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A ESCOLA COMO ORGANIZAÇÃO

E ntre as instituições so- de interações e relações


MARIA BEATRIZ BALENA DUARTE'
ciais, cuja função é en- que nela se executam.
sinar conhecimentos e RESUMO Há uma extensa
habilidades necessários à gama de estudos e escritos
Este artigo trata da escola enquanto uma das institui-
preservação da sociedade e ções através das quais se processa a socialização dos acerca da existência e in-
efetivar o processo de so- indivíduos, focalizando, em particular a sua dimensão fluência da. escola - suas
cialização, encontramos organizacional. Nesta perspectiva, a autora chama a atribuições e funções,
uma de fundamental impor- atenção para uma tendência à burocratização dessa ins-
processos e métodos de en-
tituição, enfatizando, no entanto, as diferenciações en-
tância por sua dimensão e tre a escola e outras unidades organizacionais de sino-aprendizagem.
significado: a escola. natureza empresarial. Contudo, as abordagens
Resultante da com- centradas na escola como
• Socióloga, Doutora em Sociologia da Educação pela
plexificação dos fenômenos unidade organizacional são
Universidade de Santiago de Compostela- Espanha,
culturais e sociais, surgida professora do Departamento de Ciências Sociais da mais escassas. Uma evolu-
a partir de um campo es- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ção significativa dos siste-
pecífico de educação (sis- mas educativos das últimas
temática), necessária por ser o órgão especial décadas é a incorporação da visão da escola
para transmitir e regular as normas e regras de como organização. Há uma série de razões que
convivência social, é natural pensarmos a esco- justificam o fenômeno, desde as questões técni-
la como um espelho da sociedade. Com sua hi- cas e políticas passando pelos movimentos pe-
erarquia e camadas sociais, seus grupos de pares, dagógicos, sem esquecer de motivos de ordem
suas anormalidades, desvios, estigmas e proble- profissional, bem como pela ampliação da par-
mas interpessoais. Ela é portanto em muitos sen- ticipação das comunidades na vida escolar.
tidos, uma reprodução dos conflitos e das tensões No entanto, a abordagem da escola como
da própria sociedade. organização desperta ainda algumas suspeições
Dadas as proporções de uma instituição no campo educativo, uma vez que educadores
com as características descritas acima, podemos e estudiosos da educação se ressentem de ver
supor uma estrutura complexa, para atender às seu trabalho pensado a partir de categorias de
demandas sociais e mesmo para a própria análise construídas com base na tomada de re-
estruturação da tarefa educativa. É exatamente flexões centradas no universo econômico e em-
este crescimento o responsável pelo apareci- presarial. São resistências legítimas e fazem com
mento da burocracia, que pode ser adequada que, por isso mesmo, existam condições
ou inadequada, eficiente ou ineficiente, com- especiais para não perder de vista a especi-
petente ou não, mas não deixa de ser uma bu- ficidade do trabalho educativo ao refletir sobre
rocracia e, tal como qualquer outra, pode ele numa perspectiva organizacional.
tornar-se desumana e impessoal, completamente A definição clássica de "Organizações"
descaracterizada das funções principais e exis- proposta por Etzioni! inclui unidades sociais (ou
tenciais da própria escola, dependendo do jogo grupamentos humanos) intencionalmente

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A R' T I'~G /,~".
O ~
BCH-UFC
PERiÓDICOS
.onstruidas e reconstruídas, afim de atingir ob- 0964, 1967)3 e as pesquisas de Coleman (966)4
etivos específicos. revelaram de que forma as variáveis sociais, cul-
Caracterizam-se por: 1) divisão do traba- turais e familiares interferem no sucesso dos
ho, poder e responsabilidades, que não são ca- alunos na escola. Os estudos posteriores
uais ou estabelecidas pela tradição, mas aprofundam estas reflexões, acentuando que as
ilanejadas intencionalmente, a fim de intensifi- diferenças entre os alunos que ingressam na es-
.ar a realização de objetivos específicos; 2) a cola são acentuadas (legitimadas na concepção
iresença de um ou mais centros de poder que de Bourdieu) devido à estrutura e ao funciona-
.ontrolarn os esforços combinados da organiza- mento do sistema educatívo.
.ão e os dirigem para seus objetivos.? O objetivo central deste capítulo sobre
Existem evidentemente muitas razões para organizações escolares busca escapar dos dois
ião comparar os estabelecimentos de ensino com extremos das possíveis análises da escola. Nem
lS empresas: as escolas lidam com seres huma- de dentro para fora, nem externa, mas algo que
Ias numa ação que contempla implicações ide- se situa no meio da compreensão e intervenção.
ilógicas, políticas e pedagógicas, com a intenção Trata-se de sublinhar um status próprio às insti-
te "desenvolver" mentes, habilidades. Ainda que tuições escolares, enquanto espaço organiza-
.eja possível assinalar que a escola é um cional onde são igualmente importantes uma
~rupamento relativamente permanente de for- percepção micro e um olhar macro sobre peda-
.as de trabalho e de recursos humanos e mate- gogia e educação.
iais orientados para determinada atividade. Uma Os estudos da Sociologia sobre o tema das
irganização, um coletivo humano, orientado para organizações enfocam de maneira mais recor-
ima finalidade, controlado e atravessado pelas rente as empresas e administrações, talvez por-
[uestões do poder. que as modernas teorias e pesquisas de novas
Considerando a atividade-fim da escola formas de organização estão baseadas na pro-
.omo o oferecimento de serviços educacionais dução de conhecimentos oriundas desse cam-
lO seu alunado, algumas questões que contem- po. Mas o estudo dos estabelecimentos de ensino
ilern o cotejo entre a definição apresentada e a como uma organização e não apenas o lugar de
ealidade educativa se interpõem. Tendo como aplicação de diretrizes vindas de um órgão su-
lado que na maioria das escolas a tarefa perior é escasso e em alguns casos inexistente,
.ducativa pode ser definida a partir de seus es- como no Brasil por exemplo. É possível detec-
.ritos (filosofia institucional e projeto político- tar movimentos multidisciplinares para o tema
sedagógíco), deduzimos que a principal missão em autores principalmente europeus. Mesmo
Ia escola então é o desenvolvimento de carac- assim, o que se faz são as aproximações teóricas
erísticas específicas no alunado, como autono- produzidas nos outros campos de estudos para
nia, capacidade de reflexão crítica, tomada de o campo escolar.
lecisões, capacidade de análise, síntese, argu- A dificuldade de fazer o transporte das
nentação, cooperação, criatividade entre outras. categorias clássicas de análise organizacional para
A essência da investigação da Sociologia o espaço escolar decorre do fato de que uma
Ia Educação tratou de construir um conjunto escola não pode ser pensada como uma empre-
.onsistente de respostas que dessem conta da sa, uma fábrica. Em educação, não podemos
[uestão fundamental da educação: como a es- reduzir simplistamente relações de valores, ex-
:ola produz desigualdades nas aprendizagens periências, como é possível se fazer a partir da
.scolares, e como a educação escolar se imbrica cultura racional das empresas. Há na escola, uma
10 seio das diferentes sociedades em que atua. territorialidade específica, onde é expresso o jogo
)s estudos clássicos de Bourdieu e Passeron dos atores educativos interno e externos. Por

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isso, uma análise para fazer sentido, deverá ex- • até os anos 50, uma pedagogia centrada
pressar todas as dimensões pessoais, simbólicas nos alunos sob uma ótica individual. A
e políticas da vida escolar, sem cair no componente central da intervenção
reducionismo fácil de pensar a ação educativa educativa era o indivíduo-aluno, nas
em termos de técnicas de gestão e eficácia, típi- dimensões cognitiva, afetiva e motora.
cos das organizações empresariais. O discurso pedagógico concedia aten-
O estudo da escola como objeto autô- ção privilegiada às metodologias de
nomo das ciências da educação é relativamente ensino;
recente, por isso é importante que as aproxi- • as interações no processo educativo, fru-
mações e análises sejam feitas com o máximo to de movimentos ligados à dinâmica de
de precauções teóricas e conceituais, sublinha- grupos do pós-guerra, são acentuadas,
do por vários autores que se dedicam ao tema, conduzindo às pedagogias não diretivas
pelo fato de que o sistema educativo tem ex- da década de 1960. O que se passa numa
perimentado críticas e contradições ao longo sala de aula é mais importante que as
dos últimos anos, a discussão da escola como aprendizagens,. o fator principal são as
um todo, levando em conta o contexto vivências escolares. A produção pedagó-
sociopolítico, passa pela exigência da moder- gica deste período está centrada em téc-
nização do sistema educativo, o que significa nicas de animação e expressão;
em última análise, descentralização e investi- • os anos 1970 assistem à desmistificação
mento nas escolas como espaços de forma- das crenças ingênuas do potencial de
ção. Ao adaptarem-se aos "novos tempos", as transformação social, proposto pelos so-
escolas têm de adquirir uma grande mobilida- ciólogos da reprodução, onde é possí-
de e flexibilidade, abandonando a pesada bu- vel identificar a discussão crítica das
rocracia e inércia que as têm caracterizado. instituições escolares existentes, o pa-
Estas reivindicações estão claramente expres- pel do professor e a projeção da peda-
sas nos últimos documentos oficiais emanados gogia para fora dos muros da escola.
dos órgãos governamentais responsáveis pela Os estudos privilegiam a análise da edu-
questão, e mesmo da sociedade como um cação centrada no sistema educativo,
todo. Para que isso aconteça, é importante com recursos de metodologias de aná-
dotar as escolas, como espaços de autono- lise política e de intervenção social. Aqui
mia curricular e profissional, com tudo o que se nota um incremento das proposições
isso implica, ou seja, compreender o papel de correntes pedagógicas ocupadas com
dos estabelecimentos de ensino como orga- a racionalização e eficácia do ensino;
nizações, que funcionam numa tensão dinâ- • durante os anos 1980 as práticas peda-
mica entre produção e reprodução, entre gógicas estão voltadas na sala de aula,
liberdade e responsabilidade. com uso de metodologias de observa-
Tomando como base de análise a estrutu- ção e um novo incremento do desen-
ração dos conjuntos humanos num percurso de volvimento curricular;
complexidade crescente: indivíduos - as • desde os 1990 observa-se um esforço de
interações, os grupos, a organização e a institui- construção de uma pedagogia centrada
ção -, Nóvoa (995)5 faz adaptações com base na escola. A valorização de uma "escola-
em trabalho de Ardoino (977) para sugerir a organização" implica no estabelecimento
evolução das idéias sobre educação ao longo de margens de autonomia, com espaços
das últimas cinco décadas propondo a seguinte de formação participada, interação social
cronologia, que tratamos em resumo: e intervenção comunitária.

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Historicamente, as escolas faziam parte Assim, a escola adquire uma posição in-
do mundo das organizações de tipo burocráti- termediária, o locus onde se exprime o debate
co por causa do seu modo predominante de educativo e onde se realiza a ação pedagógica,
regulação e exercício do poder, baseado na onde a realidade educativa se expressa valori-
crença de que é justo obedecer as leis e regras zando perspectivas gerais e específicas, mas que
fixadas, não sendo estas emanadas de tradições sejam vistas pelo prisma do trabalho interno das
consideradas sagradas. Em princípio, obedece- organizações escolares. Ela é encarada como uma
se a um conjunto de regras que é comum a instituição dotada de uma autonomia relativa,
todos e as ações são relativamente previsíveis que não se limita em reproduzir as normas e
entre os membros desta organização. A exis- valores sociais, mas que também não depende
tência de organização burocrática, então, cons- apenas dos atores envolvidos no ato educativo.
titui-se um avanço em relação aos modelos A compreensão da escola deve integrar
carismáticos ou tradicionais e, antes de assegu- todas as instâncias de análise das organizações
rar a viabilidade das escolas a partir do século [rnítica, sócio-histórica, instrucional, organiza-
XVI favoreceu a pacificação interna e o poder cional, grupal, individual e pulsional, segundo
externo dos mosteiros da Igreja Medieval (que Enriquez (992)7. É nesse sentido, amplo, que
podemos dizer inaugura este modelo), pela pensar as escolas é útil e estimulante. Antes, in-
possibilidade de previsào dos acontecimentos, teressa uma rápida menção acerca da história
de dar ordens e calcular as conseqüências da das idéias correntes dentro do ambiente
obediência e da desobediência. educativo e escolar, que são significativas para
Foucault (991)6 propõe que esta ordem o que propomos.
racionalizada seja lida como ordem de controle Dois períodos marcam o estudo das orga-
dos corpos (dos alunos). Corpos mudos, imó- nizações escolares: um, pautado pela adoção de
veis, sujeitos ao olhar panóptico, disciplinados modelos racionais, estruturais de recursos hu-
e anônimos, desaguando nas escolas de Calvino manos, e outro, mais atual e enriquecedor que
e de Loyola pelo lado católico, onde encontra- adota modelos políticos e simbólicos. E é sob
mos desde a Ordem do Colégio de Genêue, de esta perspectiva que a abordaremos, para fugir
1559 a prescrição de uma ordem escolar, codifi- de simples enumeração funcionalista de um con-
cada, hierarquizada e instaurada oficialmente, junto de aspectos.
com prescrições cuidadosas sobre as atividades Analisar a escola, sob este prisma, nos
escolares, destacando o programa a ser segui- mostra a vinculação entre a estrutura formal e as
do, e sua distribuição pelos dias e aulas. Nas interações que se processam no seu interior e,
escolas do princípio do século XIX a regulamen- entre grupos com interesses distintos. Esta pers-
tação das atividades dos alunos e dos professo- pectiva apresenta então três grandes áreas'':
res está ainda mais detalhada. • a estrutura física da escola: organização
Durante todo este tempo é de se supor que e distribuição dos espaços, número de
algumas modificações tenham acontecido. A mais turmas, recursos materiais disponíveis;
interessante é que nada no ambiente de sala de • a estrutura administrativa: direção, ges-
aula segue rigorosamente o que foi planejado. tão, tomada de decisão, relação com as
Até mesmo as ditaduras mais ferrenhas tiveram autoridades centrais e locais, corpo do-
que aceitar a existência de uma certa autonomia cente, funcionários, comunidades;
do professor, porque o processo ensino-aprendi- • estrutura social da escola: relações entre
zagem apresenta imprevistos e imprecisões que alunos, professores, funcionários, parti-
acabam por emprestar características especiais cipação dos pais, cultura organizacional,
para as escolas enquanto organizações. clima escolar.

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Uma vasta literatura procura identificar E o conceito de Burke (987)13:
características organizacionais que são deter-
minantes para a eficácia das escolas. Partem da A cultura da empresa não é mais do que uma
construção de uma identidade própria das esco- aplicação específica da cultura no mundo do
las, e usam bases de consenso bastante alargadas. trabalho. Desempenha o mesmo papel. É um
sistema de integração, de diferenciação e de
Autores como Hopkins & Holly (998)9
referência que organiza e dá um sentido à ati-
Purkey&Smith (985)10 oferecem subsídios que vidade dos seus membros.
permitem o esboço, sem intenção prescritiva, do
retrato de uma escola eficaz, uma espécie de Com estas definições, podemos distinguir
cbece-list de apoio à regulação das organizações entre cultura interna (conjunto de significados e
escolares, e interessante para a compreensão de de quadros de referência partilhados pelos mem-
suas características mais dinâmicas. Incluem as- bros de uma organização) e cultura externa (va-
pectos como: Autonomia da escola, Liderança riáveis culturais existentes no contexto da
organizacional, Articulação curricular, Otimização organização que interferem na definição de sua
do tempo, Estabilidade profissional, Formação própria identidade).
do pessoal, Participação dos pais, Reconheci- No caso das instituições escolares, a cul-
mento público e Apoio das autoridades. tura organizacional, sob a ótica antropológica,
Nesse retrato, encontramos presentes os comporta elementos de ordem histórica, ideoló-
conceitos de autonomia, ethos, identidade, va- gica, sociológica e psicológica, que comporta
lores partilhados, adesão, coesão, etc. A cultura elementos que se encontram profundamente
de escola é uma das áreas de investigação que imbricados, que podem ser visíveis (organiza-
permite usar estes conceitos, dando-lhe consis- ção curricular, imagem exterior da escola, uni-
tência teórica e conceitual. forme, logotipo, lema, arquitetura do prédio,
Vala (998)11 observa que as organizações regulamentos e normas) ou não (valores, cren-
tendem a ser consideradas como "culturas", após ças, ideologias, currículo oculto, filosofia
terem sido vistas como máquinas, organismos e institucional, didática em sala de aula).
cérebros. Basicamente, a tendência é estudar as Todos esses elementos têm de ser "lidos"
organizações tomando emprestado conceitos de dentro e de fora da escola. De dentro pelos
elaborados pela antropologia, com o objetivo seus atores mas também de fora, pelas múltiplas
de separar o campo das estruturas organi- inter-relações que envolvem uma comunidade ..
zacionais do campo da cultura organizacional, Aliás, essa interação com o meio social que a
incorporando fatores políticos e ideológicos para envolve é um dos pilares básicos na análise da
compreender o cotidiano escolar, os processos cultura organizacional das escolas.
organizacionais, estabelecendo um olhar mais É importante salientar, que a questão "cul-
dinâmico e plural. tura" é central nas análises da escola como um
O conceito de cultura organizacional foi todo, em diferentes abordagens. Escola transmis-
importado para a área da educação a partir dos sora de cultura em Durkheim, reprodutora de
anos 70, de onde destacamos o conceito de cultura para Bourdieu ou de ação cultural para
Brunet (991)12: libertação em Paulo Freire, são olhares diferen-
tes sobre a realidade educativa, que podem ser
As organizações escolares, ainda que estejam utilizados sob um novo prisma.
integradas num contexto cultural mais amplo,
Conhecendo a estrutura da escola como
produzem uma cultura que lhes é própria e
que exprime os valores (ou os ideais sociais) e um grupo instituído e um corpo de normas, como
as crenças que os membros da organização no caso brasileiro, conscientemente submetido
partilham. ao Poder Público, por ser ele o agente regula-

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mentador das atividades da escola, podemos
BCH-UFr,
PERI( 8 -:CS
tando se são alunos, professores, funcionários.
afirmar que esse corpo de normas e regulamen- A cultura escolar, então, se diferencia da cultura
tações previamente estabelecidos caracteriza o da comunidade a que serve, porém, apresenta-
trabalho de administração da escola. Observan- se diferente de um caso a outro. Procura ser
do sua estrutura, podemos identificar a existên- uma peça útil na engrenagem social, mais do
cia de dois grupos basicamente dependentes e que um corpo prejudicial ao andamento da so-
diferentes entre si, formado pelos educadores e ciedade como um todo. Ao procurar espaços de
educandos. Os primeiros constituem-se um gru- atuação que pretendem servir à comunidade em
po mais maduro, de idades mais avançadas, in- que atua, participando da vida comunitária e das
tegrados aos valores sociais vigentes e com a discussões em seu derredor, principalmente em
tarefa de ajustar os educandos a esses valores. ciclos mais iniciais, ou básicos, onde o educa-
Pelo status que desfrutam, podem "gerenciar" a dor relaciona os conhecimentos com o meio so-
aprendizagem, impor as normas e exercer uma cial, partindo posteriormente para processos mais
liderança instituída. Aqui estão os diretores de amplos, à medida em que existam condições de
escola, professores, coordenadores pedagógicos, abstração, parte-se então para o enfoque de pro-
orientadores educacionais. O segundo grupo, blemas mais amplos, distantes e gerais. Assim,
constituído pelos alunos, é o que está sujeito às está consolidado um certo grau de consciência
normas e regras de conduta dentro da escola, social, que irá se expressar na participação ativa
previstas pela organização e pela própria cultu- ou não na vida pública e comunitária.
ra interna. Por serem grupos mais homogêneos Ainda, na organização da escola, e fruto
e em processo de desenvolvimento estão sujei- da cultura escolar que nos propomos a analisar,
tos às sanções, reprimendas e mesmo à exclu- é importante comentar uma outra forma de
são daqueles que de jeito nenhum conseguem estruturação da escola, os subgrupos de ensino
ou não querem adaptar-se às mesmas. É impor- formados artificialmente, uma vez que os que
tante notar que os grupos que se formam, den- dela participam não o fazem por escolha pró-
tro da escola, refletem o tipo de relacionamento pria, mas por designação do corpo administrati-
entre os alunos, que por sua vez estão de acor- vo e pedagógico, aquilo que correntemente
do com o ambiente proporcionado pela própria chamamos de "classe". Então, seria correto en-
cultura da escola, refletida no tipo de sociabili- tender a organização formal da escola como um
dade a ser desenvolvida. grupo social constituído de diversos subgrupo
Para Coomonte (993)14 falar de cultura os quais são sujeitos a horários fixos, programas
organizacional é falar de "projetos de escola, pois e currículos determinados, devendo freqüentar
os estudos mencionados só são pertinentes no obrigatoriamente os períodos previsto e ub-
quadro de uma ação educativa que busca novas meter-se a verificações de aprendizagem quase
vias para se exprimir." constantes no decurso de sua vida e colar ..
Com uma estrutura peculiar e dinâmica, classes funcionam da mesma maneira: móvei
as escolas constituem-se em "sub-culturas" na enfileirados em direção ao lugar do prof r.
concepção de Oliveira (993)15. Observando o de onde atentamente devem acompanhar
estilo de vida no interior da escola, podemos explicações, que podem variar em termo de
notar que sua organização difere daquela que técnicas (verbal.audio-visual), o que faz Olivei-
caracteriza a vida em geral. A escola é "um mun- ra 17 considerá-Ia um "grupo de personalidad
do dentro de outro mundo'v'', na medida em em interação". Esta interação deriva do faro de
que tem um sistema de condutas previamente que alunos, professores e corpo diretivo a em
estabelecido, e normas que todos devem cumprir entre si, cada um com suas características indi 'i-
enquanto permanecem na escola, não impor- duais, e ela se dá em termos de conhecimento ,

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habilidades, atitudes, interesses pessoais e ma- penha um fator de integração entre os elemen-
neiras de agir. Afinal, quem poderia desprezar a tos, e é também um fator de diferenciação ex-
multiplicidade de processos de interação e apren- terna. Há portanto uma profunda inter-relação
dizagem favorecida pela ida obrigatória à escola com o meio social em que se insere e qualquer
durante anos de uma vida? Como não levar em análise da cultura organizacional da escola não
conta as oportunidades de aprendizagem, inclu- poderá deixar de lado este aspecto.
indo aí as aprendizagens não formais, ainda que Uma outra questão importante a ser con-
na e pela escola, através do currículo oculto, siderada levando em conta a demanda externa
uma espécie de aprendizado "invisível", como tem a ver com a exigência que recai sobre a
que se estivesse impregnado no ambiente, que escola mais recentemente: a de preparar com
forma um conjunto de aprendizagens resultante eficiência as competências necessárias para um
mais da vivência, da percepção e das ações do mundo globalizado, competitivo e veloz. Ainda,
aluno do que daquilo que formalmente e ensi- uma escola democrática, que ensine a convi-
nado na sala de aula. Está relacionada com a vência com as diferenças, que seja útil e eficaz
forma pela qual a escola organiza o trabalho, o para ricos e pobres.
tempo, os saberes, os grupos e subgrupos. É o Traduzido pelo discurso oficial, seria o que
modo de vida da escola, e é nele que os alunos conhecemos por "uma escola de qualidade para
constróem suas competências e atitudes, apren- todos"- preocupação tanto de comunidades como
dendo desde cedo a lógica da organização for- de políticas de governos do mundo todo, deslo-
mal, quase que por um processo que Nóvoa cando um pouco a função de transmissão de co-
chama de "osmótico"!". nhecimentos para estimular o desenvolvimento
De certa forma, parte do desempenho desta de um conjunto de funções e atitudes e capaci-
organização é dada pela comunidade externa à dades de analisar, concluir sintetizar e compreen-
escola, quando, por exemplo, ela é considerada o der, negociar, argumentar e trabalhar em grupos,
loeus onde são encontrados certos ideais da cultu- relativizar saberes, isto é, aprender a aprender.
ra dominante da sociedade. Assim, o professor é Cabe então uma questão simples, mas
visto pela comunidade como alguém responsável perturbadora para a escola como organização:
pela transmissão desta cultura, e dos valores cultu- como saber onde estas habilidades se proces-
rais da sociedade. O papel esperado é de que ele sam? Sabemos quem e quais as pessoas respon-
esteja preparado para tal, situado de acordo com sáveis para que os alunos adquiram estas
estes valores. Desta forma, é a comunidade quem habilidades? É a sala de aula apenas o lugar onde
define em parte o papel exercido pela escola, o estas experiências são desenvolvidas? Quem
que de certa forma não deixa de ser uma maneira controla a "produção" desses saberes? Qual o
de regular o que é ensinado, e a maneira pela meio de avaliação da eficácia das atividades pro-
qual é ensinado. A opinião externa a respeito da postas com estes fins?
escola e suas funções acaba por determinar aquilo Não se sabe ao certo como são desenvol-
que é realizado na escola bem como os mecanis- vidas as competências mencionadas, apenas sa-
mos que serão engendrados para funcionar a fim bemos que elas não são adquiridas igualmente
de atender a "clientela", definindo enfim sua pró- por todos os alunos, não fazem parte de um
pria organização funcional. treino sistemático promovido pelos programas
A totalidade dos elementos da cultura e currículos e que sua aquisição não deriva ape-
organizacional devem ser lidos de fora para den- nas da ação da escola, mas está relacionada com
tro e de dentro para fora da escola, e as aprendizagens anteriores, familiares e sociais.
equacionados igualmente com ambas as popu- O que é certo de afirmar é que este é o desafio
lações envolvidas. A cultura educacional desem- imposto à escola como organização, ou seja,

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articular seu funcionamento de tipo burocrático a escola deverá ter como meta a formação de
com a flexibilização necessária para o desenvol- indivíduos preparados para a educação conti-
vimento e aperfeiçoamento de novas demandas nuada, estimular o potencial crítico dos
impostas por seu derredor. Surge a questão da educandos, valorizando a responsabilidade so-
mudança organizacional, um assunto muito em cial das corporações.
voga no momento, como resume Weil (995)19 Isto significa uma organização preparan-
do competências para atuarem em outras, diver-
Para sobreviver, uma organização tem que ser sas e interdependentes.
contemporânea a seu tempo. Elaprecisa se ajus- Já houve tempo sem escolas, e pela velo-
tar às exigências das mudanças, pois vida é es- cidade das inovações tecnológicas, não sabemos
sencialmente mudança. É preciso por
se este tempo vai voltar. Uma coisa é certa: vi-
conseguinte conhecer com antecedência razo-
ável, o sentido da mudança. Nestefim de sécu- rão tempos em que serão preciso novas escolas.
lo, as mudanças são bastante rápidas. Por isso Por isso ela precisa saber se articular com ou-
mesmo, mais do que nunca vai serpreciso uma tros espaços sociais políticos e econômicos. Pre-
acuidade mental muito grande, para os empre- cisa explorar novas lógicas, outras interrogações,
sários e dirigentes de organizações evitarem o alargar horizontes e dirigir-se a novos espaços
desaparecimento dos sistemas que lideram.
sociais, onde sejam possíveis a inclusão de ou-
tros atores na tarefa educativa. Assim, a análise
Em última análise, como podemos estabe-
das instituições escolares começa por pensar a
lecer uma efetiva apreciação da escola como
organização dessa escola e de outras possíveis
organização? Propomos uma pista fornecida por
de maneiras diferentes, para que se torne um
Hutmacher (998)2°, onde ele aponta que:
espaço onde possamos realizar nossa natureza
pessoal e social em sua expressão máxima.
Nunca é demais sublinhar que na realidade
nenhuma escola funciona com o rigor que se
supõe a exposição esquemâtica do modo defun-
cionamento burocrático. Em todas as organi- NOTAS
zações há sempre maneiras de jogar com as
regras. Num duplo sentido: jogar com as regras 1 ETZIONI, A. Organizações Complexas. São Pau-
abre a possibilidade de empreendimento, de lo: Atlas, 1971.
inovação, de invenção, mas permite também a 2 DELORENZO NETO, A.. Sociologia aplicada à ad-
criação de mecanismos de proteção contra as ministração: sociologia das organizações. Si ed.
novas exigências que não correspondam às dis- São Paulo, Atlas, 1976.
posições formais, devidamente codificadas. 3 Bourdieu, P. e Passeron, J. C. A Reprodução: Ele-
mentos para uma teoria do sistema de ensino. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
CONCLUSÃO 4 COLEMAN, J. S. et a!.. Equality of educacional
opportunity. Washington: US Government Printing
Office, 1966.
Para Weil, nas organizações do século XXI,
5 NÓVOA, A. As organizações escolares em análi e.
o homem "não aceitará mais ser tratado como Lisboa: Publicações Dom Quixote,Ltda., 1995.
mera peça de uma engrenagem. Ele vai querer 6 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da pri-
saber para quê, para quem e por que ele traba- são. 9~ edição, Petrópolis, Vozes, 1991.
lha. E, mais do que isso, só aceitará trabalhar, e 7 E RIQUEZ, E. La Organizacion en analisis. Madrid:
o fará com entusiasmo sabendo que ele contri- EPU, 1992.
8 NÓVOA, A. op.cir.
bui de algum modo para servir à humanidade".
9 HOPKINS&HOLLY. Investigacións en aula - guia
Aplicar estes novos paradigmas organi- dei professor. Barcelona, PPU, 1998.
zacionais em nossa análise significa entender que 10 idem.

DUARTE, MARIA BEATRIZ BALENA. A ESCOLA COMO ORGANIZAÇÃO. P. 110 A 118 117
II VALA, J. Representações
-
SOCIaIS e percepções
intergrupais. Análise Social, n2 140 O). 1998.
COLEMAN, J. S. et aI.. Equality of educational
opportunity. Washington: US Government Printing
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118 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS ·v.33 N. 1 2002

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