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Jó sofreu. Seu nome é sinônimo de sofrimento. Ele perguntou: “Por quê?” e “Por que eu?”. Questionou
Deus de modo persistente, colérico e eloquente. Ele se recusou a aceitar o silêncio com resposta. Ele
se recusou a aceitar clichês como resposta. Ele se recusou a tirar Deus de uma situação difícil.
Jó não aceitou seu sofrimento calma ou piamente. Ele não deu ouvido aos doutores e filósofos; foi
buscar uma segunda opinião. Jó apresentou seu caso diante de Deus e ali se queixou de seus sofri-
mentos, sem meias palavras.
Não é só porque Jó sofreu que ele é importante para nós. Sua importância deve-se ao fato de que ele
sofreu da mesma forma que nós sofremos - nas áreas vitais da família, da saúde e dos bens materiais.
Jó também é importante para nós porque ele, de modo perspicaz, questionou e se queixou corajo-
samente de seu sofrimento. Sem dúvida, ele foi ao extremo com suas perguntas.
Não é o sofrimento que nos perturba. É o sofrimento não merecido.
Quase todos nós, em anos de crescimento, tivemos a experiência de desobedecer aos nossos pais e,
portanto, recebemos alguma punição. Quando a disciplina estava vinculada ao erro, havia um sentimen-
to de justiça: se errarmos, seremos punidos.
Uma das surpresas que temos depois de crescer, entretanto, é que não há correlação verdadeira entre a
quantidade de erros que cometemos e a quantidade de dor que experimentamos. Uma surpresa ainda
maior é que quase sempre ocorre o oposto: fazemos o que é certo e recebemos pancada. Fazemos o
melhor que podemos e, quando já estamos prontos para receber nossa recompensa, somos atingidos
por um golpe inesperado e perdemos o equilíbrio
É o tipo de sofrimento que, primeiramente, nos confunde e, depois, nos ofende. Foi esse sofrimento que
deixou Jó confuso e ofendido, pois ele estava fazendo tudo certo, quando, de repente, tudo veio abaixo.
E é esse o tipo de sofrimento que Jó expressou quando protestou contra Deus.
Jó expressa seu sofrimento tão bem, tão correta e honestamente, que qualquer um que já tenha sofrido
- o que inclui cada um de nós - é capaz de reconhecer sua dor pessoal na voz de Jó. Jó diz corajosa-
mente o que alguns de nós têm medo de dizer. Ele faz poesia daquilo que, para a maioria de nós, não
passaria de uma mistura de queixas balbuciadas. Ele expressa em voz alta diante de Deus o que muitos
de nós se limitam a murmurar em oculto. Ele se recusou a aceitar o papel de vítima derrotada.
É importante notar também o que Jó não faz, para que não esperemos dele alguma atitude que ele não
pretende. Jó não amaldiçoa a Deus, como sua esposa sugere, na tentativa de se livrar do problema ao
livrar-se de Deus nem explica o sofrimento.
Ele não nos ensina como viver para evitar o sofrimento. O sofrimento é um mistério, e Jó respeita o mis-
tério.
No processo de encarar, questionar e respeitar o sofrimento, Jó se descobre dentro de um mistério ain-
da maior - o mistério de Deus. Talvez o maior mistério no sofrimento é como ele pode levar o ser hu-
mano à presença de Deus num estado de adoração, tomado de surpresa, amor e louvor. O sofrimento
não faz isso automaticamente, mas o faz com muita frequência, bem mais do que poderíamos ima-
ginar. Isso aconteceu com Jó. Mesmo na resposta à esposa, ele usa de refinada ironia, um tipo obscuro
e difícil de verdade: "Se recebemos coisas boas de Deus: por que não receberíamos também coisas
ruins?".
Mas há no livro de Jó mais do que Jó: temos os amigos de Jó. No momento em que nos encontramos
com algum tipo de problema - doentes no hospital, desolados pela morte de um amigo, descartados de
um trabalho ou de um relacionamento, deprimidos ou desnorteados -, alguém sempre aparece, reve-
lando-nos o que está errado conosco e o que devemos fazer para melhorar. Os que sofrem atraem os
que consertam, como a carniça atrai os abutres. No início, ficamos impressionados com o fato de eles
se importarem conosco e maravilhados com a facilidade que têm para encontrar respostas. Eles sabem
tanto! Como se tornaram tão especialistas em existência humana!
Na maioria das vezes, eles usam a Palavra de Deus com espantosa naturalidade. são capazes de
apresentar os mais variados diagnósticos e prescrições espirituais. E tudo soa tão coerente! Mas, en-
tão, começamos a perguntar: "Por que, apesar de aparente compaixão deles, nos sentimos piores, não
melhores, depois de ouvir seu discurso?"
O livro de Jó não é apenas uma testemunha da dignidade do sofrimento e da presença de Deus em
nosso sofrimento: é também o principal protesto bíblico contra a religião que foi reduzida a explicações
ou "respostas". Muitas das respostas que os chamados "amigos de Jó" dão a ele são, tecnicamente,
verdadeiras. Mas é a parte "técnica" que as destrói. São respostas sem relacionamento pessoal;
explicações intelectuais, mas sem intimidade. As respostas aplicadas à vida devastada de Jó como o
rótulo numa garrafa. Jó se enfurece contra essa sabedoria secularizada, que perdeu contato com as
vivas realidades de Deus.
Em cada geração, surgem homens e mulheres que fingem ter condições de nos ensinar um modo de
vida que nos faça "saudáveis, ricos e sábios". De acordo com essa propaganda, qualquer um que viva
inteligente e moralmente estará livre de sofrimento. Do ponto de vista deles, devemos nos considerar
felizardos por tê-los à disposição para providenciar as respostas inteligentes e morais de que
precisamos.
A favor de todos os que já foram enganados pelos chavões das boas pessoas que apareceram para nos
revelar que tudo vai ficar bem se pensarmos desta ou daquela maneira e agirmos deste ou daquele
modo, Jó emite uma resposta angustiada. Ele rejeita o conselho de um Deus idealizado, provido de
explicações superficiais para cada circunstância. A oposição honesta de Jó continua sendo a melhor
defesa contra os clichês de pensadores dogmáticos e a futilidade da tagarelice religiosa.
O honesto e inocente Jó é introduzido num cenário de imenso sofrimento e cercado pela sabedoria
religiosa convencional da época, na forma dos discursos de Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú. O contraste é
inesquecível. Os conselheiros, metódica e pedantemente, recitam seus preceitos livrescos para Jó. No
início, ele se enfurece de dor e protesta, mas depois silencia, com a fé dominada de pavor diante de
Deus, que fala de dentro de uma tempestade - o vendaval da Divindade. A fé verdadeira não pode ser
reduzida a banalidades espirituais nem comercializada nas feiras do sucesso. Ela é refinada no fogo e
nos vendavais da dor.
O livro de Jó não rejeita respostas propriamente. Há conteúdo para a religião bíblica. A secularização
das respostas é que é rejeitada - respostas separadas da sua Fonte, o Deus vivo, a Palavra que tanto
nos abate quanto cura. Não podemos ter a verdade acerca de Deus divorciada da mente e do coração
de Deus.
Por causa da nossa compaixão, não gostamos de ver as pessoas sofrendo. Do mesmo modo, nossos
instintos buscam prevenir e aliviar o sofrimento. Sem dúvida, é um bom impulso. Mas, se quisermos de
fato alcançar os que sofrem, devemos cuidar para não ser como os amigos de Jó, ou seja, não devemos
oferecer nossa "ajuda" com a presunção de que podemos consertar a situação, pôr termo a ela ou
torná-la "melhor". Podemos olhar para nossos amigos que sofrem e imaginar como poderiam ter um
casamento melhor, filhos mais bem comportados, melhor saúde mental e emocional. Mas, antes de nos
precipitarmos em consertar o sofrimento, precisamos nos lembrar de algumas coisas.
Em primeiro lugar, não importa quão compreensíveis sejamos, não compreendemos verdadeiramente a
total natureza dos problemas dos nossos amigos. Em segundo lugar, nossos amigos podem não querer
nosso conselho. Em terceiro lugar - o lado irônico da questão -, é que na maioria das vezes as pessoas
não sofrem menos quando estão comprometidas em seguir a Deus é comum que sofram mais. Quando
elas passam pelo sofrimento, a vida é transformada, aprofundada, marcada com beleza e santidade de
modos memoráveis, jamais previstos antes do sofrimento.
Assim, em vez de insistir na prevenção do sofrimento - uma vez que não teremos muito sucesso mesmo
-, talvez devêssemos entrar no sofrimento, participar dele à, medida que nos tornamos capazes de
adentrar o mistério e procurar por Deus. Isso quer dizer que precisamos parar de nos sentir tristes pelos
que sofrem. Em vez de admirá-los, tentemos aprender com eles e, se nos permitirem, nos juntar a elas
em protesto e em oração. A comiseração pode ser míope e condescendente; o sofrimento
compartilhado pode ser dignificante e transformar nossa vida. Quando olhamos para o sofrimento, a
oração e o louvor de Jó, vemos que ele já abriu um caminho de coragem e integridade para seguirmos.
Mas às vezes é difícil saber como seguir o exemplo de Jó quando nos sentimos sós em nosso
sofrimento, inseguros quanto ao que Deus quer que façamos. O que devemos perceber nesses períodos
de escuridão é que Deus que apareceu a Jó no vendaval está nos desafiando para um duelo. Embora
Deus talvez não apareça diante de nós numa visão, ele se faz conhecer por alguma das muitas
maneiras que descreve a Jó - do macro ao micro, das maravilhas das galáxias às pequenas coisas que
acreditamos existir. Ele é o Criador do insondável Universo que nos cerca e é também o Criador do
universo dentro de nós. Assim, existe esperança para nós - não da escuridão do nosso sofrimento ou
das respostas convenientes encontradas nos livros, mas do Deus que vê nosso sofrimento e compar-
tilha da nossa dor.
A leitura meditativa de Jó nos levará a encarar as perguntas que surgem quando nossa vida não toma o
rumo que esperávamos. Primeiramente, ouvimos as respostas comuns. Depois, fazemos outra vez as
perguntas, com variações - e ouvimos as respostas novamente, com variações. E assim por diante. To-
da vez que deixamos Jó expressar nossas perguntas, nosso sofrimento ganha em dignidade e subimos
um degrau do limiar da voz e do mistério de Deus. Toda vez que rejeitamos o conselho milagroso das
pessoas que nos veem e ouvem, mas não nos compreendem, como fez Jó, aprofundamos nossa dis-
ponibilidade e sinceridade à revelação que só acontece com a tempestade. O mistério de Deus supera a
escuridão e a luta. Percebemos que o sofrimento questiona a nossa vida, não a Deus. As posições es-
tão invertidas: o Deus Vivo está conosco. Deus está falando conosco. Assim, a experiência de Jó é con-
firmada e repetida mais uma vez no nosso sofrimento e na nossa vulnerável humanidade.
De: O autor é desconhecido. Jó era um rico xeique do deserto e vivia no lado oriental da Palestina, pro-
vavelmente nos tempos de Abraão, Isaque e Jacó.
Para: A literatura de sabedoria era popular entre os mais instruídos (e também entre muitos de pouca
instrução) por todo o Oriente Médio e durante o tempo do Antigo Testamento. Portanto, o livro de Jó
poderia ter sido escrito em qualquer época dentro do período de mil e quinhentos anos do Antigo
Testamento. Pode ter sido o primeiro livro da Bíblia.
Uma das bases do ensino da sabedoria era que o ser humano recebe o que merece, e a sabedoria pode
aumentar suas chances de sucesso na vida. Para o autor de Jó, alguns desses conselhos pareciam
clichês, precisando de renovação.
Contexto: Por volta de 1800 a.C. Mesmo antes de 2000 a.C. (antes de Abraão), um poeta na Suméria
(Mesopotâmia) escreveu sobre um homem que se queixava ao seu Deus por causa de seu sofrimento: