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O ESPELHO E A MÁSCARA

Roteiro de COELHO DE MORAES sobre a obra de JORGE LUÍZ BORGES


Rei, Poetisa, Narrador, Assessor, Pessoas no castelo.
A poetisa – a cada aparição vem, notadamente, menos rica e mais doente
-TERCEIRO TRATAMENTO -
1
CENA 1
Fundem-se inúmeras imagens de guerras ferozes. Em movimento ou em
Fotografias, e, desenhos, e, quadros. Alterna-se tudo com imagens de
castelos poderosos, sinos dobrando.

CENA2
INT. DIA. CASTELO
pelos vitrais a luz se coa / A POETA se aproxima pelo salão do castelo na
direção do REI majestoso, que está em seu trono.

REI
ordena sem violência

As proezas mais ilustres perdem seu brilho...


se não se valorizarem as palavras.
Quero que cantes minha vitória.
Eu serei Enéias; tu serás meu Virgílio.
Acreditas que serás capaz de cometer essa empresa
que nos fará imortais os dois?

POETA
Sim, meu Rei.
Meu nome é Ollana.
Cursei métrica.
Sei de memória as 360 fábulas que são a base da
verdadeira poesia.
As cordas de minha harpa tocam todos os modos
gregos, todos os tons conhecidos e as variantes
pentatônicas dos orientais.
Vozes e metáforas, as doutrinas secretas da escrita
secular.
Conheço todos os mitos e todas as casas reais.
Mestre na sabedoria das ervas, e nas virtudes
canônicas.
Sou Juíza e Kantor.
Com a palavra eu posso alterar a saúde de um
cidadão.
Manejo a espada como um mestre de esgrima.
Só uma coisa ignoro: agradecer o dom que me fazes.

REI
Deixo-te um ano inteiro.
Limarás cada letra e cada palavra.

2
A recompensa será digna do meu real costume e das
tuas inspiradas vigílias.

CENA 3
A POETA se apresenta e inicia sua fala decidida, ao mesmo tempo que
cenas de quadros e guerras e fotos e o que tiver por aí fundindo com as
imagens do REI – que observa estupefato - e da POETA que declama
ardentemente. Sobreposto a isso vem a narrativa.

NARRADOR EM OFF
Passou-se aquele ano.
Cumprido o prazo que foi de epidemias e rebeliões a
poeta veio apresentar a sua história.
Declamou com lenta segurança,
sem uma única olhada no manuscrito.
Mesmo aqueles que nem ouviam o texto já davam seu
assentimento.

a POETA finaliza, estafada a suar.

REI
Hesita um tanto, pensativo.

Aceito o teu trabalho.


É outra vitória.
A guerra é o belo tecido de homens e a água da espada
é o sangue.
Se se perdesse toda a literatura que conhecemos nós
a reconstituiríamos com a tua obra.

Grita para o assessor.

Trinta escribas!

Entrega a obra ao assessor.


Olha para a Poeta. Fala naturalmente.

Trinta escribas irão transcrevê-la 12 vezes espalhando


a obra pelos cantos do mundo.

pausa longa / o REI anda pela sala.

No entanto. Nada aconteceu!


O sangue não me corre mais apressado.

3
As mãos não procuram os arcos.
Ninguém desembainhou a espada.
Ninguém empalideceu.
Não ouvi um grito de batalha.
Dentro do término de um ano, poeta, aplaudiremos
outro poema.
Por enquanto leva esse espelho que é de prata.

Acena ao assessor que lhe trás um espelho de prata.

É teu prêmio, por ora.


Escolhe uma casa perto do palácio real e aí vive para
que tenhas paciência e sossego para a sua próxima
obra.

A Poeta se curva e sai de costas enquanto o Rei observa e sai também.

CENA 4
Nítida passagem de tempo. A câmera como que voa pelos campos e dá a
volta pelo tronco de uma árvore e retorna. O Arauto indica, com três
pancadas no chão, que a POETA está presente. POETA entra. Enquanto
isso a narração se desenvolve.

NARRADOR EM OFF
Desenvolvem-se cenas similares às anteriores, talvez mais bucólicas e
pastoris. Detalhes na atitude do REI que se enternece até a POETA
finalizar mais exausta ainda / Outra vez cantou o rouxinol nas selvas frias
e a poeta retornou com sua obra. Uma poesia de tamanho menor. Um
número menor de versos. A POETA lia o papiro que sangrava enquanto lia
demonstrando certa insegurança. Omitia passagens, como se não
entendesse o que estava escrito. Pulava páginas. Não era, somente, a
descrição de batalha. Era a própria batalha. Escorre sangue dos papéis
da POETA. Ela está cambaleante. Meio tonta. A sintaxe e a gramática se
alteraram. A POETA finaliza a récita. O REI conversa com alguns
assessores que estão por perto. O Rei transpira. Os assessores suam. O
Rei volta-se para a Poeta.

REI
Da tua primeira poesia eu pude dizer que era um feliz
resumo de tudo o que se fez nessas terras.
Esta segunda supera tudo e aniquila tudo.
Suspende, maravilha e deslumbra.
Servirá para os doutores e sábios,
Mas, não para os ignorantes e comuns.

4
Esta obra não será copiada.
Guardaremos em cofre de marfim esse único
exemplar.
Devemois concluir que da pena que produziu essa obra
poderemos esperar ainda uma obra mais elevada.

O REI sorri.

Somos figura de uma fábula...


e é justo lembrar que nas fábulas prima o número
três.

POETA
Os três dons dos feiticeiros, as tríades,
a indubitável Trindade.
Fúrias, Erínias.
Clothos, Láquesis e Átropos.

REI
Como agradecimento pela obra composta toma esta
máscara de ouro.

um assessor entrega ao poeta que se retira.

Escolhe alguma vila perto do castelo...


estabeleça-se nesta vila...
enquanto trabalha mais um ano.
Todas as despesas por conta do reino.

CENA 5
passagem do tempo através de imagens de astros e constelações seguindo
a mesma estrutura das passagens anteriores.

NARRADOR EM OFF:
O aniversário voltou.
A poeta retorna.
O mundo não será mais o mesmo.

a poeta entra sem manuscrito e mais depauperada, carregada por alguns


soldados, parece cega. Sofre horrivelmente. A POETA é postada à frente
ao REI, quer está apreensivo.

REI
tremenda pausa incômoda.

5
Não executaste o poema prometido?

POETA
Sim.
Fui capaz de compor um texto.
triste.
Eu queria que Cristo Nosso Senhor tivesse me
impedido.

REI
Podes repetir para mim tal obra?

POETA
Não me atrevo...

o REI olha para seus soldados e assessores.

REI
Você receberá o que quiser.

POETA
Não desejo anda...
A não ser a permissão de falar somente ao REI.

O Rei olha para o Assessor que molha a soldadesca e dá ao Rei o sinal de


aquiescência. O Rei faz sinal para que a POETA se aproxime. A POETA se
dirige, claudicante, ao REI... Os soldados desembainham as armas. O
poema é dito ao ouvido do REI. Close na boca, no ouvido, nas
sobrancelhas, ditos que são falados com muita dificuldade. O poema é
muito curto. O REI se expande em júbilo. Ambos se olham muito pálidos.

REI
Nos anos da minha juventude...

interagem as cenas de fotos, quadros e figuras escolhidos a dedo para o


momento de acordo com o relato, enquanto o REI relata embevecido.

... naveguei na direção do fim.


Estive em ilhas em que cães prateados matavam
javalis de ouro;
em outras onde comíamos apenas a magia das maçãs;
em outra eu via muralhas de fogo.
Na ilha mais distante cheguei a ver um rio abobadado
que subia aos céus.
Todas essas maravilhas não se comparam ao teu

6
poema.
Que feiticeiro te forneceu essa inspiração?

POETA
Pela manhã eu despertei dizendo umas palavras que
não compreendia.
Era um poema que só de se falar nele já se pecava.
Senti que a alma ardia.
Daqueles pecados que o Espírito Santo não perdoa.

REI
Entendo.
Você sabe que agora teremos de expiar esse dom.
Contemplar a Beleza é um dom vedado aos homens.
Eis o teu último presente.

o REI retira o centro e espada do cinto. Cobre a POETA com o colar de


diamantes, com o arminho, com a coroa, retira os sapatos dourados. O
Assessor trás uma máscara de ouro. O REI vai retirando a roupa. Enquanto
isso todos do salão se ajoelham perante a POETA.

Era o que te faltava.


Todo o castelo te pertence...
O reino é teu.

O REI puxa, finalmente, uma adaga mui preciosa e joga-a ao chão. O REI
se levanta transtornado enquanto sai, deixa mantos pelo caminho, cetros
e coroa pelo chão, vai para a rua como mendigo; a POETA põe a máscara
de ouro e se mata com a adaga de prata em pleno palácio.

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