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EDUARDO HOORNAERT

HISTÓRIA DA

IGREJA
NA
AMÉRICA
LATINA
ENO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ca r ib e
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1945-1995
História da igreja na América Latina e no Caribe : 1945-
1995 : o debate metodológico / apresentação José Oscar Beozzo. -
Petrópolis, RJ : Vozes, 1995. - (CEHILA)
0 DEBATE METODOLÓGICO
ISBN 85-326-1480-9


•‘ ^ 1. Igreja Católica - América Latina - História 2. Igreja
Católica - Caribe - História I. Beozzo, José Oscar, 1941- II. Série. Tradução de:
Ephraim Alves
Jaime Clasen
95-2382 CDD-270.09 Lúcia Mathilde Endlich Orth

índices para catálogo sistemático:

>
1. América Latina : Igreja Católica : História 270.09
2. Caribe : Igreja Católica : História 270.09

VOZES
C EHILA
Petrópolis 1995 São Paulo
8. KLAUSNER, J., Jesus o f N azareth, New York, Macmillan, 1925
2
(primeira edição: 1922).

9. ROSTAS, S. & DROOGERS, A., The Popular Use o f Popular


Religion in Latin A m erica, CEDLA, Amsterdam, 1993,6.
SISTEMA-MUNDO, DOMINAÇÃO E
EXCLUSÃO - Apontamentos sobre a
história do fenômeno religioso no processo
de globalização da América Latina
Enrique Dussel, México, março de 1995

-talestra apresentada na II Conferência Geral de


História da Igreja na América Latina (CEHILA), São
Paulo, julho de 1995
Nesta conferência desejo expor algumas linhas ge­
rais para o debate que certamente ocorrerá na II Confe­
rência Geral sobre a história do fenômeno religioso na
América Latina a partir do horizonte da Modernidade
como processo de globalização articulada ao projeto da'
CEHILA, do qual me coube a responsabilidade de estar
entre os iniciadores.

1. Opção epistemológica de um projeto

O projeto de escrever uma História da Igreja na


América Latina (AL) da Comissão de História (CEHILA)
está longe de ter alcançado o seu objetivo. Não se tratava
apenas de escrever uma obra; tratava-se de dar origem
a uma "escola histórica" em nosso continente cultural.
Creio que já se fez alguma coisa, mas ainda falta muito
para se concluir. Por isso desejo voltar às "intuições"
originárias e acrescentar novos aspectos que acredito
serem necessários na década de 1990, no final do século
e do milênio.
Desde a sua origem, e acho que é necessário conti­
nuar essa tarefa ainda no presente, a CEHILA levou a

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à "nova geração" que vinha nascendo. Tive clara cons­
cabo uma discussão sobre a sua opção epistemológica. Por ciência disso e tivemos que abrir um caminho diferente
outro lado, hoje, mais que na década de 1960, esse debate também na maneira de conceber a Igreja e a sociedade.
epistemológico voltou a comparecer no mundo das ciên­
cias sociais com toda a sua agressividade crítica. c. História institucionalista (a posição culturalista). Ten­
do estudado na França na época de Robert Ricard e Paul
a. O positivismo histórico (face ao diletantismo). Quando Ricoeur, e na Alemanha com Joseph Lortz, como leigo e
comecei a tarefa de pretender formar um grupo para não como clérigo, a minha visão da História da Igreja
escrever uma História da Igreja na América Latina, em não poderia ser institucionalista (ao menos como proje­
equipe, depois de meus estudos na Europa1, lancei-me a to), e por isso adotei um método ao qual dei o nome de
múltiplos périplos por toda a América Latina, propon­ "culturalismo"3. A questão fundamental não era Igreja-
do à "antiga geração"2 dos grandes historiadores o pro­ Estado, mas Igreja-Cultura4. Neste ponto, igualmente,
jeto dessa história. Falei pessoalmente na Argentina com havia uma diferença fundamental em face da "antiga
Guillermo Furlong, no Peru com Vargas Ugarte, no geração", que era institucionalista. Seja como for, esse
Equador com José Maria Vargas, na Colômbia com os culturalismo seria rapidamente ultrapassado. A catego­
membros da Academia de História Eclesiástica, na Ve­ ria de "cristandade" deve ser entendida então neste
nezuela com os membros da Academia de História, no horizonte problemático: superação de uma visão insti­
México com Gutiérrez Casilla etc. Percorri toda a Amé­ tucionalista, mas dentro de uma certa interpretação cul-
rica Latina, o Caribe e a América Central (e falei também tu ralista. Tem as suas vantagens, mas também
com os hispanos dos EUA). A "antiga geração" não limitações. É hora de recalibrar as categorias .
aprovou o projeto. Haviam lutado denodadamente con­
tra uma historiografia não científica, haviam desbrava­ d. O classismo (diante do populismo). Na década de
do um caminho em décadas de trabalhos arquivísticos 1970 o marxismo foi sempre mais aceito pelos intelec­
em centenas de estudos monográficos. Eram positivistas tuais latino-americanos. Agora a frente se diversificava.
pelo seu método histórico e não "gostavam" da "síntese" Com efeito, uma geração de historiadores e sociólogos
que julgavam prematura, não só no nível nacional (coisa reinterpretavam a história latino-americana a partir das
que alguns deles já tinham tentado), mas sobretudo classes sociais; outros, no entanto, ignoravam essa aná­
continental: latino-americana. Foi necessário procurar lise e até se opunham (eram chamados de populistas). A
uma "nova geração", e esta constituiu lentamente o CEHILA, já fundada, teve que debater esses temas e ir
grupo fundacional da CEHILA. se abrindo também, lentamente, no meio dessas defini­
ções epistemológicas que ainda não se esgotaram. Seja
b. O conservadorismo (face ao liberalismo). Essa "antiga como for, nunca se adotou um classismo ingênuo, nem
geração" também lutou honestamente contra a interpre­ tampouco um populismo espontaneísta: a tensão per­
tação anticlérical liberal latino-americana, mas, sem se maneceu sempre no seu seio.
dar conta, adotou unanimemente, quase sem exceções,
uma posição conservadora, não somente na sua maneira e. A opção pelos pobres, decisão epistemológica. Desde o
de conceber a Igreja (romanista, clerical etc.), mas, e era início, a posição própria da CEHILA tinha sido clara­
mais determinante, em suas atitudes e em seus juízos mente formulada naquilo que no Encontro de Chiapas,
acerca da sociedade como um todo. Eram antiliberais em 1974, fora chamado de "Critérios da CEHILA" . O
conservadores e positivistas em sua concepção da histó­ mais central e debatido foi o da opção pelos pobres. De
ria da Igreja. Neste ponto, igualmente, iam de encontro um estrito ponto de vista hermenêutico, científico, his­

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tórico, pode-se abordar o objeto de estudo e tentar visua­ e ficou pendente o problema dos marginais urbanos,
lizar na realidade extremamente complexa certos aspec­ fruto do desequilíbrio do capitalismo periférico latino-
tos. Pode ser o puramente institucional, o cultural, o americano, onde a Igreja dos pobres tem tanta presença
econômico, os círculos do exercício do poder, as "men- e experiências.
talidades" da vida cotidiana, a religiosidade popular etc.
Na CEHILA, desde a sua origem, e por posições próprias Pouco e nada, a não ser pelas publicações da CEHILA
da época (tanto do continente como a Igreja pós-conci- que na realidade se dirigem a elas como destinatarias, as
liar, e latino-americana em particular, já antes porém pequenas burguesias críticas e os intelectuais devem ser
muito mais depois de Medellín), a partir das exigências também considerados, enquanto se articulam com os
do Evangelho, foi decidido que a "opção pelos pobres" interesses populares, grupos de latino-americanos do­
seria uma perspectiva que iluminaria todas as nossas minados e/ou explorados.
investigações e exposições como "escola histórica" (este Enfim, o povo latino-americano dos mestiços, das
era o projeto e muitas vezes se realizará só em parte). A classes exploradas, dos excluídos (marginais, etnias
interpretação não deve deixar de ser "científica" por seu etc.), que constituem o bloco social dos dominados, mer­
método, embora possa ser intencionalmente abstraída gulhado no final destes anos '90 na maior pobreza (por
da totalidade da realidade possível. Seja como for, o seu número absoluto e por sua comparação relativa) de
projeto mostrou as suas dificuldades, e nunca, e nem toda a história deste continente, deve continuar sendo
tampouco hoje, deve deixar de ser objeto de debates e considerado o objeto principal e também o sujeito com
correções. o qual se deve articular a história da Igreja praticada pela
Em primeiro lugar, os pobres foram interpretados CEHILA. Este é o seu horizonte hermenêutico.
como os dominados e os excluídos, em diversas situações /. Intersubjetividade crítica: ciência, movimentos popula­
ou sistemas históricos, de curto, médio e longo prazos. res e Igreja. Graças às recentes transformações epistemo-
Isto exigia clareza categorial para se poder estudar as lógicas1 , no sentido que a ciência tem como sujeito uma
estruturas vigentes, dominantes, excludentes e que per­ comunidade de cientistas que trabalha a partir de pres­
mitissem efetuar investigações históricas relevantes. supostos intersubjetivos consensuais acordados, a
Pouco a pouco se foi avançando epistemologicamente, CEHILA pode reafirmar o seu projeto de escrever uma
e em Encontros Anuais, os seminários da CEHILA, fo­ História da Igreja em equipe, e em um contínuo debate
ram abordados um a um os diversos círculos dos domi­ falibilista dos seus critérios. Mas, além disso, esta inter­
nados e/ou excluídos dentro do panorama da História subjetividade. consensual dos historiadores científicos
da Igreja na América Latina.
deve também saber articular-se com outras comunida­
Assim se efetuaram dois seminários, um sobre os des com as quais mantém uma constitutiva solidarieda­
povos originários do continente (impropriamente cha­ de. Em primeiro lugar, com a própria comunidade dos
mados de "índios")7 e sobre os afro-americanos8, com movimentos populares e/ou sociais críticos, a partir dos
suas respectivas publicações. Do mesmo modo se abor­ quais e com os quais deve saber investigar os seus te­
dou o problema da mulher latino-americana (indígena, mas14, e que são os "destinatários privilegiados" . Mais,
afro, popular etc.) na História da Igreja na AL.9 e não menos, com as comunidades eclesiais dos fiéis.
Neste ponto a CEHILA não é somente uma comunidade
Sucessivamente se abordaram os problemas históri­ de cientistas historiadores acadêmicos, mas desde a sua
cos dos camponeses10, dos operários1, dos imigrantes12, origem os seus membros (cientistas historiadores acadê-

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v micos) são homens de fé, que tomam parte em comuni­ maior autonomia diante das comunidades eclesiais e
dades eclesiais efetivas, o que faz com que seu produto mais funda inserção na sociedade civil em seu conjunto.
histórico (livros, cursos, reflexões, ações etc.) inclua in­
ternamente as comunidades eclesiais. E aqui aparece um
primeiro critério definitório mas que vem evoluindo: a
CEHILA é ecumênica (embora pelo peso histórico efeti­ 2. O sistema-mundo e as diversas m odem idades
va e concretamente de maioria católica), e por isso se
debateu se a História da Igreja não deveria ser antes uma Desejo agora passar a um segundo tema, para situar
História do Cristianismo . Mais ainda, poderia ampliar- sob outro critério a reflexão de uma história da Igreja na
se o horizonte, ao menos em alguns projetos da CEHILA, América Latina como fenômeno religioso nesta década
e neste caso se trataria de uma História do Fenômeno de 90, no final do século XX e do segundo milênio do
Religioso na América Latina. Penso que, além de uma cristianismo, e dentro de três cadeias de argumentos: a
História da Igreja e do Cristianismo, a CEHILA poderia da Modernidade, a do Sistema-Mundo, e a da significa­
encarar essa investigação como uma das suas possibili­ ção histórico-mundial (e histórico-eclesial) da invasão
dades na linha de uma história do fenômeno religioso da América pelos europeus em 1492. Esses três aconte­
em seu conjunto (sem deixar por isso os outros aspectos cimentos se entrecruzam e determinam, a meu ver, uma
que também devem ser satisfeitos). E, neste caso, é ne­ nova interpretação global que nos pode servir de marco
cessário adotar novas categorias: categorial para compreender mais claramente a História
"O uso do conceito de regime religioso na história das da Igreja na AL.
religiões populares da ALe do Caribe pode assumir uma Em primeiro lugar deve-se considerar que podem
função semelhante à do uso do conceito de cristandade ocorrer dois paradigmas de Modernidade.
na historia da igreja-instituição. Pode-se definir regime
religioso como uma constelação institucionalizada e for­ a. O modelo eurocêntrico de Modernidade. A partir de
malizada de interdependências humanas, que se acha um horizonte regional, este paradigma propõe que o
legitimada por idéias religiosas e dirigida por especia­ fenômeno da Modernidade é exclusivamente europeu;
listas religiosos"17 que se vai desenvolvendo a partir da Idade Media e
expandindo a seguir para todo o planeta . Max Weber
Isto, ainda por cima, é um imperativo histórico, por­ situa "o problema da história mundial" com uma per­
que uma terceira geração (se a primeira foram os "anti­
gunta que soa assim:
g o s", a segunda os fundadores da CEHILA) de
historiadores da Igreja ou do fenômeno religioso em "Que encadeamento de circunstâncias fez com que
geral no continente já não são clérigos, mas investigado­ precisamente no solo do Ocidente19, e somente aqui, se
res, professores ou intelectuais leigos. E isto permite à produziram fenômenos culturais que —ao menos assim
CEHILA atualmente ter outra presença no "mundo da como nós20 costumamos representá-los - estavam em
intelligentsia latino-americana, ao lado do mundo po­ uma direção evolutiva de significação e validade univer­
pular e cristão. A desclericalização, e ao mesmo tempo a sais"?21
presença feminina sempre maior na CEHILA, são duas
A Europa teria tido, segundo este paradigma, carac­
tendências que devem ser estimuladas, pois permitem
terísticas excepcionais internas, que lhe permitiram su­
perar essencialmente, pela sua racionalidade, todas as

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demais culturas. Esta tese, que chamarei de "paradigma na, América do Norte, o Caribe e as Costas da África, a
eurocêntrico" (por oposição ao "paradigma mundial"), Europa Oriental no século XVII26; o Império Otomano,
é aquela que se impôs não só na Europa e nos Estados Rússia, alguns reinos da índia, o Sudeste Asiático e a
Unidos, mas em todo o mundo intelectual também da primeira penetração na África continental até a primeira
periferia mundial. Como dissemos, a divisão "pseudo- metade do século XIX27). A Modernidade, então, seria
científica" da história em Idade Antiga (como o período para este paradigma mundial um fenômeno próprio do
antecedente), Idade Média (época preparatória) e Idade "sistema" com "centro-periferia": não é um fenômeno
Moderna (Europa) é uma organização ideológica e de- de uma Europa como sistema independente, mas de uma
formadora da história. A história latino-americana da Europa "centro". Esta simples hipótese muda em abso­
Igreja tem que romper com esse horizonte reduciònista luto o conceito de Modernidade, sua origem, desenvol­
parã poder abrir a reflexão ao âmbito "mundial" plane­ vimento e sua crise atual; e, por isso, também o conteúdo
tário: este já é um problema histórico de respeito a outras da Modernidade tardia ou pós-moderna.
culturas.
Além disso, sustentamos uma tese condicionante da
A cronologia tem a sua geopolítica. A história mo­ anterior: a centralidade da Europa no sistema-mundo
derna se desenvolveria espacialmente, segundo o "pa­ não é fruto só de uma superioridade interna acumulada
radigma eurocêntrico", a partir da Itália renascentista na Idade Média européia sobre as outras culturas, mas
para a Alemanha da Reforma e a Ilustração, rumo à também efeito do simples fato do descobrimento, con­
França da Revolução francesa22. Tratar-se-ia da Europa quista, colonização e integração (subsunção) da Amerín­
Central. r dia (fundamentalmente), que dará à Europa a vantagem
comparativa determinante sobre o mundo otomano-islâ-
b. O modelo "mundial" de modernidade. Um segundo mico, a índia ou a China. A Modernidade é o fruto desse
paradigma, a partir de um horizonte mundial, concebe acontecimento e não sua causa. Posteriormente a ges­
a Modernidade como a cultura do centro do "sistema- tão" da centralidade do "sistema-mundo permitirá à
mundo" , d o primeiro sistema-mundo - pela incorpora­ Europa transformar-se em algo assim como a consciên­
ção da Ameríndia 4 - e como resultado da gestão dessa cia reflexiva" da história mundial, e muitos valores,
centralidade . Ou seja, a Modernidade européia não é invenções, descobrimentos, tecnologias, instituições po­
um sistema independente autoproduzido, auto-referente, líticas etc., que se atribuem a si mesma como sua produ­
mas é parte do "sistema-mundo": o seu centro. A Moder­ ção exclusiva, são na realidade efeito do deslocamento do
nidade, então, é mundial: começa pela constituição si­ antigo centro do sistema interregional para a Europa
multânea da Espanha com referência à sua "periferia" (a (seguindo a via diacrônica do Renascimento para Portu­
pr“n<:|ra de to,das' propriamente falando, a Ameríndia, gal como antecedente, rumo à Espanha, e depois em
o Caribe, o México e o Peru). Simultaneamente, a Europa direção a Flandres, Inglaterra...). E ainda o capitalismo e
(com uma diacronia que tem um antecedente pré-mo- o fruto, e não a causa, dessa conjuntura de mundializa-
demo: as cidades italianas renascentistas e Portugal) irá ção e centralidade européia no "sistema-mundo .A ex­
se constituindo em "centro" com um poder super-hege- periência humana de 4500 anos de relações políticas,
mômco que da Espanha passa para a Holanda, a Ingla­ econômicas, tecnológicas, culturais do "sistema interre­
terra e a França...) sobre uma "periferia" crescente gional" (desde a origem das culturas egípcia e mesopo-
(Ameríndia, Brasil e as costas africanas de escravos, tâmica), vai ser agora hegemonizada pela Europa - que
Poloma no século XVI , afiançamento da América Lati­ nunca tinha sido o "centro", e que nos seus melhores

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anos somente chegou a ser "periferia". O deslizamento Com efeito, Cheng Ho, entre 1405 e 1433, efetuou
se efetua da Ásia Central para o Mediterrâneo Oriental, sete viagens bem sucedidas ao "centro" do sistema (che­
e da Itália, mais precisamente de Gênova, para o Atlân­ gou ao Sri Lanka, à índia e até a África Oriental)29. Em
tico. Com o antecedente de Portugal, inicia-se propria­ 1479, Wang Chin tentou fazer o mesmo, mas não lhe
mente com a Espanha, ante a impossibilidade que a entregaram nem os arquivos do seu antecessor. A China
China pense sequer em chegar pelo Oriente (o Pacífico) se fechou dentro das próprias fronteiras, e não pensou
à Europa, e integrar assim a Ameríndia como sua peri­ em fazer aquilo que, nesse mesmo momento, Portugal
feria. Vejamos as premissas da argumentação. realizava. Á sua política interna - talvez a rivalidade
entre os mandarins contra o novo poder dos eunucos
Consideremos agora o desenrolar da história mun­
comerciantes30 - impediu-lhe a saída comercial para o
dial a partir da quebra, com a presença turco-otomana,
exterior, mas, se a fizesse, teria de se dirigir rumo ao
do coração do antigo sistema interregional, que tinha
oeste, para alcançar o "centro" do sistema. Os chineses
tido em sua época clássica Bagdá como centro (de 762 a
se dirigiram para o leste, chegaram até o Alaska, e parece
1258 dC, como vimos), e a transformação desse "sistema
que até a Califórnia ou até mais para o sul. Como porém
interregional" no primeiro "sistema-mundo", cujo "cen­
nada encontraram que pudesse interessar a seus comer­
tro" irá situar-se até hoje no Atlântico Norte. Essa mu­
ciantes, e como estivesse cada vez mais longe do "cen­
dança de "centro" do sistema terá a sua pré-história
tro " do "sistem a in terreg io n a l", abandonaram
desde o século XIII ao século XV dC, e diante do desmo­
certamente a empreitada. A China não foi a Espanha, por
ronamento do antigo sistema interregional, mas o novo
motivos geopolíticos.
estádio ou o "sistema-mundo" se originará propriamente
a partir de 1492. Tudo o que anteriormente acontecera Todavia, precisamos ainda nos colocar mais uma
na Europa fora ainda um momento de outro estádio do pergunta para refutar a antiga "evidência", mas que se
sistema interregional. Que Estado originou o desdobra­ reforçou a partir de Weber: seria a China culturalmente
mento do "sistema-mundo"? A nossa resposta é: aquele inferior à Europa no século XV? Segundo os que estuda­
que pudesse anexar a si a Ameríndia e, a partir desta, ram a questão \ não era inferior nem tecnológica32, nem
como trampolim ou "vantagem comparativa", ir acu­ política33, nem comercialmente, e nem tampouco pelo
mulando uma superioridade inexistente no fim do sécu­ seu humanismo34. Existe certo espelhismo nesta ques­
lo XV. tão. As histórias das ciências e das tecnologias ocidentais
não levam estritamente em conta que o "salto", o boom
c. E por que não a China? A razão é muito simples, e
tecnológico europeu começa a ocorrer no século XVI,
desejamos defini-la desde o início. Era impossível que a /
mas somente no XVII mostra os seus efeitos multiplica­
China28 descobrisse a Ameríndia (impossibilidade não (
dores. Confunde-se a formulação do novo paradigma
tecnológica, ou seja, de factibilidade empírica, mas his­
teórico moderno (século XVII) com a origem da Moder­
tórica e geopolítica): não poderia interessar-lhe tentar ir
nidade, sem deixar tempo para a crise do modelo me­
pelo leste em direção à Europa, porque o "centro" do
dieval. Não se percebe que a revolução científica, para
sistema interregional (em seu estádio III) se achava no
usar a linguagem de Kuhn, parte já de uma Modernida­
oeste, na Ásia Central ou na índia. Ir para uma Europa
completamente "periférica"? Este não podia ser um ob­ de iniciada, anterior, como fruto de um "paradigma
jetivo do comércio externo chinês. moderno"3 . Por isso, no século XV (se não levamos em -
conta os inventos europeus posteriores), a Europa não

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tem nenhuma superioridade sobre a China. O próprio nal, que articularam novamente depois das Cruzadas
Needham se deixa levar pelo espelhismo, escrevendo: (que fracassam em 1291) a Europa Ocidental com o
Mediterrâneo. Deve-se considerar as Cruzadas como
"O fato é que no desenvolvimento espontâneo au­
uma tentativa frustrada de ligar-se com o "centro" do
tóctone da sociedade chinesa não se produziu nenhuma
drástica mudança paralela ao Renascimento e à revolução sistema, conexão que os turcos tinham quebrado. As
cidades italianas, especialmente Gênova (rival de Vene­
científica no Ocidente"36.
za que estava presente no Mediterrâneo oriental), tenta­
O colocar o Renascimento e a revolução científica37 vam abrir o Mediterrâneo ocidental ao Atlântico, para
como sendo um mesmo acontecimento (um com início no chegar de novo pelo sul da África ao "centro" do siste­
século XIV e o outro propriamente a partir do século ma. Os genoveses puseram toda a sua experiência na
XVII) evidencia a distorção de que falamos. O Renasci­ navegação e o poder econômico da sua riqueza para
mento é ainda um acontecimento europeu de uma cul­ desbravar esse caminho. Os genoveses ocupam as Ilhas
tura periférica do estádio III do sistema interregional. A Canárias em 131240 e são eles que investem em Portugal
"revolução científica" é o fruto da formulação do para­ e apóiam os portugueses na construção do seu poder
digma moderno, que precisou de mais de um século de naval.
Modernidade para sua eclosão. Escreve Pierre Chaunu: Tendo as Cruzadas fracassado, não podendo contar
"No final do século XV, na medida em que a litera­ com a expansão da Rússia pela tundra (que avançando
tura histórica nos permite compreendê-lo, o Extremo pelos bosques gelados do norte chegarão no século XVII
Oriente como entidade comparável ao Mediterrâneo (...) , ao Pacífico e ao Alasca)41, o Atlântico era a única porta
não parece sob nenhum aspecto inferior, ao menos su­ européia para chegar ao "centro" do sistema. Portugal, a
perficialmente, ao Extremo Ocidente do continente eu- primeira nação euroçéia já unificada no século XI, trans­
roasiático"38. forma a Reconquista 2contra os muçulmanos no começo
de um processo de expansão mercantil atlântica. Em
Repetindo: Por que não a China? Por se achar no 1419 descobrem a Ilha da Madeira; em 1431, os Açores;
Extremo Oriente do "sistema interregional", por olhar o Zaire, em 1482; e em 1498 Vasco da Gama chega à índia,
para o "centro": para a índia no Ocidente. ("centro" do sistema interregional). Em 1415 ocupam a
d. Por que não Portugal? Pela mesma razão. Isto é, por Ceuta africana, muçulmana; em 1448, El-Ksar-es-Seghir;
se encontrar no Extremo Ocidente do mesmo "sistema Arzila, em 1471. Mas tudo isso é a continuação do sistema
interregional", e por olhar também e sempre para o "centro": interregional, cuja conexão são as cidades italianas:
para a India no Oriente. A proposta de Colombo (tentan­ "No século XIII, os genoveses e os pisanos aparecem
do chegar ao "centro" pelo Ocidente) ao rei de Portugal pela primeira vez na Catalunha; no século XIII, quando
era tão descabelada, como também era descabelado para chegam pela primeira vez a Portugal, os italianos se
Colombo pretender descobrir um novo continente (já esforçam para atrair os povos ibéricos para o comércio
que sempre e apenas tentou, e não foi capaz de conceber internacional (...). Por volta de 1317, a cidade e o porto \
outra hipótese, ir para o "centro" do antigo sistema de Lisboa são já um grande centro do comércio geno-
interregional39). vês"43. 6
Como vimos, as cidades renascentistas italianas são Um Portugal com contatos com o mundo islâmico,
o extremo ocidental (periférico) do sistema interregio- com numerosos marinheiros (agricultores expulsos de

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uma agricultura extensiva), com uma economia mone- do acontecer humano). Já abordei o tema inicialmente,
tarizada, em "conexão" com a Itália, abriram novamente em outra obra46. Nela eu mostrava a impossibilidade
a Europa periférica ao sistema interregional. Nem por existencial de Colombo, o genovês renascentista, de se
isso deixou de ser "periferia", nem os portugueses po­ convencer de que aquilo que descobrira não seria a
deriam pretender sair dessa situação, já que Portugal índia. Navegava no seu imaginário sempre perto das
pôde tentar dominar o intercâmbio comercial no Mar costas da Quarta Península asiática (aquela que Heinrich
dos Árabes (o Oceano Índico)44, mas nunca pretenderia Hammer tinha traçado cartograficamente em Roma em
produzir as mercadorias do Oriente (tecidos de seda, 1489 ), sempre perto do "Sinus Magnus" (o Grande
produtos tropicais, ouro do sul do Saara etc.). Isto é, era Golfo dos gregos, mar territorial da China) quando atra­
uma potência intermediária, e sempre "periférica" da vessava o Caribe. Colombo morreu em 1506, sem ter
índia, da China ou do mundo islâmico. superado o horizonte do antigo "sistema interregio-
Com Portugal pisamos na ante-sala, mas não ainda nal" , que nunca conseguiu superar. Não conseguiu
na Modernidade nem no "sistema-mundo" (novo está­ superar subjetivamente o "sistema interregional" - com
dio do sistema que teve origem na relação entre o Egito uma história de 4500 anos de transformações, desde o
e a Mesopotâmia). Egito e a Mesopotâmia - e abrir-se para um novo estádio
do "sistema-mundo". O primeiro que suspeitou de um
e. Por que a Espanha dá início ao “sistema-mundo, e com novo (o último novo) continente foi Américo Vespucci, em
ele à Modernidade? Pela mesma razão que o impedia na 1503, e por isso foi, existencial e subjetivamente, o pri­
China ou em Portugal. Como a Espanha não podia ir para meiro "moderno", o primeiro que desdobrou o horizon­
o "centro" do "sistema interregional" que estava na Àsia te do "sistem a asiático-afro-m editerrâneo" como
Central ou na índia, rumando para o Oriente (os portu­ "sistema-mundo", que incorporava pela primeira vez a
gueses se tinham antecipado, e tinham direitos de exclu­ Ameríndia . Esta revolução de Weltanschauung, do ho­
sividade), pelo Atlântico sul (pelas costas da África rizonte cultural, científico, religioso, tecnológico, políti­
ocidental, até o Cabo da Boa Esperança descoberto em co, ecológico e econômico é a origem da Modernidade, a
1487), só restava à Espanha uma única oportunidade: ir partir de um "paradigma mundial" e não meramente
para o "centro", para a índia, pelo Ocidente, pelo oeste, eurocêntrico. No "sistema-mundo" a acumulação no
cruzando o Oceano Atlântico4 . Por isso a Espanha "tro­ "centro" é pela primeira vez acumulação em escala
peça" com a Ameríndia, a "encontra sem procurar", e mundial50. Neste novo momento do sistema tudo muda
com ela entra em crise todo o "paradigma medieval" qualitativa e radicalmente; também se modifica por den­
europeu (que é o "paradigma" de uma cultura periféri­ tro o próprio "subsistema periférico" europeu medieval.
ca, o Extremo Ocidental do antigo "sistema interregio- O acontecimento fundante foi o descobrimento da Ame­
nal") e inaugura, lenta mas irreversivelmente, a primeira ríndia51 em 1492. A Espanha está preparada para sor o
hegemonia mundial e, assim, do único "sistema-mundo" primeiro estado moderno52!. Pelo descobrimento, come­
que houve na história do planeta, que é o sistema mo­ ça a ser o "centrò" da sua primeira "periferia" (Amerín­
derno, europeu no seu "centro", capitalista na sua eco­ dia) organizando assim o início do lento deslocamento
nomia. Aqui pretendemos situar-nos explicitamente no do "centro" do antigo "sistema interregional" (a Bagdá
horizonte deste "sistema-mundo" moderno, conside­ do século XIII), que tinha a partir da Gênova periférica
rando não só o "centro", mas também a partir da sua (mas integrante ocidental do "sistema") começado a se
"periferia" (e deste modo se obtém uma visão planetária conectar novamente primeiro com Portugal, e agora com

52 53
a Espanha, com Sevilha mais exatamente. Logo se des­ Pudemos ler, entre muitas cartas inéditas do Arquivo
carrega nesta Sevilha a riqueza genovesa, italiana. A Geral das índias, este texto do dia primeiro de julho de
"experiência" do Mediterrâneo oriental, renascentista (e 1550, assinado na Bolívia por Domingo de Santo Tomás:
por ele a do mundo muçulmano, da índia e até da China) "Haverá quatro anos que, para acabar de se perder
se articula assim com a Espanha imperial de Carlos V esta terra, foi descoberta uma boca do inferno , pela
(que chega até a Europa Central dos banqueiros de qual imolam todos os anos grande quantidade de pes­
Augsburgo, até a Flandres de Antuérpia e depois Ams­ soas, que a cobiça dos espanhóis sacrifica a seu deus que
terdã, com a Boêmia, Hungria, Áustria e Milão, e em é o ouro58, e é uma mina de Prata que se chama Potosí"59.
especial com o Reino das Duas Sicílias53, do sul da Itália
até a Sicília, Sardenha, Ilhas Baleares e muitas ilhas do A Ameríndia constitui assim a estrutura fundamen­
Mediterrâneo). Pelo fracasso econômico do projeto po­ tal da primeira Modernidade. De 1492 a 1500 são colo­
lítico do sistema-mundo sob o paradigma de um "impé- nizados cerca de 50 mil km2 (no Caribe, Terra Firme: da
rio-mundo", o do Imperador Carlos V que abdica em Venezuela ao Panamá)60. Em 1515 se perfazem uns 300
1557, abrir-se-á espaço para o "sistema-mundo" do ca­ mil km2 com cerca de três milhões de ameríndios domi­
pitalismo mercantil, industrial e atualmente transnacio- nados. Até 1550, mais de dois milhões de km2 (extensão
nal. maior que a de toda a Europa "centro") e até mais de 25
milhões (cifra baixa) de indígenas61, muitos dos quais
Tomemos como exemplo um nível de análise, entre
são integrados a sistemas de trabalho que produzem
os muitos que se poderiam observar - não gostaríamos valor (no sentido estrito de Marx) para a Europa "cen­
de ser criticados como economicistas, pelo exemplo adu­
tral" (nos regimes de "encomienda", "mita", "hacien-
zido. Não é casual que vinte e cinco anos depois do das" etc.). Será necessário acrescentar, desde 1520, os
descobrimento das minas de prata de Potosí, no Alto escravos das plantações que vêm da África (cerca de 14
Peru, e de Zacatecas, no México (1546) - de onde chegará milhões até o final da escravaturano século XIX, incluin­
à Espanha um total de 18 mil toneladas de prata de 1503 do o Brasil, Cuba e EUA). Esse enorme espaço e popu­
a 166054 - e graças às primeiras remessas desse metal lação dará à Europa, "centro" do "sistema-mundo", a
precioso, a Espanha poderá pagar, entre outras campa­ vantagem comparativa definitiva em face do mundo mu­
nhas do Império, a grande armada que derrotou os çulmano, da índia e da China. Por isso, no século XVI:
turcos em 1571, em Lepanto, e com isso se ganhava o
domínio do Mediterrâneo como conexão com o "centro" "A periferia (Europa Oriental e a América espanhola)
do antigo estádio do sistema. No entanto, o Mediterrâ­ utilizava trabalho forçado (escravidão e trabalho obriga­
neo tinha morrido como o caminho do "centro" para a tório) [do índio] em lavouras para o mercado [mundial].
; "periferia" ocidental, porque o Atlântico se estava estru- O centro utilizava, cada vez mais, mão-de-obra livre .
i \turando como o "centro" do novo sistema-mundo55.
Mas logo o "centro" vai mudar de Sevilha para
Eis o que diz Wallérstein: Amsterdã.
"O ouro e a prata eram procurados como objetos /. A segunda Modernidade. A colônia espanhola de
preciosos, para o seu consumo na Europa e mais ainda Flandres vai tomar o lugar da Espanha como potência
para o comércio com a Ásia, mas eram também uma hegemônica do "centro" do recente "sistema-mundo" -
necessidade para a expansão da economia européia" . liberta-se da Espanha em 1610 - Sevilha, o primeiro
porto moderno (em relação a Antuérpia), após mais de

54 55
um século de esplendor, dará lugar a Amsterdã63, potên­
cia naval, pesqueira, artesanal, por onde se escoa a ex­ e, como síntese, nova atitude econômica (prático-produ-
portação agrícola, de grande perícia nos mais diversos tiva).
ramos da produção. E esta cidade termina, entre outros
aspectos, quebrando Veneza64. Depois de mais de um Ao encerrar esta nossa exposição, desejamos indicar
século, a Modernidade mostrava já nesta cidade uma que lentamente nasceram no "sistema-mundo" outras
urbe com fisionomia própria definitiva: seu porto, os formações sociais periféricas"71:
canais que como vias comerciais chegavam às casas dos "A forma das formações periféricas dependerá, afinal
burgueses, comerciantes (que usavam seus terceiro e de contas, a um tempo da natureza das formações pré-
quarto andares como despensas, de onde se servia por capitalistas agredidas e das formas de agressão exte­
guindastes diretamente aos barcos); mil pormenores de rior"72.
uma urbe capitalista65. A partir de 1689, a Inglaterra vai
Elas serão, no final do século XX, as formações peri­
disputar e terminar se impondo sobre a hegemonia ho­
féricas latino-americana73, a da África bantu, a do mun­
landesa - que todavia terá sempre que compartilhar com
do muçulmano, da índia e do Sudeste Asiático74. A estas
a França até 1763 pelo menos . seria necessário acrescentar parte da Europa Oriental
Esta segunda Modernidade da Europa anglo-germâ- antes do colapso do socialismo real. A China manterá
nica, que principia com a Amsterdã de Flandres, passa uma posição ex-cêntrica: nunca propriamente periférica,
muitas vezes por ser a única Modernidade (na interpre­ mas não tampouco central.
tação de Sombart, Weber, Habermas ou dos próprios
pós-modernos), o que produzirá uma "falácia reducio- Esquema 1.
UM EXEMPLO DA ESTRUTURA "CENTRO" E "PERIFERIA"
nista" que oculta o sentido da Modernidade e, por isso, COLONIAL (SÉCULO XVIII) NO "SISTEMA-MUNDO"
o sentido da sua atual crise. Esta segunda Modernidade, PERIFERIA LATINO-AMERICANA
para poder "gerir" o enorme "sistema-mundo" que logo
se abre diante da pequena Holanda67, que de colônia PERIFERIA LATINO-AMERICANA CENTRO EUROPEU
espanhola se situa agora no "centro" do sistema-mundo,
deve efetuar ou aumentar a sua eficácia por simplificação.
É necessário realizar uma abstração (favorecendo o
quantum em detrimento da qualitas), que deixa de fora
muitas variáveis válidas (variáveis culturais, antropoló­
gicas, éticas, políticas, religiosas: aspectos que são valio­
sos ainda para o europeu do século XVI), que não
permitiam uma adequada, "factível"68 ou tecnicamente
possível "gestão" ou "gerenciamento" (management) do
sistema-mundo69. Esta simplificação da complexidade70
abrange a totalidade do "mundo da vida (Lebenswelt)",
da relação com a natureza (nova posição ecológica e Observações ao Esquema 1: flechas a: dominação e
tecnológica, não teleológica), diante da própria subjeti­ exportação de bens manufaturados; flechas b: transfe­
vidade (nova autocompreensão da subjetividade), dian­ rência de valor e exploração do trabalho; A: estados
te da comunidade (nova relação intersubjetiva e política) "centrais"; B: estados semiperiféricos; C: formações pe­

56
57
riféricas; D: exploração do trabalho indígena ou do es­ co até o Mar Báltico entra em movimento (já que o
cravo; E: comunidades étnicas excluídas do "sistema- Atlântico será o novo "centro" do primeiro sistema-
mundo"75. mundo). O sistema-mundo produz uma nova cultura (a
Modernidade), e também uma reforma religiosa (o pro­
testantismo). A Reforma luterana, se não se tivesse situa­
do dentro do fenôm eno da in stalação de um
sistema-mundo sobre o Atlântico, não teria sido mais
3. História do fenômeno religioso na América La­
que uma entre outras muitas rebeliões proféticas (das
tina
muitas que tinham ocorrido na Idade Média). A Igreja
européia latino-germânica, só diferente até esse momen­
Vamos tentar, mais uma vez, empreender a reinter- to da bizantina e oriental, parte-se em duas. Foi um dos
pretação do fenômeno religioso latino-americano, le­ primeiros efeitos do novo sistema-mundo. O protestan­
vando em conta as hipóteses que propusemos no tismo, por seu turno, provoca o aparecimento de outro
parágrafo anterior. Acredito que os temas aparecem ago­ fenômeno moderno: o "catolicismo." ou a contra-refor-
ra noutra perspectiva - diferente ainda daquela que eu ma (que é posterior, então, ao protestantismo). A Améri­
mesmo expus tantas vezes em minhas diversas obras ca será conquistada pela primeira onda expansionista
históricas. européia em geral de toda a sua história, primeira saída
a. O catolicismo oficial periférico da primeira Modernida­ para fora do seu horizonte cultural (e a conquista do
de. Neste breve parágrafo desejo falsear algumas teses México por Hernán Cortés será a primeira ocupação
tradicionais em história. Primeira: o protestantismo não pela Europa de um reino exterior a suas fronteiras his­
é causa, mas efeito da Modernidade; segunda: o catoli­ tóricas). Os novos povos conquistados serão religiosa­
cismo é posterior e não anterior ao protestantismo; ter­ m ente dom inados pela Igreja da cristan d ad e
ceira: o catolicismo latino-americano não é a expansão latino-germânica, não ainda católica. O "catolicismo",
do catolicismo espanhol, mas vai nascendo junto com talvez possamos assim dizer, é um fruto religioso poste­
ele, e é hegemônico em todo um âmbito cultural antes rior ao começo do desencadear-se do sistema-mundo, no
mesmo da própria Espanha; quarta: a religião oficial século XVI, posterior e como reação diante do fenômeno
convive com a religião dos dominados e excluídos. protestante, e tem a sua origem na simultânea constitui­
ção da cristandade hispano-luso-americana (na qual se
Se a estruturação do primeiro sistema-mundo come­ deve incluir no "centro" Espanha e Portugal; e na sua
ça em 1492, e esta implantação provoca um impacto ad "periferia", como um único fenômeno, a América hispa-
intra em toda a Europa, pode-se entender que o fenôme­ no-lusitana, que é a única que conta realmente nesse
no do protestantismo (que tem seu início um quarto de século da História mundial). Começa então a primeira
século depois de 1492, com a proclamação de Lutero em Modernidade, a do "Império-mundo" de Carlos V, como
Erfurt, em 1517) é já uma repercussão interna no centro fenômeno religioso.
e norte do continente europeu, que antes somente pelas
cidades renascentistas tinha tomado contato com o anti­ O catolicismo oficial latino-americano (hispano-lu-
go sistema interregional (através do Reno, rumo ao sul, sitano) não é então um novo tipo de catolicismo, mas se
Ausburgo, a confederação helvética, em direção à Itália encontra na própria origem do catolicismo (como peri­
do Mediterrâneo e dali para o Oriente Médio e a índia). feria sua76), cujo centro é em primeiro lugar a própria
Agora a Europa Central e situada desde o Mar Cantábri- Espanha (por ser o centro do novo sistema-mundo), e

58 59
posteriormente toda a Europa do sul, que não se conver­ dominação e a exploração das riquezas encontradas. O
terá ao protestantismo (incluindo a Itália e os Estados "sistema-mundo" se instala rapidamente: encomeiendas,
pontifícios), e que terá no Concílio de Trento a sua pri­ mitas, minas, fazendas, escravos, caminhos, fortes, igre­
meira institucionalização. Trento é o primeiro Concílio jas, reduções, doutrinas, paróquias, cidades, dioceses,
católico, fruto da primeira Modernidade. Expresso deste portos, rotas marítimas... o primeiro mercantilismo
modo o fenômeno religioso, acho que tem uma fisiono­ mundial que, pela Espanha, une a Europa com o Caribe,
mia completamente nova em relação a todas as interpre­ pelo Panamá com o Peru até o Chile, e por Acapulco no
tações anteriores. México com as Filipinas, na Ásia. E por Portugal une a
Europa com o Brasil, a costa ocidental e oriental da
O fenômeno religioso que se inaugura desde o fim
África, Goa, Colombo, Indochina e Macau, na China, e
do século XV na América Latina, o primeiro catolicismo
até o Japão (onde já chegou Francisco Xavier). "Sistema-
periférico (haverá outros parcialmente na África e na
mundo", destruição de oposições militares, conquista de
Ásia, mas não como "cristandade", que agora pode ser
povos e nações, dominação de culturas, processo de
entendido como um "regime religioso" sui generis), per­
"endoutrinamento" dentro do "catolicismo" oficial nas­
mite à Igreja européia latino-germânica escapar do hori­
cente - compensando a perda do centro e do norte
zonte de uma cultura secundária e periférica do mundo
europeu convertido em protestante com os novos cristãos
muçulmano, o que a abre para uma experiência plane­
ameríndios, como sonham em seu milenarismo ingênuo
tária que a transforma internamente (sem autoconsciên­
os bravos franciscanos - e exclusão dos que não se
cia, já que projetará rapidam ente, por um jogo
rendem (como os Mapuches no sul do Chile) ou os
ideológico sutil, a nova "centralidade" adquirida para o
insignificantes mercantilmente valorizados (como mui­
passado, reinterpretando toda a sua história como se
tos mayas, amazônidas ou muitos outros). O fenômeno
houvesse sempre sido o "centro" da história mundial77),
religioso oficial fica então definido pela negação radical
e considerando a expansão para a América como uma
(a "tabula rasa") das antigas religiões que são demonía­
prova ulterior de sua "antiga" ecumenicidade. Na reali­
cas ou satânicas, principalmente em suas estruturas
dade, nunca foram empiricamente ecumênicos nem a
igreja européia nem o catolicismo. mais conscientes (seus templos, lugares de culto públi­
cos e privados, calendários, escolas de sábios, teologias
A "Cristandade das índias" ocidentais se desenvolve explícitas, interpretação da vida cotidiana, ritos, danças,
com uma lógica que irá evoluindo ao longo de três organização agrícola-sagrada etc.), e pela implantação
séculos. O europeu, graças à superioridade tecnológica violenta do "catolicismo" (nova vivência religiosa que
militar (não assim com relação à África e à Ásia que têm será mais estruturada e mais antiprotestante à medida
o cavalo e o ferro, e por isso só serão "conquistadas" que transcorre o século XVI, que é justamente o tempo
continentalmente no século XIX, posteriormente à revo­ da implantação da Igreja católica com suas estruturas
lução industrial), derrota o poder estabelecido nos im­ institucionais). O processo triunfal dura de 1492 a 1620
périos, reinos, culturas ou etnias que o enfrentam. A aproximadamente. Nesta última data começa o declínio
Ameríndia, não tendo superado a época calcolítica (e da exploração das minas de prata, fundam-se as últimas
não usando armas de metal), é facilmente derrotada. dioceses ao sul (Buenos Aires) e ao norte (Durango)
Uma teologia eurocêntrica - da qual Ginés de Sepúlveda durante toda a época colonial, em 1623 se organiza como
é o exemplo católico espanhol, mas é fácil encontrar contrapeso do Padroado a Propaganda em Roma, aconte­
exemplos flamengos, franceses ou ingleses - justifica a ce além disso algo antes da emancipação de Flandres, e

60 61
em 1630 pode situar-se o início da hegemonia de Ams­ "império-mundo", e sim de outro método de penetra­
terdã sobre Sevilha. A "siesta provinciana" irá prolon- ção. Em Pernambuco, no Brasil, durante algum tempo;
gar-se por m uito tem po sobre a p eriferia no Caribe, de maneira notável - os holandeses em Cu-
latino-americana de uma semiperiférica Espanha e Por­ raçao, os ingleses a partir da expedição de Cromwell, em
tugal que, abortando as condições de possibilidade da 1655, na Jamaica - e posteriormente a presença de pres­
futura revolução industrial, deixarão a outras potências biterianos escoceses na Nova Inglaterra, com metodistas
como "centrais" do sistema-mundo, a segunda Moder­ também desde a reforma wesleyana. O protestantismo
nidade. será visto na América Latina colonial continental como
um perigo, perseguido pela Inquisição. 5<Tcom a eman­
De todo o modo, é evidente, o fenômeno religioso
cipação da Espanha e de Portugal é que se passa a
católico oficial será preponderante nas cidades (de onde
depender das potências anglo-saxônicas, e o fenômeno
se exerce a dominação), no mundo dos brancos e mesti­
protestante tem a sua oportunidade na segunda metade
ços . Aqui a liturgia latina, as devoções peninsulares e
do século XIX, ligado aos liberais, aos movimentos de
suas derivações crioulas campeiam vigorosas. À medida
tolerância e às sociedades maçónicas. Com um projeto
que nos vamos afastando desses centros, no "campo",
antioligárquico e anticorporativo, o protestantismo libe­
nas regiões indígenas ou afastadas (o "sertão" ou "hin­
terland") os antigos cultos ameríndios, sem suas estru­ ral estimulava alguns dos ideais (e limitações) da segun­
da M od ern id ad e, em esp ecial nas in stitu içõ es
turas antigas mais conscientes, sobrevivem em amplo
espectro sincrético. Daí surge a extrema complexidade pedagógicas e pelo espírito democrático liberal.
do catolicismo popular latino-americano79. Sendo um cristianismo oficial periférico, dependia
sempre das Igrejas históricas mães do norte. A crise de
O processo de globalização do sistema-mundo do­ 1929 induz um processo de autonomização e implanta
mina, porém ao mesmo tempo exclui. Reorganiza a vida, um protestantismo mais ligado às camadas populares -
mas ao mesmo tempo cria um caos impossível que não a partir de experiências iniciadas anteriormente.
se pode superar; destrói a organização familiar mestiça
e indígena (até hoje a maioria da progénie mestiça tem Esquema 2
procedência extramatrimonial) o . do escravo negro (na SISTEMA-MUNDO, DOMINAÇÃO E EXCLUSÃO
Jamaica, 70% da população são filhos e filhas "natu­
rais").
PERIFERIA - B CENTRO SISTEMA-MUNDO
b. O protestantismo periférico da segunda Modernidade. (globalização)
Da mesma maneira, a reforma religiosa da segunda
B B B
Modernidade leva um certo tempo para poder instalar-
se fora da Europa do norte. Com a Holanda começa no A. Latina África Ásia
século XVII uma discreta presença calvinista em suas EXCLUSÃO
colônias, a da Companhia das índias Ocidentais funda­ C C C
da em 1621 . O método é o do mercantilismo: ocupa-se
um porto, faz-se comércio, não se trata de uma conquista
territorial no princípio. Na Nova Holanda, porém (pos­
teriormente, Nova Inglaterra), agir-se-á como na con­ Esclarecimentos do Esquema 2: A: presença de mi­
qu ista da A m érica Latina. Já não se trata do norias da América Latina, Africa e Ásia nos países cen-

62 63
A Igreja católica irá sucessivamente retomando este •
trais (hispanos ou afro-americanos nos EUA, turcos na controle, em especial desde que se toma consciência da
Alemanha, marroquinos na França etc.); B: estrutura pastoral popular, depois do Concílio Vaticano II e de
propriamente periférica dos três. continentes (domina­ Medellín. A experiência das Comunidades Eclesiais de
ção); C: exclusão e pauperização de boa parte da popu­ Base permite à religião do povo dos dominados partici­
lação mundial pelo processo de globalização do par ativamente na sua própria religiosidade. No entanto,
sistema-mundo na A. Latina, África e Asia. aos poucos, a Igreja oficial consegue ir enquadrando as
c. A religião dos dominados na periferia globalizada. Da experiências dentro da vida paroquial tradicional e o elã
mesma maneira, a Modernidade supõe na sua definição dos anos '60 e '70 começa a se perder. A passividade
os bárbaros, os modernizados, os dominados: os campo­ quanto a cumprir responsabilidades de liderança e a não
neses, o povo mestiço e o afro-latino-americano, depois ordenação de homens casados entre o povo católico no
os operários e marginais urbanos. A partir da conquista nível popular, dá aos grupos pentecostais e evangélicos
a religião oficial católica foi sendo paralelamente prati­ uma enorme presença entre o povo mestiço, o que leva
cada por todo um povo de dominados, que deram ori­ a pensar que no princípio do século XXI boa parte do
gem ao catolicismo popular e muitas vezes outros tipos povo dos pobres será participante ativo de uma religião
religiosos (assim como os subcultos afro-americanos do popular administrada por eles mesmos.
vudu, a macumba ou o candomblé). São cultos sincréti-
cos, criativos, próprios de um povo no qual as institui­ O fenômeno massivo da marginalidade nas grandes
ções religiosas estruturadas não chegaram a influir cidades, a anomia da vida dos empobrecidos, vai cons­
cotidianamente. O fenômeno do protestantismo, em ple­ tituindo uma nova fisionomia à qual as Igrejas oficiais
no século XX, produz por seu lado os pentecostalismos não conseguem responder com a profundidade e a pron­
e outros tipos de seitas (quando são originárias) da tidão necessárias. Á religião dos oprimidos percorre en­
América Latina, que devem igualmente ser considera­ tão cam inhos novos e próprios, fora dos canais
das como religião dos dominados81. institucionais.
Uma história dessa religiosidade deve remontar até d. A religião dos excluídos da globalização. Na definição
o próprio início da conquista, porque ali a religiosidade da globalização Modernidade se "incluem os excluí­
popular da península ibérica principia o seu sincretismo dos", embora pareça paradoxal - pois, por definição, a
com as religiões ameríndias, e o mestiço será o sujeito Modernidade, ao que se supõe, os produz sistematica­
privilegiado desta. Florescente na época colonial, auto- mente. Os povos autóctones depois da conquista ficarão
nomiza-se da instituição oficial durante a primeira parte como testemunhas da violência da Modernidade, e da
do século XIX, e quando na sua segunda metade começa impossibilidade de globalizá-los.
a "romanização" da Igreja latino-americana, acentuar- Entre os náuatles do México, o conceito comunitário
se-á ainda mais a separação até se transformar em uma fundamental se expressava pela palavra Altepetl - in
autêntica religião paralela à qual a Igreja oficial romana atl, in tepeth "na água, na montanha" - um território mas
não tem acesso propriamente dito. O povo latino-ame­ também fundamentalmente um povoado, como as anti­
ricano terá um certo controle dessa religião. A crise pelo gas "cidades-estados" da Antigüidade que podiam ser
fato de se retomar o poder sobre a religiosidade popular pequenas aldeias ou vilarejos (towns), confederações sob
(por exemplo no Brasil por parte da hierarquia episcopal o poder de uma aldeia ou povoado (tozon) principal, e
contra as confrarias antigas) indica este fenômeno da até o próprio império asteca como totalidade. Era uma
coexistência de suas religiões.

65
64
"comunidade" sui generis, que tem a ver com o conceito regras tradicionais do altepetl63: não houve nem "conver­
de "pueblo" na América Latina (diferente do castelhano são" nem "resistência", mas outra coisa. Houve coinci­
da Espanha, do people inglês ou do Volk alemão). A dência entre a atitude do espanhol e a do altepetl: não
liderança é exercida dinasticamente por um tlatoani (ca­ precisavam ser convertidos (sabendo que seus deuses
cique, chefe ou rei) que representa a etnia ou o grupo tinham sido derrotados84), mas necessitavam de ser "ins­
totêmico de clãs ou famílias (calpolli: "casa grande", de truídos" (sobre os deuses "vencedores"), como era a tra­
quarenta, oitenta ou mais de cem casas de família). Um
dição nesses casos. O altepetl "sabia" tudo: como
templo, um deus totêmico principal, nobres, guerreiros,
funcionam os deuses, como se lhes presta culto, como os
sacerdotes, sábios, comerciantes, festividades, ritos, có­
fiéis devem comportar-se, tudo. Só desejavam "conhe­
digos rememorativos dos mitos originários, deveres,
cer" as particularidades dos "novos" (sempre houvera
direitos... Tudo isso era o "pueblo (altepetl) de Xochimil-
outros antes) deuses invasores. Construíram os templos
co" ou de "Iztapalapa". Um "pueblo" como nação (com
cristãos com o mesmo entusiasmo, organização e cola­
território, tradições e talvez uma cidade como capital).
boração como tinham construído os antigos templos:
O espaço era organizado em duas partes opostas (o Omé
como expressão da soberania e do esplendor do altepetl.
originário) primeiras, e depois em oito partes (tlayacatl, O "fiscal-mor" - indígena principal responsável pelo
que os espanhóis denominaram "parcialidades"), sime­ culto - das "doutrinas" ou paróquias (coincidindo exa­
tricamente organizadas como os "quatro Tezcatlipocas"
tamente com o altepetl) funcionava como antes da con­
(por ordem de antigüidade e de acordo com os pontos
quista: era um "templo do povo" (teopantlaca) . As
cardeais), ordenados e rotativos nas funções de todo
confrarias expressavam igualmente o espírito comuni­
tipo. Sendo excluídos da "república dos espanhóis", o
tário dos diversos grupos do altepetl.
conceito de "pueblo" (altepetl) ganhará a partir do século
XVI um sentido de comunidade, nação, cultura, religião Os náuatles, otomies, zapotecas, maias, chibchas,
dos dominados-excluídos (o próprio crioulo ou o mesti­ quíchuas, aymarás, mapuches, amazônidas... são teste­
ço receberá uma contaminação semântica ao dizer: pouo munhas de uma história milenar, história religiosa ante­
latino-americano, povo mexicano, povo dos pampas). Tra- rior à conquista, à implantação da modernidade,
ta-se então do nosso tema da religião do altepetl, que em excluídos da globalização e no entanto presente hoje nos
cada região de todo o continente latino-americano rece­ movimentos indígenas desde o Equador até Chiapas.
beu outro nome, mas se tinha a mesma experiência de Urge uma nova atitude diante dos povos originários, e
"pertença" e "organização" da vida comunitária. Tanto será necessário no futuro levá-los em conta em nossos
as "encomendas" como as "doutrinas" ou paróquias se estudos históricos do fenômeno religioso. .
organizaram em cima do altepetl preexistente. O santo Queremos terminar com uma citação que nos recor­
padroeiro tomou o lugar do antigo totem; a igreja colo­ da esta responsabilidade:
nial, o lugar da pirâmide dos ritos ancestrais; o calendá­
rio cristão se sobrepôs ao antigo calendário que "Meu nome é Rigoberta Menchú. Tenho vinte e três
continuou vigorando (em festas, tipos de comidas, bên­ anos. Quero dar este testemunho vivo que não aprendi
çãos e maldições, agouros...). O altepetl subsistiu em em nenhum livro e que tampouco aprendi sozinha, já
muitas partes até hoje no México, na Guatemala, em que tudo isto aprendi com o meu povo ('pueblo') e é algo
partes da Colômbia, do Equador e Peru, da Bolívia... A que eu gostaria de enfocar"86.
"aceitação" da nova religião foi efetivada segundo as No presente, pelo processo de globalização do capi ­
talismo transnacional em sua etapa neoliberal, os excluí-

66
67
dos irão crescer em número, e muitos que antes eram BRENNER, Rober, 1983, "Das Weltsystem. Theoretische und
Historische Perspektiven", em: J. BLASCHKE (Ed.), Pers­
somente dominados passarão para essas multidões
pektiven des Weltsystems, Campus Verlag, Frankfurt, p.
"fora" do moderno sistema-mundo.
80-111.
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uma das que se deve considerar.
scoperta, Istituto Geográfico de Agostini, Novara.
6. Cf. DUSSEL, 1983, p. 85s.
THOMPSON, William, 1989, On global War: Historical-Structu­
7. Cf. o Seminário de 1981; CEHILA, 1982.
ral Approaches to World Politics, University of South Caro­
8. Cf. o Seminário Anual de 1982: CEHILA 1987, e um Seminário no
lina Press, Columbia.
Caribe (cf. HURBON, 1989).
TILLY, Charles, 1984, Big Structures, Large Processes, Russell 9. Cf. o Seminário Anual de CEHILA de 1983: publicado em CEHILA,
Sage Foundation, New York. 1984.
10. Teve lugar em 1987, em La Paz (Bolívia), um Seminário sobre "Cam­
VERLINDEN, Charles, 1953, "Italian influence in Iberian co­ pesinato, terra e Igreja". Algumas de suas conferências foram publicadas em:
lonization", em: Hispanic Historical Review, 18, 2, p. 119- Cristianismo y Sociedad (México) 96 (1988).
209.
11. Realizou-se em São Paulo, em 1986, um Seminário anual sobre "A
classe operária na história da Igreja na América Latina", e alguns de seus
WALLERSTEIN, Imm anuel, 1974, The Modern trabalhos foram publicados em: Revista Mexicana de Sociologia 3 (1987), e em:
World-System, Academic Press, New York, 1.1 (1974)-III Christus (México) 603-604 (1987).
(1989) (ed. cast. Siglo XXI, México, 1.1 (1979)-). 12. Também se efetuou um Seminário, em 1988, em Buenos Aires, sobre
este tema, e foram publicadas algumas de suas palestras em: Revista Eclesiás­
WALLERSTEIN, I., 1984, The Politics fo r the World-Economy, tica Brasileira 48,192 (1988).
Cambridge University Press, Cambridge.
13. Cf. APEL, 1973, e HABERMAS, 1981.
WEBER, M., 1956, "Vorbemerkungen zu den Gesammelten 14. A obra recente de Paulo FREIRE, 1993, mais uma vez nos recorda a
Aufsätzen zur Religionssoziologie", em: Soziologie. Welt­ metodologia de articulação do "intelectual orgânico".
geschichtliche Analysen, Kroner, Stuttgart, p. 340-356. 15. Eduardo HOORNAERT, ao longo dos vinte anos da CEHILA insistiu,
em numerosos trabalhos, sobre a importância dos "destinatários" da obra da
WOLFF, Eric, 1988, Europe and the people without History, Uni­ CEHILA: o povo dos pobres.
versity of California Press, Berkeley.
16. Título da obra de PRIEN, 1985.
ZUNZUNEGI, ]., 1941, "Los origenes de las misiones en Is 17. LAMPE, 1994, p. 14. E acrescenta: "É mais ecumênico, porque se pode ,
Islas Canarias", em: Revista Espanola de Teologia, I, p. 364- aplicar a qualquer grupo religioso, incluindo as religiões afro-antilhanas.
370. Responde não só às exigências da disciplina histórica, permitindo uma análise
da comunidade religiosa em termos de poder, que é uma característica
estrutural de todas as relações de interdependência entre seres humanos,
como também às teológicas, reconhecendo a autonomia das idéias e funcio­
nários religiosos. Supera o mito do progresso, sem cair num estaticismo, pois
o termo regime sugere dinâmica, momentos de crescimento e crise, de onde
Notas pode sair fortalecido ou enfraquecido. E o uso do conceito regime religioso não
induz confusão pela falta de clareza sobre o conceito de Igreja. O termo regime
1. Cf. DUSSEL, 1967. Esta obra é fruto de um debate com Paul Gauthier, sugere que tem de enfrentar problemas de coesão interna e que portanto não
em Nazaré, em 1959: ele me desafiou perguntando: "Quem é o pobre: Pizarro é homogêneo" (p. 14-15).
ou os índios?", quando ouvia o meu relato sobre as "proezas" de um punhado
18. Como uma "substância" inventada na Europa e que se "expande"
de guerreiros espanhóis na conquista do Império incaico.
pelo mundo inteiro. É uma tese metafísico-substancialista e "difusionista",
2. Cf. DUSSEL, 1983, p. 51s: "Los fundadores de la historia de la Iglesia mas encerra uma "falácia reducionista".
por países".
19. "Auf dem Boden" significa dentro do seu horizonte regional. Quere­
3. Cf. DUSSEL, 1983, p. 34s. mos provar que na Europa se efetuou um desenvolvimento como "centro" de
um "sistema mundial" na Modernidade, e não como um sistema independente
4. Veja em: DUSSEL, 1967, todo o marco teórico, e o enfoque na periodi­
"só a partir de si mesmo" como fruto de mero desenvolvimento interno, como
zação e no argumento central da obra: a "cultura" era o eixo de toda a
pretende o eurocentrismo.

72 73
33. A primeira burocracia (com alto grau de racionalização weberiana da
20. Este "nós" são, exatamente, os europeus "eurocêntricos". política) é a estrutura dos mandarins como instituição estatal no exercício do
21. Em Max WEBER, 1956, p. 340. E continua: "Nem a evolução científica, poder. Os mandarins não são nobres, nem guerreiros, nem tampouco aristo­
nem a artística, nem a do estado, nem a econômica levaram por aqueles cracia plutocrática ou comercial; são, estritamente, uma elite burocrática, cujos
caminhos de racionalização (Rationalisierung) que são próprias do Ocidente" exames se baseavam exclusivamente no domínio da cultura e das leis do
(ibidem, p. 351). Para isso, Weber se confronta com os ^abilônios que não Império chinês.
sistematizaram a astronomia, em compensação os gregos o fizeram (mas 34. William de BARY indica que o individualismo de Wang Yang-ming,
Weber não sabe que os gregos aprenderam com os egípcios); ou que a no século XV, que exprimia a ideologia da classe burocrática, era tão avançada
"ciência" surgiu no Ocidente, em face da índia, China etc., mas esquece de
como a renascentista (BARY, 1970).
citar o mundo muçulmano, de onde o Ocidente latino aprendeu em Aristóte-
leis a atitude "experimental", empírica (como os franciscanos de Oxford, ou 35. Em muitos exemplos, Thomas KUHN (KUHN, 1962) situa a revolu­
os Marsílios de Pádua) etc. Sempre se poderia falsear cada argumento heleno- ção científica moderna, fruto da expressão do novo paradigma, praticamente
e eurocêntrico de Weber, se tomamos o ano de 1492 como a última data de com Newton (século XVII). Não estuda mais demoradamente o impacto que
comparação entre a pretensa superioridade do Ocidente em confronto com as poderiam ter sobre a ciência, na "comunidade científica", no século XVI, a
outras culturas. partir da estruturação do primeiro "sistema-mundo", fatos como o descobri­
mento da América, a esfericidade da terra provada empiricamente a partir de
22. Conforme Hegel, em: HABERMAS, 1988, p. 27 (ed. cast., p. 29).
1520 etc.
23. O "sistema-mundo" ou sistema mundial é o estádio IV do mesmo
36. NEEDHAM, 1963, p. 139.
sistema interiegional do continente asiático-afro-mediterrâneo, mas agora -
cbrrigindo a conceptualização de A. G. FRANK - factualmente "mundial". 37. A. R. HALL situa a revolução científica a partir de 1500 (cf. HALL,
Cf. FRANK, 1990. Além disso, consulte-se sobre o problema do "sistema-mun­ 1954).
do": ABU-LUGHOD, 1989; BRENNER, 1983; HODGSON, 1974; KENNEDY,
1987; MCNEILL, 1964; MODELSKI, 1987; MANN, 1986; STAVARIANOS, 38. Pierre CHAUNU, 1955, t. 8/1, p. 50.
1970; THOMPSON, 1989; TILLY, 1984; WALLERSTEIN, 1974 e 1984. 39. Colombo factualmente será o primeiro homem moderno, mas não
24. Neste ponto, já o dissemos, não estamos de acordo com A. G. FRANK, existencialmente (já que por sua interpretação do novo mundo continua sempre
que chama de "sistema-mundo" os anteriores momentos do sistema (que por sendo um renascentista genovês: membro de uma Itália periférica do "sistema
isso designamos como "sistema interregional"). interregional" III). Cf. TAVIANI, 1982; 0'GORMAN, 1957.

25. WALLERSTEIN, 1974,1, cap. 6. 40. Cf. ZUNZUNEGUI, 1941.

26. Ibidem, II, cap. 4 e 5. 41. A Rússia não se achava ainda integrada como "periferia" no estádio
III do sistema interregional (e tampouco ao sistema-mundo moderno, a não
27. Ibidem, III, cap. 3. ser pelo século XVIII, com Pedro o Grande e a fundação de São Petersburgo
sobre o Báltico).
28. Cf. LATTIMORE, 1962; ROSSABI, 1982. Para a compreensão da
situação do mundo em 1400, cf. WOLFF, 1982, p. 24s. 42. Já em 1095 Portugal tem o status de reino. No Algarve, 1249, a
Reconquista termina nesse reino. Henrique o Navegador (1394-1460) reúne
29. Estive em Masamba, e observei no museu desta cidade portuária do
como um mecenas a ciência cartográfica, astronômica e as técnicas de nave­
Quênia porcelana chinesa nas vitrines - da mesma forma que vistosos relógios
gação e de construção de navios, procedente do mundo muçulmano (com o
e outros objetos de igual procedência.
qual tem contatos através de Marrocos) e do Renascimento italiano (por
30. Há outra razão para a sua não expansão externa: a existência de Gênova).
"espaço" nos territórios circunvizinhos do Império, que ocupou todas as suas
43. WALLERSTEIN, I, p. 71 (ed. cast.). Cf. VERLINDEN, 1953; RAU,
forças na "conquista do Sul" por meio do novo cultivo do arroz e sua defesa
1957.
"do Norte" bárbaro. Cf. WALLERSTEIN, 1974,1, ed. cast., p. 80s, com bons
argumentos contra o eurocentrismo de Weber. 44. Cf. CHAUDHURI, 1985.
31. Por exemplo, Joseph NEEDHAM, 1961,1963 e 1965. Tudo isto com 45. Meu argumento talvez pareça o mesmo de BLAUT, 1992, p. 28s., mas
relação ao timão dos barcos, que os chineses dominavam desde o século I dC. é diferente. Não que a Espanha estivesse geograficamente "mais perto" da
Também se sabe sobre o uso da bússola, do papel, da pólvora e outras Ameríndia. Não. Não se trata de um problema de distâncias. É isso e muito
invenções chinesas. mais. A Espanha tinha que passar pela Ameríndia, não somente porque estava
mais perto (o que certamente acontecia, sobretudo com respeito às grandes
32. Talvez a única desvantagem tenha sido a caravela portuguesa (inven­
culturas asiáticas, embora não no caso da turco-muçulmana que chegava até
tada em 1441) para sulcar o Atlântico (não necessária no Indico) e o canhão.
o Marrocos), mas porque era o caminho obrigatório para o "centro" do
Este último, espetacular, mas de fato fora das batalhas navais, nunca teve
efeito real na Ásia até o século XIX. Cario CIPOLLA, 1965, às p. 106-107, "sistema" - questão que Blaut não aborda -. Além disso, e por outro lado, a
escreve: "As armas de fogo chinesas foram pelo menos tão boas como as minha tese é também diferente da de André GUNDER FRANK (BLAUT, 1992,
ocidentais, se não melhores". p. 65-80), porque para ele o ano de 1492 é apenas uma mudança secundária

74 75
interna do mesmo sistema-mundo. Mas caso se pense que o "sistema interre- da edição impressa antes do fim do séculp XV; com um poder militar que lhe
gional", na sua etapa anterior a 1492, é o "mesmo" sistema, não ainda porém permite recuperar Granada em 1492; com a riqueza econômica dos judeus,
como sistema "mundial", o ano de 1492 ganha maior importância que a muçulmanos, andaluzos, cristãos da reconquista, catalães com suas colônias
concedida por Frank. Embora o sistema seja o mesmo, ocorre um salto quali­ no Mediterrâneo, e genoveses; com artesãos procedentes do antigo califado
tativo (que, entre outros aspectos, está na origem do capitalismo propriamen­ de Córdoba..., a Espanha está longe de ser no século XV o país semiperiférico
te dito, ao qual Frank nega importância, por negar antes relevância a conceitos da segunda metade do século XVII - única visão com a qual se recorda da
tais como "valor", "mais-valia" e por isso atribui o ser "capital" à "riqueza" Espanha o europeu do centro, um Hegel ou um Habermas, por exemplo.
(valor de uso com possibilidade virtual de se apresentar como valor de troca, 53. A luta entre a França e a Espanha de Carlos V, que deixou esgotadas
mas não como capital) acumulada nos estádios I-III do sistema interregional. as duas monarquias, com o colapso econômico de 1557, se travou sobretudo
É uma questão teórica grave. na Itália. Carlos V chegou a se apoderar de três quartos da Península. Deste
46. DUSSEL, 1995. modo a Espanha transferia para o seu solo as conexões com o "sistema"
através da Itália. Daí tantas guerras com a França: a riqueza, a experiência de
.
47 Cf. DUSSEL, 1995, Apêndice 4, onde aparece o mapa da Quarta séculos era essencial para o que pretendesse exercer a nova hegemonia no
Península asiática (depois da arábica, indica e de Málaga), certamente produ­ "sistema", e muito mais se fosse a primeira hegemonia "mundial".
to de navegações de genoveses, onde a América do Sul é uma península nas
costas do sul da China. Isto explica que o genovês Colombo pensasse que a 54. O que produzirá um descomunal aumento dos preços na Europa,
Ásia (América do Su l= Quarta Península ao sul da China) não estava tão longe convergindo com uma inflação enorme durante o século XVI. Exteriormente,
da Europa. isso liquidará a riqueza acumulada no mundo turco-muçulmano e ainda
transformará internamente a índia e a China (cf. HAMILTON, 1948 e 1960;
48. É o que denominamos, filosoficamente, a "invenção" de uma Ame­ HAMMARSTRÕM, 1957). Além disío, a chegada do ouro da Ameríndia
ríndia, vista com o a índ ia, em todos os seus detalhes. Colom bo, produziu um cataclismo continental completo da África bantu, pelo colapso
e x i s t encialm ente, nem "descobriu" nem esteve na Ameríndia; "inventou" dos reinos da savana sul-saariana (Gana, Togo, Daomé, Nigéria etc.) que
algo inexistente: uma índia em lugar da Ameríndia, coisa que não lhe permitiu exportavam ouro para o Mediterrâneo: para sobreviver, esses reinos vão
"descobrir" o que tinha diante dos próprios olhos. Cf. DUSSEL, 1993a, cap. 2. aumentar a venda de escravos para as novas potências européias do Atlântico,
49. Este é o sentido do título: "De la invención al descubrimiento de e isso dá origem ao escravismo americano (cf. BERTAUX, 1972: "La trata de
América" (Cap. 2 d e minha obra citada). esdavos"; GODINHO, 1950; CHAUNU, 1955, t. VIII/1, p. 57; BRAUDEL,
1946). Todo o antigo "sistema interregional" III é lentamente absorvido pelo
50. Cf. AMIN, 1970. Esta obra não está ainda construída sobre a hipótese "sistema-mundo" moderno.
do "sistema-mundo". Talvez possa parecer que o mundo colonial fosse um
aspecto posterior e para fora do capitalismo europeu medieval transformado 55. Todas as potências hegemônicas posteriores estarão até hoje em suas
“na" Europa em moderno. A nossa hipótese é mais radical: o fato de descobrir costas; Espanha, Holanda, Inglaterra (e em parte a França) até 1945, e hoje os
a Ameríndia, de integrá-la como "periferia" é um fato simultâneo e co-consti- EUA. Graças ao Japão, a China e a Califórnia dos EUA atuais, o Pacífico
tutivo da reestruturação da Europa por dentro como "centro" do único aparece pela primeira vez como contrapeso: talvez seja uma novidade do já
sistema-mundo novo que, só agora, e não antes, o capitalismo (primeiro próximo século XXI.
mercantil e depois industrial). 56. WALLERSTEIN, 1974,1, p. 64 (ed. cast.).
51. Falamos de "Ameríndia" e não de América, porque se trata, durante 57. A entrada da mina.
todo o século XVI, de um continente habitado pelos "índios" (mal chamado
assim pelo espelhismo que o "sistema interregional" em seu estádio III 58. Este texto, já faz uns trinta anos, me despertou a atenção para o
produzia ainda no nascente "sistema-mundo" moderno: receberam o nome fenômeno do fetichismo do ouro, do "dinheiro", do "capital" (cf. DUSSEL,
de "índios" por causa da índia, "centro" do sistema interregional que desa­ 1993b).
parecia). A América do Norte anglo-saxã vai lentamente nascer no século 59. Archivo General de Índias (Sevilla), Chartas 313 (cf. DUSSEL, 1970, p.
XVII, mas será um acontecimento "interior" de uma Modernidade crescendo 1: trata-se de parte da minha tese doutoral na Sorbonne, em 1967).
na Ameríndia: esta é a "periferia" originante da Modernidade, constitutiva de
sua primeira definição. E a "outra face" do mesmo fenômeno da Modernida­ 60. Cf. CHAUNU, 1969, p. 119-176.
de. 61. A Europa tinha cerca de 56 milhões de habitantes em 1500, e 82 em
52. Unificada com o casamento dos réis católicos em 1474, fundando a 1600 (cf. CARDOSO, 1979,1.1, p. 114).
Inquisição imediatamente (primeiro aparelho ideológico do Estado, para criar 62. WALLERSTEIN, 1974,1, p. 144 (ed. cast.).
o consenso), com uma burocracia cuja performance pode observar-se nos
Arquivos das índias, em Sevilha, onde tudo era declarado, contratualizado, 63. WALLERSTEIN, 1974,1, p. 234s: "De Sevilla a Amsterdam".
certificado, arquivado; com uma gramática da língua castelhana (a primeira 64. Cf. ibidem, I, p. 482 (ed. cast.).
de uma língua nacional na Europa), escrita por Nebrija, e um cujo prólogo
chama a atenção dos Reis Católicos para a importância de o Império ter uma 65. Cf. WALLERSTEIN, 1974, II, cap. 2: "Hegemonia holandesa do
só língua: a edição da Poliglota (sete línguas) de Cisneros, muito superior à de sistema-mundo". Escreve o historiador: "S6 há um breve período de tempo
Erasmo por seu cuidado científico, pelo número das línguas e pela qualidade em que uma determinada potência do centro pode manifestar sim ultaneainente

76 Tl
a sua superioridade produtiva, comercial e financeira sobre todas as outras reinterpreta rapidamente a partir de Jesus Cristo (através de Pedro) toda a
potências do centro. Este efêmero apogeu recebe o nomé de hegemonia. No caso Igreja sempre como "católica", o que é um espelhismo deformante próprio da
da Holanda ou das Províncias Unidas, este momento teve lugar provavelmen­ primeira Modernidade (neste ponto o Catolicismo é a pnmeira reinterpreta-
te entre 1625 e 1675" (p. 39, ed. ingl.). cão eurocêntrica da Modernidade, mesmo antes do protestantismo, que
66. Cf. WALLERSTEIN, II, cap. 6. Depois desta data, a hegemonia igualmente efetuará semelhante jogo ideológico, mas depois, especialmente
inglesa, excetuando a época napoleônica^ não sofre interrupção até 1945, com os Românticos alemães, ao reinventar a Grécia - para se libertar do
quando perde o lugar para os EUA. mundo latino católico e poder ascender além do Império romano, que tem a
conotação negativa de capital "Roma" - e referir-se aos indo-europeus como
67. Posteriormente a insular Inglaterra também deverá "gerir (to mana- o povo fundacional). Cf. BERNAL, 1989.
ge)" o sistema. As duas nações tinham territórios pequenos, com pouca
78. Cabe destacar que a maioria da população latino-americana será hoje
população na sua origem, sem outra capacidade senão a "atitude burguesa"
"mestiça". É uma característica própria da América Latina. Com efeito, a
criativa diante da existência. Por sua fraqueza, tiveram que efetuar grande
reforma da "gestão (management)" da empresa metropolitana mundial. Europa pôde, através da Espanha e de Portugal, em primeiro lugar, conseguir
a "centralidade" do "sistema-mundo" só pela invasão da América. Este
68. A "factibilidade" técnica se transformará em critério de verdade, de continente, que não pôde oferecer resistência (diversamente da'Áfricai e da
possibilidade, de existência: o "verum et factum convertuntur" de Vico. Cf. Ásia), é violentamente ocupado, e da domtnaçSo sexual nasce o mestiço, filho e
isto n o cap. 4.5, mais adiante. filha de Malinche, a índia, e de Cortés, o conquistador. Em nenhum outro
continente foi possível ocorrer algo parecido. Na África o povo banto resiste
69. A Espanha, e Portugal com o Brasil, empreendeu como estado
até o século XIX e o racismo da segunda Modernidade nao se mistura . a
("Império-mundo") (com recursos militares, burocráticos, eclesiásticos etc.) a
conquista, evangelização e colonização da Ameríndia. Quanto à Holanda, mesma coisa na Ásia.
funda a "Companhia das índias Orientais" (1602), e mais tarde a das "índias 79. Cf. o Simpósio da CEHILA, de 1979, na Bahia (CEHILA, 1979)_ De
Ocidentais". Essas "Companhias" (como as posteriores inglesas, dinamar­ modo especial, as obras exemplares de SALINAS, 1987, e de HOORNAER ,
quesas etc.) são "empresas" capitalistas, secularizadas, privadas, que funcio­ 1991.
nam segundo a "racionalização" do mercantilismo e, mais tarde, do
80. Cf. BASTIAN, 1990 e 1992.
capitalismo industrial. Isto indica a diferente "gestão (management)" racional
da empresa das índias ibéricas, e a da "Segunda Modernidade" ("sistema- 81. Quanto à época colonial, indicamos os traços gerais da religiosidade
mundo" não administrado (managed) por um "Império-mundo"). cotidiana em nossa obra: DUSSEL, 1983, p. 561s.
70. Em todo sistema a complexidade tem articulado consigo um processo 82. Cf. LOCKHART, 1992, p. 14s.
de "seleção" de elementos para permitir, diante do aumento da complexida­ 83. Cf. LOCKHART, 1992, p. 203s.
de, conservar a "unidade" do sistema em face do meio. Essa necessidade de
seleção-simplificação é sempre um "risco" (cf. LUHMANN, 1988, p. 47s). 84. Com isto queremos indicar que já sabiam o que era a dominação, e
por isso se adaptavam a ela.
71. Cf. Samir AMIN, 1974, p. 309s.
85. Ibidem, p. 215.
72. Ibidem, p. 312.
86. MENCHÚ, 1985, p. 21.
73. O processo colonial termina, em sua maioria, no começo do século
XIX.
74.0 processo colonial dessas formações termina, geralmente, depois da
chamada Segunda Guerra Mundial (1945), já que a super-hegemonia norte-
americana não necessita mais da ocupação militar nem da dominação políti-
co-burocrática (própria das antigas potências européias, como a França e a
Inglaterra), mas só da gestão da dominação da dependência econômico-finan-
ceira em sua etapa transnacional.
75. Cf. DUSSEL, 1983,1.1/1, p. 223-241.
76. O conceito de "catolicismo" inclui desde a sua origem, então, um
"centro" europeu (sempre mais romanizado) e uma "periferia", coisa que não
tinha acontecido na história das Igrejas mediterrâneas bizantina e latina,
porque tinham sido Igrejas de um mundo pós-romano autônomo (do Império
persa ou do mundo muçulmano), mas sem periferia propriamente dita.
77. Esta auto-interpretação de ter sido sempre o "centro" tanto a faz a
Europa (com a reinterpretação eurocêntrica da história mundial à la Hegel),
embora também a faça antes de qualquer um o próprio "catolicismo", que

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