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Izabel Ribeiro Filippi

Teologia da Virtudes Ascéticas


– Da Humildade à Mansidão -

1ª Edição - Volume I

EDITORA SOCIEDADE CATÓLICA 


© Copyrigh Sociedade Católica
– Apostolado Sociedade Católica – Ano II – 2008 –

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Direitos da Autora

Filippi, Izabel Ribeiro. 1987-

Teologia da Virtudes Ascéticas


Campinas/SP - Passos/MG: 2008
(1ª edição, 44 páginas)

Bibliografia.

Intro. Vamos também nós morrer; 1. Humildade; 2. Castidade; 3. Diligência; 4.


Mansidão

I. Filippi, Izabel Ribeiro; II. Prefácio: Maculan, Carlos Eduardo

Capa: The Visitation de Juan Correa De Vivar-1539 † 1552. The Museum Del Prado

Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.


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apreensão e indenizações diversas (artigos 102, 103 parágrafo único, 104, 105,
106 e 107 itens 1, 2 e 3, da Lei nº 9.610, de 19.06.1998 [Lei dos Direitos
Autorais]).

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"Nada te perturbes,
nada te amedrontes,
tudo passa [...] a paciência, tudo alcança.
A quem tem Deus nada falta,
só Deus basta".
(Santa Teresa D'Ávila)

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Àquele que me criou e me deu a vida,
Este mesmo que também me sustenta.
E ao que me foi dado, como graça maior
que o merecimento, por este mesmo
Deus e Senhor, a quem hei de amar por
toda minha vida, que será construída
ao seu lado: Carlos Eduardo Maculan.

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Índice

Introdução
Vamos Também Nós, para Morrermos com Ele.................................................10

Capítulo I
Das Virtudes Ascéticas: A Humildade...............................................................12

Capítulo II
Das Virtudes Ascéticas: A Castidade................................................................17

Capítulo III
Das Virtudes Ascéticas: A Diligência .............................................................. 25

Capítulo IV
Das Virtudes Ascéticas: A Mansidão ............................................................... 31

Informações .................................................................................................. 39

EDITORA SOCIEDADE CATÓLICA 

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Prefácio

A leitura de Teologia das Virtudes Ascéticas me fez voltar no tempo, um


propício resgate do passado. Mas que passado? O meu próprio, que é somente
mais um entre tantos que vivem no mundo criado por Deus, porém, é o meu
passado a minha história, o conjunto das batidas do meu coração, dos meus
olhares e da busca de Deus - desesperada busca, admito sem hesitar. Lembrei
dos meus quinze anos, quando pela primeira vez adentrei por debaixo dos
pórticos do Carmelo. Sentia-me um grão de areia sendo defrontado com o oceano:
- Que ousadia a minha entrar pela porta da Ordem de Nossa Senhora Carmo! –
afinal, o que um jovem pouco instruído poderia oferecer aos já grandiosos méritos
do Carmelo? No entanto, estava caminhando diretamente para uma experiência
profunda, uma marca que carregaria até os dias atuais: os místicos e doutores da
fé Santa e Católica que em suas vidas gozaram do privilégio de vergar o
Escapulário do Carmo.

Desejo nestas linhas dialogar com várias pessoas, das quais ousarei furtar
algumas palavras de extrema inteligência e ardor amoroso. Cinco séculos antes
de Cristo algumas respostas já foram oferecidas sobre o tema; surge o platonismo
que entende as virtudes como propriedade do “ser”, e uma vez realizadas,
consumam a excelência ou perfeição; já no século IV a.C, o aristotelismo as
coloca como a busca do equilíbrio, o caminho do meio, sendo a justa medida na
experiência dos afetos, em oposição a paixões extremas e descontroladas.
Epicuristas (séculos IV e III a.C) as colocam com meras capacidades estratégicas
nas quais se intensificam os prazeres. Mas e a resposta cristã, o que nos oferece?
Santo Agostinho de Hipona foi além. Ele mesmo tão sedento de uma vida regrada
em substituição aos exageros de uma existência sem Deus, compreendeu as
mesmas como essência e finalidade suprema do espírito humano através da
disposição do amor. Eis o centro: o amor, amor para com Deus que ama sem
medidas. Na tradição do Carmelo, Santo Agostinho de Hipona oferece a chave que
abre a porta da alma, avançando no conceito que os filósofos pré-cristãos
criaram, e pela graça de Deus os místicos carmelitas souberam entender o brado
da alma; é esse amor que com ousadia devemos praticar.

As virtudes nos direcionam para o reto uso dos sentidos, o caminho pelo
qual chegamos ao Pai eterno, que em Suas criaturas mostra a Realeza. Com
divinas mercês, o Senhor auxilia nossa natureza decaída para que cumpramos
nosso dever de liberdade para com Ele. O que nos pede Deus mais que a
obediência enquanto prova cabal de amor? Santa Tereza D’ávila aponta um norte
relevantíssimo: “Vivo já fora de mim, depois que morro de amor, porque vivo no
Senhor, que me quis para Si”. Amar é o verbo a ser conjugado, o “Eros” deve ser
direcionado para o “Ágape” para que o primeiro não se perca em si, e, como

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moribundo, fique lançado pelo caminho para servir apenas ao pisoteio daqueles
que buscam o sentido pleno da existência.

O Ágape é explanado em versos: "Oh! Catutério suave! oh! Regalada chaga!


Mão branda! oh! Toque delicado”. Com tais palavras São João da Cruz expressa o
amor inflamado e mútuo de uma vida por Deus e de Deus por uma vida. A
queimadura suave do amor, o mesmo amor que vários poetas tentaram cantar,
mas só a mística católica conseguiu expressar seus contornos mais sutis, que vez
ou outra – e não raro – passa despercebido aos olhos dos mais desatentos. O
cautério é o Espírito Santo presente no íntimo de cada alma e que nos
impulsiona para frente, ao longe, ao porvir, à espera de um fim derradeiro que dê
significado às dores entrecortadas por inúmeras alegrias enquanto marcas da
vida.

O que dizer ao Pai quando pelo Cristo e no amor do Espírito Santo formos
julgados na tardança da vida, no dizeres do próprio João de sobrenome Cruz?
Com viver tão doce chaga? O Santo nos traz a tríplice presença da Trindade em
nossas vidas; a primeira é a presença natural se dá pela essência, ou seja, se faz
presente em todos os seres humanos, tanto nas almas boas e santas, como nas
almas más e adeptas pertinazes do pecado, bem como presente em todas as
criaturas; a Trindade nos habita pela presença do Pai, que escolhe seus seres
para gravar Sua imagem e semelhança; o Primeiro da Trindade, o Criador de
todas as coisas nas quais Ele Se revela o Abbá de Cristo. A segunda é espiritual e
tornada concreta pela graça divina, assim, Deus, como pelo Filho, em nós Se faz
habitante da lama e mesmo assim mostra-Se satisfeito com tal habitar, pois não
cessa de dispensar graças e mais graças para que, ainda incapacitados e sem
méritos, possamos no fim de nossas vidas presenciar a transformação da graça
em Glória Divina; tal como o Pai, na segunda presença, Cristo apresenta ao
mundo pela Igreja, Corpo Místico do Senhor e sacramento contínuo da salvação,
o meio eficiente para a subida ao Calvário Espiritual no qual nos consumaremos
nos méritos da Segunda e Divina Pessoa Trinitária. Por fim, a terceira presença,
que é a efetiva, onde Deus, vendo as almas sofrentes, dispensa suas consolações,
mercês, deleites e alegrias com o operar do Espírito Santo, o Amor entre Pai e
Filho que elege a alma como Morada e Castelo. Então, resume o Santo da Cruz:
“Como amado no amante um no outro residia, e esse amor que os une, no mesmo
coincidia com o de um e com o de outro em igualdade e valia”. A igualdade na
dignidade e honra transporta a mente das palavras de São João para as palavras
de Santa Tereza, que evidenciam a presença de Jesus Cristo no mundo: “Em tudo
me sujeito ao que professa a Santa Igreja Católica Romana, em cuja fé vivo, afirmo
viver e prometo viver e morrer”.

Séculos depois, surgiria na Ordem dos Santos, uma pequena florzinha, e


assim a chamo não por ser minúscula ou insignificante, mas por dispensá-la o
tratamento que desejou e a si mesmo intitulou: “uma pequena flor primaveril”.

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Com agradabilíssimo afeto que até no nome se diminuía, a doce Terezinha, da
Sagrada Face e do Menino Jesus dirá de si mesma: “mais indigna serva da
realeza divina”. Tal era corriqueiro viver Deus em sua vida, que a Santinha fala
de Deus no inclinar que Ele mesmo realiza para vir ao socorro das almas. A
Santa de Lisieux contou na história de uma alma,] a sua própria alma, que é, na
verdade, a história de todas as almas: “... Se abaixando, Deus mostra Sua
grandeza infinita. Assim como o sol ilumina os cedros e cada florzinha, como se
somente ela existisse sobre a terra, da mesma forma Deus cuida pessoalmente de
cada alma, como se não existisse outra além dela. E assim como na natureza
todas as estações estão de tal modo organizadas que no momento certo se abre
até a mais humilde margarida, da mesma forma tudo concorre para o bem de cada
alma”.

Amar: eis a proposta, e eis o que “Teologia das Virtudes Ascéticas” nos
emana, pois, com singular maestria, usando dos doutores do Carmelo, dos
doutores da fé, dos Santos Padres, de abalizados mestres, Izabel Filippi narra
nesse volume, a epopéia da alma que deseja voltar para o seio do qual ela veio: a
Trindade. A autora, com a qual, por divina graça, tenho a honra de dividir a
existência na busca do amor entre homem e mulher que deve ser imitação do
Amor Divino, à semelhança do Pai, e propriamente o Amor esponsal entre Cristo
e Sua Esposa, narra as linhas mestras, os modos, os anseios da vida que não se
conforma em ser “sair do nada e voltar para o nada”. Há um sentido, no qual
chegaremos pelas virtudes e na negação dos vícios.

A Igreja é "comunidade que está composta por homens reunidos em Cristo e


são dirigidos pelo Espírito Santo em sua peregrinação rumo à casa do Pai"
(Gaudium et Spes, nº 1). A porta está aberta, o convite foi feito pelo Cristo,
entremos para o banquete nupcial, as bodas do Senhor.

Carlos Eduardo Maculan,


Dignitário da mercê divina de nome Izabel, que pela Terceira Pessoa
Admirável da Trindade se apresenta como graça e face de Deus.

Passos/MG – Campinas/SP, aos 7 dias do mês de setembro


Ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2008.
Festa de Santa Regina, virgem e mártir.

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Introdução
Vamos Também Nós,
para Morrermos com Ele

Ao homem, seja em qual tempo viva, foi dada uma certeza: Deus o criou
para a felicidade. Não uma felicidade qualquer, incapaz de preencher-nos por
completo, mas uma felicidade plena; esta é a vida em abundância, prometida por
Cristo e esperada por todos aqueles que n’Ele crêem.

O descontentamento que muitas vezes sentimos, seja com a dor sem culpa,
as injustiças do mundo, ou as cruzes carregadas, não é desprovido de sentido.
Não fomos criados para padecer, mas pelo pecado caímos e quebramos nossa
união com Deus. Enquanto não encontramos Aquele para quem fomos criados,
nosso coração está inquieto e não repousa.

Para nos livrar desta queda original, que seria nossa eterna condenação,
Deus enviou seu Filho único para nos salvar. A vinda de Cristo, sua encarnação,
vida, paixão, morte e ressurreição, deu-nos a possibilidade de restituir a união
com o Criador. Através do batismo, a graça santificante se apossa de nosso ser e
nos tornamos templos do Espírito Santo.

Mas ao homem não basta receber esta graça. É preciso cuidá-la e mantê-la,
pois corremos constantemente o risco de cair, e com nossos pecados perdemos
novamente a união que tão amorosamente Nosso Senhor nos concedeu, uma
nova aliança selada com o sangue derramado pelo Cordeiro. O pecado mortal,
assim como já se enuncia, leva-nos à morte porque desviamo-nos de Deus,
destruindo toda caridade contida em nosso coração. Esta morte, entretanto, pode
ser evitada através de outra, a qual incessantemente devemos buscar. Para
encontrarmos a vida – a verdadeira vida – teremos de morrer para nós mesmos,
para o mundo e para o pecado, e assim renasceremos em Deus. “Em verdade, em
verdade vos digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer,
produz muito fruto” (Jo 12,24). Deste aparente paradoxo, o cristão encontra seu
caminho, que será o mesmo de Cristo, morto na Cruz por amor dos homens, mas
ressuscitado três dias depois, para a glória de Deus.

Quando Cristo quis retornar ao lugar onde queriam apedrejá-Lo, disse


Tomé: “vamos também nós, para morrermos com ele” (Jo 11,16). Sabendo que só
n’Ele encontrariam palavras de vida eterna, mesmo antes de Cristo ter se doado
por completo na Cruz, já demonstravam disposição de morrer por seu Mestre.
Entretanto, sabemos que apenas um dos apóstolos permaneceu com Cristo na
hora de sua morte... Eles, contudo, ainda não entendiam o que os esperavam:
Aquele que é o Senhor da Vida ressuscitaria dos mortos, vencendo a morte de
uma vez por todas. Nós, os felizes que crêem ainda que não tenham visto,
sabemos agora que a morte, e morte de Cruz, é o único caminho que nos levará à
vida, pois este foi o sublime exemplo deixado pelo Filho de Deus, Senhor nosso.

Assim como à Samaritana, Jesus oferece a cada um a água da vida, que

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pode saciar nossa sede definitivamente. Não é tal qual a água lamacenta que
muitas vezes o mundo nos oferece com suas aparentes alegrias que, despidas de
sua máscara, são na verdade causa de morte, mas água que nos faz viver e
torna-nos, também a nós, fonte de vida. A Boa Nova que Cristo trouxe não ficou
apenas num momento da história, deve se fazer presente em nossas vidas. “O
Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber,
mas uma comunicação que gera fatos e muda a vida” (Sua Santidade o Papa
Bento XVI, Carta Encíclica Spe Salvi). A pergunta que ressoa constantemente é:
estamos dispostos a assumir esta mudança que a Verdade nos exige?

De muitas formas, hoje, somos convidados a aceitar a vida em Cristo. E


todas elas mostram que, embora diversas, o caminho é único, e requer
compromisso. Até mesmo o maior dom que nos foi dado, a vida, é atacado
constantemente, e cabe a nós defendê-lo, seja negando veementemente práticas
que geram diretamente a extirpação da vida, seja lutando contra toda ideologia
que tira da vida o seu valor sagrado, coisificando o homem e rebaixando-o a mero
animal racional produto do acaso, e não fruto do livre amor de Deus, com o qual
Ele nos cumulou. Assim, o homem esqueceu-se de sua dignidade, não busca as
coisas do alto e fica arraigado com demasia a tudo aquilo que é passageiro; este
homem jamais encontrará a felicidade se continuar a olhar para o que é criado,
sem enxergar em sua beleza a grandeza do Criador.

Este combate se estende para todo gesto e detalhe da vida humana. Não, o
homem não foi criado ao acaso, há Alguém que o ama e o quer junto de Si, que
inscreveu em nosso coração uma lei que nos leva até Ele, e nos faz ansiar por
Sua presença. Corresponderemos ao amor deste que, ainda que Se bastasse por
completo, nos criou, e ainda que não tivesse culpa alguma se fez homem e
morreu para nos salvar, se formos dóceis ao seu constante chamado,
renunciando tudo quanto O ofende, que é também aquilo que nos destrói.

O Filho de Deus, no padecimento do alto da Cruz, nos exclama: tenho sede!


Podemos nos por aos seus pés, diante de sua carne toda rasgada e desfigurada
por amor dos homens, e dar-Lhe de beber. Sua sede é de homens; Ele quer
almas. Quer a alma de cada um de nós, as quer mortas para o pecado, e vivas
para o gozo eterno junto do Pai. “Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida.
Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e
crê em mim, jamais morrerá. Crês nisto?” (Jo 11,26). Os que crerem, e procederem
conforme esta fé, viverão.

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Capítulo I
Das Virtudes Ascéticas: A Humildade

Cristo, Aquele que detém todo poder, honra e glória, fez-se pequeno, viveu
entre os homens, humilhou-se, foi pregado à cruz entre malfeitores. Diante dos
olhos humanos não voltados a Deus seria apenas mais um fracasso. Entretanto
foi assim que venceu o pecado, da morte trouxe-nos à vida. Se Deus, a quem
tudo devemos, assim procedeu, quanto mais toda a humanidade está obrigada a
reconhecer-se tal qual é, dependente de seu Senhor.

A humildade fundamenta-se na verdade, por nos conhecermos tais quais


somos, e na justiça, ao nos tratarmos de acordo com este conhecimento, como
verdadeiramente merecemos. Dizem as Escrituras que "quem pensa ser alguma
coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo" (Gl 6,3). Não é, entretanto,
humildade apenas conhecer-se e, vendo seus defeitos, encobri-los. Pelo contrário,
o cristão deve reconhecer sua miséria e nela se comprazer. Precisamos aceitar
que tudo em nós que há de bom vem de Deus. "Toda dádiva boa e todo dom
perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem
mesmo aparência de instabilidade" (Tg 1,17). A humildade nos levará a admitir,
mais que a isso, que tudo que há de mal em nós, isto sim, é nosso.

Certamente há coisas boas no homem, mas a admiração por elas deve ser
dirigida a Deus, uma vez que é Ele que nos concede todas as graças, dons e
talentos que porventura tenhamos. Lembremos o que o próprio Jesus disse: "Sem
mim nada podeis fazer" (Jo 15,5). De que adiantará cultivar as demais virtudes,
não tendo em si humildade para mantê-las? "Porém, temos este tesouro em vasos
de barro, para que transpareça claramente que este poder extraordinário provém
de Deus e não de nós" (2 Cor 4,7). Se não permanecermos com Deus este vaso
facilmente se quebrará. Devemos, portanto, reconhecê-Lo como fonte de todas as
graças, de quem não podemos nos separar se quisermos conservá-las e nutri-las:
é d'Ele o poder de dar e tirar.

Já nascemos maculados pelo pecado original, mas mereceríamos eternas


humilhações principalmente pelos pecados atuais cometidos. Os homens
quiseram ser deuses, e por isso a humanidade decaiu. Cristo, sendo Deus, para
nos salvar fez-se homem. Nada que pudéssemos fazer expiaria nossas ofensas a
Deus, não fosse pela sua encarnação, paixão, morte e ressurreição, que deu-nos
a possibilidade de redenção. A humildade torna o homem livre, uma vez que seu
exercício exige expropriação do próprio eu. Aquele que é livre não vive preso a si,
mas se abre a Deus e ao próximo. A soberba de achar-se acima de tudo, quando
a verdade nos faria reconhecer que não estamos neste patamar, é que realmente
escraviza o homem. Esta virtude nos leva a temer a Deus, não somente pelos
castigos, mas por reverência e adoração. Por conseqüência, os que temem a Deus
serão também obedientes, pois nada desejarão senão fazer a Santa Vontade
Divina, reconhecendo-se dependentes de seu Senhor.

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A confiança em Jesus Cristo nos levará até sua Casta Esposa, a Igreja. A
Ela devemos nos curvar, pois detém toda Verdade. Cristo-Cabeça a conduz e nós,
bons filhos, devemos amá-La e submetermo-nos a Ela. No Romano Pontífice
encontra-se o fundamento visível desta Igreja, e também a ele devemos total
obediência, pois sendo sucessor de Pedro recebeu as chaves dos Céus, tendo
autoridade infalível. Negar a Igreja, o Papa, e tudo que deles provém, é negar o
próprio Cristo. Quem prefere a si ante a Verdade não pode ser considerado, pois,
humilde.

A obediência se estende aos nossos superiores. Por serem homens, muitas


vezes pensamos que não são dignos de tal, mas devemos lembrar que muito
menos somos nós. Além disso, é preciso ter em mente que toda autoridade
terrena emana dos Céus:

“Cada qual seja submisso às autoridades constituídas,


porque não há autoridade que não venha de Deus; as que
existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que
resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por
Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a
condenação” (Rm 13,1-2).

O silêncio, quando a fala não se faz necessária, é também ato de


humildade. Não apenas calar diante das zombarias e fofocas, mas tudo quanto
puder evitar que possa quedar em vaidade, parecendo sábio ou merecedor de
qualquer honra. Amemos o silêncio da Virgem Maria, que tudo calava e meditava
em seu coração.

Não se confunda, entretanto, o santo silêncio com a falsa humildade, que


muitas vezes nos leva a calar perante as injustiças do mundo, mentiras e
calúnias a Nosso Senhor, por conveniências ou vergonha. Contra isso já dizia o
Apóstolo: "é, porventura, o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Por
acaso tenho interesse em agradar aos homens? Se quisesse ainda agradar aos
homens, não seria servo de Cristo" (Gl 1,10). A humildade também nos levará a
confessar nossa fé no Cristo e abraçar tudo que dela advenha, ainda que nos
custe. Assim o cristão é chamado a ser sal da Terra e luz do mundo, e isso não
acontecerá sem a devida humildade. Dar sabor à sua vida e à de todos que o
rodeiam só será possível tendo em vista o Senhor, será Ele quem brilhará por
nosso intermédio. Sem Ele ficamos apagados e invisíveis em meio à escuridão do
mundo. Por isso é preciso dar a Deus seu devido lugar, podendo tornar-se,
somente deste modo, farol que leva a Luz que é Cristo a todos e que todos atrai a
Ele, fazendo que cheguem ao porto seguro de Nosso Senhor.

Importante salientar que a soberba não encanta corações. Não somos


donos da verdade. Para levar a Verdade ao mundo temos que nos fazer escravos
desta mesma Verdade. Isso se dará através do testemunho de vida, uma vez que
aquele que se coloca nos braços de Deus e tudo a Ele entrega, faz de sua fé algo
concreto. Mais que conhecer, é preciso ser. E quem busca assim proceder sabe

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das dificuldades que encontrará no caminho, e por isso mesmo jamais desanima,
colocando sua esperança no Senhor. Sabe de suas misérias, e são elas que
podem o levar a anunciar as maravilhas do Reino de Deus, porque Ele é Bom e
Misericordioso, nos acolhe e perdoa sempre que acorremos a Ele de coração
contrito.

As graças recebidas, para o humilde, não são para proveito próprio, mas
para a glória de Deus que se mostra Pai amoroso e misericordioso. Entende que
tudo quanto lhe foi dado é por vontade divina. O Senhor, ao encontrar alma
humilde, vazia de si mesma e, portanto, tão bem disposta a recebê-Lo, deseja
enche-la com sua graça e aí se delicia. Assim, nos lembram as Escrituras, que o
Senhor "resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes" (1Pe 5,5). Se nos
surge a dúvida de como proceder para sermos humildes, Cristo antecipou-se
vindo em nosso auxílio, dando Ele mesmo, através de sua vida e morte, uma
resposta: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou
manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas” (Mt
11,29).

Cristo não prevaleceu-se de sua igualdade com Deus ao se fazer homem.


Não precisaria para sua encarnação da cooperação humana, mas quis vir até nós
pequeno e por intermédio da obediência de sua serva, Santa Maria, que o recebeu
em seu ventre e em sua alma. Nasceu sem luxo, pois todos lhe negaram abrigo.
Sendo Rei, foi acolhido apenas por alguns poucos pastores. Submeteu-se à lei, foi
circunciso, seguiu todas as práticas religiosas. Até chegar à sua vida pública,
ocultou-se numa vida comum, junto aos pais, como um simples carpinteiro.

Desta forma deu-nos Cristo, com seu próprio exemplo, ânimo para abraçar
a vida cotidiana. Não precisamos de grandes posições ou cargos para servir a
Deus, podemos fazê-lo no seio de nossa família, na vulgaridade de nosso
trabalho. Assim também Cristo, durante sua vida oculta, mostrou-nos que é
possível fazer do ordinário algo extraordinário quando feito para Deus, e
colocando sentido sobrenatural nas atividades rotineiras, que também podem nos
levar a Cristo se feitas com amor. “Uma missão sempre atual e heróica para um
cristão comum: realizar de maneira santa os mais diversos afazeres, mesmo
aqueles que parecem mais indiferentes” (ESCRIVÁ, Josemaria: Sulco. São Paulo:
Quadrante, 2005. p. 168, Ponto 496). Nosso Senhor não chamava a glória para sí
(Cf. Jo 8,50), tudo o que fazia era para glorificar o Pai e tudo quanto fala é em
nome d'Aquele que O enviou. Quando quiseram fazê-Lo rei – um rei, entretanto,
aos moldes do mundo, e não rei de suas vidas - fugiu. Os sacrifícios não os fez
por Ele mesmo, mas pelo Pai e pela humanidade, esquecendo-se de Si. Quão
sublime exemplo deixado!

Por fim, Jesus morre numa Cruz, carrega o peso dos pecados de toda a
humanidade ainda que n'Ele não houvesse pecado algum. Pedia ao Pai que
perdoasse os que O injuriavam, enquanto seu sangue era derramado por nossas
culpas. Sua doação foi total; seu sacrifício, perfeito. Nós, que facilmente nos
achamos imerecedores de sofrimentos e humilhações, pensemos no Cristo que
nada mereceu. Só assim alcançaremos a verdadeira humildade, reconhecendo
nossa atual condição e suportando os padecimentos junto d’Ele. Aceitar
privações, suportar as dificuldades, injúrias e humilhações por amor a Deus é
grande prática de humildade. A alma humilde “não se inquieta do que possam

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dela pensar; sofre, quando a louvam, e preferiria mil afrontas a um só louvor, visto
aqueles se fundarem na verdade e este na mentira” (TANQUEREY, Adolph: A Vida
Espiritual Explicada e Comentada. Anápolis: Aliança Missionária Eucarística
Mariana, 2007., p. 587).

Quem segue os conselhos evangélicos, o testemunho do Cristo e de seus


seguidores, faz-se humilde ante o próximo. O que nele houver de bom admira
sem invejar. Se tiver defeitos, busca antes encobri-los que torná-los públicos.
Cabendo-lhe corrigir, o faz de forma fraterna e visando o bem da alma a quem
corrige, nunca expô-la e humilhá-la. Apenas Deus pode conhecer a intenção de
cada um, portanto jamais poderemos julgar o próximo por mal ou perverso.
“Nada façais por espírito de partido ou vanglória, mas que a humildade vos ensine
a considerar os outros superiores a vós mesmos” (Fl 2,3). Por nos conhecermos
bem em nossas misérias, a nós devemos muito pouca estima. Assim já exortava
São Paulo: "não façam de si próprios uma opinião maior do que convém, mas um
conceito razoavelmente modesto" (Rm 3,17). A virtude da humildade está,
portanto, intimamente aliada à temperança, pois nos faz moderar o conceito que
temos de nós mesmos e de nossa excelência.

Na relação com Deus e, através d’Ele, com o próximo, muitas são as


atitudes e posições humildes que precisaremos tomar em nossa caminhada. O
perdão, e o pedido de perdão, são atos de profunda humildade, pois aquele que
perdoa o erro alheio e pede perdão pelos seus, se reconhece como nada diante da
Grandeza que é Nosso Senhor. Quando perdoamos, damos testemunho do amor
de Deus, porque ninguém mais que Ele perdoou. Se achamos que aquele que nos
ofendeu não merece nosso perdão, devemos lembrar-nos de nós, pobres
pecadores, que jamais merecemos qualquer perdão, mas ainda assim Deus
enviou seu Filho para nos resgatar.

“Tu não podes tratar ninguém com falta de misericórdia; e,


se te parecer que uma pessoa determinada não é digna
dessa misericórdia, tens de pensar que tu também não
mereces nada: não mereces ter sido criado, nem ser
cristão, nem ser filho de Deus, nem pertencer à tua
família...” (ESCRIVÁ, Josemaria: Forja. São Paulo:
Quadrante, 2005. p. 63, Ponto 145).

Deus nos perdoa sempre que nos colocamos diante d'Ele com coração
contrito e buscamos, através da Confissão, reconciliarmo-nos com Ele. O próprio
sacramento da reconciliação é um profundo ato de humildade, pois nos
reconhecemos pecadores diante de um homem, diante da Igreja e diante de Deus.
Neste mesmo sentido, a Igreja nos ensina que a humildade é uma virtude
essencial na oração. É na oração que nos colocamos diante de Deus, sendo a
humildade o fundamento e disposição para receber o dom da oração. "Por meio
desta virtude o Senhor se deixa render a tudo quanto dele queremos" (D’ÁVILA,
Santa Teresa: Castelo Interior ou Moradas. São Paulo: Paulus, 2005. p.84).

Cristo deu-nos Ele mesmo o exemplo. Mas deu-nos também uma nobre
criatura, Aquela que está acima de toda outra. Santa Maria, quando o anjo lhe

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apareceu anunciando o nascimento de seu Senhor através dela, não duvidou,
não impôs barreiras, apenas perguntou ao anjo como isso aconteceria. Mesmo
sabendo tudo que deveria suportar, ela diz: "Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se
em mim segundo a tua palavra" (Lc 1, 28). Ainda que fosse a mãe de Deus, fez-se
a menor de todas, fez-se serva, ocultou-se, suportou a espada que transpassou
sua alma aos pés da Cruz... E por isso Deus a amou tanto e coroou-a Rainha e
Senhora nossa. "Maria devia realmente ser inimiga da serpente, já que Lúcifer foi
soberbo, ingrato e desobediente, enquanto que ela foi humilde, grata e obediente"
(LIGÓRIO, Santo Afonso Maria: A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Vol. II).
Que possamos, por fim, dizer junto ao salmista: "Não a nós, Senhor, não a nós,
mas ao vosso nome dai glória, por amor de vossa misericórdia e fidelidade" (Sl
113, 9).

16
Capítulo II
Das Virtudes Ascéticas: A Castidade

“A castidade - a de cada um no seu estado: solteiro, casado, viúvo, sacerdote


- é uma triunfante afirmação do amor” (ESCRIVÁ, Josemaria: Sulco. São Paulo:
Quadrante, 2005. p. 267, Ponto 831). É de suma importância ver a castidade
como afirmação de amor, não meramente como negação do pecado da luxúria.
Assim é também com tudo aquilo que fazemos para Deus; a santa pureza, como
muitas vezes é chamada esta virtude, é uma resposta de amor ao Amor. A
castidade nos é dada como dom do Espírito Santo, primícia da Glória Eterna. Não
é, portanto, como nos lembra o santo já citado, um fardo pesado, mas uma coroa
triunfal para aqueles que se decidirem com firmeza a ter a vida limpa (Cf.
ESCRIVÁ, Josemaria: Caminho. São Paulo: Quadrante, 1999. p. 59, ponto 123).

“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados” (Ef 5,1), é o que
pede São Paulo nas Sagradas Escrituras. O mesmo afirma a Igreja, com seu
Magistério infalível: “todo batizado é chamado à castidade. O cristão ‘se vestiu de
Cristo’, modelo de toda castidade. Todos os fiéis de Cristo são chamados a levar
uma vida casta segundo seu específico estado de vida. No momento do Batismo, o
cristão se comprometeu a viver sua afetividade na castidade” (Catecismo da Igreja
Católica, 2348). Somos, portanto, chamados a ser como Cristo. É este o convite
que Ele nos faz ao dizer “sede santos, porque eu sou santo” (1Pe 1,16).

Infelizmente, em nossa sociedade atual, a castidade está tão deturpada


que, na maioria das vezes, sequer tem-se a noção de seu verdadeiro sentido,
sendo vista meramente como privação sem propósito. A psicologia freudiana,
unida ao pensamento marxista, influem diretamente nesta concepção, e dão as
bases para esta situação da sociedade que vivemos, onde a castidade é tratada
como repressão sexual, com a qual o Estado e a Igreja poderiam manipular as
pessoas, tornando-as dependentes. Sem este “entrave” as pessoas não só se
veriam livres de muitas doenças psíquicas, que para Freud são ligadas à
sexualidade, mas também seriam menos alienadas, menos susceptíveis à ordem
social imposta. Mas hoje, onde a sexualidade está banalizada e sem freios, qual
seria o motivo das pessoas continuarem tão doentes ou mais, como há séculos
atrás? Obviamente, esta resposta apenas encontraremos junto de Cristo.

Aqui, como em qualquer ponto da vida cristã, é preciso reconhecer na


virtude da castidade a sua plena comunhão com o amor de Deus. Cristo nos
provou este amor se doando na Cruz. Ele é “o crucificado que só domina a partir
da Cruz” (RATZINGER, Joseph – Bento XVI. Jesus de Nazaré: do Batismo do
Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 287). Não podemos,
portanto, pensar que o caminho será fácil. “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-
se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). O chamado de Deus à
castidade, sem dúvida, passará por esta cruz, e pensar o contrário é um comum
engano que dificulta ainda mais a prática desta virtude. Temos que ficar atentos,
pois a luta é árdua, e é preciso vigilância constante. Nesta batalha, a espada é a
oração, a procura pelos Sacramentos e também a mortificação, pois não há

17
castidade sem domínio do próprio corpo e dos sentidos: a alma deve dominar o
corpo, jamais o contrário.

O apoio de Deus não faltará a ninguém que estiver disposto a tudo entregar
por Sua causa, e não há causa maior que agradar a Deus. A humildade, como
companheira da castidade, nos leva a desconfiar de nós mesmos e a confiar que
somente com a ajuda de Deus seremos castos. Sabendo de nossas fraquezas,
recorremos mais agilmente ao auxílio divino. Aos que já pecaram gravemente
contra a castidade, a desconfiança é necessária para que não sucumbam
novamente. Aos que conservam a inocência, é também importante para que se
fortaleçam mais através da luta, uma vez que ninguém pode dar-se por seguro.
Não é necessário, no entanto, temer a tentação, pois assim mais a atrairíamos.
Muito nos ajuda sabermos que com Deus estamos seguros.

No Antigo Testamento temos o testemunho do justo Jó, que havia feito um


pacto com Deus de não olhar mulheres que lhe poderiam vir a ser causa de
tentação (Cf. Jó 31,1). Este é um excelente conselho que nos trazem as Sagradas
Escrituras: não dar ocasião para que a tentação se achegue a nós e, assim, nos
coloquemos em situação de pecado. E se, mesmo fugindo das tentações, elas
advierem, nossa liberdade deve fazer com que neguemos veementemente o
pecado, não consentindo na tentação, afastando qualquer imagem ou
pensamento contra a santa pureza. Temos também o dever de regular as
conversas que incentivem o prazer desregrado, o desrespeito ao corpo e ao outro,
ou que perturbem a nossa imaginação, assim como evitar todo tipo de livros,
apresentações, filmes, shows e festas onde sabemos que a prática da castidade
será colocada em risco.

“Fugi da fornicação. Qualquer outro pecado que o homem


comete é fora do corpo, mas o impuro peca contra o seu
próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é templo
do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de
Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis? Porque
fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a
Deus no vosso corpo” (1 Cor 6,18-20).

Mas, além de evitar o pecado, como foi frisado inicialmente, importa


construir o sentimento de pudor, incentivando a vontade a sempre querer o bem,
e tendo em vista a dignidade e a beleza da vida casta. Pecar contra a castidade é,
segundo São Paulo, prostituir o próprio Corpo de Cristo (Cf. 1Cor 6,16), do qual
fazemos parte. O cristão deve estar consciente de sua condição de filho de Deus,
templo do Espírito Santo, membro do Corpo de Cristo. A conduta daquele que é
casto não é apenas uma mera imposição, é uma conseqüência da dignidade que
Deus deu a nossos corpos, a ponto de serem chamados sagrados, por serem
habitação de Deus (Cf. 1Cor 3,17-18).

Adolph Tanquerey, em seu tratado de Teologia Ascética e Mística, A Vida


Espiritual Explicada e Comentada, descreve quatro graus de prática da virtude
castidade. O primeiro consiste em evitar consentir em qualquer pensamento,
imaginação, sensação ou ação contrária à virtude. O segundo, indo além do

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apenas não consentir, busca afastar tais coisas, imediata e energicamente, não
permitindo qualquer coisa que possa deslustrar o brilho desta virtude. Já no
terceiro, adquirido após muita prática do amor de Deus, domina-se os
pensamentos e sentidos a tal ponto que se pode falar sobre questões relativas à
castidade aberta e serenamente, com grande paz. Por fim, à alguns poucos
santos, por privilégio especial, é concedido não terem qualquer movimento
desordenado. Por estes devemos dar glória ao Senhor, que manifesta sua
grandeza e bondade com estas graças especiais dadas a poucos.

A castidade, sendo chamado universal, está contida em todas as vocações


que Deus suscita em nosso meio, tanto a matrimonial como a religiosa. Não é,
como muitos pensam, limitada aos que se dedicam a Deus de uma forma mais
perfeita, “por amor do Reino dos Céus” (Mt 19,12), através da vida celibatária.

Assim, o Sagrado Magistério da Igreja sempre viu na vocação matrimonial


um grande bem. “O matrimônio que, por vontade de Deus, continua a obra da
primeira criação (cf. Gn 2,18), ao ser integrado no desígnio total da salvação,
adquire novo significado e valor. Na verdade, Jesus, restituiu-lhe a dignidade
primitiva (Mt 19,3-8), honrou-o (cf. Jo 2,1-11) e elevou-o à dignidade de sacramento
e de sinal misterioso da sua união com a Igreja (Ef 5,32). Assim, os cônjuges
cristãos, no exercício do amor mútuo e no cumprimento dos próprios deveres, e
tendendo para aquela santidade que lhes é própria, caminham juntos em direção à
pátria celeste” (Sua Santidade o Papa Paulo VI, Encíclica Sacerdotalis
Caelibatus).

Muitos, entretanto, são levados por Deus a abrirem mão deste bem que é o
matrimônio por algo muito maior. São aqueles que “se fizeram eunucos por amor
do Reino dos céus” (Mt 19,12). Neste sentido, continua o Papa Paulo VI na
Encíclica acima citada: “Mas Cristo, Mediador dum Testamento mais excelente (Hb
8,6), abriu também novo caminho, em que a criatura humana, unindo-se total e
diretamente ao Senhor e preocupada apenas com Ele e com as coisas que lhe
dizem respeito (1Cor 7,33-35), manifesta de maneira mais clara e completa a
realidade profundamente inovadora do Novo Testamento”.

Faz-se necessário ter em mente que esta virtude não consiste somente em
usar moderadamente dos prazeres sensuais, quando ordenados aos seus fins
naturais, ou em abster-se deles por amor de Deus. Há também a castidade
espiritual, cuja matéria consiste da união espiritual da alma com aquilo que lhe
dá prazer. Esta castidade metafórica nos priva da união com tudo quanto é ilícito
e nos aproxima de Deus, que é Aquele em excelência com o qual devemos nos
unir. Assim diz Santo Tomás de Aquino:

“Chama-se castidade espiritual o deleitar-se o homem na


união espiritual com o ser com que se deve unir, isto é,
com Deus; e o abster-se da união deleitável com o que é
proibido pela lei divina, conforme àquilo do Apóstolo: eu
vos tenho desposado com Cristo, para vos apresentar
como virgem pura ao único esposo” (AQUINO, Santo
Tomás de: Suma Teológica, Segunda Parte da
Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. p. 3114,
Q. 151).

19
O Modo Mais Perfeito de Viver a Castidade

“A sagrada virgindade e a perfeita castidade consagrada ao serviço de Deus


contam-se sem dúvida entre os mais preciosos tesouros deixados como herança à
Igreja pelo seu Fundador” (Sua Santidade o Papa Pio XII, Carta Encíclica Sacra
Virginitas). Desde os primeiros cristãos, este tesouro foi cultivado, havendo
abundantes testemunhos dos Santos Padres sobre sua importância. Ele é
guardado não somente por sacerdotes e religiosos, mas por uma legião de leigos.

A entrega da virgindade a Deus encontra fundamento nas palavras de


Nosso Senhor, quando feita “por amor do Reino dos Céus” (Mt 19,12). Desta
forma, como já nos falava São Paulo, pode o cristão cuidar inteiramente das
coisas de Deus, sem que fique divido com os cuidados que requer a vida conjugal
(Cf. 1Cor 7,32-35).

É certo que o matrimônio é um bem, ou jamais teria sido elevado à


dignidade sacramental. Entretanto, a virgindade ou celibato são mais excelentes
que o matrimônio, porque é da sua consagração a Deus que vem sua dignidade, e
não de si mesmos. Todos devemos buscar a fuga do pecado e a prática das
virtudes, mas abrir mão de um ato lícito e bom, como é o matrimônio e a geração
de filhos, encontra maior mérito diante de Deus. São “duas obras, da qual uma é
boa e outra melhor”, e “a glória deste maior bem não se baseia em que se evita o
pecado do matrimônio, mas pelo fato de ultrapassar o bem do matrimônio”
(AGOSTINHO, Santo: A Santa Virgindade. São Paulo: Paulus, 2000. p. 120 e
123).

Isso também decretou o Sacrossanto Concílio de Trento, ao estabelecer que


“se alguém disser que o estado conjugal deve ser preferido ao estado de
virgindade ou celibato, e que não é melhor ou mais valioso permanecer na
virgindade ou celibato do que unir-se em matrimônio: seja anátema” (Denzinger
1810, Concílio de Trento, Sess. XXIV, cân.10). Esta excelência da virgindade e
celibato sobre o matrimônio é, portanto, dogma de fé. A Igreja nos explica porque
a virgindade consagrada a Deus é a perfeita castidade; ensina que este estado
auxilia a pessoa a entregar-se mais facilmente às coisas divinas e à oração, mais
seguramente alcançar as bem-aventuranças e contribui para mais livre e
eficazmente poder levar outros ao Reino dos Céus (Cf. Sua Santidade o Papa Pio
XII, Carta Encíclica Sacra Virginitas). Os santos padres ainda fazem uma relação
entre o pecado da luxúria e a gula, e, nesta linha, São Máximo, o Confessor,
explica porque a continência extingue a concupiscência:

“Faz com que nos abstenhamos de todas aquelas coisas


que não satisfazem uma necessidade, senão que somente
produzem prazer; e faz com que participemos de nenhuma
outra coisa senão as necessárias para viver; e faz buscar
não as coisas agradáveis, mas as necessárias; mede a
comida e a bebida de acordo com a necessidade, e não
permite ao corpo uma moleza supérflua; e mantém a vida
do corpo, protegendo-a do impulso carnal” (MÁXIMO, São:
Centúrias sobre a Caridade e Outros Escritos
Espirituais. São Paulo: Landy, 2003. p. 34).

20
Assim, o dom da procriação não é vital ao ser humano, não constituindo
uma necessidade. A perfeita castidade abstém-se deste dom, vivendo a perpétua
continência, tendo em vista ocupar-se mais do bem divino. E nisso auxilia a
constante educação do corpo, para que tenha somente o necessário e nunca
atraiçoe, como meio para exercitar o controle de si e poder viver fielmente neste
estado.

“O coração do homem é feito para amar; o sacerdócio ou o estado religioso


não nos tira este lado afetuoso da nossa natureza, mas ajuda-nos a
sobrenaturalizá-los. Se amarmos a Deus com toda a alma, se amarmos a Jesus
sobre todas as coisas, sentiremos muito menos o desejo de nos expandir sobre as
criaturas. [...] Em presença daquele que possui a plenitude da beleza, da bondade
e do poder, todas as criaturas desaparecem e não têm encanto” (TANQUEREY,
Adolph: A Vida Espiritual Explicada e Comentada. Anápolis: Aliança Missionária
Eucarística Mariana, 2007. p. 580).

A caridade, sendo forma de todas as virtudes, influencia a castidade, ao


fazê-la uma doação por amor. “A castidade leva aquele que a pratica a tornar-se
para o próximo uma testemunha da fidelidade e da ternura de Deus” (Catecismo
da Igreja Católica, 2346). Esta caridade se explica na exortação de Santo
Agostinho às virgens: “amai de todo coração ‘o mais belo dos filhos do homem’(Sl
44,3). [...] Contemplai a beleza daquele que vos ama” (AGOSTINHO, Santo: A
Santa Virgindade. São Paulo: Paulus, 2000. p. 169 e 170). Ainda segundo o
Santo, Cristo se torna para estas almas o esposo que não vêm com os olhos do
corpo, mas a quem contemplam com os olhos da fé.

Na mesma obra, Santo Agostinho afirma que o meio mais apropriado de


assegurar a santa castidade é a humildade. Diz que se fala de “algo tão santo e
grande, que se torna necessário cuidar ao máximo para evitar o perigo do
orgulho”. Ao lembrar as palavras da Sagrada Escritura, que dizem que “quanto
maior és, mais deve humilhar-te em todas as coisas, e acharás graça diante de
Deus” (Eclo 3,20), ele escreve: “com a continência perpétua e principalmente a
virgindade é tão grande bem entre os santos de Deus, esse devem guarda-lo com a
máxima vigilância, para não o ver corrompido pela soberba”. “Logo, a guardiã da
virgindade é a caridade, e a morada dessa caridade é a humildade” (AGOSTINHO,
Santo: A Santa Virgindade. São Paulo: Paulus, 2000. p. 141 e 166).

Os que guardam a perfeita castidade têm um exemplo a seguir, um refúgio


para se abrigarem: a Virgem das virgens. A simples menção de Nossa Senhora já
nos inspira a uma vida na santa pureza. A perfeita castidade é fomentada com a
sólida e fervorosa devoção à Santa Mãe de Deus. Aqueles que guardarem a
virgindade ou o celibato não terão filhos, mas serão fecundos pela caridade.
Assim, “o que é fruto de uma única santa Virgem é a glória de todas as outras
santas virgens. Pois elas também, unidas a Maria, são mães de Cristo, se fizerem
a vontade do Pai” (AGOSTINHO, Santo: A Santa Virgindade. São Paulo: Paulus,
2000. p. 105).

Desta santa virgindade, foi guardião fiel seu castíssimo esposo São José, do
qual se afirma: “a castidade do esposo haveria de receber igualmente o que
produzira a castidade da esposa”, “à piedade e caridade de José foi dado um
filho, o nascido da Virgem Maria, o mesmo que é Filho de Deus” (AGOSTINHO,

21
Santo: Sermão 51 em A virgem Maria - Cem Textos Marianos Com Comentários.
São Paulo: Paulus, 1997. p. 73 e 74).

A Virtude da Castidade na Vocação Matrimonial

Deus criou a humanidade, livremente nos criou, homem e mulher, à sua


imagem e semelhança, igualmente dignos, mas com diferenças entre si que
apenas enriquecem a criação divina.

A união entre o homem e a mulher foi desde o início fundada por Deus:
“Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não
são mais que uma só carne” (Gn 2,24). O amor conjugal a que ambos são
chamados é imagem do Amor Absoluto, que é Deus. Se este amor é imitação da
Perfeição Divina, a união conjugal não pode ser senão santa e sagrada. Não fosse
o Matrimônio um bem, Cristo jamais o teria elevado à dignidade sacramental.
Este sacramento “santifica a união legítima do homem e da mulher e lhes confere
as graças necessárias para cumprirem seus deveres de estado” (Boulenger, A:
Doutrina Catholica – Terceira Parte. Rio de Janeiro; São Paulo: F.A.P. Azevedo,
1927. p. 190). Deus quis com esta união fazer o ser humano participante de seu
poder criador. Os esposos cooperam na transmissão da vida como na educação
dos filhos com o amor de Deus criador.

Desde o Antigo Testamento, o Senhor demonstra que a união matrimonial é


indissolúvel. Se permitiu que em alguns casos se rompesse, antes da vinda de
Cristo, que levou a Lei à perfeição, foi pela dureza do coração dos homens (Cf. Mt
19,8). “A união matrimonial do homem e da mulher, fundada e dotada de leis
próprias pelo Criador, está por sua natureza ordenada à comunhão e ao bem dos
cônjuges e à geração e bem dos filhos. Segundo o desígnio originário de Deus, a
união matrimonial é indissolúvel, como afirma Jesus Cristo: «O que Deus uniu não
o separe o homem» (Mc 10,9)” (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 338).

Tendo dito Jesus que “quem repudia sua mulher e se casa com outra,
comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com
outro, comete adultério” (Mc 10,11-12), as “leis da Igreja” sobre a indissolubilidade
do matrimônio são apenas seguimento do mandamento que Ele próprio deixou. A
Igreja não se isenta diante da realidade, e vê com zelo, como Mãe protetora que é,
aqueles que, por motivos diversos, acabam por divorciar-se. Estas pessoas não
têm porque achar que, com isso, nunca mais serão felizes. A felicidade não
dependerá do matrimônio em si mesmo, mas sim de fazer a vontade de Deus em
suas vidas. Cada qual em seu estado, se permanecer com Cristo, encontrará a
verdadeira felicidade.

Sendo assim, a Igreja por fidelidade às palavras de Cristo, não pode


reconhecer como válida uma segunda união matrimonial, se a primeira foi válida.
Aos que vivem em situação de segunda união, “a Igreja encoraja estes fiéis a
esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como
amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa
eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial” (Sua
Santidade o Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis).

22
Já desde jovens e ainda sem o compromisso do casamento selado, aqueles
que têm a vocação matrimonial são exortados a viver a castidade, que antes do
matrimônio se dará na continência, e a respeitar este sacramento. Sobre isso são
de muito proveito as palavras do Santo Padre, o Papa Bento XVI, quando se
encontrou com os jovens no Brasil. Disse-lhes: “Tende, sobretudo, um grande
respeito pela instituição do Sacramento do Matrimônio. Não poderá haver
verdadeira felicidade nos lares se, ao mesmo tempo, não houver fidelidade entre
os esposos. O matrimônio é uma instituição de direito natural, que foi elevado por
Cristo à dignidade de Sacramento; é um grande dom que Deus fez à humanidade.
Respeitai-o, venerai-o. Ao mesmo tempo, Deus vos chama a respeitar-vos também
no namoro e no noivado, pois a vida conjugal que, por disposição divina, está
destinada aos casados é somente fonte de felicidade e de paz na medida em que
souberdes fazer da castidade, dentro e fora do matrimônio, um baluarte das
vossas esperanças futuras. [...] Requer espírito de sacrifício e de renúncia por um
bem maior, que é precisamente o amor de Deus sobre todas as coisas. Procurai
resistir com fortaleza às insídias do mal existente em muitos ambientes, que vos
leva a uma vida dissoluta, paradoxalmente vazia, ao fazer perder o bem precioso
da vossa liberdade e da vossa verdadeira felicidade. O amor verdadeiro procurará
sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e
desejará existir para o outro e, por isso, será sempre mais fiel, indissolúvel e
fecundo”.

As dificuldades da vivência da castidade na vocação matrimonial, não se


resumem à fidelidade entre os esposos. Dentro da própria relação conjugal é
necessária a guarda constante desta virtude. “Os atos com os quais os cônjuges
se unem íntima e castamente são honestos e dignos. Quando realizados de
maneira verdadeiramente humana, significam e favorecem a mútua doação pela
qual os esposos se enriquecem com o coração alegre e agradecido.’ A sexualidade
é fonte de alegria e de prazer: O próprio Criador... estabeleceu que nesta função (i.
e, de geração) os esposos sentissem prazer e satisfação do corpo e do espírito.
Portanto, os esposos não fazem nada de mal em procurar este prazer e em gozá-lo.
Eles aceitam o que o Criador lhes destinou. Contudo, os esposos devem saber
manter-se nos limites de uma moderação justa” (Catecismo da Igreja Católica,
2362).

Consciente dos fins do Matrimônio, procriativo e unitivo, deve ainda o casal


cuidar para que estes não sejam dissociados, deturpando a relação conjugal.
Neste sentido, na Exortação Apostólica Familiaris Consortio, Sua Santidade o
Papa João Paulo II afirmou a totalidade da doação mútua que deve ter o casal:
“esta totalidade, pedida pelo amor conjugal, corresponde também às exigências de
uma fecundidade responsável, que, orientada como está para a geração de um ser
humano, supera, por sua própria natureza, a ordem puramente biológica, e abarca
um conjunto de valores pessoais, para cujo crescimento harmonioso é necessário o
estável e concorde contributo dos pais”.

Assim sendo, todo ato que vise por vias artificiais impedir o fim procriativo
do ato conjugal, é grave ofensa a Deus, por desvirtuar o fim primordial desta
união, impresso pelo próprio Deus desde a criação, que é a geração de filhos. Aos
esposos é apenas lícito espaçar o nascimento dos filhos por justa causa, o que se
dará somente através dos meios naturais que dispõem. Isso exigirá, certas vezes,
períodos de continência, não deixando um pesado fardo apenas sobre um dos

23
cônjuges. Exige cumplicidade, amor e respeito, fortalecendo os laços do
matrimônio, que não se resumem ao ato sexual, “o que não conseguirá senão
quem houver tomado o hábito de subordinar o prazer ao dever e de buscar na
recepção freqüente dos sacramentos remédio para os apetites violentos da
concupiscência” (TANQUEREY, Adolph: A Vida Espiritual Explicada e Comentada.
Anápolis: Aliança Missionária Eucarística Mariana, 2007. p. 571)

Para assegurar a vivência da castidade, contam os esposos com as graças


específicas concedidas pelo Sacramento do Matrimônio. Além disso, devem
buscar a prática conjunta de uma verdadeira devoção, especialmente através da
oração em comum, pois por meio da oração poderão obter graças para superar
todas as dificuldades e para nutrir eficazmente esta e todas as demais virtudes.
Terão ainda o auxílio dos demais Sacramentos, os quais fortalecem o cristão na
prática das virtudes.

Tudo isso se resume nas palavras de São Paulo, ao dizer que a relação
entre os esposos deve ser como a de Cristo com sua Igreja (Cf. Ef 5, 22-30). Que
as mulheres se submetam aos seus maridos, não numa relação de escravidão,
mas de confiança e amor, tal qual a Igreja se submete a Cristo. E que o marido se
entregue por sua esposa, e a ame como Cristo amou a Igreja.

24
Capítulo III
Das Virtudes Ascéticas: A Diligência

Diligência, para muitas pessoas, é uma palavra que soa estranha aos
ouvidos. Pode ser pouco corriqueira em nosso vocabulário, mas deve estar
constantemente presente em nosso pensar e agir. Ser diligente é, acima de tudo,
amar, pois quem ama deseja contentar o Amado. Como cristãos, somos diligentes
quando nos entregamos a Deus e tudo fazemos por amor a Ele. Certamente,
faremos estas boas obras com esmero, buscando que fiquem bem acabadas.
Ainda que não entreguemos diretamente todos nossos pensamentos e obras a
Cristo, a Ele pertencerão na mesma medida que nós pertencermos a Ele, e isso se
demonstrará no empenho que colocamos em agradá-Lo. Além disso, cada
momento de nossa vida, se estamos junto de Nosso Senhor, tem um objetivo
maior, que está atrelado à eternidade; nesta busca pelo eterno encontramos a
ligação de tudo quanto aqui fazemos com o nosso objetivo final, que é o Cristo
Ressuscitado, e estas coisas ganham novo sentido: não mais as fazemos em vão,
mas as utilizamos como meio para alcançar os Céus.

A preguiça, na maioria das vezes, provém de uma doença na vontade, que


se recusa ao esforço, chegando até a temê-lo. “O preguiçoso quer evitar qualquer
trabalho, tudo quanto lhe pode perturbar o sossego e arrastar consigo fadigas.
Verdadeiro parasita, vive, quanto pode, a expensas dos outros. Manso e resignado,
enquanto o não inquietam, impacienta-se e irrita-se, se o querem tirar da sua
inércia” (TANQUEREY, Adolph: A Vida Espiritual Explicada e Comentada.
Anápolis: Aliança Missionária Eucarística Mariana, 2007. p. 466). Esta
explicação pode, num primeiro momento, parecer de um caso extremo de pessoa
preguiçosa, no qual não nos encaixamos. Entretanto, se formos sinceros conosco,
veremos que esta postura é inúmeras vezes assumida por nós. Então
perceberemos como estas atitudes, que são também nossas, não convêm a um
cristão, não são dignas de Cristo.

Quem assume sua condição de filho muito amado por Deus busca viver,
através de cada gesto, a virtude da diligência. Não quer cumprir seu dever com
desleixo e deixá-lo mal feito, mas coloca nele amor e assim dá seu melhor para
que seja finalizado com esmero. Sabe das suas limitações e não se desespera por
elas, antes coloca em Deus sua confiança, sabendo que fazendo tudo quanto
pode, Deus não lhe falta. “Embora Deus aja como queira, quando queira, e com os
instrumentos que queira, ordinariamente Ele se utiliza da colaboração livre e
responsável dos homens para realizar os seus desígnios. E, mesmo que o homem
seja um ser tão limitado em suas possibilidades, pode conseguir coisas
verdadeiramente inimagináveis, quando vive e trabalha por Deus e unido a Ele”
(MACIEL, Pe. Marcial: Carta Tempo e Eternidade).

O repouso foi mandamento de Deus que, Ele mesmo, conforme nos conta o
livro de Gênesis, tendo trabalhado na criação do mundo, descansou ao fim.
Porém, assim como seria um absurdo dizer que Deus ficou ocioso em seu
repouso, devemos nós ter em mente que descansar não é ficar inativo e inerte.

25
“Quem se entrega a trabalhar por Cristo não há de ter um momento livre, porque o
descanso não é não fazer nada; é distrair-se em atividades que exigem menos
esforço” (ESCRIVÁ, São Josemaria: Caminho. São Paulo: Quadrante, 1999. p.
122, ponto 357). Este mesmo Santo, ao explicar o que é a pobreza de espírito à
qual estamos obrigados se quisermos entrar no Reino dos Céus, fala-nos que ela
deve existir sempre junto ao serviço: “É, além disso, saber ter o dia todo
preenchido com um horário elástico onde não faltem como tempo principal — além
das normas diárias de piedade — o devido descanso, a reunião familiar, a leitura,
os momentos dedicados a um gosto artístico, à literatura ou a outra distração
nobre, enchendo as horas com uma atividade útil, fazendo as coisas o melhor
possível, vivendo os pormenores de ordem, de pontualidade, de bom-humor. Numa
palavra: encontrando ocasião para servir os outros e para si mesmo, sem esquecer
que todos os homens, todas as mulheres — e não apenas os materialmente pobres
— têm obrigação de trabalhar. A riqueza, a situação de desafogo econômico é um
sinal de que se tem mais obrigação de sentir a responsabilidade pela sociedade
inteira” (ESCRIVÁ, São Josemaria: Questões atuais do Cristianismo. Ponto 111).

“O espírito e o coração do homem não podem estar inativos: se não se


absorvem no estudo ou em qualquer outro trabalho, são logo invadidos por um
sem-número de imagens, pensamentos, desejos e afetos; ora, no estado de
natureza decaída, o que domina em nós, quando não reagimos contra ela, é a
tríplice concupiscência: serão, pois, pensamentos sensuais, ambiciosos,
orgulhosos, egoístas, interesseiros, que tomarão o predomínio em nossa alma,
expondo-a ao pecado” (TANQUEREY, Adolph: A Vida Espiritual Explicada e
Comentada. Anápolis: Aliança Missionária Eucarística Mariana, 2007. p. 467).
Para não deixar que a concupiscência nos domine e, como bons filhos que
devemos ser, não podemos negar o serviço, permanecendo sempre na ociosidade.
Não se trata apenas de não praticar o mal, mas principalmente não deixar de
fazer o bem, pois nos dizem as Sagradas Escrituras que a árvore que não der
frutos será cortada (Cf Mt 3,10).

Jesus, dizem-nos também os Evangelhos, contou a parábola dos talentos,


onde ao servo preguiçoso, que preferiu enterrar seu talento, que na época era o
nome dado a uma certa quantia de dinheiro, ao invés de fazê-lo render e dar
frutos, até o talento que tinha lhe foi tirado (Cf. Mt 25,14-30). Estes talentos que
Deus nos dá, que podem ser nossas qualidades e dons, são concedidos para que
o coloquemos em prática e gerem frutos, tanto em nosso trabalho particular, com
em nossa família e amigos, no trabalho que empreendemos em prol da Igreja,
evangelizando, fazendo apostolado. Além disso, outro talento que ganhamos é o
próprio tempo, que devemos empregar corretamente, para que não apenas não o
percamos, mas que seja bem usado. Este modo de ver os talentos que Deus nos
dá é explicado por Pe. Marcial Maciel, que, ao tratar sobre o tempo, escreveu:
“Passar pela vida como as nuvens passam pelo céu num dia de vendaval; ou, o
que seria pior, vegetar e vagar, buscando somente satisfazer os próprios desejos.
Isto eu considero muito grave, principalmente num cristão que, em razão do
Batismo, tem o sério compromisso de colaborar com a edificação e difusão do
Reino de Jesus Cristo na terra. Por isso, recomendo que todas as vezes que se
aproximarem do Sacramento da Reconciliação, examinem este ponto em sua
consciência, e peçam perdão a Deus se perceberem que, por preguiça, negligência
ou outra causa culpável, desperdiçaram uma parte do seu tempo” (MACIEL, Pe.
Marcial: Carta Tempo e Eternidade).

26
Como nossa auxiliar, a consciência sempre está insistentemente a nos
pedir que assumamos as nossas responsabilidades. Por mais que a vontade,
ainda doente, queira fazer-nos permanecer inertes, sabemos qual nosso dever e
precisamos esforçar-nos para colocá-lo em prática. É necessário educar esta
vontade, pois a vitória de dará a cada tarefa, individualmente, a qual nos
decidirmos com firmeza a empreender com solicitude. A luta contra a negligência
não pode ser descurada sequer nas pequenas coisas, pois quem é fiel no pouco,
Deus lhe confiará muito mais (Cf. Mt 25,21). Se a prática da diligência não
começar nos pequenos detalhes, jamais chegará esta virtude a desabrochar em
nós e tornar-se viva. Assim, pouco a pouco, com a prática do amor de Deus, e já
avançando na virtude da diligência, procuremos nós mesmos o serviço, a fim de
melhor dedicar-nos ao Senhor por seu intermédio.

É de suma importância criarmos convicções de trabalho, que é meio de


santificação pelo qual podemos mais servir a Deus, não apenas atividade com
que ganhamos o pão de cada dia. O mandamento do Senhor para que o homem
trabalhe e frutifique é universal, aplicando-se inclusive àqueles que, porventura,
sejam tão ricos a ponto de não precisarem mais trabalhar para garantir a
sobrevivência. Podem não ter necessidade para si próprios, mas há, certamente,
muito que fazer pelos outros e pela Igreja, trabalhos que todos devemos buscar,
de acordo com nossas possibilidades, socorrendo tantos necessitados, dando
oportunidade de emprego aos que não o têm, instruindo a quem preciso for,
levando Deus a toda criatura, trabalhando no anúncio do Evangelho e na
construção de uma sociedade católica. Se nossa vida for estéril, seremos
cobrados por todos aqueles que deixamos de ajudar e que até mesmo, por nossa
omissão, sofreram ou perderam-se no pecado. Pode ser que aqui outros
trabalhem e se esforcem em nosso lugar, mas ninguém será capaz de ganhar o
Céu por nós.

“A alma verdadeiramente amorosa de Deus, não põe delongas em fazer


quanto pode para achar o Filho de Deus, seu Amado. Mesmo depois de haver
empregado todas as diligências, não se contenta e julga haver feito nada” (CRUZ,
São João: Cânticos Espirituais. Fortaleza: Edições Shalom, 2003. P. 43). Assim
ocorre porque, exercitando-se já no amor de Deus, a alma vê-se livre das simples
obrigações, não porque não as cumpre, mas, pelo contrário, além de fazê-las com
presteza, busca os meros detalhes que poderão agradar ao seu Senhor, ainda que
não sejam estritamente necessários. Já não os faz por si, mas por Aquele a quem
ama, livremente e sem esperar qualquer coisa em troca. Nosso empenho nas
coisas de Deus não deve ter em vista consolações ainda neste mundo. As flores
serão colhidas no jardim da eternidade. Aqui, devemos aceitar que, na grande
maioria das vezes, apenas tocamos os espinhos. Quem quer as flores sem os
espinhos não é digno da Cruz de Cristo.

Mas não devemos nos entristecer se, muitas vezes, não encontramos gozo
em fazer coisas para Deus. Os atos de amor não têm em vista nós mesmos, mas
Aquele a quem oferecemos estes atos, ou seja, Sua Majestade, Senhor nosso.
Nosso amor também se demonstra na persistência em cumprir nossos deveres,
ainda que muito nos custem. Deus, que tudo sabe, verá nosso esforço e, estes
dias passados aqui em terra árida, a duras penas, nos servirão para o deleite do
Céu.

27
A errônea concepção de que trabalhar, por si só, foi um castigo de Deus aos
homens, pode nos trazer um peso desnecessário às nossas tarefas corriqueiras. A
verdade é que, mesmo antes do pecado original, já estava ao encargo do homem
trabalhar (Cf. Gn 2,15). O homem, por natureza, precisa aperfeiçoar as faculdade
com que Deus o dotou, já que não tem a perfeição divina. E a única forma de
fazer isso é colocando-as em operação, cultivando-as, e este foi o mandamento de
Deus desde o princípio da criação. Verdade é que não havia ainda o cansaço pelo
labor – este veio após a queda do homem. Mas a dificuldade deu-nos também a
luta, através da qual, se a ela nos aplicamos com diligência, nos santificamos.
“Nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras. É preciso
que o lavrador trabalhe antes com afinco, se quer boa colheita” (2Tm 2,5-6).

Além de nos empregarmos em boas obras, é necessário evitar


veementemente a negligência para com Deus, em especial no amor que lhe
devemos, que, se chegar por vezes a desprezá-Lo, é pecado mortal, por nos privar
da caridade necessária à graça santificante, rompendo a comunhão com Nosso
Senhor que ganhamos em nosso batismo. A preguiça espiritual pode ser muito
grave quando a alma fica em tal estado de tédio que se acabrunha, desistindo de
começar o bem, por ser difícil de ser praticado. A tristeza demasiada, mesmo pelo
pecado, não é boa, pois pode acabar por nos retrair das boas obras. Por vezes, a
acédia ou acídia, nomes dados à preguiça espiritual, é tão grande que leva a
pessoa a entristecer-se pelo bem divino. Remédio para a acédia será, portanto,
procurar elevar os pensamentos aos bens espirituais, tornando-os mais
agradáveis à medida que mais neles nos empenhamos, e sempre buscar
aprofundar-se na oração, pois sem ela todo nosso trabalho se tornará infecundo.
Além disso, temos na Sagrada Eucaristia nosso alimento espiritual, pois assim
como o trabalhador precisa do pão que lhe dê energia para a labuta, precisamos
do Pão descido dos Céus, alimento que fortalece nossa fé e nos anima na
caridade, fazendo-a crescer em nós.

Se desejamos encontrar o Senhor e, um dia, contemplá-Lo face a face, com


diligência devemos nos empregar na prática das virtudes. Sendo elas bons
hábitos, será impossível tê-las sem a constância e a solicitude posta na prática de
cada uma em particular. Se queremos construir o bem em nós, será, dia a dia,
colocando um tijolo a mais na construção e cuidando para que não caia, seja pelo
pouco zelo com que o edificamos, seja pelas investidas externas que querem fazê-
lo ruínas, ou seja, a virtude da diligência nos fará vigiar constantemente, tanto
para solicitamente fazer crescer as virtudes como para não permitir que tentações
sejam consentidas, fazendo-nos cair em pecado mortal, o que nos privará da
caridade.

Segundo o grande místico e Doutor da Igreja, São João da Cruz, “para


achar deveras a Deus, não é suficiente orar de coração e de boca; não basta
ainda ajudar-se de benefícios alheios; mas é preciso, juntamente com isso, fazer
de sua parte o que lhe compete” (CRUZ, São João: Cânticos Espirituais.
Fortaleza: Edições Shalom, 2003. p. 43), pois diz o Senhor: “Buscai e achareis”
(Lc 11,9). Não haverá, pois, outra forma de encontrar a Deus senão pôr-se a
caminho e buscá-Lo incessantemente, por obras que demonstrem a veracidade
da fé, uma vez que “a fé sem obras é morta” (Tg 2,26). Continuando, o Santo
mostra qual será este caminho ao encontro do Senhor e como se perderão os que
tentarem estrada mais fácil: “Há alguns que nem mesmo se animam a levantar-se

28
de um lugar agradável e deleitoso, para contentar o Senhor; querem que lhes
venham à boca e ao coração os sabores divinos, sem darem um passo na
mortificação e renúncia de qualquer de seus gostos, consolações ou quereres
inúteis. Tais pessoas, porém, jamais acharão a Deus, por mais que chamem a
grandes vozes, até que se resolvam a sair de si para o buscar. Assim o procurava
a Esposa nos Cantares, e não o achou enquanto não saiu a buscá-Lo, como diz
por estas palavras: ‘Durante a noite no meu leito busquei Aquele a quem ama a
minha alma; busquei-o e não O achei. Levantar-me-ei e rodarei a cidade; buscarei
pelas ruas e praças públicas Aquele a quem ama a minha alma’ (Ct 3,1-2). E
depois de haver sofrido alguns trabalhos, diz então que o achou” (CRUZ, São
João: Cânticos Espirituais. Fortaleza: Edições Shalom, 2003. p. 44). Com amor,
portanto, não haverá lugar para a preguiça. Sabemos que cada gesto feito por
amor, unido aos méritos da Cruz de Cristo, terá um imenso valor, e é isso que
lhes dá sentido.

Muitas vezes o amor por Deus é tão grande que nossas ânsias são como as
de São Paulo: “Para mim, viver é Cristo, e morrer, um lucro. Desejaria partir e estar
com Cristo, pois seria muitíssimo melhor” (Fl 1,21;23). Mas, assim como este santo
bispo da Igreja, se amamos deveras a Cristo padeceremos pacientemente esta dor
de amor por querer estar logo junto do Amado, continuando nossa luta cotidiana
com os pés no chão, mas os olhos e pensamentos voltados aos Céus. Isso
fazemos quando damos sentido sobrenatural a todas as coisas, sejam elas as
mais simples de cada dia ou os acontecimentos mais nobres de nossas vidas,
tornando mais fácil cumprir tudo com alegria, ainda que nos custe, pois aí as
tarefas passam a ser empreendidas não mais por si mesmas, mas por um fim
infinitamente maior: o Amor.

Em nossa Santa Igreja, que compreende uma imensa diversidade de


carismas e formas de viver a mesma fé – onde temos a essencial unidade da
Igreja de Cristo – muitos foram os que, ocultamente, nas suas ocupações comuns
e pouco cobiçadas, santificaram-se. Santos ocultos, mas que, com certeza,
chegaram ao seu objetivo final, a salvação eterna e o encontro com Deus. Esta
particular forma de servir ao Senhor, através do trabalho bem feito, da
perseverança no ambiente familiar, no bom trato com os amigos, na constância
na oração e freqüência aos Sacramentos, é forma que todo cristão leigo pode
escolher para si, vivendo cada particularidade de sua vida com um propósito
sobrenatural.

Portanto, o zelo com que realizamos nossas obras tem em vista agradar a
Deus, não aos homens. A humildade, companheira de todas as virtudes, no fará
sermos solícitos sem desejar reconhecimento dos homens. O serviço é visto por
Deus ainda que oculto aos olhos humanos. Assim procedeu Santa Maria, que se
dedicou a seu Filho – seu e nosso Senhor – sem que ninguém a visse, sem
qualquer exaltação pública enquanto esteve junto de nós. Já na glória eterna do
Pai, foi elevada acima de toda criatura. Ela, serva e escrava de Deus, pois “aquele
que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23,12).

Se nos faltam forças para seguir em frente com ânimo e ardor, podemos
mirar nossa Mãe e Rainha, pensando como agiu Maria enquanto esteve neste
mundo. Ainda tão jovem, ao ser visitada pelo anjo, não hesitou no seu sim a
Deus. Sabia, com certeza, que esta opção lhe custaria o empenho de toda uma

29
vida; não desconhecia as muitas dificuldades que passaria. Mas, respondendo
prontamente ao chamado, pôs-se a serviço. Já carregando o Filho de Deus em
seu ventre imaculado, empreendeu longa caminhada para chegar à casa de sua
prima, Santa Isabel, a quem auxiliou por três meses. E, indo mais a fundo,
imaginamos todas as palavras que não nos foram escritas, mas que certamente
fizeram parte de sua vida; quanto carinho e dedicação não concedeu a cada
detalhe da vida de seu Menino... Podemos também nós assim fazer,
compartilhando com Maria a atenção que o Menino Jesus merece receber. E,
como à doce criança na Manjedoura, com o mesmo amor fitamos, junto d´Ela, o
Cristo pregado à Cruz. Nos pomos aos seus pés e, tendo a certeza que a Cruz não
foi uma derrota, mas a vitória perpétua, prometemos dar nossa vida, se
necessário for, para que tudo seja feito conforme a vontade de Deus. Diante do
exemplo perfeito de doação do Verbo de Deus encarnado, que não mediu esforços
para nos salvar, o único grito que talvez nos reste seja: “Não mais, Senhor. Não
mais me recusarei ao serviço!”.

30
Capítulo IV
Das Virtudes Ascéticas: A Mansidão

Num mundo onde há, se não uma ausência de valores, uma inversão
completa deles, dificilmente se encontra lugar para o verdadeiro Bem, que não
está em objeto ou homem qualquer, mas vem do alto. Por isso, talvez, a imagem
do Cristo calado, tal qual cordeiro levado ao matadouro, é muito apreciada, mas
dificilmente vivida, uma vez que o manso e humilde é tido como fraco e medíocre,
ou ainda falso e resignado. A virtude da mansidão parece, como tantas outras
virtudes que deveríamos cultivar, fadada ao esquecimento e desprezo, já que não
se vê como pode coadunar com o homem moderno e competitivo. É preciso um
profundo senso cristão para compreender que a mansidão não é “a fraqueza de
caráter que dissimula, sob exteriores adocicados, um profundo ressentimento. É
uma virtude interna que reside ao mesmo tempo na vontade e na sensibilidade,
para lá fazer reinar a serenidade e a paz, mas que se manifesta exteriormente,
nas palavras e nos gestos, por maneiras afáveis” (TANQUEREY, Adolph: A Vida
Espiritual Explicada e Comentada. Anápolis: Aliança Missionária Eucarística
Mariana, 2007. p. 599).

Como em todas as demais virtude, a mansidão poderá tornar-se em nós


uma disposição habitual para o bem se buscarmos sempre praticá-la. “Quando
estás com ânimo calmo e sem motivo algum de irritar-te, faze um grande
provimento de brandura e benignidade, acostumando-te a falar e a agir sempre
com este espírito, tanto em coisas grandes como pequenas” (SALES, São
Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 217). Quanto mais nos
acostumamos com o bem e nos afeiçoamos por ele, mas facilmente o
empregaremos quando as grandes tentações advierem.

Esta não é uma virtude que caminha sozinha. Exigindo controle de si


mesmo para moderar os movimentos da cólera, é anexa à temperança, pois a
tranqüilidade da alma, por excelência, é resultado desta virtude, muito embora
seja de todas. Por suportar os defeitos dos irmãos, exige-se que ande junto da
paciência, e, portanto, da virtude da fortaleza, que também auxilia a vencer a ira
e coibir a indignação. E não deixa de caminhar com a mais nobre das virtudes, a
caridade, pois o manso perdoa as injúrias e é benevolente para com todos.

É sabido que toda virtude tem seu vício oposto, que é sufocado com a
habitual prática do bem. Mas, neste caso, a teologia costuma indicar duas
possibilidades para a ira: a que se submete à razão e é moderada por ela, e a que
é movida pelas paixões e desordenada. A ira que está em desacordo com a ordem
da razão deseja o mal ao próximo, e é esta ira que conhecemos como vício capital,
também chamada de iracúndia. A ira por zelo, se moderada, é boa, mas deve-se
ter extremo cuidado para que ela não deixe de ser instrumento de virtude e
permaneça sempre escrava da razão, pronta a servi-la se necessário for. A ira
apenas é boa e ordenada quando quer corrigir um vício e não visa a vingança e o
dano alheio, mas unicamente a justa emenda das injúrias.

31
Não se conformar com um pecado e querer sua correção são atos virtuosos.
Assim, a ira como movimento do apetite sensitivo, pode servir à razão, de modo a
estar submetida à ela para pôr em prática a justiça contra o pecado. Mas quando
se quer o extermínio de quem peca, irando-se não contra o pecado, mas contra o
irmão que peca, querendo vingar seu pecado nele, causando-lhe dano, aí sim se
encontra o mal. A ira “impede o juízo da razão, pois a alma só pode avaliar a
verdade com uma certa tranqüilidade de mente, por isso diz o filósofo que a alma,
tendo paz, se faz conhecedora e prudente” (AQUINO, Santo Tomás. De malo in
Sobre o Ensino - Os Sete Pecados Capitais. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
pág. 97).

“Nutrirá um desejo vicioso da ira, a qual por isso se chama ira por vício,
quem deseja a vingança de qualquer modo, contra a ordem da razão; por
exemplo, se deseja castigar a quem não merece, ou além do merecido, ou ainda
não seguindo a ordem legítima, ou enfim, não em vista do fim devido, que é a
realização da justiça e a correção da culpa” (AQUINO, Santo Tomás: Suma
Teológica – Primeira Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980, Q.
CLVIII). Longe do virtuoso estará, portanto, querer fazer justiça com as próprias
mãos, fugindo da retidão e da ordem. E até mesmo a ira por zelo deve ser
constantemente moderada, pois se deixa de servir à razão e toma ardor excessivo,
não estará isenta de pecado. “É melhor, diz Santo Agostinho, escrevendo a
Profuturo, fechar inteiramente a entrada do coração à cólera, por mais justa que
seja, porque ela lança raízes tão profundas que é muito difícil de arrancá-las”
(SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 214).

Se acaso sofremos injustiças, não podemos nutrir pensamentos vingativos,


que levem nosso ânimo a inchar-se, perturbando nossa mente, características do
vício da ira. O manso, apesar de não se conformar com a injustiça sofrida por si
ou por outrem, manterá firme a disposição de amar a todos, ainda que tanto
dano tenham causado. Se for necessária uma correção da injúria, a deseja por
justiça, tendo em vista o reparo do mal feito e não causar igual ou maior dano e
dor ao que foi injusto.

Os que principiam na prática da virtude precisam combater os desejos e


todos os movimentos apaixonados da alma. Para progredir nela é necessário
buscar a Cristo, suas palavras, seus exemplos, d’Ele que foi anunciado como
manso desde o Antigo Testamento:

“Ele não grita, nunca eleva a voz, não clama nas ruas.
Não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha
que ainda fumega. Anunciará com toda a franqueza a
verdadeira religião; não desanimará, nem desfalecerá, até
que tenha estabelecido a verdadeira religião sobre a terra,
e até que as ilhas desejem seus ensinamentos” (Is
42,2-4).

Quando fala, Cristo é firme, mas suave e tranqüilo. Não apaga as faíscas da
fé e da esperança que ainda permanecem nos corações dos que pecaram, e

32
acende ainda mais a chama viva nos corações que O amam. Foi assim que Cristo
inaugurou o Reino de Deus, que estabeleceu sua Igreja, que nos deixou a
Salvação.

Em momentos onde estamos por ser levados pelas paixões, é mister


esforçar-nos em medir as palavras, de modo a não cair em insultos e blasfêmias.
Ainda que a ira seja causada por grande mal, não justifica ferir o outro que,
ainda que pecador, continua naturalmente dotado da dignidade que Deus deu a
cada homem ao nos criar e fazer-nos imagem e semelhança d’Ele. E por isso
Nosso Senhor colocou a mansidão ao lado da humildade:

“Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina,


porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o
repouso para as vossas almas” (Mt 11,29). A humildade
suscitará uma postura mansa frente às injustiças, pois o
humilde sabe-se indigno de honras e quer andar ao lado
do Cristo, que rumou silencioso para o Calvário, tendo
sobre si o peso dos pecados – não os Dele, porque jamais
os teve, mas os de toda a humanidade. É a mansidão
“que faz o homem passar por cima de todo o sofrimento e
que excede a todas as virtudes, porque é a flor da
caridade que, como diz São Bernardo, só possui o auge da
sua perfeição quando ajunta a virtude à paciência”
(SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 211)

“Digo-vos a vós, afirma o Senhor: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos
que vos odeiam, e orai pelos que vos caluniam. Por que o ordenou? Para libertar-te
do ódio, da tristeza, da ira e do rancor, e tornar-te digno de grandíssimo tesouro da
perfeita caridade; é impossível que a possua quem não ama igualmente a todos os
homens, à imitação de Cristo, o qual ama igualmente a todos os homens e quer que
se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (MÁXIMO, São: Centúrias
sobre a Caridade e Outros Escritos Espirituais. São Paulo: Landy, 2003. p. 64).
Se vemos almas em todos aqueles com quem convivemos, isso ajudará a não irar-
se contra eles, pois assim veremos Cristo em tudo e todos. É nosso dever,
inclusive, orar pelos nossos inimigos, o que ajudará não apenas estas almas, mas
também fortalecerá aos que por conta de seus atos se escandalizaram. Fazendo
isso a alma fica em paz consigo, com o próximo e com Deus. Tudo suporta, pois
sabe “que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são os eleitos, segundo os seus desígnios” (Rm 8,28).

Não só de atos exteriores nos fazemos mansos, pois o Cristo diz ser “manso
e humildade de coração”. Quem mantém a tranqüilidade no espírito, não se
exaspera com ardor e orgulho diante das mágoas sofridas. O orgulhoso acha que
deve ser exaltado e que é imerecedor de qualquer desonra ou injúria, e por isso se
volta com ira contra aquele que lhe fere. O humilde se compraz com as

33
humilhações e danos, pois, diferente do orgulhoso que só quer compartilhar com
Cristo sua glória, assim se assemelha mais ao seu Senhor e pode compartilhar
uma pequena parte do sofrimento da Cruz.

O mal não está só no ato, mas em nosso interior. Quando nos


apresentarmos a Deus, é o que somos (que se reflete no que fazemos) que será
visto: estaremos nús diante de Deus, e não poderá coexistir o mal junto do
Supremo Bem: se nosso coração não tende à perfeição de Cristo, e não se faz
manso como o d'Ele, só por isso já teremos nossa condenação. Um coração
amargurado, indignado com tudo e todos, com ódio e rancor, que não tem
tranqüilidade nem paz, com certeza não está próximo ao Coração de Jesus. É
certo que muitas vezes nosso coração é massacrado pelo pecado, pelas injustiças,
pelas humilhações e todo tipo de sofrimento, mas aquele que tem certeza de onde
quer chegar não se atormenta por isso: permanece com Cristo, clama a Ele em
todas as suas angústias, e não se volte contra ao próximo e muito menos contra
Deus. Luta persistente e eficazmente, mas sem violência, seja a física ou a de
coração: esta é a verdadeira paz com Deus.

Conforme aconselha São Francisco de Sales, “a ciência de viver sem cólera é


muito melhor do que a de servir-se dela com sabedoria e moderação; e, se por
qualquer imperfeição ou fraqueza, esta paixão surpreender o nosso coração, é
melhor reprimi-la imediatamente que procurar regrá-la” (SALES, São Francisco:
Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 215). Ainda segundo o santo, a melhor forma
de reprimi-la é doce e eficazmente, não de um modo brusco que perturbe a alma;
mas, recorrendo a Deus, em oração, sempre com suavidade, para que Ele nos
auxilie em nossas fraquezas. Caso formos tentados com a cólera, não podemos
reter a irritação, não permitindo que o ânimo se exalte e venhamos a expressar a
ira, retribuindo as injúrias recebidas ou ainda atacando os que sequer nos
fizeram algo. Se porventura nos irarmos contra alguém, é importante corrigir logo
a falta com atos de mansidão e brandura, pois as feridas recentes são mais fáceis
de curar que as antigas.

“A vida é uma viagem que temos que fazer para atingir o céu; não nos
zanguemos no caminho uns contra os outros; andemos em companhia com nossos
irmãos, em espírito de paz e amizade. Generalizando, aconselho-te: nunca por
nada te exaltes, se for possível, e nunca, por pretexto algum, abras teu coração à
ira; pois São Tiago diz expressamente: a ira do homem não opera a justiça”
(SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 213). Assim, se no afã
contra a injustiça, nos exaltamos contra o injusto, de certo modo tornamo-nos
como ele quando à falta de justiça, pois, conforme citou São Francisco de Sales:
“Todo homem deve ser pronto para ouvir, porém tardo para falar e tardo para se
irar; porque a ira do homem não cumpre a justiça de Deus” (Tg 1,19-20).

O homem perde muito tempo de sua vida empregando-o no mal. Se, frente
o mal praticado pelos ímpios, não pagamos o mal com o mal, mas nos esforçamos
em fazer o bem, aplicaremos muito mais eficazmente nosso tempo – que não
sabemos quanto ainda nos resta para gastar – e esforços na correção justa do
que se os perdêssemos com vinganças, que só fariam aumentar a injustiça e as
ofensas a Deus e de nada adiantariam senão para saciar o orgulho de quem se
vinga. Pagar o mal com o bem é o que diferenciará o cristão dos que não levam
Deus no coração, porque os que O levam vêm tudo com sentido sobrenatural e

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querem fazer valer o exemplo de Cristo, uma vez que “a caridade é paciente, a
caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante.
Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda
rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo
desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,4-8). Assim, a mansidão
abre as portas para que esta caridade adentre o coração do homem.

Ser manso significa, muitas vezes, calar o desnecessário, mas nem sempre
o silêncio é essencial. Se é nosso dever corrigir um erro e podemos realmente
fazer algo para emendá-lo e emendar aquele que errou, precisamos fazer tudo que
estiver ao nosso alcance para que assim seja, visando o bem de todos os
envolvidos e o agrado de Deus.

“Deve-se resistir ao mal e corrigir os maus costumes dos


seus subalternos com santo ânimo e muita firmeza, mas
sempre com uma inalterável mansidão e tranqüilidade;
nada pode aplacar tão facilmente um elefante com a vista
dum cordeirinho, e o que mais diminui o ímpeto duma bala
de canhão é a lã [...] Se a razão procura com mansidão
seus direitos de autoridade por meio de algumas correções
e castigos, todos aprovarão e a estimarão, mas se a razão
mostra indignação, despeito e cólera, [...] ela mais faz-se
temer que amar e perturba e oprime a si mesma” (SALES,
São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p.
213-214).

É desta forma, com a razão soberana em nós, que devemos ser


veementemente contra calúnias contra a Igreja e a Nosso Senhor, corrigindo
quem o faz sem ira nem tristeza: é dever de todo cristão não permitir que o Santo
Nome de Deus seja insultado ou que sua doutrina seja deturpada, porém nossa
defesa só será eficaz se for humilde, mansa e racional. Com esta mesma
mansidão os pais devem criar seus filhos. Vivemos numa sociedade que acha que
qualquer tipo de correção é repressão, e deixa suas crianças à mercê delas
mesmas, não dando a elas diretrizes para seguir e tornarem-se adultos cristãos,
que respeitem a todos e saibam seus direitos e deveres. A educação com limites
não é violência – e não pode vir a ser –, pelo contrário, é por amor e com amor
que os pais dão aos seus filhos a noção do certo e do errado, levando-os aos
caminhos do bem desde cedo, para que se habituem a ele e o amem. Lembremos
de Nossa Senhora – aquela que melhor guardou o santo silêncio - que, quando
encontrou o menino Jesus que havia se separado da caravana, não tardou em
questioná-lo de seu sumiço, firme e brandamente. Foi com a ajuda da sua
Sagrada Família que Cristo cresceu em estatura, em sabedoria e em graça (Cf. Lc
2,52).

Nem mesmo para conosco devemos nos irar. A dor pelo pecado não deve ser
aborrecida, mas mansa e humilde. A verdadeira compunção nos leva a abrandar
todas as paixões e a não nos exasperarmos, colocando toda a confiança na

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Misericórdia de Deus, que tudo perdoa a um coração contrito que o busca no
Sacramento da Confissão, e com tranqüilidade e firmeza mantém o propósito de
não mais voltar a ofender ao Senhor. Com o salmista, devemos repetir: “meu
sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó
Deus, que não haveis de desprezar” (Sl 50,19).

Quando nos vemos assolados pelo pecado, certamente nos achamos


indignos de Cristo... E isto é verdade, não o somos! Mas é igual verdade que
nosso Deus é um Deus misericordioso, que abre os braços a todos os seus filhos
que o procuram. Se nós não podemos, sozinhos, oferecer reparo suficiente por
nossas faltas, unidos aos méritos da Cruz de Cristo podemos ser justificados se
nos arrependemos sinceramente e o buscamos. Mas o homem que não dá um
passo a frente e, vendo sua miséria, não vê também a misericórdia e o amor de
Cristo, se desespera e se consome por seu pecado, não visando seu reparo, mas
sim afundando-se cada vez mais nele. Esta não é a atitude do autêntico cristão!
O cristão que vive a humildade se compraz em sua miséria, e, toda vez que cai,
volta-se para Deus, com ânimo renovado, para continuar a batalha, para seguir
no caminho, pois não quer permanecer caído e não quer voltar ao chão
lamacento do pecado. Agarra-se, por isso, às mãos estendidas do Cristo - mãos
marcadas pelas chagas da Cruz - e segue em frente. Para quem tem um coração
manso e humilde, as barreiras do orgulho e do desespero são retiradas do
caminho rumo à caridade, e assim pode serenamente aproximar-se de Deus e
com Ele permanecer.

Esta virtude se faz presente no encontro da Verdade, a qual conhecemos


com certeza através da Igreja Santa e Católica. A mansidão destrói os
impedimentos aos atos de piedade, e por isso liga-se a este dom indiretamente.
Dom do Espírito Santo, a piedade “convém aos mansos, porque aquele que com
piedade investiga e honra as Sagradas Escrituras não critica o que ainda não
compreende; e, portanto, não resiste a coisa alguma, o que constitui a virtude da
mansidão” (AGOSTINHO, Santo: O Sermão da Montanha. São Paulo: Edições
Paulinas, 1992. p.31). É próprio do manso ser obediente à Igreja e solícito com as
coisas do Pai, já que não se revolta com aquilo que não entende e busca
pacientemente a explicação junto à Santa Madre Igreja.

A mansidão nos prepara para o conhecimento de Deus, removendo-nos os


impedimentos ao nos tornar senhores de nós mesmos, com a razão soberana à
vontade e às paixões e iluminada pela fé, nos levando, assim, a nos submetermos
à Verdade. “É próprio da mansidão não contradizer as palavras da Verdade, o que
às vezes muitos fazem pela comoção da ira. Por isso, diz Santo Agostinho: ser
humilde é não contradizer à divina Escritura, quer quando, entendendo-a, vemos
que condena certos vícios nossos; quer quando não a entendemos, como se
pudéssemos saber e mandar melhor que ela” (AQUINO, Santo Tomás: Suma
Teológica – Primeira Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980, p. 3175,
Q. CLVII).

“Se a pessoa não dirige de modo algum toda a sua escolha às coisas visíveis
e, por isso, não se encontra sujeita a nenhum sofrimento que lhe advenha ao corpo,
então ela perdoa, verdadeira e impassivelmente, àqueles que pecam contra ela,
uma vez que absolutamente ninguém pode por a mão no bem que ela busca com
tanto zelo, pois o sabe inalienável por natureza” (MÁXIMO, São: Centúrias sobre a

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Caridade e Outros Escritos Espirituais. São Paulo: Landy, 2003. p. 146). Estes
bens que a alma, já nos caminhos da santidade, busca com tranqüilidade e zelo,
são os bens eternos, os quais ninguém pode nos privar senão nós mesmos. Se o
homem faz caso de bens terrenos e passageiros, como glórias humanas, conforto
e prazeres mundanos, se apegando a eles de tal forma a deixar de lado o Bem
divino, se vierem a lhe faltar fica perturbado e inconsolável, irado contra os que o
privou de tais bens e, por vezes, encolerizado para com Deus, chamando-O
injusto por não ter mais aquilo a que tanto ama. Já o manso não tendo os bens
temporais como objetivo, mas como meios dos quais pode se utilizar para chegar
Àquele para quem foi criado, não tem nada disto como importante o bastante
perto de seu Senhor, a quem tanto ama; não será neste mundo que terá sua
plena felicidade, e se for privado de tudo, honras, prazeres, consolos, ainda lhe
resta uma grande esperança; sabe que, junto de Cristo, tudo pode suportar e que
um dia todo sofrimento acabará. Aí, então, na eternidade, possuirá todo o Bem
que desejou, o qual neste mundo apenas vê como que em espelho, mas então
verá face a face.

Bem-aventurados os mansos, pois estes possuirão a pátria celestial. A


herança do manso é o repouso e a vida dos santos, onde reina a paz. “Cada
reunião eucarística é para os cristãos esse lugar da soberania do rei da paz. A
comunidade da Igreja de Jesus Cristo, que envolve todo o mundo, é então um pré-
esboço da terra de amanhã, que deve tornar-se uma terra da paz de Jesus Cristo”
(RATZINGER, Joseph – Bento XVI. Jesus de Nazaré: do Batismo do Jordão à
Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 87).

Cristo pediu que deixassem vir a Ele as criancinhas, e falou aos discípulos:
“se não voltardes a ser como meninos não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18,3).
Assim disse pois “as crianças caracterizam-se pela sua incapacidade de ódio, e
vê-se nelas uma total inocência no que diz respeito aos vícios, e principalmente
ao orgulho, que é o maior de todos. São simples e abandonam-se confiadamente”
(Bíblia Sagrada – Santos Evangelhos. Edição da Universidade de Navarra. p. 317).
É nas almas inocentes que Jesus Cristo estabelece sua morada, é aí onde o
Senhor se deleita. Será tornando-nos almas inocentes, que não levam em conta o
mal que lhe fazem e logo se reconcilia com o irmão, que seremos mansos. Nos
caminhos da perfeição, os que se unem a Cristo têm uma só vontade com Ele, e
compartilham integralmente sua doçura, não havendo lugar nenhum para o que
não procede de Deus.

Para quem assim vive, buscando as coisas do alto, nem a maior injustiça é
motivo suficiente para irar-se, pois sabe que a ira contra o irmão não procede a
justiça divina e a afastará de Deus; antes oferecer a face esquerda a quem ferir a
direita, que pecar. Nenhuma injúria é grande o bastante que valha perder o Bem
Eterno por sua causa!

A regra de ouro para o manso será: “tudo o que quereis que os homens vos
façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7,12). Dizendo isto, Cristo indicou que o caminho
não seria fácil, e continuou: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e
espaçoso o caminho que conduzem à perdição e numerosos são os que por aí
entram” (Mt 7,13). E para provar-nos que não era algo impossível, Ele mesmo
veio até nós e nos ensinou. Doce redentor que, enquanto sofre e está humilhado,
perdoa os pecados dos que os injuriam e oferece o Céu a quem se arrepende de

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sua iniqüidade.
E ainda assim, na maioria das vezes, tudo é difícil... Ou, parafraseando
Santa Teresinha do Menino Jesus, deveríamos dizer que parece difícil, pois o jugo
do Senhor é suave e leve (Cf. Mt 11,30). Por isso temos ainda mais uma fonte de
consolo e auxílio, deixada por Cristo a todos os homens. Ele deu-nos uma mãe!
“Ama a Senhora. E Ela te obterá graça abundante para venceres nesta luta
quotidiana. – E de nada servirão ao maldito essas coisas perversas que sobem e
sobem, fervendo dentro de ti, até quererem sufocar, com a sua podridão bem
cheirosa, os grandes ideais, os mandamentos sublimes que o próprio Cristo pôs
em teu coração. – «Serviam!»” (ESCRIVÁ, São Josemaria: Caminho. São Paulo:
Quadrante, 1999. Ponto 493). Se estamos cansados e não encontramos saída no
desespero, olhemos para Maria, ela nos retribuirá com seu piedoso olhar, e
depois de todo este desterro, nos mostrará seu Filho, ajudando-nos a tornar
nosso coração semelhante ao d’Ele, manso e humilde.

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Informações

Izabel Ribeiro Filippi


Vice-Diretora do Apostolado Sociedade Católica
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