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O erro racionalista e a reforma litúrgica.

Quando se fala em algumas impropriedades da forma moderna do rito romano, é comum levantar-se
o argumento de que não se observou o princípio do desenvolvimento harmônico da liturgia, ou o de
que, em nome de uma suposta pureza do rito, a partir de um erro denominado “arqueologismo”,
eliminou-se uma série de acréscimos (legítimos!) de origem galicana ou mesmo oriundos da piedade
individual. Tudo isso está absolutamente certo, é verdade, mas creio que um outro viés deveria ser
mais trabalhado: o de que alguns aspectos da reforma litúrgica levada a cabo por Mons. Anibale
Bugnini, e sua implantação prática nas paróquias, foram influenciados pelo racionalismo.
O sacerdote australiano Pe. John Parsons, vivamente empenhado na chamada “reforma da reforma”,
explica, em um apêndice da grande obra do Pe. Thomas M. Kocik sobre o tema, o quanto o
racionalismo está na gênese da ânsia por uma Missa “ideal”. De fato, o idealismo das formas “puras”
corresponde à mesma matriz ideológica do racionalismo, do Iluminismo, que rechaça a tradição por
vê-la envolvida no que entende ser um repositório de superstições.
Ademais, certas simplificações feitas por Bugnini não estavam na linha da eliminação de
duplicidades superficiais pedida pelo Concílio, mas obedeciam a uma agenda que não conseguia
entender o valor dos símbolos, dos sinais. Se o homo modernus não entende os símbolos profundos
da liturgia romana tradicional, eles devem ser retirados: eis o mote que acompanhou boa parte dos
executores da reforma. Ora, isso é uma sandice. Então, em um país de esmagadora maioria de
analfabetos, iríamos eliminar as letras, os sinais de pontuação, a gramática? Se a resposta ao
analfabetismo é a alfabetização, a resposta a um século que não lê os símbolos é ensinar-lhes o seu
significado, não propor seu banimento!
O homem advindo do racionalismo não entende os símbolos, não é capaz de aprofundar no belo, vê
o fausto e o esplendor como farisaísmo estéril ou triunfalismo e, diante desse quadro, certos
membros do Concilium de Bugnini, propuseram o aniquilamento de tudo aquilo que a modernidade
não entenderia. Daí, a exclusão dos altares laterais, a falta de ênfase no dogma da transubstanciação,
a eliminação de certos sinais que davam o claro caráter sacrifical da Missa, a mentalidade de que a
liturgia bem feita excluiria a devoção popular, a obrigatoriedade prática de celebrar versus populum,
o impedimento de recitar o Cânon em vox submissa, a verdadeira cruzada contra o latim etc.
Com efeito, embora muitos desses pontos não estejam presentes no código de rubricas do Missale
Romanum de 1970, estavam no ethos dos que implementaram a reforma. O racionalismo é a origem
de muitas daquelas posturas já identificadas com o arqueologismo litúrgico.
Para o racionalismo, disseminado mesmo entre católicos a partir do jansenismo do século XVIII – e
o herético Sínodo de Pistóia, com suas proposições litúrgicas condenadas, está aí para provar –, a
multiplicação de altares laterais era produto do sentimentalismo, as Missas votivas eram uma forma
de superstição, o Cânon em silêncio um obscurantismo, o padre a celebrar versus Deum estaria “de
costas para o povo” – eis aqui também uma distorção dos valores democráticos. Tudo isso deveria
ser reprimido.
Finalmente, após a primeira e a segunda fases do movimento litúrgico de Dom Guéranger, OSB, que
muito contribuíram para uma vivência mais apurada, entre os fiéis, do dom de nossa liturgia romana,
os racionalistas, imbuídos desses conceitos amalgamados com um estilo peculiar de catolicismo, e
alimentados pelo arqueologismo, propuseram sua revolução. Foi a terceira fase do movimento
litúrgico que, ao lado de excelentes contribuições, que nos deram os valiosos pontos positivos da
reforma de Paulo VI (como um maior ciclo de leituras bíblicas no lecionário, a possibilidade de se
usar canto gregoriano e incenso mesmo em Missas rezadas, um tesouro de hinos, antífonas, coletas e
prefácios pré-tridentinos e que não constavam do Missal compilado por São Pio V, a procissão do
ofertório, um mais amplo uso do vernáculo, a ênfase no gregoriano como canto oficial do rito
romano, a restauração das preces dos fiéis, a recolocação do Ite Missa est para depois da bênção, a
homilia ou sermão como cerimônia integrante da liturgia e não uma interrupção da Missa, a
simplificação na gradação de festividades, a mudança mesmo em Missas simples e rezadas, como
ensina o Mons. Peter Elliott, de um tablado restrito no qual ficava o padre para um espaço aberto de
celebração no presbitério, etc), trouxe enormes desvantagens ao culto católico. Esses racionalistas e
arqueologistas se aproveitaram das diretivas do Concílio Vaticano II e da depressão de Paulo VI,
ocasionada por sua quebra de autoridade diante de um episcopado rebelde que não aceitou sua
reafirmação da ortodoxia em matéria de moral sexual, e da sua confiança nos oficiais do comitê para
a reforma litúrgica, para colocar o cavalo de Tróia dentro dos muros da Igreja.
Não fosse o corajoso basta de Paulo VI, impedindo uma revolução ainda maior na liturgia, e
desautorizando mudanças mais radicais que Bugnini – que foi mandado por Paulo VI para o Irã, em
um ato que foi interpretado por cardeais mais ortodoxos como uma punição – e seus sequazes
tentavam fazer passar, estaríamos hoje diante de um seco, frio e absolutamente racionalista culto
católico.
A reforma teve elementos racionalistas, mas graças a Deus e ao Papa Paulo VI – e depois às
correções de João Paulo II –, não tantos quanto os modernistas queriam. Todavia, se na própria
reforma litúrgica, o radicalismo dos racionalistas foi barrado, na sua implementação em nossas
paróquias, a crise atingiu proporções apocalípticas.
A frieza racionalista caiu como uma bomba no dia-a-dia dos fiéis católicos: de uma hora para outra,
houve padres que até mesmo retiraram não só os altares laterais como removeram todas ou quase
todas as imagens dos santos das igrejas; o órgão foi banido e trocado pelos violões da música
romântica e folk; as piedosas letras dos cantos gregorianos, das polifonias sacras de forte inspiração
bíblica, e dos cânticos populares mais tradicionais foram substituídas por outras de gosto duvidoso; o
celebrante deu as caras para o povo como se fosse um animador de auditório – e, de fato, poucos são
os padres que conseguem manter a concentração e a piedade versus populum. Com o tempo, a casula
foi abandonada, à revelia das normas que obrigavam ao seu uso, os paramentos adquiriram uma
simplicidade que beirava ao simplório e sem aquela nota de sacralidade e distinção próprias de nossa
visão católica das coisas.
Claro que essas coisas todas na implementação da reforma não estavam por esta prevista. Em
nenhum momento, mandou a Igreja que se aposentasse o canto gregoriano, a casula, as seis velas nas
Missas solenes, o latim... Ocorre que o racionalismo não estava presente somente nas novas normas,
mas em toda uma mentalidade que, ignorando as sadias normas que procuravam manter um mínimo
de nossa tradição litúrgica romana, radicalizava a reforma. Não contentes com as rubricas, que já não
estavam recheadas de arqueologismo e simplificações em demasia, os revolucionários fizeram, em
cada paróquia, a sua própria reforma.
Se o novo rito tinha alguns defeitos, o modo como muitos o colocaram em prática foi ainda pior.
Não se nega que há problemas na reforma litúrgica, porém o que temos em nossas igrejas não é
culpa da reforma e nem mesmo pode ser chamado de Novus Ordo, de Missa nova: é uma sua
distorção.
É bem possível celebrar a Missa do rito novo com toda a sobriedade e sacralidade, com canto
gregoriano, incenso, versus Deum, toda ela em latim etc, atestando a continuidade do Missale de
Paulo VI com o rito romano clássico. Sem embargo, não se pode negar a presença, como atestado,
da mentalidade racionalista, ainda que ela esteja muito mais na criminosa implementação que alguns
padres e Bispos puseram em marcha contra as orientações dos Papas e as normas de Roma.
Uma eventual e necessária “reforma da reforma”, que coloque como ponto de partida a co-existência
dos dois ritos, o novo e o antigo, o moderno e o tradicional, e propugne, em harmônico
desenvolvimento, por um acréscimo dos elementos positivos do Missal de Paulo VI ao Missal
clássico de São Pio V, em uma unificação da liturgia romana, não poderá desconsiderar também a
rejeição da ideologia por trás dos pontos negativos do novo Ordinário. E nessa ideologia, não poucos
pontos da filosofia racionalista estão presentes.

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