato natural no homem, se ele se
regra apenas pelas leis naturais que o causam, ele está eternamente
fechado dentro de si, ele não pode alcançar uma verdade. Portanto,
você não tem uma instância superior que possa arbitrar se o seu
pensamento é verdadeiro ou não. Você está preso à subjetividade

629
24 Preleção XXIV

para sempre, e esse é o drama contemporâneo.


Quer dizer que o psicologismo é o pai de toda nossa demência,
miséria, etc. Ele solapa a possibilidade de julgar um pensamento.
Se o pensamento é causado pelas leis naturais e se essas mesmas
leis naturais são critério da veracidade, então o pensamento não
pode ser de outro jeito senão daquele que ele é.
Então, o simples fato do pensamento acontecer já é prova de
que ele é verdadeiro. Mas como qualquer pensamento acontece,
você pensa que uma coisa é quadrada e também, movido pelas
mesmas leis naturais, você pensa que a mesma coisa é redonda, e
a lei natural que está em ação é a mesma nos dois casos.
Isso é uma loucura, e isso está no fundo de quase toda a Sociolo-
gia contemporânea e de todas essas Ciências Humanas, Psicologia,
Economia, Antropologia, ou seja, todas as Ciências fundamentais
nas quais nós baseamos as decisões humanas.
Vamos supor que você possa explicar os hábitos mentais, os
critérios de veracidade, de uma determinada comunidade humana
a partir da sua vida social. Então, tal e qual comunidade acredita
em tais ou quais verdades porque sua vida social é tal ou qual, suas
instituições são tais ou quais, seus costumes são tais ou quais, seus
valores são tais ou quais.
Eu, por minha vez, olho isso desde este ponto de vista porque
os valores da minha comunidade são tais ou quais, as instituições
são tais ou quais, as normas são tais ou quais, etc, etc. Deu para
entender?
Você relaciona só o que é idéia ao meio social que o produz, e
como a causa daquele pensamento foi de ordem social a validade
daquele pensamento está, vamos dizer, dependente daquela causa
social.
Você vê lá uma comunidade humana onde as pessoas praticam
regularmente, p.e., a morte dos recém-nascidos. Você explica isso
em função de tais ou quais necessidades que foram interpretadas

630
24 Preleção XXIV

de tal ou qual maneira por aquela sociedade, — explica funcional-


mente, isso tem tal ou qual função dentro do conjunto. Essa função
não deixa de ser um fundamento racional desse procedimento.
P.e., você vê que em Roma era comum as pessoas o bebê fora,
faziam um aborto “a posteriori”, e era uma coisa normal, ninguém
achava ruim, não era imoral. Mas, tinha uma função econômica,
uma função quase que para a subsistência daquele povo, eles não
agüentariam ter mais filhos.
Essa função que esse ato tinha para a manutenção da ordem so-
cial é um fundamento racional do ato. Mais tarde você vê que esse
procedimento é condenado. Daı́ você vê que quando ele foi con-
denado também coincidiu de que as famı́lias precisavam de mais
braços para a lavoura. Então, parar de matar os bebês também tem
uma função, e isso passa a ser o fundamento racional dessa nova
atividade.
Quer dizer que a causa ou mesmo a ocasião, o pretexto social
do ato, passa a ser a única condição legitimadora; tudo só pode
ser legitimado pela função que tem dentro de um conjunto social.
Nunca dá para você saber se aquele procedimento é certo ou er-
rado.
Porém, como funciona uma neurose? Numa neurose tudo não
tem uma função? Um procedimento obsessivo, um sujeito que
lava a mão o dia inteiro, tem alguma função dentro da economia
do conjunto também? Como é que você vai saber se o nego está
louco?
Se você não tem outro critério para julgar a não ser o da causa
que o determinou — tudo tem causa — a causa passa a ser o fun-
damento lógico! É a mesma confusão.
Você não pode julgar nenhum ato, nenhum procedimento, ne-
nhum pensamento, a não ser pela causa que o gerou. Aı́ eu digo,
mas, a causa que gera uma coisa não legitima essa coisa na mesma
hora!

631
24 Preleção XXIV

Eu decido matar uma pessoa. Eu mato por quê? Porque eu sou


esquizofrênico e matando as pessoas eu me reequilibro momenta-
neamente; ora, não tem uma função, uma causa?
Se não existe nenhum outro critério lógico pelo qual você possa
julgar o ato a não ser o critério de sua causa, o que quer que tenha
causa está certo! É verdadeiro, está legitimado! Daı́ você tem que
assistir às maiores aberrações e dizer, “Ah!, tudo bem, tudo tem
causa, tem lá a sua razão de ser ...”
As pessoas confundem causa com fundamento. Isso aı́ acon-
tece com todas as Ciências Humanas. Não tem uma que não esteja
contaminada com esse negócio até o pescoço. Não existe um in-
divı́duo nas Ciências Humanas que tenha a noção de um limite
intrı́nseco da própria verdade.
Você pode pegar essa escola desse Marcel Mauss, que é uma
escola muito influente no Brasil, no meio dos nossos antropólogos.
Ele dizia que todas as categorias lógicas são uma exteriorização
das instituições. Conforme as instituições, você desenvolve tais
ou quais categorias lógicas.
Então, quer dizer que você muda as instituições, você muda as
categorias lógicas também, não é? Sim, mas isso é causa, e não o
princı́pio lógico em si.
Isto é a mesma coisa que você dizer, p.e., por quê a Geometria
se chama Geometria? Porque ela nasceu da Agrimensura, não é
isso? Mas, a validade dos princı́pios geométricos não dependem
absolutamente da Agrimensura, porque ele não é um raciocı́nio de
agrimensor.
A descoberta disso pode ter sido causada pela Agrimensura,
mas em seguida, as figuras lógicas têm uma relação intrı́nseca,
porque o agrimensor não tem mais nada que ver com isso, e conti-
nua chamando de Geometria por uma espécie de saudosismo, que
seria para medir a terra, mas na verdade é a Geometria quem mede
a terra. É um nome inadequado e já está superado, e que continua

632
24 Preleção XXIV

a ser usado por tradicionalismo.


Se você começa a vincular toda verdade à causa que determinou
a sua descoberta, ou a sua evidenciação, daı́ toda e qualquer coisa
que tenha servido de causa a toda e qualquer descoberta passa a
ser o princı́pio de legitimação dessa descoberta.
O negócio da quı́mica do amor é um pouco isso aı́, não é? Um
processo quı́mico que está envolvido é uma coisa, e a validade, a
veracidade ou não do sentimento do amor é outra completamente
diferente. Se for produzido quimicamente, tudo bem. Se não for,
também tudo bem. O processo causal não é legitimador. Agora,
se você reduz princı́pios lógicos a princı́pios causais, naturais, daı́
acabou, porque o que quer que tenha causa está fundamentado.
Portanto, se eu decido dar uma martelada na tua cabeça e digo
que isso não aconteceu gratuitamente mas teve uma causa, então
está legitimado.
Então, é claro que você não pode discutir nada, não pode con-
testar nada e está tudo certo, está tudo da melhor maneira possı́vel,
no melhor dos mundos possı́veis. Isso é coisa de manı́aco.
Vejam, essa campanha que tem hoje pela descriminalização das
drogas é fundamentada nisso. As drogas existem e as pessoas as
consomem, e isto é um motivo para que os indivı́duos não sejam
presos, porque existem e tem causas sociais que não podem ser
inextirpáveis, logo ...
As pessoas não entendem que nenhum ato humano pode ser
legitimado estatisticamente, porque ele depende de uma decisão
moral. As drogas serão aceitas ou rejeitadas só por nós querermos,
nada nos obriga a isso. Nada nos obriga a consumir drogas e nada
nos obriga a deixar de consumi-las. É uma decisão livre, de ordem
normativa.
Então você tem aqui um princı́pio superior a esse caso concreto
para poder julgá-lo, porque se você vai se ater apenas ao ato con-
creto você só pode estudar as causas.

633
24 Preleção XXIV

Então, existem causas que impelem a usar drogas e causas que


impelem a não usar drogas, você soma e você vai chegar a um
resultado de que x% da população eternamente consumirá drogas.
Como nós não podemos acabar com isso então está legitimado.
Mas isso também deveria ser aplicado à criminalidade, ao estupro,
etc, etc. Sempre haverá estupradores e as causas do estupro são
inextirpáveis. A não ser que você extirpe todos os pênis...

634
25 Preleção XXV
17 de junho de 1993

[ voltando ao Husserl ]
23. Uma terceira conseqüência do psicologismo e sua refutação
Se o conhecimento das leis lógicas tivesse sua fonte nos fatos
psicológicos, se as leis lógicas fossem, por exemplo, aplicações
normativas de certos fatos psicológicos, possuiriam necessaria-
mente um conteúdo psicológico num duplo sentido: seriam leis
para os fatos psı́quicos e suporiam ou implicariam a existência
destes fatos.
É evidente. Se essas leis tivessem sido obtidas por indução a
partir dos fatos psicológicos, é claro que esses fatos teriam que
existir. Portanto, se não existissem os fatos psicológicos, muito
menos poderiam existir as leis lógicas que deles foram derivadas.
Isto porém é falso. Nenhuma lei lógica implica uma matter of
fact, nem sequer a existência de representações, ou de juı́zos, ou
de outros fenômenos do conhecimento.
Vejam, quando você diz que 2 + 2 = 4, isso supõe que, por
acaso, alguém que pense que 2 + 2 = 4? Vamos supor, antes que
existisse qualquer ser pensante capaz de pensar que 2 + 2 = 4,
2 + 2 dava 5?
Não esqueçam que a Aritmética elementar é idêntica à Lógica.
O que vale para a Aritmética elementar, vale para a Lógica. Por-
tanto, se as leis que regem essas quantidades da Aritmética ele-
mentar não dependem de que ninguém as pense, ou seja, não de-

635
25 Preleção XXV

pendem de que aconteça nenhum fato psicológico, é evidente que


elas não poderiam ser deduzidas de fatos psicológicos, que inclu-
sive lhes são posteriores.
Nenhuma lei lógica é uma lei para os fatos da vida psı́quica.
O que é passı́vel de ser regulado seriam, então, fatos psı́quicos e
a existência destes fatos seria uma hipótese da fundamentação das
regras e estaria incluı́da no conteúdo das mesmas.
Claro, porque a existência de fatos psı́quicos deveria estar in-
cluı́da como uma dessas leis. Do mesmo modo que há lei que diz
que A = A, tem que ter uma outra lei que diz que tem que existir
fatos psı́quicos necessariamente.
Mas nem uma única lei do raciocı́nio responde a este tipo. Onde
estão as formas do silogismo que permitem deduzir de uma lei, um
fato?
Este é o ponto. Não apenas as leis da lógica não explicam ne-
nhum fato de ordem psicológica, como de outro lado, nenhuma
delas pode ser origem de um fato, ou pode ser fundamento de um
fato. Isto quer dizer que de nenhuma lei lógica você pode deduzir
que o fato tem que acontecer, porque todas as leis são hipotéticas.
Quando você diz que A = A, isso não implica que tenha que
existir um A. Se você fizer a seqüência toda das leis lógicas, toda
a estrutura da Lógica, você não tem um único fato que você possa
deduzir daı́ como necessário.
Assim como em nenhum cálculo aritmético, qualquer que seja,
você poderia deduzir a existência de objetos que se regrassem por
esses cálculos. P.e., se você diz que 2 + 2 = 4, isto não implica
que tenha que existir, p.e., 4 laranjas, ou 4 elefantes, ou 4 quaisquer
coisas. Se nós pudéssemos, das leis da Lógica, deduzir os fatos,
então, dos cálculos aritméticos elementares nós deverı́amos ter que
poder deduzir a existência de coisas naquela quantidade.
Estão vendo como isso é absolutamente impossı́vel sob todos
os lados que você examine? Ele concedeu a essa hipótese todas

636
25 Preleção XXV

as possibilidades de ser verdadeira. Todas, todas, todas, as mais


remotas!
Ontem, o que nós vimos foi que a hipótese psicologista con-
funde o conteúdo do juı́zo com o ato de um juı́zo ser pensado ou
proferido. Aqui, ele não está falando do ato do juı́zo, ele está fa-
lando das coisas mesmas a que se refere. Ele está falando da lei e
do objeto da lei. Ele está dizendo simplesmente que nenhuma lei
lógica tem por objeto, o fato.
Se as leis lógicas são leis psicológicas, foram obtidas por
indução, obtidas a partir da observação dos fatos psicológicos.
Ora, como é que você poderia tirar por indução uma lei desde
certos fatos, se esses fatos não existissem?
Portanto, se existem leis psicológicas induzidas a partir dos fa-
tos é porque os fatos existem. Mais ainda, essas leis teriam que
dar fundamentos dos mesmos fatos. Portanto, a existência dos
fatos deveria estar afirmada por uma dessas leis, ou pelo menos,
pressupostos nelas.
No entanto, nós vimos que isso não se dá com nenhuma lei
lógica; todas que você examine, você verá que delas não se pode
deduzir nunca esse ou aquele fato, e aliás, nenhum fato. É só
você experimentar, você pega qualquer lei lógica, ou qualquer si-
logismo que você faça, qualquer um, referente a qualquer coisa, e
você vê que deles você nunca pode deduzir a existência do fato em
questão, mesmo que o silogismo se refira a fatos.
Quando você diz, “Sócrates é homem; todo homem é mortal;
logo, Sócrates é mortal”, isso aı́ implica a existência de Sócrates?
E a existência de homem? Então você está falando das essências,
e não das existências. Você diz o quê que o homem é, indepen-
dente dele existir ou não. E isto é assim a respeito de todas as leis
lógicas, assim como de todos os cálculos da aritmética elementar.
A aritmética elementar inteirinha não supõe que exista nenhum
fato que seja regrado por ela. Quando você diz, “2 + 2 = 4”;

637
25 Preleção XXV

vamos supor que só tivessem existido em toda a história humana,


3 laranjas, isso não faria mais nenhuma diferença para a aritmética.
Se para o caso anterior havia uma confusão entre o conteúdo do
juı́zo e o ato proferido, ou pensado, aqui nós estamos vendo uma
confusão entre a lei e o seu objeto.
Não se deve objetar que em nenhuma parte do mundo se tenha
podido chegar a falar das leis lógicas se nunca tivéssemos tido
representações e juı́zos em vivências atuais. Apenas é necessário
dizer que esta conseqüência não é tirada da lei, mas sim do ato de
compreensão e de afirmação da lei.
Ou seja, pode surgir a objeção de que se nunca tivéssemos tido
conhecimento de nenhum fato, também não terı́amos chegado a
conhecer as leis lógicas. Pode surgir esta objeção, porém esta
objeção não objeta nada, porque ela não diz respeito à lei mas
às condições de nós chegarmos a ter o conhecimento dela.
Seria a mesma coisa que dizer que se não tivesse havido laranjas
ninguém poderia ter contado as laranjas e chegado à conclusão de
que 2 laranjas + 2 laranjas são 4 laranjas.
As laranjas são um instrumento pelo qual você tomou conheci-
mento de uma relação quantitativa entre laranjas e laranjas; seria
outra coisa. As condições que permitem o conhecimento de algo
nada tem a ver com este algo.
As hipóteses ou os ingredientes psicológicos da afirmação de
uma lei não devem confundir-se com os elementos lógicos de seu
conteúdo.
As “leis empı́ricas” têm eo ipso (por isso mesmo) um conteúdo
de fatos. Como leis impropriamente denominadas, somente afir-
mam, dizendo a grosso modo, que diante de uma experiência re-
grada podem ocorrer certas coexistências ou sucessões em certas
circunstâncias, ou que, segundo estas, ocorrem com maior ou me-
nor probabilidade. Isto implica a existência efetiva de tais cir-
cunstâncias, de tais coexistências e sucessões. Mas tampouco as

638
25 Preleção XXV

leis exatas das ciências empı́ricas deixam de ter um conteúdo de


fatos.
Por serem leis empı́ricas são leis pela experiência. Experiência
de quê? Experiência de fatos. O fato que não acontece não pode
ser objeto de experiência. Se é uma lei empı́rica significa que ela
foi tirada da experiência de determinados fatos, portanto toda lei
empı́rica tem um conteúdo referente a fatos.
[ Olavo pede que se repita o texto ]
Como leis impropriamente denominadas, somente afirmam, di-
zendo a grosso modo, que diante de uma experiência regrada
podem ocorrer certas coexistências ou sucessões em certas cir-
cunstâncias, ou que, segundo estas, ocorrem com maior ou menor
probabilidade.
Toda e qualquer lei cientı́fica se refere à coexistência ou su-
cessão. Coisas que acontecem ao mesmo tempo, que são conco-
mitantes, ou que são sucessivas, seja por um enlace causal, seja
por um outro enlace qualquer. Toda lei empı́rica, e inclui quais-
quer Ciências.
Qualquer Ciência que se refira a fatos, que não sejam Ciências
puramente formais como, p.e., a Lógica ou a Matemática, todas
as leis que elas formulam são referentes ou a fatos coexistentes,
concomitantes, ou então a fatos de ordem sucessiva. Essas leis
enlaçam os fatos numa coexistência ou numa ordem de sucessão.
P.e., no seguinte sentido: onde há tais ou quais condições surgem
tais ou quais fatos concomitantemente ou sucessivamente.
Exemplo de uma lei cientı́fica qualquer: lei da gravitação,
matéria atrai matéria, etc, o quê é isso aı́? É uma concomitância,
não é? Onde tem determinados fatos vamos ter matéria aqui, e tem
matéria do outro lado, então acontece tal relação. Toda e qualquer
lei cientı́fica é sempre assim. De fato é um sistema muito simples,
não é?
Os fatos são fatos que acontecem no tempo e no espaço. O fato

639
25 Preleção XXV

é aquilo que tem existência cronotópica (espaço- temporal). Se


aquilo que não existe em parte alguma e em tempo algum, não é
fato. A própria definição de fato é aquilo que é cronotopicamente.
Você pode, p.e., fazer a abstração do tempo, mas não do espaço;
ou do espaço, mas não do tempo; mas a abstração dos dois você
não pode fazer, porque aquilo que não acontece em lugar nenhum
e nunca acontece, isto é, não acontece em tempo algum, simples-
mente não acontece de modo algum, portanto não é fato.
Isto implica a existência efetiva de tais circunstâncias, de tais
coexistências e sucessões.
Claro, porque se a coexistência não existe e a sucessão também
não, então a lei é falsa. Se eu afirmo uma coexistência, mas ela não
acontece em parte alguma e nem em tempo algum, então minha lei
é falsa!
Se eu digo assim, p.e., existe uma correlação entre o horário das
partidas dos aviões e o número de nascimento de pessoas. Daı́ eu
faço a estatı́stica e vejo que isso não acontece realmente em parte
alguma, então a lei é falsa, não é?
As leis astrológicas são um outro exemplo. Se eu digo, “As pes-
soas que têm Saturno na Casa 10 são ambiciosas”, eu estou esta-
belecendo uma relação probabilı́stica e vejo que ela não acontece,
porque as pessoas são tão ambiciosas quanto as outras, ou têm tão
pouca ambição quanto as outras, portanto isso não acontece, nem
aqui, nem lá, nem em parte alguma e nunca acontece. Esta relação
não se verifica. Portanto, a lei é falsa.
Se a lei é verdadeira é porque ela corresponde, ou uma sucessão
real, ou a uma coexistência real, ou a uma coexistência e sucessões
reais. Portanto, a veracidade da lei cientı́fica consiste na existência
dos fatos respectivos.
Mas tampouco as leis exatas das ciências empı́ricas deixam de
ter um conteúdo de fatos.
Claro, se a lei for formulada matematicamente, ela ainda assim

640
25 Preleção XXV

se refere a um conteúdo de fatos. P.e., nós temos que E = mc2 . O


quê é energia? É uma relação perfeitamente quantificada. Então,
o fato dessa lei ser exata não a torna menos uma lei de fatos.
Assim, todas as leis das ciências exatas sobre fatos são, sem
dúvida, autênticas leis; mas consideradas desde o ponto de
vista epistemológico, são apenas ficções idealizadoras, ainda que
ficções cum fundamento in re (com fundamentos nas coisas). Es-
tas ficções cumprem a missão de tornar possı́veis as ciências
teoréticas, como os ideais mais ajustados e próximos à reali-
dade; ou seja, de realizar o supremo objetivo teorético de toda
investigação cientı́fica de fatos, o ideal da teoria explicativa, da
unidade pelas leis.
Qualquer Ciência empı́rica, qualquer Ciência de fatos, visa a
encadear as sucessões ou coexistências como se fosse uma cadeia
lógica.
Dados os fatos observados, se nós conseguirmos encadeá-los
segundo uma relação necessária como se fossem sentenças de uma
série silogı́stica, sentenças de uma cadeia dedutiva, aı́ realizamos
o objetivo da Ciência empı́rica.
Se os fatos pudessem estar tão bem encadeados como estão as
partes do silogismo, estaria realizada a Ciência, de modo que, par-
tindo dos princı́pios dessa Ciência nós tivéssemos deduzido de an-
temão os fatos, ou seja, prever. Não é esse o objetivo de toda
Ciência?
Uma Ciência pode prever porque a estrutura lógica é sempre a
mesma, não é?
[ Olavo faz um desenho no quadro ]

+-- Princı́pios

+---------+ +------------+ +------------+ +---

641
25 Preleção XXV

| um fato +----| outro fato +----| outro fato +- ... -| ou

+---------+ +------------+ +------------+ +---

Então você tem lá as premissas e tem as sentenças. Só que


no caso do discurso cientı́fico ao invés de essas várias sentenças
serem simplesmente idéias que você teve, elas expressam fatos
observados.
Então você coloca um fato neste ponto da cadeia, outro fato
aqui, outro aqui, e eles estão encadeados dedutivamente exata-
mente como se fosse um cálculo matemático ou como se fosse
uma seqüência silogı́stica.
Ora, se é assim, você possuindo os princı́pios, e 2 ou 3 fatos
iniciais, você poderia deduzir o resto. Isto quer dizer que no ideal
cientı́fico os fatos perdem a sua gratuidade, e aı́ começam a ser
encadeados dentro de seqüências lógicas. Isso é o que toda Ciência
busca fazer.
Claro que a Ciência que mais se aproxima desse ideal é a Fı́sica
teórica. Porém, é claro que nenhuma Ciência alcança esse ideal,
porque é um ideal apenas, e esse ideal é dado pela própria Lógica.
A Lógica é um ideal pelo qual a Ciência se pauta. Nenhuma
Ciência consegue encadear os seus fatos tão perfeitamente bem
porque sempre faltam fatos, ou você não observou um outro, ou
um outro campo de fenômenos se mistura a aquele que você está
observando, em suma, nunca você chega a essa perfeição.
Por isso mesmo é que ele diz que as leis cientı́ficas são ficções
idealizadoras. Uma Ciência fı́sica descreve o mundo como se
ele fosse uma seqüência de silogismos. Como se..., prestem bem
atenção. E busca uma aproximação, uma exatidão suficiente para
poder orientar a experiência e fundamentar a técnica e isso é tudo.
Mas é claro que nenhuma seqüência, ordem, de fatos pode es-
tar tão perfeitamente bem encadeadas dentro de si mesma como

642
25 Preleção XXV

a seqüência de silogismos, porque isso seria contraditório com a


própria definição de fato, porque fato é aquele que acontece em
algum momento e em algum lugar.
Se os fatos pudessem estar tão bem encadeados uns com os ou-
tros como estão as seqüências no silogismo, então a necessidade
desses fatos já está dada de antemão, é como se você dissesse, “to-
dos os fatos teriam que acontecer de uma vez para sempre”; não
existiria a própria seqüência temporal.
Toda Ciência busca os invariantes. Invariantes são relações
repetı́veis. Na hora que você expressa uma lei cientı́fica, p.e.,
matéria atrai matéria na razão direta das massas, você está falando
de uma relação invariante, ou seja, ela se repetirá igualzinha em
todos os fatos da mesma natureza.
Ora, esses invariantes são, por sua própria natureza, apenas
aproximativos porque não há a mais mı́nima condição de você ob-
servá-los até a última exatidão. Se for inteiramente exato eu teria
que dizer que esse fato coincide inteiramente com a unidade de
medida com que eu o meço. Ele é a própria unidade de medida!
Ora, a unidade de medida, por sua própria definição, é meramente
ideal.
Nos sistemas de medições se observa isso, não pode haver ne-
nhuma coisa que meça exatamente 1 centı́metro ou 1 milı́metro, a
não ser o próprio centı́metro ou o milı́metro. Todas as outras coi-
sas, por mais idênticas que sejam, medem aproximadamente. Por
mais exata que seja! Pela própria natureza da coisa a ser medida,
ela não é uma medida, ela é uma coisa.
P.e., 1 centı́metro mede apenas 1 centı́metro de extensão.
Agora, quanto mede o centı́metro, de espessura? Quanto mede
o centı́metro, na duração? Quanto mede o centı́metro, na inten-
sidade? O centı́metro só mede 1 centı́metro na extensão; ele é a
pura extensão.
Existe alguma coisa que seja pura extensão? Mesmo que na

643
25 Preleção XXV

extensão ela medisse exatamente 1 centı́metro, na espessura ela


mediria alguma outra coisa, na intensidade mediria alguma outra
coisa, e assim por diante.
Nenhum objeto pode coincidir com a unidade de medida a não
ser que ele seja a própria unidade de medida.
Outra coisa, unidades de medida são separáveis, destacáveis.
P.e., de um objeto nós podemos considerar somente a sua extensão
e não a sua espessura, ou largura, mas certamente alguma espes-
sura ou largura ele deve ter, a qual fica completamente à margem
da medida de extensão.
Se na simples medição já é assim, você imagine nas leis ci-
entı́ficas mais abrangentes. Não há exatamente no mundo nada
que se passe tal e qual diz qualquer lei cientı́fica. P.e., os obje-
tos que se atraem uns aos outros na razão direta das massas, etc,
etc, como dizia Newton, ao mesmo tempo em que se passa isso,
se passa, p.e., transformações fı́sicas neles, e que não estão abran-
gidas por essas leis, e que podem, p.e., mudar o seu tamanho, e
se forem, p.e., seres vivos, por questão de horas as massas deles
aumentam e diminuem.
Portanto, nós dirı́amos assim, a lei da gravidade, como qual-
quer outra lei, descreve o que se passaria entre objetos dotados de
massa caso essas massas permanecessem absolutamente inaltera-
das durante o tempo de entrada em ação dessa mesma lei. O que
jamais acontece.
Portanto, qualquer Ciência recorta o campo do seu fenômeno,
artificialmente. E dentro desse campo ela vê determina-
das relações que se aproximam dos fatos observados, uma
aproximação ideal, mais ou menos no sentido daquela série de
Cantor (um número maior do que 0). Mas nunca vai dar 0. O
desajuste entre a lei e o fato nunca vai ser 0, por definição. E não
pode haver identidade entre fato e lei, porque a lei se aplica a todos
os fatos, e cada fato é só um.

644
25 Preleção XXV

Só se houvesse um fato que adquirisse por si mesmo plena va-


lidade de lei universal e absorvesse em si todos os demais fatos,
então seria um fato único. Isto também não existe, é claro.
Agora, é mais do que evidente que quem não pensou essas coi-
sas aqui não pode entender direito o quê que é uma Ciência. Não
vai chegar a entender jamais.
[ Stella: a perplexidade é saber: como é que funciona? ]
Porque há uma aproximação suficiente. Funciona dentro de um
campo considerado. Se você amplia o campo aquilo não funciona
mais. P.e., quando você vai da Fı́sica Newtoniana para a Fı́sica
sub-atômica. Para a Fı́sica atômica já não funciona mais, para a
Fı́sica sub-atômica muito menos ainda, porque é uma outra esfera.
É uma esfera que você não vê, que você não toca e que nas suas
relações macroscópicas com o mundo exterior ela não interfere,
mas não é menos real do que a Fı́sica newtoniana.
Uma lei empı́rica abrange fatos que acontecem dentro de um
campo definido de antemão. Mesmo que esse campo seja enorme-
mente vasto ele não pode ser a realidade total, nunca pode. Tem
alguma Ciência que abranja a realidade total? Tem a Metafı́sica,
mas ela é empı́rica? Não, ela é meramente ideal, ou meramente
formal, ela lida apenas com a possibilidade.
No lugar do conhecimento absoluto, que nos está recusado,
nosso pensamento intelectivo extrai das singularidades e genera-
lidades empı́ricas, primeiro estas probabilidades, por assim dizer,
apodı́cticas, que encerram todo o saber exeqüı́vel no que concerne
à realidade.
Se se trata de fatos empı́ricos, então o saber absoluto já está
recusado, não é possı́vel pelo simples fato de que se refere a fatos.
“Fatos”, tem que ser delimitado um campo determinado. Além
do mais, nós dependemos de que os fatos aconteçam, ou seja, os
fatos só poderão ser observados e estudados se acontecerem.
Portanto, o saber absoluto já está fora de cogitação pois vai que

645
25 Preleção XXV

os fatos não acontecem e lá se foi o nosso conhecimento. Então,


nós dependemos de que esses fatos aconteçam e de que estejam
ao nosso alcance de alguma maneira. Mesmo com o raciocı́nio
probabilı́stico.
Você não pode fazer um raciocı́nio probabilı́stico a partir de 0
(zero) fatos. Você tem que ter uma base qualquer. Para você ver a
probabilidade de qualquer coisa é necessário que uma outra coisa
aconteça. P.e., vamos supor, a probabilidade real do sujeito ser
candidato. Isto aqui não se assenta em um fato? Porque senão
você poderia fazer esse cálculo com relação a qualquer pessoa.
Mesmo que seja uma mera probabilidade remota você sempre
depende do núcleo de fatos inicial, porque senão você vai medir a
probabilidade do quê?
Suprima todos os fatos, experimente fazer um cálculo proba-
bilı́stico sem nenhum, nenhum, nenhum, fato. O quê que você
vai estabelecer? Vai estabelecer relações lógicas puras, e isto não
é probabilı́stico. Se você suprime todos os fatos, acabou com a
probabilidade, você entrou para o absoluto.
Partindo do fato de que determinadas coisas acontecem, existe a
probabilidade de que outras aconteçam, mas se nada, nada, nada,
aconteceu, o raciocı́nio probabilı́stico não se aplica; aplica-se ape-
nas o raciocı́nio lógico puro.
Husserl diz que essas probabilidades são, por sua vez,
apodı́cticas. Você pode chegar a uma probabilidade que em si
mesma é apodı́ctica, que existe uma margem de tanto a tanto de
probabilidade de que tal coisa aconteça. Isso aı́ ele já disse lá para
trás. Basta o cálculo estar certo que a probabilidade em si mesma
é apodı́ctica.
Uma verdade apodı́ctica é uma coisa, e uma verdade proba-
bilı́stica é outra completamente diferente. É apenas uma probabili-
dade inegável. Você não pode negar que a probabilidade é aquela,
mas você não pode dizer nem mesmo que ela vai acontecer de fato

646
25 Preleção XXV

porque ela é mera probabilidade. Probabilidade apodı́ctica quer


dizer um cálculo matematicamente correto.
Reduzı́mo-las logo a proposições exatas, que têm o caráter de
autênticas leis; assim é como lograrmos construir os sistemas for-
malmente perfeitos das teorias explicativas. Mas estes sistemas só
têm valor de possibilidades ideais, cum fundamento in re, que não
excluem outras infinitas possibilidades.
“Mas estes sistemas só têm o valor de probabilidades ideais,
cum fundamento in re, que não excluem outras infinitas possibili-
dades”, diz Husserl. Isto aqui é da maior importância.
Uma vez que você encontrou uma explicação cientı́fica para um
determinado fato, o que você fez foi exatamente isto, você agrupou
os fatos dentro de um campo, fez a probabilidade, quantificou, e
esses fatos devidamente quantificados são inseridos dentro de uma
seqüência silogı́stica explicativa.
Na Medicina, p.e., o fato de que você tenha atribuı́do a deter-
minado sintoma, um determinado vı́rus, e tenha comprovado, isto,
fora de qualquer possibilidade de dúvida, isto não implica que não
haja outras infinitas causas do mesmo sintoma, concomitantes.
Uma lei cientı́fica é somente isso, é uma determinada relação
que se observa dentro de um campo, e que em tais ou quais
condições se repete. Isto é tudo!
Você só não pode negar que tem lá o raio do vı́rus que causa o
resfriado, o Aids, ou o raio que o parta, e ele de fato está lá. Agora,
nós podemos dizer que o vı́rus é a causa? Nem mesmo isso! Só se
você cercasse por absoluta impossibilidade, que você encontrasse
apodicticamente que é impossı́vel qualquer outra coisa causar o
mesmo sintoma.
Cada lei cientı́fica descoberta, fundamentada, provada e verifi-
cada, ela só exclui exatamente a proposição inversa e mais nada.
Todas as outras proposições concomitantes, paralelas, derivadas,
parecidas, similares, tudo isso é possı́vel.

647
25 Preleção XXV

Portanto, quando alguém disser, “Está cientificamente provado


que o que causa tal coisa é tal outra coisa”, não está provando nada.
Está provando que isso aı́ está presente, e fim. A prova cientı́fica é
limitada a aquilo mesmo que ela prova.
Agora, pode acontecer que você tenha cercado o fenômeno tão
bem que a probabilidade de haver interferência de outras causas
seja mı́nima. Dentro do campo considerado, notem bem. Porém,
nós ainda poderı́amos perguntar, “Mas, o quê causa essas cau-
sas?”.
P.e., nos debates de problemas psico-fı́sicos, se uma coisa tem
causa psicológica; se o que causa o stress é um vı́rus, se é um fator
psicológico, etc, etc. A pergunta está totalmente mal colocada.
É evidente que não existem causas alternativas. Deve existir um
encadeamento global de causas que só será descritı́vel na hora que
você conhecer cada uma delas em particular.
Então vamos ver, que peso tem o vı́rus? Vamos ver que peso
tem a posição do sujeito. Vamos ver que peso tem outra. Veja
agora as relações entre estas que liga uma causa parcelar numa
outra causa parcelar. Aos poucos você vai compondo, você vai
montando cada pecinha dentro de uma visão sistêmica até você
conseguir o sistema. Isso dá um trabalho medonho.
Você tem que ter a idéia do encadeamento sistêmico e de cada
uma das correlações. Neste sentido, eu tenho visto poucas coisas
mais cientı́ficas do que a Astrocaracterologia, porque ela faz exa-
tamente isto, pega a hipótese sistêmica e vai parte por parte, sem
destacar.
[ Stella: Kant tem razão, você não conhece um fato inteira-
mente; talvez não seja exagerado como ele diz. Kant diz que você
só conhece fenômeno. Talvez ele não esteja tão errado assim por-
que se você vai fazer a coisa em si, o fato é totalmente cercado por
todas as suas possibilidades explicativas...]
Não é isso que ele disse. A “coisa em si” não é isso. A “coisa

648
25 Preleção XXV

em si” é tal como ela é, independentemente do observador. E no


entanto você tem a visão da “coisa em si”, ou não?
P.e., o sujeito está com gripe. Você não sabe que o cara está
com gripe? Você não sabe quando você está com gripe? Você não
tem uma visão global, imediata e até intuitiva? Bom, mas agora
eu quero saber a seqüência de causas. Aı́ você tem que segmentar
e analisar pedaço por pedaço. Agora, se você perdesse a visão
intuitiva do que é gripe, dançou.
A visão da sı́ntese confusa inicial não pode ser perdida num
único momento, ela é um pressuposto do conhecimento.
Quando as pessoas pretendem que conhecimentos cientı́ficos
substituam a visão intuitiva, aı́ é que é demência pura e simples,
é como dizer, “Essa cadeira não é uma cadeira, é um aglomerado
de árvore”. Você pegou a visão intuitiva confusa e trocou por uma
visão cientı́fica.
[ Stella: mas você não chega a uma sı́ntese distinta, não é? ]
Não. Você pode chegar, claro que pode. Na hora que eu estou
falando isso eu estou fazendo a sı́ntese de tudo. Você diria assim,
“Essa cadeira não é uma cadeira, é um aglomerado de átomos”.
Daı́ eu faço a seguinte proposição, “Isto aqui é um aglomerado
de átomos que no nı́vel macroscópico da minha percepção toma a
forma de cadeira”. Pronto, está aı́ a sı́ntese distinta.
O único problema é o seguinte, a fragmentação e a dificuldade
de você compor o conjunto surge na medida onde você pretenda
transformar tudo numa seqüência silogı́stica global, que dá até
uma impossibilidade prática de você fazer, porque a seqüência si-
logı́stica necessariamente recorta uma determinada região. Se ela
é linear, é evidente que ela não pode ser tridimensional. Se nós só
tivéssemos essa forma de pensar — o silogismo — nós estarı́amos
perdidos.
[ Stella : a dialética tenta lidar com algumas linhas, não é? ]
Na verdade tudo isso se fundamenta na sı́ntese inicial confusa.

649
25 Preleção XXV

Isso é o que nós chamamos realidade, que é o mundo tal como


experimentado, é o mundo da vida, onde tudo, tudo o que acontece
tem milhões de significados possı́veis ao mesmo tempo.
Para a experiência humana comum e corrente, não existe, p.e.,
realidade de ordem fı́sica. Tudo que é de ordem fı́sica, ao mesmo
tempo, pertence à ordem humana.
Quando você vai a uma loja e compra uma cadeira, você com-
prou a cadeira fı́sica? Em Fı́sica qual é o preço de uma cadeira?
Não tem, não é? Quer dizer que, os conceitos vagos que você tem
nas várias Ciências, que recortam certos pedaços que só tem sen-
tido em face desse pano de fundo, e somando todas as Ciências,
não completam de novo esse pano de fundo.
Toda hora a gente vê que está faltando uma nova Ciência que
teria um ponto de vista que estaria implı́cito na percepção corrente,
mas ao qual não corresponde uma Ciência determinada.
A realidade, a percepção comum e corrente é válida, o senso
comum é válido, e não só é válido como é o fundamento de todo o
conhecimento. Você pode conciliar o melhor do seu senso comum
efetivamente, mas não a respeito de tudo.
O sujeito que sabe toda a composição quı́mica das coisas, será
que ele também sabe o preço de todas as coisas? Ou ele sabe a
quem pertence todas essas coisas? Ou ele sabe a causa eficiente
de cada uma dessas coisas distintas, quem foi que plantou a árvore,
quem foi que fez a cadeira? É claro que não sabe!
Ele sabe tudo dentro de uma determinada linha de conexões,
mas a realidade significa inseparabilidade de todas as linhas de
conexão. Onde você puder separar uma, você saiu do que chama
realidade, você entrou na veracidade cientı́fica e isto é outra coisa.
Nós podemos dizer que uma coisa é real quando nenhuma or-
dem de significação, ou de causa, pode ser excluı́da dela. Se puder,
já é irreal, já é abstrato.
Concreto é aquilo que cresce junto, quer dizer, todas as ordens

650
25 Preleção XXV

de causa que provocam aquilo estão agindo concomitantemente, e


se você separar uma, a coisa já não existe mais.
A percepção é abstrativa, mas a intuição não é. Quando você
reflete, você já está subentendendo o mundo real por baixo. Basta
você saber que a sua percepção é incompleta para saber que aquilo
tem outros aspectos. Isto quer dizer que uma visão concreta da
realidade é muito difı́cil, e no entanto nós vivemos nela.
Uma visão concreta é essa coisa invisı́vel e que está por baixo
de tudo o que é visı́vel, e que torna possı́vel você dizer alguma
coisa. O mundo concreto é a base do seu pensamento abstrato.
Agora, se você procura inventar um mundo abstrato que substitua
o concreto, você está doido da cabeça.
As Ciências todas vivem fazendo isso; o praticante de qualquer
Ciência tende a achar que aquele aspecto que está acostumado a
observar é mais real do que os outros.
Se estuda Fı́sica, o aspecto fı́sico lhe parece mais real, e o
mundo lhe parece organizado em cima das propriedades fı́sicas.
Se você estuda Lı́nguas, Biologia, Aritmética, etc, etc, tudo isso
que em Fı́sica é pura realidade, para você é apenas um conjunto de
signos.
Esse é o conceito básico do Husserl: Lebenswelt, o mundo da
vida. Lebenswelt é o mundo no qual você vive, e ele é invisı́vel,
e esse mundo tem um monte de propriedades. P.e., no Lebenswelt
ele diz que a Terra é imóvel.
A Terra é um fundo em relação a um ser humano que a vê
imóvel, e que mais tarde, num outro plano, por referências a ou-
tras observações que desde este mundo imóvel que você tem, você
descobre que ela é, por sua vez, móvel. Mas que por sua essência,
como lugar da vida humana, ela é imóvel.
Dizer que a visão da Terra imóvel é falsa em relação a
observações astronômicas é absurdo porque desde uma Terra
móvel não se poderia fazer essas observações astronômicas.

651
25 Preleção XXV

É por isso que eu digo que a Ciência é uma coisa muito nova
e as descobertas da Ciência exercem sobre a cabeça humana um
impacto desequilibrante. Em troca de 2 ou 3 informações novas
você cria uma imagem do mundo totalmente maluca. Eles têm
um certo desprezo pela intuição dos outros. O que é intuitivo para
eles, catapimba! Mas a intuição alheia para eles é louco.
O conhecimento cientı́fico é muito limitante e ele pode ter um
impacto que torna o sujeito esquizofrênico, porque a Ciência é
uma coisa nova e a humanidade não evoluiu o suficiente para poder
agüentar essa Ciência e colocá-la dentro da concepção racional do
mundo.
Nesse sentido nós podemos dizer que as conseqüências ci-
entı́ficas são verdadeiras com relação a certas partes do real. Essas
concepções antigas, mitológicas, embora erradas com relação a
essas partes, num todo elas são mais verdadeiras. Não é esquisito
você dizer que o trovão é a voz dos anjos. Do ponto de vista do Le-
benswelt é muito mais exato do que você dizer que o trovão é um
efeito acústico de um determinado fenômeno eletro-magnético.
O mito é mais abrangente e por isso ele pode se referir à tota-
lidade da experiência humana muito mais verdadeiro do que tal
ou qual teoria, e a teoria só terá um sentido plenamente racional
se ela conseguir ser inserida dentro dessa imagem, ou seja, den-
tro da imagem do mundo que seja adequada à função do homem
no cosmos, você colocar lá hierarquicamente distribuı́dos os dois
sentidos.
Só aı́ é que vai ser racional, por enquanto não; por enquanto
será racional com relação a este ou aquele ponto à custa de você
ser irracional em relação ao todo. P.e., quando você descobre que
as coisas são compostas de átomos, ou de um montão de partı́culas
sub- atômicas, e daı́ você nega que as cadeiras sejam cadeiras.
Tem um grande filósofo-cientista, (Whitecker(?)), que fez uma
grande conferência dizendo isto, “Estão vendo esta lousa, esta pa-

652
25 Preleção XXV

rede? Tudo ilusão, porque realmente são átomos!”, quer dizer, ele
negou uma faixa da realidade e afirmou outra.
Se fosse um pouco mais tarde nós também poderı́amos di-
zer, “Tá vendo todos aqueles átomos? Tudo ilusão! Tudo tem
partı́culas sub- atômicas!...” Então é o caso de você perguntar,
“Quanto custa uma partı́cula sub-atômica?” Qual é o preço? Ah!
não custa nada? Então leve seu carro para casa, de graça, porque
tudo é partı́cula sub-atômica mesmo ...
O quê é isso? É uma informação cientı́fica, verdadeira, rela-
tiva a um determinado aspecto do universo, que é incumbida de se
substituir ao mundo real.
Sempre que você pega um cientista, e o nego se mete a opinar
sobre o mundo, só sai besteira. Se alguém pode opinar sobre o
mundo, essa opinião só pode ser metafı́sica ou mitológica, não vai
sair disto. A sua Metafı́sica não vai ser melhor do que a minha
não.
O problema é que a Ciência ganhou um prestı́gio muito grande;
tão grande quanto o prestı́gio do pajé. Mas, é porque o pajé tem
prestı́gio que ele vai poder opinar, p.e., na Mecânica Newtoniana?
Não, e o cara que é newtoniano também não entende nada daquele
negócio que o pajé está falando. Então é uma questão de campos
diferentes, de planos diferentes.
A função básica da Filosofia é justamente articular essas coisas
numa visão coerente, ou seja, assegurar o fundamento racional no
todo.
[ Pergunta: você acha que é possı́vel dizer que a Ciência, até
onde ela chegou, por enquanto ela só fez um desserviço à humani-
dade, porque enquanto a Religião e a Mitologia ofereceu todas as
respostas ...]
Não! A Mitologia teve 10000 anos de chance, a Ciência teve
400 anos. A Ciência é uma coisa nova com a qual a humanidade
não sabe lidar, o qual o indivı́duo está com o sorvete na testa. Nós

653
25 Preleção XXV

não temos experiência suficiente para o saber cientı́fico, nós somos


todos caipiras que descobriram lá um monte de contas, ficamos
deslumbrados, e achando que sabemos tudo.
A experiência da Ciência é nova, e o pior, as condições em que
a Ciência é ensinada são de modo a tornar os sujeitos verdadeiros
imbecis. P.e., se você não levou em consideração essas coisas que
esse homem está falando aqui neste texto, você jamais vai saber o
que é Ciência.
A esta altura o mundo todo está cheio de pessoas nos labo-
ratórios calculando os “buracos negros”, o não-sei-o-quê, e eles
nem sabem o que estão fazendo. A Ciência é um negócio quase
esotérico, mas que está indo para as mãos indevidas. Vejam, num
século, quantas pessoas aptas a compreender estas coisas aqui?
Umas 2 ou 3!
[ Stella: a gente não consegue prever as conseqüências lesivas
de determinada direção que ela possa tomar e se abster, não é? ]
A Ciência não tem conseqüências indevidas. São as aplicações
técnicas, se forem levadas à prática. Ela não pode ser acusada
disso porque isso é quase impossı́vel.
Você prevê as conseqüências de todos os seus atos? Faz parte da
vida humana você prever perfeitamente a conseqüência dos seus
atos, ou ao contrário, faz parte dela você apostar?
Você está raciocinando sobre a técnica, sobre a tecnologia. A
técnica é uma ação humana. É absolutamente impossı́vel você
prever.
A pergunta então seria, “se, em escala mundial, valeria a pena
você ter tanta técnica”. Mas, sinceramente, isso aı́, se a técnica vai
desumanizar o homem, se vai destruir o planeta, eu estou pouco
ligando. Eu realmente não me interesso; se destruir o planeta,
tudo bem, algum dia ele vai ter que ser destruı́do mesmo.
Eu, quando discuto as coisas, estou me colocando numa esfera
puramente teórica. As conseqüências éticas, psicológicas, etc, etc,

654
25 Preleção XXV

já é um lado vulgar que a gente pode ver em qualquer editorial de


jornal. Não é nisso que a gente deve se preocupar.
“Ah!, como a técnica é maldosa, porque ela destrói a camada
de ozônio, etc, etc.”, mas ninguém sabe quando surgiu esse buraco
do ozônio. Tem gente que diz que foi anteontem, e tem gente que
diz que foi a alguns milhões de anos. Não tinha nem troglodita
usando spray para fazer o buraco. Talvez esse buraco fosse im-
prescindı́vel, não se sabe ainda. Então, toda essa discussão sobre
os efeitos da técnica é prematura porque a gente ainda não sabe.
O século XX foi de debates éticos, psicológicos, religiosos,
teológicos, etc, etc, sobre essa coisa da técnica, da Ciência. Eu
considero tudo isso aı́ assunto para pessoas sentimentais, que fi-
cam preocupadas com o futuro da humanidade, que acham real-
mente que ele pode colaborar a advertir contra coisas perigosas,
etc, etc.
Eu sou mais Hegeliano, ou seja, todo mundo é racional, o que
acontece, tem que ver. Então, não tem tanto problema assim.
Aliás, o mundo não está numa situação tão catastrófica quanto as
pessoas moralistas dizem, nem tudo está perdido, e eu acho que to-
das as épocas são iguais perante Deus; a nossa não é nem melhor
nem pior do que nenhuma outra.
Por outro lado, eu acho que a nossa época prima pela imbeci-
lidade, mas por outro lado é o contrário, porque onde é que você
vai encontrar uma outra época que tenha um sujeito tão inteligente
quanto este (Husserl). É difı́cil, não é?
Não se pode criticar uma época, nem o curso geral do mundo,
não cabe ao homem fazer isso. Você não pode ser policial do cos-
mos. Se ele acha que o curso do mundo vai de mal a pior, ora, pára
o mundo e desce... Ora, se está mal, então ajuda e faz a sua parte,
mas aı́ você vai fazer parte de movimentos ecológicos, movimen-
tos esotéricos, holı́sticos, e fica jogando tomate. Aliás, eu acho
que isso aı́ é um dos fenômenos deprimentes do nosso tempo, o

655
25 Preleção XXV

número de pessoas que dão palpite em assuntos múltiplos é as-


sombroso!
P.e., a tal da técnica; o que se escreveu de besteira sobre a
técnica, “Ah!, a técnica é uma coisa horrı́vel”, “O computador vai
dominar o homem”, mas, o quê é isso?! Que loucura é essa?! Se
o sujeito for imbecil, então ele é digno de ser dominado por um
computador. É uma questão de justiça.
Também esse negócio de Inteligência Artificial; eu li um
negócio num Congresso sobre inteligência artificial que todo
mundo discutiu isso, “será que o computador vai ficar mais in-
teligente que o homem a ponto dele poder fazer um homem?”.
Veja, se você bolar um computador tão inteligente assim que não
só inventa um homem teoricamente, mas ele é capaz de gerar um
homem transando com um outro computador, ele é um homem, ou
é uma mulher, ué! Está resolvido o problema!
Se você diz, “Ah!, mas foi feito por meio cibernético!”, mas,
existem milhões de meios de você produzir um ser humano, e o
transacional é um pouco mais gostoso ...
Não é normal você produzir um homem na proveta? Mas se
por acaso ele for produzido assim, ele não será outra coisa senão
um homem. Quanto ao computador, ele foi feito para, sob certos
aspectos, ser mais inteligente do que o homem, assim como o carro
foi feito para ser mais veloz do que o homem. Se você inventa um
carro que é mais lento do que o sujeito que ele transporta ele seria
um fracasso técnico completo, portanto...
E se eu fizer um computador que é mais veloz, mais eficaz do
que eu, não só nessas operações mas em todas as operações? Se
eu fizer isso eu não saberei julgá-lo, e eu nem mesmo perceberei,
portanto, não há nenhum problema. computador vai mandar em
mim e eu estarei satisfeito.
Eu acho que isso aı́ são vulgaridades de pessoas que não com-
preendem a essência do quê que é. O ser humano é um animal

656
25 Preleção XXV

racional, dotado de liberdade, e isso é o suficiente para ser gente.


Não importa a forma que ele tenha. Normalmente ele tem essa
forma humana, mas se aparecer um outro sob a forma de Tarta-
ruga Ninja, ou qualquer coisa, e que tenha estes atributos, então
eu não tenho autoridade para não dizer também que não é gente.
Aliás, o confronto de raças já trouxe esse impacto. Quantos
anos as raças não levaram para perceber que o outro também era
gente? Foram séculos, e os caras ainda não perceberam. Não
é fácil, você vê lá um pigmeu da Nova Guiné, um homem deste
tamanhinho, que tem um filho menor ainda, não é muito verossı́mil
à humanidade. Porque se é verossı́mil um homem de 1,10m, por
quê não seria inverossı́mil um de 40cm? Este é o abismo que se
abre na mente humana, porque se ele reconhecer que esse cara de
1,10m é gente, o de 40cm também será. E se aparecer um de 6cm?
A mesma coisa.
A tua percepção sensı́vel demora para se acomodar, mas o
mundo das essências nada tem a ver com a percepção sensı́vel,
não é? Quer dizer, isso é falta de capacidade abstrativa.
Dentro dos limites de uma determinada cultura você pode consi-
derar que um de fora não é gente. A palavra “bárbaro” quer dizer,
“o sujeito que não fala”, então não pensa; se você não pensa, então
você não é gente.
A partir da hora em que você entende que a condição humana
não é algo que esteja biologicamente grudado no sujeito, mas que
é uma condição que você deve reconhecer naquele sujeito que
mesmo com uma possibilidade remota possa vir a participar disto,
na hora que você entendeu que essa condição humana é um im-
perativo categórico, que ela é um ideal abstrato, e que não é que
esteja grudada nesse ou naquele, mas, se você é humano, você está
obrigado a reconhecer a humanidade do outro por menos evidente
que ela seja.
Não é se o pigmeu da Nova Guiné, ou o Frankenstein, ou o

657
25 Preleção XXV

gentio, é ou não é gente. Se eu sou gente eu tenho que achar que


eles são gente!
Entre essa rigidez greco-judaica que só reconhece como hu-
mano um membro da sua comunidade, ...(?)... e pergunta a opinião
do alface, eu acho que o mundo cristão-islâmico chegou num
plano bem definido: basta você ser humano para que os outros
sejam humanos. Em quaisquer comunidades. Este é o ponto da
universalidade.
Estas duas religiões universais, elas servem para todo mundo
porque elas não reconhecem essa ou aquela comunidade. O Bu-
dismo, p.e., serve para todo mundo, até minhoca, pedra, serve para
gente e até para quem não é gente. Então, se você quer ficar no
meio-termo, você pega o mundo cristão-islâmico que você está no
meio-termo.
Você tem a religião exclusivista onde só os membros da nossa
comunidade importa. Os outros são os “bárbaros” ou os “gen-
tios”. Isso é um exclusivismo racial. O grego nega o dom da fala
ao “bárbaro”, subentendendo que eles não falam, mas latem, ou
grunhem. A perspectiva greco-judaica é comunitária. Uma comu-
nidade humana cercada de animais.
O Budismo é o contrário, todo mundo é gente. A cachorra do
Magri, a minhoca, a ameba, a pedra, todo mundo é gente. O Bu-
dismo é uma linguagem universal, todo mundo fala, a minhoca dá
opinião, a pedra refuta, então é claro que é impraticável. Nem o
budista chega nesse negócio, tanto que você não pode pisar na for-
miga. Se você vai daqui até a esquina você faz uma devastação,
porque você vai destruir um mundo de coisas, não é?
Então, não precisa ser assim tão bonzinho quanto o budista, e
nem tão durão quanto o greco-judaico.
Agora, eu já disse para vocês que tudo isso são perspectivas con-
denáveis. Eu acho que o racismo é inerente à condição humana.
O homem nasce racista, depois ele aprende a não ser. Que tem

658
25 Preleção XXV

uma coisa instintiva, tem. Não tem se você já foi criado num meio
inter-racial.
Isso é sempre a confusão da percepção sensı́vel habitual com as
essências, ou seja, é uma confusão entre o real e o ideal.
O racismo é uma forma do psicologismo. Você deduz o seu con-
ceito de essência humana num monte de seres humanos parecidos
que você já viu. É uma dedução errada. O conceito humano é um
conceito ideal.
A definição plena do Eric Weil sobre o homem é a definição
ideal. Quando ele diz que o homem é um animal racional ele não
está dizendo por indução que ele é racional, mas que ele deve ser
racional para merecer o nome ideal.
Agora, se você tirou o seu conceito pelo empirismo, se você é
japonês, o homem é isto; na hora que você vê um cara diferente,
ele não é homem.
Você pega um cara desses que acha que só os amigos dele são
seres humanos e você ensina Fı́sica Quântica para ele. O quê você
acha que vai dar? Quantos cientistas, doutores, professores de fa-
culdade, não têm dentro de suas cabeças essas idéias arcaicas?
Eles têm uma ética de botocudos, uma metafı́sica de esquimó.
Então, tem que civilizar a ética deles, a metafı́sica deles, tem que
sumir tudo.
O problema é a civilização parcial dos indivı́duos, porque a
Ciência só mudou um átimo nesses 4 séculos, e numa só direção,
então precisa subir o resto, senão vai ficar doidinho mesmo.

659
26 Preleção XXVI
18 de junho de 1993

[ Olavo retorna ao texto do Husserl ]


Se as autênticas leis são um mero ideal na esfera do conheci-
mento de fatos, como acabamos de ver, este ideal se encontra idea-
lizado na esfera do conhecimento “conceptual puro”. A esta esfera
pertencem nossas leis lógicas puras e as leis da mathesis pura.
Mathesis pura é como se fosse “combinatória universal”. Se-
ria o conjunto de leis da possibilidade. Mathesis é um termo
grego que, em última análise, significa ensinamento, ou conheci-
mento. Mathesis seria a metalinguagem de todos os conhecimen-
tos possı́veis. P.e., as leis que regulam a possibilidade e a impossi-
bilidade, as leis que regulam a anterioridade e a posterioridade, ou
continência e conteúdo; são relações puras. O que Husserl entende
como lógica pura no fundo é essa Mathesis.
Estas leis não têm sua “origem”, seu fundamento justificativo,
na indução. O que estas leis afirmam é plena e totalmente válido.
Nenhuma delas se apresenta como uma possibilidade teorética en-
tre outras mil de certa esfera objetivamente definida.
Isto é uma coisa importante. Qualquer lei de fatos, que se tenha
tirado de fatos, ela é sempre uma possibilidade entre outras, e essa
possibilidade se verifica na esfera dos fatos.
Dadas as várias possibilidades, uma delas se patenteia, se mos-
tra verdadeira, e que os fatos a acompanham. Portanto, não existe

660
26 Preleção XXVI

uma única lei de fatos que possa ser logicamente uma possibili-
dade única.
Se uma lei é tirada dos fatos, é dizer que há outras possibili-
dades, mas somente uma dessas possibilidades é manifestada nos
fatos. P.e., na investigação de um crime existem vários culpados,
mas se logicamente devesse existir um e um só, e todos os outros
fossem inconcebı́veis como culpados, então você não precisaria
dos fatos evidentemente.
Toda lei indutiva é sempre uma possibilidade entre outras.
Várias hipóteses tem mais ou menos o mesmo grau de possibili-
dade. Agora, se você demonstra que só uma é possı́vel e as outras
são impossı́veis, então você não desceu para a esfera dos fatos,
você está falando da esfera lógica pura.
Qualquer uma delas é uma só e única verdade que exclui toda
possibilidade distinta.
As leis lógicas dizem respeito à esfera de possibilidade pura. O
que não é logicamente consistente, é impossı́vel. Não é apenas
irreal, é falso.
Aı́ terı́amos que estabelecer uma distinção entre verdade e rea-
lidade. Realidade é aquilo que se dá na esfera dos fatos.
Como é natural, não devemos compreender, dentre as leis de
fatos, aquelas proposições gerais que aplicam aos fatos leis con-
ceptuais puras, isto é, relações universalmente válidas por estarem
fundadas em conceitos puros. Se 3 ¿ 2, também os três livros da-
quela mesa são mais do que os dois livros daquele armário. Mas a
lei aritmética pura não fala de coisas, mas sim de números na sua
pura generalidade.
24. Continuação
Talvez, tratem de escapar à nossa conclusão, objetando que nem
toda lei para fatos nasce da experiência e da indução. Todo conhe-
cimento da lei descansa na experiência, mas nem tudo brota dela
na forma de indução. Em particular as leis lógicas são leis con-

661
26 Preleção XXVI

formes à experiência, mas não indutivas. Reconhecemos de um só


golpe que o que encontramos no caso particular é universalmente
válido, porque se funda tão somente nos conteúdos abstraı́dos.
Desse modo, a experiência nos proporciona uma consciência ime-
diata das leis de nosso espı́rito. E como não temos necessidade
da indução, tampouco o resultado padece das suas imperfeições;
não tem o mero caráter da probabilidade, mas sim o da certeza
apodı́ctica.
Ele está dizendo do caso de leis que se aplicam à experiência, e
que se aplicam à experiência independentemente de você ter feito
a experiência. É esse exemplo que ele dá: se 3 ¿ 2, então os três
livros que estão aqui são mais do que os dois livros que estão lá.
Isso não é retirado da experiência.
Talvez se possa tentar escapar ao argumento dele dizendo que
nem todas as leis que tem fundamento na experiência nascem da
indução. Isso seria um subterfúgio para poder dizer que, em última
análise, os fundamentos da lógica provêm da experiência mas não
através da indução.
Não obstante, a objeção não é suficiente. Não há dúvida de
que o conhecimento das leis lógicas suponha, como ato psı́quico a
experiência particular e tenha sua base na intuição concreta.
Ou seja, Husserl admite que se não tivéssemos a experiência
também não terı́amos o conhecimento lógico, aliás não terı́amos
conhecimento de coisa nenhuma.
Mas não se deve confundir os “pressupostos” e “bases” psi-
cológicas do conhecimento da lei com os pressupostos, os fun-
damentos ou as premissas lógicas da lei. Esta última é o resultado
intelectivo da relação objetiva de princı́pio e conseqüência, en-
quanto a primeira se refere às relações psı́quicas na coexistência e
na sucessão.
Isto é fundamental! Nós inteligimos uma lei lógica, às vezes
tomando como pretexto, como ocasião dessa intelecção, uma ex-

662
26 Preleção XXVI

periência. Porém, o elo que nós estabelecemos, o elo interno, no


caso é um elo de coexistência e sucessão, e no outro caso é uma
relação de princı́pios e conseqüência.
[ Olavo desenha um esquema no quadro ]

EXISTÊNCIA | LÓGICA
+-------------------+--------------------+
| Coexistência | Princı́pio |
| | | | |
| Sucessão | conseqüência |

O que nós captamos por experiência são de coexistência ou su-


cessão, algo que se expressou ao mesmo tempo, ou em seguida.
Porém, quando nós estamos aprendendo uma relação lógica
pura, a relação entre seus elementos não é nem de coexistência,
nem de sucessão, elas não são nem simultâneas, nem sucessivas.
Elas são atemporais, porque é uma relação de princı́pio a con-
seqüência.
Ou seja, a conseqüência está contida no princı́pio como uma
espécie de exigência interna dele mesmo, sendo que as palavras
“contido” e “interno” não devem ser tomadas no sentido espacial
evidentemente, porém no sentido de uma transmissão de veraci-
dade. Se uma é verdadeira, a outra também é.
A transmissão não é verdadeira nem ao mesmo tempo, nem
sucessivamente, porém à margem de qualquer sucessão ou coe-
xistência. Não é que uma é verdadeira ao lado da outra espacial-
mente, ou por depois ou antes da outra, temporalmente.
A apreensão intuitiva da lei pode exigir psicologicamente dois
passos: a visão das particularidades de intuição e a intelecção da
lei referente a elas. Mas logicamente só há uma coisa.
Quer dizer que pode haver um transcurso de tempo, tal como
no conhecimento por experiência. Mas aı́ só houve transcurso de

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26 Preleção XXVI

tempo no ato de conhecer, quer dizer, o ato se dá um dois momen-


tos, mas a relação apreendida não se dá em dois momentos. A
relação lógica não se dá um dois momentos.
Todo conhecimento “começa com a experiência”, mas nem
por isto “surge” da experiência. Se há leis conhecidas com a
intelecção, não podem ser (imediatamente) leis para fatos.
Se são leis captadas por pura intelecção, não são, em princı́pio,
leis referentes a fatos, embora possam também serem aplicadas a
fatos. São leis independentes dos fatos e que são verdadeiras em
si mesmas independentemente dos fatos se manifestarem ou não.
Até o presente, sempre que se admite a intelecção imediata de
leis de fatos, o resultado foi que se misturaram verdadeiras leis de
fatos — isto é, leis da coexistência ou da sucessão — com leis
ideais, às quais é em si estranha a referência ao temporal, ou que
se confundiu o vivo impulso de convicção, que trazem consigo as
leis empı́ricas muito familiares, com a intelecção, que só vivemos
na esfera do puramente conceptual.
Essas duas coisas, psicologicamente são muito parecidas. Ele
diz que toda vez que alguém imaginou ter captado intelectiva-
mente uma lei referente a fatos, ou ele confundiu, pegou uma lei
ideal e imaginou que é uma lei de fatos, p.e., intuiu que 2 + 2 = 4
e acha que isso se refere a coisas — 2 pessoas + 2 pessoas,
2 laranjas + 2 laranjas — quando na verdade não se refere.
2 + 2 = 4 independe que hajam pessoas, ou laranjas, ou qualquer
outra coisa.
Então o sujeito, na verdade, teria captado uma lei puramente
ideal, ou formal, pensando captar uma lei referente a fatos. Esta é
a primeira hipótese.
Todas as leis lógicas puras têm um mesmo caráter. Logo, se de-
monstrarmos que a algumas delas é impossı́vel considerar como
leis de fatos, isto mesmo será necessariamente válido para todas.
Pois bem, entre essas leis se encontram algumas que se referem

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26 Preleção XXVI

a verdades em geral. Por exemplo, é válido para toda verdade A


que a sua proposição contraditória não é uma verdade. É absurdo
considerar como leis de fatos leis que são válidas para as verdades
como tais. Uma verdade não é nunca um fato, isto é, algo tem-
poral. Uma verdade pode ter a significação de que uma coisa é,
ou um estado existe, ou uma mudança ocorre, etc. Mas a verdade
mesma se acha por cima de toda temporalidade, isto é, não tem
sentido atribuir-lhes um ser temporal, um nascer ou perecer.
Um fato que não acontece não é verdadeiro, por isso mesmo que
não é real. Antes de acontecer ele não pode ser real, portanto ele
se torna verdadeiro a partir da hora que acontece.
Agora, as relações entre verdades não acontecem. Elas são ver-
dadeiras antes e independentemente de acontecerem, porque elas
podem ser formuladas hipoteticamente, “Se isto, então aquilo”, e
esta relação permanece verdadeira mesmo que os fatos sejam ver-
dades. São anteriores, independente dos fatos. Podem ser formu-
ladas hipoteticamente.
Na verdade não são hipotéticas, são o que nós chamamos “for-
mais”, ou “puramente ideais”. 2+2 = 4 não é hipotético; pode ser
formulado hipoteticamente no sentido de que se você somar 2 + 2
vai dar 4, ou formulado normativamente, “para obter 4 some-se
2 + 2”.
Agora, um fato pode ser formulado hipoteticamente? Nada, em
linguagem hipotética, é um fato. É um dado. Se você narrar hipo-
teticamente você o desrealizou, ele deixa de ser fato. Não é que as
verdades puras, formais, sejam hipotéticas mas, se formuladas hi-
poteticamente, elas nada perdem da sua substância. Agora, o fato,
se formulado hipoteticamente, ele não é mais nada, não é mais
fato. Esse é o teste. Se ele é uma hipótese ele não é um fato.
P.e., em Matemática você não raciocina constantemente assim,
“suponhamos que tal, tal e tal...”, daı́ você tira as deduções. Con-
tinua sendo verdade matemática, mas você não pode formular um

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26 Preleção XXVI

fato assim. Só se você negar o seu caráter de fato, p.e., “suponha-
mos que o PC Farias tenha recebido grana, pá, pá, pá...”, se você
já transformou numa suposição já não é fato mais.
Como leis reais, as leis das verdades seriam regras da coe-
xistência e da sucessão. Então uma lei prescreveria o ir e vir
de certos fatos, chamados verdades; e entre estes fatos deveria
encontrar-se, como uma a mais, a lei mesma. A lei mesma nas-
ceria ou pereceria segundo a lei... patente contra-senso..
Se fosse possı́vel isso, deveria haver uma lei que regrasse a co-
existência e a sucessão, e que dentro dessa sucessão passaria a ser
verdade a mesma lei que regra essa mesma sucessão. Isto aı́ parece
o “Exterminador do Futuro”.
A lei passaria a ser verdade. Aı́ você teria uma lei que regra-
ria uma determinada sucessão dentro da qual a mesma lei que re-
gra essa sucessão passaria a ser verdade a partir do momento que
acontecesse, e não antes.
Aliás, falando em “Exterminador do Futuro”, saiu um artigo
em São Paulo, do Conrad Lorentz, chamado “O Exterminador da
Lógica”, porque o Exterminador do Futuro voltava para o passado
para impedir que acontecesse uma coisa no futuro, futuro esse no
qual ele também estava. De modo que o efeito teria o poder de
retroagir sobre a causa, e anular a causa.
O curioso é que as pessoas vêem esse filme e elas sentem as
emoções do filme como reais, embora ele se fundamente numa
hipótese que é impossı́vel. Não é a mesma coisa que uma ficção
cientı́fica qualquer que nega apenas as condições presentes da
percepção do indivı́duo.
Você pode supor estórias onde todas as leis da Fı́sica e da
percepção ...(?)... das revistas, e a imaginação pode operar esta
mudança. Você pode inventar uma outra realidade partindo do
princı́pio da sua possibilidade, ou seja, não é impossı́vel que fosse
assim, e o fato não ser impossı́vel, embora altamente inverossı́mil,

666
26 Preleção XXVI

é que permite que você creia por uns instantes.


Agora, se você crê na verossimilhança da impossibilidade,
então para isso você tem que desligar o seu cérebro completa-
mente.
Se você pensa que uma coisa é impossı́vel, você matou a
verossimilhança dela, aliás, a coisa é impossı́vel em si mesma. É
impossı́vel em si mesma que uma coisa aconteça e não aconteça.
Ou você conta a estória, ou você não conta a estória; ou o per-
sonagem existe, ou não existe; ou ele existe sob uma forma, ou
sob outra, ou existe sob várias, porém, se uma coisa é intrinseca-
mente impossı́vel, não extrinsecamente, a condição que possibilita
a crença à verossimilhança foi solapada.
Se você olhar lá a metamorfose de Kafka, e o nego virou barata,
você sente aquilo como ma possibilidade, que se não é verdade ao
princı́pio da percepção dele, tem que se dar de alguma outra ma-
neira. Ele toca de algum modo. Mas se você disser que ele virou
barata, embora não tivesse virado barata de maneira alguma, qual
emoção você vai ter? Zerou, a imaginação não pode prosseguir.
Não dá para entender.
Agora, se você faz o nego virar barata na página x, daı́ lá para
diante você continua a estória como se ele jamais tivesse virado
barata, é um outro pedaço da estória totalmente independente do
primeiro, você mudou de estória no meio e não percebeu.
É exatamente isso que faz o “Exterminador do Futuro”, são duas
estórias, totalmente superpostas, e uma não tem absolutamente
nada que ver com a outra. O sujeito que bolou isso é muito in-
teligente. Ele bolou para sacanear mesmo.
[ Stella: como assim “2 estórias”? Você tem o mesmo persona-
gem... ]
O quê quer dizer “o mesmo”? Você contou duas estórias como
se fosse o programa “Você Decide” (Rede Globo). Você conta
uma estória, e conta outra estória alternativa; ou esta, ou aquela.

667
26 Preleção XXVI

Só que este ou ele trocou por e; esta e aquela.


Então, numa o sujeito matou a mulher, no outro ele não matou
a mulher. Você conta as duas estórias, você sente, você vivencia
a primeira, e você vivencia a segunda. Ele conta as duas, que
são estórias alternativas, e simplesmente diz que não é alternativa,
mas que é soma. E você aceita. Quer dizer, não é uma verdadeira
ficção, são duas ficções.
[ Stella: mas onde é que está a raiz disso ser admitido como
verossı́mil? ]
Não, isso não é admitido como verossı́mil, isto é vivenciado
como verossı́mil. Agora, a pergunta é a seguinte, “Por quê o su-
jeito se emociona com isso?” Ele se emociona porque as emoções
(no caso(?)) são independentes do sujeito ter voltado para o pas-
sado ou não.
O fundo lógico é a própria trama. O quê é uma trama, não é uma
relação lógica? O espectador ignora que são duas estórias, ele
vivencia as duas estórias, que não se misturam de jeito nenhum,
e que são mostradas como independentes, e a suposição de que
existe uma relação entre passado e futuro é acrescentada de fora,
ela não é vivenciada, prestem bem atenção. Isto não é vivenciado
como noção estética um único momento. Não é possı́vel.
Tem uma estória aqui e tem outra estória lá. Não é que esta
mesma é a questão lógica, prestem bem atenção. Este e ou ou é
uma questão meramente lógica, esta é que é lógica. Se as duas
estórias são vinculadas por alternativas, ou por uma conjunção,
este é que é o enlace lógico. E este enlace permanece puramente
lógico, e não estético, ele não faz parte da estória, não faz parte do
filme.
Se aparecesse, p.e., o bandido perseguindo o mocinho e que-
rendo matá-lo, e você vivencia isto. Daı́ aparece o mocinho dando
um “amasso” na mocinha, e você vivencia isto. Onde que você
vivencia o antes e o depois, o transcurso retroativo de tempo?

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26 Preleção XXVI

Não há no filme nenhuma emoção relativa a um transcurso re-


troativo de tempo. Prestem bem atenção, é uma relação externa
que simplesmente é afirmada.
[ Pergunta: o filme não mostra esse momento de volta ao pas-
sado? ]
Isso não é vivenciado, simplesmente se superpõe. Claro que tem
algo que representa, que faz o gancho, mas o gancho permanece
externo.
[ Stella: não é como “a árvore que fala”? ]
Não! Não é como “a árvore que fala”. De jeito nenhum! Se
a árvore fala você pode ter uma emoção de quem vê uma árvore
falando; se um burro voa você pode ter a emoção de quem vê um
burro voando; se aparece o ET, que é uma meleca falante, você
pode ter a emoção de quem vê essa meleca falando.
Por quê o ET emociona? Porque ele é feio, esquisito, e fala de
sentimentos humanos. Ele é uma sı́ntese! É uma sı́ntese estética!
O ET é mostrado tendo sentimentos humanos e você vivencia isto.
Agora, o homem que volta ao passado para retroagir sobre o
futuro, ele não é mostrado fazendo isto. Ele é mostrado agindo
num transcurso normal de tempo e afirma-se, no cartaz do filme,
que ele fez isso. Só se informa.
Você pode informar no próprio filme, mas não como um ele-
mento que faça parte da própria trama. P.e., é que nem contar uma
estória e dizer que essa estória se passou em 1725. A data fica
externa. Ou então, mostra um filme que se passou todinho den-
tro de uma sala, e informa que isso aı́ se passou na Rússia, p.e.
Você não viu Rússia nenhuma, nada, nada, nada. Você superpõe a
informação.
Você superpõe logicamente, e não esteticamente, prestem bem
atenção! Você trocou um ou por um e, esta é uma operação pu-
ramente lógica, que não poderia ter uma tradução estética porque
a narração, ou ela segue um tempo que vai do tipo de trás para

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26 Preleção XXVI

frente, ou ela tem que (picotar(?)) e mostrar várias narrações, p.e.,


você pode mostrar uma parte que se passou em 1960, outra que se
passou em 1910, mas quando está se passando em 1910 faz de trás
para frente, ou seja, cada uma das seqüências segue uma seqüência
de tempo normal, linear para frente, e não para trás. Não é possı́vel
a narração para trás, não é possı́vel. Não é “ananab”, é “banana”.
Se você diz que tais coisas aconteceram depois, e que tais outras
aconteceram antes, mas você não mostra nenhum transcurso, o
transcurso não foi narrado, ele foi simplesmente afirmado.
Então, a reação normal seria dizer, “É empulhação, porque você
disse que ia me mostrar que ele volta no tempo e você me mostrou
um cara aqui no tempo normal, agora, você me disse, me afirmou
que era num tempo anterior! Mas eu não vi isso...”
Em qualquer ficção você pode as condições fı́sicas, psi-
cológicas, etc, etc, mas as condições lógicas você jamais des-
mente, porque a imaginação está rigorosamente encadeada à lei
das possibilidades, aliás, são as únicas que ela conhece.
[ Stella: e esse filme que está aı́, que é baseado no romance da
Virgı́nia, “Orlando”, onde ela não só vive 400 anos, mas como ela
muda de sexo? ]
E isso é logicamente impossı́vel? Vocês já deveriam ter perce-
bido a diferença entre uma impossibilidade fı́sica e uma impos-
sibilidade lógica. Viver 400 anos é uma impossibilidade lógica?
Mesmo se você disser que esse quadro é realista, o sujeito durou
2000 anos, isso é uma impossibilidade lógica? Não é impossibili-
dade lógica, no máximo é inverossı́mil.
Todas as ficções se baseiam no improvável e no inverossı́mil, e
os padrões do improvável e do inverossı́mil se baseiam na possibi-
lidade lógica, que são as únicas leis que a imaginação reconhece.
“Ele viveu 400 anos, embora tivesse vivido apenas uma se-
mana”, isso é que é ilógico! A impossibilidade fı́sica é mera-
mente relativo, porque é improvável, “Neste mundo não acon-

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26 Preleção XXVI

tece...”, quer dizer, desmente as condições da sua intuição do


mundo sensı́vel, desmente as suas convicções profundas adqui-
ridas pelo longo hábito, sedimentadas por um hábito humano mi-
lenar, mas não é impossibilidade intrı́nseca.
A imaginação não está presa às leis do bom-senso, da percepção
comum e corrente, etc, etc. As únicas leis que existem para a
imaginação são as leis da possibilidade pura.
Agora, “O Exterminador do Futuro” desmente exatamente estas
leis. E o que me espantou é que as pessoas não exigissem do filme
nenhum sinal de que aquilo realmente é do futuro, ou do passado,
e aceitar aquilo que está dito no cartaz, ou no tı́tulo.
É como se eu dissesse assim, eu vou mostrar para vocês uma
estória de um faroeste, e ao invés de eu mostrar a estória, eu digo,
“Nessa estória há um personagem que corresponde ao conceito de
mocinho e que age de acordo com as determinações lógicas do seu
papel, etc, etc”, quer dizer, eu falei sobre o filme, eu não mostrei
esse troço! Eu fiz um comentário externo.
No filme “O Exterminador do Futuro” o núcleo do enredo é um
mero comunicado externo, que não acontece, que não está lá, e
que você aceita como uma referência externa.
Que o espectador veja isto, e que ele saia contando a estória
como ela tivesse acontecido é sinal que ele conta uma estória di-
ferente da que ele viu no filme. Ele conta a estória logicamente!...
Ele lá viu uma estória cronológica, e a estória que ele sai contando
é a relação lógica que ele mesmo inventou e que não está lá. E ele
acredita que ele viu aquilo!
Que o sujeito faça isto e não perceba é sinal de que chegou
num nı́vel de imbecilidade atroz, e eu acho que esse filme foi feito
justamente para testar isto, “Vamos ver como é que as pessoas
engolem...” Engolem qualquer coisa.
O cara não foi para o passado, você é que quis que ele fosse.
Não foi isso que foi mostrado no filme, foram mostradas ações

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26 Preleção XXVI

que transcorrem num tempo qualquer.


Não é uma coisa que você vê, não é essa coisa fı́sica, estética,
é uma relação lógica, que não está no filme, que está apenas pro-
posta, dita, e que você acredita que viu.
Vejam, até que ponto você está disposto a aceitar uma mentira
para atender um desejo? Eu diria, “A imaginação está limitada
pelas leis da impossibilidade intrı́nseca!”
P.e., você pode imaginar que você fosse uma outra pessoa vi-
vendo em outra época, “Eu sou um prı́ncipe que mora no Afega-
nistão, num palácio de marfim, com 40 princesas...”, você pode
imaginar tudo isso. Agora, quem era esse prı́ncipe? Era eu, e eu
vivi as experiências do prı́ncipe com o meu ego, eu sentia. Ou era
um outro que sentia?
Aı́ entrou a impossibilidade lógica, porque eu posso supor que
eu era o prı́ncipe, mas algo de mim tem que se conservar. Se
eu dissesse, “Eu era totalmente diferente, e tinha inclusive outras
memórias, a minha memória era outra, ...”, então não era eu! Um
pouco o pessoal que fala de reencarnação fala isso. Se você não
tem memória pessoal então você não tem utilidade para o ego e
conseqüentemente não é você.
Você pode satisfazer os desejos através da imaginação contanto
que você não negue o eu que é o detentor desses mesmos desejos.
Agora, se você está disposto até a isto, é a mesma coisa que você
cortar a cabeça para curar a dor-de-cabeça, não é? Quer dizer, é
uma proposta sub-humana. Ninguém jamais deveria aceitar uma
coisas dessas.
Eu poderia contar uma estória que se passou comigo, sem eu ter
nascido? Eu não posso!... O meu nascimento é um pressuposto de
que eu possa até ter desejos. Então, esse ponto a imaginação hu-
mana jamais violou essas coisas, porque se ela viola, ela se desliga
automaticamente.
Você fecha o ...(?)..., porque você substitui por uma espécie de

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26 Preleção XXVI

combinatória lógica de computador. Você acaba com o próprio


desejo. Seria assim como, você deseja tanto a fulaninha que você
queria ser ela, p.e. Isso é demência, não é? Se você é ela, você
não a deseja mais, você esqueceu o que você queria. Isso aı́ nega
a própria condição do desejo.
Se o sujeito chegasse a esse ponto, como o esquizofrênico apai-
xonado, que se identifica com o ser amado, aliás, outro dia passou
um filme com o Antony Perkins, que só faz papel de louco, e ti-
nha uma moça que era secretária de dia e prostituta à noite, ele vai
lá, fala um monte coisas esquisitas para ela, e ela pergunta, “Mas
quem é você?”; ele fala, “Eu sou você”. O cara está muito louco,
não é? Isso aı́ já transcendeu os desejos. Porque nele o desejo
de possuı́-la se mistura com o desejo de que ela o mate. Que raio
de desejo é esse? É um desejo que tem a sua própria negação, no
mesmo ato, e que não pode ser atendido em hipótese alguma. Na
verdade, é outro desejo, é a destruição total.
A partir do momento onde o espectador começa a aceitar esse
monte de coisas é porque entrou num estado de depressão tão
grande, mas tão grande, que ele para atender o seu desejo de imor-
talidade ele concorda em jamais ter existido, p.e. Aı́ é o niilismo
total, é a paralisia total da imaginação, da inteligência, de tudo. É
uma coisa muito grave.
Se você aceita a hipótese psicologista você acaba aceitando tudo
isso aı́. As formas da imaginação, as formas da arte, tudo isso vem
do horizonte que a inteligência humana é capaz de abarcar num
certo momento. Se a inteligência humana não chegou a abarcar
essa contradição do psicologismo, aı́ vale tudo!
Os artistas são antenas, eles captam coisas que estão no ar, que
eles não sabem de onde vêm e expressam aquilo imaginativamente
como podem. Seja um artista grande ou pequeno, ele vai captar
formas imaginárias que não são criadas inteiramente por eles, não
poderiam criar do nada. São emoções, e valores, e imagens, que

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26 Preleção XXVI

estão por aı́ pelo (cosmos(?)). Quando você vai ver o quê que está
por aı́, você vê que é o psicologismo.
O “Exterminado do Futuro” é a mesma lei de sucessão que se
torna verdadeiro a partir de um dado momento da mesma sucessão,
mas que faz parte da mesma sucessão. É exatamente isso!
É isso que ele (Husserl) disse aqui, é a lei que regra uma su-
cessão, mas que faz parte da mesma sucessão, como fato, de modo
que ela se torna verdadeira a partir do momento onde ela acontece.
Isto é o “Exterminador do Futuro”.
Vamos supor que fosse, p.e., a lei da evolução das espécies; mas
acontece que a lei da evolução das espécies, nessa hipótese, ela
seria uma espécie de bicho. Além dela ser a regra do conjunto ela
é uma espécie de bicho, e ela só passa a ser verdadeira a partir do
momento onde essa espécie de bicho surge, embora ela já regrasse
toda a evolução anterior.. É uma loucura! Isso é impossı́vel!
Numa sociedade onde se aceitou a hipótese psicologista, o “Ex-
terminador do Futuro” tem todo o direito de exterminar o que ele
quiser.
Isso é uma maneira de você fazer um sujeito acreditar que ele
viu uma coisa que ele não viu, que ele mesmo colocou lá! É mais
ou menos como na propaganda subliminar.
Assistam ao filme e vejam se existe algum sinal que possa fazer
você ter a menção de retorno ao passado. Isso é mais ou menos
aquela estória do Barão de Itararé, “O jovem D. Pedro I era pai do
velho D. Pedro II”.
[ Stella: quando você falou em aulas passadas que um dos mo-
tivos de erro das Ciências é você tomar uma evidência indireto
como direta, isto seria uma definição do que o psicologismo faz
ou uma outra coisa?]
Para o psicologismo praticamente não existe a evidência direta.
Todas as evidências são indiretas, esse é que é o problema. Não
existem evidências intelectuais, só as evidências tiradas da ex-

674
26 Preleção XXVI

periência, que no fundo são coletadas por indução.


Isso aı́ é uma tragédia, mas essa tragédia não acontece em todas
as Ciências. Isso é irrelevante na Biologia, na Fı́sica, em toda a
esfera da tecnologia, e graças a Deus porque senão nós estarı́amos
vivendo em cima das árvores de novo. Mas em toda esfera das
Ciências Humanas isto aqui impera.
Existem muito males na cultura do século XX, mas nenhum tão
grave, tão profundo quanto este. Daı́ você espera um contra-senso
que jamais ocorreu em toda a História e que fica até inverossı́mil.
Os nazistas diziam que os alemães são a raça superior, o alemão
é bacana e o resto não presta. Ao mesmo tempo o sujeito pretende
obter para isso a adesão dos outros povos. Como é possı́vel uma
coisa destas? Você não pode ter aliados, só pode ter derrotados.
Mas, como é que com isso eles convenceram o japonês, o italiano,
como é que você vai convencer o japonês que ele é ariano?
Se eles dissessem assim, “Olha, se nós somos uma raça supe-
rior, nós vamos ficar bem quietinhos, nós vamos dominar todos
eles sem que eles percebam, e não vamos fazer propaganda dessa
teoria”, ainda seria lógico, mas você faz a sua propaganda da sua
raça superior para o cara que é da outra raça, e quer que ele ache
legal? O quê que é isso aı́? É um psicologismo.
Em toda História humana não houve nenhuma idéia tão estúpida
quanto essa, nenhuma, nenhuma, nenhuma. Atila, o Huno, era
mais razoável do que os alemães. E no entanto pegou, e num povo
culto, letrado, etc, etc.
Agora, o terreno para isso foi longamente preparado nas
Ciências, para que essa imbecilidade culminasse nas idéias
teóricas.

675
27 Preleção XXVII
19 de junho de 1993

Este texto aqui tem uma vantagem em mostrar para vocês que o
progresso do conhecimento é muito ambı́guo. Me parece que uma
teoria tão bem refutadinha assim, continuasse sendo acreditada por
quase 1 século depois.
As pessoas normalmente imaginam que tudo o que veio antes é
absorvido e transcendido pelo que vem depois. A própria idéia de
progresso é que tudo o que veio antes é absorvido, quer dizer, é
reinserido como elemento dentro de uma outra forma mais abran-
gente. Sem isso não tem progresso.
Assim como no crescimento de um indivı́duo, as fases anteri-
ores não são apagadas, cortadas, elas são reabsorvidas dentro da
personalidade do adolescente e essa por sua vez foi absorvida pela
personalidade do adulto, de modo que você ainda dispõe dos dados
da infância sob uma forma mais sintética.
Claro que você não lembra tudo com todos os detalhes, mas
você tem 2 ou 3 chaves que, puxando pela memória, aparece todo o
resto, de modo que todo o conhecimento adquirido na infância não
foi perdido. Ele foi superado justamente porque não foi perdido.
Se fosse apagado, se perdesse o disquete, você não poderia dizer
que houve progresso.
Normalmente nós imaginamos que cada nova teoria, cada nova
idéia, nova corrente filosófica que surge, absorve as anteriores.
Absorve e supera. Mas essa idéia é muito ingênua, na verdade

676
27 Preleção XXVII

não é assim, porque você absorver o que foi feito antes não é tão
fácil, não é tão rapidinho.
O progresso é muito menor do que você poderia imaginar por-
que ele implica justamente essa absorção do passado, a qual é
problemática e demorada. Muitas vezes o que acontece depois
é simplesmente uma recaı́da num nı́vel anterior, que já tinha sido
superado. Um erro que já foi superado, como a geração seguinte
não sabe que foi superado ela o comete de novo, esquece.
Então, se a gente for medir assim, o quê que houve em termos
de progresso real, primeiro, todo progresso é por sua própria na-
tureza, problemático, ele não é uma coisa que já está garantido
de uma vez para sempre; partindo de uma determinada geração
ter compreendido e superado algo, não é garantido que a geração
seguinte absorverá isso, não tem garantia, nenhuma , nenhuma,
nenhuma. Tem que estar sempre revitalizando.
A reabsorção constante do passado, sintetização, simplificação
de certo modo, de todo o conhecimento passado é uma condição
indispensável para que exista alguma progresso, e essa condição
não se cumpre automaticamente. Ao contrário, é extremamente
difı́cil, e se torna mais difı́cil a cada dia.
No caso, nós temos aqui um exemplo escandaloso de que raras
vezes alguma hipótese foi afastada com tanta minúcia como essa
hipótese psicologista. Talvez tenha sido a teoria mais bem refutada
da História. E, no entanto, ela está aı́...
‘As vezes, a mesma hipótese psicologista aparece sob outro
nome, e as pessoas não reconhecem isso. Se não estiver psico-
logismo escrito na testa os negos não percebem que é.
São teorias parentes, empirismo, psicologismo, sociologismo,
etc, etc. O problema é que as teorias não vêm com o princı́pio
estampado na cara, às vezes está escondido, não é? Você teria
que analisar muito a teoria para você poder chegar no princı́pio.
Você precisa chegar no princı́pio dela, precisa primeiro enunciar

677
27 Preleção XXVII

o princı́pio, para depois você ver se ele é um fato, ou se é uma


verdade teórica.
O critério para você distinguir se se trata de um psicologismo
no caso seria você dispor de uma sentença que explicite o negócio,
mas primeiro você tem que achar essa sentença.
Hoje em dia, p.e., esse negócio da consciência ecológica, mo-
vimento ecológico, e que critica o meio universitário, o meio
acadêmico, por ter perdido um tipo de consciência cósmica,
eles não percebem a relação que existe entre este conceito de
consciência cósmica e o psicologismo, p.e.
Quer dizer que o indivı́duo pode, por um lado, ser um ecolo-
gista, ou até defensor do holismo, e por outro lado, ele defender
teorias psicologistas, sem perceber que ele está puxando o próprio
tapete. Isso acontece muito freqüentemente.
Idéias incompatı́veis convivem na mesma cabeça com uma faci-
lidade impressionante, p.e., na medida em que no século passado
começa a se formar esse psicologismo, junto vem a idéia sobre so-
ciologismo, ou seja, você vai tentar explicar tudo o que aconteceu
a partir dos fatos sociais, como se eles não requeressem explicação
pelo seu lado. Como acontece, p.e., com esse Marcel Mauss.
[ Olavo lê o trecho de um texto de Marcel Mauss ]
Por muito tempo os filósofos discutiram categorias básicas
como espaço, tempo, infinito, etc, etc,... No século XIX os ne-
gos descobriram o seguinte:
“As noções como a de tempo, espaço, a alma sagrada, não exis-
tem em nós senão sob a forma que lhes é dada pela sociedade.”
Eles descobriram isso e diz que é a verdade. Essas noções não
aparecem em nós em si mesmas e diretamente, mas através de
uma determinada interpretação que nós recebemos da sociedade
humana. Quer dizer que isso não foi praticamente ninguém que
inventou, que é um produto anônimo e coletivo, que às vezes vem
por exemplo de uma tradição mı́tica. Então, nós já recebemos essa

678
27 Preleção XXVII

idéia de espaço e tempo filtrada por tudo isso.


“Com isso, a discussão se desloca desde os conceitos em si mes-
mos até a sua origem social, na esperança de que, elucidando per-
feitamente a origem social das causas, nós tenhamos elucidado o
problema a respeito do espaço, do tempo,...”
Ou seja, a discussão se desloca desde as coisas conceituadas até
a origem histórico-social dos conceitos, acreditando que a questão
estivesse sido superada. Então nós dizemos assim, “Não, esses
problemas relativos a definição de espaço, de tempo, etc, etc, são
pseudo-problemas, porque na realidade exprime apenas um fato
social que está por trás dele”, isso aqui mesmo é que ficou muito
vago porque ainda que você saiba toda a origem social dos concei-
tos, não resolveu absolutamente nada!
Se ele diz, “... a forma que lhes foi dada pela sociedade.”, ele
está pressupondo a sucessão histórica, que por sua vez pressupõe
uma noção de espaço e tempo! Quer dizer que os mesmos concei-
tos podem ser ditos de muitas maneiras diferentes, e essas manei-
ras diferentes simplesmente refletem diferentes estruturas sociais,
e não refletem necessariamente no tempo e no espaço, é a mesma
coisa que dizer que equivale ao conceito de (nada e quase(?)).
Na medida em que se cria essa direção sociologista, as dis-
cussões a respeito desses conceitos eles perdem o interesse. O
eixo se desloca completamente.
Se você for ver, Karl Marx faz muito isso. Muitas questões
metafı́sicas ele simplesmente dissolve na história das discussões,
porque essas discussões refletem tais ou quais estruturas sociais,
tais ou quais processos dinâmicos na sociedade, e pronto!
Ele começa a se interessar pelo processo social que gerou, pro-
duziu, o que suscitou essa discussão, como se a explicação desse
processo resolvesse a mesma questão. Isso é mais ou menos como
se você tentasse demonstrar o Teorema de Pitágoras vendo as
condições sociais implı́citas que permitiram a emergência do pro-

679
27 Preleção XXVII

blema do triângulo retângulo no tempo de Pitágoras. Ainda que


você soubesse todas essas condições o teorema não está resolvido
por causa disso.
Isto aqui é muito mais comum do que vocês possam imaginar.
Se vocês pegarem os jornais diários vocês verão montes de dis-
cussões, de idéias em circulação que são tudo psicologismo. Se
você retirar o psicologismo de baixo delas não sobra nada. E como
o psicologismo não tem fundamento elas não podem ter funda-
mento nenhum.
Esta é uma idéia que entrou tão profundamente na nossa cultura
que todo mundo a considera natural e óbvia. Têm-se como um
dogma que nenhum conhecimento pode ser explicado, não pode
ser compreendido, nem significa nada fora do contexto social que
o criou.
P.e., nós podemos referir o surgimento da álgebra a um certo
contexto social. A álgebra nasceu na Renascença. Por quê não
veio a álgebra antes e por quê depois?
É claro que houve uma série de condições sociais, culturais,
psicológicas, etc, que mudam a mentalidade e que deu margem
que aparecesse a álgebra, mas, bom, você saber isso é uma coisa,
você saber álgebra é outra muito diferente.
De fato, o processo histórico do conhecer não tem uma relação
tão lógica assim com o ser, do tipo assim, “Ali está um elefante, o
elefante sempre existiu, mas nós só tomamos conhecimento dele
em tal data”, de fato não é assim. Por quê?
Porque quando se trata de conceitos abstratos como tempo,
espaço, relações matemáticas, etc, etc, elas não estão ali pronti-
nhas esperando que você as conheça. O processo do conhecimento
é muito complexo, é dialético, tem contradições internas, de modo
que o conhecimento do processo histórico do conhecer não é inútil.
O único problema é não confundir, p.e., a história da álgebra
com a álgebra mesma, ou a Sociologia da Geometria com a

680
27 Preleção XXVII

Geometria mesma, coisa que em hoje em dia se faz com uma


freqüência assombrosa!
Muitas vezes o conhecimento da história de um debate, saber
como surgiram idéias, quais são os fundamentos do processo que
permitiram seu surgimento, muitas vezes ele elucida mesmo, prin-
cipalmente quando são idéias erradas. No mesmo sentido que a
psicanálise.
A psicanálise vai elucidar as condições culturais que fizeram
você criar certas idéias erradas. Mas, p.e., qual é o nome da rua
que você morava quando era moleque? Claro que o nome dessa
rua deve ter entrado na história da sua mente num determinado dia,
mas depois desse dia é que passou a existir a rua.
O estudo das origens temporais da concepção que você tem nada
diria a respeito da veracidade ou falsidade do conhecimento que
você tem, ou seja, em alguns casos dizem e em outros não dizem,
e é preciso discriminar.
De qualquer maneira, o princı́pio, o critério de discriminação
é a distinção entre o real e o ideal. Se se tratar de verdade numa
esfera ideal, então pouco importam os fatos que levaram ao conhe-
cimento dela, como p.e., as relações matemáticas. Claro que certas
relações matemáticas são mais facilmente perceptı́veis desde um
certo momento histórico, e menos desde outro, mas as relações
continuam existindo em si mesmas.
Eu posso dar um outro exemplo: teve um Congresso de Antro-
pologia na Alemanha, que foi o Congresso mais famoso que teve
no ’século, e esta obra, “Nova Antropologia”, é uma verdadeira
suma antropológica do século XX; foi uma obra coletiva de cen-
tena de autores.
[ Olavo lê alguns trechos ]
“O avanço das Ciências no século XX, como a Biologia, Antro-
pologia, etc, etc, tirou o caráter dogmático de muitos conceitos que
existiam na Filosofia antiga...”, e ele diz que, “ Caráter dogmático

681
27 Preleção XXVII

semelhante é o sentido dos conceitos de consciência e vontade. O


conceito de consciência e o conceito de vontade dominou de forma
...(?)... o idealismo filosófico, tanto na teoria do conhecimento
do século XIX, quanto na sua psicologia...; basta ter claro que
o princı́pio de consciência individual que se encontra na base do
conceito da sı́ntese transcendental da percepção (Kant) não resis-
tiu à crı́tica que se iniciou com Nietzsche e que foi levada à vitória
no nosso século por Freud. Essa crı́tica significa, entre outras coi-
sas, que o papel social, em face da pessoa, passa para um primeiro
plano, o que significa a constante identidade do outro. Existe re-
almente o Eu, como é demonstrado na consciência individual? De
onde aparece a continuidade da sua identidade? ... O rumo da
pesquisa comportamental dá um exemplo da desdogmatização da
consciência individual, pois ali estudamos modelos de comporta-
mento que são comuns ao animal e ao homem e que não podem ser
atingidos partindo do conceito como o de consciência individual.”
Eu digo, ora, se nós chegamos à origem da consciência indi-
vidual, nós podemos chegar à sua elucidação? ‘A origem tempo-
ral, biológica, etc, etc? Como ela vai se formando através do ID,
Ego, Superego, etc, etc, nós podemos? Aı́ você está estudando a
consciência individual como um fato.
Agora, esse fato tem que ter começado a acontecer em um deter-
minado ponto, você não nasce com a consciência individual gru-
dada, ela pode se formar através de uma sucessão de papéis, e
papéis podem ser, num certo momento, predominantes em relação
a qualquer contexto individual; ela pode até surgir deles.
O problema é que a consciência individual está idealmente pres-
suposta em qualquer conhecimento que você tenha. Mesmo que
ela seja uma falsidade, mesmo que você tenha mostrado que ela é
uma falsidade, que não existe consciência individual alguma, você
precisaria ter uma consciência individual para desmentir isso.
Então, não existe nenhuma, nenhuma, pesquisa no campo dos

682
27 Preleção XXVII

fatos que possa dar conta desse problema.


Ӄ igualmente impressionante apreender da Biologia e da pes-
quisa do comportamento a continuidade dos passos do comporta-
mento animal para o humano, e que não se pode explicar facil-
mente o salto para o homem a partir de certas peculiaridades pelos
quais ele se diferencia dos outros animais.
O progresso da pesquisa mostra que os sentimentos anti- evolu-
cionistas, originados de disputas contra o Darwinismo já não têm
nenhuma importância hoje em dia. ... Já não se ensina que a alma
pertence a uma ordem superior mas, ao contrário, que a natureza
não é natureza naquele sentido que fomos obrigados a imaginá-
la pelas pesquisas do século passado ... O homem não é homem
porque dispõe de um equipamento acessório que o relaciona com
uma ordem superior (o conceito de Schiller), mas também porque
este ponto de vista não basta para explicar essa peculiaridade. O
homem parece antes ser caracterizado pela instabilidade de suas
múltiplas potencialidades e possibilidades de percepção e movi-
mento”.
Em última análise, é trocar o conceito de homem pelo conceito
de aparato cibernético auto-regulável. Eu digo, tanto faz, você
chame de homem, ou chame de aparato cibernético auto-regulável,
como você quiser. Você pode até dizer que é uma continuidade da
esfera animal para o homem, em todos esses casos o conceito de
uma consciência individual capaz de julgar a veracidade disso, ela
está pressuposta. Não tem como você escapar disto aqui!
“Parece ter sentido imaginar uma cibernética completa, para a
qual a diferença entre máquina e homem realmente não seja mais
válida”.
Isto é um livro de 1980, e de lá para cá... Mas pouco importa!
Mesmo se você disser que você é uma máquina, não há nenhuma
diferença entre você e este computador aqui, isto não é problema
algum, o problema é que para você dizer isto você precisa pressu-

683
27 Preleção XXVII

por nesta máquina uma consciência individual capaz de dizer sim


ou não diante de um juı́zo, ou diante de um conjunto de juı́zos
proferidos, ou mesmo diante do conjunto de um programa.
Ou seja, não há possibilidade de você pronunciar um único
juı́zo, se você não parte do princı́pio da consciência individual.
Agora, o surgimento histórico dela, as analogias de diferença que
ela apresente com relação às formas de percepção animal, ou ma-
quinal, isso ...(?)... porque isso está na esfera dos fatos.
Agora, idealmente, dá para entender que sem uma consciência
individual auto-consciente, nenhum juı́zo pode ser conferido. Não
há nenhum, nenhum, nenhum. Façam vocês o que quiserem, des-
cubram o que descobrirem, negue o que negar, você não vai sair
de dentro disso.
Se você disser que o homem é uma máquina, a definição de
homem não importa nesse sentido, porque quem disse que a
consciência individual tem que ser humana? Se nós fôssemos
marcianos, hipopótamos, a consciência individual que subscreve
a veracidade ou falsidade do juı́zo é a mesma.
A idéia do sujeito do conhecimento, só em parte é uma idéia no
(fruto(?)) dos fatos. No que ela tem de mais significativo, ela é um
conceito ideal. Tanto essa noção é indispensável que mais tarde,
aqui, o mesmo autor reclama do ensino universitário.
“O ensino universitário cultiva a adaptação às formas racionais
de relação de organização ao passo que descuida da independência
dos juı́zos. Quanto mais racionais são as formas de organização da
vida, menos se ensina e menos se pratica o juı́zo razoável indivi-
dual”.
Olha! Com 3 páginas de diferença! É doido!
“A isto acrescenta-se outra falta de liberdade. Existe a criação
artificial de necessidades, especialmente através de anúncios mo-
dernos e trata-se de uma dependência dos meios de informação”.
Ué! Mas se não é discernido a diferença entre um homem e uma

684
27 Preleção XXVII

máquina, por quê você estranha que essa máquina seja tão sujeita à
influência das informações que alguém injeta nela? Se nós somos
máquina nós temos o direito de ser influenciados por quem quer
que aperte o botão!
Daı́ mais adiante ele protesta:
“O técnico representa uma instância inexpugnável. Já que
ninguém pode julgar um técnico melhor do que outro técnico, este
terreno tornou-se autônomo de um apela à Ciência, irrefutável. A
conseqüência inevitável é que o que se diz na Ciência é uma me-
dida que vai muito além da sua competência”.
Ele reclama do abuso da Ciência no campo prático e não per-
cebe o abuso dela no campo teórico. Se a Ciência, de fato, pode
invadir o terreno das relações normativas ideais, por quê na socie-
dade os cientistas não podem também invadir outros campos onde
queiram? Se o abuso já foi feito no terreno teórico, ele vai ser no
ato da prática. Ele está querendo a causa sem o efeito.
Notem bem, tudo isto aqui é um psicologismo enrustido. Você
precisaria pegar a base do quê que esse sujeito precisaria acredi-
tar para ele poder dizer o que ele está dizendo. É preciso você
encontrar o fundamento lógico do quê o cara está falando.
Você precisa supor que ele pensa logicamente — o que é uma
suposição nem sempre válida — e supor que deve haver uma co-
nexão lógica entre os seus princı́pios e suas conseqüências.
Então, partindo das conseqüências afirmadas você remonta até
os princı́pios e daı́ você vê que elas são incompatı́veis com ou-
tras coisas que são afirmadas lá para diante. É você buscar a con-
sistência lógica naquilo. Não só a consistência de uma frase com
a outra, que é uma consistência horizontal, mas uma consistência
em profundidade, isto é, a dependência de várias sentenças em
relação a um mesmo princı́pio.
Entre você dizer que não há diferença entre um homem e um
animal, e você reclamar que as universidades não fomentam o

685
27 Preleção XXVII

juı́zo individual, eu digo, não há princı́pio comum que agüente!


São duas coisas completamente diferentes!
Se não há diferença entre um homem e uma máquina, então
não pode haver diferença entre o ensino e a programação de um
computador. Então a Universidade está muito certa em abolir o
juı́zo individual!
Agora, ele acha que no terreno da moral e da atuação polı́tica,
etc, etc, pode haver uma total independência em relação a aquilo
que ele mesmo afirmou no campo biológico!
É como se dissesse, “Aqui existe um homem biológico, o qual é
totalmente uma máquina, e não é discernı́vel de um computador”,
porém, “Aqui existe um homem social que é dotado de opinião
própria, juı́zo individual, etc, etc, autônomo, e parece aquele ho-
mem espiritual de que falávamos em 1900 e antigamente”.
Isto quer dizer que uma simples mudança no regulamento uni-
versitário pode mudar a lei da Biologia. E esta distorção surge da
esperança de que a investigação no terreno dos fatos possa resolver
esse tipo de problemas ideais.
Então você quer saber o quê é tempo, espaço, o Eu, a
consciência, etc, etc, o sujeito vai fazendo a investigação psi-
cológica por indução e ele vai descobrir um monte de coisas, mas
não o quid est, porque vai descobrir apenas o que acontece.
Agora, o que acontece só faz sentido dentro de um quadro de
referência que é puramente ideal e que tem que ser dado a priori,
isto sempre foi assim. Não tem nenhuma pesquisa de relação en-
tre causa e efeito que possa explicar o que é causa, p.e. Você pode
ter milhões de causas mas você só percebe que são causas porque
você tem a noção de causa. E você tentar obter a noção de causa
indutivamente, você chegar na famosa objeção de Hume, “Eu vejo
uma bola de bilhar rolando, depois vejo outra bola de bilhar ro-
lando; eu não vi a primeira causar o movimento da segunda. Eu vi
que a segunda começou a rolar na hora que a primeira parou.”

686
27 Preleção XXVII

De fato, a causa não é um dado sensı́vel, é uma interpretação


que você faz baseado num conceito que se tem. Agora, esse con-
ceito por sua vez, não poderia ser obtido da experiência, ele pode
até ser refletido na experiência. Se você sabe já mais ou menos o
que é causa, você observa causas, fora.
É do mesmo modo que um sujeito que não sabe o que é o Eu.
P.e., o esquizofrênico que esqueceu que ele é ele, e que você é
você, alguma experiência pode demonstrar para ele isso? Não
pode mais, porque na hora que perdeu essa conexão ideal, a ex-
periência não vai devolver, não vai reconstruir isso jamais.
O recurso à experiência para elucidar essas coisas numa
investigação útil, em parte é um subterfúgio covarde para aliviar
a responsabilidade da consciência individual. Por quê? Porque
se tem coisa que você sabe, que só você sabe que sabe, nesse
caso você é o último testemunho, nos quais não existe nenhuma
prova objetiva externa, então você fica como o pino que sus-
tenta aquela máquina toda funcionando. O conhecimento tem, em
última análise, o testemunho humano.
E esse testemunho humano não pode ser objetivo, ele pode
ser intra-subjetivo supondo-se que os vários indivı́duos falem a
verdade. Então vai haver até este fundamento ético da própria
Ciência. A Ciência vai ser verdadeira dependendo de que as tes-
temunhas falem a verdade e que, inclusive eu seja suficientemente
honesto para aceitar a verdade.
Daı́ os cientistas pensam assim, “Não, mas, seres humanos,
neste mundo, não são dignos de confiança, nós temos que des-
cobrir algum testemunho mais fidedigno”. Mas, claro, o objetivo
é este! É você achar o fundamento externo da veracidade. Mas
isto aqui é esquizofrenia total!
É a mesma coisa que você estar andando de bicicleta e, de re-
pente, você percebe que a bicicleta está ficando de pé apenas por-
que você quer, é você que está fazendo aquele milagre. Daı́ você

687
27 Preleção XXVII

quebra o padrão na esfera de equilı́brio que te segura e você pára


de pedalar, e daı́, catapimba!, ela cai!
Ou seja, uma vontade de abolir o sujeito como agente e che-
gar a uma espécie de visão totalmente externalizada, totalmente
estática. É a vontade de se ver meio de fora, mas isso só é legı́timo
até certo ponto, até o ponto onde você sabe que ver-se desde fora
é uma ficção.
Se você começar a achar que a visão desde fora é mais verda-
deira do que a de dentro, você já está mentindo, porque você ja-
mais esteve de fora, você jamais fez as minhas ações, você jamais
teve as minhas percepções. Você pode fingir, você pode imaginar,
mas na verdade você tem as suas percepções, você é o senhor das
suas ações, você é o agente das suas ações e na verdade você é a
única testemunha do que se passa aı́ dentro e nós dependemos do
teu testemunho, ou então, você mesmo. Não tem escapatória.
No fundo, no fundo, esse negócio todo é uma fuga da solidão
humana. No Corão está escrito assim, “... e Deus falou para o
homem, que tinha procurado uma testemunha que pudesse atestar
a existência de Deus. Ele vinha pedindo isso para as estrelas, para
os sóis, para as montanhas, para os animais, e todos correram ater-
rorizados, e que somente o homem aceitou este encargo porque o
homem é livre.”
Vejam que coisa profunda! O homem é um ser que tem o conhe-
cimento e exige dele uma imensa responsabilidade que ninguém
mais tem. O outro não pode ter no lugar dele, p.e., o testemunho
das galáxias, das estrelas, isso só vale se você estiver lá para ver.
Então não é uma verdade objetiva, a verdade é subjetividade da
auto-consciência. A auto-consciência é que é o fundamento da
objetividade, e não o contrário.
Agora, se eu quero achar um fundamento objetivo da auto-
consciência é a mesma coisa que eu querer achar, p.e., um fun-
damento gráfico da Geometria. Quem sabe a Geometria se assenta

688
27 Preleção XXVII

nas propriedades objetivas do papel? Isso é uma incapacidade de


aceitar a sua condição de sujeito cognoscente, e transferi-la para
a sociedade humana, para as instituições de ensino, para os arqui-
vos, bibliotecas, como transferi-la para as coisas. Quer dizer, é um
alı́vio da solidão, e uma não aceitação da solidão humana.
É uma covardia e ao mesmo tempo é um traço esquizofrênico.
Agora, esse traço é comum no ambiente de todas as Ciências Hu-
manas, e na verdade, na Filosofia cientı́fica também.
P.e., você procurar um dado que seja absolutamente igual para
todas as pessoas e que independa do testemunho humano; eu digo,
para quê isso? Se o dado número um é a insubstitubilidade do
testemunho humano, este dado é constitutivo do cosmos. Não
existe um cosmos objetivo que independa totalmente da presença
humana pela simples razão de que dentro desse cosmos existe o
ser humano, e se você pudesse retirar esse ser humano de dentro
do cosmos, esse cosmos seria diferente.
A idéia de que a verdade objetiva é como as coisas serem inde-
pendentemente do observador, esta idéia é auto- contraditória. P.e.,
a verdade objetiva sobre esta garrafa é como ela é, independente-
mente do observador. Eu digo, bom, esta garrafa aqui, indepen-
dentemente do observador é invisı́vel. Ou não é? Ela como forma
visı́vel ela só é visı́vel por alguém que tenha a faculdade visı́vel,
mas ela não é visı́vel pelo cego, pela parede, aliás, do ponto de
vista da parede esta coisa aqui seria totalmente invisı́vel, ela seria
inócua. Para a parede isto não existe. Então seria uma espécie de
objetividade redutiva, que vai tirando as qualidades do objeto até
reduzi-lo à suposta “coisa em si”; tudo começa com essa maldita
idéia de “coisa em si”!
Os negos não entendem que se é coisa, não é em si. Você pode
falar “ser em si”, mas “coisa em si”, não. Agora, o “ser em si”
não é coisa, é existência. Coisa é substância, é esta garrafa, este
copo, você, isto é substância. Agora, se eu digo “o ser em si”,

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27 Preleção XXVII

ele é existência em si, independentemente de quais as substâncias


existentes. Nós podemos conceber a existência em si mesma, ou
seja, a existência independentemente dos existentes.
Uma coisa que existe, uma essência qualquer, existe a partir do
momento onde ela tenha relação com outras coisas, com outras
essências, em relações espaço-temporais. Portanto ela existir em
si mesma é a mesma coisa que você dizer que um quadrado é um
quadrado, independentemente dos seus lados e ângulos. É exata-
mente a mesma coisa. Isto não é força de expressão, é uma análise
lógica da “coisa em si”.
Quer dizer, eu quero conhecer a “coisa em si”, isto é, inde-
pendentemente de todas as relações que ela possa ter com quais-
quer outros seres, então essa “coisa em si” é apenas uma essência
lógica, e a essência lógica só pode ser conhecida em si mesma
porque ela é conhecida independentemente da sua existência. Ela
é conhecida apenas enquanto possibilidade lógica, ela não é uma
“coisa”, ela é uma possibilidade de “coisa”, o que é muito dife-
rente.
Vamos supor, p.e., que eu quero conhecer o Alexandre em si.
Então seria o Alexandre independentemente de todo o conjunto de
relações que ele tenha com todos os outros seres, inclusive pai e
mãe, ou seja, o Alexandre independentemente dele ter sido gerado.
Porque ter sido gerado já é sofrer uma ação. Então, o quê o Ale-
xandre seria se ele não fosse gerado? Ele seria uma possibilidade
de Alexandre, e nada mais.
Então, se nós procurarmos a objetividade na supressão d su-
jeito cognoscente nós estamos criando um mundo mais fictı́cio que
possa existir. O máximo que nós poderı́amos chegar é supor ou-
tros sujeitos cognoscentes que vissem a coisa de outra maneira e,
aliás, a própria noção de um sujeito cognoscente supõe essa pos-
sibilidade. Não se pode conceber um sujeito cognoscente isolado.
P.e., suponha que você tenha, de um lado um homem, e do outro

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27 Preleção XXVII

uma pedra. Se o homem vê a pedra e sabe que vê a pedra é porque
ele sabe que a pedra não o vê. Ou será que ele não sabe? Esse
sujeito, ao ver a pedra, tivesse a mesma reação que teria ao ver
um outro ser humano, supondo que a pedra o vê, que ela tem uma
opinião sobre ele, que ela gosta dele ou não, ele está vendo com a
imaginação dele.
Quer dizer, ver o objeto é saber algo do quê o objeto sabe a
seu respeito. P.e., se eu vejo um cachorro eu sei que não adianta
eu falar com um cachorro, não adianta eu dar uma explicação, só
adianta eu gritar; ele é sensı́vel a isto. E se eu vejo uma pedra eu
sei que ela não é sensı́vel a isto.
Portanto eu tenho alguma informação a respeito da informação
que o objeto tem a meu respeito. Portanto eu não sou o único
sujeito cognoscente que está em questão, o objeto também é visto
como sujeito cognoscente porque se ele não for visto assim eu não
o conheço absolutamente. Se eu nada sei a respeito do que é o
objeto, eu nada sei a respeito dele. E isso se refere inclusive às
coisas inanimadas.
Eu sei que a pedra é pedra porque eu sei que ela não é bicho. E
eu sei que o animal é um animal porque ele pode me morder, ou
porque a vaca dá leite, e assim por diante. Eu sei algo a respeito
dele. Eu sei algo das relações que ele pode ter comigo e portanto
eu o vejo alternadamente como objeto e como sujeito. E a mim
mesmo eu me vejo alternadamente como sujeito de um conheci-
mento e como objeto de um conhecimento que aquele objeto tem
de mim. Isto está suposto em qualquer relação cognitiva, e isto é
uma coisa que escapou à Filosofia durante muitı́ssimo tempo.
Os caras supuseram que a relação sujeito-objeto é “one-way”.
Se ela for “one-way” ela não acontece. Se eu nada sei sobre o
objeto desde o ponto subjetivo dele, eu nada sei dele, ele é o estra-
nhamento total.
Na verdade, suponha uma pedra cujo ponto de vista você nada

691
27 Preleção XXVII

sabe. Você não sabe que a pedra te ignora, você não sabe que
a pedra é insensı́vel, você não sabe que a pedra apenas pesa, ou
seja, você nada projeta sobre ela e portanto você não recebe dela
nenhuma informação. Isto é uma percepção de pedra? Isto é uma
potência de percepção de pedra apenas.
A pedra não se perfilou na sua frente como um objeto distinto.
Você nem sequer a distinguiu de você mesmo. É assim como o
bebê vê a pedra. É uma pré-concepção, vai ter uma percepção dis-
tinta o tempo todo. Tudo aquilo que ele falasse, ele não percebeu
a mais mı́nima atenção...
Esse diálogo entre o sujeito e o objeto está tão automatizado que
nós não pensamos nele, e na hora que nós começamos a pensar,
pensamos que estamos ficando loucos. Mas, não, antes é você
estava louco!
Se eu não me vejo desde o ponto de vista da pedra eu nada
sei sobre a pedra. É só você perguntar a qualquer pessoa, “Essa
pedra fala?”, “Se você pedir para ela vir aqui, ela vem?”, todo
mundo sabe que não, não é? Portanto, você sabe quais são as
possibilidades de ação da pedra; você sabe as suas possibilidades
de ação sobre ela, e sabe as dela também. Isto está subentendido
na percepção.
Agora, normalmente nós não analisamos isso porque esse pro-
cesso se cumpre numa fração de segundos, mas que tudo isso está
ali subentendido, está.
Portanto, o que seria a pedra se eu fizesse a abstração de qual-
quer sujeito cognoscente? P.e., o chão em cima do qual está a
pedra, está recebendo informação dela, ou não? Claro que está,
ela está pesando em cima dele. Então esse sujeito também não
poderia estar ali para que você pudesse pensar na pedra em si. A
pedra tem que estar agindo e ser objeto de ações possı́veis. Uma
pedra em si, p.e., não seria quebrável, não é? Não tem quem a
quebre. Ela perderia esta possibilidade de ser quebrada. Ela não

692
27 Preleção XXVII

pode pesar porque para pesar tem que pesar em cima de algo.
Então, a expressão “coisa em si” é auto-contraditória, porque
ser coisa é ter um conjunto de relações com outras coisas. O que
não tem relação com nada é só essência pura, a qual não existe.
Então não há pedra, mas o conceito de pedra. O conceito de pedra
não pesa. Você não pode jogar um conceito de pedra na cabeça do
seu adversário, você não pode nem ter um conceito de pedra no
rim, e assim por diante. Essa é a noção ingênua de objetividade.
A objetividade consiste em, não você abolir o sujeito, mas es-
tabelecer em torno e a propósito do objeto o conjunto das pers-
pectivas que articulam corretamente esse objeto no lugar onde ele
está.
Então é você saber o quê é a pedra desde o ponto de vista do
chão que está embaixo dela, da atmosfera que a cerca, da sua
composição quı́mica, e do seu próprio ponto de vista, e assim por
diante, até você alinhavar as suas várias perspectivas e fazer um
todo concreto, e isso é objetivo.
Tudo o que existe é fenômeno. E o quê tem por trás do
fenômeno? Não tem nada. Quer dizer, que raio de coisa deve-
ria existir por trás do fenômeno pedra? Deveria existir uma outra
pedra? Por quê esta aqui não basta? Quer dizer que a pedra que
acertou na sua cabeça não basta, tem que ser a “pedra em si”?
Aqui a gente poderia chamar de, também, de objetividade su-
pressiva, que é quando o sujeito abole qualquer testemunho do fato
e você separa do acontecimento em si, do fato em si, não enquanto
considerado enquanto fenômeno. Então, o fato em si, seria aquele
fato que não foi fenômeno para ninguém. Mas, o quê é fato? Fato
já é uma relação, não é?
Então, tudo isto aqui vem de uma grossura filosófica que surge,
por incrı́vel que pareça, do sucesso das Ciências Naturais, onde
você acredita que você recorrendo ao mundo dos fatos você vá
obter uma explicação completa.

693
27 Preleção XXVII

Primeiro é o sucesso das Ciências Naturais que cria essa noção


dos fatos, tanto que as Ciências Sociais depois começam a se cons-
tituir com a noção de fato social. Agora, o que os neguinhos não
perceberam é que as Ciências Naturais deram resultado não por-
que investigassem os fatos, esta é uma visão exatamente invertida,
porque investigar os fatos o homem sempre investigou, o que muda
da Ciência antiga para a moderna, a Ciência pós-galilaica, não é
que ela passa a observar os fatos, é o contrário, ela começa a ma-
tematizar essas observações. O quê que os fatos têm que ver com
isso? Não tem nada, quer dizer, a Ciência se tornou mais abstrata
do que era antes, e é por isso mesmo que ela retém alguma coisa.
Quer dizer, essa grosseria filosófica surge de uma má
interpretação do sucesso das Ciências Naturais, e quando isso se
transpõe para a esfera das Ciências Sociais é já essa noção errônea,
mal-interpretada, é que é transposta.
P.e., a idéia de fato social que é de Durkheim; quem disse que
o que acontece na esfera social deveria poder ser visto como fato?
O cara (quer estar(?)) na esfera da natureza e dos fatos, e que a
Ciência Natural alcançou o sucesso porque ela observava os fatos.
Então ele já não entendeu a Ciência Natural.
Na verdade, a observação dos fatos na Ciência Natural moderna
é reduzida ao mı́nimo, porque o que interessam são justamente
as relações matemáticas que você estabelece, que é exatamente o
que fazia Galileu. Portanto, se a Ciência Natural obteve sucesso
não foi por causa dos fatos externos, mas por causa de uma maior
contribuição do sujeito. Não seria errado você dizer que a Ciência
se tornou mais subjetiva, não é?
[ Olavo retorna ao texto do Husserl ]
Capı́tulo 5
AS INTERPRETAÇÕES PSICOLOGICAS
DOS PRINCIPIOS LOGICOS
25. O princı́pio de contradição na interpretação psicologista de

694
27 Preleção XXVII

Mills e de Spencer
J. St. Mills ensina que o principium contradictionis é “uma de
nossas mais antecipadas e mais imediatas generalizações da ex-
periência”. Ele encontra o seu fundamento primitivo no fato de
que “crer e não crer são dois estados distintos do espı́rito”, que se
excluem mutuamente.. Sabemos isto — prossegue literalmente —
pelas observações mais simples de nosso próprio espı́rito. Perce-
bemos também que a luz e a obscuridade, o ruı́do e o silêncio, a
igualdade e a desigualdade, o andar para frente e o andar para trás,
a sucessão e a simultaneidade, em suma, todo fenômeno positivo
e sua negação, são fenômenos distintos que se encontram em uma
relação de antagonismo extremo. “Considero”, diz ainda, “o axi-
oma em questão como uma generalização de todos estes fatos”.
Quer dizer que, pela experiência repetida, do ruı́do, do silêncio,
da igualdade, nós acabamos induzindo uma lei.
A única dificuldade neste ponto é compreender como pode pa-
recer convincente semelhante teoria. A primeira coisa que sur-
preende é a patente incorreção da afirmação segundo a qual o
princı́pio que diz que duas proposições contraditórias não são ver-
dadeiras e, nesse sentido, se excluem, é uma generalização dos
“fatos” indicadores de que a luz e a obscuridade, o ruı́do e o
silêncio, etc, se excluem; estes são tudo antes que proposições con-
traditórias. Não se compreende muito bem como Mills pretende
estabelecer a conexão lógica destes supostos fatos de experiência
com a lei lógica.
Lemos, com referência a estas leis, o seguinte: They may or
may not be capable of alteration by experience, but the condition
of our existence deny to us the experience which would be requi-
red to alter them. Any assertion, therefore, which conflicts with
one of these laws — is to us unbelievable. The belief in such a
proposition is, in the present constitution of nature, impossible as
mental fact.

695
27 Preleção XXVII

Eu acredito que isto aqui já poderia ser contestado no próprio


nı́vel em que Mills coloca a coisa que é o ponto de vista histórico,
que é o ponto de vista da origem, que é um ponto de vista que
Husserl não discute.
Mas, independentemente das contestações que Husserl vai fa-
zer mais adiante, o próprio ponto de vista de que, temporal-
mente falando, o princı́pio de contradição emerge de tais ou
quais experiências, já pode ser contestado na raiz mediante a se-
guinte pergunta, “Como eu poderia perceber a repetição do mesmo
fenômeno se eu já não tivesse uma raiz de uma percepção de iden-
tidade?”.
Eu simplesmente não perceberia o homogêneo e nem a
definição entre o homogêneo e heterogêneo. Seria uma percepção
atomı́stica, quer dizer, o princı́pio da repetição e da identificação
das mesmas essências por trás de fenômenos que são apenas se-
melhantes, é uma predisposição inata no ser humano. Mesmo
do ponto de vista empı́rico isto aqui seria inaceitável. Porém, a
contestação que Husserl vai fazer é bem mais elegante.
[ Stella: se você tem o princı́pio da identidade anterior a tudo,
então já indica que existe uma lógica que não é psicologı́stica, que
é formal. ]
Não. Mesmo que ela fosse psicologista, mesmo que ela fosse
uma predisposição biológica do ser humano, mesmo assim, ela
estaria pressuposta anteriormente à experiência. Ela será a própria
estrutura humana.
Como é que eu posso perceber a diferença entre a luz e a obscu-
ridade se quando retorna a luz, ou quando retorna a obscuridade,
eu não percebo, de novo, a presença do mesmo?
Toda e qualquer percepção de qualquer coisa, toda e qualquer
comparação, pressupõe no homem a consciência do mesmo e
do outro, do homogêneo e do heterogêneo, ou seja, pressupõe o
princı́pio de identidade.

696
27 Preleção XXVII

Na medida em que pressupõe o princı́pio de identidade, o


princı́pio de contradição é uma simples decorrência do princı́pio
de identidade que, se o sujeito não percebesse por essa maneira,
acabaria percebendo por outra mais cedo ou mais tarde, ou mesmo
que não percebesse nunca estaria logicamente implı́cito.
Então, a linguagem, ou o princı́pio de significação, é impossı́vel
sem a percepção do homogêneo e do heterogêneo. Se você re-
montar a aquele famoso exemplo do signo da mulher cega, surda
e muda, você vê que o signo só foi possı́vel pela repetição do
estı́mulo. Porque na hora que a mulher identifica que é o mesmo
..., mas o mesmo não é o mesmo!
Se eu pego isto aqui, solto, e depois pego de novo, não foi a
mesma experiência que eu tive, eu tive duas vezes uma experiência
que é essencialmente idêntica. Portanto eu percebi uma identidade
de essência entre duas experiências que temporalmente são dife-
rentes, e daı́ eu posso registrar e repetir, mas não poderia haver
sequer significação sem o mesmo e o outro.
Então, o princı́pio básico, não só logicamente mas temporal-
mente, é esse do mesmo e do outro, e portanto é a identidade.
Senão nós poderı́amos cair também, — lembram que eu contei
para vocês a estória do Piaget, das bolinhas — cair na mesma es-
parrela do Piaget e achar que a criança, porque ela confunde a
distância das bolinhas com o número de bolinhas, ela não tem um
senso de identidade.
Mas eu digo, não, é ao contrário, para que a criança possa fazer
essa confusão ela tem que ter um princı́pio de identidade, senão
ela não conseguiria fazer.
[ Olavo faz um desenho no quadro ]
Caso 1 — o o o o o o (6 bolinhas com um espacejamento)
Caso 2 — o o o o o o (6 bolinhas com um espacejamento maior)
Se você acha que o volume de bolinhas aumentou de quantidade
na hora que o espacejamento foi aumentado é porque você tem a

697
27 Preleção XXVII

identidade da extensão. Se a extensão continuasse a mesma, seria


o mesmo número de bolinhas; aumentou a extensão, aumentaram
as bolinhas, é um raciocı́nio errado, mas fundado num princı́pio
de identidade.
Agora, na hora que um homem como Jean Piaget fala uma
coisa dessas, não é possı́vel que ele seja burro assim, é porque ele
tem um preconceito, tem um ódio d que quer que seja da esfera
biológica.
O quer que ele não encontre uma explicação biológica capaz de
matar a charada inteira, o que quer que exija dele uma remessa a
uma esfera ideal normativa que saia da esfera dos fatos, ele fica
desesperado.
Piaget diz que o princı́pio de identidade é aprendido, que a
criança não tem nenhum, que a criança só tem o princı́pio de auto-
conservação, o qual aplicado a tais ou quais ...(?)... vira princı́pio
de identidade.
A minha explicação para o caso das bolinhas é o seguinte: a
criança não sabe a distinção entre quantidade distinta e quantidade
contı́nua, ou seja, ela não sabe a diferença entre extensão e quan-
tidade aritmética, porque quantidade aritmética é uma abstração,
que ela só pode fazer depois.
Quando você fala conjunto de 6 bolinhas, nós queremos di-
zer conjunto aritmético de 6 bolinhas, e ela quer dizer, o con-
junto espacialmente determinado daquelas 6 bolinhas. Portanto,
além da quantidade aritmética aquele conjunto tem um tamanho
geométrico, que é o tamanho que as bolinhas ocupam, e ela não
separou uma coisa do outro.
Para ela poder separar a pura quantidade aritmética, da ex-
tensão, leva mais um tempo. Na hora que o conjunto aumentou
de extensão, ela acha que aumentou de quantidade. Prova de que
ela não distingue a quantidade, da extensão.
Quantidade de elementos separados, p.e., quantidade discreta,

698
27 Preleção XXVII

ou distinta, ela acha que quando aumenta a extensão, aumenta a


quantidade discreta, como um elástico. O elástico, p.e., tem 5
cm e estica para 8 cm; ele não tem 5 cm, um centı́metro sepa-
rado do outro, não é? Nem 8 cm, um centı́metro separado do ou-
tro. Aumenta a extensão inteira. Portanto, extensão é quantidade
contı́nua. Então a criança aumentando a quantidade contı́nua, isto
é, a extensão, aumentou a quantidade discreta, porque ela não con-
seguiu perceber a diferença entre as duas coisas. Por quê? Porque
na verdade esta distinção é abstrativa. Você nunca vai ver nenhuma
quantidade discreta de nada, nada, nada, que esteja fora de alguma
extensão. P.e., quantos nós somos aqui? Você pode contar um
número, mas esse “quanto nós somos” ocupa ou não ocupa uma
extensão determinada no espaço?
Quantidade discreta, em si, só existe mentalmente, não existe
na natureza. O que existe na natureza são extensões.
A criança não faz essa abstração ainda, porque para fazer essa
abstração ela precisa querer fazer. O ato abstrativo é voluntário.
Você separa um aspecto do outro se você quer fazer isso e se você
precisa para algum motivo. Senão o aprendizado da aritmética
seria espontâneo, e de fato ele não é.
Agora, o mero senso de auto-conservação tanto não pode ser a
base da identidade porque ele supõe a identidade. P.e., nós não
conhecemos certas patologias onde as pessoas perdem o senso de
auto-conservação? Quer dizer que o senso de auto- conservação
não é inerente ao homem, não é? O senso de auto-conservação
é uma reação complexa que o ser humano tem em face de um
ambiente biológico total, é muito mais integrado que o senso de
identidade. Porque senão ele vai auto- conservar o quê?
Vou dar um exemplo: você só pode desejar conservar uma coisa
que você sabe que existe. Aquilo que você não tem notı́cia de
que existe você não auto-conserva. P.e., o famoso caso de um ja-
caré, que contava a Amélia; o jacaré não tem sensibilidade no rabo,

699
27 Preleção XXVII

então a onça, que aprecia muito a carne de jacaré vai começar a co-
mer o jacaré pelo rabo, e ele não percebe coisa nenhuma. Quando
percebe ele já está comido pela metade. Quando chega no ponto
onde é sensı́vel é o tempo de sentir e morrer.
A auto-conservação pressupõe o senso da integridade do orga-
nismo. A auto-conservação é tremendamente complexa. É sim-
ples tendência que não se realiza de uma maneira perfeita na maior
parte dos casos. A auto-conservação, ao contrário, ela é que é fo-
mentada pela Razão. Quer dizer, o Piaget quer reduzir a Razão ao
senso de auto-conservação, e o senso de auto- conservação ajuda a
você captar certas estruturas racionais, mas as estruturas racionais,
em si mesmas, elas não têm nada que ver com isso. Nada, nada,
nada...
Então você querer achar uma raiz biológica dos conceitos
lógicos é você forçar no sentido psicanalı́tico. É claro que a
evolução biológica tem algo a ver com a captação de algumas des-
sas noções. Por outro lado, você saber que o ser humano tem ou
não tem um princı́pio de identidade inata é perfeitamente irrele-
vante do ponto de vista lógico.
Se você nasce com o sentido de identidade, ou você o aprendeu
depois, eu digo, ué, o que é que isto muda as coisas do ponto de
vista lógico, do ponto de vista ideal? Primeiro que esta questão já
seria irrelevante; você provar que o sujeito não nasce com o senso
de identidade, mas o adquire depois, não provaria que ele tem uma
vida biológica, provaria apenas que o conhecimento da identidade
tem uma vida biológica.
Este princı́pio que você, pela sua evolução biológica, chega a
conhecer em tal ou qual data, ele vale ou não vale? Esse é que é o
problema.
A validade do princı́pio de contradição, ou do princı́pio de iden-
tidade nada tem a ver com etapas do aprendizado de que você to-
mou conhecimento dele.

700
27 Preleção XXVII

O desejo de reduzir todas as relações ideais, da esfera dos fatos,


é um desejo de você escapar completamente do incorpóreo. Nada
mais é incorpóreo, não pode ser, é proibido.
Você não se conforma de que certas realidades, certas verda-
des, só possam ser captadas abstratamente pelo espı́rito humano,
mas você quer que a natureza te imponha essas coisas desde fora.
Você está na lei da liberdade, mas você escolhe a lei da servidão.
Você quer que o princı́pio de identidade te seja imposto do mesmo
modo que a lei da gravidade. Então você tem que achar um fun-
damento biológico que esse princı́pio se reduza a esse fundamento
biológico. Então você entra num monte de contradições.

701
28 Preleção XXVIII
08 de dezembro de 1993

[ A aula começa com uma pergunta a respeito da aula anterior ]


Quais os sinais de psicologismo no texto de Capra e no de David
Bohm?
Em David Bohm o sinal do psicologismo é óbvio, ele con-
funde o processo do conhecer com a natureza da coisa conhecida.
Quando ele diz que o conhecimento por conceitos é estático, que
recorta figuras estáticas, e que o processo real do conhecer — co-
nhecer pelas sensações — é um fluxo permanente, além de ele es-
tar dizendo algo que é intrinsecamente falso, porque essas coisas
não são de fato assim. Mas mesmo que fossem assim ainda haveria
um segundo inconveniente: Quem diz que a coisa que é conhecida
através de um fluxo de impressões é em si mesma dinâmica?
Se eu faço um quadrado na parede, o qual permanece inaltera-
damente igual, não consigo ter duas impressões exatamente iguais
a respeito desse quadro. Então, por que o conhecimento obtido
sob a forma de fluxo deveria ser mais fiel à realidade do que um
outro? Isto é mero psicologismo. O que é fluxo é o conhecer, não o
conhecido, mas Bohm, partindo do pressuposto de que o processo
real do conhecimento é um fluxo, conclui que a realidade conhe-
cida deva ser também um fluxo, coisa que em muitos casos ela não
é. Inclusive, os modelos de universo que ele propõe são todos na
base do fluxo ininterrupto. E por quê isso deveria ser mais fiel à
realidade do que um modelo estático? É porque o seu modelo de

702
28 Preleção XXVIII

conhecer é fluxo, a sua experiência interna é fluxo; mas o fato de


eu conhecer assim, nada revela quanto à natureza do objeto, revela
apenas quanto à minha natureza. Então, aı́ você tem um exemplo
tı́pico de psicologismo.
Tudo aquilo que sei sobre o meu modo de conhecer se refere
somente a mim, e não ao objeto. As conexões do objeto só se
revelarão independentes da minha modalidade de conhecer se eu
for capaz de concebê-las idealmente, por abstração. Por exemplo,
tenho a visão desta porta, é claro que eu nunca tive duas visões
dela que fossem exatamente iguais, cada vez que eu vi a porta
estava a uma distância diferente, sob uma luz diferente, etc, etc.
A unidade deste objeto “porta”, só existe idealmente. No entanto,
esta porta ideal está mais próxima da porta real do que as minhas
sucessivas imagens de porta.
Então, por um lado você tem a consistência fı́sica do objeto em
si mesmo; de outro lado você tem as visões dele, que são mutáveis;
e tem ainda as alterações da própria constituição fı́sica, que não
são as mesmas alterações do sujeito cognoscente e de suas im-
pressões. E onde está a unidade do objeto? Essa unidade só é
concebida idealmente.
Mas isto é assim em qualquer conhecimento que você tenha,
ou seja, como é que David Bohm sabe que ele é David Bohm?
Como é que ele sabe que o livro que ele estava escrevendo ontem
é o mesmo que ele está escrevendo hoje? É só por unidade ideal.
A unidade do ser não é objeto de experiência. No entanto, ela é
uma pré-condição para que você tenha a experiência dele: para
que eu possa obter várias visões diferentes de um mesmo objeto é
necessário que ele seja o mesmo. Eu não confundo, por exemplo,
várias visões de uma vaca com várias visões de um cachorro, do
mesmo modo que não confundo a variedade de meus alunos com
a variedade de roupas diferentes com que cada um se apresenta em
dias diferentes. Então, essas várias visões que compõem a unidade

703
28 Preleção XXVIII

ideal de uma pessoa não permitem que eu a confunda com uma


outra pessoa. Não é porque a Nancy se penteou diferente que ela
passou a ser a Edna, e não é porque o Guilherme veio de terno e
gravata que ele passou a ser o João Carlos. Ou seja, há alterações
que percebemos como acidentais, como secundárias, alterações de
qualidade que não afetam a substância.
Entretanto, se você abolir a noção de substância, como pretende
Bohm, então não dá nem para começar a pensar. Se você supõe
que por trás de cada alteração do sujeito há uma alteração conco-
mitante do objeto ao ponto do objeto perder sua identidade, então
não dá para reconhecer nem mesmo as alterações, porque o ob-
jeto alterado será um novo objeto sem relação com o anterior. E
é claro que esse tipo de proposta bohmiana serve para ser dito
mas não para ser usado: ninguém pode praticar esse tipo de co-
nhecimento fluidificado, embora possa falar dele como hipótese.
E o pior é achar que com isso você estaria mais próximo da re-
alidade, o que é um pouco a idéia do Krisnahmurti, que diz que
a realidade do mundo é outra e outra a cada momento, que não
existe substância... No meu entender o Krisnahmurti não está nem
sequer enganado: ele mente e é falso desde a raiz do cabelo. O
sujeito dizer que todas as estruturas cognitivas que o homem tem,
montadas na linguagem, no aprendizado, etc. impedem a visão da
realidade e que para ter a visão da realidade você precisa apagar
todas essas estruturas é uma besteira inominável. É a apologia do
primarismo, a apologia da imbecilidade, e o fato é que ninguém
pratica isto, as pessoas só falam. São teorias que oferecem ideais
inatingı́veis e que além disso são desnecessárias. Por exemplo, que
alterações você poderia fazer no corpo humano para que ele fosse
mais eficiente? Colocaria asas, talvez colocasse cascos, colocaria
um olho atrás, e daı́ você comporia o tipo ideal; então diria, “Este
é o meu ideal de conhecimento.”
Outra bobagem do mesmo gênero é achar que as limitações ine-

704
28 Preleção XXVIII

rentes à percepção humana nos afastam da realidade, ou seja, que


pelo fato de nossa percepção ser limitada nós estamos na falsi-
dade, e que se tivéssemos mais sentidos ou se os nossos sentidos
fossem mais agudos perceberı́amos a realidade melhor — isto é
absolutamente falso. Se os nossos sentidos são limitados é porque
ter um sentido é ter uma limitação, uma especialização na direção
de um determinado tipo especializado de estı́mulos que nos vem
da realidade: é essa limitação que nos afina e nos sintoniza com
certos aspectos da realidade, em vez de nos afastar dela. Os olhos
não escutam, as orelhas não enxergam, e assim por diante. Se você
tivesse noventa órgãos dos sentidos isto não melhoraria em nada
sua percepção da realidade, porque você poderia se enganar do
mesmı́ssimo modo, você teria mais informações e você teria mais
margem de confusão.
E a extensão artificial dos sentidos? Quando você inventa um
equipamento para observar uma coisa melhor, esse equipamento
só funciona se você tem um quadro conceptual dentro do qual as
observações assim obtidas significam algo. Então, veja, desde que
inventaram o microscópio até hoje, quantas hipóteses falsas não
foram levantadas a partir de observações feitas no microscópio?
Muito mais do que teriam sido levantadas através da observação a
olho nu. Portanto, aquilo que ajuda também atrapalha.
Como fazer para aproveitar uma observação obtida por um mi-
croscópio? Você precisa ter todo um quadro conceptual, um sis-
tema de critérios, etc. etc., ou seja, dá mais trabalho do que inven-
tar um microscópio. O acréscimo de um equipamento é entrada
de mais dados, e mais dados não significa mais verdades. Essa
é uma noção ingênua de conhecimento, é o realismo ingênuo. É
uma visão quantitativista.
[ Aluno: O próprio do David Bohm cometer contradição de uma
frase para a outra já não demonstra um psicologismo? Na hora que
ele não se submete a uma regra lógica...]

705
28 Preleção XXVIII

Não, não, não, péra lá, isso não é psicologismo. O psicolo-


gismo não nega a lógica, é evidente. Algumas das melhores obras
de lógica foram escritas por psicologistas: John Stuart Mills é psi-
cologista e autor de um brilhante livro de lógica; Bertrand Rus-
sel é outro psicologista; ou seja, o psicologismo não é um erro
de lógica, o psicologismo é uma doutrina gnoseológica errada.
Agora, o David Bohm não é isso, ele é um jumento! Ele não é
só ignorante, ele é um ignorante metido! É bem diferente! Não
é possı́vel que um sujeito que estudou tudo isto ignore esses erros
que está cometendo. Ele comete porque quer mesmo, porque é
uma mente torta! Isso aı́ eu publicaria também, e se o sujeito me
processasse eu ia lá e provava...
Nós estamos falando de outra faixa. Não é que o sujeito vem
com doutrinas erradas, é que essas coisas que ele escreve não são
doutrinas de nada, não são teorias de nada, isso é um monte de
asneiras, está abaixo da crı́tica! Porque livros como esse do Capra
e do David Bohm não são sequer para serem discutidos. É para ser
jogado no lixo, não é aceitável nem como trabalho de escola, por-
que você colocar um problema, eu digo, bom, pelo menos supõe-
se que você tem uma idéia da evolução da discussão e do ponto
que as coisas estão. Segundo, supõe-se que você conheça a ori-
gem das idéias e dos termos que você está usando, para você saber
qual é a acepção que usa. Mas, por exemplo, esta distinção entre
conceito lógico como estático e o intuitivo como dinâmico, esta
é uma distinção bergsoniana. Foi Bergson quem introduziu isso,
e não tem sentido você falar de mundo ideal sem ter referência a
Platão, ou falar de lei da gravidade sem saber que foi Newton, são
conceitos que não fazem sentido fora dessas bases de referência.
O sujeito fala isso aı́ e repete a toda hora e não cita Bergson uma
única vez; eu tenho a impressão que ele está inconsciente de que
isso é bergsoniano. Ou seja, ele se dá ao trabalho de cruzar páginas
e páginas para explicar a coisa, quando bastaria ele dizer assim,

706
28 Preleção XXVIII

“Numa perspectiva bergsoniana...”, com duas palavras ele resumi-


ria aquilo e nós já entenderı́amos o que ele queria dizer. Se ele
explica tudo de novo e nem mesmo se refere a Bergson, é porque
ele não sabe de onde veio. Ele pensa que ele descobriu aquilo
porque foi Krisnahmurti(?) quem disse. Krisnahmurti(?) é um
pseudo-oriental que leu Bergson e copiou, e oferece aı́ um bergso-
nismo muito mal feito dizendo que é oriental.
Segundo Bergson, existem duas maneiras de você captar uma
coisa: diretamente, ou seja, nela mesma; ou segundo suas relações.
Nela mesma você capta por uma identificação, e é isso que ele
chama de intuição, por uma espécie de simpatia entre você e o
objeto. E você pode captá-las através das suas relações, e é isso
que ele chama de razão. Então, a razão captaria a coisas segundo
as suas distinções, semelhanças e diferenças em relação a outros.
Então deu burrada! Primeiro porque a percepção de
semelhanças e de diferenças é intuitiva! E se ela não fosse in-
tuitiva, queria eu ver a razão captar a semelhança e diferença;
como é que a razão poderia captar as semelhanças e diferenças?
As semelhanças e diferenças são dados. Saber, por exemplo, que
uma coisa está em cima da outra, está à esquerda, à direita, ou
maior, ou menor, o hábito de contar 1, 2, 3, estas operações são
todas intuitivas, não têm nada de racional.
Então, essas distinções bergsonianas não resistem ao mais
mı́nimo exame. Bergson sempre foi um filósofo, foi mais conhe-
cido popularmente pelo fato de falar muito bem, falar muito bo-
nito, e os cursos dele tinham uma grande audiência, sobretudo de
pessoas ligadas à estética, à parte literária, por exemplo, o nosso
Alceu Amoroso Lima assistiu muitos cursos de Bergson, e ele era
uma espécie de Milan Kundera da Filosofia. Então, ele faz su-
cesso, mas não é um homem de profundidade excepcional. A filo-
sofia de Bergson na verdade tem dois ou três temas, e é só aquilo
ali. Não é totalmente sem valor, mas não tem porque pesar tanto

707
28 Preleção XXVIII

assim. Agora, quando o sujeito pega o bergsonismo e vem nos


vender como se fosse uma sabedoria oriental, ah!, faça-me o fa-
vor... Isso é charlatanismo do brabo!
Mas o público do Krisnahmurti(?) sempre foi um público de
iletrados — donas-de-casa, pessoas solitárias que querem uma
esperança na vida –, é esse público que vai parar lá, que não tendo
jamais ouvido falar de Bergson, não estando sequer interessados
com a colocação filosófica do problema, gostava daquilo de uma
maneira ou de outra. Agora, se chega esse David Bohm, com to-
dos os seus diplomas de Fı́sico, e se torna um discı́pulo de Kris-
nahmurti(?), é sinal de que ele já tem miolo mole! Até uns quinze
anos, atrás um sujeito tentar discutir seriamente o Krisnahmurti(?),
já seria propriamente ridicularizado. Hoje não; hoje já é possı́vel,
porque ninguém lembra mais de nada. agora, o que o Bohm faz
mais para diante, na parte referente à linguagem, é terrificante.
Como é que um sujeito pode ignorar tão profundamente um pro-
blema?
[ Aluno: Quem é David Bohm? ]
É um professor de Fı́sica, formado na Universidade de Viena,
cheio de diplomas, e autor de alguns trabalhos fı́sicos, que eu
desconheço, e que tem um certo conceito.
Agora, o sujeito, porque estudou Fı́sica, ele dá palpite em tudo...
mas para dar palpite é preciso saber se ele também entende, não
é? Entretanto, Fı́sica virou uma palavra mágica, e a ciência fı́sica
ganhou um prestı́gio que não é justificado pelas conquistas teóricas
dela. Como um fı́sico é capaz de fazer uma bomba atômica você
acha que ele tem capacidade de resolver qualquer problema. Eu
digo, não, ele é só capaz de criar problemas... O sujeito é capaz de
complicar muito, então você acha que ele é capaz de resolver.
Agora, as considerações do Bohm sobre linguagem; primeiro
ele não sabe a diferença entre linguagem, lı́ngua e fala. Ou seja,
o conceito básico da Linguı́stica, o primeiro deles é como se fosse

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o ponto, reta e plano; o que o ponto, reta e plano é para a Geo-


metria, lı́ngua e fala é para a Linguı́stica — e ele ignora isso aı́.
Toda hora ele atribui à lı́ngua caracteres que são da fala. Lı́ngua
não existe; lı́ngua é um conjunto de possibilidades lógicas, pos-
sibilidades combinatórias que constituem, por exemplo, a lı́ngua
portuguesa. A lı́ngua só pode ser analisada abstrativamente, e não
historicamente. O que você vai analisar é a fala. A fala seria o uso
efetivo dessas possibilidades por este ou aquele grupo em deter-
minada época. Ou seja, a lı́ngua só existe como abstração, o que
existe efetivamente é a fala.
O Bohm atribui à lı́ngua caracteres que são da fala, por exemplo,
o predomı́nio do substantivo sobre o verbo, do substantivo sobre
o adjetivo, etc, etc. eu digo, ora, mas numa lı́ngua não predomina
um tipo de palavra sobre outra, predomina é no uso. Por exem-
plo, se num dicionário você tem dez mil substantivos e trinta mil
verbos, na prática você pode usar apenas dois mil substantivos e
quinhentos verbos. Então não existe predomı́nio de uma coisa so-
bre a outra na lı́ngua, é impossı́vel. A própria noção de predomı́nio
implica um uso, uma prática.
O mais curioso é quando esses caras fazem a apologia da lı́ngua
chinesa, quando a lı́ngua chinesa é obviamente muito mais estática
do que todas as lı́nguas ocidentais. A lı́ngua chinesa não tem
gramática e não existe nela uma maneira de você representar pu-
ras relações. Todas as relações são substancializadas numa figura.
Então, a idéia mesma de fluxo não tem. O fluxo é próprio dessas
lı́nguas que têm uma articulação mais complicada, com um monte
de tempos verbais. Por exemplo, a simultaneidade de tempos ver-
bais que você pode usar numa única frase numa lı́ngua ocidental:
como é que você faz isso em chinês? E todo mundo se preocupa
em pensar assim, “Como seria o equivalente ocidental em certas
caracterı́sticas da lı́ngua chinesa?”, eu digo, agora faça o contrário:
pegue Hegel e traduza Hegel para o chinês — simplesmente não é

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28 Preleção XXVIII

possı́vel. Então, nós vemos que existe toda uma faixa da realidade
que para o chinês não existe.
[ Aluno: Eu não entendi a relação da lı́ngua chinesa; um ideo-
grama é verbo de ... ]
...Não existe a noção de verbo e substantivo; qualquer coisa
pode ser verbo ou substantivo, conforme o lugar que você po-
nha. Mas todas as palavras têm sempre um significado concreto
porque estão ligadas a algum sı́mbolo, você não tem o totalmente
abstrato. Então quer dizer que aı́ é que cada palavra é substan-
cializada. Por exemplo, você pega a palavra que representaria
confiança, esperança, etc; isso é representado por um indivı́duo
empurrando um muro — o ideograma é mais ou menos assim:
Então, bastou você fazer isto aqui para você conseguir pensar
esta idéia independentemente da sua representação sensı́vel. Na
representação sensı́vel só existem substâncias, não existem puras
relações — como é que você vai ler? Como é que você vai pe-
gar uma pura relação? Por exemplo, a relação de anterioridade,
de posteridade, de predomı́nio, como é que você faz a palavra pre-
domı́nio? você tem que imaginar isso através de sı́mbolos. É uma
trabalheira!
A lı́ngua chinesa é tão boa que até hoje os caras não consegui-
ram unificá-la. Existem milhares de lı́nguas chinesas diferentes,
uma para cada quarteirão, e dois chineses não se entendem entre
si. Você quer saber, é uma porcaria de lı́ngua! Agora, quando ...(?)
olha para o lado de cá é bonito porque é artı́stico. Isso dito por nós,
prestem atenção! Não quer dizer que o chinês mesmo veja todas
essas profundidades.
[ Aluno: Como é que eles fazem uma cadeia abstrativa? ]
Simplesmente não fazem! Dá um trabalho medonho! Então,
você pode dizer, é uma lı́ngua mais estética, e sendo mais estética,
significa que a escrita está mais próxima do desenho, está mais
próxima das artes plásticas. Isto quer dizer que tudo aquilo que

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28 Preleção XXVIII

você pega através das artes plásticas aparece também junto no de-
senho. É a mesma coisa que você dizer, todo livro chinês vem com
figurinha.
A prova de que é uma porcaria de lı́ngua é que ela jamais se
desenvolveu, a literatura chinesa é feita de repetição ao longo dos
milênios. Você tem aqueles modelos de perfeição e a geração se-
guinte aprendia a escrever exatamente igual. Se a lı́ngua fosse tão
profunda como as pessoas imaginam aqui, você acha que não teria
saı́do uma literatura um pouquinho melhor? Então, o chinês não
sai do lugar. O aprendizado de literatura chinesa seria a mesma
coisa como se nós estivéssemos usando ainda a lı́ngua de Cı́cero,
sem poder mudar. Mas se a lı́ngua é tão rica, como é que não sai
uma literatura mais inventiva? Não conseguem nada...
Uma coisa é o chinês tal como nós o vemos, como novidade;
outra coisa é o chinês que é usado pelos chineses, que não estão
percebendo nada dessas profundidades que nós enxergamos. Por
exemplo, uma conhecida minha foi para a China, e eu pedi para
ela comprar os pauzinhos do I Ching. E quem é que sabia o que
era os pauzinhos do I Ching lá na China? Ninguém sabia!
Mas é que o pessoal aqui imagina que todo mundo está imbuı́do
da mentalidade do I Ching. Eu digo, ora, você imagina um chinês
lendo o Evangelho e supondo, “Poxa, lá no Ocidente todo mundo
é bom, todo mundo dá a outra face; aqui é que as pessoas são
ruins...”. O que as pessoas escreveram aqui sobre o I Ching é exa-
tamente a mesma coisa que isso aı́, você encarar o Ocidente inteiro
como se fosse uma expressão do Evangelho — é uma idéia total-
mente idealizada. Você pega um livro de cinco mil anos atrás e
acredita que todo mundo lê aquele livro e que todo mundo pra-
tica aquilo... mas, ora, façam-me o favor!! Isso é absolutamente
ridı́culo! Os caras não sabem o que é I Ching, do mesmo jeito que
as pessoas aqui não sabem o que é Evangelho.
Eu só sei que os pauzinhos do I Ching não tinham em parte

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alguma, ninguém sabia, e ela teve que pedir ajuda a uma outra
pessoa que ia para o interior, onde havia um velhinho que tinha lá
uma lojinha e daı́ ela achou. Ou seja, é tão raro lá quanto aqui; tal-
vez aqui seja mais fácil. Então, tudo isso aı́ são visões idealizadas
e no mais das vezes são propositadamente falseadas...
“O homem ocidental pensa por categorias lógicas.” O quê é
pensar por categorias lógicas? Nunca ninguém jamais pensou por
categorias lógicas. Você pensa psicologicamente, você pensa por
cadeias analógicas, você pensa de modo totalmente irracional. A
lógica é uma conexão ideal que serve para conferir se o seu pen-
samento foi certo. Ninguém pensa com lógica.
Veja as esperanças que as pessoas têm que as crianças lidando
com computadores vão ficar mais inteligentes; elas vão ficar é me-
nos inteligentes, porque elas vão aprender a repetir seqüências que
são puramente lógicas. O computador pensa de maneira lógica
porque ele é um pensamento limitado. Então, não podendo imitar
o processo biológico do pensamento, que seria muito limitado, se-
ria você fazer não um cérebro eletrônico, mas um cérebro de fato,
então você constrói um modelo de cérebro que repete as operações
lógicas e que de fato pensa logicamente. Agora, pensando logica-
mente tem certas operações que ele fará muito melhor do que nós
e tem outras que ele fará muito pior. Ou seja, aquelas que possam
ser decididas por uma cadeia lógica conhecida ele fará com uma
rapidez impressionante; e aquelas onde se trata de você sintetizar
dados por canais desconhecidos, ele simplesmente não fará. Por
exemplo, como é que você vai fazer um computador ter uma auto-
consciência? A não ser que você imagine uma auto-consciência
simplesmente nunca exprimida. Auto-consciência implica a res-
ponsabilidade, culpa, risco, etc, etc, e você teria que fazer um com-
putador que tivesse responsabilidades civis, “agora você tem que ir
para a escola”, “Você não fez o dever de casa”, “Agora você está de
castigo”, “Hoje você vai ficar sem o almoço”, a auto-consciência

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humana seria ligada a tudo isso aı́, então é uma função que ele não
pode ter. Se ele não pode ter auto-consciência, então ele só pode
operar sı́nteses puramente lógicas, ou analógicas segundo uma ca-
deia analógica dada já de antemão.
Se você vai ensinar uma pessoa a pensar assim, o sujeito vai
ficar extraordinariamente burro, porque você pensar logicamente
não serve para absolutamente nada. O normal não é pensar logi-
camente. Para pensar logicamente você tem que ir por uma cadeia
silogı́stica, demora um tempo extraordinário, vocês não entende-
riam uma palavra do que eu estou dizendo se pensassem logica-
mente.
O homem tem a facilidade de suprir muito do que ele desco-
nhece a respeito dos códigos através de um ato de vontade, porque
ele assume a responsabilidade, por isso mesmo que ele entende.
Agora, se você vai ensinar a criança a pensar logicamente, é claro
que ela vai ficar muito burra. E as pessoas que trabalham cons-
tantemente com computadores acabam imitando o computador —
por quê? Porque têm uma visão um pouco idealizada da coisa e
porque quer seguir os passos do computador; mas isso não é nor-
mal, a mente humana pensa por saltos formidáveis que não teria
jamais como você preencher logicamente esses hiatos, e é por isso
mesmo que funciona.
Então, o pensar biológico real é uma coisa, e o pensar lógico
é outra; aliás não existe o pensar lógico, a lógica é a forma ideal
pelo qual o pensamento se molda para ter coerência e integridade.
Por exemplo, você pega a estética de um quadro, e você pega a
fabricação das tintas. Como é que você faz a tinta? É segundo
padrões estéticos, ou seriam padrões quı́micos? Se a fabricação
das tintas tivesse que obedecer à estética, quando é que o indivı́duo
ia terminar de fazer essas tintas? Se o pintor tivesse que pintar o
quadro, se os gestos do pintor tivessem que obedecer à estética
do quadro final, ele não ia terminar o quadro. Quem diz que o

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quadro tem que começar a ser pintado pelo que é o centro da sua
hierarquia? Muitas vezes você não consegue, não dá nem para
começar.
Então, o pensamento é um processo biológico, é um processo
real, que acontece na ordem em que acontece, isto é, qualquer
uma. Há milhares de ordens possı́veis, e você as escolhe conforme
a sua cabeça, conforme a sua inteligência, ou talento, etc, etc.
Agora, a conexão lógica não é real, isto é o que este livro está
mostrando, a conexão lógica é puramente ideal. A conexão lógica
serve para você representar mentalmente...
[ Aluno: ...mas o texto do Eric Weil já dizia isso; ele dizia para
verificar o pensamento, e que na verdade o que produz conheci-
mento é a dialética. ]
Sim, o Weil vai mais além. Na verdade, nem a dialética produz
conhecimento. Ela produz uma sı́ntese lógica, essa é a diferença.
Ela é que funda as ciências. Agora, a conexão lógica é um outro
negócio. A conexão lógica permite você representar o que são os
encadeamentos causais reais. Lógica não é um modo de pensar,
é um modo de você dar ao seu pensamento uma integridade que
reflita as conexões reais dos fatos, conexões necessárias dos fatos.
Vou dar um exemplo: um sujeito mata o outro, ele deu um tiro
na cabeça do outro. Então, este é um fato concreto. Porém, este
fato concreto é composto de muitas linhas causais diferentes. Por
exemplo, você tem a quantidade de pólvora que está dentro da
cápsula, tem uma relação com o peso do projétil, o qual tem uma
relação com o seu impacto. Tudo isso você pode calcular; aı́ são
conexões lógicas. Ou seja, se a pólvora é tanto, o potencial de
explosão é tanto; se você tem tantos grãos de pólvora, com um
projétil de tal peso ele sairá com tal velocidade e batendo no objeto
a tantos metros terá um impacto de tanto. Tudo isso é uma conexão
lógica.
Agora, a partir da hora que a bala bateu na cabeça do sujeito,

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começa uma outra seqüência causal, que é fisiológica, que vai le-
var à morte. Então, acertou um pedaço do cérebro; acertando ali
uma certa cadeia neuronal, paralisa um determinado órgão. Esta
é outra cadeia causal que nada tem a ver com a primeira. Você
não poderia explicar um processo fisiológico da morte pelas leis
da balı́stica. No entanto, essas duas cadeias causais convergiram
no mesmo fato concreto. A lógica serve para quê? Serve para
você montar essas cadeias causais isoladas. Agora, a lógica não
serve para você ver que sujeito matou o outro — por quê? Porque
um sujeito matar o outro é um fato concreto, que por ser secreto
junta infinitas linhas causais que estão unidas num determinado
momento e lugar. Por quê o sujeito morreu? Morreu porque o
projétil saiu com velocidade tal e bateu com um impacto tal na
hora em que a cabeça do sujeito estava na frente.
Além disso, o sujeito para matar o outro tem que ter tido um
motivo, ou seja, é um processo de causalidade psicológica que está
envolvida. Ademais, o crime tem repercussões de ordem jurı́dica.
Tem lá um determinado tipo de crime, que aquela sociedade encara
de uma certa maneira, e que vai ter tais ou quais conseqüências
de ordem judicial. Tudo isso está conectado no mesmo evento.
A lógica é o qenos eficiente. Por outro lado, lhes parecerá mais
cientı́fico.
[ Aluno: Ele confunde uma utilidade prática com um grau de ...
]
...não, mas não tem utilidade prática nenhuma! Veja, isso é uma
coisa que para mim me parece falso; se você pegar as possibilida-
des que têm um computador desses de mesa, e a possibilidade que
um cidadão tem de usá-lo, é uma desproporção total. Um compu-
tador é como se você tivesse4

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