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Bruxaria: A Arte do 

Limiar
Publicado por Leonard Dewar em 5 de setembro de 2017

Bruxaria: A Arte do Limiar

(crédito da imagem de Loren Morris, do site Primitive Witchery. Ela também está


no Etsy)

“Então o Pajé da tribo se aproximou da jovem Nheambiú e disse:


– Cuimbaé, seu grande amor, acaba de ser morto”. E a jovem moça
estremeceu, soltando gritos de lamento. Todos os presentes foram
transformados em árvores secas; a desolada jovem Nheambiú, foi
transformada em um Urutau, pousando pelas árvores secas,
chorando eternamente a perda de seu grande amor”.
(1)

 
          Não há como falarmos em bruxaria sem falar de inúmeras culturas
e povos. Existem alguns nichos que defendem a bruxaria como uma
espécie de “velha religião”, definindo suas práticas e as práticas alheias
nos moldes de seus próprios parâmetros, como os adeptos das religiões
neopagões que surgiram no último século (2). Não somente isso,
analisando as últimas duas décadas, conseguimos ver um verdadeiro
alvoroço quanto ao que deveria ser ou não a bruxaria. Inúmeros grupos e
pessoas digladiando-se para provar sua legitimidade ou a legitimidade de
suas práticas. Tantas brigas e confusões espalhadas por inúmeros lugares,
sendo hoje em dia, a rede virtual abarrotada dessas brigas e cartilhas.

            A influência que os grupos neopagões tiveram, são apenas


superficiais e apenas alcança meios em que as pessoas acabam por
comprar suas ideias de “religião”, a fim de complementar seu Caminho,
como se uma religião fosse exatamente aquilo que precisassem,
justificando, dessa forma, que aquilo que fora encontrado é uma fórmula
que servirá para todas as outras pessoas. Caso não sirva, deverá servir,
afinal, essa pessoa não poderia (ou não conseguiria) enxergar que
existiria outro caminho. Aqui encontramos os problemas clássicos de
pessoas submissas, onde saem de uma igreja para tentar um Caminho
mais livre e acabam por se cercar das mesmas amarras que tinham
anteriormente, isso sem citar nas suas dependências ou vazios emocionais,
precisando ter uma figura paterna (ou no caso, materna) que te trata da
mesma forma que o Jesus da igreja: ele te ama acima de tudo e te perdoa
por tudo que fizer. Bem, essa necessidade de fazer da bruxaria em si uma
religião é apenas um ato desesperado de ter em mãos algo que não fuja
dos próprios conceitos, dependências e amarras; é ter que continuar no
mesmo lugar com uma roupagem diferente e, admitir que isso não seria
“a verdade”, seria admitir que não se está num local diferente do
anterior. Sim, é uma contradição bem óbvia, mas não cabe a nós discuti-
la num nível mais profundo: deixemos isso para os psicólogos e
psiquiatras.

            Em todas as sociedades e em todos os períodos existiram pessoas


que fossem contra as leis e proibições de cunho religioso e social.
Aprendemos desde pequenos que as leis são corretas e que todos devemos
segui-la. Aprendemos que qualquer coisa que quebre essas leis é
considerada muito errado e somos doutrinados a nos sentir mal quando
fazemos algo que a maioria considere ‘ruim’, ‘errado’ ou ‘mau’. As
doutrinações ocorrem em níveis diferentes desde que nascemos, sendo
infelizmente o doutrinamento moral/religioso nos nossos dias uma
imposição cristã. Cada sociedade possui suas formas de doutrinamento e
é aí que entra a bruxa.
            Quando falamos de bruxaria, estamos entrando numa vasta área
de atuação e de práticas, sendo impossível defini-la ou regrar suas
práticas ou crenças; e é justamente essa liberdade sem amarras da
bruxaria que a faz ser temida entre os grupos e religiões de tantas
sociedades do passado até mesmo aos dias atuais.

            Este autor pode usar a própria experiência apenas para descrever
a própria Arte, mas não para definir ou julgar a Arte dos outros e essa
pequena compreensão de olhar para as outras fontes de poder ou para a
Arte alheia é o que falta para muitas pessoas, principalmente no que diz
respeito às inúmeras discussões custosas pela internet. Como diria o sábio
e falecido Andrew Chumbley:

“Então, Empoderado com essência e preparado com substância, deixe o


Caminho ser feito o seu próprio! Se você chama pelos Deuses e Eles
respondem, quem está lá para se opor ou desafiar a integridade do seu
Caminho?”

           Esse é um dos problemas que a popularidade da bruxaria em


trazido, assim como o grande aumento das massas como adeptos, seja lá o
que eles realmente fazem ou deixem de fazer. Muitas pessoas, por anos,
discutem acirradamente para legitimar ou não a “bruxaria do outro”.
Tais brigas enfraquecem esses mesmos grupos e desviam cada um deles
de seus Caminhos. Ao meu ver, as coisas são bem simples: este autor, por
exemplo, nutre um grande respeito pelos clãs de Bruxaria Tradicional,
mas de forma alguma poderia dizer que faz parte ou que pratica o que
esses mesmos Clãs praticam; posso apreciar grandes autores e
personalidades, como Chumbey ou Cochrane; posso me inspirar em seus
respectivos legados, mas não poderia dizer que tenho alguma relação com
a Cultus Sabbati, Clan of Tubal Cain ou a 1734. Tenho consciência da
minha natureza e do legado do meu sangue, mas seria a mesma coisa
dizer que pertenço a unidade familiar de outra pessoa, o que seria
completamente sem sentido. No entanto, essa é a menor das desavenças,
pois o grande problema são várias pessoas querendo apontar quem é ou
não “bruxo” – um título que muitos acabam não usando constantemente,
mas de forma esporádica, tendendo até mesmo a usar outras
denominações mais poéticas e que carreguem valores mais próximos da
própria Arte de cada um.

Eu ouvi um bruxo reclamar uma vez que essa popularidade causou


estragos na bruxaria e que agora não tem como consertarmos. Acho que
na realidade nada disso aconteceu: a bruxaria não é uma entidade que
possa ser acertada ou ferida; não há moral a ser restaurada e, uma vez
que não procuramos ou nos preocupamos com aceitação social, não faz a
menor diferença o que a sociedade pense sobre a bruxaria, pois no final,
somos todos julgados pela ignorância alheia, principalmente pelos
seguidores das religiões do deus do livro.

         A bruxaria como uma Arte sempre foi tão diversa e poderosa que
até hoje é objeto de estudos históricos e antropológicos e sempre esteve
vívido no contexto social de cada cultura e, até nos dias de hoje, podemos
ver o fascínio que causa nas pessoas.

            Abordei superficialmente essas questões de legitimidade e religiões


modernas para podermos entrar na matéria em que este ensaio se propõe
de dar uma visão pessoal sobre a bruxaria como a Arte do Limiar e
deveremos voltar em alguns momentos para essas questões de forma
rápida para ilustrar melhor o contraste do que vivemos no Caminho e do
que “é dito” por aqueles que não conseguem entender a beleza e a poesia
inerente a Arte em si.

        Quando falamos em ‘limiar’, estamos tocando em uma grande


variedade de assuntos que incluem a natureza tanto humana quanto a
divina. Não é minha intenção ficar divagando sem rumo, mas sim, dar
uma perspectiva sobre a natureza indefinida e naturalmente
contraditória da Arte em si. Digo que a Arte é “contraditória” da mesma
forma em que posso dizer que ela é “coerente” e, mesmo assim, ambos
seriam uma mentira, visto que sua natureza complexa engloba muito
mais do que nossos conceitos humanos e até mundanos do que uma
“natureza” poderia representar num todo.

      A noção de equilíbrio de um Caminho saudável em nossos dias é algo


completamente distorcido pelas massas. Como um Caminhante, não
poderia deixar de ignorar as visões “proibitivas” a respeito da bruxaria,
como se houvesse uma cartilha do que um bruxo pode ou não pode fazer;
de algo que ele deve ou não deve fazer. Não, de forma alguma poderia
concordar com alguma regra a respeito de minha própria prática ou
Caminho ditado por outros.

           A Bruxa é aquela capaz de andar entre diferentes grupos e mundos


sem precisar abraçar seus dogmas; É aquela que pode rezar para anjos
em um dia e demônio num outro. Ela pode usar o poder de um santo
católico e usá-lo como ícone para chamar o próprio Diabo. A bruxa
identifica o poder em suas variadas formas, sem se importar com as
regras ou separações daquele grupo ou religião em que o bruxo foi capaz
de enxergar um poder que lhe possa ser útil. Muitas bruxas inclusive
possuem suas próprias crenças com elementos variados, podendo rezar
para um santo ou deus, ao mesmo tempo em que negocia ou chama o
Diabo numa encruzilhada, floresta, árvore ou campo aberto.
         No livro The Black Toad, Gemma Gary (4) nos mostra as crenças
fascinantes e sincréticas das bruxas da região sudoeste da Inglaterra, com
seus inúmeros sortilégios com sapos e suas crenças ao redor desse animal
sagrado. Não apenas isso, nos mostra como inúmeros Salmos são usados
nos feitiços, assim como a invocação do nome de cristo e de deus. Da
mesma forma, Leland nos mostra uma ideia similar no seu Aradia: O
Evangelho das Bruxas (5), onde as bruxas italianas da região da toscana
inclusive frequentam a igreja e usam seus salmos, símbolos e até mesmo
seus objetos mágicos para realizarem feitiços de todos os tipos, inclusive
maldições. Mesmo que a veracidade do que Leland escreveu possa ser
facilmente contestada pela falta de fontes, ainda assim, muito do que ele
escreveu faz bastante sentido no que diz respeito ao sincretismo com o
cristianismo pelos praticantes da Arte e sua assimilação no que diz
respeito a poderes, rezas e objetos sagrados; embora deva admitir que a
existência de uma “Religião Antiga e organizada” na Itália, nos mesmos
moldes que clamam os wiccanos com sua nova religião, seja facilmente
derrubada por terra nos dias atuais.

          Conheci vários bruxos que usam Salmos nos seus ritos, assim como
Santos.

          A Bruxaria não possui limites ou leis e a liberdade que o bruxo tem


é sua própria bússola, não importa onde isso pode lhe levar. Tratar com
Anjos e Demônios é outra constante para muitos que Andam o Caminho.
Não obstante, muitos usam mitos bíblicos para ilustrar não só sua
condição divina, abençoada e profana, mas também, suas próprias
crenças a respeito de sua própria natureza.

       A Bruxa sempre andou nos limites entre os mundos e sempre foi


aquela que andou contra o vento e que ao mesmo tempo aprendeu a usá-
lo a seu favor. É aquele que adentra nos locais proibidos e que almeja
conhecimentos esquecidos.
         A Sabedoria se faz presente na busca, na jornada e em cada
acontecimento que jaz a sua frente. Diferente das religiões que pregam
um total afastamento daquilo que seria obscuro, da escuridão em nós
mesmos e a nossa volta, a bruxa procura entender a si mesmo e tudo a
sua volta (6). Quando digo que andamos no Limiar, digo que usualmente
muitos de nós avança até além de nossos limites para buscar algum
conhecimento ou condição, o que culmina em uma transgressão – que é
um elemento extremamente importante em muitas vertentes de Bruxaria
Tradicional.

           A Bruxa não precisa se “religar” a nada: ela nunca esteve


desconectada da fonte. Ela sabe usar os elementos a sua volta e consegue
entender tanto a si mesma quanto o ambiente ou meio em que vive. Por
esse motivo, muitas vezes a bruxa se sente completamente diferente,
mesmo sabendo que de certa forma é igual, as pessoas da sociedade
comum. Andamos no Limiar por sentirmos nossas dores sem procurar
ficar anestesiados com distrações; andamos no limiar porque podemos
manter contatos com deuses e demônios; espíritos violentos ou amistosos;
com bênçãos e maldições…esse último, merecendo uma atenção especial
quanto a realidade de sua visão. Uma bênção pode ter efeitos ruins na
vida de alguém, assim como uma maldição pode lhe trazer frutos
extremamente necessários para te tornar melhor ou mais forte, sem dizer
que poderia ser essencial para lhe ensinar algo que lhe servirá em outro
momento crítico. Estamos tão no Limiar que podemos converter sagrado
e profano apenas olhando por um ponto diferente, podendo fazer uso de
tais condições para tirarmos nosso próprio proveito. Somos capazes de
morrer e renascer em vida, trocando de pele como na Alteridade Feita
Carne (7), seja como a ascensão dos Santos ou como a Apoteose da
Serpente.

             A ideia da bruxaria sempre ter existido a margem da sociedade,


dá-se ao fato de que essa predisposição de andar no limiar e de extrair um
grande poder de sua própria liberdade, pois é esse tipo de conhecimento
que sempre trouxe temor tanto ao clero de templos e igrejas quanto aos
seguidores, que seguiam as regras sociais e religiosas. Podemos ver ambos
os exemplos na questão do aborto ou dos venenos, quando alguém queria
se livrar de uma criança ou conseguir algum veneno ou poção para os
próprios fins: mesmo temendo a bruxa e abertamente condenando seus
atos, essa mesma pessoa procurava pelos seus conhecimentos quando não
lhe restava outra alternativa ou quando precisava de algo sigiloso ou
vergonhoso, como um aborto. Na parte religiosa ocorre o mesmo, pois
muitas bruxas usam objetos de outras religiões e cultos sem serem
sacerdotes ou ainda mesmo sem possuir “autorização” da religião em si,
como por exemplo, roubar hóstias e água benta para rituais mais
profanos; ou ainda, trabalhar com algum poder ou entidade daquela
religião sem nem mesmo ser um sacerdote, como pode ocorrer com santos
católicos ou ainda com experiências e feitiços com os Loás do Vodu (8). A
Bruxa não procura e nem precisa de autorização para se apropriar de
coisa alguma, pois uma vez que ela identifica o poder que há no objeto ou
prática, ela usa com total liberdade e sem restrições.

            É muito comum observar um comportamento massificado entre


várias pessoas que se dizem Andarilhas do Caminho, principalmente no
que diz respeito as suas atitudes no dia-a-dia, nas opiniões condizentes
com a massa ignorante ou ainda pelas reações mundanas e previsíveis
frente aos problemas da vida e da existência, ainda mais quando postas
de frente com perdas, dores e falhas. Não só o amor ensina, quanto toda a
dor que esse sentimento sublime pode nos trazer, assim como a confusão,
o impulso, a felicidade eufórica e tudo o mais que tal elemento primordial
é capaz de brindar ante nossos corações. A Poesia – linguagem dos Deuses
e do mundo – se torna uma constante quando estamos amando. Da
mesma forma, a dor proveniente do amor e que pode vir na mesma
proporção, também nos preenche com poesia, mesmo que muitas vezes
mais obscura. Não digo poesia apenas no que se diz respeito a escrever
versos, mas de enxergar o mundo com olhos de poeta, e assim, enxergar o
mundo numa linguagem mais próxima da dos Deuses. Algo que aprecio
citar quando falo sobre a visão dos mundos pelo olhar do poeta e de como
essa visão se aproxima da dos Deuses, é o Alvismál (9). Essa balada nos
conta não só da astúcia do Deus Thor, mas também sobre como as coisas
são chamadas por cada raça de Deuses e pelos humanos. A partir dessa
balada temos o uso da poesia de acordo com os Alfar e Anões, dos Aesires
e Vanires, humanos e Jötnar. Os Deuses veem como funções com nomes
poético; os Elfos e Anões como poesia; os Jötnar como recurso e os
humanos com nomes literais. Essas visões parecem ser intercambiáveis
durante a balada, mas talvez isso esteja ligado a natureza de cada classe
de seres. “Árvore”, por exemplo, é chamado de “Árvore” pelos humanos;
de “combustível” pelos gigantes; de “Adorno dos Campos” pelos Aesires
e Vanires e de “ramo formoso, o adorno das colinas”. Da mesma forma,
para “Lua” temos “avermelhada” para os Deuses; “roda giratória” para
Helheim; “veloz” para os Jötnar, “brilhante” para os Anões e “contador
dos meses” para os Elfos. É importante ressaltar que esse conhecimento é
essencial para ser capaz de enxergar a mesma coisa ou situação por
ângulos diferentes, levando-nos a um conhecimento muito mais vasto do
que qualquer outra pessoa comum cuja visão se dá de uma forma
extremamente limitada. Acredito realmente que a poesia é de suma
importância para enxergarmos o mundo (e também os outros mundos)
como Deuses.

            Voltando a parte dos sentimentos, acredito ser essencial conhecer


a si mesmo, principalmente sobre seu lado mais obscuro e sombrio. É
muito comum ver pessoas fugindo de tudo aquilo que lhe traz dor, mas
algo que li e identifiquei na minha jornada foi “Dor é inevitável, mas o
sofrimento é opcional. Nós não podemos evitar a dor, mas podemos evitar
a alegria” (10).

          A reflexão em cima dessa frase é algo que realmente me ajudou a


perceber muitas coisas, inclusive de coisas das quais já conhecia até a
ideias que eu precisava refinar para entender melhor. Alguns de nós
possuem vidas mais sofridas do que outros, seja por escolhas erradas, por
herança de família ou ambos. De qualquer forma, entender que a dor faz
parte da jornada e usar isso para ficar mais forte, é essencial. Aqueles
que ficam se anestesiando com entretenimentos para esquecerem da
própria dor ou da vida em si, não passam de indivíduos que apenas
sobrevivem e na minha concepção, a bruxa é alguém que não apenas
sobrevive aos revezes da vida, mas alguém que transgrede, que busca, que
caminha, que vive. Até porque, o bruxo entende que sua dor pode ser um
grande professor e mestre. Em muitos casos, a dor pode ser uma bênção
enquanto o amor uma maldição, podendo se transformar um no outro em
um piscar de olhos, assim como a Mãe do Sangue pode mudar sua visão
entre filho e alimento na mesma velocidade.

             Aqueles que andam o Caminho não tendem a andar no limiar


apenas no que diz respeito as práticas mágicas, mas como foi
mencionado, também são capazes de olhar no limiar e de existir no
limiar. Muitos de nós se jogam de cabeça em decisões, mudanças radicais
e relacionamentos, sejam amorosos ou em grupos. Exatamente por não
possuirmos tais amarras, ou por mais cedo ou mais tarde sempre nos
livrarmos dessas amarras, é que nós somos sujeitos a paixões. Por outro
lado, exatamente por conhecer, viver e ter experiência em tais paixões é
que nós possuímos maior conhecimento sobre elas. Enquanto muitos não
tentam por medo ou por se acharem indignos, nós abraçamos as
oportunidades como aventureiros, mesmo que tenha riscos, pois assim é o
Caminho e a vida. Com o tempo, aprendemos mais sobre a natureza das
coisas e, principalmente, “como as coisas funcionam” e usamos isso ao
nosso favor, seja situações ou pessoas.

           Embora esse aprendizado seja algo natural para aqueles que


Andam o Caminho, não funciona da mesma forma para as pessoas
mundanas. Aliás, por andarmos tanto no limiar do mundo e de nós
mesmos é que acabamos mais centrados e adquirimos conhecimentos e
experiências que nos afastam das outras pessoas, tornando o Caminho
cada vez mais solitário. Por outro lado, isso pode gerar uma forma mais
dissimulada ou manipulativa para lidar com as pessoas a sua volta, pois
elas não conseguiriam entender a profundidade ou o valor das coisas,
mesmo se desejassem. De qualquer forma, por dentro, mesmo que
entendamos nossa condição e conexão de que todos nós estamos
conectados, como uma grande teia da Deusa Tecelã; também entendemos
o quanto as pessoas a nossa volta estão presas em seus grilhões seja pela
criação, religião ou meio social em que vive…há ainda quem diga que
nossa condição se deva de nascença e por isso que acabamos por nos
destacar das outras pessoas desde a infância, tanto coo alguém
“diferente” ou “estranho” até alguém mais “contestador”.

          A visão do Andarilho é de extrema importância para que este


consiga se situar no mundo em si. Uma boa analogia da qual faço uso
para tentar explicar algumas pessoas a reflexão necessária para enxergar
bem e mal, consiste numa encruzilhada de valores. Peguemos como
exemplo um soldado fictício: Esse soldado foi para a guerra em outro
país, matou cinquenta pessoas e voltou como herói. Voltando, esse mesmo
soldado é recebido pela sua esposa e pelos filhos. Ele também é um pai
amoroso e um exemplo de homem que sabe exatamente como tratar a
esposa. Esse soldado pode lhe ensinar a matar com perfeição, pois é algo
que ele fez inúmeras vezes. Ao mesmo tempo, ele é capaz de lhe ensinar
como tratar bem sua esposa e seus filhos de forma amorosa e digna.
Observando bem, a pergunta seria se ele é “bom” ou “mau”. A resposta
correta seria “pra quem”, pois para seus patriotas ele é um herói, para as
cinquenta famílias que ele ajudou a destruir, ele é um assassino, alguém
que merecia morrer. Esse mesmo soldado pode te ensinar como matar,
mas também como amar. Assim é como muitos bruxos enxergam algumas
entidades e Deuses: não como “bons” ou “maus”, mas como Poderes.
Assim poderia ser, por exemplo, com um Demônio ou Anjo, o que para
muitos não possui realmente muita diferença, mas sim, finalidade.
            Assim também funciona quando falamos sobre a Morte em si,
sabendo que ela não é boa ou má, mas simplesmente o que ela é: a Morte.
Porém, a grande maioria das pessoas vivem suas vidas temendo a morte
ou ainda evitando ao máximo pensar que ela poderá vir a qualquer
momento. Um bruxo entende a Morte como parte do ciclo e que
passagem para outros mundos. Entende a morte em diversos níveis de
transformações e sabe que a morte final do corpo, não deixa de ser uma
outra passagem da própria vida em relação a existência. Conseguimos
enxergar a morte como uma constante ao nosso lado e conseguimos
aceitar a ideia de forma menos complicada do que a grande maioria das
pessoas, das quais a opinião geral é que a “vida” é algo “bom” e a
“morte” algum “ruim”. Enxergamos além do preto e branco, com
diversos contrastes e cores no que diz respeito a existência e a realidade
do mundo e além.

            As pessoas num geral tendem a apontar “bem e mal” como se


fossem coisas definidas, esquecendo-se que tais ideias mudam de acordo
com a sociedade, grupo ou tempo. E esse é um dos motivos de muitos
bruxos acabarem sendo vistos como pessoas de valores diferentes,
portanto, subversivos para a maioria da sociedade conservadora,
principalmente por grupos religiosos. Sem dizer na propensão daqueles
que realmente andam o Caminho de não serem facilmente manipulados
pelas convenções sociais e pelas grandes marcas. Nem mesmo pelos
sonhos tão mundanos como carros caros e mansões. Quanto mais se anda
pelo Caminho, mais se percebe as ilusões das necessidades que criamos.
Cada vez mais, bem e mal se tornam conceitos menos importantes até que
se tornam obsoletos ou ainda inexistentes como conceito de dualidade.

      Nós caminhamos no limiar e, em vários aspectos, essa é a nossa Arte.


E é exatamente essa mesma Arte que nos leva ao Caminho do Meio e ao
equilíbrio, pois assim conhecemos muitos de nossos limites, tornando-nos
mais próximos de Sophia e de sua companhia de sábios. Assim podemos
percorrer os caminhos a partir do centro para fora e de fora para o
centro, como tudo o faz na existência e, quem sabe, dessa forma nós
alcancemos a Chama das Eras que brilha entre os chifres sagrados de
Azazel.

FFF

“A culpa é do fogo do inferno – E dos meus desejos


O céu está chorando sangue
Me dê todas as suas mentiras – E culpe o senhor das moscas
A face do mal é o rosto de DEUS.”
(11)
 

Notas:

1. Urutau, também chamado de “mãe-da-lua”, é uma ave noturna da


família Nyctibiidae, do gênero Nyctibius. Uma ave que emite um
som assustador pelas matas brasileiras e vários países da América
do Sul, parecida com um lamento. O trecho citado é de uma lenda
em que o Urutau é a filha de um Cacique de uma tribo indígena do
povo Guarani, que emite todas as noites o lamento pela morte do
seu grande amor. Existem várias lendas a respeito do Urutau, mas
preferi citar um trecho dessa pequena versão;
2. Principalmente a Wicca, criada por Gerald Gardner nos anos 50’s;
3.  Andrew Chumbley; Final da introdução do “Azoetia – A Grimoire
of the Sabbatic Craft”, Xoanon Publishing, 2002;
4. Gary, Gemma; The Black Toad; Troy Books; 2012;
5. Charles Godfrey Leland; Aradia: Godspel of the Withces; David
Nutt; 1899;
6.  De forma alguma estou dizendo como deve ou não agir um bruxo,
mas sim, usando da poesia em si e de analogias sobre a procura da
sabedoria e de conhecimentos proibidos pelas próprias pessoas que
as temem;
7.  Chumbley, Andrew; Formula of the Opposer; Qutub; Xoanon
Publishing; 1995;
8. Os Loás (ou Lwas) são entidades da religião Vodu que trabalham
de várias formas, sendo a possessão uma delas;
9. Alvismál, ou a balada de Alvis é um poema das Eddas sobre o Anão
Alvis que vai à casa do Deus Thor para tentar se casar com sua
filha. O Deus do trovão testa seus conhecimentos para ganhar
tempo até que o sol nasça, transformando o anão em pedra;
10.Frase do escritor Tim Hansen de seu livro “You gotta keep
dancing”;
11.Trecho da música “Carry your cross and i’ll carry mine” da banda
“Tiamat”.

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